permite ao sujeito abandonar a ligação objetal com uma marcante facilida<strong>de</strong>, mas não semprejuízos. É a situação contrária ao que nos revela o luto, processo no qual é constatada umagran<strong>de</strong> resistência da libido em se <strong>de</strong>sligar do objeto.Ainda sobre a contradição presente na relação com o objeto, esta aponta que, além dafragilida<strong>de</strong> do vínculo, ou pouca resistência, como Freud a <strong>de</strong>nominou, existe também umaforte fixação no objeto, que é até maior do que nos casos em geral. Neste caso, o objeto éabandonado facilmente, embora a relação com o mesmo seja preservada por intermédio <strong>de</strong>sua introjeção no ego. O que se percebe é uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renunciar à relação com oobjeto amoroso porque existe algo que não po<strong>de</strong> ser perdido, e que precisa ser preservado,mesmo às custas do massacre do ego. O que não po<strong>de</strong> ser perdido fica mais evi<strong>de</strong>nte quandocompreen<strong>de</strong>mos a constituição do tipo <strong>de</strong> vínculo estabelecido com o objeto, o vinculonarcísico.A expressão “a sombra do objeto caiu sobre o ego” significa que, embora na realida<strong>de</strong>a relação com o objeto seja abandonada, no interior do ego tal relação subsiste mediante ai<strong>de</strong>ntificação. O ego tortura-se e acusa-se porque na verda<strong>de</strong> quer se vingar do objetoperdido/abandonado – por <strong>de</strong>cepção ou frustração vivenciada na relação com o mesmo. E estavingança só acontece sobre si mesmo porque a relação com o objeto, que não po<strong>de</strong> serabandonada, passa a habitar o interior do ego.Segundo Freud, a existência <strong>de</strong>sta contradição ─ uma intensa fixação e ao mesmotempo uma frágil ligação ─ só é possível em um tipo específico <strong>de</strong> investimento libidinal dosobjetos: na “escolha narcísica” 13 . Assim, ele conclui que uma parte da predisposição à<strong>melancolia</strong> estaria ligada à predominância da escolha objetal narcisista, na qual, diante daperda ou <strong>de</strong>cepção, o sujeito po<strong>de</strong> substituir o amor objetal pela i<strong>de</strong>ntificação narcisista, nãoprecisando <strong>de</strong>sta forma renunciar à relação amorosa; isto equivaleria a uma “regressão doinvestimento <strong>de</strong> carga <strong>de</strong>positado no objeto para a fase oral da libido – fase aindapertencente ao período do narcisismo” (FREUD, 1917 [1915], p. 109). Agora estamos emcondições <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a nossa pergunta: por qual motivo o sujeito cai em <strong>melancolia</strong> em vez<strong>de</strong> se enlutar? A resposta estaria, entre outras motivos, no tipo <strong>de</strong> vínculo estabelecido com oobjeto. É por conta do vínculo narcísico que o sujeito não po<strong>de</strong> abandonar a relação com oobjeto. É por conta <strong>de</strong>ste vínculo que o sujeito, ao invés <strong>de</strong> se enlutar, caí em <strong>melancolia</strong>.É neste ponto que o narcisismo é relacionado à <strong>melancolia</strong> e <strong>de</strong>finido como uma <strong>de</strong>suas pré-condições. Se Freud parte da analogia com o luto e percebe que a <strong>melancolia</strong> é13 Termo que também po<strong>de</strong> ser referido por ligação narcísica ou eleição narcísica.104
também a reação à perda <strong>de</strong> um objeto, neste momento é distinguido o tipo <strong>de</strong> perda que estápresente na <strong>melancolia</strong>; ao que tudo indica, nela ocorreu uma perda no ego, ou <strong>de</strong> aspectos doego. Como vimos, esta perda é na verda<strong>de</strong> a perda <strong>de</strong> um objeto que, a partir da i<strong>de</strong>ntificaçãonarcísica, foi transformada em uma perda do ego.Neste momento cabe fazermos algumas consi<strong>de</strong>rações que vão além do que estáexplícito no texto freudiano. Deparamo-nos aqui com a primeira contribuição fundamental <strong>de</strong>Luto e <strong>melancolia</strong>: se examinarmos mais profundamente as colocações <strong>de</strong> Freud nestesentido, e as relacionarmos com o texto sobre o narcisismo, <strong>de</strong> 1914, perceberemos que narealida<strong>de</strong> a perda melancólica consiste em uma perda ligada às bases narcísicas do psiquismo.Neste caso <strong>de</strong>staca-se uma perda muito específica: a perda <strong>de</strong> uma relação narcísica, ou seja,aquela que <strong>de</strong> alguma forma traria satisfação para o narcisismo do sujeito. Na passagemcitada, Freud afirma que houve uma transformação que se inicia em uma perda <strong>de</strong> um objetoafetivo e termina com a perda <strong>de</strong> aspectos do ego. Não seria muito díspar afirmar que talperda já existia, mas estava sendo compensada na relação com o objeto. Freud (1917 [1915],p.109) insiste que na <strong>melancolia</strong> acontece “uma regressão que parte <strong>de</strong> certo tipo <strong>de</strong> escolhaobjetal e volta para o narcisismo original”. O sujeito estabelece uma ligação com o objetosegundo o tipo <strong>de</strong> escolha narcísica e, frente a algum obstáculo, regri<strong>de</strong> ao narcisismo – faseem que o bebê é completamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do objeto por não ter o mínimo <strong>de</strong> recursos parasobreviver sozinho. Ele é <strong>de</strong>sprotegido, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e limitado. Sua sobrevivência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>maneira absoluta <strong>de</strong> um objeto externo, seja ele a mãe ou a cuidadora. A percepção emrelação ao mundo externo praticamente não existe, o que o faz tomar o mundo como umaparte <strong>de</strong> si mesmo. Se coisas boas acontecem, como uma gratificação em função daexperiência <strong>de</strong> ser alimentado, o bebê toma o seio como parte sua e como criação <strong>de</strong> suamente. Se ocorre algo ruim, a mesma lógica é aplicada, fazendo com que o bebê se sintaresponsável pela ocorrência negativa. Esta imagem <strong>de</strong> um bebê em sua fase narcísica po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> onipotente, uma fase em que ele é o centro do mundo, como se tudo queexistisse e fosse percebido fosse criação <strong>de</strong> sua mente.Caso se faça uma superposição entre esta imagem do bebê narcísico e a domelancólico, veremos que elas se parecem em muitos aspectos. Como o bebê, o melancólicosente-se frágil e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, sem condições e recursos para enfrentar as mínimas dificulda<strong>de</strong>s.Tudo o que acontece com ele e a sua volta, principalmente infortúnios, é por sua falta <strong>de</strong>valor, incapacida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>ficiência. Ao esbarrar em uma dificulda<strong>de</strong>, não a reconheceenquanto dificulda<strong>de</strong>, mas como fracasso – seu fracasso é mera prova <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>ficiência.Qualquer um é tomado como possuidor <strong>de</strong> maior dignida<strong>de</strong> e valor do que ele mesmo.105
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1.3 Um olhar psicanalítico sobre a
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Capítulo 4A concepção freudiana
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PERES, U. T. Melancolia. São Paulo