Capitulo 3Metapsicologia II – Os elementos psíquicos envolvidos na dinâmica da <strong>melancolia</strong>Após o exame do artigo Luto e <strong>melancolia</strong> (1917 [1915]), realizado no capítuloanterior, passaremos agora ao estudo complementar dos elementos psíquicos presentes nadinâmica da <strong>melancolia</strong>, visando aprofundar a <strong>concepção</strong> <strong>freudiana</strong>. Vimos que, em seu texto,Freud <strong>de</strong>staca três pré-condições para o estabelecimento <strong>de</strong> um conflito melancólico: escolhanarcísica, ambivalência e regressão da libido para o ego – além <strong>de</strong> um fator <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante, avivência <strong>de</strong> uma perda (FREUD, 1917 [1915], p.262). A proposição se articula da seguintemaneira: o vínculo estabelecido entre o sujeito e o objeto se baseava no mo<strong>de</strong>lo narcísico <strong>de</strong>investimento libidinal, sendo que atuam nesta relação intensos sentimentos ambivalentes que,em função do tipo <strong>de</strong> vínculo, não podiam ser vivenciados, mantendo-se o ódio oculto. Entraem cena, então, um fator <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante, uma situação <strong>de</strong> perda em função da qual a libidorecorre à i<strong>de</strong>ntificação narcísica, retraindo-se para o ego e nele se instalando. A ambivalência,que já se fazia presente na relação com o objeto <strong>de</strong> forma latente, emerge sob o predomínio <strong>de</strong>toda a carga <strong>de</strong> ódio. Finalmente, o ódio é <strong>de</strong>sviado do objeto perdido para o ego do sujeito,que abriga a libido retirada do objeto. O conflito está estabelecido, e o sujeito passa a amargarintensos sentimentos <strong>de</strong> impotência, fracasso, <strong>de</strong>svalia e culpa. Na psicodinâmica da<strong>melancolia</strong>, narcisismo e ambivalência são, portanto, dois elementos psíquicos que ficam emrelevo. Estão tão intimamente associados que praticamente a aparição do segundo se dá em<strong>de</strong>corrência do primeiro. Isto é, a presença do narcisismo pressupõe a ambivalência. Paracompreen<strong>de</strong>rmos estas questões com profundida<strong>de</strong> e agu<strong>de</strong>za, preten<strong>de</strong>mos realizar umaincursão pela metapsicologia <strong>freudiana</strong>, procurando analisar e discutir os conceitos <strong>de</strong>narcisismo e <strong>de</strong> ambivalência. Buscaremos suas origens nos textos freudianos e verificaremosos rumos ali tomados. Po<strong>de</strong>remos assim apreen<strong>de</strong>r com maior clareza a dinâmica psíquica quecaracteriza, segundo Freud, a <strong>melancolia</strong>.Em 1923, ele (1924 [1923]) a <strong>de</strong>finiu como uma neurose narcísica. Frente a tal<strong>de</strong>finição, <strong>de</strong> imediato somos obrigados a reconhecer que Freud <strong>de</strong>u um <strong>de</strong>staque especial aoelemento narcísico presente na psicodinâmica da <strong>melancolia</strong>. A importância do narcisismopara a compreensão da <strong>melancolia</strong> é assim <strong>de</strong>stacada por Laplanche (1987, p. 288):114
Particularmente, Luto e <strong>melancolia</strong> é inseparável <strong>de</strong> um outro estudo que se situaem 1914: Pour introduire le narcissisme. E dois pontos nos interessamprincipalmente no “narcisismo”. Por um lado, a introdução da instância do i<strong>de</strong>al edo superego; e, por outro, uma reflexão sobre a noção <strong>de</strong> objeto e <strong>de</strong> “escolha <strong>de</strong>objeto” (sendo este termo nitidamente preferido por Freud a “relação <strong>de</strong> objeto”,que raramente é encontrado).Em nota introdutória ao artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução” (Freud, 1914),James Strachey afirma que o estudo em questão foi o ponto <strong>de</strong> partida para muitos<strong>de</strong>senvolvimentos ulteriores, muitos <strong>de</strong>les contidos em Luto e Melancolia (1917[1915]).Andra<strong>de</strong> (1999, p.638) também <strong>de</strong>staca a importância do narcisismo para a compreensão da<strong>melancolia</strong> assinalando que o artigo <strong>de</strong> 1915 é o complemento natural daquele Sobre onarcisismo. Tais colocações, somadas às pré-condições da <strong>melancolia</strong>, nos impõem comotarefa fundamental examinar o conceito <strong>de</strong> narcisismo e suas contribuições para acompreensão da dinâmica psíquica da <strong>melancolia</strong>. Seguindo a indicação <strong>de</strong> Laplanche,precisamos dispensar atenção a três conceitos fundamentais que, em conjunto, compõem oselementos narcísicos da mente: a escolha objetal, a i<strong>de</strong>ntificação narcísica e as instânciasi<strong>de</strong>ais i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> ego/ego i<strong>de</strong>al. O conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação narcísica tem <strong>de</strong> ser associadoretroativamente ao estudo Sobre o narcisismo, pois o maior <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste conceitonão vem <strong>de</strong>ste texto, mas do próprio Luto e <strong>melancolia</strong>.Outro ponto no estudo que merece a nossa atenção é a ambivalência, cuja expressãoencontrada é a auto-agressivida<strong>de</strong> encerrada no interior do aparelho psíquico do melancólico.Vimos que, em Luto e <strong>melancolia</strong>, Freud ressalta o conflito <strong>de</strong>vido à ambivalência como umadas pré-condições para o estabelecimento da <strong>melancolia</strong>: “Esse conflito <strong>de</strong>vido àambivalência, que por vezes surge mais <strong>de</strong> experiências reais, por vezes mais <strong>de</strong> fatoresconstitucionais, não <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sprezado entre as precondições da <strong>melancolia</strong>” (FREUD,1917[1915], p.256). Desta maneira, o estudo da ambivalência – os sentimentos contrários <strong>de</strong>amor e ódio para com o objeto amado – torna-se essencial para a compreensão da <strong>melancolia</strong>.A noção <strong>de</strong> ambivalência foi amplamente discutida por Freud no artigo metapsicológico Aspulsões e seus <strong>de</strong>stinos. Estamos <strong>de</strong> acordo com Mezan (1998, p.182) ao afirmar que estetexto 15 complementa os conceitos elaborados em Sobre o narcisismo:A dualida<strong>de</strong> das pulsões engendra assim a oposição do amor e do ódio, que po<strong>de</strong>mser vistos como a expressão respectivamente da sexualida<strong>de</strong> e do ego; mas estacaracterização é pobre, se não se levar em conta o papel <strong>de</strong>cisivo do narcisismo naestruturação dos dois sentimentos. A estreita relação entre eles é apreendida peloconceito <strong>de</strong> “ambivalência”, que terá um papel tão importante no estudo do15 Este texto, presente no vol. XIV da tradução brasileira da Standard Edition, tem seu título traduzido como Osinstintos e suas vicissitu<strong>de</strong>s.115
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