Capítulo 4A <strong>concepção</strong> <strong>freudiana</strong> <strong>de</strong> <strong>melancolia</strong> e os estados <strong>de</strong> mente melancólicosAtualmente encontramos a <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong>finida, ao lado do pânico e das toxicomanias,como uma das formas <strong>de</strong> mal-estar predominantes na contemporaneida<strong>de</strong>. Birman (2006,p.218) nos alerta que o sujeito contemporâneo agarra-se <strong>de</strong> forma viscosa aos objetos, umaforma <strong>de</strong> se assegurar diante do “abismo do vazio”, pela carência dos pólos <strong>de</strong> sustentação <strong>de</strong>si próprio. As subjetivida<strong>de</strong>s são, neste contexto, geralmente caracterizadas pelas súbitasvariações <strong>de</strong> humor e distimias. Em função dos i<strong>de</strong>ais do mundo contemporâneo e dascondições <strong>de</strong> imprevisibilida<strong>de</strong> e insegurança, representados na “cultura do narcisismo” e na“socieda<strong>de</strong> do espetáculo” 21 , o indivíduo nunca po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r nada, restando a ele se agarrar atudo que o permita <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se do vazio. O luto quase impossível do objeto que não po<strong>de</strong> serperdido, evi<strong>de</strong>ncia uma colagem a este, e assim, uma disseminação da <strong>melancolia</strong>. Aimpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vivenciar a perda, pela colagem ao objeto em busca <strong>de</strong> segurança tornaimpossível a elaboração da perda, condição necessária para que se realize a simbolização. Poristo, revela o autor, a <strong>de</strong>pressão hoje assume uma feição marcadamente melancólica.A <strong>melancolia</strong>, no entanto, é um estado muito antigo na humanida<strong>de</strong>, que se confun<strong>de</strong>facilmente com a <strong>de</strong>pressão, tornando assim, seu estudo muito complexo e problemático. Seja<strong>melancolia</strong>, seja <strong>de</strong>pressão, constata-se um estado dominante na atualida<strong>de</strong>, presente em nossocotidiano. Um estado marcado por uma intensa inibição psíquica e física, expressando-se emsentimentos <strong>de</strong> impotência, culpa, vazio e sofrimento sem representação. A <strong>de</strong>scrição queFreud realiza do quadro clínico da <strong>melancolia</strong> e as proposições sobre sua psicodinâmica,tornaram nosso caminho escolhido para a compreensão <strong>de</strong>stes estados. As contribuiçõesoferecidas pelo artigo freudiano “Luto e <strong>melancolia</strong>” (1917[1915]) foram nossa referênciaprincipal. No entanto, precisávamos antes buscar as origens da <strong>melancolia</strong> para começar adiscriminar a confusão existente entre os termos <strong>de</strong>pressão e <strong>melancolia</strong>.Em toda a história da civilização a <strong>melancolia</strong> esteve presente, ora significandoin<strong>de</strong>terminadamente uma manifestação qualquer <strong>de</strong> loucura, ora uma tristeza maligna, ou emoutros momentos ainda, um estado profundo que resultava em genialida<strong>de</strong> e em contatoprofundo com as verda<strong>de</strong>s sobre a existência. O que observamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século X a.C. é apresença na civilização humana <strong>de</strong> uma manifestação persistente, em torno da qual muito21 Para um aprofundamento <strong>de</strong>stas questões, ver Arquivos do mal-estar e da resistência, Birman, 2006.160
conhecimento foi gerado. Esta presença marcante da <strong>melancolia</strong> e a intensa preocupação dohomem em compreendê-la, <strong>de</strong>stacam a importância <strong>de</strong>ste estado. Embora sempre seapresentando <strong>de</strong> maneira nebulosa, <strong>de</strong>scobrimos que a <strong>melancolia</strong> revela algo consistentesobre a expressão dos afetos humanos e sua condição <strong>de</strong> existência. Percebemos que a<strong>melancolia</strong>, ao longo da história, sempre esteve ligada <strong>de</strong> alguma forma as vivênciasdolorosas <strong>de</strong> perda: frustrações, <strong>de</strong>cepções, humilhações, abandono e etc. Assim, reunimostodos estes acontecimentos sob o signo <strong>de</strong> registro da perda, isto é, aos limites do ser humanofrente ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> controlar e dominar os acontecimentos da existência (BIRMAN, 2006). Oregistro da perda evi<strong>de</strong>ncia a impotência e fragilida<strong>de</strong> do homem e, em última instância, dacivilização, frente à supremacia do <strong>de</strong>stino, ou das eventualida<strong>de</strong>s que permeiam a vida.Por seu apelo poético e comum, no século XIX os psiquiatras optaram pela primaziado termo <strong>de</strong>pressão sobre o termo <strong>melancolia</strong>. Na segunda meta<strong>de</strong> do século XX, a<strong>melancolia</strong> na nosografia psiquiátrica ce<strong>de</strong>u <strong>de</strong>finitivamente lugar à <strong>de</strong>pressão. A psiquiatria,baseada na <strong>de</strong>scrição objetiva e acurada dos sintomas e <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> síndromes, passou acatalogar as diversas formas <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong>pressivas/melancólicas diferenciado-asrigorosamente. O que no passado era chamado ‘<strong>melancolia</strong>’ foi subdividido em diversossubtipos – distúrbio bipolar, <strong>de</strong>pressão maior, ciclotima, distimia, entre outras – <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>uma classe <strong>de</strong>nominada Transtornos <strong>de</strong> Humor (DSM-IV) ou Transtornos Afetivos (CID-10).Em conjunção à nosografia, os avanços das neurociências permitiram enfim reduzir a<strong>de</strong>pressão a sintomas causados por disfunções químicas nas fendas sinápticas das célulasneuronais. Com isso, o campo do psíquico ce<strong>de</strong>u terreno ao campo do biológico. Nesteterreno o comportamento humano passou a ser explicado por interações químicas no cérebro,evi<strong>de</strong>nciando uma visão puramente biológica. As incansáveis sistematizações e enumerações<strong>de</strong>scritivas das formas <strong>de</strong> sofrimento psíquico realizadas pela psiquiatria, passaram a ser cadavez mais necessárias, mas apenas para orientar a terapêutica farmacológica, sua principalforma <strong>de</strong> tratamento.Na psicanálise, preservou-se um interesse pelos elementos psíquicos dos estados<strong>de</strong>pressivos e melancólicos em sua manifestação e origem. Os termos continuaram a serusados até a atualida<strong>de</strong>, ora i<strong>de</strong>ntificados, ora distinguidos. No entanto há uma tendênciapredominante em utilizar o termo <strong>melancolia</strong> para se referir a um tipo <strong>de</strong> psicopatologia <strong>de</strong>estrutura psicótica, com sintomas predominantes e muito agravados <strong>de</strong> auto-agressivida<strong>de</strong> eauto-<strong>de</strong>svalorização, expressos em sentimentos <strong>de</strong> culpa e falta <strong>de</strong> auto-estima. A <strong>de</strong>pressãoficou ligada a estados neuróticos, po<strong>de</strong>ndo tanto aparecer em seu estado puro, no qual imperauma inibição generalizada, motora e psíquica, ao lado <strong>de</strong> intensos sentimentos <strong>de</strong> vazio, ou161
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