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“raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil - USP

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conceito essencialista do homem podiaigualmente servir de pretexto para discriminar,do resto da humanidade, os indivíduosou grupos de indivíduos não correspondendoà <strong>identidade</strong> específica e para excluí-los,em direitos e em fatos, da humanidade plenae inteira. O romantismo alemão colocouseveramente em questão, em sua crítica contraa Revolução Francesa, as virtualidadesinquietantes de toda a política dos direitosdo homem, acusado de abrir o caminho aodespotismo que se contenta com algumasmáximas universais e sacrifica totalmentea riqueza e a diversidade das tradições. Àafirm<strong>ação</strong> universalista da <strong>identidade</strong> intrínsecada humanidade veio se sobreporuma <strong>no</strong>va convicção: existe, é certo, uma<strong>identidade</strong> humana, mas essa <strong>identidade</strong> ésempre diversificada, segundo os modos deexistência ou de represent<strong>ação</strong>, as maneirasde pensar, de julgar, de sentir, próprias àscomunidades culturais, de língua, de sexo,às quais pertencem os indivíduos e que sãoirredutíveis às outras comunidades.Vê-se que os dois princípios, isto é, o eu eo outro, o universal e o particular, a unidadee a diversidade, o ego e o alter, se combinam<strong>no</strong> cor<strong>ação</strong> da antropologia enquantodisciplina que pretende estudar o homem<strong>no</strong> mesmo momento em sua unidade e emsua diversidade. A questão da alteridadepercorre todo o pensamento antropológico,dos ancestrais fundadores aos contemporâneos;percorre todas as correntes e grandesparadigmas que contribuíram na construçãoda disciplina, do evolucionismo ao chamadopós-modernismo. Mas a antropologia nãoé unicamente filha do relativismo cultural,ela é também herdeira do universalismo talcomo se expressa de modo particularmentenítido na ideologia do direito natural, oumais geralmente na ideologia dos direitosdo homem (Amselle, 1996, p. 21). Comefeito, entre os maiores antropólogos, essesdois fatores aparecem concorrentemente,permitindo distinguir, por exemplo, umLévi-Strauss estruturalista, portanto universalista,<strong>no</strong> Estruturas Elementares deParentesco, e um Lévi-Strauss culturalista,portanto relativista, <strong>no</strong> Raça e História,da mesma maneira que podemos opor umSahlins universalista a um Sahlins relativista,<strong>no</strong> Ilhas de História, em que ele adotarespectivamente as duas posturas. A antropólogaMargaret Mead ilustra ainda melhoressa oposição binária entre o universal eo diferente <strong>no</strong> pensamento antropológico.Filha do culturalismo america<strong>no</strong>, ela podeser vista como defensora do relativismocultural. No entanto, torna-se universalista<strong>no</strong> famoso diálogo travado com o escritorafro-america<strong>no</strong> James Baldwin na décadade 70 (Mead & Baldwin, 1973).48REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006


Prefaciando a tradução do livro nascidodo diálogo em questão, Roger Bastide colocaclaramente o problema e identifica asposições de ambos. Tanto Baldwin comoMead estão preocupados com a questão daintegr<strong>ação</strong> do negro na sociedade americana,mas não a concebem da mesma maneira.Mead tenta encontrar fora das diferenças decor um campo cultural comum entre brancose negros, um campo cultural que ela concebesegundo o modelo de miscigen<strong>ação</strong>.Baldwin, embora aceite ser america<strong>no</strong> enão africa<strong>no</strong>, não defende simplesmente aintegr<strong>ação</strong>, porque ela é unilateral e exigedo negro tornar-se branco… Bastide definea posição de Mead como ideologia profissionaldo etnólogo liberal ou progressista,portanto uma visão universalista oposta àperspectiva et<strong>no</strong>pluralista de Baldwin (apudTaguieff, 1988, pp. 16-8).Constata-se que todas as correntes e paradigmasque marcaram o desenvolvimentoda antropologia, cada um à sua maneira,trataram das questões de <strong>identidade</strong> semutilizar essa palavra, através dos conceitosde unidade e de diversidade. Esquematizandogrosseiramente, podemos dizer queo evolucionismo antropológico pretendia,<strong>no</strong> seu projeto, reconstruir a história culturalda humanidade a partir do estudo das sociedadesnão-ocidentais, na época chamadasprimitivas. Nesse projeto, a oposição primitivo/civilizadoprefigura a posição binária“nós” e “outros”, que podemos considerarcomo o primeiro esboço da idéia de diversidadee de <strong>identidade</strong> atual. Pela segundavez, a todas as sociedades não-ocidentais,foi atribuída uma <strong>identidade</strong> coletiva de“povos primitivos”, substituindo a <strong>identidade</strong>anterior de “selvagens” dada pelosancestrais iluministas.Por seu lado, o funcionalismo britânico,cuja mo<strong>no</strong>grafia pretendia superar o et<strong>no</strong>centrismovitoria<strong>no</strong>, que via nas sociedadesnão-européias apenas gêneros de vida ultrapassadospela evolução, não descreveuapenas um gênero de vida, mas sim umverdadeiro mundo de existência. Comodisse Lucy Mary (1937, apud Leclerc, 1972,p. 119), “a interpret<strong>ação</strong> da cultura humanaconcebida como mecanismo de cooper<strong>ação</strong>em vista da satisf<strong>ação</strong> de necessidades sociais,<strong>no</strong> qual cada elemento é ligado ao restoe permanece condicionado por ele, implicaa necessidade de dar uma consider<strong>ação</strong> maisséria a instituições indígenas dos povos nãocivilizados do que se tinha feito antes”.Mas o que interessaria a <strong>no</strong>ssa propostarelacionada à problemática da <strong>identidade</strong>é a “conivência“ entre o funcionalismo e oindirect rule. Sabemos que, para assegurara domin<strong>ação</strong>, nenhum sistema colonial <strong>no</strong>continente africa<strong>no</strong> contou apenas com aforça bruta e com o aparelho ideológicoapoiado em discursos justificativos da“missão civilizadora”. Outras estratégiasinicialmente não previstas <strong>no</strong>s primeirosesboços dos sistemas oficialmente implantadosem 1885, após a conferência deBerlim, que sacralizou a mundializ<strong>ação</strong> dacoloniz<strong>ação</strong> do continente africa<strong>no</strong>, foramse desenvolvendo e aperfeiçoando-se <strong>no</strong>decorrer do processo de administr<strong>ação</strong> dosterritórios coloniais. Entre elas, o directe o indirect rule, dos quais resultaram ossistemas de assimil<strong>ação</strong> e de associ<strong>ação</strong>,que, apesar das particularidades, têm umde<strong>no</strong>minador comum e serviram parafins semelhantes. No entanto, se todos ospaíses lançaram mão do indirect rule, osbritânicos foram os únicos a lhe dar umaforma teórica precisa e a amplitude de umateoria geral das sociedades colonizadas.Isso só foi possível graças à colabor<strong>ação</strong>da antropologia social na sua fase deconstituição da antropologia aplicada aosterritórios africa<strong>no</strong>s.A esse respeito, escreve Lucy Mary em1935 que a razão pela qual os especialistasda antropologia crêem <strong>no</strong> sistema do indirectrule não é o fato de que esse sistemapreserve as sociedades indígenas em suaforma original. Para os antropólogos aquestão é permitir que as mudanças quemodificam as condições das sociedadesafricanas possam operar sem desloc<strong>ação</strong>desnecessária das estruturas (Lucy Mary,1937 apud Leclerc, 1972). Estamos diantede duas filosofias coloniais aparentementeopostas, mas que visam aos mesmos resultados.Por um lado, o direct rule ou aadministr<strong>ação</strong> direta francesa, que visa àREVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 49


assimil<strong>ação</strong> dos povos colonizados dentrodo modelo racista universalista destruidordas <strong>identidade</strong>s não-ocidentais, por outroo indirect rule ou a administr<strong>ação</strong> indiretabritânica, que visa à acultur<strong>ação</strong> dos povoscolonizados, num processo que declaradamentepretendia conservar as <strong>identidade</strong>stradicionais para não criar choques desnecessáriosque poderiam prejudicar o processoaculturativo. A acultur<strong>ação</strong>, que, segundoGeorge Balandier, levaria a um processoinverso de déculturation, pois praticada <strong>no</strong>contexto colonial caracterizado pelas relaçõespolíticas assimétricas, e a assimil<strong>ação</strong>constituem somente dois lados da mesmamoeda colonial na qual tanto a antropologiafrancesa, quanto a antropologia britânicae outras que se inspiraram nelas tiverampoliticamente uma grande conivência.Num caminho totalmente divergente,a antropologia cultural americana, ou oculturalismo america<strong>no</strong>, vai desenvolvero relativismo cultural cujos representantesmais autênticos produzirão teses anticolonialistasdefensoras das <strong>identidade</strong>s dospovos oprimidos. Se, do ponto de vistade Mali<strong>no</strong>wski e de Radcliffe-Brown, auniversalidade e a <strong>identidade</strong> dos povosoprimidos forneciam a base de uma teoriacomparativa, para Ruth Benedict as instituiçõesconstituem apenas um quadro formale vazio do qual é fácil demonstrar em vãoa universalidade quando se deixa escaparo sentido concreto e efetivo que elas têmpara e numa dada cultura. Para ela, as instituiçõessão interpretadas em função dosvalores próprios e específicos (das escolhas)de uma dada sociedade e não mais comorespostas a necessidades fundamentais, oucomo expressão das estruturas universaisda vida social (apud Leclerc, 1972, pp. 152-3). Foi dentro desse espírito que se forjou oconceito de relativismo cultural, que já seencontrava <strong>no</strong> estado de esboço entre numerososantropólogos america<strong>no</strong>s. Indo maislonge que o funcionalismo, o relativismocultural não apenas coloca entre parênteses aquestão de saber se as sociedades estudadaspela antropologia são sociedades “primitivas”,como nega à antropologia o direitode qualificar essas sociedades, de fazersobre elas um julgamento que mais tardese tornaria um julgamento de valor.O alcance prático dessas teses é ilustradopela tomada de posição pública de umaparte dos antropólogos america<strong>no</strong>s sobreo problema colonial. Em 1947, o Bureauexecutivo da American Anthropological Associationsubmete à Comissão dos Direitosdo Homem das Nações Unidas um projeto dedeclar<strong>ação</strong>, “A Statement on Human Rights”(in American Anthropologist, 1947):“Considerando o grande número de sociedadesque entram em estreito contato <strong>no</strong>mundo moder<strong>no</strong>, e a diversidade de seusmodos de vida, a tarefa encontrada pelosque desejam redigir uma Declar<strong>ação</strong> dosDireitos do Homem consiste essencialmenteem resolver o seguinte problema:como a declar<strong>ação</strong> proposta pode seraplicável a todos os seres huma<strong>no</strong>s, sefoi concebida unicamente <strong>no</strong>s termos dosvalores dominantes <strong>no</strong>s países da EuropaOcidental e da América? O texto emque se sente a presença determinante deHerskovits faz um apelo aos resultadosdas ciências humanas, isto é, às teses daantropologia cultural, propondo a elabor<strong>ação</strong>de uma ‘Declar<strong>ação</strong> dos Direitosdo Homem’ <strong>no</strong>s seguintes termos: 1 o ) Oindivíduo realiza sua personalidade pelacultura; o respeito das diferenças individuaisconduz então a um respeito dasdiferenças culturais; 2 o ) O respeito dasdiferenças entre culturas é válido pelo fatocientífico que mostra que nenhuma técnicade avali<strong>ação</strong> das culturas foi descoberta.Por isso, os objetivos que guiam a vida deum povo são evidentes por si mesmos nasua signific<strong>ação</strong> para esse povo e não devemser ultrapassados por um outro pontode vista, incluído o das pseudoverdadeseternas; 3 o ) Os padrões e os valores sãorelativos à cultura da qual são resultados,de tal modo que todas as tentativas paraformular postulados que derivam dascrenças ou dos códigos morais de umacultura devem, nessa medida, ser retiradasda aplic<strong>ação</strong> de toda Declar<strong>ação</strong> dosDireitos do Homem à humanidade inteira”(Leclerc, 1972, pp. 162-3).50REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006


Como se vê, a ideologia veiculada peloculturalismo america<strong>no</strong> condena o universalismodos vitoria<strong>no</strong>s que consideravama cultura ocidental como instrumento deavali<strong>ação</strong> das outras culturas. Nesse sentido,a antropologia cultural, ou o culturalismoamerica<strong>no</strong>, foi uma das correntes antropológicasa defender as <strong>identidade</strong>s dos povosnão-ocidentais, embora saibamos que a questãoda integr<strong>ação</strong> dos negros e dos índios nasociedade americana é sempre atual.Quando acontece um encontro entreculturas, as atitudes preconceituosas de umaem rel<strong>ação</strong> à outra podem ser interpretadascomo uma defesa global de uma sociedadecontra qualquer intrusão estrangeira ressentidacomo uma ameaça. Atitude essa queClaude Lévi-Strauss considera universale necessária, embora represente o preçoa pagar para que os sistemas de valoresde cada comunidade sejam conservados.A desconfiança em rel<strong>ação</strong> ao “outro” atéa sua rejeição condiciona a presumida sobrevivênciadas comunidades. Os povos eas etnias teriam de escolher entre a mortecultural por excesso de abertura aos outrose a preserv<strong>ação</strong> do seu “ser” distintoem oposição aos outros, começando pelofechamento em tor<strong>no</strong> de si (Lévi-Strauss,apud Taguieff, 1988, pp. 246-7).Pierre-André Taguieff critica esse posicionamentode Lévi-Strauss e de outrosetnólogos que, ao naturalizarem as atitudespreconceituosas, conferem um fundamentolegítimo ao et<strong>no</strong>centrismo e à xe<strong>no</strong>fobia.Taguieff se pergunta se Lévi-Strauss nãoestaria reforçando hoje a posição dos defensoresda funcionalidade do preconceitoracial. Ele acha difícil não ver nessa posiçãodo etnólogo um discurso legitimador doimperativo cultural de excluir o estrangeiroe de evitar qualquer mistura com suasmaneiras de ser e de pensar defendida hojena França pelo nacional-populismo e pela<strong>no</strong>va direita (Taguieff, 1988, pp. 246-7).Apesar da crítica, Lévi-Strauss, como osmelhores defensores das <strong>identidade</strong>s culturaisparticulares, rejeita todo apelo a umsujeito huma<strong>no</strong> universal.A defesa do ensi<strong>no</strong> da diversidade nasescolas formais resulta do debate sobre asreivindicações dos grupos nas sociedadespoliétnicas. W. Kymlicka lembra que, depoisda Segunda Guerra Mundial, muitosliberais esperavam que a ênfase colocadasobre os direitos do homem (<strong>no</strong>tadamenteem 1948, pela Declar<strong>ação</strong> Universal daONU) resolveria por si os problemas dasmi<strong>no</strong>rias. Pensavam eles que, em vez deproteger os grupos diretamente através dosdireitos especiais dados a seus membros, asmi<strong>no</strong>rias culturais seriam numa certa medidaprotegidas indiretamente através das garantiasdadas a todos os indivíduos quanto aseus direitos civis e políticos fundamentais,sem consider<strong>ação</strong> do seu pertencimento aqualquer grupo. Um raciocínio implícitosustentava essa esperança: os direitos fundamentaisreconhecidos à pessoa humana,como a liberdade de expressão, a liberdadede associ<strong>ação</strong>, a liberdade de consciência,embora atribuídos a indivíduos, são de fatosempre exercidos em comunidade com outrosindivíduos, e nesse sentido o reconhecimentode tais direitos individuais protege, ipso facto,a “vida do grupo”. Enquanto os direitosindividuais forem firmemente protegidos,não será necessário atribuir outros direitosaos membros de uma comunidade qualquer(Kymlicka, apud Mesure & Renaut, 1999,pp. 211-2).Kymlicka defende a idéia de que essemodelo, que havia permitido ao Estadomoder<strong>no</strong> nascente regular os problemasdas guerras de religião, não poderia maisser aplicado hoje ao problema das mi<strong>no</strong>riasculturais. Pois, se o Estado se colocar comoneutro perante as questões provocadas peladiversidade dos grupos étnico-culturais,será estruturalmente incapaz de resolveras questões resultantes da controvérsiaconcernente às mi<strong>no</strong>rias (Kymlicka, apudMesure & Renaut, 1999, pp. 212-3).A dificuldade se deve ao fato de queas doutrinas tradicionais dos direitos dohomem respondem mal às questões depráticas efetivas da democracia. Na maioriados casos, por si mesmas, não fornecemrespostas. Por exemplo, o direito de livreexpressão nada diz quando se trata de sabero que deveria ser uma política lingüísticaadaptada a uma situ<strong>ação</strong> de coexistênciaREVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 51


entre diversas línguas num mesmo espaçosocial. Da mesma maneira, o direito de ire vir não responde às interrogações sobreo que deve ser uma política de imigr<strong>ação</strong> ede naturaliz<strong>ação</strong>. Dessa dificuldade surge anecessidade de reconstruir a teoria liberaldos direitos do homem de modo a atendera um imperativo de justiça em rel<strong>ação</strong> aosgrupos culturais em si, aos quais os indivíduosse identificam, ou seja, de buscar umatransform<strong>ação</strong> complementar do liberalismopara integrar uma exigência de justiçaque Kymlicka (apud Mesure & Renaut,1999, pp. 214-5) designa como “justiçaet<strong>no</strong>cultural”.O debate sobre políticas de <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong>e sobre o multiculturalismo naeduc<strong>ação</strong> surge desse contexto universal eestá na pauta de muitos países do mundocontemporâneo. O <strong>Brasil</strong>, um país quejustamente nasceu do encontro das culturase das civilizações, não pode fugir dele.Paralelamente aos programas e projetosde mudanças desenvolvidos nas instânciasgovernamentais como <strong>no</strong> Ministério da Educ<strong>ação</strong>,<strong>no</strong> Ministério da Saúde, na SecretariaEspecial de Políticas de Promoção da IgualdadeRacial (Seppir), etc., e nas instânciasnão-governamentais, creio que devemosaprofundar o debate intelectual e críticonum duplo sentido, aproveitando a luz daspráticas experimentadas e devolvendo aessas práticas um olhar crítico construtivoe re<strong>no</strong>vador. O melhor debate, a meu ver,é aquele que acompanha a dinâmica da sociedadeatravés das reivindicações de seussegmentos e não aquele que se refugia numateoria superada de mistura racial, que pordezenas de a<strong>no</strong>s congelou o debate sobre adiversidade cultural <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, que era vistocomo uma cultura sincrética e como uma<strong>identidade</strong> unicamente mestiça.Alguns indagam se as políticas de reconhecimentodas <strong>identidade</strong>s “raciais”, emespecial da <strong>identidade</strong> <strong>negra</strong>, não ameaçariama unidade ou a <strong>identidade</strong> nacional, porum lado, e se não reforçariam a exalt<strong>ação</strong>da consciência racial, por outro. Ou seja,se não teriam um efeito “bumerangue”,criando conflitos raciais que, segundoeles, não existem na sociedade brasileira.É dentro dessa preocup<strong>ação</strong>, entre outras,que as críticas vêm sendo dirigidas contraas políticas de cotas rotuladas como raciais.Segundo o antropólogo Peter Fry, um dosprotagonistas intelectuais dessas críticas<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>,“[…] a <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong> não veio somentepara compensar negros pelo passado deescravidão e pelo presente da discrimin<strong>ação</strong>.Veio desfazer a ‘mistura racial’ paraproduzir só duas raças. Antes uma sociedadede classes que recusa reconhecer as <strong>identidade</strong>sraciais, o <strong>Brasil</strong> é agora imaginadocomo uma sociedade de ‘raças’ e ‘etnias’distintas. As políticas de <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong>racial terão a conseqüência de estimular ospertencimentos ‘raciais’, assim fortalecendoa crença em raças” (Fry, 2005, p. 336).Em primeiro lugar, todos os brancos enegros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> acreditam na “mistura racial”como fundante da sociedade brasileira,geneticamente falada. A pesquisa do geneticistaSérgio Danilo Pena mostra que todos osbrasileiros, mesmo aqueles que aparentamfe<strong>no</strong>tipia européia, têm em porcentagensvariadas marcadores genéticos africa<strong>no</strong>sou ameríndios, confirmando o princípio jáconhecido da inexistência de raças purasou estancas. Não vejo como, salvo numaimagin<strong>ação</strong> criativa, a <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong> possadesfazer a “mistura racial”, desafiando asleis da genética humana e a <strong>ação</strong> voluntaristados homens e das mulheres, que continuarãoa manter os intercursos sexuais interraciais.Se as leis e barreiras raciais contrarelações sexuais inter-raciais <strong>no</strong>s EstadosUnidos e na África do Sul (apartheid) nãoconseguiram desfazer a “mistura racial”,como é que isso pode ser possível somente<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> por causa das cotas? Isso seriaatribuir à <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong> um poder mágicoque na realidade não possui.Em segundo lugar, sabemos todos que oconteúdo da raça é social e político. Se parao biólogo molecular ou o geneticista huma<strong>no</strong>a raça não existe, ela existe na cabeçados racistas e de suas vítimas. Seria muitodifícil convencer Peter Botha e um zulu daÁfrica do Sul de que a raça <strong>negra</strong> e a raça52REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006


anca não existem, pois existe um fossosócio-histórico que a genética não preencheautomaticamente. Os mestiços dos Estadosunidos são definidos como negros pela leibaseada numa única gota de sangue. Elesaceitaram e assumiram essa <strong>identidade</strong> racialque os une e os mobiliza politicamenteem tor<strong>no</strong> da luta comum para conquistarseus direitos civis na sociedade americana,embora conscientes da mistura que correem seu sangue e também da negritude queos faz discriminados.Consciente de que a discrimin<strong>ação</strong> daqual negros e mestiços são vítimas apesarda “mistura do sangue” não é apenas umaquestão econômica que atinge todos ospobres da sociedade, mas sim resultantede uma discrimin<strong>ação</strong> racial camufladadurante muitos a<strong>no</strong>s, o Movimento Negrovem tentando conscientizar negros e mestiçosem tor<strong>no</strong> da mesma <strong>identidade</strong> atravésdo conceito “negro” inspirado <strong>no</strong> “black”<strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>. Trata-se, sem dúvida, deuma definição política embasada na divisãobirracial ou bipolar <strong>no</strong>rte-americana, e nãobiológica. Essa divisão é uma tentativa quejá tem cerca de trinta a<strong>no</strong>s e remonta à fund<strong>ação</strong>do Movimento Negro Unificado, quetem uma proposta política clara de construira solidariedade e a <strong>identidade</strong> dos excluídospelo racismo à brasileira. Ela é anterior à discussãosobre as cotas ou <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong>, quetem apenas uma dezena de a<strong>no</strong>s. Mais do queisso, ela correu paralelamente à classific<strong>ação</strong>popular cromática baseada justamente namultiplicidade de tons e nuanças da pele dosbrasileiros, resultante de séculos de miscigen<strong>ação</strong>.Afirmar que a definição bipolar dosbrasileiros em raças <strong>negra</strong> e branca nasce daspolíticas de <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong> ainda em debateé ig<strong>no</strong>rar a história do Movimento Negrobrasileiro. Pensar que o <strong>Brasil</strong> sofre pressõesinternacionais ou multilaterais para imporas políticas de cotas é minimizar a própriasoberania nacional e ig<strong>no</strong>rar as reivindicaçõespassadas e presentes do MovimentoNegro, que, mesmo sem utilizar as palavrascota e <strong>ação</strong> <strong>afirmativa</strong>, sempre reivindicoupolíticas específicas que pudessem reduziras desigualdades e colocar o negro em pé deigualdade com o branco.O problema fundamental não está naraça, que é uma classific<strong>ação</strong> pseudocientíficarejeitada pelos próprios cientistas daárea biológica. O nó do problema está <strong>no</strong>racismo que hierarquiza, desumaniza e justificaa discrimin<strong>ação</strong> existente. Há cerca de40 a<strong>no</strong>s geneticistas e biólogos molecularesafirmaram que as raças puras não existemcientificamente (cf. Jean Hiernaux, J. Ruffié,A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegarammesmo até a preconizar a elimin<strong>ação</strong> doconceito de raça dos dicionários, enciclopédiase livros científicos como medidade combate ao racismo. Não demoraram aconcluir que essa proposta era uma ingenuidadecientífica, dando-se conta de que aideologia racista não precisava do conceitode raça para se refazer e se reproduzir. Oapartheid existia como demonstr<strong>ação</strong> daradicaliz<strong>ação</strong> do racismo sem lançar mão dapalavra raça. Com efeito, o apartheid é umapalavra do afrikans e recebeu a definiçãoideológica de um projeto de desenvolvimentoseparado, com a finalidade de preservara riqueza cultural e as <strong>identidade</strong>s étnicasdos povos da África do Sul. Em <strong>no</strong>me dorespeito às <strong>identidade</strong>s e às diversidadesculturais, foi implantado na África do Sulum regime segregacionista que durante meioséculo confiscou os direitos fundamentais,políticos e sociais da maioria da popul<strong>ação</strong>.Da mesma maneira que o <strong>Brasil</strong> criou seuracismo com base na neg<strong>ação</strong> do mesmo,os racismos contemporâneos não precisammais do conceito de raça. A maioria dos paísesocidentais pratica o racismo antinegrose antiárabes sem mais recorrer aos conceitosde raças superiores e inferiores, servindo-seapenas dos conceitos de diferenças culturaise identitárias.As propostas de combate ao racismonão estão mais <strong>no</strong> abando<strong>no</strong> ou na erradic<strong>ação</strong>da raça, que é apenas um conceito enão uma realidade, nem <strong>no</strong> uso dos léxicoscômodos como os de “etnia”, de “<strong>identidade</strong>”ou de “diversidade cultural”, pois oracismo é uma ideologia capaz de parasitarem todos os conceitos. Benjamin Isaac,num livro recente baseado numa pesquisade cerca de 15 a<strong>no</strong>s, sustenta a existênciado proto-racismo entre os antigos gregosREVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 53


e roma<strong>no</strong>s. Porém, os antigos não usavamo conceito moder<strong>no</strong> de raça. Eles usavamos conceitos de eth<strong>no</strong>s ou natio, que nãosão sinônimos de raça. A lei da pureza desangue vigente em Portugal e na Espanhados séculos XIV-XV, que deu origem aoanti-semitismo, que é uma subvariante doracismo, não precisou da raça <strong>no</strong> sentidomoder<strong>no</strong> da palavra. No entanto a lei dapureza de sangue na Península Ibérica nãoera tão diferente das leis de Nurembergdurante o regime nazista.No seu livro Race et Couleur au Paysd’Islam, Bernard Lewis oferece um outroexemplo de construção do racismo semrecorrer ao uso da raça.Numa análise magistral baseada emfarta document<strong>ação</strong> (textos sagrados, instituições,comportamentos sociais e práticassexuais), ele amplia o espaço geo-históricodo racismo, incluindo nele os países do Islãe desfazendo o mo<strong>no</strong>pólio ocidental dessefenôme<strong>no</strong> (Lewis, 1982).Logo na introdução dessa obra, ele apresentaduas imagens contraditórias sobre oracismo <strong>no</strong> mundo islâmico. A primeiraimagem provém da obra A Study of Historyde A. J. Toynbee (1939), que descreve omundo do Islã como uma sociedade igualitáriae desprovida de qualquer discrimin<strong>ação</strong>racial. A segunda imagem vem dos contosas Mil e Uma Noites e revela um quadrofamiliar de fantasmas sexuais, de discrimin<strong>ação</strong>social, de divisão dos papéis e deuma identific<strong>ação</strong> inconsciente positiva como que é claro, e negativa com o que é maisescuro. De fato, <strong>no</strong>s contos as Mil e UmaNoites, os negros aparecem freqüentementenas funções subalternas, como carregadores,empregados domésticos, escravizados,cozinheiros, responsáveis pelos banhos,etc., elevando-se raramente acima dessacondição social. Isso é bem ilustrado pelahistória de um bom escravizado negro que,depois de uma vida de fé e virtude, foi recompensadodepois da morte ao tornar-sebranco (Lewis, 1982, pp. 11-6).Tanto na poesia árabe antiga como <strong>no</strong>Alcorão aparece uma consciência da diferença,ou seja, o sentimento de ser árabepor oposição ao grego ou outro. No entanto,nada indica que esse sentimento fossevivido como uma diferença racial ou quepudesse ir além da distinção <strong>no</strong>rmal queum grupo huma<strong>no</strong> manifesta diante de umoutro. Sobre o problema específico da cor,a literatura árabe antiga é mais instrutiva.Os primeiros poetas utilizavam toda umagama de termos diferentes para descrever ascores dos seres huma<strong>no</strong>s, gama muito maisvasta que aquela utilizada habitualmenteem <strong>no</strong>ssos dias. Esses termos não correspondemexatamente aos que utilizamoshoje e revelam um sentido das cores maisligado à claridade, à intensidade, e mais àtonalidade do que à cor. Os seres huma<strong>no</strong>ssão freqüentemente descritos utilizando-setermos que podemos traduzir como preto,branco, vermelho, verde, amarelo e por doistons de more<strong>no</strong>, claro e escuro. Esses termossão geralmente empregados num sentidopessoal e não étnico e corresponderiammais (<strong>no</strong> sentido ocidental) a termos taiscomo more<strong>no</strong> (trigueiro), loiro ou corado,do que a preto ou branco. Algumas vezessão utilizados num sentido étnico, mas comco<strong>no</strong>t<strong>ação</strong> em valor relativo e não absoluto.Os árabes, por exemplo, diziam-se às vezesvermelhos ou brancos em rel<strong>ação</strong> aos africa<strong>no</strong>sque são pretos. A cor característica dobeduí<strong>no</strong> é ora verde-azeitona, ora more<strong>no</strong>.Mas quando os árabes passaram a dominar,os papéis se inverteram, pois a expressão“povo vermelho” foi atribuída aos espanhóisvencidos, aos gregos e outros povosmediterrâneos de pele mais clara que a dosárabes (Lewis, 1982, pp. 18-9).Quanto às relações entre árabes e africa<strong>no</strong>s,a situ<strong>ação</strong> é mais difícil de discernir.Existe um grande número de versosatribuídos aos poetas pré-islâmicos ou aosprimeiros tempos do Islã sugerindo fortessentimentos de ódio e me<strong>no</strong>sprezo em rel<strong>ação</strong>às pessoas de nascimento ou de origemafricana. A maior parte, se não a totalidadedesses versos, foi redigida com quase certezaem períodos posteriores e é reflexo deproblemas, atitudes e preocupações maistardios. Durante o período que se seguiuimediatamente à morte do profeta Maomé,em 632 da <strong>no</strong>ssa era, as grandes conquistasislâmicas transportaram a <strong>no</strong>va fé para a54REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006


as vastas zonas da África e da Ásia. Comessa situ<strong>ação</strong>, muitas mudanças podemser observadas na literatura da época. Emprimeiro lugar, os termos descrevendo acor dos seres huma<strong>no</strong>s se tornaram me<strong>no</strong>snumerosos, específicos ou especializados.Com o tempo, quase todos desapareciam,à exceção do “negro”, do “vermelho” e do“branco”, que tomam uma co<strong>no</strong>t<strong>ação</strong> étnica,absoluta, em vez de pessoal e relativa. O negrodesigna globalmente os nativos africa<strong>no</strong>sdo sul do Saara e seus descendentes; o branco– e às vezes o vermelho (claro) – designaos árabes, os persas, os gregos, os turcos,os eslavos e os povos vivendo ao <strong>no</strong>rte e aoleste das terras habitadas pelos negros. Àsvezes, para opor esses povos aos árabes epersas brancos, atribuem-se-lhes os qualificativossignificando alabastros, azul pálidoou diversos tons de vermelho. Em algunscontextos, o adjetivo “negro” é estendidode modo a incluir os india<strong>no</strong>s, mas não é oseu uso habitual (Lewis, 1982, p. 26). A essaespecializ<strong>ação</strong> e especific<strong>ação</strong> dos termosdescrevendo as cores da pele, acrescenta-seuma co<strong>no</strong>t<strong>ação</strong> muito nítida de inferioridadeassociada com peles mais escuras e maisparticularmente com peles <strong>negra</strong>s.A conquista e a cri<strong>ação</strong> de um vastoimpério árabe fizeram aparecer distinçõesinevitáveis entre povo conquistador e povosconquistados. Com a conversão dos povosconquistados ao Islã, uma distinção de classese estabeleceu entre muçulma<strong>no</strong>s árabes emuçulma<strong>no</strong>s não-árabes, numa situ<strong>ação</strong> bemsemelhante à dos autóctones cristãos <strong>no</strong>simpérios coloniais dos séculos XIX e XX.Apesar de a doutrina do Islã reafirmar incansavelmenteque os convertidos não-árabeseram iguais aos árabes e podiam até pretendera um estatuto superior graças à sua maior fé,os árabes, como os conquistadores de todosos tempos, eram pouco dispostos a concedera igualdade aos povos conquistados e mantiveramsua posição privilegiada sempre quepuderam. Os muçulma<strong>no</strong>s não-árabes eramconsiderados como inferiores e sujeitos a umasérie de restrições fiscais, sociais, políticas,militares e outras (Lewis, 1982, p. 46).Para os muçulma<strong>no</strong>s – como para todosos povos das outras civilizações conhecidasda história –, o mundo civilizado era pordefinição o deles. Eles se consideravamcomo os únicos que possuíam a ilumin<strong>ação</strong>divina e a verdadeira fé; o mundo exteriora eles era povoado de bárbaros e de infiéis.No mundo exterior, que se estendia alémdas vastas fronteiras do universo islâmico,os muçulma<strong>no</strong>s faziam algumas distinções.No leste se encontravam a Índia e a China,países pagãos, <strong>no</strong> entanto, respeitadosporque possuíam provas de alguns traçosde civiliz<strong>ação</strong>. No oeste estendia-se a Cristandade,antes bizantina e depois européia,reconhecida como rival por sua religião,sua cultura e sua visão do mundo. Foradisso, havia os bárbaros do <strong>no</strong>rte e do sul– brancos <strong>no</strong> <strong>no</strong>rte (turcos, eslavos e outros)e negros <strong>no</strong> sul, na África <strong>negra</strong> (Lewis,1982, p. 52).Essas sociedades eram principalmenteconsideradas como reserva de escravizadosa serem importados <strong>no</strong> mundo islâmico,e, como eles não dispunham também denenhuma religião digna de <strong>no</strong>me, deveriamser convertidos ao Islã.Nas Américas (do Norte e do Sul), existeuma identific<strong>ação</strong> absoluta entre a popul<strong>ação</strong><strong>negra</strong> e a escravidão. Mas <strong>no</strong> mundomuçulma<strong>no</strong> houve sempre escravizadosnegros e escravizados brancos. No entanto,a diferença entre ambas as categorias se dána termi<strong>no</strong>logia, <strong>no</strong> valor de compra e venda,<strong>no</strong> tipo de atividade e na mobilidade socialatribuídos aos dois tipos de escravizados(Lewis, 1982, pp. 63-4). Geralmente, naépoca medieval, dava-se aos escravizadosbrancos o <strong>no</strong>me de “Mamluk”, termo árabeque significa “possesso” e aos escravizadosnegros dava-se o <strong>no</strong>me de “Abd”. Com otempo, o termo “Abd”, que designava osescravizados negros, tomou, em numerososdialetos árabes, o sentido de “homemnegro”, fosse ele escravizado ou não. Osescravizados brancos, em particular asmulheres, custavam mais caro; além disso,os escravizados negros eram utilizados emcertas atividades a eles especificamente reservadas,e sua mobilidade social era maislimitada que a dos brancos.A naturaliz<strong>ação</strong> da escravidão <strong>negra</strong>encontra sua fonte de legitim<strong>ação</strong> na lendaREVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 55


muçulmana segundo a qual Ham, filho deNoé, e ancestral dos negros, foi condenadoa ser negro por causa do seu pecado. Amaldição do “ser negro” foi transmitida atodos os seus descendentes. Essa históriadá um exemplo interessante dos objetivos eutiliz<strong>ação</strong> ideológica dos mitos. A origem damaldição de Ham é evidentemente bíblica(Gen. IX, 1-27) e rabínica. Mas, na versãojudaica, a maldição diz respeito à escravidãoe não à cor da pele, e se abate em Canaã, omais jovem filho de Cam e não sobre seusoutros filhos, entre os quais Kush, presumidoancestral dos negros. A lógica da históriaé clara e transparente: os escravizados dosisraelitas eram os cananitas, seus parentespróximos. Daí a maldição de Canaã, umajustificativa religiosa (de outro modo ideológico)para legitimar sua escraviz<strong>ação</strong>. Osescravizados árabes não eram cananitas,mas sim negros cuja maldição compreendiatanto a cor da pele quanto a escraviz<strong>ação</strong>,que passou a ser um peso de sua hereditariedade(Lewis, 1982, p. 67).Apesar dos argumentos e decretos favoráveisà emancip<strong>ação</strong>, a escraviz<strong>ação</strong> dosnegros e sua export<strong>ação</strong> <strong>no</strong>s países mediterrâneose do Oriente Médio continuaram,justificadas pelo argumento discutível deque eram idólatras e que a guerra contraeles era Jihad, guerra santa, e que os prisioneirospodiam ser escravizados (Lewis,1982, p. 71).Os escravizados brancos eram raramentedestinados às tarefas pe<strong>no</strong>sas; eles ocupa-vam funções mais elevadas, tanto <strong>no</strong> pla<strong>no</strong>doméstico quanto <strong>no</strong> administrativo. Negrose brancos eram utilizados como eunucos,mas os negros predominaram rapidamente.Uma descrição árabe da corte dos califas deBagdá, <strong>no</strong> início do século X, fala de 7.000eunucos negros e 4.000 brancos. Depois oseunucos brancos se tornaram raros e maiscaros (Lewis, 1982, p. 72).Como em outras sociedades onde osestereótipos existem, encontra-se, <strong>no</strong> mundoislâmico, uma série de acusações clássicasdirigidas contra os negros. As mais freqüentessão que os negros são estúpidos,cheios de vícios, mentirosos, desonestos,sujos em sua maneira de viver, emitem umcheiro insuportável; são descritos comofeios, disformes e monstruosos (Lewis,1982, p. 114).Esse quadro racista <strong>no</strong> Império Islâmicoem rel<strong>ação</strong> ao mundo negro-africa<strong>no</strong>, minuciosamentedocumentado por BernardLewis e aqui sinteticamente esboçado, existiusem dúvida antes do uso do conceito deraça na modernidade ocidental. Ele ofereceum conteúdo racista legitimador da domin<strong>ação</strong>e da exclusão idêntico ao elaboradona modernidade ocidental. O que corrobora<strong>no</strong>sso ponto de vista de que a raça não criaproblema, mas sim a diferença fe<strong>no</strong>típicapor ela simbolizada. A solução não está naneg<strong>ação</strong> das diferenças ou na erradic<strong>ação</strong>da raça, mas sim na luta e numa educ<strong>ação</strong>que busquem a convivência igualitária dasdiferenças.BIBLIOGRAFIAAMERICAN ANTHROPOLOGICAL ASSOCIATION. “A Statement on Human Rights”, in American Anthropologist, 1947.AMSELLE, Jean-Loup. Vers un Multiculturalisme Français. Paris, Aubier, 1996.CARVALHO, José Jorge de. Inclusão Étnica e Racial <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: a Questão das Cotas <strong>no</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior. São Paulo, AttarEditorial, 2005.CASTELLS, Manuel. Le Pouvoir de L’Identité. Paris, Fayard, 1999.CAVALLI-SFORZA, Luca & CAVALLI-SFORZA, Francesco. Quem Somos? História da Diversidade Humana. São Paulo,Editora Unesp, 2002.D’ADESKY, Jacques. Racismes et Antiracismes au Brésil. Paris, l’Harmattan, 2001.56REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006


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