6 <strong>Jornal</strong> <strong>de</strong> <strong>Leiria</strong> 29 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 2012EntrevistaMaria João Valente Rosa Por preconceito, a socieda<strong>de</strong> está a dar-se ao luxo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar as pessoas <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> mais avançada. Esta <strong>de</strong>mógrafa diz mesmoque o envelhecimento não é um problema, mas uma mais-valia e que, nofuturo, seremos ainda mais envelhecidos que hoje“O envelhecimentonão é um problema mas umamais-valia”Graça Menitragraca.menitra@jornal<strong>de</strong>leiria.ptA que se <strong>de</strong>ve a actual taxa <strong>de</strong> natalida<strong>de</strong>?Estamos com um dos níveis maisbaixos <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong>, não da Europamas do ex-conjunto dos paísesda União Europeia a 15. Para as geraçõesse substituirem é precisoque cada mãe tenha, em média, 2,1filhos e nem Portugal nem nenhumpaís da União Europeia a 27 tem asseguradaessa substituição. Antes, asocieda<strong>de</strong> era <strong>de</strong> 4/2/1 (quatro filhos,dois pais e um avó). Actualmente inverteu-see é <strong>de</strong> 1/2/4 (um filho,dois pais e quatro avós, ainda todosvivos). É uma estrutura completamenteao contrário. Isto pren<strong>de</strong>-secom factores <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento:maior escolarida<strong>de</strong>, maior participaçãodas mulheres no mercado<strong>de</strong> trabalho, métodos contraceptivosmais eficazes e alteração do valoreconómico da criança. A reduçãosignificativa da mortalida<strong>de</strong> infantilfaz também com que mulheres ehomens comecem a programar e aver os seus filhos como um projecto<strong>de</strong> vida, porque sabem que elesvão ultrapassar a barreira dos primeirosanos <strong>de</strong> vida.Sendo um projecto <strong>de</strong> vida, a criança<strong>de</strong> hoje é mais feliz que há 60anos?Não sei dizer. Sou uma mulher dosindicadores e quando falo, faço-o apartir <strong>de</strong> factos. E a felicida<strong>de</strong> éalgo relativo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dos tempos.Mas à luz dos dias <strong>de</strong> hoje, as criançasdo passado eram muito mais infelizes.As acessibilida<strong>de</strong>s ao mundoeram muito inferiores, a escolarida<strong>de</strong>era muito baixa (factoresque contribuem para a felicida<strong>de</strong> individuale para a sua harmonia), osriscos <strong>de</strong> morte eram muito elevados,as condições <strong>de</strong> vida e higieneeram fraquíssimas. Tenho 51 anos esenti que a minha infância foi relativamentefeliz mas com horizontesmuito limitados, comparativamentecom as oportunida<strong>de</strong>s das crianças<strong>de</strong> hoje.E a crise económica não tem peso?A conjuntura tem as costas largas.Atribuímos tudo à crise. Não é por dinheiroque as pessoas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m nãoter mais um filho mas sim porque nãoencontram reunidas uma série <strong>de</strong>condições que acham <strong>de</strong>sejáveis.Um filho é, cada vez mais, uma <strong>de</strong>cisãoplaneada, um projecto <strong>de</strong> vidaque não queremos que falhe. Acreditoaté que possamos, em breve, registarum aumento dos níveis <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong>e que estabilize nos doisfilhos. A crise po<strong>de</strong> ter algum efeito,embora ainda não medido, mas apenasno adiar o projecto <strong>de</strong> ter filhos.Por múltiplos aspectos, o factor financeiro,cai por terra em relação ànatalida<strong>de</strong>. Porque se o facto <strong>de</strong> aspessoas terem mais dinheiro fossecondição para terem mais filhos, entaonão se enten<strong>de</strong>ria (o que tambémé observável sob o ponto <strong>de</strong> vista estatístico)o facto das <strong>de</strong>scendênciasmais numerosas se encontrarem nasfamílias <strong>de</strong> classe social mais baixa.E não é uma regra só portuguesa. Asclasses médias são as que têm menosfilhos. Para fechar este assunto, estranhariaque voltássemos a <strong>de</strong>scendênciasaltamente numerosas (3 a 4filhos em média). Porque este <strong>de</strong>clínionão po<strong>de</strong> ser entendido comoalgo <strong>de</strong> terrível, se aten<strong>de</strong>rmos às suascausas. Deveríamos estar mais calmosem relação a este processo. E nãoestamos calmos.Em <strong>de</strong>staqueSenti que a minhainfância foirelativamentefeliz mas comhorizontesmuito limitados,comparativamentecom asoportunida<strong>de</strong>sdas crianças<strong>de</strong> hojePortugal anda sempre atrás <strong>de</strong> outrospaíses mas nos baixos índices<strong>de</strong> natalida<strong>de</strong> acelerou...Em Portugal é ainda muito marcantea dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens emulheres conciliarem tempos <strong>de</strong>trabalho e <strong>de</strong> família. Quando olhamospara as mulheres empregadasa tempo parcial (e não estou a falar<strong>de</strong> trabalho precário), temos menos<strong>de</strong> meta<strong>de</strong> da percentagem da médiada União Europeia, que têm valoresacima dos 40 %. Em Portugalo tempo do trabalho e o tempo <strong>de</strong> famíliaconcorrem entre si, o que fazcom que muitas vezes as pessoas tenham<strong>de</strong> optar: ou sou boa profissionalou sou boa mãe. Ser-se ambasas coisas é muito difícil. No nossoPaís, o trabalho ainda é extremamenteintensivo e concentra-senuma fase muito curta do nosso ciclo<strong>de</strong> vida, que é a mesma da ida<strong>de</strong>fértil. Noutros países, as políticas<strong>de</strong>senvolvidas têm sido muito nosentido <strong>de</strong> facilitar essa conciliação<strong>de</strong> tempos.Para o aumento da fertilida<strong>de</strong> emPortugal está a contar com a imigração?Também, mas não só. É verda<strong>de</strong> queos imigrantes têm sido gran<strong>de</strong>s“contribuintes líquidos” para a natalida<strong>de</strong>,já que representam cerca<strong>de</strong> 4% no saldo global da populaçãoportuguesa e os nascimentos <strong>de</strong> filhos(<strong>de</strong> pai e/ou mãe estrangeiro)cerca <strong>de</strong> 13%. A migração está muitoassociada ao trabalho que, por suavez, se concentra nas ida<strong>de</strong>s mais activas,logo mais férteis. Mas o facto<strong>de</strong> Portugal estar a per<strong>de</strong>r atractivida<strong>de</strong>em relação ao exterior, faztambém com que cada vez menospessoas venham para cá nas ida<strong>de</strong>sactivas e, por outro lado, nós tambémestamos a sair do País nas ida<strong>de</strong>smais activas e férteis. E, o saldomigratório <strong>de</strong> Portugal, que já nãoera negativo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993, em2010/2011, segundo dados mais recentes,voltou a sê-lo. Segundo as estimativas,vai <strong>de</strong> novo atingir-seum recor<strong>de</strong> histórico em termosdos mínimos da natalida<strong>de</strong>.Está igualmente optimista em relaçãoao envelhecimento da população?Diria que estaria muito preocupadase não estivéssemos a envelhecer.Claro que Portugal também, aqui,está a bater recor<strong>de</strong>s, já que é umdos países mais envelhecidos domundo. São cada vez mais as pes-
<strong>Jornal</strong> <strong>de</strong> <strong>Leiria</strong> 29 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 2012 7DemografiaA importânciadas pessoasMaria João Valente Rosa,professora universitária, nasceuem Lisboa em 1961. Diz que semprese preocupou com “tudo o quemexe” à sua volta, ou seja com aspessoas. A <strong>de</strong>mografia conquistou--a precisamente por ser umaciência que relaciona pessoas enúmeros e estuda o que move ocomporta-mento das pessoas(fecundida<strong>de</strong>, nupcialida<strong>de</strong>,migrações, etc). E porque temmuita dificulda<strong>de</strong> em pensar semestar sustentada em factos enúmeros. Licenciada e doutoradaem Sociologia, pela Universida<strong>de</strong>Nova <strong>de</strong> Lisboa, é directora daPordata (Base <strong>de</strong> dados <strong>de</strong> Portugalcontemporâneo) e é autora <strong>de</strong>vários estudos publicados sobre apopulação portuguesa.Desempenhou funções <strong>de</strong>dirigente em organismos públicosdos Ministérios da Educação e daCiência, Tecnologia e EnsinoSuperior. Integrou o ConselhoSuperior <strong>de</strong> Estatística e asseguroua representação nacional em váriasinstâncias europeias einternacionais.soas a terem hipótese <strong>de</strong> chegar aida<strong>de</strong>s mais avançadas e, por suavez, a morrerem cada vez menos atéaos 65 anos. A Europa é já consi<strong>de</strong>radoo continente grisalho, resultadoda melhoria das condições <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> e dos avanços técnico-científicos.Mas quem é que não gosta <strong>de</strong>viver mais tempo? E quem é que nãogosta <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir sobre o próprio número<strong>de</strong> filhos que quer ter? Gostamosdisto tudo e se as causas quemotivaram o envelhecimento sãoelas próprias, por si, positivas, entãoon<strong>de</strong> está o problema? O problemaapenas resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> as socieda<strong>de</strong>snão se terem adaptado ao cursodos factos. Porque uma coisa écerta: não vamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> envelhecere, no futuro, seremos aindamais envelhecidos que hoje. Os cenários<strong>de</strong>mográficos são muito certos,mesmo admitindo um aumentodos índices <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong>. Porisso, a forma <strong>de</strong> nos distinguirmosnão <strong>de</strong>ve ser pela ida<strong>de</strong> mas pela viado conhecimento. E o conhecimentonão tem ida<strong>de</strong>s nem fronteiras.A primeira impressão quefazemos do outro é se é novo ou velho,encaixando as pessoas em diversosatributos, através <strong>de</strong> filtrosem relação à ida<strong>de</strong> ou à nacionalida<strong>de</strong>.Só muito <strong>de</strong>pois é que conseguimosperceber um pouco do valorque aquela pessoa tem. São preconceitosprejudiciais em relação àspessoas <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> mais avançada,que a socieda<strong>de</strong> se está a dar ao luxo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar, com consequênciasterríveis para todos, já que setrata <strong>de</strong> um capital humano extremamenteimportante. Deveríamoscomeçar a olhar para o indivíduo porsi, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da ida<strong>de</strong>,se é ou não estrangeiro e se é homemou mulher.Defen<strong>de</strong> então que o trabalho atempo parcial é a solução para adultose idosos?É, porque os pressupostos se alteraramtodos. Este mo<strong>de</strong>lo é terrívelporque estudamos, estudamos, estudamosaté <strong>de</strong>terminada ida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>pois trabalhamos, trabalhamos,trabalhamos e não temos tempopara mais nada. Depois é a fase do<strong>de</strong>scanso, <strong>de</strong>scanso, <strong>de</strong>scanso. Avida partida assim não faz sentido.Em vez da concentração excessivanas ida<strong>de</strong>s activas <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>veapostar-se num mo<strong>de</strong>lo em quecada uma das ida<strong>de</strong>s (activas e avançadas)possa combinar as váriascomponentes: trabalho e reforma atempo parcial e formação permanentepara se ir actualizando. Este éo ciclo <strong>de</strong> vida que o envelhecimentoda população nos está a exigir.O envelhecimento <strong>de</strong>mográficonão é mais que um provocador àsnossas cabeça, como que a dizer: oenvelhecimento está aqui e por issoa socieda<strong>de</strong> tem <strong>de</strong> mudar, a bem oua mal. O que fizemos até agora foi resistirà mudança e continuar a funcionarcomo há décadas. Aí é queestá o mal. Por isso é tempo <strong>de</strong> emPortugal e não só (não somos originaisa esse propósito) se começar afuncionar <strong>de</strong> forma inteligente, quenão é por certo a que herdamosdos nossos ascen<strong>de</strong>ntes. A socieda<strong>de</strong>está em mudança e não é no imobilismoque encontraremos a melhorforma <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a essasmudanças.A quem cabe fazer essas mudanças?O cidadão é crucial em processos <strong>de</strong>mudança mas os sinais tambémtêm <strong>de</strong> ser dados pelas instituiçõespúblicas que nos governam e pelasempresas. E não é para fazerem jeitoou carida<strong>de</strong>, mas por perceberemque há um potencial importanteque po<strong>de</strong>m aproveitar nos mais velhos.O envelhecimento <strong>de</strong>mográficonão po<strong>de</strong> ser combatido e porisso não vale a pena per<strong>de</strong>mos maistempo com isso. Os dados estão aí eestá tudo muito claro a esse propósito.Por isso, vamos concentrar--nos no que é importante, <strong>de</strong>bater epensar, implicando-nos todos nesteprocesso <strong>de</strong> mudança. Hoje nãohá ninguém que não fale do envelhecimentoda população mas podíamoster lançado esta discussãomais cedo. Até porque o envelhecimentonão é um problema mas umamais-valia.Como caracteriza os idosos do futuro?Serão muito diferentes dos <strong>de</strong> hoje.A minha geração é mais instruída ecom maior qualificação que a dosmeus ascen<strong>de</strong>ntes. E, porventura,mais exigente também e com trajectórias<strong>de</strong> vida, mesmo familiares,mais complexas, menos lineares,muitas vezes com vários casamentos,vários divórcios, filhos <strong>de</strong> váriasfrentes. Os idosos actuais não estavamà espera <strong>de</strong> viver tanto tempoe por isso chegam aos 65 e 70 anos,sentindo que ainda estão com muitascapacida<strong>de</strong>s. Só que como nãoestavam à espera, não prepararamnovas carreiras ou activida<strong>de</strong>s.EducaçãoO abandonoescolar emPotugalé gravíssimo❚ É professora do ensino superior.Também acha que se po<strong>de</strong> fazermais com menos?Não entro em questões concretas<strong>de</strong> política nacional. A única coisa<strong>de</strong> que posso falar é da educaçãocomo um todo. E, mais umavez, há um problema estruturalem Portugal que é um claro e terríveldéfice <strong>de</strong> qualificação. Temosmais <strong>de</strong> 70 por cento dos trabalhadorespor conta própria, nomáximo, com o que o 9.º ano <strong>de</strong>escolarida<strong>de</strong>, quando na Europacerca <strong>de</strong> 80 por cento têm mais do9º ano <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>. Isto contrariao discurso <strong>de</strong> que somosum país <strong>de</strong> doutores e engenheirose com excesso <strong>de</strong> licenciados. Émentira. O nosso problema é outro.Temos um défice claro <strong>de</strong>qualificação e sabendo que a socieda<strong>de</strong>em curso é a do conhecimento,não só precisamos <strong>de</strong> qualficadoscá <strong>de</strong>ntro como chamálospara cá. Não comento afirmações<strong>de</strong> governantes mas parecemeque andamos todos muito enganados.Fizemos alguns progressosem termos <strong>de</strong> abandonoescolar precoce (alunos que nãocompletam o secundário), já queo valor mais recente em Portugalé <strong>de</strong> 23% e, no início dos anos 90,era <strong>de</strong> 50%. Porém, somos ainda o3º país da União Europeia (Maltae Espanha estão à frente) on<strong>de</strong> oabandono escolar é mais elevado.Isto é gravíssimo.O que pensa da <strong>de</strong>bandada para areforma <strong>de</strong> profissionais da FunçãoPública?Acho esta <strong>de</strong>bandada, por exemplo<strong>de</strong> médicos e professores, umpéssimo exemplo. Na minha perspectivaé grave que ninguém reaja.Debandar só porque se tem<strong>de</strong>terminada ida<strong>de</strong>, pensando queao sairem estão a libertar postos <strong>de</strong>trabalho para os mais novos, é totalmentefalso. Isto não é um princípio<strong>de</strong> vasos comunicantes. Nãohá estudos sobre isso, mas pensoque a reforma não faz bem à saú<strong>de</strong>.Se fosse dada oportunida<strong>de</strong> aessas pessoas <strong>de</strong> contribuirem positivamentepara uma série <strong>de</strong> objectivos,elas prescindiriam <strong>de</strong>uma parte da sua reforma para terum trabalho a tempo parcial. Emrelação aos anos 60, tivemos umbónus <strong>de</strong> mais 15 anos <strong>de</strong> esperança<strong>de</strong> vida. A agravar a situação,a ida<strong>de</strong> média, quer da SegurançaSocial, quer da Caixa Geral<strong>de</strong> Aposentações, segundo dadosrecentes disponíveis na Pordata, émesmo inferior aos 65 anos. Assim,não há sistema que aguenteeste contrato.