3.1.1 Rumo ao conceito <strong>de</strong> narcisismoNarcisismo. Amar exageradamente a si próprio, supra-valorizar-se. Nutrir amorexcessivo a si mesmo, à sua imagem. Pensar-se o melhor entre os melhores. Excessiva autoadmiração.Este é o sentido usualmente conferido à palavra, em seu senso comum. Está presentenos dicionários <strong>de</strong> língua portuguesa e em nosso cotidiano. Normalmente a usamos para nosreferir àquela pessoa que é exageradamente vaidosa, cheia <strong>de</strong> si, que tem um amor por simesmo que vai além da conta. Este sentido não vem da psicanálise como muitos pensam, mas<strong>de</strong> um mito muito antigo, chamado Narciso, contado pela primeira vez por Ovídio (1983) –poeta latino que viveu em cerca <strong>de</strong> 40 a.c.─ em seu livro As Metamorfoses.O mito conta que Narciso foi um rapaz cuja extraordinária beleza seduzia eapaixonava todas as ninfas e jovens dos bosques em que vivia. Fruto do abuso do <strong>de</strong>us Céfisosobre a bela Liriope, ele tinha como marca, além da prodigiosa e encantadora perfeiçãoestética, uma gran<strong>de</strong> arrogância e soberba. Os jovens e ninfas eram vítimas do <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong>Narciso. Um dia, um <strong>de</strong>les, muito ressentido, levantou as mãos para o céu e orou aos <strong>de</strong>usespedindo que Narciso viesse a amar, sem que nunca possuísse o objeto amado. Tal prece foiatendida. Ao <strong>de</strong>bruçar para saciar sua se<strong>de</strong> sobre uma fonte límpida, <strong>de</strong> águas muito claras,brilhantes e prateadas, ele fita os olhos pela primeira vez em sua imagem refletida no espelhod’água. E se encanta ela. Sente uma paixão imediata, intensa e arrebatadora. Tenta<strong>de</strong>sesperadamente tocar a imagem, beijá-la, acariciá-la. Declama poemas e faz sedutoras esofridas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> amor. São tentativas vãs, que fracassam e lhe torturam a alma. Atéque finalmente, ele se dá conta <strong>de</strong> que se apaixonara por sua própria imagem refletida noespelho d’água, e que está con<strong>de</strong>nado a nunca consumar este amor. Passa então o resto <strong>de</strong> suavida admirando-se, <strong>de</strong>sejando a si mesmo, sem nunca possuir-se. Ao apaixonar-se por simesmo, o rapaz abandona qualquer outro interesse pela vida, não se alimenta ou cuida <strong>de</strong> suasaú<strong>de</strong>. Passa seus dias a se contemplar em gran<strong>de</strong> agonia e sofrimento, até o dia <strong>de</strong> sua morte,no qual ninfas encontram no lugar <strong>de</strong> seu corpo uma bela flor dourada ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> pétalasbrancas. A flor recebeu o nome do jovem Narciso (OVÍDIO, 1983).É <strong>de</strong>ste mito e das características da personalida<strong>de</strong> do jovem Narciso que proce<strong>de</strong>m ossignificados atribuídos à palavra em nosso cotidiano. A soberba, o orgulho excessivo, aaltivez, a arrogância, a presunção e a auto-valorização compõem a personalida<strong>de</strong> daquele que,118
no senso comum, <strong>de</strong>nominamos <strong>de</strong> “narcisista”. E isto não seria fruto <strong>de</strong> uma beleza e <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong>s autênticas do sujeito, mas <strong>de</strong> um excessivo amor nutrido por si mesmo. Em sentidoestrito, “narcisismo” seria, portanto, tomar-se a si mesmo como objeto <strong>de</strong> amor.Na psicanálise, no entanto, através da pena <strong>de</strong> Freud, o termo recebeu o estatuto <strong>de</strong>conceito, <strong>de</strong> elemento presente no psiquismo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nosso nascimento. Ele conferiu ao termoum sentido mais <strong>de</strong>finido e complexo do que os que estão presentes em nosso cotidiano.O narcisismo surge publicamente nas idéias <strong>freudiana</strong>s pela primeira vez em umareunião da Socieda<strong>de</strong> Psicanalítica <strong>de</strong> Viena, em 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1909. Segundo a ata dareunião, Freud teria se referido ao narcisismo como um “estágio intermediário necessário napassagem do auto-erotismo para o aloerotismo” 17 (JONES, 1989, p.274). Esta <strong>de</strong>finição, noentanto, apareceria nos textos freudianos anos mais tar<strong>de</strong>. Inicialmente, o termo apareceu emuma nota <strong>de</strong> rodapé acrescentada no ano <strong>de</strong> 1910 na segunda edição dos Três ensaios sobre ateoria da sexualida<strong>de</strong> (1905). Nesta nota, ele é usado <strong>de</strong> forma muito mais in<strong>de</strong>finida que nocomentário anterior da reunião da Socieda<strong>de</strong>. O narcisismo surge neste momento como umamaneira encontrada por Freud (1905, p.137) para explicar o mecanismo do homossexualismomasculino. A nota diz o seguinte:Em todos os casos investigados, constatamos que os futuros invertidosatravessaram, nos primeiros anos <strong>de</strong> sua infância, uma fase muito intensa, emboramuito breve, <strong>de</strong> fixação na mulher (em geral, a mãe), após cuja separaçãoi<strong>de</strong>ntificaram-se com a mulher e tomaram a si mesmo como objeto sexual, ou seja,a partir do narcisismo buscaram homens jovens e parecidos com sua própria pessoa,a quem eles <strong>de</strong>vem amar tal como a mãe os amou.O termo, nesta passagem, é usado para se referir a uma característica dos invertidos –os homossexuais masculinos que, diz Freud, tomam a si mesmo como objeto <strong>de</strong> amor e, porconseguinte, escolhem outros rapazes como objeto <strong>de</strong> amor segundo o narcisismo, isto é, àsua imagem e semelhança. Neste primeiro aparecimento, o sentido é restrito a uma forma <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificação que leva o sujeito a tomar a si mesmo como objeto libidinal, e relacionar-se comos objetos visando satisfazer seu narcisismo. Esboça-se nesta passagem a noção <strong>de</strong> que umi<strong>de</strong>ntificação segue como conseqüência <strong>de</strong> uma separação – formulação que alicerçará Freu<strong>de</strong>m Luto e <strong>melancolia</strong>.A referência seguinte ao conceito é encontrada no trabalho Leonardo da Vinci e umalembrança da infância (1910):O amor da criança por sua mãe não po<strong>de</strong> mais continuar a se <strong>de</strong>senvolverconscientemente — ele sucumbe à repressão. O menino reprime seu amor pela17 Orientação da libido para objetos externos; heteroerotismo.119
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