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a igreja militante de joão paoloii e 0 capitalismo ... - cpvsp.org.br

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se^Ájei ^o'h ASSUMEBOLETIM NACIONAL DA ACO ASSUMIR N9 30 - SUPLEMENTOA IGREJA MILITANTE DEJOÃO PAOLOIIE 0 CAPITALISMO TRIUNFANTEAÇÃO CATÓLICA OPERÁRIA - ACO COMISSÃO DE PUBLICAÇÕES ERua Van Erven, 26 - Catumbi" - RJ COMISSÃO COORDENADORACEP 20211 -Fone (021) 242-7732 NACIONAL DA ACO


APRESENTAÇÃOOferecemos este estudo <strong>de</strong> Frei Clodovis Boff so<strong>br</strong>e a encrdica"Centésimus Annus" aos <strong>militante</strong>s <strong>de</strong> ACO e outros para um aprofundamentoconsciente <strong>de</strong> nosso compromisso pela libertação e fortalecimentoda classe operária numa linha <strong>de</strong> fé e testemunho coerente <strong>de</strong>vida.Este estudo nos ajudará a <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir critérios críticos a partir daprópria Doutrina Social da Igreja para construção <strong>de</strong> um mundo maissolidário e justo do ponto <strong>de</strong> vista dos trabalhadores e do TerceiroMundo e não do Império Norte.Além <strong>de</strong> adquirir este Suplemento <strong>de</strong> estudo, faça sua assinaturado ASSUMIR, boletim da Ação Católica Operária - ACO, que trazsempre informes e assuntos <strong>de</strong> interesse dos trabalhadores e dos queatuam no meio popular.


do contrário, constituiria um abusodiante <strong>de</strong> Deus e dos homens" (43c).Mas a gran<strong>de</strong> questão permanece: aproprieda<strong>de</strong> ou controle privado dosmeios <strong>de</strong> produção po<strong>de</strong> garantir apriorida<strong>de</strong> das necessida<strong>de</strong>s sociais so<strong>br</strong>eos interesses particulares? Semdúvida não existe mais, inclusive noTerceiro Mundo, o que Paulo VI <strong>de</strong>screveuno céle<strong>br</strong>e 26 da PopulorumProgressio: uma "proprieda<strong>de</strong> privadados bens <strong>de</strong> produção como direitoabsoluto, sem limite nem o<strong>br</strong>igaçõessociais correspon<strong>de</strong>ntes". Mas que ela<strong>de</strong>tenha ainda, nas economias oci<strong>de</strong>ntaisem geral, o po<strong>de</strong>r e o direito dominante(não exclusivo, por certo) so<strong>br</strong>eo Trabalho e o Bem comum édifrcil negá-lo.Quanto ao lucro, afirma que "aIgreja reconhece a justa função dolucro, como indicador" e como "reguladorda vida da empresa" (35c).A única reserva que o Papa faz ao lucroé que não seja o "único" indicadorregulador. "A ele se <strong>de</strong>ve associar aconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> outros fatores humanose morais". Mas a questão todaaqui é se o lucro não continua sendoo "motor essencial do progresso econômico",como dizia, <strong>de</strong> modo con<strong>de</strong>natório,Paulo VI (PP 26) e como pareceser o caso do sistema capitalista,mo<strong>de</strong>rno ou não. Ora, a encfclicaatual não relem<strong>br</strong>a nada disso. £ issoé sintomático <strong>de</strong> todo um novo espíritocom o qual o Magistério põe suarelação com a economia mo<strong>de</strong>rna.Com efeito, a dinâmica do <strong>de</strong>senvolvimentodas atuais economias "mo<strong>de</strong>rnas"(para não dizer capitalistas)continua dominada (não certamente<strong>de</strong> modo exclusivo) pela lei do lucro.Quando essa lei férrea é contraditada,inclusive por consi<strong>de</strong>rações ético-sociais,dando-lhes a priorida<strong>de</strong>, a empresavai a falência. Tal parece ser a"lógica sistêmica" <strong>de</strong> uma economia<strong>de</strong>terminada pelo mercado, como éa capitalista.E quanto ào mercado, o discurso doMagistério assume um inédito tom <strong>de</strong>elogio. Diz que ele"parece ser o instrumentomais eficaz para dinamizaros recursos e correspon<strong>de</strong>r eficazmenteàs necessida<strong>de</strong>s" (34a). E maisadiante. "Certamente os mecanismos<strong>de</strong> mercado oferecem seguras vantagens:ajudam... a utilizar melhor osrecursos, favorecem o intercâmbiodos produtos e, so<strong>br</strong>etudo, põem nocentro a vonta<strong>de</strong> e as preferênciasda pessoa..." (40b). Em suma, o mercadopossui um "valor positivo"(43). E um discurso que certamentenão vai <strong>de</strong>sagradar aos incensadoresatuais do mercado.É assim que o mercado acaba efetivamenteabençoado pela Igreja. Nuncao Magistério tinha falado nesses termos.E verda<strong>de</strong> que também ao mercadosão feitas severas reservas: ele<strong>de</strong>ve ser "controlado pelas forças sociaise estatais" (35b) para que seja<strong>de</strong>vidamente "orientado para o Bemcomum" (43a). O "só-mercado" (a


famosa "mão invisível) não resolvetodos os problemas econômicos (42c).E nem po<strong>de</strong> haver o "mercado total",em que tudo é feito "mercadoria"(34a e 40b). Sua "lógica", portanto,seria relativa.Entretanto, aqui também se levantaa questão: no Capitalismo, mesmonovo, a relação <strong>de</strong> mercado não continuasendo a relação econômica dominante(não por certo única)? Oupara falar como Paulo VI, a concorrêncianão permanece a "lei supremada economia" (PP 36), ainda que nãoexclusiva? Nas economias capitalistas,mesmo as mo<strong>de</strong>rnas, quem <strong>de</strong>terminaquem? é o Bem comum que <strong>de</strong>terminao jogo do mercado (como gostariao Papa) ou é o mercado que <strong>de</strong>terminao conteúdo do Bem comum, comoparece acontecer na verda<strong>de</strong>?Mais: o próprio mercado não é todo<strong>de</strong>terminado pelo sistema <strong>de</strong> produção,que está antes e por <strong>de</strong>trás<strong>de</strong>le? Por exemplo, em nosso mercado<strong>de</strong> trabalho, quem da' as cartas: o empresárioou o trabalhador? "Economia<strong>de</strong> mercado" ainda não diz tudo. Aquestão é: que mercado? Definiruma economia apenas por esse mecanismonão seria cair numa visão abstratae instrumentalista da economia,sem situar os diferentes mecanismos<strong>de</strong>ntro do sistema no qual eles jogam?Po<strong>de</strong>mos dizer que o mercado sempreexistiu, mas só o Capitalismo ele setornou dominante, tanto assim queCapitalismo e Economia <strong>de</strong> mercadosão hoje termos intercambiáveis.A Centesimus Annus atribui aos sindicatos(35a, 43b) e particularmenteao Estado <strong>de</strong>mocrático (40, 48) opapel <strong>de</strong> controlar a "lógica do mercado"para que não se torne uma"idolatria" do mercado (40b). Masisso parece supor não apenas corrigiro mercado mas transformar o sistemaeconômico, para que o mercado estejaético-estruturalmente (e não sóético-voluntaristicamente) subordinadoàs necessida<strong>de</strong>s sociais, ou seja aoBem comum. Nesse caso não se <strong>de</strong>veriafalar num mercado social (ou socialista),diferente do mercado capitalista?Aliás, a idéia que emerge da CentesimusAnnus so<strong>br</strong>e o Estado tem algo<strong>de</strong> abstrato: o Estado parece aí pairaracima da socieda<strong>de</strong> e as forçasmuitas vezes contraditórias que aconstituem. Não é o Estado nutridopor essas forças e por elas disputado?O primado do Capital não se esten<strong>de</strong>também so<strong>br</strong>e o Estado? Como entãopedir e esperar que ele <strong>de</strong>fenda osdireitos do Trabalho so<strong>br</strong>e os doCapital?Em suma: para que o mercado sejamoral não basta que não seja único eexclusivo com relação aos direitos doTrabalho; é preciso também que nãoseja dominante. Por outras, não basta8


que reconheça alguns direitos do Trabalho,mas que esteja subordinado aele — como o Papa propõe em prin-cípio. Mas neste caso, o Capitalismo,mesmo renovado, e ainda moral e mesmomoralizável em seu cerne?1.2. AS CRITICAS AO NEO-CAPITALISMODa Centesimus Annus emerge, pois,esta posição' o neo-<strong>capitalismo</strong>, nãoimportando o nome com que se queiranomeá-lo — "economia <strong>de</strong> mercado"ou outro — recebeu a bênção pontificai(com o <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong> ser perdoado atédo feio nome <strong>de</strong> "<strong>capitalismo</strong>"). OPrimeiro Mundo, que temia uma enci'-clica mais "sócializante", respira aliviado.E é com uma impressionanteunanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplauso que o mundo<strong>de</strong>senvolvido, especialmente a Europa,recebeu a encfclica. M. Novak, teólogonorte-americano do "<strong>capitalismo</strong><strong>de</strong>mocrático", proclamou extasiado:"Hoje, <strong>de</strong>pois dos milagres <strong>de</strong> 89,somos todos capitalistas", acrescentandosem pudor: "Até o Papa" {Adisía,6-8/6/91,p. 11).Mas também não é qualquer neo<strong>capitalismo</strong>que o Papa aprova. Pareceque recebe o aval mo<strong>de</strong>los como o dasócial-<strong>de</strong>mocracia. Não é seguro queum mo<strong>de</strong>lo como o norte-americanoreceba o mesmo aval. E nesse sentidoque o Papa diz que "a Igreja não temmo<strong>de</strong>lo a propor" (43a). Tratar-se-ia<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los do sistema <strong>de</strong> "economia<strong>de</strong> mercado" e não da própria. Mas aessa altura, dizer que a Igreja não oferecemo<strong>de</strong>los soa um pouco ritual.A aprovação, contudo, não é total enem podia ser. É sim substancial. Emque pese o nome, o neo-<strong>capitalismo</strong>é árvore boa; só que precisa <strong>de</strong> poda.De fato, o Papa tem suas críticas a fazeraos mo<strong>de</strong>los existentes da economia<strong>de</strong> mercado. Ele elenca os "perigos"que essa economia apresenta hoje:o consumismo (36b), a droga e apornografia (36c), o hedonismo (36d),a questão ecológica (37), os problemas<strong>de</strong> urbanização (38), as campanhascontra a natalida<strong>de</strong> (39), etc. Comose vê, são problemas reconhecidamentegraves.Mais à frente, o Papa faz uma críticaainda mais profunda das doençasdos países capitalistas. Diz que, se o"<strong>capitalismo</strong> selvagem" produz "fenômenos<strong>de</strong> marginalização e <strong>de</strong> exploração,especialmente no Terceiro Mundo",o neo-<strong>capitalismo</strong> produz "fenômenos<strong>de</strong> alienação humana, especialmentenos Países mais avançados"(42c). Ele toma como que <strong>de</strong> assaltoa teoria da alienação <strong>de</strong> Marx, que ele<strong>de</strong>clara peremptoriamente "errada"(41a), e lhe dá um conteúdo cristão;"a inversão dos meios pelos fins"(41c). E conclui: "Na socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal{leia-se: neo-capitalista) foi


superada a exploração, pelo menos nasformas analisadas e <strong>de</strong>scritas por KarlMarx {nota: é o único autor que oPapa cita). Pelo contrário, não foi superadaa alienação", especialmenteporque o "homem... se preocupa sóou prevalentemente do ter e do prazer..."(41d).Mas o que têm a ver essa situação<strong>de</strong> alienação e os problemas elencadosacima com o mo<strong>de</strong>lo capitalista? Seriamnegativida<strong>de</strong>s geradas por ele?Que nexo existiria entre <strong>capitalismo</strong>e alienação, com toda a sua esteira <strong>de</strong>problemas, como o consumismo eoutros mencionados? O Papa parecever af um laço apenas circunstancial{per acci<strong>de</strong>ns) e não intrínseco ousubstancial. São "disfunções" <strong>de</strong> ummo<strong>de</strong>lo em si bom (cf. 36c).De fato, seja no caso da alienaçãocomo no dos problemas elencados,ele diz que por trás <strong>de</strong> tudo aquiloexiste uma questão <strong>de</strong> "cultura"(36b, 39b), uma "concepção errada"das coisas (41a), uma "visão humana"mesquinha (37b), "valores puramenteutilitários" (29b) e por af vai. Um dosgran<strong>de</strong>s responsáveis <strong>de</strong>ssa falsa culturaseriam os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong>massa (41 d). Chega a dizer que essapseudo-cultura po<strong>de</strong> criar "estruturasespecíficas <strong>de</strong> pecado" (38b). Eis umacategoria fecundíssima da mo<strong>de</strong>rnateologia social, mas que aqui é apenasmencionada, sem receber um <strong>de</strong>senvolvimentoe, mais ainda, uma aplicaçãomaior. Para enfrentar essa pseu-do-cultura, o Papa propõe, na lógicaque é a sua, uma espécie <strong>de</strong> revoluçãocultural — nas suas palavras, uma"gran<strong>de</strong> o<strong>br</strong>a educativa e cultural"(36b).Portanto, não se trata fundamentalmente<strong>de</strong> mexer no mercado, masna cultura. Referindo-se à série <strong>de</strong>críticas que fez às economias mo<strong>de</strong>rnas(36-39), o Papa conclui textualmente:"Essas críticas são dirigidasnão tanto contra um sistema econômico,quanto contra um sistema ético-cultural".Por isso, insiste o Papalogo adiante, "a causa terá <strong>de</strong> ser procuradanão tanto no próprio sistemaeconômico, quanto no fato <strong>de</strong> que todoo sistema sócio-cultural ... ficou<strong>de</strong>bilitado" (39d; nós sublinhamos).E é aí que ele vê a importância dopapel da Igreja: "É a esse nível que secoloca o contributo específico e <strong>de</strong>cisivoda Igreja a favor da verda<strong>de</strong>iracultura" (51a). Ele vê na vinculaçãoestrutural do cultural ao econômicoum erro tanto do "socialismo real"(13 e passim) como <strong>de</strong> uma "i<strong>de</strong>ologiaradical <strong>de</strong> tipo capitalista" (queconfiaria tudo ao mercado) (42c).Para o Papa tudo isso não pertenceriaà "lógica" da economia <strong>de</strong> mercado,isto é, ao Capitalismo em simesmo (34a e 40b), mas à lógica <strong>de</strong>uma cultura <strong>de</strong>terminada, como vistaacima. O Papa concebe muito bemuma economia <strong>de</strong> mercado suplemen-10


tada por valores cristãos. O que, <strong>de</strong>resto, seria para ele o i<strong>de</strong>al. 0 Capitalismonão secretaria i<strong>de</strong>ologia alguma.Ele apenas po<strong>de</strong> sim se acoplar,<strong>de</strong> certo modo, com esta ou comaquela cultura, que teria sua in<strong>de</strong>pendênciaestrutural. Nada, pois, <strong>de</strong> uma"lógica sistêmica" do Capital, comoacreditava Marx e ainda hoje muitoseconomistas. O Papa não: ele vê umalógica econômica e uma lógica culturalautônomas uma da outra. Se por acasose encontram unidas, isso é por umnexo puramente circunstancial (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntedas <strong>de</strong>cisões humanas) e nãonecessário (por exigências sistêmicas).Mas é possível casar ética cristã comeconomia <strong>de</strong> mercado (capitalista)?Ora, o Evangelho não se presta a serapenas o "suplemento <strong>de</strong> alma" <strong>de</strong>uma economia sem alma, ou melhor,<strong>de</strong> uma economia cuja alma é a acumulação.Se assim é, o Capitalismo, sejaqual for, não é estruturalmente contraditóriocom os princípios éticose religiosos que o Papa propõe?Quanto ao "liberalismo", que seriaa i<strong>de</strong>ologia própria da economia capitalista,o Papa o con<strong>de</strong>na naturalmente,seguindo a tradição da DoutrinaSocial da Igreja. Sem usar muito aquelapalavra (60b, etc), ele sublinha aidéia <strong>de</strong> que existe um vínculo profundoentre liberda<strong>de</strong> e verda<strong>de</strong>, incluindoaí a carida<strong>de</strong>, como sua dimensãosocial (4e, 17a, 41d, 46d, 47a). Nestecaso, o cristianismo viria substituir oliberalismo para re<strong>de</strong>mir um sistemaeconômico moralmente <strong>de</strong>ficitário.Como se observa, num sistema socialo Papa vê um nível técnico e outroético, po<strong>de</strong>ndo se combinarem <strong>de</strong> diferentesmaneiras.Quando o Papa fala explicitamenteno "<strong>capitalismo</strong>", enten<strong>de</strong>-o normalmentein malam partem. A não serque o advirta explicitamente, trata-sesempre do <strong>capitalismo</strong> liberal, manchesteriano,"selvagem". Ora, comovimos, esse é con<strong>de</strong>nado terminantemente.é nesse sentido que <strong>de</strong>ve-seente<strong>de</strong>r a afirmação enérgica: "Éinaceitável a afirmação <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>rrocadado <strong>de</strong>nominado 'socialismo real'<strong>de</strong>ixe o <strong>capitalismo</strong> como único mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> <strong>org</strong>anização econômica. Tornasenecessário que<strong>br</strong>ar as barreiras e osmonopólios que <strong>de</strong>ixam tantos povosà margem do progresso ..." (35d).No importante 42 ele se perguntase, "após a falência do comunismo, osistema social vencedor é o <strong>capitalismo</strong>e se para ele se <strong>de</strong>vem encaminharos esforços dos Países" da Europa doLeste e do Terceiro Mundo. Pois bem,sua resposta é: não, se se trata do <strong>capitalismo</strong>liberal ("on<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> nosetor da economia não está enquadradanum sólido contexto jurídico...");e sim, se <strong>de</strong> um <strong>capitalismo</strong> mo<strong>de</strong>rno,ou seja, corrigido. Mas neste caso, a<strong>de</strong>signação não seria mais tão "apropriada".11


Como se vê, o Papa acredita num Capitalismoreformado, humanizado,corrigido, domesticado, aperfeiçoado,enfim, moralizado. Mas neste caso, teriaele mudado <strong>de</strong> essência com respeitoà sua natureza original "selvagem",exploradora e exclu<strong>de</strong>nte? Sim,admite o Papa. Entre o paleo-<strong>capitalismo</strong>e neo-<strong>capitalismo</strong>, para ele, a diferençanão é <strong>de</strong> grau (este não seriaapenas menos explorador que aquele),mas <strong>de</strong> natureza. O Capitalismo terseia transformado em outra coisa aolongo da história. Talvez seja por issoque o Papa hesite em chamar essenovo sistema <strong>de</strong> "<strong>capitalismo</strong>". Seriajá outra coisa, completamente diferenteda anterior, da qual se originou.Todavia po<strong>de</strong>-se perguntar se o Capitalismorealmente se converteu ou seapenas se maquilou.Igualmente, o Papa não vê hoje umarelação intrínseca entre o "<strong>capitalismo</strong> selvagem" do Terceiro Mundo e o"<strong>capitalismo</strong> civilizado" do PrimeiroMundo. Um não seria condição do outro,mas cada um possuiria sua dinâmicaprópria. Mas so<strong>br</strong>e isso voltaremosmais adiante.Eis, pois, aí tantas interrogações,que a encíclica permite levantar e queé preciso aprofundar a partir mesmodos princípios éticos e religiosos queela oferece e para além das aplicaçõesconcretas que ela propõe. Pois essesdois níveis do Ensino Social da Igrejaprecisam sempre serem bem distinguidos,para permitir a crítica legítima eo avanço necessário. Mas disso nosocuparemos no fim <strong>de</strong>ste estudo.2. TERCEIRO MUNDOO Papa lê a realida<strong>de</strong> presente domundo a partir <strong>de</strong> on<strong>de</strong>? Da Europa,<strong>de</strong> uma Europa neo-liberal e vencedorado "socialismo real". Não é certamente<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Terceiro Mundo quefala o Papa, do lugar on<strong>de</strong> se encontraa imensa maioria da humanida<strong>de</strong> sofredora,do lugar do "<strong>capitalismo</strong>infeliz".É, pois, do lado dos gran<strong>de</strong>s que oPapa se coloca. Entre os potentes falaum mais potente. Conclama inclusiveos "gran<strong>de</strong>s Países" a um "entendimento"crescente a fim <strong>de</strong> objetivaremo "controle e a orientação" daeconomia mundial em vista (natural-12


mente!) do "bem comum" (58).Convida as "Nações mais fortes" a"oferecer às mais débeis ocasiões <strong>de</strong>inserção na vida internacional" (35c).0 grupo dos "Sete" mais ricos domundo po<strong>de</strong>-se sentir confortado comtal discurso. Frente a tais generosos<strong>de</strong>sejos, os po<strong>br</strong>es não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> sorrir. Mas, risum teneatis, amici\É por isso também que na encíclicao Terceiro Mundo aparece por lances,<strong>de</strong> modo saltuário e praticamente marginal.As massas po<strong>br</strong>es da Periferianão são o interlocutor privilegiado doPapa. Ele fala com os mo<strong>de</strong>rnos, osgran<strong>de</strong>s, os que venceram. E isso éperigoso. Os po<strong>br</strong>es estão lá, à parte,como "terceiros" nesse diálogo a dois.Fala-se <strong>de</strong>les, não se fala com eles.Mas on<strong>de</strong> fica a "opção pelos po<strong>br</strong>es"?Ela é referida em alguns passos(10, 11b e 57b). O Papa afirma que aRerum Novarum tomou aquela ótica,na medida em que assumiu como eixo<strong>de</strong> sua encíclica a "condição operária"(11a). O Estado também <strong>de</strong>veria adotaressa perspectiva (10 e 11b). Enfim,para a Igreja, ela é "<strong>de</strong>cisiva e pertenceà sua constante tradição" (57b).Mas, apesar <strong>de</strong> uma ou outra formulaçãocontrária (por ex. 49a), o po<strong>br</strong>e aíé visto so<strong>br</strong>etudo como objeto. Ele épaternalizado pela Igreja, pelo Estadoe pelas <strong>org</strong>anizações <strong>de</strong> ajuda.Existe só um número, o 33, <strong>de</strong>dicadointegralmente aos Países po<strong>br</strong>es.(Para dizer a verda<strong>de</strong>, não integral-mente, pois que foi-lhe tomada a últimaparte, para dizer aí que tambémno Primeiro Mundo existe um TerceiroMundo.) E como é colocada aí suasituação?Aí, a relação Primeiro e TerceiroMundo aparece como uma relação <strong>org</strong>ânicasim, mas não dialética. O nexocausai entre esses dois mundos não seevi<strong>de</strong>ncia. O sub<strong>de</strong>senvolvimento é interpretadoso<strong>br</strong>etudo, como atraso técnico,é que os Países po<strong>br</strong>es acabamper<strong>de</strong>ndo a "concorrência" com os ricos,ou seja, não possuem uma economiacompetitiva a nível internacional(33a). Mas não são as mesmas "mo<strong>de</strong>rnas"transnacionais que praticam noTerceiro Mundo o <strong>capitalismo</strong> "selvagem"?O Papa reconhece que os trabalhadoresdo Terceiro Mundo sãoexplorados. Atribui isso curiosamenteàs "carências humanas do <strong>capitalismo</strong>"(33b). Não se trataria, pois,<strong>de</strong> "carências sistêmicas" segundo a"lógica do Capital". E <strong>de</strong>pois, nuncase fala <strong>de</strong> que essa exploração se situano nível internacional, <strong>de</strong> país a país.Não; são relações internas a essespaíses po<strong>br</strong>es e não relações a nívelmundial.A<strong>de</strong>mais, o Papa reconhece que,além da exploração, existe o fenômenoda marginalização das populaçõespo<strong>br</strong>es. Na verda<strong>de</strong>, o <strong>capitalismo</strong> mo<strong>de</strong>rnoabsorve cada vez menos mão<strong>de</strong>-o<strong>br</strong>a,<strong>de</strong>sempregando cada vez mais13


gente. E seu caráter hoje em dia prevalentementemarginalizador ou exclu<strong>de</strong>nte.Mas aqui o Papa também nâonota que esse fenômeno pertence à"lógica do Capital", pouco valendonesse nível recomendações morais <strong>de</strong>cima. E esta lógica possui uma moralembutida nela, cuja principal "virtu<strong>de</strong>"é a ganância (trata-se, na verda<strong>de</strong>,<strong>de</strong> uma "imoral" — um verda<strong>de</strong>iro"sistema <strong>de</strong> pecado"). A moral daIgreja aqui só po<strong>de</strong> atenuar a voracida<strong>de</strong>do Capital, mas não eliminá-la.E o que po<strong>de</strong>m fazer os Países ricospara os Países po<strong>br</strong>es? Ajuda — é oque o Papa recomenda em primeirolugar (28c). Nada <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia da exploraçãoem nível mundial. Nada daproposta <strong>de</strong> relações da mais rigorosajustiça e estrita reparação. Frente aospo<strong>br</strong>es é a velha oferta da "carida<strong>de</strong>"que se repropõe. Ora, sabemos que afamosa "ajuda" <strong>de</strong> 0,7% do PNB assumidana ONU pelos Países ricos nãosuperou em geral os miseráveis 0,3%,com honrosas excessões (Holanda epaíses escandinavos). "Mas o que éisso para tanta gente? (Jo 6, 9).Além disso — e é o mais importante— o Papa propõe a solidarieda<strong>de</strong>, nosentido da "escolha moral" <strong>de</strong> investiraqui e não lá (36d). Mas a lógica doCapital <strong>de</strong>ixa? Consi<strong>de</strong>rações moraispo<strong>de</strong>m se antepor à lei do lucro?É <strong>de</strong> se duvidar muito.E a dívida externa? A primeirareação do Papa é: tem que ser paga!Ele arranca sempre <strong>de</strong> uma posiçãomoral. Claro, em seguida se retoma efaz suas reservas, aliás, bastante vigorosas:"Não é lícito pedir... um pagamento...que con<strong>de</strong>naria à fome e ao<strong>de</strong>sespero populações inteiras" (35e).Mas isso é comentário, por mais enérgicoque seja. A tese <strong>de</strong> fundo é aquela:o pagamento. Mas <strong>de</strong> que lado estáo Papa nesse ponto: dos credores oudos <strong>de</strong>vedores?O que o Papa recomenda tambémpara sair do sub<strong>de</strong>senvolvimento é nãoo isolamento com respeito à economiamundial, mas antes a integração nela(33d). De novo aqui aparece a linguagemda "ajuda": trata-se <strong>de</strong> "ajudarpovos inteiros... a entrarem no círculodo <strong>de</strong>senvolvimento econômico e humano"(58). Ou seja, os lázaros mo<strong>de</strong>rnosnão sãoposfos para fora e nemmantidos fora do palácio <strong>de</strong> Epulão;eles estão apenas fora <strong>de</strong>le, esperandoque Epulão, enfim convertido, saiapara convidá-los a entrar. E não seriaesse o papel do Papa <strong>de</strong>ntro do Pa lácio?De acordo com nossa encíclica ficaclaro: nossos po<strong>br</strong>es são apenas nossos,e não do Primeiro Mundo. Se esse<strong>de</strong>ve acorrer é puramente por favorou por mera o<strong>br</strong>igação ética e nãopor uma questão <strong>de</strong> estrita reparação.Esses enjeitados não são <strong>de</strong>les, sãobem nossos. São filhos que a empregadatrouxe <strong>de</strong> fora; o patrão não temnada a ver com isso. O Primeiro Mundopo<strong>de</strong> dormir tranqüilo: os povospo<strong>br</strong>es não são culpa passada sua, são14


apenas eventual culpa futura. Não sãoseu pecado <strong>de</strong> ação, mas talvez apenas<strong>de</strong> omissão; portanto, nada <strong>de</strong> muitograve. E o "drama" da po<strong>br</strong>eza acabaé so<strong>br</strong>ando para os po<strong>br</strong>es mesmos(56b e 57b).Mas aon<strong>de</strong> foi parar o certeiro "ácusta" que o Papa soltou em Puebla,indicador do laço dialético que unePrimeiro e Terceiro Mundo? Com efeito,referindo-se a Paulo VI (cf. PP57),lá o Papa atual lem<strong>br</strong>ava os "mecanismos...impregnados não <strong>de</strong> autênticohumanismo, mas <strong>de</strong> materialismo,(que) produzem em nível internacionalricos cada vez mais ricos á custa <strong>de</strong>po<strong>br</strong>es cada vez mais po<strong>br</strong>es" (DiscursoInaugural, 28/01/79, 3.4). Note-seque aí se percebe a moral (ou "imoral")encarnada em estruturas materiaise não apenas como visão culturalpairando por cima do econômico.Inclusive na Solicitudo Rei Socialis,o Papa tem uma rica linguagem dialética.Diz. "É necessário <strong>de</strong>nunciar aexistência <strong>de</strong> mecanismos econômicos...que, embora conduzidos pelavonta<strong>de</strong> dos homens, funcionam muitasvezes <strong>de</strong> maneira quase automática,tornando mais rígidas as situações<strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong> po<strong>br</strong>eza dos outros."E continua <strong>de</strong>nunciante: "Essesmecanismos, mano<strong>br</strong>ados... pelos países<strong>de</strong>senvolvidos, com o seu própriofuncionamento favorecem os interesses<strong>de</strong> quem os mano<strong>br</strong>a, mas acabampor sufocar ou condicionar as economiasdos países menos <strong>de</strong>senvolvidos"(16c). Como explicar essa diferença<strong>de</strong> linguagem? Além das assessoriasd iferentes, temos no entremeio o annusmirabilis <strong>de</strong> 1989. Ele representa umalinha divisória que parece atravessaro próprio magistério do Papa Wojtyla.João Paulo II vê as diferentes economiasregionais inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes (éo gran<strong>de</strong> tema da Solicitudo Rei Socialis).Mas não vê a unida<strong>de</strong> complexae contraditória <strong>de</strong> um único processomundial, como mostra a teoria quefala em Centro e Periferia. Concretamente,ele vê o paleo-<strong>capitalismo</strong> e oneo-<strong>capitalismo</strong> lado a lado, cada umcom sua dinâmica própria. Certo, elessão inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, mas isso através<strong>de</strong> uma relação meramente prática,não dialético-estrutural. Não seriamaspectos <strong>de</strong> um mesmo processo. Masexiste a rigor um <strong>capitalismo</strong> <strong>de</strong>senvolvidoe um outro sub<strong>de</strong>senvolvido?Não se trata antes <strong>de</strong> duas faces -a central e a periférica — do mesmoCapitalismo mundial?Contudo, para a Centesimus Annus,o <strong>capitalismo</strong> "selvagem" parece mesmoconstituir a etapa prévia <strong>de</strong> umprocesso econômico, que, na melhordas hipóteses, vai dar no neo-<strong>capitalismo</strong>.Não se trataria aí propriamente<strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> subordinação, comocoloca Puebla (30). Ou seja, para aencíclica, a relação entre o Primeiro eo Terceiro Mundo não é <strong>de</strong> dominação,mas <strong>de</strong> atraso apenas. Certo, elepercebe o fenômeno da "mundializa-15


ção da economia" (58a), mas não ofereceda mesma uma interpretação dialéticocontraditória.Mas essa "economia <strong>de</strong> mercado",que o documento admite no PrimeiroMundo, como é que ela historicamentese constituiu? Disso nada se diz. Oque ela custou para o Terceiro Mundo— o saque das riquezas dos países coloniais,o tráfego dos escravos da África,a exploração comercial do Oriente— so<strong>br</strong>e isso pesa no documento umsilêncio total. Ora, é sabido que foiso<strong>br</strong>e a gigantesca <strong>de</strong>struição das economiascoloniais que se ergueu a opulênciado Primeiro Mundo, especialmenteda Europa. Os 500 anos da presençada Igreja na América Latina e aomesmo tempo <strong>de</strong> colonialismo proíbem<strong>de</strong> esquecê-lo. E em parte é so<strong>br</strong>ea continuação <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> exploraçãoque o bem-estar do PrimeiroMundo se mantém ainda hoje, aindaque em grau <strong>de</strong>screscente. Mas não aponto <strong>de</strong> se passar agora sem mais da"teoria da <strong>de</strong>pendência" para a "teoriada prescindência".E qual é a alternativa social que odocumento nos propõe? É o neo<strong>capitalismo</strong>,que ele prefere chamar<strong>de</strong> "economia <strong>de</strong> mercado". Portanto,a luta do Terceiro Mundo seria <strong>de</strong> do-mar seu "<strong>capitalismo</strong> selvagem", trabalharpara transformar o mo<strong>de</strong>loeconômico, mas <strong>de</strong>ntro do marco dosistema capitalista. Textualmente:"Nesta luta contra um tal sistema (<strong>capitalismo</strong>"rígido"), não se veja, comomo<strong>de</strong>lo alternativo, o sistema socialista(35b. Nós sublinhamos). Veremosmais adiante que por "socialismo"o Papa sempre enten<strong>de</strong> o "socialismoreal", portanto, burocrático eautoritário — um "<strong>capitalismo</strong> <strong>de</strong> estado",como ele explica na seqüência dacitação acima. Mas parece que <strong>de</strong> fatonosso caminho seria a Polônia et consortes,assim com o caminho <strong>de</strong>sta seriaa Alemanha et caterva. E assimentraríamos no afortunado "círculodo <strong>de</strong>senvolvimento econômico e humano"dos povos ricos (58a) e criaríamosum "mundo mais justo e prósperopara todos" (28c). É <strong>de</strong> dar arrepios<strong>de</strong> prazer ao prazer ao Presi<strong>de</strong>ntemais mo<strong>de</strong>rnizador.Quanto aos Estados que montaramo sistema <strong>de</strong> "segurança nacional" parase oporem ao comunismo, o Papaacha que eles apenas "correm o graverisco <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir... a liberda<strong>de</strong>" (19c),enquanto o comunismo positivamentea impe<strong>de</strong> e <strong>de</strong>strói. Nesse sentido émelhor um Gal. Pinochet do que umGal. Jaruzelski.3. SOCIALISMOO referente <strong>de</strong>sse termo na CentesimusAnnus ê sempre o "socialismoreal". Tratar-se-ia, a rigor, <strong>de</strong> "um tipo<strong>de</strong> socialismo" (12d). Contudo, tam-16


'CAMINHANDO JUNTO*'^ VIWWW PE NOSSO VALO»'NA COHMíJW DEHOSJA UBEW^flo |bém quando não adjetivado, socialismoindica sempre "socialismo real".Na encíclica, socialismo nunca é tomadoim bonam partem. Com o <strong>capitalismo</strong>real, a coisa é diferente. Se existeum <strong>capitalismo</strong> salvável, apesar do nome,não parece existir um socialismosalvável. Nesse sentido, a posição daencíclica já não é a equidistância,que sempre tinha caracterizado o discursoteórico do Magistério até hoje.Fica evi<strong>de</strong>nte neste documento quepara o Papa Wojtyla a Igreja é muitomais próxima do Capitalismo que doSocialismo.Quanto ao "socialismo real", oPapa <strong>de</strong>dica-lhe todo um capítulo,o III, chamado "O ano 1989", paralhe <strong>de</strong>screver a crise e a <strong>de</strong>rrocada. O89 assinalaria um ponto <strong>de</strong> fraturana história do mundo e inclusive daIgreja: daí para frente, o Socialismoe o Capitalismo não seriam mais osmesmos, inclusive para o Magistérioromano.Uma euforia contida, mas inegável,atravessa todo o capítulo. O Papa che-t17ga a elevar hinos <strong>de</strong> ação <strong>de</strong> graças aDeus pelo fracasso <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> socialismo(22b e 23c). Como gran<strong>de</strong>vencedora emerge aí a figura da Igreja.O verda<strong>de</strong>iro embate ter-se-ia dado entrea Igreja e o comunismo, entre aDoutrina Social da Igreja e o marxismo.Nele a Igreja reencontra enfim omovimento operário, hegemonizadoaté então pelo marxismo (26c). E nissotudo a Polônia joga um papel <strong>de</strong>primeira gran<strong>de</strong>za: "a crise fundamental"dos regimes comunistas "inicia...na Polônia" — <strong>de</strong>clara o Papa categórico(23a).Para ele, a luta contra os regimescomunistas, protagonizada pelos cristãos,foi uma espécie <strong>de</strong> revoluçãocristã "exemplar" .(25a), pois foi uma"luta pacífica" (23b), fundada no "direitoe na moral", inclusive na "oração"(25a), bem diferente da "revoluçãomarxista", inspirada no "embateviolento" (23b).O fato é que, para o Papa, o socialismose acabou. Sua linguagem nessesentido é peremptória. Fala em termos<strong>de</strong> "<strong>de</strong>rrocada" (35d), <strong>de</strong> "falência"e "queda" do "sistema comunista"(42c). E nessa queda teria caídotambém o "marxismo" (23b e 27c).Usa também o termo "crise" para omarxismo (26c e 26d), mas praticamenteno mesmo sentido.Para o Papa, a queda dos socialismoé total. Ele não distingue um"socialismo <strong>de</strong> revolução" (URSS,


China, Cuba, Iugoslávia) e um "socialismo<strong>de</strong> invasão" (Europa do Leste).Por isso, não percebe que os processosatuais <strong>de</strong> mudança num e no outrosão diversos: respectivamente reformado socialismo e liquidação do mesmo.Mas o juizo <strong>de</strong>finitivo da enciclicanão parece um pouco apressado? Seráem apenas dois anos tem-se condições<strong>de</strong> fazer o balanço histórico <strong>de</strong> umprocesso tão complexo e contraditório?Será que o futuro <strong>de</strong>sse processonão reserva ainda muitas surpresas?Num passo, contudo, reconhece oPapa que "as antigas formas <strong>de</strong> totalitarismo...não foram ainda completamente<strong>de</strong>beladas, existindo mesmo orisco <strong>de</strong> ganharem <strong>de</strong> novo vigor"(29, letra a). A pressa <strong>de</strong> João Paulo 11em acompanhar a marcha da históriaparece fazer contraponto com o conhecidoatraso <strong>de</strong> Leão XIII.O mesmo se po<strong>de</strong> dizer da posiçãoda encTclica frente ao marxismo. Seráque é possível <strong>de</strong>clarar liquidada todauma tradição teórica, que em partejá fecundou <strong>de</strong> modo indiscernivela globalida<strong>de</strong> das ciências sociais?Por outro lado, sem o marxismo éainda possível fazer uma crítica radicalao Capitalismo? Uma prova seriao próprio discurso da enciclica atual.Ou é o inverso que ocorre: do jeitocomo vê o <strong>capitalismo</strong>, o Papa só po<strong>de</strong>rejeitar todo e qualquer marxismo.Realmente, sem esse referencial teóricosó resta admitir a legitimida<strong>de</strong> substancialdo Capitalismo.Segundo a Centesimus Annus, omarxismo estaria todo errado. Mesmoa teoria marxiana da alienação nãoescapa <strong>de</strong> um juizo terminante: é"falsa" (41b), como vimos. Contudo,contraditoriamente, o Papa mandaque, "no diálogo com os outros homens",o cristão <strong>de</strong>ve ficar "atento atoda parcela <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>" que se encontrarneles. Ora, isso não vale tambémpara o marxismo? Ou seria eleuma malha só po<strong>de</strong> erros?Logicamente, ele só po<strong>de</strong> falar no"compromisso impossível entre marxismoe cristianismo" {26e). É no passo(o único, <strong>de</strong> 15 linhas) em que serefere à Teologia da Libertação, atribuindo-lheprecisamente esse intento.O Papa acha que um dos resultados da"queda" do socialismo marxista foimostrar que é impossível compatibilizarcristianismo e marxismo. Aomesmo tempo em que reconhece a"positivida<strong>de</strong>" da Teologia da Libertação,<strong>de</strong>seja-a longe <strong>de</strong> qualquermarxismo. Ele a pensa talvez comouma espécie <strong>de</strong> Doutrina Social paraos po<strong>br</strong>es do Terceiro Mundo.Do "socialismo real" nada se salvano documento. Foi uma experiênciahistórica completamente negativa, umfracasso total. E o texto passa a fazero inventário <strong>de</strong> seus erros <strong>de</strong>sastrosos:totalitarismo expansionista (19a),"violação dos direitos do trabalho"(s/c! - 23a), "ineficácia do sistemaeconômico" (24a), "vazio espiritualprovocado pelo ateismo" (24b), etc.18


O Papa nada conce<strong>de</strong> ao socialismoreal. Nem mesmo o privilégio dasboas intenções: ele "presume falar emnome dos trabalhadores" (23a); ele"tirava alimento" da "injustiça eopressão", "instrumentalizando-as"(26d). Contudo, a idéia do Socialismonão surgiu historicamente e nãosurgirá sempre em função das injustiçase <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais? Igualmente,nenhuma conquista social éreconhecida ao mérito do Socialismo:nem pleno emprego, nem garantiados serviços sociais básicos e nem umnível mínimo <strong>de</strong> consumo para todaa população. Nem mesmo é valorizadoo fato <strong>de</strong> o Socialismo ter criadocerto ethos <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> social, <strong>de</strong>austerida<strong>de</strong> e da tão recomendada"pureza <strong>de</strong> costumes".Do Socialismo, so<strong>br</strong>a ainda algumacoisa? Nada no documento. Nem mesmoa idéia ou proposta <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>diferente da capitalista. Entretanto,alguns dos antecessores <strong>de</strong> JoãoPaulo II já tinham registrado a simpatiaque suscita em grupos cristões aproposta socialista. Assim escreve PauloVI; "Os cristãos, hoje em dia, sentem-seatraídos pelas correntes socialistas... Eles procuram <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir aíum certo número <strong>de</strong> aspirações, queacalentam em si mesmos, em nome dasua fé" (OA 31). Frente a isso, aquelePapa nada proibiu, como fizera aindaPio XI (QA119): "Ninguém po<strong>de</strong> serao mesmo tempo bom católico e verda<strong>de</strong>irosocialista"); pe<strong>de</strong> antes um"discernimento atento" (Ibid.). O pró-prio atual Pontífice, na LaboremExercens, admitiu que uma "socialização"dos "meios <strong>de</strong> produção" po<strong>de</strong>riaser eticamente "satisfatória"(14f, g). Mas isso também não foi escritoantes do <strong>de</strong>cisivo 1989?A encíclica atual passa totalmenteao largo da longa tradição "socializante"da Igreja, centrada em torno daidéia da "comunhão <strong>de</strong> bens" — tradiçãoque vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os inícios daIgreja (como no "comunismo apostólico"dos Atos), passando por todaa Patrística (que em massa se <strong>de</strong>clarapela "comunicação dos bens" <strong>de</strong>stemundo entre todos), sem excluir aEscolástica, até o presente, pelo menosa nível <strong>de</strong> alguns movimentos <strong>de</strong>Igreja, como evi<strong>de</strong>ntemente os Religiosos(que sempre adotaram a economiada partilha dos bens). Mascuriosamente, quando o Papa fala doque a Igreja fez ao longo da históriapara a transformação da socieda<strong>de</strong>,ele esquece toda essa imensa tradiçãoda partilha (leve alusão à "convivênciasolidária" dos primeiros cristãos),para só falar do que a Igreja <strong>de</strong>u ouentão produziu economicamente(57a).E nem falemos ainda dos movimentossociais caracterizadamente socialistasque não cessaram <strong>de</strong> nascer e se<strong>de</strong>senvolver no seio da Igreja ao longo<strong>de</strong> toda a sua história. Particularmenteficou provado que o mo<strong>de</strong>rno socialismonascente, na primeira parte doséculo passado, tinha raízes clarissi-19


ma mente cristãs. (Veja uma rápidavisão da história da relação entre Cristianismoe Socialismo na Rev. <strong>de</strong> CulturaVozes, maio/junho 1990, p. 283-288).Quanto à "revolução <strong>de</strong> 1989",a enciclica tem-na por totalmentepositiva. Não parece ter havido nelaperdas. E so<strong>br</strong>e a "re<strong>org</strong>anização radicaldas economias" ex-socialistas, <strong>de</strong>clarao Papa que ela "comporta problemase sacrifícios" (28a), numa linguagemmuito próxima da que usam<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre os governantes elitistasdo Terceiro Mundo. E a propósito dasmedidas econômicas anti-popularesdos novos regimes do Leste, produtoras<strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, perda das garantiassociais e aviltamento dos salários? So<strong>br</strong>eisso, o documento reconhece apenasque os países ex-comunistas vivemhoje uma "grave <strong>de</strong>sorientaçãona o<strong>br</strong>a da reconstrução". Porémnão diz em que consiste. Contenta-seem oferecer os préstimos do MagistérioSocial da Igreja para se sairemdo impasse em que se encontram(56b).Numa palavra, fica claro que noround que a DSI a<strong>br</strong>iu com a CA noembate Capitalismo versus Socialismo,o Capitalismo saiu vencedor. Quantoao finado Socialismo real, ele não merecesequer o respeito do parcesepulto.Por certo, esta encíclica se mostraprivada <strong>de</strong> pulsão utópica, muito diferenteda mera exigência moral. Seudiscurso é mais chão. O gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> nova ce<strong>de</strong> em proveito<strong>de</strong> uma tarefa mais pragmática:lidar com a socieda<strong>de</strong> real. Mas o Socialismonão nasce e renasce, em suaraiz, do protesto contra as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>se do sonho <strong>de</strong> uma igualda<strong>de</strong> socialpossível? Mais: on<strong>de</strong> fica na encíclicao sonho mais alto <strong>de</strong> Jesus — oReino <strong>de</strong> Deus —, que teve na históriauma fecundida<strong>de</strong> tão extraordinária?E não seria este o discurso próprioda Igreja? E não é disso que a socieda<strong>de</strong>atual mais precisa?4. A IGREJAO lugar social da Centesimus Annusé não só a Europa capitalista e vitoriosa,mas também a Igreja oficial. Tratase<strong>de</strong> fato <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista fortementeeclesiocéntrico.Nota-se um difuso triunfalismoquanto ao papel da Igreja na socieda<strong>de</strong>.Afirma, por exemplo, que a fíerumNovarum fez um "imenso bem",produziu "tanta luz" (2a) e teve uma"múltipla influência" (15f). Mas historiadores<strong>de</strong> nome (como R. Aubert)20


cristãos face à questão social. O VaticanoII teve a coragem <strong>de</strong> mostrar aresponsabilida<strong>de</strong> dos cristãos no surgimentodo ateismo mo<strong>de</strong>rno (GS 19c).O mesmo não valeria com respeito ao"socialismo real"?seriam capazes <strong>de</strong> lançar dúvidas fundadasso<strong>br</strong>e essa afirmação.Continua com plena convicção:"Nesses cem anos, a Igreja permaneceufiel ao empenho" <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ohomem (61a; cf. 3d, 49a, 55c, 56c).Aqui não se percebe autocrítica alguma.Pois, como negar as conivênciashistóricas, mesmo recentes, da Igrejaoficial com os po<strong>de</strong>rosos do mundo?Mesmo a "opção preferencial pelospo<strong>br</strong>es" é vista em linha <strong>de</strong> "continuida<strong>de</strong>"com o passado (11a e 57b).Mas como explicar a mudança <strong>de</strong> vocabulárioe, mais ainda, das práticas doscristãos no campo social, especialmentena América Latina pós-Me<strong>de</strong>lin?É, porém, no campo da <strong>de</strong>rrota doSocialismo que João Paulo II vê a"contribuição importante, mesmo <strong>de</strong>cisiva"da Igreja (22a). É verda<strong>de</strong>. Masnão se levanta a pergunta se o socialismofoi o que foi por omissão dosOutra expressão <strong>de</strong> ausência do senso<strong>de</strong> autocrítica está no fato <strong>de</strong> quea encíclica <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a <strong>de</strong>mocracia,mas a partir <strong>de</strong> um púlpito reconhecidamenteautoritário. Nada mais contrastanteque as exigências que o Papareconhece à <strong>de</strong>mocracia (44a, 46a)com a estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r concentradoque existe na Instituição eclesiásticae <strong>de</strong> cuja legitimida<strong>de</strong> histórica elenão mostra a menor suspeita.João Paulo II dá a enten<strong>de</strong>r quecom o fracasso do marxismo, chegoua vez <strong>de</strong> a Igreja li<strong>de</strong>rar o movimentosocial. As outras forças em presença,religiosas ou não, só entram como colaboradoras(60). Nesse campo, eleconfere aos sindicatos (conduzidospresumivelmente por cristãos) um papelprotagônico, seja no sentido <strong>de</strong> domaro mercado (34b), seja no <strong>de</strong> participarna vida da empresa (43b).Se João Paulo II fala do diálogocom as religiões a bem da socieda<strong>de</strong>,com respeito ao Islã aparece um certotemor. Não o menciona explicitamente,mas se refere a ele em termos <strong>de</strong>"fundamentalismo religioso" (29, letrac) e <strong>de</strong> "fanatismo" impositivo religiosodo Catolicismo na ocupação do21


vácuo i<strong>de</strong>ológico atual, criado so<strong>br</strong>etudopela crise do socialismo.No que tange à linguagem, passandopor alto a extensão, i<strong>de</strong>ossincrásica doPontífice atual, impacta o fraquTssimoconteúdo bíblico, particularmenteevangélico. Conta-se apenas uma vintena<strong>de</strong> referências bíblicas (3, 5, 25,45b, 51b, 62). Já se observou a diferençaque tem a linguagem fortementejusnaturalista da Doutrina Social romanaem confronto com a linguagem<strong>de</strong>cididamente bíblica do Magistériosocial das Igrejas do Terceiro Mundoe mais ainda da Teologia da Libertação.O Vaticano II é citado apenas 15vezes, quando todas as outras referênciassão do próprio Magistério socialda Igreja romana, sem falar ainda nafreqüência <strong>de</strong> auto-referências.O tom geral do texto é o da análisesocial argumentada e da sabedoriamoral. Importa observar que o conteúdopropriamente teológico é extremamenteescasso, salvo o 25, on<strong>de</strong> seencontra uma interessante digressão,meio errática, so<strong>br</strong>e a relevância socialdo dogma do pecado original(25c). A verve profética emerge a lancesmuito raros, por exemplo, quandoele ataca a remanescência do "<strong>capitalismo</strong>selvagem" no Terceiro Mundo(8c), ou quando levanta a reserva <strong>de</strong>que a dívida não po<strong>de</strong> ser paga coma "fome e o <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> populaçõesinteiras" (35e). Mas mesmo assim, aenergia profética vem sempre muitocontida.Nenhuma <strong>de</strong>núncia do perigo dariqueza acumulada, lugar-comum noNovo Testamento e mais que oportunanum mundo que exalta o mercadocomo o <strong>de</strong> hoje. A Centesimus Annussó assume algumas palavras ameaçadorasdo Evangelho aos ricos <strong>de</strong> modoindireto — através <strong>de</strong> uma citação <strong>de</strong>Leão XIII (30b).E o i<strong>de</strong>al da "po<strong>br</strong>eza evangélica",com toda a sua relevância históricosocial,sequer é objeto <strong>de</strong> alusão. Nãose conce<strong>de</strong> aqui <strong>de</strong>mais à mo<strong>de</strong>rnaonda mo<strong>de</strong>rna do "enriquecei-vos"!Mesmo a crítica ao neo-liberalismo(raramente citado), centrada — comodissemos - na vinculação da liberda<strong>de</strong>à busca da verda<strong>de</strong> (4e, etc.) não consegueser radical e eficaz, pois <strong>de</strong>ixaintocado o fulcro do mesmo, que éa prevalência da liberda<strong>de</strong> individualso<strong>br</strong>e a solidarieda<strong>de</strong> social, do amor<strong>de</strong> si so<strong>br</strong>e o amor do outro (este últimoera, para Agostinho, o fundamentoda "Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus", ou seja, dasocieda<strong>de</strong> segundo o i<strong>de</strong>al cristão).Não se estaria aqui também oferecendoseu grão <strong>de</strong> incenso a um dos vários<strong>de</strong>uses do dia, sendo o mercado oprincipal? Estaria disposto o Papa aaceitar um liberalismo mitigado?Em suma, tudo indica que a DoutrinaSocial da Igreja entrou num novociclo. Ela acabou se alinhando praticamentecom o neo-<strong>capitalismo</strong>.22


Assim, o caminho da <strong>igreja</strong> oficial,pelo menos até o próximo milênio,fica hipotecado por esse pesado compromisso— pesado especialmente paraas Igrejas do Terceiro Mundo. A AméricaLatina vai sem dúvida sentir issocom muita força <strong>de</strong>ntro e a partir daAssembléia da CELAM em Santo Domingoem 1992.Que a novida<strong>de</strong> representada poresta encfclica seja realmente uma boanova,é preciso perguntá-lo aos po<strong>br</strong>es,como fez Jesus (Lc 7, 22). Quanto aospo<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong>sse mundo, eles não escon<strong>de</strong>ramsua satisfação com esse documento.Os maiores jornais do Oci<strong>de</strong>nte,como o International HeraldTribune (edição européia do WashingtonPost e do New York Times), oLe Mon<strong>de</strong> e o Times <strong>de</strong> Londres aplaudirama proposta wojtyliana <strong>de</strong> um"<strong>capitalismo</strong> humanizado" (cf.Adista,18/5/91, p. 6).Contudo, há nessa surpreen<strong>de</strong>ntereconciliação <strong>de</strong> fato duas atenuantes:a gran<strong>de</strong> tradição passada da Igreja nalinha da "comunhão dos bens" e opo<strong>de</strong>r moral relativo que tem o Magistérioromano hoje no seio da gran<strong>de</strong>Igreja (ao contrário do que acontececom ele frente à socieda<strong>de</strong>). De fato,fica cada vez evi<strong>de</strong>nte para a consciênciaeclesial hoje que o Papa exerceum Magistério muito específico. Mostra-ojá o simples fato <strong>de</strong> ter elaboradoesse documento a partir do chamadocírculo interno e não partindo <strong>de</strong>uma ampla consulta às forças vivasda Igreja. E isso já <strong>de</strong>ixa ver até on<strong>de</strong>vai seu alcance moral e sua efetivida<strong>de</strong>histórica.Mais: frente à posição <strong>de</strong> fato aludida,existe so<strong>br</strong>etudo os gran<strong>de</strong>s princípiosda fé e da moral cristãs. E écom eles que se <strong>de</strong>ve medir sempre aIgreja e seu Magistério na história. Éa tentativa que esboçaremos a seguir.5. RECOLOCANDO A QUESTÃOO exame acima constitui um análisecrítica da Centesimus Annus emseus vetores teóricos mais fortes, épreciso completar esse trabalho comuma colocação mais positiva e maispropositiva. De resto, o próprio documentoconvida a "estudar e aprofundar"a Doutrina Social da Igreja(56a). E qual é a função da teologiasenão essa mesma? Ela vai atrás doMagistério, recolhendo seu ensino melhor;ela vai ao lado <strong>de</strong>le, assessorandoo; mas vai também à frente <strong>de</strong>le,a<strong>br</strong>indo-lhe o caminho. É nesses termosque se exprimiu o Papa atual aoentregar o prêmio Paulo VI ao teólogoH. Urs von Balthasar.Pois bem, para aprofundar a doutrinada encíclica atual <strong>de</strong>vemos, como23


nos ensina Puebla (472), distinguircuidadosamente na Doutrina Social daIgreja duas camadas: a camada dosprincípios permanentes, que são <strong>de</strong>tipo religioso e ético; e a camada dasaplicações concretas, que são as análises,apreciações e propostas relativasa situações históricas cambiáveis. Essadistinção não é simples, mas é hermeneuticamentenecessária e até <strong>de</strong>cisivano tratamento da questão so<strong>br</strong>e osgran<strong>de</strong>s sistemas sociais.Até agora nos ativemos à segundacamada, a mais superficial, on<strong>de</strong> osjuízos do Magistério são mais sujeitosaos condicionamentos do tempo, po<strong>de</strong>ndoser por isso alteráveis (não sendoinfalíveis). Precisamos agora passarpara a primeira camada, a mais profunda,para arrancar novamente <strong>de</strong>laem direção da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> hoje.Talvez se pu<strong>de</strong>sse falar aqui da necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> passar do Papa-analista(Wojtyla) para o Papa-anunciador(João Paulo II), embora as duas funçõessejam indispensáveis para todoPastor. E é evi<strong>de</strong>nte que se <strong>de</strong>ve haverum acordo fundamental com respeitoao nível dos princípios éticos ereligiosos, já é possível certo <strong>de</strong>sacordo no nível das aplicações dos mesmos,salvo o <strong>de</strong>vido respeito à autorida<strong>de</strong>.Ora, o próprio Magistério sempre admitiuessa possibilida<strong>de</strong>. Assim a últimaencíclica: 0 "exame" dos "acontecimentosda história recente" "nãopreten<strong>de</strong> dar juizos <strong>de</strong>finitivos, não fa-zendo parte, por si, do âmbito específicodo Magistério" (3e).Quais são esses princípios <strong>de</strong> fundoque põe o Papa em sua encíclica e apartir dos quais faz suas aplicações?São vários, não sendo aqui o caso <strong>de</strong>examiná-los todos. Contentemo-noscom dois princípios centrais:1. O primado do trabalho so<strong>br</strong>e ocapital (6a, 35b), que foi, <strong>de</strong> resto,o leitmotif da Laborem Exercens.Portanto, a "dignida<strong>de</strong> do trabalho edo trabalhador" (6a) e a centralida<strong>de</strong>da pessoa humana em relação a todaa economia (54a);2. A proprieda<strong>de</strong> privada fundada elimitada pela lei maior do "<strong>de</strong>stinouniversal dos bens" (30c e todo o cap.IV). Portanto, o interesse privado sub-24


metido ao interesse coletivo, que lhedá como o seu "enquadramento" jurídicoe moral (40a; cf. 15a, 42b).Tomemos agora a questão do mercado,que é o gran<strong>de</strong> lugar-comum do<strong>de</strong>bate econômico hoje, o qual repercutetambém com força <strong>de</strong>ntro da encCcilca.Ora, aplicando esses princípios,diz o Papa que o mercado <strong>de</strong>vefundamentalmente ser "orientado parao Bem comum" (43a). Outras formulações:ele <strong>de</strong>ve "fazer valer o <strong>de</strong>stinocomum dos bens" (19b); "garantira satisfação das exigências fundamentais<strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong>" (35b),etc. Além disso, ele não po<strong>de</strong> submeterà sua "lógica" as "necessida<strong>de</strong>s humanasfundamentais" (34a) e transformaro trabalho em "simples mercadoria"(34b)..A questão agora é esta: Como é possívelno Capitalismo (mesmo novo)realizar esses princípios? Impossível,a nosso ver. A lógica do Capitalismo,como vimos, é dar o primado ao Capital.Daí, aliás, o seu nome. Ou seja:o Capitalismo é incapaz <strong>de</strong> operar comaquelas exigências éticas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda boa vonta<strong>de</strong> do capitalistaindividual. Não só é incapaz, comoelese funda exatamente em seu contrário.Ele representa uma moral antagônicaà moral que o Magistério Socialda Igreja coloca.Como, por exemplo, o trabalho po<strong>de</strong><strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser reduzido a "mercadoria"na "lógica sistêmica" do mercadocapitalista? E on<strong>de</strong> se encontra o capitalistaque po<strong>de</strong> privilegiar a satisfaçãodas necessida<strong>de</strong>s sociais e não olucro? Po<strong>de</strong>rá combinar as duas coisas,mas <strong>de</strong> uma não po<strong>de</strong>rá renunciar:um grau mínimo <strong>de</strong> lucro. Por outrolado, como conseguir, como exige oPapa, o "controle público" do mercado(19b; cf 35b), quando é o Capitalque <strong>de</strong>termina (não totalmente, semdúvida) a vida <strong>de</strong> toda uma socieda<strong>de</strong>?Não é ele "o mais forte" que dominaqualquer "forte" (cf. Lc 11,21-22),seja esse "forte" o Estado ou as outras"<strong>org</strong>anizações intermédias", especialmenteo Sindicato, como quer o Papa(49c)?Consequentemente, entre a "ética"(ou "lógica") do Capital, que se resumena busca <strong>de</strong> um lucro razoável,e a ética cristã, que privilegia o interesseda comunida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se verda<strong>de</strong>iramentefalar num "impossível compromisso"(cf. 26e). Para que haja aquicompatibilida<strong>de</strong>, ou é o Capitalismoque <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser o que é, ou éentão a ética cristã. E não basta queo Capitalismo, como em sua novafase, incorpore marginalmente os valoresaistãos do Bem Comum. Para serético, não basta que o lucro não sejao único objetivo (como parece dar aenten<strong>de</strong>r por vezes a Centesimus Annus:35c, etc), mas que não seja oobjetivo dominante, e sim os valoreséticos. Ora entre uma coisa e outra adiferença é <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>. E poucofalar aqui em "diferenças específicas"(32d).25


^z j.Nesse sentido, o regime <strong>de</strong> salariadocapitalista tem um estatuto moralanálogo ao da escravidão antiga e aoda servidão medieval. Como conjuntosestruturados <strong>de</strong> relações econômicas,esses sistemas todos são objetivamenteimorais, embora os cristãos sejamchamados a viver as relações pessoais<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les <strong>de</strong> modo humano(como ensinava Pedro e Paulo com relaçãoaos escravos) e, so<strong>br</strong>etudo hoje,a lutar pela sua superação como sistemas<strong>de</strong> pecado (cf. 35b, 38b).Ora, é a essa altura que se reapresentaa solução do Socialismo, como pelomenos uma das alternativas possíveis.Este, em sua carga i<strong>de</strong>al, exprimeexatamente a proposta (ainda em boa«^swj^ parte utópica) <strong>de</strong> realizar nas estruturaseconômicas o primado do Bemicomum, do Trabalho, enfim da Pessoaf humana. Trata-se <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al gêneroso,que possui um conteúdo ético/ |7 substancial, enquanto o Capitalismo« só incorpora <strong>de</strong> ética o tanto que lhepermite sua lei constitutiva suprema— o lucro. Por isso mesmo, o Socialismorequer virtu<strong>de</strong>, tanto para sua criaçãocomo para a sua reprodução. Nãopor nada o espírito cristão, em seus seguidoresmais conseqüentes — os Religiosos—, sempre se sentiu atraídopelo i<strong>de</strong>ai <strong>de</strong> uma economia socializada.Não por nada também se <strong>de</strong>ramsempre na história da Igreja sucessivasondas <strong>de</strong> "socialismo cristão", Masfa-.T_, lar <strong>de</strong> "Capitalismo cristão", mesmo<strong>de</strong>pois da atual encíclica, soa como26algo <strong>de</strong> estranho e <strong>de</strong> perturbador(mesmo para a encíclica).O que significa tudo isso? Significa,antes <strong>de</strong> tudo, que, partindo dos mesmosprincípios <strong>de</strong> fundo, é possívelchegar a outras aplicações no terrenosocial. Se, no nível <strong>de</strong>stas, o Socialismoparece ter sido <strong>de</strong>scartado peloPapa Wojtyla, a nível dos princípiosJoão Paulo II parece <strong>de</strong>ixá-lo em aberto,po<strong>de</strong>ndo até ser logicamente exigido.Se a formulação não fosse por <strong>de</strong>maissumária, seria possível dizer: aCentesimus Annus é socialista nosprincípios e capitalista nas aplicações.Haveria naturalmente aí certa contradição,mas não <strong>de</strong> fundo, pois que


não se situa a nível dos princípios. Arigor, na sua encíclica, o Papa nãocon<strong>de</strong>na o Socialismo em principio,ou seja, <strong>de</strong> modo absoluto; o que elecon<strong>de</strong>na <strong>de</strong> fato é o "socialismo real",o qual não passa <strong>de</strong> uma aplicação doi<strong>de</strong>al socialista. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais estudo e <strong>de</strong>bate, para que seaprofun<strong>de</strong> e esclareça a questão <strong>de</strong>uma possível e mesmo necessária alternativaao Capitalismo, so<strong>br</strong>etudo emfunção das massas oprimidas do TerceiroMundo.A <strong>igreja</strong> <strong>de</strong> Cristo, como seu fundadore mestre, po<strong>de</strong> e, muitas vezes,<strong>de</strong>ve escandalizar os Potentes <strong>de</strong>stemundo; o que não po<strong>de</strong> é escandalizaros Po<strong>br</strong>es <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong>fraudar-lhesa Esperança.Rio <strong>de</strong> Janeiro, festa da Visitação<strong>de</strong> Maria, 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1991.


PUBLICAÇÕES DA AÇÃO CATÓLICA OPERARIA - ACOAs publicações da Ação Católica Operária — ACO, são todas <strong>de</strong> linguagem simplese do ponto <strong>de</strong> vista dos trabalhadores. Tem como objetivo a formação <strong>de</strong> <strong>militante</strong>scomprometidos com a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa, igualitária e fraterna.Dividiremos nossas publicações em 3 coleções para os interessados perceberemmelhor o conteúdo das mesmas:Colação Ver, Julgar, Agir pelos 4 lados è luz da Bíblia.Fazem parte <strong>de</strong>sta coleção:1. Conhecer as Socieda<strong>de</strong>s (31 pg.) - Explica o método pelos 4 lados.2. História do Povo <strong>de</strong> Deus. IP volume (180 pg.) — Tem como subtítulo: Introduçãopara uma leitura da Bíblia.Mostra a participação dos trabalhadores na <strong>org</strong>anização do povo <strong>de</strong> Deus notempo da Bíblia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> A<strong>br</strong>aão até o exílio pelo ano 500 aC.3/A. História do Povo <strong>de</strong> Deus. 29 volume. A<strong>br</strong>ange o período do exílio até o finaldo Macabeus.4. Jesus, Sua Terra, Seu Povo, Sua Proposta (112 pg.).5. Revisão <strong>de</strong> Vida: Conhecer para Transformar (132 pg.).UM MOVIMENTO DE CRIANÇAS - Incluímos nesta coleção este livro publicadoem conjunto com o MAC (Movimento <strong>de</strong> Adolescentes e Crianças), porquesegue o mesmo método Ver, Julgar e Agir adaptado para a autoformação <strong>de</strong> criançase adolescentes.2. Coleção Ca<strong>de</strong>rnos da História da Classe Operária.A idéia <strong>de</strong> se escrever a História da Classe Operária, surgiu no Congresso daACO <strong>de</strong> 1971 em plena ditadura, quando a gran<strong>de</strong> imprensa <strong>de</strong>clarava nuncater existido a Classe Operária.• Ca<strong>de</strong>rno 1 — Gestação e Nascimento:<strong>de</strong> 1 500 a 1888 (50 pg. - 4? Edição)• Ca<strong>de</strong>rno 2 — Infância Dura<strong>de</strong> 1889 a 1919 (104 pg - 4. a Edição)• Ca<strong>de</strong>rno 3 - Ida<strong>de</strong> Difícil<strong>de</strong> 1920 a 1945 (120pg. - 4. a Edição)• Ca<strong>de</strong>rno 4 — Amadurecimento<strong>de</strong> 1945 a 1964 (100 pg. - 2. a Edição)• Ca<strong>de</strong>rno 5 - Resistindo á Ditadura (108 pg - 1. a Edição)• Ca<strong>de</strong>rno 6 — Na redação final.3. Coleção Documentos da ACO1. História da ACO (169 pg.) - Conta a História da Ação Católica Operária,sua resistência frente à ditadura, sua expansão, método e conteúdo.2. Declaração <strong>de</strong> Princípios.3. Regimento Interno.4. Estatutos Sociais.Estes livrinhos ajudam a conhecer a ACO.5. Folhetos para grupos novos, sob o título Missão e Pedagogia da ACO.6. ASSUMIR — Boletim <strong>de</strong> formação para <strong>militante</strong>s da ACO e outros. Sai <strong>de</strong>4 em 4 meses. Traz experiências <strong>de</strong> Base e artigos <strong>de</strong> orientação operária,política e <strong>de</strong> lutas no meio popular. A encomenda po<strong>de</strong> ser por assinaturaou número avulso.7. Cantando Nossa Libertação — Cancioneiro da ACO, com 175 cânticos, divididoem 3 partes: I. Vida e luta do povo; II. Cânticos religiosos; III. Cânticospopulares e folclóricos. Mais dois suplementos novos, I e II.Há 5 fitas gravadas para ensaio dos mesmos.Para pedidos:AÇÃO CATÓLICA OPERARIA - ACORua Van Erven, 26 - Catumbi20211 - Rio <strong>de</strong> Janeiro - RJ Fone: (021)242-7732Comissão Nacional <strong>de</strong> Publicações da ACO

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