A <strong>melancolia</strong> era amplamente estudada, com abundantes <strong>de</strong>scrições e discussões sobre estaforma <strong>de</strong> loucura, que era a mais comum <strong>de</strong>las. As idéias <strong>de</strong> Hipócrates e Galeno eram aceitase associadas à <strong>melancolia</strong>, como a outros temperamentos. A <strong>melancolia</strong>, no mundo árabe, nãoera entendida como possessão <strong>de</strong>moníaca ou manifestação da cólera divina, mas apenas um<strong>de</strong>siquilíbrio humoral do cérebro pelo predomínio da bile negra (CORDÁS, 2002, p.42-3).A medicina árabe dos séculos IX e X influenciaram a medicina oci<strong>de</strong>ntal até arenascença. Os autores árabes estabeleceram uma relação entre a teoria dos humores <strong>de</strong>Hipócrates e astrologia. O humor melancólico é ligado à influência <strong>de</strong> Saturno, que no corpohumano governava o baço, se<strong>de</strong> da bílis negra. Vem daí a qualificação humoral <strong>de</strong> soturno,que <strong>de</strong>signa a pessoa triste, sombria e silenciosa, expressão esta que se tornou sinônimo <strong>de</strong>melancólico. A influência <strong>de</strong> Saturno não se exercia, porém, em pessoas vulgares, mas empessoas extraordinárias: fica assim mantida a ligação aristotélica entre <strong>melancolia</strong> egenialida<strong>de</strong> (SCLIAR, 2003; PERES, 2003).Na Ida<strong>de</strong> média, no séc XII, o estudo da <strong>melancolia</strong> tem como principal representantea escola <strong>de</strong> Salermo com sua doutrina dos temperamentos. A teoria da <strong>melancolia</strong>, nestaépoca, aparece também vinculada à ciência árabe e à astrologia, para a qual Saturno é tidocomo o astro que guia e governa o melancólico. Constantinus Africanus (1010- 1087),mulçumano convertido e associado à escola <strong>de</strong> Salermo, traduziu para o latim a partir doárabe 3 Hipócrates e Galeno, conservando assim as concepções <strong>de</strong>stes autores nesta época. EmConstantinus, a <strong>melancolia</strong> aparece como um mal do amor, resultado <strong>de</strong> uma paixão nãocorrespondida, ou da busca <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al amoroso impossível <strong>de</strong> atingir. A <strong>melancolia</strong>, nestemomento, ainda é relacionada ao aumento da bílis negra no organismo. Constantinusintroduziu no oci<strong>de</strong>nte a obra De <strong>melancolia</strong> (Sobre a <strong>melancolia</strong>) – do médico <strong>de</strong> BagdáIshaq ibn Imran –, texto que distingue várias formas <strong>de</strong> <strong>melancolia</strong>, as quais se manifestavampor conduta agressiva, temor, ansieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sânimo, choro, risco <strong>de</strong> suicídio e a licantropia –<strong>de</strong>lírio em que a pessoa se imagina transformada em lobo. Neste texto encontra-se ainda aafirmação <strong>de</strong> que os melancólicos temem situações que <strong>de</strong> fato não são ameaçadoras(SCLIAR, 2003, p.73; CORDÁS, 2002, p.47).Na renascença, período <strong>de</strong> profundas transformações culturais, sociais e intelectuaisentre os séculos XIV e XVI, a <strong>melancolia</strong> tornava o homem capaz <strong>de</strong> produção intelectual e3 Os escritos greco-romanos haviam sido traduzidos para o árabe e, agora, com o retorno do interesse por estesconhecimentos, eram traduzidos para o latim. Os escritos então saíram do mundo oci<strong>de</strong>ntal, foram para o mundoárabe e agora retornavam à Europa.30
artística. O conhecimento grego-romano volta a circular com muita força nos círculoscientíficos. Os textos <strong>de</strong> Hipócrates e Aristóteles são abundantemente estudados. Começam astraduções dos originais gregos para o latim. Há paulatinamente uma revalorização do homeme uma insubordinação às regras impostas pela Igreja (CORDÁS, 2002, p.50). Enfim, orenascimento é uma época <strong>de</strong> retomada científica e libertação dos grilhões impostos pelaIgreja. Mais do que a presença dos médicos clássicos, havia aqui a presença da <strong>concepção</strong>filosófico-aristotélica, que concebia a genialida<strong>de</strong> aliada à condição do estado melancólico.Os pensadores <strong>de</strong>sta época acreditavam que a <strong>melancolia</strong> era sinal <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>.A <strong>melancolia</strong> é o tema central do manual <strong>de</strong> higiene mental – Da vita tríplice – escritopelo renascentista Marsilius Ficinus (1433-1499), médico, filósofo, mago, astrólogo e...melancólico. Este manual reunia quatro teorias sobre a <strong>melancolia</strong>: a hipocrática (teoria doshumores), a platônica (poesia e furor), a astrológica (Saturno e <strong>melancolia</strong>) e a aristotélica(<strong>melancolia</strong> e genialida<strong>de</strong>). Este estudioso consi<strong>de</strong>rava a <strong>melancolia</strong> um gran<strong>de</strong> tormento, mastambém uma gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> para os homens <strong>de</strong> estudo. Saturno era, segundo Marsilius,o planeta inspirador dos sábios e estudiosos. A <strong>melancolia</strong>, presente em todo homem,representava o anseio pelo gran<strong>de</strong> e eterno; já que, sendo o representante <strong>de</strong> Deus na terra, ohomem sempre seria perturbado pela nostalgia da terra natal celestial. Seria uma mera, masinteressante, coincidência lembrarmos aqui da psicanálise e <strong>de</strong> suas postulações sobre osi<strong>de</strong>ais narcísicos excessivamente elevados dos melancólicos, ou do anseio pela ausência <strong>de</strong>tensão, representada pelo paraíso. Ficinus postula ainda que a <strong>melancolia</strong> é revelada noatropelo da vida diária, sendo uma característica comum da alma. No entanto, só os homens<strong>de</strong> exceção, como os filósofos e artistas, precisam estar em contato com sua <strong>melancolia</strong>, naqual a profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua experiência refletirá seu sucesso ao erguer a mente acima da vidacomum (SOLOMON, 2002, p.274). A <strong>melancolia</strong> seria então um pré-requisito para ainspiração. É impossível não lembrarmos aqui das idéias do “Problema XXX” <strong>de</strong>Aristóteles...Ainda havia aqueles que associavam a <strong>melancolia</strong> à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prever o futuro,como era o caso do médico, filósofo, mago e ocultista Cornelius Agripa (1486-1535). Outrateorização da época relacionava a <strong>melancolia</strong> às paixões. Os médicos e filósofos darenascença distinguiam duas formas <strong>de</strong> paixão: o pudique e o impudique. A primeira eraaquela relativa ao amor <strong>de</strong>votado entre marido e esposa, pai e filho, do súdito pelo senhor etc.A segunda era representada pela luxúria, o amor carnal que “queima os humores do corpo” egera a <strong>melancolia</strong> (SCLIAR, 2003; PERES, 1996, 2003).31
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