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os novos shâmanes - DigitUMa - Universidade da Madeira

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OS NOVOS SHÂMANESUm Contributo para o Estudo <strong>da</strong> Narrativi<strong>da</strong>de naPoesia Portuguesa Mais Recentedissertação de doutoramento a apresentar à<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>pela candi<strong>da</strong>taAna Margari<strong>da</strong> Simões Falcão SeixasFunchal2003


OS NOVOS SHÂMANESUm Contributo para o Estudo <strong>da</strong> Narrativi<strong>da</strong>dena Poesia Portuguesa Mais RecenteDissertação de DoutoramentodeAna Margari<strong>da</strong> Simões Falcão SeixasFunchal20031


OS NOVOS SHÂMANESUm Contributo para o Estudo <strong>da</strong> Narrativi<strong>da</strong>dena Poesia Portuguesa Mais RecenteDissertação de Doutoramento em Teoria <strong>da</strong>Literatura/Literatura Portuguesa, apresenta<strong>da</strong>à <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> pela candi<strong>da</strong>taAna Margari<strong>da</strong> Simões Falcão Seixas, soborientação do Professor Doutor Fernando J<strong>os</strong>éBranco Pinto do Amaral.Funchal20033


agradeciment<strong>os</strong>Ao Professor Doutor Fernando J<strong>os</strong>é Branco Pintodo Amaral, pelo privilégio de ter tido a suaorientação, cientificamente tão preza<strong>da</strong>, mastambém atenta, disponível e amiga.À Professora Doutora Maria de Lourdes Ferrazpelo acompanhamento científico, humano, esempre tão amigo, que tive o privilégio de receberdesde que fui sua aluna até este momento.À Professora Doutora Maria Alzira Seixo, peloentusiasmo e crença no meu trabalho, que sempremanifestou entusiasticamente, e que até hoje metem <strong>da</strong>do força de continuar na vi<strong>da</strong> académica.À Reitoria <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> peloempenho na formação do corpo docente <strong>da</strong><strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>, de que pude auferir e pelo qualmanifesto a minha gratidão.A<strong>os</strong> meus Colegas de Departamento, cujo apoio eamizade nunca esquecerei, pois foramdeterminantes no estímulo que me era necessáriopara concluir esta dissertação.À D. Isabel, secretária do Departamento, pela suacompetência e eficácia, bem como pela preci<strong>os</strong>aaju<strong>da</strong> presta<strong>da</strong>.A<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> bons Amig<strong>os</strong> incondicionais, por mesuportarem e animarem nesta fase difícil.À minha Mãe e a<strong>os</strong> meus Filh<strong>os</strong>, por tanto, sempalavras.5


ÍNDICEINTRODUÇÃO ...................................................................................... 9CAPÍTULO I - POESIA E UNIVERSO TEÓRICO1. POESIA E TEORIA .................................................... 172. POSICIONAMENTOS TEÓRICOS VERSUS POESIA ..... 262.1. poesia e poetici<strong>da</strong>de .................................. ............ 272.2. poesia e linguística ................................................ 292.3. poesia e estética ..................................................... 322.4. poesia e recepção ................................................... 372.5. poesia e história: hermenêutica, semiótica ............ 432.6. poesia e desconstrução .......................................... 482.7. poesia e experimentalismo .................................... 592.8. considerações de síntese ........................................ 71CAPÍTULOII - CÂNONE, PÓS-MODERNISMO E POESIA1. CÂNONE LITERÁRIO E POESIA ................................ 792. PÓS-MODERNO E POESIA ........................................ 96CAPÍTULO III-PERPLEXIDADES ENTRE NARRATIVAE POEMA1. FICÇÃO, FICCIONALIDADE E FICÇÃO POÉTICA ........ 1292. NARRATIVIDADE NA POESIA2.1. narrativa, narrativi<strong>da</strong>de e poesia ................................ 1432.2.romanesco, efabulação, storytelling e poesia ............. 160CAPÍTULO IV -REPRESENTAÇÕES E SUBVERSÕESDA NARRATIVIDADE NA POESIA1. NARRATIVIDADE, POESIA E MODERNISMO. .............. 1992. LIBERTAÇÃO E DESEJO DE MUDANÇA .................. 2183. DIMENSÃO CRÍTICA, METALINGUÍSTICA EPICTÓRICA ............................................................. 2264. SUBJECTIVIDADE E EXPERIÊNCIA DOCORPO: METAMORFOSES ...................................... 238CAPÍTULO V - EXPANSIVE POETRY E NARRATIVIDADE1. NEW NARRATIVE E NEW FORMALISM .......................... 2512. EXPANSIVE POETRY ...................................................... 2693. ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE A EXPANSIVE POETRYE A NARRATIVIDADE NA POESIA PORTUGUESA ..... 2937


CAPÍTULO VI - CONFIGURAÇÕES DA NARRATIVIDADE1. NOTA PRÉVIA ....................................................... 3052. O QUOTIDIANO ..................................................... 3073. CENAS E CENOGRAFIA .......................................... 3224. A MEMÓRIA........................................................... 333CAPÍTULO VII - EXEMPLOS DE NARRATIVIDADE NAPOESIA PORTUGUESA MAIS RECENTECRITÉRIOS DE SELECÇÃO .............................................. 3491. VASCO GRAÇA MOURA ........................................ 3512. NUNO JÚDICE ....................................................... 3643. JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE ....................... 3764. AL BERTO ............................................................. 3885. JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA ................................. 3986. CARLOS NOGUEIRA FINO ..................................... 4087. JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA ............................. 418CONCLUSÃO ...................................................................................... 431BIBLIOGRAFIA (OBRAS LITERÁRIAS) ...................................... 439BIBLIOGRAFIA -(TEORIA E CRÍTICA) ....................................... 445ANEXO .......................................................................................................... 4591. CONJUNTURAS ............................................................................. I2. GRÁFICOS .................................................................................... V3. LISTAGENS DOS LIVROS OBSERVADOS ..................................... XL8


INTRODUÇÃOQuando n<strong>os</strong> vim<strong>os</strong> confrontad<strong>os</strong>, no decorrer <strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa vi<strong>da</strong>académica, em Outubro de 1997, com a decisão de uma escolha de campode trabalho para uma tese de doutoramento, obedecem<strong>os</strong> primordialmente àspreferências pessoais, tanto na área escolhi<strong>da</strong> como na limitação e reduçãode corpus de trabalho. Assim, passám<strong>os</strong> <strong>da</strong> escolha <strong>da</strong> literatura em geral àliteratura portuguesa em particular e, dentro desta, à literatura portuguesa d<strong>os</strong>éculo vinte, centrando-n<strong>os</strong> na poesia <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s.Assim, foi primeiramente com o intuito de investigar e inventariarto<strong>da</strong> a produção poética d<strong>os</strong> autores portugueses d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa, bemcomo <strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> que a caracterizavam, que iniciám<strong>os</strong> uma longainvestigação, a qual se não m<strong>os</strong>trou tão proveit<strong>os</strong>a como inicialmente n<strong>os</strong>parecera, o que n<strong>os</strong> levou a envere<strong>da</strong>r por caminh<strong>os</strong> colaterais mas quedepressa se tornaram pertinentes. E porquê? Logo no início desse trabalho(aqui incluído apenas como anexo) deparám<strong>os</strong> com um número depublicações que excedia a n<strong>os</strong>sa previsão. A partir de uma listagemprocedente <strong>da</strong> Biblioteca Nacional e de outra do, na altura, InstitutoPortuguês do Livro e <strong>da</strong> Leitura, detectám<strong>os</strong> discrepâncias e lacunas que n<strong>os</strong>levaram ao Depósito Legal <strong>da</strong> Direcção Regional d<strong>os</strong> Assunt<strong>os</strong> Culturais, noFunchal, onde descobrim<strong>os</strong> que a produção poética publica<strong>da</strong> em Portugal,no último decénio do século vinte, era ain<strong>da</strong> em número mais elevado doque as listas <strong>da</strong> B.N. e do I.P.L.L. faziam supor 1 . Perante tal número,empreendem<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong> assim, o mor<strong>os</strong>o trabalho de ler e catalogar essa1 A média de livr<strong>os</strong> de poesia publicad<strong>os</strong> é de cerca de mil livr<strong>os</strong>/ano, como noAnexo se poderá verificar.9


imensa produção. Trabalho pouco produtivo, pois ao longo do tempo se n<strong>os</strong>depararam questões que desse modo se não poderiam responder: comopoder identificar ou comparar parâmetr<strong>os</strong> de um tão extenso corpus sem quetais parâmetr<strong>os</strong> escolhid<strong>os</strong> e o seu trabalho informático (único p<strong>os</strong>sível paraa totali<strong>da</strong>de de um corpus tão vasto) se tornassem redutores e impessoais,li<strong>da</strong>ndo separa<strong>da</strong>mente com aspect<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong>, formais, editoriais e outr<strong>os</strong>,cuja articulação matemática tanto se distanciaria <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de individual,que não deve deixar de estar presente mesmo num trabalho científico sobrepoesia? Como fugir a um rol de categorizações de índole dominantementeredutora?Decidim<strong>os</strong>, perante estas constatações, que a verificação deparâmetr<strong>os</strong> caracterizadores funcionaria, no n<strong>os</strong>so trabalho, não como umametodologia pré-defini<strong>da</strong>, assente em pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> de índole teórica, masapenas como um aide-mémoire que n<strong>os</strong> permitiria, uma vez informatizad<strong>os</strong><strong>os</strong> <strong>da</strong>d<strong>os</strong> e submetid<strong>os</strong> a tratamento estatístico, agrupar e quantificarhipóteses de existência e evolução de características, tanto textuais(temáticas, model<strong>os</strong> formais utilizad<strong>os</strong>) como extratextuais (editoras,regiões do país), de modo a poder, p<strong>os</strong>teriormente, seleccionar cas<strong>os</strong>individuais com uma segurança maior de que uma selecção proveniente d<strong>os</strong>imples conhecimento intuitivo. Nunca descurám<strong>os</strong>, contudo, <strong>da</strong>rimportância ao n<strong>os</strong>so g<strong>os</strong>to pessoal e deixá-lo transparecer, apesar de term<strong>os</strong>elaborado, nessa primeira fase, listagens e gráfic<strong>os</strong> 2 que permitiram umagrande familiarização com a produção poética, apesar de n<strong>os</strong> teremreconduzido às n<strong>os</strong>sas interrogações iniciais.Passad<strong>os</strong> meses, após interrupção de algum tempo, e ao rever oextenso trabalho de catalogação a que n<strong>os</strong> dedicáram<strong>os</strong>, as n<strong>os</strong>sasinterrogações iniciais adquiriram uma nova dimensão, perspectivando-se anecessi<strong>da</strong>de de uma orientação diversa que facultasse uma abor<strong>da</strong>gem2 Documentação em Anexo.10


individual de text<strong>os</strong> adentro de uma linha de escolha fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>. Nareali<strong>da</strong>de, alguns parâmetr<strong>os</strong> se haviam destacado no n<strong>os</strong>so inventário pelasua relevância, tanto quantitativa como de continui<strong>da</strong>de temporal, 3 sendoeles: o uso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a, o uso de model<strong>os</strong> formais do passado, ametalinguagem, a intertextuali<strong>da</strong>de, a presença explícita do sujeitolírico e a narrativi<strong>da</strong>de.Perante a observação de tod<strong>os</strong> esses parâmetr<strong>os</strong>, chamou-n<strong>os</strong> depois aatenção o facto de eles se encontrarem tanto na escrita de autores viv<strong>os</strong>consagrad<strong>os</strong> como na poesia de autores desconhecid<strong>os</strong> cuja produção seachava dispersa por todo o país. Esperáram<strong>os</strong>, ao iniciar a n<strong>os</strong>sa longalistagem, encontrar, através do uso de parâmetr<strong>os</strong>, uma diferenciação níti<strong>da</strong>por parte d<strong>os</strong> poetas do cânone hodierno que não f<strong>os</strong>se apenas valorativa eque <strong>os</strong> distinguisse <strong>da</strong> maioria desconheci<strong>da</strong> d<strong>os</strong> poetas «subterrâne<strong>os</strong>» dopaís. Curi<strong>os</strong>amente, e como se poderá observar n<strong>os</strong> gráfic<strong>os</strong> do estudofeito, 4 as causas <strong>da</strong> op<strong>os</strong>ição entre «luz <strong>da</strong> ribalta» e «apagamento» d<strong>os</strong>poetas e suas publicações não se encontravam tanto nesse tipo decaracterísticas do texto literário, em si, mas sim em outr<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> demais difícil objectivação. Assim, verificám<strong>os</strong> a óbvia evidência,anteriormente despreza<strong>da</strong>, de existir um elo entre a repercussão editorial e aquali<strong>da</strong>de ou valor atribuído a<strong>os</strong> text<strong>os</strong>. Estes factores reconduziam-n<strong>os</strong> àimp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de chegar a constatações faculta<strong>da</strong>s apenas pela observaçãode parâmetr<strong>os</strong> inerentes a<strong>os</strong> já referid<strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> textuais.Chegad<strong>os</strong> a este ponto do n<strong>os</strong>so trabalho, um relativo desvio temáticoe uma mu<strong>da</strong>nça metodológica se impunham: havia que restringir eseleccionar um parâmetro caracterizador, de entre <strong>os</strong> que detectáram<strong>os</strong>como <strong>os</strong> mais usad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> poetas, e explorá-lo tanto num cruzamento comp<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> como na verificação <strong>da</strong> sua realização na3 Referimo-n<strong>os</strong> à listagem e a<strong>os</strong> gráfic<strong>os</strong> concernentes à evolução de parâmetr<strong>os</strong> deobservação <strong>da</strong> produção editorial de livr<strong>os</strong> de poesia n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 1990 a 1995, emAnexo.11


prática literária para, a partir <strong>da</strong>í, poderm<strong>os</strong> encaminhar o n<strong>os</strong>so trabalhono sentido de consoli<strong>da</strong>r algumas p<strong>os</strong>síveis resp<strong>os</strong>tas às n<strong>os</strong>sasinterrogações iniciais. Assim, salientám<strong>os</strong> desde logo a narrativi<strong>da</strong>de comoum d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> caracterizadores <strong>da</strong> poesia portuguesa do final domilénio.Perante as n<strong>os</strong>sas dúvi<strong>da</strong>s em relação à pesquisa inicial, mas comcerca de três an<strong>os</strong> de trabalho decorrid<strong>os</strong>, surgiu-n<strong>os</strong> como muito premente aideia de abandonar o que havíam<strong>os</strong> feito e recomeçar do zero. Uma tesemonográfica sobre um autor, quem sabe? Parám<strong>os</strong>, pois, durante vári<strong>os</strong>meses, e retomám<strong>os</strong> o trabalho de docência, convict<strong>os</strong> de que outra hipótesede tese surgiria. No entanto, de ca<strong>da</strong> vez que pensávam<strong>os</strong> no assunto, oteim<strong>os</strong>o desejo de continuar o que iniciáram<strong>os</strong> sobrepunha-se à vontade decomeçar novo trabalho. Resolvem<strong>os</strong> deixar correr o tempo, pois receávam<strong>os</strong>que o desgaste dispendido durante três an<strong>os</strong> f<strong>os</strong>se o principal factor quealimentava a n<strong>os</strong>sa insistência. Contudo, cerca de dois an<strong>os</strong> após terabandonado o trabalho, deparám<strong>os</strong>, quando procurávam<strong>os</strong> actualizarconheciment<strong>os</strong>, com alguns text<strong>os</strong> sobre a Expansive Poetry n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong>Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América.A leitura de Timothy Steele, Kevin Walzer, Frederick Feirstein,Frederick Turner, Dana Gioia e outr<strong>os</strong> entusiasmou-n<strong>os</strong>, primeiramente,pelo facto de ter surgido, n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta,um movimento de poesia com text<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores d<strong>os</strong> seus poetas, <strong>os</strong> quaistanto se enquadravam na categoria de académic<strong>os</strong> e intelectuais comoagregavam poetas surgid<strong>os</strong> do «na<strong>da</strong> oculto» e «subterrâneo» 5 . Mais ain<strong>da</strong>n<strong>os</strong> interessou o facto de <strong>os</strong> seus text<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores demarcarem aindividuali<strong>da</strong>de e independência <strong>da</strong> Expansive Poetry em relação a<strong>os</strong>moviment<strong>os</strong> do P<strong>os</strong>tmodernism e, em parte, do New Formalism, bem como4 Cf. Anexo.12


o facto de arvorarem como estan<strong>da</strong>rte a narrativi<strong>da</strong>de na poesia, alia<strong>da</strong> auma liber<strong>da</strong>de modelar que implicasse escolhas diversas, múltiplas e, porvezes, coexistentes no poema, co-relacionando model<strong>os</strong> formais e temátic<strong>os</strong>numa alternância aparentemente paradoxal mas oriun<strong>da</strong> de uma lógica <strong>da</strong>criação ficcional narrativa no texto lírico.Perante o contacto com a Expansive Poetry, não pudém<strong>os</strong> deixar derepensar a problemática que n<strong>os</strong> havia conduzido ao início do n<strong>os</strong>sotrabalho de tese sobre a poesia portuguesa mais recente, e reflectim<strong>os</strong> sobreas progressivas afirmações <strong>da</strong> teoria enquanto descrição, sobre amarginali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prática literária como um d<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> sualegitimi<strong>da</strong>de e ain<strong>da</strong> sobre o comparativismo como prática substitutiva <strong>da</strong>teoria, como corolário <strong>da</strong>s primeiras. Procurám<strong>os</strong>, pois, deixar-n<strong>os</strong> guiarpela presença orientadora do conceito de techné, centrando-n<strong>os</strong> no fazerconcreto e, portanto, n<strong>os</strong> mod<strong>os</strong>, mei<strong>os</strong>, procediment<strong>os</strong> e process<strong>os</strong>específic<strong>os</strong> desse fazer. 6Voltám<strong>os</strong>, também, a reflectir sobre a pertinência <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>deno mundo global no qual se inscreve a poesia hodierna, e voltám<strong>os</strong> ajulgar p<strong>os</strong>sível, embora com a delineação de nova metodologia e um diversoaproveitamento estratégico, uma leitura do n<strong>os</strong>so passado e extenso trabalhode catalogação <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> edição de livr<strong>os</strong> de poesia portuguesaentre 1990 e 1995. As n<strong>os</strong>sas hipóteses de trabalho sobe o corpusinventariado, repensa<strong>da</strong>s, centrar-se-iam, agora, na presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de no poema como factor determinante <strong>da</strong> selecção de text<strong>os</strong> e<strong>da</strong> aproximação e confronto de alguns autores do actual cânone português,com alguns exempl<strong>os</strong> pontuais de autores emergentes, e com uma5 Referimo-n<strong>os</strong> ao facto de autores antes considerad<strong>os</strong> secundári<strong>os</strong> pela crítica americanaestarem presentes, lado a lado com autores considerad<strong>os</strong> e divulgad<strong>os</strong>, nas antologias queforam edita<strong>da</strong>s pel<strong>os</strong> poetas que lideravam a Expansive Poetry.6 João Barrento, em «A minha carta ao mundo», in «JL» de 11 de Janeiro de 2003, releva asartes como algo que se «faz» e «vive», e não que se considera no sentido de algo elevado.O facto de esta defesa <strong>da</strong> techné se encontrar num artigo de uma publicação literária13


aproximação <strong>da</strong> Expansive Poetry. Procuraríam<strong>os</strong> uma metodologia flexível- sem arreigamento rígido a correntes teóricas restritas - que n<strong>os</strong> conduzissea uma descrição <strong>da</strong> prática literária que pusesse em cena <strong>os</strong> poemas,num cenário português, com um toque pontual de voz off vin<strong>da</strong> docontinente americano.Numa primeira aproximação, procurám<strong>os</strong> detectar, no corpus depublicações de poesia portuguesa mais recente, poéticas nas quais <strong>os</strong>procediment<strong>os</strong> de retórica textual estivessem p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> ao serviço <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de, procurando ain<strong>da</strong> inquirir <strong>da</strong> coexistência de diversi<strong>da</strong>demodelar no poema, e concluir <strong>da</strong> sua hipotética relevância para acaracterização <strong>da</strong> poesia portuguesa finissecular. Numa segun<strong>da</strong>aproximação, intentám<strong>os</strong> interrogar a prática literária <strong>da</strong> poesia portuguesano sentido de averiguar se ela apresentaria, dissemina<strong>da</strong>s, realiza<strong>da</strong>sdispersa e individualmente, mesmo que sem a égide de um movimentoliterário organizado, algumas características textuais <strong>da</strong> produção d<strong>os</strong> poetasde um movimento que se autodefine como sendo de Expansive Poetry, n<strong>os</strong>Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América.Deste modo, reformulám<strong>os</strong> a n<strong>os</strong>sa questão inicial e a orientação dopercurso do n<strong>os</strong>so trabalho de tese que, assim, se transformou num percursode inquirição sobre a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s configurações <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de napoesia portuguesa mais recente, 7 objectivo este que se não desviou don<strong>os</strong>so g<strong>os</strong>to e <strong>da</strong>s n<strong>os</strong>sas preferências pessoais e que, julgam<strong>os</strong>, teráconduzido a algumas perguntas e hipóteses de resp<strong>os</strong>ta capazes de,eventualmente, contribuir para o pensar <strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa consciência social ecultural de leitores, inerentemente fazedores de poesia.jornalística m<strong>os</strong>tra a intenção de abertura a um público mais alargado que o meioacadémico.7 Adoptám<strong>os</strong> a expressão «mais recente» de modo a evitar uma limitação rígi<strong>da</strong>de baliza temporal, de modo a poderm<strong>os</strong> incluir referência a obras d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>80 ou do século vinte e um, necessárias à compreensão <strong>da</strong> literatura e do fazerliterário como dinâmica de imbricação <strong>os</strong>cilante e pendular.14


Da<strong>da</strong> uma noção do percurso e d<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> acompanharamna elaboração do presente trabalho, passam<strong>os</strong> então a apresentar aordenação d<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong> que o constituem, e que obedeceu a uma gra<strong>da</strong>çãoque parte <strong>da</strong> teoria para a prática literária, mas mantendo um cruzamentoentre a voz <strong>da</strong> teoria e a voz do poema.Assim, no Capítulo I, Poesia e Universo Teórico, procurám<strong>os</strong>apresentar uma panorâmica <strong>da</strong>s principais correntes teóricas do século vinte,centraliza<strong>da</strong>s no que respeita à poesia, mas com o intuito de m<strong>os</strong>trar amútua operacionali<strong>da</strong>de que entre text<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> e text<strong>os</strong> de poesia sepode detectar. No Capítulo II, Cânone, Pós-modernismo e Poesia, ain<strong>da</strong>com o mesmo intuito, mas numa perspectivação diacrónica, dem<strong>os</strong> relevo aoespaço <strong>da</strong> «voz teórica», presente n<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> poemas, e que podedimensionar uma poética paralela. No Capítulo III, Perplexi<strong>da</strong>des entreNarrativa e Poema, mantivemo-n<strong>os</strong> ain<strong>da</strong>, no início, dentro de um universoparcialmente teórico, no sentido de esclarecer alguns pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> a partird<strong>os</strong> quais fun<strong>da</strong>mentám<strong>os</strong> a n<strong>os</strong>sa abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema,tais como questões de narrativa, narrativi<strong>da</strong>de, romanesco e efabulação,na sua relação com a poesia.Segui<strong>da</strong>mente, no Capítulo IV, Representações e Subversões <strong>da</strong>Narrativi<strong>da</strong>de na Poesia, já num campo de contextualização <strong>da</strong> práticaliterária, considerám<strong>os</strong> algumas dimensões temáticas do poemarelaciona<strong>da</strong>s com o desejo de mu<strong>da</strong>nça e a narrativi<strong>da</strong>de. Ao longo docapítulo, tal como ao longo de todo o trabalho, considerám<strong>os</strong> sempre umaarticulação constante entre as práticas teórica, crítica e literária, emperspectivação interactiva. No Capítulo V, Expansive Poetry eNarrativi<strong>da</strong>de, achám<strong>os</strong> pertinente começar por abor<strong>da</strong>r, ain<strong>da</strong> quesucintamente, a New Narrative, o New Formalism e a Expansive Poetryn<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América, não com o intuito de proceder a estud<strong>os</strong>comparativ<strong>os</strong> mas antes porque n<strong>os</strong> pareceu que essas realizações - porquep<strong>os</strong>suidoras de text<strong>os</strong> teórico-crític<strong>os</strong> e literári<strong>os</strong> paradigmátic<strong>os</strong> de um novo15


fazer <strong>da</strong> poesia narrativa que encontrava analogias e homologias na escritad<strong>os</strong> poetas portugueses - aju<strong>da</strong>riam a tornar mais evidente a clarificação deuma pertinência contextual <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa. NoCapítulo VI, Configurações <strong>da</strong> Narrativi<strong>da</strong>de na Poesia, a n<strong>os</strong>saaproximação gra<strong>da</strong>tiva do universo teórico para o universo <strong>da</strong> práticaliterária continuou a sua progressão, abor<strong>da</strong>ndo agora a detecção eaclaramento do estatuto ficcional, temático e enunciativo d<strong>os</strong> poemasp<strong>os</strong>suidores de narrativi<strong>da</strong>de, procurando muito mais descreverocorrências dominantes do que sistematizar ou inferir tipologias.Finalmente, no Capítulo VII, Exempl<strong>os</strong> de Narrativi<strong>da</strong>de na PoesiaPortuguesa Mais Recente, procurám<strong>os</strong> <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de, suas temáticas e process<strong>os</strong> de enunciação na obra de setepoetas portugueses. O n<strong>os</strong>so critério de escolha - justificável, crem<strong>os</strong>,porque de poesia e literatura se trata - foi, sobretudo, o <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de n<strong>os</strong> poemas, aliado ao de uma preferência pessoal, a que nã<strong>os</strong>erá estranho, também, um certo arreigamento à terra onde nascem<strong>os</strong>, o quejustificará, provavelmente, que três de entre <strong>os</strong> poetas escolhid<strong>os</strong> sejammadeirenses. Assim, na poesia portuguesa mais recente, e a títulomeramente exemplar, escolhem<strong>os</strong> abor<strong>da</strong>r a narrativi<strong>da</strong>de na obra d<strong>os</strong>poetas Vasco Graça Moura, Nuno Júdice, João Miguel FernandesJorge, Al Berto, J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino e J<strong>os</strong>éTolentino Mendonça, estes três últim<strong>os</strong> madeirenses.O Anexo, que apresentam<strong>os</strong> como apêndice final, assume nestetrabalho uma função simplesmente documental e comprovativa do trabalhode pesquisa preliminar e respectivas conclusões, apresenta<strong>da</strong>s em gráfic<strong>os</strong>.16


CAPÍTULO I - A POESIA E O UNIVERSO TEÓRICO1. POESIA E TEORIAUma <strong>da</strong>s questões que n<strong>os</strong> preocupou, à parti<strong>da</strong>, neste trabalho, foi a<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de assumir a imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de definição e estabelecimentode fronteiras precisas para concepções de literatura ou de poesia,imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de essa patente nas dificul<strong>da</strong>des com que se deparam teóric<strong>os</strong>ou crític<strong>os</strong> ao tentar balizar, para esses conceit<strong>os</strong>, margens de actuaçãodefiníveis e consistentes, de modo a que eles pudessem ser articulad<strong>os</strong> coma reali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e com a sua integração na complexatemporali<strong>da</strong>de do fenómeno literário. Pareceu-n<strong>os</strong>, pois, que uma atitude dereflexão teórica poderia, ou deveria, ser preteri<strong>da</strong>, embora não ignora<strong>da</strong>, emfavor de uma atitude de reconhecimento face à literatura, através <strong>da</strong>inquirição d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e do seu próprio dizer.Ao abor<strong>da</strong>r a problemática <strong>da</strong> definição do campo d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>literári<strong>os</strong>, em Fiction et Diction, 8 Gérard Genette admite que poderia terintitulado o seu livro «Qu´est-ce que la littérature?» se não soubesse deantemão ser imp<strong>os</strong>sível encontrar resp<strong>os</strong>ta para tal pergunta, o que o leva apreferir a interrogação «Quand est-ce de la littérature?» que n<strong>os</strong> remete parauma dimensão de identificação e de reconhecimento que, aliás, não estáisenta <strong>da</strong> dimensão espacio-temporal que acima referim<strong>os</strong>. Responder àfatídica «pergunta sem resp<strong>os</strong>ta» implica, pois, em primeiro lugar, a17


aceitação de uma imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de definição e o desenvolvimento decapaci<strong>da</strong>des de identificação e reconhecimento que conduziriam a essaresp<strong>os</strong>ta.A procura <strong>da</strong> identificação e do reconhecimento, na problemática <strong>da</strong>tentativa de definição <strong>da</strong> poesia, tem-se centralizado, ao longo d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>,predominantemente, em torno de dois parâmetr<strong>os</strong>: uma vertente queconsidera a poesia como arte <strong>da</strong> linguagem, vin<strong>da</strong> de uma herança clássica,de que é exemplo p<strong>os</strong>sível o Abbregé de l´art poétique françois, de Ronsard,e uma vertente que a encara como expressão do sentir, de herançaromântica, de que poderá ser exemplo L´Art Romantique, de Baudelaire. Asflutuações de parâmetr<strong>os</strong> assentes na racionali<strong>da</strong>de ou na sensibili<strong>da</strong>de, natentativa de definição ou de descrição <strong>da</strong> essenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia,atravessaram o tempo e chegaram ao século vinte, presentes tanto n<strong>os</strong>discurs<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> como n<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> e, mesmo, no própriodiscurso <strong>da</strong> poesia. É este último aspecto que mais n<strong>os</strong> interessa salientarneste trabalho, justamente porque articula a teoria e a prática, a arte e <strong>os</strong>entir, a arte do trabalho estético com a linguagem e o sentirtransformacional <strong>da</strong> imaginação que constrói a ficção. Já Aristóteles, naPoética 9 , expressava a dificul<strong>da</strong>de em optar por uma vertente <strong>da</strong> arte ou poruma vertente do ser, ao ponderar a eventuali<strong>da</strong>de de uma ser considera<strong>da</strong>impeditiva <strong>da</strong> outra, no reconhecimento <strong>da</strong> poesia:[...] se alguém compuser em verso um tratado de Medicinaou de Física, esse será vulgarmente chamado `poeta´: na ver<strong>da</strong>de,porém, na<strong>da</strong> há de comum entre Homero e Empédocles, a não sera metrificação: aquele merece o nome de `poeta´, e este, o de`fisiólogo´, mais que o de poeta. Pelo mesmo motivo, se alguémfizer obra de imitação, ain<strong>da</strong> que misture vers<strong>os</strong> de to<strong>da</strong>s asespécies, como o fez Querémon no Centauro, que é uma rapsódia8 [1991:15]9 [ed. ut. 1990: 104]18


teci<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> a casta de metr<strong>os</strong>, nem por isso se lhe deve recusar onome de `poeta´.Quando se trata de identificar o que é poesia, a dificul<strong>da</strong>de em separaro «sentir» <strong>da</strong> «arte de dizer o sentir» manifesta-se ain<strong>da</strong> no século vinte naobra de muit<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> quais citam<strong>os</strong>, a título exemplificativo, R. T.Jones, em Studying Poetry, 10 quando se refere à problemática <strong>da</strong> definiçãode poesia e enfatiza a importância do seu reconhecimento:It seams best not to try to define it [...] to call something apoem is to attribute a value and an importance to it. Though I offer nodefinition of poetry, I hope to show it can be recognised. 11Inúmer<strong>os</strong> são também <strong>os</strong> poetas que transmitiram na sua poesia aperene <strong>os</strong>cilação entre a razão e o sentimento, perante a perplexi<strong>da</strong>de dedizer a essência <strong>da</strong> poesia, o ser do poema. Citam<strong>os</strong>, a título de exemplo <strong>da</strong><strong>os</strong>cilação referi<strong>da</strong>, e sem outro critério que o do quase acaso <strong>da</strong>s n<strong>os</strong>saspreferências pessoais, dois poetas que referem em muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> seus poemas opoder iniciático e encantatório <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> palavra como configuradora deunivers<strong>os</strong> poétic<strong>os</strong>. Primeiramente, apresentam<strong>os</strong> alguns vers<strong>os</strong> de HerbertoHelder: 12A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavrasurpreendi<strong>da</strong> para ca<strong>da</strong> coisa: nobreza, um supremoetc.<strong>da</strong>s vozes ---------------------------------------------------------------10 [1986: 5]11 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.12 [2001:105]19


Transcrevem<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, um poema de Manuel Alegre 13 no qual oexcesso metalinguístico de autodenúncia do trabalho com a linguagemacaba por ser subvertido e ultrapassado pela abertura <strong>da</strong> vivência que sedesprende do poema através, por exemplo, <strong>da</strong> personificação, <strong>da</strong> animizaçãoe <strong>da</strong> metáfora que acompanham duplamente a própria pr<strong>os</strong>ódia do poema:INVENÇÃO DE UMA CIDADECoimbra era um puro aconteceruma vivência de dentro um exercícioum jogo de metáforas e sintaxesó corp<strong>os</strong> cintilantes diante d<strong>os</strong> espelh<strong>os</strong>cabel<strong>os</strong> loir<strong>os</strong> sobre <strong>os</strong> ombr<strong>os</strong>: ci<strong>da</strong>depor n<strong>os</strong>sas mã<strong>os</strong> perdi<strong>da</strong> e reinventa<strong>da</strong>.Por fim era um rumor de poesiauma frase uma pr<strong>os</strong>ódia uma palavra.E dessa re<strong>da</strong>cção é que nascia.Procurarem<strong>os</strong>, pois, ao longo do n<strong>os</strong>so trabalho, encarar a poesiacomo leitores-poetas que fôssem<strong>os</strong>, misturando razão e sentimento naassumpção <strong>da</strong> sua inseparabili<strong>da</strong>de e na tentativa de relevar umametalinguagem poética, de modo a ensaiarm<strong>os</strong> suplantar as dificul<strong>da</strong>desgera<strong>da</strong>s pela abstracção de um termo como poesia na sua relação com arealização concreta que é o poema. Interessa-n<strong>os</strong> o reconhecimento, comopoesia, como poemas, de text<strong>os</strong> publicad<strong>os</strong> num espaço delimitado e numtempo delimitad<strong>os</strong> com flexibili<strong>da</strong>de - o Portugal que antecede e sucede ofinal do milénio -, de modo a verificar, através <strong>da</strong> sua descrição, amanutenção de cânones antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong>, e existência de model<strong>os</strong>relevantes pelo seu fazer hodierno. Dentro destes, auscultarem<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong>13 [1995:23]20


particulares que, pela sua progressão de uso, apontem para uma sua p<strong>os</strong>sívele hipotética projecção no futuro, centrando o n<strong>os</strong>so trabalho no estudo deum destes que será, como adiante verificarem<strong>os</strong>, o uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de napoesia.Começarem<strong>os</strong> por abor<strong>da</strong>r o paradoxo que, crem<strong>os</strong>, atravessou ateoria <strong>da</strong> literatura ou <strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> do século vinte, sobretudo nascorrentes de tendência exclusivista até a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, paradoxo esseconstruído em volta <strong>da</strong> imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de definição de poesia e <strong>da</strong>simultânea incapaci<strong>da</strong>de para renunciar a tentar essa definição.Partirem<strong>os</strong>, pois, de uma reflexão sobre p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> acerca doque é a poesia e, concomitantemente, reflectirem<strong>os</strong> sobre aquilo que <strong>os</strong>poetas, n<strong>os</strong> seus poemas, disseram que era poesia, num determinadolugar, num determinado tempo. Contemplarem<strong>os</strong>, em relação a eles, doisaspect<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>mentais: por um lado, o que <strong>os</strong> poetas disseram que erapoesia através do estatuto ficcional e enunciativo d<strong>os</strong> seus poemas erespectiva ligação com cânones antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong> e, por outro lado, o que<strong>os</strong> poetas disseram que era para eles a poesia, através do uso demetalinguagem n<strong>os</strong> seus poemas.Tentarem<strong>os</strong>, p<strong>os</strong>teriormente, responder, não à pergunta «O que é apoesia?» mas às perguntas «Como se ficcionou e enunciou a poesia n<strong>os</strong>text<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poetas portugueses mais recentes?», «Que configuração outransformação de cânones antig<strong>os</strong> ou modern<strong>os</strong> neles se encontravam?»,«Qual a escolha do parâmetro de realização mais pertinente, a detectar emarticulação com a mundivivência sócio-política, cultural e literária, e adesenvolver?». Para tal, não desprezarem<strong>os</strong> <strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> queao longo do século vinte tentaram definir a poesia mas relevarem<strong>os</strong> avalorização <strong>da</strong> atitude empírica como ponto de parti<strong>da</strong> para identificação devectores constantes e de variáveis, e subsequente hipótese projectiva derelevância no fenómeno literário, numa expressão parcial que constitui o21


corpus delimitado para a fase preliminar empírica deste trabalho, ou seja, apoesia publica<strong>da</strong> em Portugal de 1990 a 1995. 14Lembram<strong>os</strong> aqui que terem<strong>os</strong> em conta a aconvencionali<strong>da</strong>de deconstantes que transcendem <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de género ou modo porqueimplicam vivências e existências transhistóricas, p<strong>os</strong>ição esta fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>na perspectivação d<strong>os</strong> géner<strong>os</strong> e mod<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> exp<strong>os</strong>ta por Aguiar e Silvana sua Teoria <strong>da</strong> Literatura 15 e <strong>da</strong> qual relevarem<strong>os</strong> a seguinte afirmação:[...] como qualquer outra construção teorética, o modoliterário representa uma enti<strong>da</strong>de elabora<strong>da</strong> por via hipotéticodedutivaa partir de um conjunto de <strong>da</strong>d<strong>os</strong> observacionais e com oobjecto de descrever e explicar, com coerência global e rigorlógico, uma multiplici<strong>da</strong>de de fenómen<strong>os</strong> com existência empírica,ou seja, a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s obras literárias facticamenteexistentes.Ao mencionar a aconvencionali<strong>da</strong>de de constantes que transcendem oconceito de género porque implicam vivências e existências transhistóricaspretendem<strong>os</strong> salientar o n<strong>os</strong>so intento de valorização de uma perspectivateoricamente não modelar na n<strong>os</strong>sa abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia. Do mesmomodo, considerarem<strong>os</strong> aqui autores cujo discurso é essencialmente teórico,integrad<strong>os</strong> em correntes como o estruturalismo, a semiótica, a estética <strong>da</strong>recepção, a desconstrução ou o empirismo mas sem a intenção de <strong>os</strong>espartilhar em sistemas. Interessam-n<strong>os</strong> esses autores na medi<strong>da</strong> em que <strong>os</strong>seus text<strong>os</strong> n<strong>os</strong> parecem exemplificativ<strong>os</strong> de determina<strong>da</strong>s tendênciasteóricas que podem contribuir, em correlação com práticas não teóricas, parademonstrar a própria falibili<strong>da</strong>de de um qualquer sistema teórico quando setrata de <strong>da</strong>r resp<strong>os</strong>ta à mobili<strong>da</strong>de do conceito de poesia e <strong>da</strong>s suasrealizações.14 Resultad<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong> no Anexo.15 [1982: 382]22


A não fiabili<strong>da</strong>de torna-se ain<strong>da</strong> mais evidente quando, como é o casodo n<strong>os</strong>so objectivo, se trata de descrever um determinado aspecto doestatuto ficcional e enunciativo <strong>da</strong> poesia, num <strong>da</strong>do tempo, num <strong>da</strong>do país,articulando, portanto, constantemente, a sincronia com a diacronia, 16descrição para a qual sentim<strong>os</strong> a necessi<strong>da</strong>de de recorrer a um estudo maisempírico e pragmático como ponto de parti<strong>da</strong> para reflexã<strong>os</strong>ubsequente. Procurarem<strong>os</strong>, pois, manter-n<strong>os</strong> numa precária masgratificante atitude pendular, entre «o leitor que só quer ler» e o «leitor quequer vistoriar», segundo o dizer de Joaquim Manuel Magalhães, em notaintrodutória a Consequência do Lugar, 17 a propósito <strong>da</strong> sua referência aalguns d<strong>os</strong> poemas publicad<strong>os</strong> que assumem autonomia em relação agravuras que em edição anterior <strong>os</strong> acompanhavam:Estes assunt<strong>os</strong> são secundári<strong>os</strong> para o leitor ideal, aqueleque só quer ler e partir para o que é dele com essa leitura. Dequalquer forma ficam estes limites para outr<strong>os</strong> leitores, queprocurarão o inútil: vistoriar o que eu acolho, reacolho ou despeço.A poesia do final do milénio, tal como to<strong>da</strong> a poesia ou literatura emgeral, vive num mundo constituído por moviment<strong>os</strong> de permanente atracçãoe repúdio, manutenção e alteração, no que respeita a regras e model<strong>os</strong>. É ummundo simultaneamente especular e estranho, onde o próprio modo deutilização de regras e model<strong>os</strong>, através de um fazer outro, gera a suaalteração, recuperação, reinvenção ou reintegração, articulandoconstantemente passado, presente e futuro, o que pressupõe a permanenteconsideração de regras já existentes, mesmo que pela sua aparente negação.Como tal, ao trabalhar, primeiramente, um corpus que recobre a quase16 Em O Labirinto <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong>de, no último parágrafo do capítulo «Da Literatura comointerpretação de Portugal», Eduardo Lourenço afirma: «Aceitemo-n<strong>os</strong> com a cargainteira do n<strong>os</strong>so passado que de qualquer modo continuará a navegar dentro denós». [1988: 117]17 [2001:8]23


totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s publicações de poesia portuguesa em primeira edição, noPortugal de 1990 a 1995, foi-n<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sibilitado contactar materialmente com<strong>os</strong> text<strong>os</strong> e, embora empiricamente e com certa instrumentali<strong>da</strong>deestruturalista, motiva<strong>da</strong> pela abrangência do corpus, relevar parâmetr<strong>os</strong>definidores do estatuto ficcional e, sobretudo, enunciativo, bem como a suaevolução de uso ao longo desses an<strong>os</strong>.Embrenhámo-n<strong>os</strong>, pois, na totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s edições, para poderm<strong>os</strong>sentir na pele não só <strong>os</strong> autores representativ<strong>os</strong> do cânone hodierno,evidenciad<strong>os</strong> pelas atenção <strong>da</strong>s grandes editoras, d<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> e d<strong>os</strong>académic<strong>os</strong>, mas também a restante produção poética, como Maria AlziraSeixo, em «O escritor desconhecido», 18 evidencia ser urgente considerar:É que a história literária não se faz com grandes nomes, queencabeçam de vez em quando, e irregularmente, de acordo com <strong>os</strong>sistemas em jogo em ca<strong>da</strong> época, as séries literárias; essas sériesconstituem-se, no seu conjunto, de nomes abun<strong>da</strong>ntes men<strong>os</strong>conhecid<strong>os</strong> ou mesmo anódin<strong>os</strong>, a que <strong>da</strong>ntes se <strong>da</strong>va o nome deescritores `menores´, mas que, afinal, constituem a `base comum´de onde se salienta a figura genial que <strong>os</strong> acas<strong>os</strong> <strong>da</strong> valoraçãocrítica ou <strong>da</strong> irregular eleição do g<strong>os</strong>to fizeram emergir, `o escritormuito conhecido´: «notorious», digam<strong>os</strong> mesmo, nas váriasacepções do termo.[...] Que o escritor desconhecido escreva com g<strong>os</strong>to,necessi<strong>da</strong>de manifesta de expressão, insistência e propósito de serlido e de comunicar [...] é que me espanta e maravilha, e me dáesperança no porvir.Ao considerar <strong>os</strong> escritores «men<strong>os</strong> conhecid<strong>os</strong> ou mesmo anódin<strong>os</strong>»,o n<strong>os</strong>so estudo <strong>da</strong> quase totali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> de poesia portuguesapublicad<strong>os</strong> em primeira edição de 1990 a 1995 permitiu-n<strong>os</strong> confirmar arelevância de parâmetr<strong>os</strong> no fazer <strong>da</strong> poesia cujo uso, sem que questões24


valorativas interviessem, só por si não diferenciava <strong>os</strong> poetas consagrad<strong>os</strong>d<strong>os</strong> «subterrâne<strong>os</strong>». Este estudo viria a evidenciar, entre outr<strong>os</strong>, algunsparâmetr<strong>os</strong> temático-modelares que considerám<strong>os</strong> relevantes: o uso <strong>da</strong>metalinguagem, o uso modelar do verso, o uso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a, a presença deintertextuali<strong>da</strong>de explícita, a explicitação do sujeito lírico e a presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de. Esta foi por nós escolhi<strong>da</strong> para desenvolvimento e estudomais minuci<strong>os</strong>o, por razões que a seu tempo abor<strong>da</strong>rem<strong>os</strong>.Ao n<strong>os</strong>so trabalho presidirá, pois, como já referido na Introdução, aintencionali<strong>da</strong>de do desejo de uma função alegórica, enraiza<strong>da</strong> na relaçãoentre o pensar a poesia e as recorrências de realização textual que, num <strong>da</strong>dolugar, num <strong>da</strong>do tempo, se tornam modelares. Crem<strong>os</strong> que um estudo <strong>da</strong>enunciação ficcional <strong>da</strong> poesia, numa dimensão em que a palavra <strong>da</strong>própria poesia é considera<strong>da</strong>, também, como discurso interpretativo, críticoe, até, teórico, pode responder de modo mais simples e eficaz que odiscurso teórico às n<strong>os</strong>sas perguntas fulcrais: «Como se ficciona e enunciaa poesia portuguesa mais recente?», «Que configuração ou transformação decânones antig<strong>os</strong> ou modern<strong>os</strong> nela se encontram?», «Qual a plausabili<strong>da</strong>de<strong>da</strong> escolha <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia como parâmetro derealização mais pertinente, em articulação com a mundivivência sócio--política, cultural e literária?». «De que modo a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de nopoema preserva ou recria o antigo e o moderno, e porquê?».18 In «JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias» de 25 de Ag<strong>os</strong>to de 1999.25


2. POSICIONAMENTOS TEÓRICOS VERSUS POESIAPassam<strong>os</strong> a expor alguns p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> que contribuíram,não sem passagem pelo crivo de uma crítica preliminar, como instrument<strong>os</strong>para a n<strong>os</strong>sa aproximação do texto literário, neste caso a poesia.Utilizám<strong>os</strong> a teoria à medi<strong>da</strong> e naquilo que <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> no-lopediam, pois parece-n<strong>os</strong> ser essa, hoje, a utili<strong>da</strong>de prática <strong>da</strong> teoria literária,ou seja, tal como o texto crítico, prover o investigador de p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des deperspectivação de leitura do texto de modo a poder descrevê-lo em múltiplase interconexas dimensões que p<strong>os</strong>sam <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> sua plurali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> suainstabili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> sua diversificação e do modo como fala de si mesmo, dohomem e do mundo. Privilegiám<strong>os</strong>, finalmente uma para-teórica, metafóricae poética «Troca de livr<strong>os</strong>», 19 no dizer de Nuno Júdice:Um dia, abrindo o Livro, li as últimas páginascomo se f<strong>os</strong>sem as primeiras: as páginas de terra com<strong>os</strong>e f<strong>os</strong>sem as de água, e as suas linhas brancas com<strong>os</strong>e trouxessem a mancha vermelha de um sanguede sílabas rasga<strong>da</strong>s. Pousei esse livro na mesa abstractado Crepúsculo. Ouvi a música <strong>da</strong>s nuvens que traziamo sinal d<strong>os</strong> Anj<strong>os</strong>. Pedi-te, então, que me emprestasseso teu livro, embrulhado num saco de plástico paraque a mesa do café não o sujasse; e contaste-meas suas viagens, até que o voltaste a encontrar, paraque o abríssem<strong>os</strong> nessa tarde, no caféonde a noite já entrava pel<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong> epelas conversas. E comparei <strong>os</strong> dois livr<strong>os</strong>: o livroque me deste e o Livro por abrir. Eramiguais. Os ded<strong>os</strong> do fogo estavam impress<strong>os</strong> nas suascapas de cinza. Um deus mais pesado do que a noite19 [2001:142]26


pousara no princípio e no fim, esvaziando-<strong>os</strong>de palavras. Tu própria te calavas. As conversas, nessecafé, iam bater n<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong> por onde a noite entrava. Trocám<strong>os</strong> delivr<strong>os</strong>; e de na<strong>da</strong> valeu saber queum e outro Livro eram iguais, que o mesmo deus<strong>os</strong> habitava, e que um incêndio de silênci<strong>os</strong> devastavao tampo <strong>da</strong> mesa onde <strong>os</strong> deixám<strong>os</strong>, esquecid<strong>os</strong>.2.1. POESIA E POETICIDADEPrivilegiar a linguagem quanto à explicação do fenómeno literário emgeral, e à poesia em particular, foi a directriz adopta<strong>da</strong> pelo estruturalismo.Vista por uma perspectiva imanentista e funcional, a detecção <strong>da</strong>especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem como constitutiva do literário tinha em vista asistematização e classificação tanto d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> como <strong>da</strong> suaespecifici<strong>da</strong>de e do seu enquadramento em sistemas. Deste p<strong>os</strong>icionamentoresultou, durante larg<strong>os</strong> an<strong>os</strong> do n<strong>os</strong>so século, o facto de muit<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong>encararem o literário como um desvio. Surgiram, assim, conceit<strong>os</strong> como ode literarie<strong>da</strong>de e o de poetici<strong>da</strong>de, face a<strong>os</strong> quais o não literário funcionariacomo uma op<strong>os</strong>ição ou um grau zero. A poesia, por conseguinte, eratambém abor<strong>da</strong><strong>da</strong> como infracção ou desvio a uma norma que seria a pr<strong>os</strong>a,tal como a poesia em pr<strong>os</strong>a ou a pr<strong>os</strong>a poética eram considera<strong>da</strong>s grausintermédi<strong>os</strong> de intersecção, integrad<strong>os</strong> no bipolarismo de um sistemabinário de raiz formalista.Um d<strong>os</strong> autores que, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, segue o p<strong>os</strong>icionamentoreferido é Jean Cohen. Mais radical em A Estrutura <strong>da</strong> Linguagem Poética,onde afirma que «a poesia se opõe à pr<strong>os</strong>a» por características existentes nalinguagem, «tanto a nível fónico como a nível semântico» 20 ], demonstrandooatravés de traç<strong>os</strong> de pertinência, Cohen tenta p<strong>os</strong>teriormente ultrapassar27


este radicalismo em A plenitude <strong>da</strong> linguagem (teoria <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de), ondeconsidera que «a linguagem poética não cria a sua própria poetici<strong>da</strong>de, masa retira de um mundo que descreve» e, ain<strong>da</strong>, que a teoria que propõe sesituará «na antiga tradição <strong>da</strong> mimese». 21 No entanto, defende o «princípio<strong>da</strong> negação implícita» que dicotomiza «consciência poética» e «consciênciapr<strong>os</strong>aica». 22Parece-n<strong>os</strong> ver nestas <strong>os</strong>cilações do percurso de Cohen um reflexo <strong>da</strong><strong>os</strong>cilação aristotélica entre o ser e o sentir, de que não consegue oestruturalismo desapegar-se por completo, originando contradições queacabariam por ser o fun<strong>da</strong>mento do início do fim do seu reinado. É hojeevidente que o «estar em verso» ou o «estar em pr<strong>os</strong>a» apenas afectam oestatuto enunciativo do poema e não o seu estatuto de ficcionali<strong>da</strong>depoética. A miscigenação genológica é disso exemplo em text<strong>os</strong> que, pel<strong>os</strong>eu estatuto enunciativo poderiam ser recebid<strong>os</strong> como poemas mas cujoestatuto de ficcionali<strong>da</strong>de narrativa <strong>os</strong> remetem para uma dominantegenológica distinta, como é o caso <strong>da</strong>s últim<strong>os</strong> parágraf<strong>os</strong> do capítulo III doromance Finisterra, 23 de Carl<strong>os</strong> de Oliveira:Abana a cabeça, lentamente.Repara bem no verão. Que pode uma aranhacontra o calor, a humi<strong>da</strong>de, senão inchar?E as aves brancas?É segredo. Se elas te quiserem dizer... Masduvido.E tu? Dizes ou não?Talvez um dia.20 [1966: 17]21 [1979: 31]22 [1979:64 e 252]23 [1981:15]Na edição utiliza<strong>da</strong>, a 4ª edição, a própria indicação <strong>da</strong> palavra «romance» indiciauma intencionali<strong>da</strong>de por parte do autor que atesta uma consciência demiscigenação genológica.28


Do p<strong>os</strong>icionamento teórico exemplificado pelo p<strong>os</strong>icionamento deJean Cohen interessa-n<strong>os</strong>, pois, reter para o n<strong>os</strong>so trabalho a metodologia <strong>da</strong>sistematização binária de presença/ausência, não para dela inferir umaclassificação d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> de poesia do n<strong>os</strong>so corpus mas sim comometodologia inicial que permita, <strong>da</strong><strong>da</strong> a extensão deste, averiguar de umaexistência básica do uso de determinad<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> na práticaliterária, e onde, como, quando e quanto se realizam, de modo a poderm<strong>os</strong>pensar com maior clareza um ponto de parti<strong>da</strong> que p<strong>os</strong>sa conduzir a umaprimeira descrição de especifici<strong>da</strong>des que confrontarem<strong>os</strong> com <strong>os</strong>poemas a fim de <strong>os</strong> interrogar.2.2.POESIA E LINGUÍSTICAAin<strong>da</strong> num âmbito estruturalista, teóric<strong>os</strong> houve que, ao p<strong>os</strong>icionar aquestão <strong>da</strong> literarie<strong>da</strong>de, defenderam que a correspondência imediatapalavra-objecto adquiria no texto literário, e com maior ênfase na poesia,uma correlação diferente, não mecânica e não automatiza<strong>da</strong>. RomanJakobson, n<strong>os</strong> Essais de Linguistique Générale, equaciona o problema <strong>da</strong>srelações entre a poética e a linguística considerando que «l´objet de lapoétique, c´est, avant tout, de répondre à la question: Qu´est-ce Qui fait d´unmesage verbal un oeuvre d´art?». 24A partir do enraizamento linguístico desta questão podem<strong>os</strong>considerar que, para Jakobson, <strong>os</strong> traç<strong>os</strong> poétic<strong>os</strong> advêm <strong>da</strong> ciência <strong>da</strong>linguagem mas também <strong>da</strong> semiologia enquanto teoria d<strong>os</strong> sign<strong>os</strong>. Apoética, tal como a linguística, poderia ser considera<strong>da</strong> como uma super-24 [1963: I – 209]29


estrutura construí<strong>da</strong> sobre uma série de descrições sincrónicas sucessivas.Esta visão <strong>da</strong> poética irá ser p<strong>os</strong>teriormente remeti<strong>da</strong> para ump<strong>os</strong>icionamento mais redutor, quando Jakobson considera a função poéticacomo elemento distintivo e diferenciador <strong>da</strong> poesia, no seu «princípio deequivalência», a partir do qual define a reiteração como «proprie<strong>da</strong>deintrínseca e suficiente» 25 <strong>da</strong> poesia. Assim, a poesia não pertenceria apenasao domínio d<strong>os</strong> sons mas antes ao domínio <strong>da</strong> ligação evidencia<strong>da</strong> entre <strong>os</strong>om e o sentido.Em Seis lições sobre o som e o sentido, e partindo <strong>da</strong> função distintivad<strong>os</strong> sons, Jakobson alarga a distintivi<strong>da</strong>de à frase: «Os element<strong>os</strong> fónic<strong>os</strong>que caracterizam a frase delimitam-na, dividem-na e dão-lhe relevo,enquanto que <strong>os</strong> element<strong>os</strong> fónic<strong>os</strong> que caracterizam a palavra em si servemapenas para distinguir a significação <strong>da</strong>s palavras». 26 Também O. Brikdefende, em Ritmo e Sintaxe, que traç<strong>os</strong> secundári<strong>os</strong> como o som e o ritmoadquirem, para o que ele denomina «língua poética», uma significaçãomuito diversa, obedecendo o verso, portanto, por um lado, à sintaxepropriamente dita e, por outro lado, a uma «sintaxe rítmica». 27Michael Shapiro, em Dois paralogism<strong>os</strong> <strong>da</strong> Poética mantém a raizjakobsoniana, apesar <strong>da</strong> intenção crítica, pois parte de duas prop<strong>os</strong>içõesfun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> teoria linguística <strong>da</strong> linguagem poética de Jakobson: « 1) Éuma simetria matemática que enforma a estrutura poética; 2) O paralelismoé o esquema estrutural <strong>da</strong> poesia por excelência». 28 Destas prop<strong>os</strong>içõesconclui que uma adesão à noção matemática de simetria levaria a considerarque a estrutura <strong>da</strong> poesia seria «diferente in genere <strong>da</strong> estrutura que aincarna, a língua», e que <strong>os</strong> dois princípi<strong>os</strong> jakobsonian<strong>os</strong> retiram à poéticaestrutural a noção do «valor semiótico» que deveria ter «p<strong>os</strong>ição central». 2925 [1963: I – 220 e 241].26 [1977: 20]27 [1978: 23]28 [1981: 69]29 [1981: 69, 79, 90]30


Também Laurent Jenny, em O poético e o narrativo, e ao criticar ateoria de Jakobson, defende a activi<strong>da</strong>de essencial do poema como o«imaginar», como uma «aventura do sujeito», 30 salientando que tanto oprincípio metafórico como o princípio metonímico «se alimentammutuamente na construção do poema» e que a linguagem, no poema, nuncaé puramente funcional <strong>da</strong>do que«a sua temporali<strong>da</strong>de é a <strong>da</strong> frase, o seuespaço o do sentido.». 31Estes p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong>, que escolhem<strong>os</strong> como exempl<strong>os</strong> deuma corrente que pretende definir o poético como uma realização verbalop<strong>os</strong>ta a outr<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de conduta verbal, merecem a mesma crítica queaquela feita às op<strong>os</strong>ições reducionistas dicotómicas entre poesia e pr<strong>os</strong>a, nasen<strong>da</strong> de Jean Cohen, pois tanto Jakobson com a sua relação «som esentido», como Shapiro com a defesa do «valor semântico», ou L. Jennycom o seu «poema como imaginar», ou ain<strong>da</strong> Brik com a noção de«semântica particular», não p<strong>os</strong>tulam, afinal, a questão do valor articulad<strong>os</strong>incrónico-diacronicamente. Como afirma Miguel Angel Garrido Gallardoem La crisis de la literarie<strong>da</strong>d, 32 «La definición de literatura sigue sinprescindir de la referencia de valor». Acrescentaríam<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, umaperspectiva não teórica, assumi<strong>da</strong> já em finais do século XVIII, por Joubert,em Pensées, Essais, Maximes 33 :Pour qu´une expression soit belle, il faut qu´elle dise plusqu´il n´est nécessaire, en disant pourtant avec précision ce qu´ilfaut; qu´il y ait en abon<strong>da</strong>nce et économie; que l´étroit et le vaste,le peu et le beaucoup s´y confondent; qu´enfin le son soit bref et lesens infini.30 [1981: 102]31 [1981: 105]32 [1987: 46]33 [SEGHERS (org.), 1956: 200]31


D<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> de cariz linguístico que resumim<strong>os</strong>,reterem<strong>os</strong>, para o n<strong>os</strong>so trabalho, noções como, por exemplo, a dereiteração, a de sintaxe rítmica ou a de paralelismo como instrument<strong>os</strong> detrabalho para a aproximação de procediment<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> <strong>da</strong> práticapoética do n<strong>os</strong>so corpus, sobretudo no seu relacionamento com areutilização, a<strong>da</strong>ptação ou transgressão de model<strong>os</strong>.Reterem<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo estruturalismo àlinguística, relevância esta que nunca deixou, de um modo ou de outro, maisou men<strong>os</strong> explícita ou implicitamente, de estar presente em p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong>teóric<strong>os</strong> de subsequentes correntes teóricas, como adiante verem<strong>os</strong>, porquepoesia é, como to<strong>da</strong> a literatura, uma arte que tem como material alinguagem e é também através desta que adquire um estatuto ficcional eenunciativo mutável mas específico.2.3.POESIA E ESTÉTICAA partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta começa a esboçar-se a crise doimanentismo estruturalista que conduzirá a um afastamento <strong>da</strong> dominantelinguística como componente essencial do objecto <strong>da</strong> teoria literária. Umanecessi<strong>da</strong>de mais pragmática de relacionar o texto literário comcondicionantes contextuais e extratextuais levará a que o pensamento sobreo texto literário contemple realizações culturais e estéticas relaciona<strong>da</strong>s como acto de comunicação do texto literário e com a componente do imagináriodo seu receptor.Como sequência <strong>da</strong> contemplação, por parte d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, docontextualizar do texto literário e <strong>da</strong> abrangência, no seu estudo, do campo<strong>da</strong>s relações extratextuais, desenvolve-se uma abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia na qualo poema surge como uma <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de concretização <strong>da</strong>exteriorização do imaginário. O imaginário torna-se, por sua vez, factor32


polissémico no processo de transformação do mundo vivido em mundopoético, na esteira de p<strong>os</strong>ições já assumi<strong>da</strong>s por escritores, por exemplo, doinício do século XVII, como o demonstram as palavras de J. B. de Vico emExtraits sur la poésie 34 :L´imagination, les recevant des sens, combine et agrandit àl´excès les effets les plus visibles des apparences naturelles; elle enfait des images lumineuses, qui ébluissent par une illuminationsou<strong>da</strong>ine les esprits et, par la suite, excitent les sentiments humainspar l´éclair et les tonnerres de leurs merveilles.Esta ideia <strong>da</strong> interferência entre o real e o imaginário comocaracterização explicativa do poético é retoma<strong>da</strong> por Maurice-Jean Lefèbveem Estrutura do discurso <strong>da</strong> poesia e <strong>da</strong> narrativa. Ain<strong>da</strong> bastante apegadoas estruturalismo, como o próprio título <strong>da</strong> obra deixa entrever, Lefèbveparte do princípio de que o acto de imaginar pressupõe, por parte doimaginador, uma certa distorção <strong>da</strong> percepção, distorção essa que faz actuarum mecanismo realizante-idealizante que constitui «a fascinação <strong>da</strong> própriaarte, e mais particularmente <strong>da</strong> literatura, e mais particularmente ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>obra literária.» 35Aparentando subtrair-se a um p<strong>os</strong>icionamento de raiz linguística,Lefèbve aponta uma hierarquização que pressupõe a particularização de umcódigo literário dentro do artístico e, dentro deste, a incidência na«linguagem» como factor caracteriza dor <strong>da</strong> literatura, o que, não deixa derevelar uma certa dependência <strong>da</strong> herança saussuriana, pois considera «oreal» como «o significante <strong>da</strong> linguagem e suas diversas combinaçõesobjectivas» e o «irreal» como «o significado, as conotações e evocaçõesderiva<strong>da</strong>s.» 3634[SEGHERS (org.), 1956: 162]35 [1980: 13]36 [1980: 13]33


Contudo, a par deste arreigamento de carácter predominantementelinguístico, admite já abertura para a pertinência <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> obra com omundo, ao definir a obra literária como «lugar de um duplo movimento: umprimeiro movimento que poderíam<strong>os</strong> dizer centrífugo e pelo qual ela se abreao mundo exterior e a<strong>os</strong> seus problemas, pondo-lhe a questão <strong>da</strong> sua`reali<strong>da</strong>de´; um outro movimento, agora centrípeto, que tende, pelocontrário, a fechar a obra sobre si mesma, a constituí-la como seu própriofim e seu próprio sentido, num esplêndido isolamento.» 37Ao pretender articular a perspectiva linguística com a perspectivaextra-linguística de uma mundivivência que ultrapassa a <strong>da</strong> próprialinguagem, Lefèbve acaba por remeter a caracterização do discurso literáriopara um desvio ao discurso quotidiano, deparando-se-n<strong>os</strong>, uma vez mais,uma op<strong>os</strong>ição dicotómica, exclusiva, de tipo redutor. No entanto, quandopretende definir a intencionali<strong>da</strong>de literária, tanto na narrativa como napoesia, separa «discurso» de «referente prático do discurso» através <strong>da</strong>«presentificação <strong>da</strong> imagem», o que funcionaria como uma abertura <strong>da</strong> obrapara a «reali<strong>da</strong>de estética.» 38A visão do referente como «experiência total» mediatiza<strong>da</strong> pelaabertura <strong>da</strong> imagem leva Lefèbve a remeter, por sua vez, a especifici<strong>da</strong>de dodiscurso <strong>da</strong> poesia para o facto de, na poesia, o referente ser, não só op<strong>os</strong>toao significado, mas também absorvido por ele, o que o conduz a renunciar àdistinção «poesia/pr<strong>os</strong>a» mas o reconduz a nova dicotomia binária deexclusão, ao defender a op<strong>os</strong>ição «discurso <strong>da</strong> poesia/discurso <strong>da</strong>narrativa. 39A p<strong>os</strong>ição de Maurice-Jean Lefèbve, ao conferir importância àimagem como ponte intermediária entre o domínio <strong>da</strong> literarie<strong>da</strong>de e odomínio <strong>da</strong> estética é exemplo de uma vertente teórica que, embora ain<strong>da</strong>37 [1980:14]38 1980: 150 a 161]39 [1980:162 a 168]34


apega<strong>da</strong> a componentes de reflexão linguística, admite que a «linguagempoética» é apenas uma <strong>da</strong>s componentes do «discurso <strong>da</strong> poesia», podendo acaracterização deste discurso envere<strong>da</strong>r por contextuali<strong>da</strong>des ouextratextuali<strong>da</strong>des.Outro exemplo do p<strong>os</strong>icionamento exp<strong>os</strong>to será o que assumiuGeoffrey Hartman em A voz <strong>da</strong> laçadeira, texto no qual considera que to<strong>da</strong>sas teorias <strong>da</strong> linguagem poética procuram explicar dois efeit<strong>os</strong>indissociáveis: o efeito <strong>da</strong> «distância estética», que remete para uma atitudede distanciamento, reflexão e abstracção em relação ao mundo e àmundivivência, e o efeito de «iconici<strong>da</strong>de», que remete para uma atitude deproximi<strong>da</strong>de com o concreto e a representação próxima <strong>da</strong> vivência.Aplicando estes dois efeit<strong>os</strong> à linguagem poética, ela encontraria a suaespecifici<strong>da</strong>de numa zona intermédia, a «zona <strong>da</strong> imaginação», 40 queconfigura, afinal, a arte poética na sua errância metonímica, e que LuísMiguel Nava, em Onde à Nudez, 41 poetica e metalinguisticamente define,num poema em no qual a extrema contenção linguística produz o efeitoartístico de uma imensa amplificação de sentid<strong>os</strong>:ARS POETICAO mar, no seu lugar pôr um relâmpago.Reflectindo também, por um lado, uma raiz linguística, e, por outrolado, encarando a poesia como efeito artístico, apresenta-se-n<strong>os</strong> aperspectiva assumi<strong>da</strong> por Iuri Lotman. Segundo ele, a poesia, tal como aliteratura em geral, é uma parte autonomizável de um sistema decomunicação estética. A «linguagem artística» constituir-se-ia, pois, à40 [1982: 31-44]41 [ed. ut. 2002:44]35


maneira <strong>da</strong>s línguas, de um modo secundário, mas com uma enfatização docarácter figurativo ou icónico.Em A estrutura do texto artístico Lotman considera que em arte, aocontrário do que acontece na língua natural, «aparece uma tendênciaconstante para formalizar <strong>os</strong> element<strong>os</strong> portadores de conteúdo, para <strong>os</strong>condensar, para <strong>os</strong> transformar em banali<strong>da</strong>des, para <strong>os</strong> fazer passartotalmente do domínio do conteúdo para o domínio convencional docódigo». 42 Assim, e sem abandonar um fundo estruturalista, considera que aespecifici<strong>da</strong>de do texto poético, como texto estético que é, provem do factode se assumir, simultaneamente, como «sistema de comunicação» e como«sistema modelizante».A ideia de que, subjacente à linguagem do texto artístico, existesempre um «modelo do mundo», representativa de uma visão idealizante <strong>da</strong>arte através <strong>da</strong> sua relação com a vivência objectal do sujeito e <strong>da</strong> suamundivivência tinhamo-la já encontrado ao ler L´Art Phil<strong>os</strong>ophique 43 deBaudelaire:Qu´est-ce que l´art pur suivant la conception moderne?C´est créer une magie suggestive contenant à la fois l´objet et lesujet, le monde extérieur à l´artiste et l´artiste lui-même.Pretendem<strong>os</strong> aqui evidenciar, no que respeita o n<strong>os</strong>so trabalho, orelevo que <strong>da</strong>rem<strong>os</strong> à importância conferi<strong>da</strong> por Lefèbve, Brik, Hartman eLotman às componentes «arte» e «estética» na tentativa de definição <strong>da</strong>poetici<strong>da</strong>de, na sua articulação como a relevância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao referente <strong>da</strong>mundivivência. Estes autores constituem exemplo do afastamentoprogressivo de uma perspectiva predominantemente linguística em direcçãoà visão <strong>da</strong> poesia como vivência cujas definições ou limites passam,42 [1978: 48].43 [ed. 1956: 28]36


primordialmente, por ser estéticas. A sua relação com o uso <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de será, entre <strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> desven<strong>da</strong>d<strong>os</strong>, um d<strong>os</strong> que mais n<strong>os</strong>interessou seguir, como adiante verem<strong>os</strong>.2.4. POESIA E RECEPÇÃOA abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de do texto literário como parte de umsistema de expressão estética conduzirá alguns autores por uma via que terájá algo a ver com a estética <strong>da</strong> recepção. Jan Mukaròvský, por exemplo,assume uma p<strong>os</strong>ição teórica, em Escrit<strong>os</strong> sobre estética e semiótica <strong>da</strong>arte, 44 que de certo modo sintetiza e equilibra as p<strong>os</strong>ições de Lefèbve eLotman, atrás referi<strong>da</strong>s. Apesar de ain<strong>da</strong> opor «denominação poética» e«denominação <strong>da</strong> linguagem fala<strong>da</strong>», defende, no que diz respeito à poesia,a sua relação com a reali<strong>da</strong>de e com a estética mas introduzindo já aatribuição de um papel relevante ao receptor:A atenuação <strong>da</strong> relação imediata entre a denominaçãopoética e a reali<strong>da</strong>de é compensa<strong>da</strong> pelo facto de a obra poéticaentrar, como denominação global, em relação com todo umconjunto de experiências vitais do sujeito – seja ele sujeito criadorou sujeito receptor.Estam<strong>os</strong>, portanto, perante uma p<strong>os</strong>ição teórica que tenta articularuma perspectiva linguística com uma perspectiva estética e que aponta,ain<strong>da</strong>, para a estética <strong>da</strong> recepção, na medi<strong>da</strong> em que concede importânciaao espaço material de realização do texto como espaço indicativo deprop<strong>os</strong>tas de leitura relaciona<strong>da</strong>s com referentes vivenciais intra eextratextuais. Crem<strong>os</strong> que esta prop<strong>os</strong>ta teórica se encontra articula<strong>da</strong> de37


modo mais convincente a um «nível estilístico de decisão estética», como nalinha de perpectivação do «texto artístico» defendi<strong>da</strong> por A. García Berrioem Ut poesis pictura: 45El [texto artístico] representa un espacio privilegiado depropuestas materiales, las cuales son tantas otras pistas de laexpressivi<strong>da</strong>d subconsciente del emissor, y itenerari<strong>os</strong> de lecturapor l<strong>os</strong> que discurren las respuestas esteticas de la receptión.Salientam<strong>os</strong> nesta afirmação não só a consideração do texto comoprop<strong>os</strong>ta de leituras, como acima referim<strong>os</strong>, mas também o facto de ser nelacontempla<strong>da</strong> a plurali<strong>da</strong>de estética do ponto de vista do receptor, que n<strong>os</strong>parece ser um vector variável em tempo e lugar que desde sempre teráorientado a identificação do texto poético, consoante a aceitação <strong>da</strong>flutuação d<strong>os</strong> variad<strong>os</strong> model<strong>os</strong> e cânones. Deste modo, o problema <strong>da</strong>relação do texto poético com a estética passaria, também, por uma via de«previsibili<strong>da</strong>des» e não de certezas, como afirma D. W. Fokkema nopequeno ensaio publicado em Poetics To<strong>da</strong>y, intitulado «The concept ofcode in the study of literature» 46 :We may assume that the aesthetic experience has to do witha reorganization or revitalization of information that the reader hasin store [...] [although] in some cases the esthetic effect appears tobe predictable.Pensar o texto literário como texto estético, articulando-o com aexperiência vivencial do seu emissor e do seu receptor, acaba por conduzir ainterrogações sobre o modo como inserir o facto literário isolado nocontexto histórico <strong>da</strong> literatura. Como poderão o poema isolado, a obra44 [1981: 184]45 [1988: 186]38


poética autónoma, ser testemunh<strong>os</strong> de moment<strong>os</strong> de uma evolução históricaliterária? Segundo H. R. Jauss, em A literatura como provocação 47 , aresp<strong>os</strong>ta estaria na conjugação de um «horizonte de expectativa estética»com o funcionalismo <strong>da</strong> «arte <strong>da</strong> representação», numa visão <strong>da</strong> histórialiterária considera<strong>da</strong> como uma história independentiza<strong>da</strong> em relaçãoprocesso geral <strong>da</strong> história, contemplando aspect<strong>os</strong> estétic<strong>os</strong>, polític<strong>os</strong> ousociais apenas quando numa configuração intrínseca à literatura que, por suavez, estaria dependente <strong>da</strong> «circunstanciali<strong>da</strong>de» do leitor, do seu acto derecepção. Por sua vez, esta circunstanciali<strong>da</strong>de que constitui o «processofísico» <strong>da</strong> recepção do texto configura um processo de «percepção dirigi<strong>da</strong>»que engloba motivações e sinais constitutiv<strong>os</strong> «que poderiam ser descrit<strong>os</strong>por uma linguística textual.O p<strong>os</strong>icionamento teórico de Jauss parece, aparentemente, virsolucionar, na definição de obra poética, por um lado, o problema <strong>da</strong>conciliação <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> linguagem com a expressão do sentir e, por outrolado, a relação do imaginário com o mundo vivencial. No entanto, comodelimitar uma p<strong>os</strong>ição neutral, de onde a observação p<strong>os</strong>sa ser efectua<strong>da</strong>?De que modo instituir parâmetr<strong>os</strong> não subjectiv<strong>os</strong> nem arbitrári<strong>os</strong> quedeterminem o «receptor ideal? Em que espaço e em que tempo localizá-lo?Algumas destas objecções foram levanta<strong>da</strong>s por R. C. Holub, numa obrasobre a teoria <strong>da</strong> recepção de Jauss intitula<strong>da</strong> Reception Theory. A criticalintroduction, na qual, por vezes utilizando as próprias palavras de Jauss,detecta objecções tanto quanto à variabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> triangulação autor-obraleitorcomo quanto à necessi<strong>da</strong>de de ultrapassar a mera reacçãocircunstancial do leitor como, por exemplo, quando afirma: 48The ` process of the continuous establishing and altering thehorizons ´ by mean of textual and generic clues would eliminate46 [1985: 48]47 [1993: 35-115]39


the individual variability of response, and, at least in the theory,we could then establish a ` transubjective horizon of understanding´ that determines `the influence of the text ´.Outra objecção que poderia fazer-se ao «horizonte de espera» de Jaussé que ele surge sempre ligado a classificações do texto literário que partem<strong>da</strong> aceitação de cânones literári<strong>os</strong>, 49 sendo que a aceitação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de deum texto pode encontrar-se distancia<strong>da</strong> <strong>da</strong>s circunstâncias em que se insereo leitor, muito diversas, mesmo quando se verifique a contemporanei<strong>da</strong>de<strong>da</strong> produção e <strong>da</strong> recepção. Segundo Jean-Marie Shaeffer, em Qu´est-cequ´un genre littéraire?, «le régime autorial reste homochrome, alors que lerégime lectorial devient hétérochrome». 50 Os própri<strong>os</strong> poetas disso estãoconscientes quando na sua palavra poética referem a criação por parte dequem lê, como J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista o faz nas primeiras e últimasestrofes do primeiro poema de Autoretrato: 51Sê quem me lê,decifrador de enigmas.Folheia-me como a uma árvore de folhas soltas,se é outono.To<strong>da</strong>s as palavras mentem, no interior <strong>da</strong> sua obscuri<strong>da</strong>de.na<strong>da</strong> te prende ao verso,a<strong>os</strong> seus ínvi<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>,às suas seduções de velha pr<strong>os</strong>tituta.Que não ce<strong>da</strong>s a essa luz de remotas lantejolas,às flores vivas que segura.48 [1984: 60]49 Cf. Littérature médiévale et théorie des genres, Jauss, 1986.50 [1989: 154]40


---------------------------------------------------------------Não ouças, não olhes:ferem-te as palavras do deus e as suas garras de tigren<strong>os</strong> mur<strong>os</strong> de um coração que não o teu:devorado já pelas páginas que lês,desprendendo-se <strong>da</strong>s folhas e do outono,batendo devagarEntendem<strong>os</strong> que o papel de «decifrador de enigmas» atribuído aoleitor não está, neste caso, arreigado a uma pressup<strong>os</strong>ta intencionali<strong>da</strong>deautoral mas representa, sim, uma libertação, visto que o sentimento abertoque se desprende do texto se encontra anula<strong>da</strong> pela referência a um coraçãomoribundo, «devorado já pelas páginas», que deixa a sua própria recriaçãoao desejo de impulso de desprendimento do verso, na leitura. O leitor comodecifrador de uma «mentira», construindo a partir dela as suas ver<strong>da</strong>des,representa no poema como que uma desmultiplicação concretiza<strong>da</strong> doconceito de leitor ideal.Apesar de to<strong>da</strong>s as objecções que se p<strong>os</strong>sam colocar à teoria <strong>da</strong>recepção, crem<strong>os</strong> que o seu mais bem sucedido desafio foi o de pôr emcausa uma função cognitiva e ditatorial, que era atribuí<strong>da</strong>tradicionalmente à realização estética, e renová-la, dotando-a com umacomponente de intencionali<strong>da</strong>de vivencial que renovou o pensamento dotexto literário e que viria a conduzir todo um percurso que culminaria com acentralização d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> no barthesiano «prazer do texto», de queadiante n<strong>os</strong> ocuparem<strong>os</strong>.Em relação à poesia, surgiram, na esteira <strong>da</strong> linha teórica de Jauss,p<strong>os</strong>turas que n<strong>os</strong> parecem ter o seu enraizamento na estética <strong>da</strong> recepção.Jonathan Culler, por exemplo, apresenta em The porsuit of signs uma teoria51 [1986:9]41


que se centra na análise <strong>da</strong>s condições nas quais se produz o sentido. Sob aégide <strong>da</strong> semiótica, considerando, portanto, que a literatura é,essencialmente, um modo de comunicação e significação no qual se podemidentificar sentid<strong>os</strong>, Culler lança um alerta para o perigo de separar a obra<strong>da</strong> sua interpretação, e ain<strong>da</strong> para o facto de, na relação <strong>da</strong> obra com o leitor,se poder cair no que ele denomina «massive distortions». Releva, portanto, arelativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autonomia do texto literário, considerando que acontribuição de text<strong>os</strong> anteriores para o estabelecimento de códig<strong>os</strong> tornap<strong>os</strong>síveis vári<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> do significado e do sentido do texto, o que o conduza definir poema na relação <strong>da</strong> leitura com a construção 52 :To discover the true meaning of a poem, one must interpretit in accor<strong>da</strong>nce with the principles by which it was constructed.Esta articulação do sentido do texto com a sua recepção, aliandocomponentes de convenção e intencionali<strong>da</strong>de, testemunha também John S.Searle, numa perspectiva de raiz linguística, em Speech Acts: 53In our analysis of illocutory acts, one must capture both theintentional and the conventional aspects and especially therelationship between them.Pondo de lado uma enfatização exagera<strong>da</strong> do papel desempenhadopelo receptor, crem<strong>os</strong> poder afirmar que a teoria <strong>da</strong> recepção relevouperspectivas essenciais para uma evolução d<strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de literarie<strong>da</strong>de ede poetici<strong>da</strong>de em direcção a nov<strong>os</strong> paradigmas teóric<strong>os</strong>, ao desviar oenfoque no conceito de língua literária para um enfoque n<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> como otexto literário é recebido, avançando, como afirma Pozuello Yvanc<strong>os</strong>, para«la redefinición de la `Historia de la Literatura´, atendiendo a la historici<strong>da</strong>d52[1981: 98]42


esencial de la propia teoría y de las lecturas y interpretaciones», 54 avançandoain<strong>da</strong>, portanto, para o apontar simultâneo de três perspectivas teóricas: ahermenêutica, a semiótica e a histórica.Destas perspectivas, a questão que mais n<strong>os</strong> interessa relevar para on<strong>os</strong>so trabalho é a <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> recriação activa por parte do leitorcrítico, articulando-se este com a noção de que a teoria literária envere<strong>da</strong>hoje, predominantemente, pelo caminho crítico de uma descriçãointerpretativa <strong>da</strong> prática literária que se aproxima tanto <strong>da</strong> emoção doleitor como <strong>da</strong> razão do teórico.2.5.POESIA E HISTÓRIA: HERMENÊUTICA; SEMIÓTICAAbor<strong>da</strong>rem<strong>os</strong>, na sequência <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção, p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong>teóric<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> parecem afirmar uma tentativa de conciliação <strong>da</strong>sperspectivas histórica e hermenêutico-semiótica, no que respeita à utópicamas sempre renova<strong>da</strong> tentativa de definir ou descrever o que é, ou «quandoé», poesia.A explicação <strong>da</strong> relação íntima entre a poesia e o verso, a partir <strong>da</strong>emergência histórica <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a como género, teria suscitado a substituição doconceito de poesia pelo conceito globalizante de literatura, facto este queteria, por sua vez, provocado a consideração <strong>da</strong> poesia como género do qualo verso seria, por algum tempo, a forma. Historicamente, o verso teria sido,nas realizações <strong>da</strong> língua, um lugar de pré-determinação e de determinaçãoabsoluta, e a pr<strong>os</strong>a o modo de introdução <strong>da</strong> indeterminação.P<strong>os</strong>teriormente, o verso seria o lugar <strong>da</strong> indeterminação por excelência,fugindo, mesmo, à determinação sintáctico-semântica. Segundo Jean-PierreBobillot, na obra Vers, pr<strong>os</strong>e, langue – quelques prop<strong>os</strong>itions, o verso seria53[1986: 65]43


o lugar «où la langue imp<strong>os</strong>e la subjectivité». 55 «Escrever em verso» seria,para Bobillot, «réactiver <strong>da</strong>ns la langue une marge de liberté» e o poema,portanto, lugar <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> máxima liber<strong>da</strong>de e subjectivi<strong>da</strong>de.Um d<strong>os</strong> autores mais representativ<strong>os</strong> <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção,Wolfgang Iser, em The Repertoire, 56 centraliza esta margem de liber<strong>da</strong>de ede subjectivi<strong>da</strong>de no leitor, conferindo-lhe, no entanto, fortes restriçõesprovenientes <strong>da</strong> visão do literário como força modeladora:Every textual model involves certain heuristic decisions:the model cannot be equated with the literary text itself, but simplyopens up a means of access to it. Whenever we analyze a text, wenever deal with a text pure and simple, but inevitably apply aframe of reference specifically ch<strong>os</strong>en for our analysis. [...] ourprime concern will be no longer the meaning of that text (thehobbyhorse ridden by the critics of yore) but its effect.A ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> por Iser à força modeladora e ao efeito do texto noleitor condu-lo a relevar também o acto de produção de imagens por partedo leitor, p<strong>os</strong>ição esta que não n<strong>os</strong> parece estar definitivamente distancia<strong>da</strong><strong>da</strong> importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao sentido por parte de alguns adept<strong>os</strong> dep<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> linguístic<strong>os</strong> e <strong>da</strong> perspectivação estética <strong>da</strong> literatura. talcomo defende um leque de referências para adequar o relacionamento domodelo com o texto literário, ao p<strong>os</strong>icionar-se teoricamente age do mesmomodo, se é que é p<strong>os</strong>sível agir de outra maneira adentro de uma perspectivateórica. Esta adequação do modelo pode surgir, em cas<strong>os</strong> extrem<strong>os</strong>, porinfracção ou por paródia, ou ser meramente enuncia<strong>da</strong> pelo uso <strong>da</strong>metalinguagem no poema. Do primeiro caso, a infracção ao modelodeclara<strong>da</strong> pelo estatuto enunciativo do poema, relevam<strong>os</strong> o título e a54 [1989: 107]55 [1989: 46]56 [1991: 360]44


primeira <strong>da</strong>s três estrofes <strong>da</strong> «Canção em moldes clássic<strong>os</strong>» de Cartografiade Emoções, de Nuno Júdice: 57Tentei descrever o amor, do ponto de vista<strong>da</strong> razão, subvertendo o que a naturezahumana dele pretende: um fimpara o desejo, para a desordem d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>,para a falta de entendimento de quem vivesolitário. Não sei o que descrevi: seesse conjunto de emoções que se concentrano instante <strong>da</strong> paixão, transformandoa alma numa fogueira feitade mágoa e alegria; se o instante emque to<strong>da</strong> a percepção é absorvi<strong>da</strong> por ti,mesmo que tu me peças que não percajuízo e coração, amb<strong>os</strong> envolt<strong>os</strong> naestranha tormenta que <strong>os</strong> teus olh<strong>os</strong>desencadeiam.Do segundo caso, a adequação transgressiva do modelo pela paródia,transcrevem<strong>os</strong> um poema de Sete Ri<strong>os</strong> Entre Camp<strong>os</strong>, de Adília Lopes: 58«seca-se o liber no alto do ulmeiro»Vergílio, BucólicasSeca-se o livrono alto do ulmeiroo anacronismoproduziu o surrealismomas não é sóuma má traduçãoo livro caiu ao mar57 [2001:169]58 [1999:71]45


foi preciso enxugar o livroagora o vento abanaas folhas do ulmeiroe as do livro(as folhas batemumas nas outras)e o livro é um frutoé um produtodo ulmeiroacham que um verso é pouco?quem não o aproveitaé moucoQuanto ao terceiro caso, o <strong>da</strong> relevância através do uso demetalinguagem no poema, <strong>da</strong>m<strong>os</strong> um exemplo de O aprendiz secreto, deAntónio Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a: 59O construtor terá sempre em conta a flexibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> brisa e o pesomaciço do ser. A sua construção será contemplativa, abisma<strong>da</strong>entre as falésias de mármore e o rio tranquilo que o envolve.Atento ao frémito do ser, à sua redondez corpórea e ao ritmo <strong>da</strong>ssuas configurações, construirá a sua branca mora<strong>da</strong> no flancoabrupto do inexpugnável. To<strong>da</strong>s as paisagens serão unifica<strong>da</strong>ssegundo o princípio de individuação do ser e <strong>da</strong> sua integri<strong>da</strong>desolar.A presença do dizer do modelar no poema generalizou-se nasegun<strong>da</strong> metade do século vinte como procedimento enunciativo, masdelineava-se implicitamente numa prática muito anterior. Jean-MichelMaulpoix considera, em La voix d´Orphée, que foi a partir do século dezoitoque se presentificou no texto literário a passagem de uma atitude miméticapara uma atitude modelar que modela e torna reconhecível a linguagem46


literária e a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem poética em função do destino social<strong>da</strong> escrita. A partir deste século, o lirismo visaria abolir a distância entre <strong>os</strong>ujeito e o mundo, e Maulpoix denomina-o, por isso, «lyrisme dedescription», 60 justamente porque o lirismo surge então como expressãoqualificativa, traduzi<strong>da</strong> por reali<strong>da</strong>des estilísticas, mas diferenciando,simultaneamente, descrição e sugestão. Esta diferença processar-se-ia numplano no qual a descrição seria ultrapassa<strong>da</strong> pela sugestão, tal como o serhumano, quando p<strong>os</strong>icionado entre o real e o ideal, se situa em função dodesejo de absoluto e <strong>da</strong>s suas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de realização.Crem<strong>os</strong> que o p<strong>os</strong>icionamento assumido por Henri Meschonnic, nasobra Le signe et le poème e no texto Pela Poética, sintetiza as perspectivasacima referi<strong>da</strong>s, na medi<strong>da</strong> em que articula a existência histórica do textoliterário com as diversas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de mei<strong>os</strong> de descoberta d<strong>os</strong> seussentid<strong>os</strong>. Embora na primeira obra referi<strong>da</strong> Meschonnic afirme que alinguagem poética assenta numa duplici<strong>da</strong>de, pois é simultaneamentesemiótica e metasemiótica, na segun<strong>da</strong> obra menciona<strong>da</strong> defende que otexto literário é como que um «contentor de história, mundo e linguística» 61e defende que, numa obra literária, a palavra existe em vári<strong>os</strong> plan<strong>os</strong> masesses plan<strong>os</strong> não geram vári<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>, ca<strong>da</strong> sentido é que existe em vári<strong>os</strong>plan<strong>os</strong>, o que o leva a p<strong>os</strong>icionar a relação entre o valor e a obra, em PelaPoética, 62 n<strong>os</strong> seguintes term<strong>os</strong>:[...][o valor <strong>da</strong> obra] não vive senão do conflito entre anecessi<strong>da</strong>de interior <strong>da</strong> mensagem individual (que é a criativi<strong>da</strong>de)e o código (género, linguagem literária de uma época, etc.) comuma uma socie<strong>da</strong>de ou a um grupo, código que é o conjunto d<strong>os</strong>valores usad<strong>os</strong> existentes - `lugares-comuns´.59 [ed. ut. 2001:399]60 [1989: 39]61 [1977:26]47


D<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> acabad<strong>os</strong> de referir, interessa- n<strong>os</strong>relevar para o n<strong>os</strong>so trabalho a relação entre o indivíduo, a socie<strong>da</strong>de, atemporali<strong>da</strong>de e o código, no que respeita, não só à literatura em geralmas, mais particularmente, à poesia e ao uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema.Importa-n<strong>os</strong> considerar o texto poético numa dupla articulação, como mistode sistema e criativi<strong>da</strong>de, de objecto e sujeito(s), de forma e sentido, espaçode realização de model<strong>os</strong> do cânone clássico ou do cânone hodierno.Através do estudo <strong>da</strong> poesia portuguesa mais recente, é n<strong>os</strong>so objectiv<strong>os</strong>alientar uma via de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia que poderia contribuir, ain<strong>da</strong> quemuito pontualmente, para, no dizer de Pozuello Yvanc<strong>os</strong>, «[...] construirseuna historia de las relaciones entre literatura y publico, una semiótica de lacooperación textual, una história de las categorias de la experienciaestética». 632.6. POESIA E DESCONSTRUÇÃOA relativização, em relação ao texto literário, entre a linguagem, oreceptor e <strong>os</strong> condicionalism<strong>os</strong> sociais e históric<strong>os</strong>, constitui, talvez, um d<strong>os</strong>pont<strong>os</strong> mais importantes <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> recepção, pois abre caminho para <strong>os</strong>p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> <strong>da</strong> desconstrução. No entanto, nem por issopodem<strong>os</strong> considerar a desconstrução como uma consequência, ou mesm<strong>os</strong>equência, <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção ou <strong>da</strong> ineficácia do estruturalismo em <strong>da</strong>rresp<strong>os</strong>ta à visão diacrónica do literário. Autores como Harold Bloom,Jonathan Culler, Paul De Man ou Roland Barthes, não podendo situar-seain<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong> desconstrução, anunciam-na, contudo, ao defenderem umamodernização de conceit<strong>os</strong> como <strong>os</strong> de escrita, autor, leitor e leitura, ou aop<strong>os</strong>icionarem a activi<strong>da</strong>de crítica como p<strong>os</strong>sível activi<strong>da</strong>de literária.62 [1997: 26]63 [1989: 127]48


A conciliação genológica entre o texto crítico e o texto literárioaponta para um d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> determinantes <strong>da</strong> desconstrução que é o de adesconstrução se apresentar como uma linha de p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong>que põe em causa dicotomias como significante/significado,sensível/intelegível, literário e crítico e, mesmo, literário e não literário,preconizando um modo diferente e não sistemático <strong>da</strong> leitura do textoliterário, uma vez que não considera o sistema linguístico como base de umap<strong>os</strong>sível decifração do texto literário. Torna-se, pois, difícil aceitar adesconstrução como uma teoria, uma vez que, centrando-se na leitura, nãoconstitui uma teoria nem do significado nem <strong>da</strong> interpretação e institui oliterário como uma ilusão a partir <strong>da</strong> qual podem ser, empiricamente,constatad<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>. Os sentid<strong>os</strong> do texto tornam-se, portanto, ilusóri<strong>os</strong>,apenas detectad<strong>os</strong> na própria indeci<strong>da</strong>bility ou indeterminacy do texto, deque é exemplo a p<strong>os</strong>ição de Stanley Fish em Is there a text in this class 64 ?:There are no determined meanings and the stability of thetext is an illusion. [...] this does not mean that the context comesfirst and that once it has been identified the construing of sense canbegin.Consideram<strong>os</strong> esta p<strong>os</strong>ição como sendo apenas aparentemente antihermenêuticae nihilista, pois o que nela é negado como componente <strong>da</strong>hermenêutica é a presença de uma autori<strong>da</strong>de, autoral ou outra, que assumaa intencionali<strong>da</strong>de, quer em relação ao texto literário, quer fora dele. Noentanto, a intencionali<strong>da</strong>de é passível de detecção, como afirma Aguiar eSilva no ensaio A teoria <strong>da</strong> desconstrução, a hermenêutica literária e aética <strong>da</strong> leitura 65 :64 [1980: 5]65 [1993: 76]49


O texto detém uma autori<strong>da</strong>de inerente que coercivamentese impõe ao leitor e ao crítico. O texto solicita uma compreensãoque deve permanecer imanente, porque, nas palavras de Paul DeMan, `ele coloca o problema <strong>da</strong> sua inteligibili<strong>da</strong>de n<strong>os</strong> seusprópri<strong>os</strong> term<strong>os</strong>´. A desconstrução advoga, por conseguinte, ummodelo hermenêutico fun<strong>da</strong>do exclusivamente na intentio operis erejeita quaisquer model<strong>os</strong> hermenêutic<strong>os</strong> de algum modohipotecad<strong>os</strong> à intentio auctoris e à intentio lectoris.Luís Filipe Castro Mendes, no poema «Hypocrite lecteur, monsemblable, mon frère» [sic], de O Jogo de fazer vers<strong>os</strong>, 66 refere - entre aintertextuali<strong>da</strong>de explícita e implícita com Baudelaire e a identificaçãoconfessa<strong>da</strong> do sujeito lírico com o poeta -, a imp<strong>os</strong>ição <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>dede um sentido imanente mas, simultaneamente, imprevisível:G<strong>os</strong>taria que um dia tu me lessesnum jeito entre a maça<strong>da</strong> e o vagarque o tempo distribui às n<strong>os</strong>sas precesquando o que não previm<strong>os</strong> tem lugar.Hipócrita leitor, vã criatura,que procuras do lado deste ocoabismo de papéis que a amarguraenredou no silêncio de tão pouco?Arregacei as mangas ao poema.A tudo fiz soneto: aqui, além...E na<strong>da</strong> em mim conheço que não tremadum frio que não entende mais ninguém.An<strong>da</strong> perdi<strong>da</strong> em mim a noite pura,com rest<strong>os</strong> de ver<strong>da</strong>de e literatura...50


Deixando de lado, neste momento, a relação temporal e modelar como simbolismo, presente no poema, salientarem<strong>os</strong> a faceta metalinguística eo facto de a própria voz do poema estabelecer uma dupla pontepessoaliza<strong>da</strong> de auto-reflexão sobre «vã<strong>os</strong> rest<strong>os</strong> perdid<strong>os</strong>» entre aintenção do poeta e a leitura individualiza<strong>da</strong> do seu poema. A este propósito,Aguiar e Silva chama ain<strong>da</strong> a atenção para o uso frequente, por parte d<strong>os</strong>adept<strong>os</strong> <strong>da</strong> desconstrução, <strong>da</strong> palavra inglesa misreading que, segundo ele,não significa «leitura incorrecta ou errónea e ain<strong>da</strong> men<strong>os</strong> leitura anárquicaou arbitrária, mas leitura que está inelutavelmente sujeita à errância e àderiva, por razões atinentes à epistemologia do acto <strong>da</strong> leitura e à ontologiado texto literário», acrescentando ain<strong>da</strong> que «[...]as leiturasdesconstrucionistas não podem, pois, deixar de ser alegorias de leitura.Alegorias que são uma tarefa de Sísifo, pois têm de acompanhar a errância<strong>da</strong>s alegorias d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> text<strong>os</strong>». 67Crem<strong>os</strong> que esta «errância <strong>da</strong>s alegorias d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> text<strong>os</strong>», determinologia tão marca<strong>da</strong>mente desconstrucionista, se encontra tambémexpressa, embora de modo implícito, em autores que, <strong>da</strong>do o insucesso <strong>da</strong>sprop<strong>os</strong>tas estruturalistas e semióticas, e embora definindo a poesia dentro docampo <strong>da</strong> semiologia, articulam esta com a estética <strong>da</strong> recepção. Darem<strong>os</strong> oexemplo de Michael Riffaterre que, ao recuperar a noção de palavrachave,68 de herança estilística, articula esta herança com uma leitura nãolinear do poema, na qual uma nova retórica do discurso denuncia o poemacomo veiculador de uma leitura heurística <strong>da</strong> relação do poema com areali<strong>da</strong>de factual, resumindo-a do seguinte modo 69 :[...] ce va-et-vient d´une valeur à l´autre du signe [...] quicaractérise la pratique signifiante qu´on appelle poésie.66 [1999: 192]; 1ª ed. 1999.67 [1993: 77, 78]68 [1978: 207 e segs.]69 [1978: 209]51


Nesta caracterização <strong>da</strong> poesia, de Riffaterre, a «gramaticali<strong>da</strong>de»previsível do efeito de comunicação processa-se entre a intencionali<strong>da</strong>deautoral ou textual e a recepção do leitor ou <strong>da</strong> interpretação do texto, o quen<strong>os</strong> remete para uma leitura instável e para uma interpretação que nunca édefinitiva, aproximando-n<strong>os</strong>, portanto <strong>da</strong> leitura como alegoria <strong>da</strong> leitura,num «va-et-vient» de tarefa de Sísifo.A atitude de permanente instabili<strong>da</strong>de acima referi<strong>da</strong>, e a decorrentevisão <strong>da</strong> leitura como alegoria evidencia não terem sido <strong>os</strong> adept<strong>os</strong> <strong>da</strong>desconstrução defensores de sistematizações teóricas de conceit<strong>os</strong> de raizcomo a literarie<strong>da</strong>de, a poetici<strong>da</strong>de, e conceit<strong>os</strong> afins, tendentes a detectar edefinir element<strong>os</strong> ou situações contextuais comuns a grup<strong>os</strong> de text<strong>os</strong>. Noentanto, até que ponto terá a desconstrução negado à poesia a sua existênciae veiculação através de process<strong>os</strong> de semiotização como a redundância, overso, a rima, a musicali<strong>da</strong>de ou a disp<strong>os</strong>ição gráfica? Terá adesconstrução, pelo contrário, criado aberturas para uma revitalizaçãoou nova problematização desses process<strong>os</strong> de semiotização? Este é umd<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> interessa salientar para o n<strong>os</strong>so trabalho.Num ensaio intitulado What is a poem?, James Thorne defende comouma <strong>da</strong>s características essenciais do poema a existência de padrões(«patterns»), 70 correspondentes à «palavra-chave» de Riffaterre, e que são oresultado <strong>da</strong> ocorrência repeti<strong>da</strong> de formas linguísticas de modo a que ca<strong>da</strong>padrão realiza um tema. Segundo ele, identificar o sentido literal de umapalavra equivaleria à identificação de um estereótipo e o sentido metafóricoresultaria <strong>da</strong> adição ou subtracção de inferências, o que implica, para alémdo evidente papel activo do leitor, uma forte relevância <strong>da</strong><strong>da</strong>, por um lado, aaspect<strong>os</strong> de linguística e de recepção de texto e, por outro lado, orelacionamento destes com a dimensão desconstrucionista <strong>da</strong> leitura como70 [1989: 281]52


alegoria. Desta articulação, que renova as perspectivas linguísticas, podemser exemplo as seguintes afirmações de Thorne: 71We read poems (or should) in a way which is quite differentfrom the way in which we read other texts, because in the case ofother texts it is the imp<strong>os</strong>ition of one, and only one meaning, thatis important. Learning to read a poem is not a matter of learning topay attention to the repetitions of linguistic forms, phonological,lexical or syntactic. It is a matter to hear what normally we mustbe deaf to: the inexhaustible ambiguity of utterances. 72Esta existência linguística do poema através <strong>da</strong> sua iluminação,através <strong>da</strong> audição do seu silêncio e <strong>da</strong> sua plurali<strong>da</strong>de alegórica, sãoreferi<strong>da</strong>s metonimicamente por Fernando Guimarães no poema «Leitura», 73de Limites para uma Áarvore, do qual transcrevem<strong>os</strong> <strong>os</strong> seguintes vers<strong>os</strong>:[...] Uma letra é maiorque to<strong>da</strong>s as palavras: o seu peso intimi<strong>da</strong>-n<strong>os</strong>. Sabesacaso como pegar nela? «Sim, sem tocar sequerno seu pólen; junto-as a outras; seguro-as n<strong>os</strong> meus ded<strong>os</strong>e principioa levantá-las em direcção a esta lâmpa<strong>da</strong>. Olho-a commais atenção, procuro<strong>os</strong> seus contorn<strong>os</strong>. Aprendo a medir o intervalo queexisteentre elas. Sei também a distância a que se encontra deoutras veias».No passares as mã<strong>os</strong> pelo r<strong>os</strong>to hás-de encontrar umanovaimagem. E quantas vezes pode isso acontecer conn<strong>os</strong>co?------------------------------------------------------------------------71 [op. cit.: 289]72 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.73 [2000: 61,62]53


[...] Nelaprocuroo que te venho dizer, espero esse movimento de umcorpo, a maneirade o tocar em silêncio. Mas na<strong>da</strong> disso me pertence e seiapenasonde encontrar estas páginas inclina<strong>da</strong>s. O livro é umrumor.Neste poema, a metafórica palpabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>des sonoras, aconcretude d<strong>os</strong> seus interval<strong>os</strong> de silêncio, e ain<strong>da</strong> a polissémica iluminaçãopela subjectivi<strong>da</strong>de de um olhar-leitura, remetem-n<strong>os</strong> para a mediação d<strong>os</strong>sentid<strong>os</strong> plurais veiculad<strong>os</strong> entre aquele que diz e cria (neste caso o sujeitolírico ou o poeta) e aquele que ouve e recria (neste poema o objecto lírico ouo leitor). A leitura do texto como «co-texto» implica, pelo men<strong>os</strong> no que àpoesia diz respeito, que o texto seja parcialmente mediado por um processode semiotização, por um «intervalo» de «rumor» que se desprende <strong>da</strong>sonori<strong>da</strong>de, «sem tocar sequer no seu pólen», bastando para isso erguê-lassob a «lâmpa<strong>da</strong>» do que já era, afinal, pertença do leitor.Questionávamo-n<strong>os</strong>, acima, acerca <strong>da</strong> viabili<strong>da</strong>de de a atitudedesconstrucionista ter negado à poesia esta sua característica, ou seja, acapaci<strong>da</strong>de de mediação através de process<strong>os</strong> de semiotização. Crem<strong>os</strong> queas p<strong>os</strong>ições assumi<strong>da</strong>s por Riffaterre e Thorne mas, talvez mais ain<strong>da</strong>, aimportância <strong>da</strong> sua equivalente realização nas palavras de um poema,constituem uma hipótese de resp<strong>os</strong>ta a essa questão.Consideram<strong>os</strong>, pois, que <strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> referid<strong>os</strong>, talcomo p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> na linha comparatista de Carl<strong>os</strong> Daghlian, evidentena obra Poesia e Música, na qual se releva uma «base material» pertencentetanto à música como à poesia, não entram em conflito com <strong>os</strong>p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> <strong>da</strong> desconstrução, mais não seja porque a leitura de umaleitura pode implicar o ritmo de um ritmo ou a música de uma música,54


considera<strong>da</strong> a inter-relação entre o texto, a representação e aintencionali<strong>da</strong>de. Parece-n<strong>os</strong> importante referir esta relação na medi<strong>da</strong> emque julgam<strong>os</strong> que a sua aceitação conduz à p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de articulação eoperância de conceit<strong>os</strong> como a literarie<strong>da</strong>de e a poetici<strong>da</strong>de com umacorrelatadimensão psíquica. Um exemplo desta articulação pode serencontrado n<strong>os</strong> excert<strong>os</strong> seguintes, respectivamente de Laurent Jenny em Laterreur et les signes 74 e de Harold Bloom no ensaio Poetry, Impressionism,Repression 75 :La forme poétique ne suffit pas à faire reconnaître ledébordement du vide qu´elle met en oeuvre. Elle reste aveugle à aspropre rythmicité. Pour que ce rythme de la symbolicité apparaisseau sujet, il est peut-être nécessaire qu´il la représente <strong>da</strong>ns uneextériorité quasi objective, qu´il la hisse pour lui-même sur unescène visible.Poems are not psyches, nor things, nor are they renewablearchetypes in a verbal universe, nor are they architectonic units ofbalanced stresses. They are defensive processes in constantchange, which is to say that poems themselves are acts of reading.[...] The meaning of a poem can only be a poem, but anotherpoem, a poem not itself.A dimensão psíquica do reconhecimento <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de estátambém presente na constante mutabili<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> «act<strong>os</strong> de leitura», emboraconsiderem<strong>os</strong> que uma sua articulação poderia evidenciar questões como ado g<strong>os</strong>to individual e <strong>da</strong>s preferências pessoais que não desenvolverem<strong>os</strong>por ser irrelevante no âmbito do n<strong>os</strong>so estudo. Relevam<strong>os</strong>, quanto a estesp<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong>, o facto de Jonathan Culler, no ensaio Beyond74 [1986: 229]75 [1986: 331]55


Interpretation, 76 contra-argumentar que, apesar de <strong>os</strong> poemas serem sempre«act<strong>os</strong> de leitura», acabavam sempre, de qualquer modo, por ser «lid<strong>os</strong>».Realmente, e tal como acima consideráram<strong>os</strong>, a leitura encara<strong>da</strong> como«segundo texto» constitui sempre um campo de interacção entre alinguagem veicula<strong>da</strong> pelo sujeito. Já Roland Barthes afirmara em O grão <strong>da</strong>voz «uma nova tipologia <strong>da</strong> linguagem: um espaço novo em que o sujeito <strong>da</strong>escrita e o <strong>da</strong> leitura não têm exactamente o mesmo lugar. Este é todo otrabalho <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de» 77 . Também <strong>os</strong> poetas falam deste distanciamentointeractivo que se desprende <strong>da</strong> palavra do poema e que «trai» a linguagemao «organizar mund<strong>os</strong>». Exemplificam<strong>os</strong> com um poema de O duplodividido, 78 de Isabel de Sá:Na turbulência do poema há uma constelação de sentiment<strong>os</strong>, a correnteprincipal onde tu e eu existim<strong>os</strong>.Poderíam<strong>os</strong> dizer <strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa experiência que ela se dissociou do exteriormas na<strong>da</strong> garante a traição <strong>da</strong>s palavras.Por vezes, a página é uma cicatriz na qual a canetaabre uma nova feri<strong>da</strong>. As imagens ressurgeme na clari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s palavras o mundo organiza-se.À denuncia de uma nova tipologia <strong>da</strong> linguagem, formula<strong>da</strong> nopróprio veículo de comunicação e latente na «turbulência do poema»,acrescentaríam<strong>os</strong> que a visão hedonista do literário, tal como Barthes adesenvolve em obras como O prazer do texto, apontavam já para aconsideração do texto literário como uma enti<strong>da</strong>de e uma construção a«formar» pelo leitor, aproximando-o do movimento <strong>da</strong> desconstrução quenão nega a existência relevante de process<strong>os</strong> de semiotização, antes <strong>os</strong>reporta a uma dimensão lúdica <strong>da</strong> linguagem, tal como na perspectiva76 [1986: 328]77 [1981: 159]78 [1993:27]56


desconstrucionista em geral, e de que citarem<strong>os</strong>, a título exemplificativo, apalavra de Jacques Derri<strong>da</strong>: «To write means to graft. It´s the same word.The saying of the thing is restored to its being-grafted». 79A afirmação de Derri<strong>da</strong> reporta-se essencialmente a text<strong>os</strong>plurilineares 80 e é critica<strong>da</strong> por Barbara Johnson no seu ensaio Writing, 81onde esta argumenta:Derri<strong>da</strong> sees signifying force in the gaps, margins, figures,echoes, digressions, discontinuities, contradictions and ambiguitiesof a text. When one writes, one writes more than (or less than) onethinks. The reader´s task is to read what is written rather thansimply attempt to intuit what might have been meant.Crem<strong>os</strong> que as objecções contrap<strong>os</strong>tas por Barbara Johnson, aocontrário do pretendido, não invali<strong>da</strong>m a p<strong>os</strong>ição de Derri<strong>da</strong>, antesenfatizam a variabili<strong>da</strong>de do discurso auto-contraditório d<strong>os</strong>desconstrucionistas. A fam<strong>os</strong>a «undeci<strong>da</strong>bility» seria, pois, uma faláciaconstituí<strong>da</strong> pelo facto de ca<strong>da</strong> interpretação de um segmento de textodesconstruir a interpretação do fragmento precedente, como sugere MichaelRiffaterre em Undeci<strong>da</strong>bility as Hermeneutic Constraint. A aparente recusa<strong>da</strong> hermenêutica por parte d<strong>os</strong> desconstrucionistas desfaz-se, contudo, noque Miguel Tamen denomina «double bind hermenêutico», emHermenêutica e mal-estar, 82 ou em «O beijo de Ju<strong>da</strong>s», 83 de Manuel Alegre,em Livro do Português Errante:79 [1972: 355]80 Abor<strong>da</strong>do por R. Gaudreaut e M. Noël- Gaudreaut na obra Graphes et textesplurilinéaires.81 1990: 46]82 [1987: 143]83 [2001:22]57


Aquele que escreve será traídoum dia algum leitor apontaráa palavra interditae o sentido escondido no sentido.O beijo de Ju<strong>da</strong>s está dentro <strong>da</strong> própria escritae aquele que escreve estáperdido. De na<strong>da</strong> servedizer este é o meu vinho este é o meu pão.O beijo de Ju<strong>da</strong>s vai ser <strong>da</strong>do. Quem escrevetem uma lança aponta<strong>da</strong> ao coração.Estes são, a n<strong>os</strong>so ver, aspect<strong>os</strong> <strong>da</strong> desconstrução a considerar erecuperar, pois é a partir do indizível utópico <strong>da</strong> falácia que se podem abrirnov<strong>os</strong> horizontes para a resolução <strong>da</strong> articulação entre <strong>os</strong> cânones emodel<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e a mobili<strong>da</strong>de do texto ou se pode equacionar sobnova luz a problemática <strong>da</strong>s relações entre <strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e a suacapaci<strong>da</strong>de para dinamizar e alterar - ou para serem dinamizad<strong>os</strong> e alterad<strong>os</strong>por - normas culturais e normas literárias, aspecto que interessa à n<strong>os</strong>saabor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, a partir do qual se pretende, nãoapenas uma caracterização mas uma articulação com cânones e model<strong>os</strong>.Ao considerar a desconstrução como uma consequência, ou mesm<strong>os</strong>equência, <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção ou ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> ineficácia do estruturalismoem <strong>da</strong>r resp<strong>os</strong>ta à visão diacrónica do literário, pretendem<strong>os</strong>, pois, relevarque a desconstrução se apresenta como uma linha de p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong>teóric<strong>os</strong> que põe em causa dicotomias como significante vs. significado,sensível vs. intelegível, literário vs. crítico e, mesmo, literário vs. nãoliterário. No que respeita à poesia e à sua existência e veiculação através deprocess<strong>os</strong> de semiotização como a redundância, o verso, a rima, amusicali<strong>da</strong>de ou a disp<strong>os</strong>ição gráfica, a desconstrução não terá criado58


utopias nihilistas mas terá, pelo contrário, proporcionado caminh<strong>os</strong> deabertura para uma revitalização ou nova problematização,inclusivamente a nível d<strong>os</strong> citad<strong>os</strong> process<strong>os</strong> de semiotização. Este étambém um d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> interessa salientar como justificação dealgumas escolhas por que optám<strong>os</strong> na delimitação de parâmetr<strong>os</strong> deobservação para o corpus <strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa investigação inicial.2.7. POESIA E EXPERIMENTALISMOA op<strong>os</strong>ição entre a natureza contemplativa <strong>da</strong> experiência literária,como experiência estética, e a natureza operacional e instrumental <strong>da</strong>experiência científica, começa a desenhar-se com o estruturalismo e aschama<strong>da</strong>s correntes linguísticas para nunca mais ser definitivamenteapaga<strong>da</strong>. Esta op<strong>os</strong>ição encaminhou-se, sobretudo a partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 80, parauma perspectiva de revigoração de algumas <strong>da</strong>s linhas estruturalistas deabor<strong>da</strong>gem que tinham ficado mais esqueci<strong>da</strong>s e que podem serperspectiva<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> detecção do problema fun<strong>da</strong>mental de uma visãoexperimentalista <strong>da</strong> estética literária, tal como o expõe Silvina RodriguesLopes, na sua tese A legitimação em literatura, 84 n<strong>os</strong> seguintes term<strong>os</strong>:Como pois falar de uma experiência de `representação´ semter em conta que ela excede simultaneamente qualquer hipótese deobjectivi<strong>da</strong>de (adequação a um representado) e subjectivi<strong>da</strong>de(puro acto, inteiramente presente a uma consciência)?Considera ain<strong>da</strong> Silvina Rodrigues Lopes 85 que a exemplari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>literatura lhe confere, simultaneamente, existência e referência,84 [1994:457]85 [1994:458,9]59


existencilai<strong>da</strong>de e exemplari<strong>da</strong>de, provocando como que um fazer defazeres feito que a identifica como presente:[...] Aquilo que a citacionali<strong>da</strong>de introduz é a necessi<strong>da</strong>dede considerarm<strong>os</strong> a indecibili<strong>da</strong>de entre performativo e constativo,ou entre uso e menção, mas também de a admitirm<strong>os</strong> ap<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> auto-reflexão, a qual está na base d<strong>os</strong> paradox<strong>os</strong>semântic<strong>os</strong>[...] Este aspecto é especialmente importante paracompreenderm<strong>os</strong> o funcionamento particular <strong>da</strong> instituiçãoliterária, em que a instituição não é defini<strong>da</strong> por um quadro legalprévio mas se vai afirmando através de um movimento deresistência à instituição – a experiência literária».[...] Se a experiência se dá sempre numa relação com opassado que abre para o futuro como p<strong>os</strong>sível, é porque estarelação não é de simples recepção, pois nesse caso o futuro jáestaria no passado (como se diz em francês, a-venir). É por issoque é preciso ter em conta que o passado nunca é algo que existacomo passado, a memória não é a memória de um conteúdo masmemória <strong>da</strong> experiência do tempo. 86Interessa-n<strong>os</strong>, sobretudo, reter deste p<strong>os</strong>icionamento a autoreflexivi<strong>da</strong>dena experiência literária como elemento veiculador de umequilíbrio entre a objectivi<strong>da</strong>de e a subjectivi<strong>da</strong>de, entre <strong>os</strong> estud<strong>os</strong>literári<strong>os</strong> e o texto literário, auto-reflexivi<strong>da</strong>de essa que permite conciliar,por um lado, a relevância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao carácter intrínseco <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem do textoliterário preconiza<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> estruturalistas, sobretudo nas déca<strong>da</strong>sde sessenta e setenta, e, por outro lado, relevar o crescente pragmatismoque articula ca<strong>da</strong> vez mais o texto literário com <strong>os</strong> media, integrando-o naabrangência social d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de comunicação e provocando o abandono <strong>da</strong>priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong> ao texto em favor <strong>da</strong> noção de sistema.86 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.60


Já a abor<strong>da</strong>gem do texto literário incluído no campo <strong>da</strong> estética, queatrás referim<strong>os</strong>, aponta para as teorias sistémicas que viriam a culminar nateoria empírica <strong>da</strong> literatura de Siegfried Schmidt e na teoria d<strong>os</strong>polissistemas de Itamar Even-Zohar. Tanto uma teoria como a outraencontram as suas raízes no estruturalimo, na medi<strong>da</strong> em que entendem aliteratura como um sistema de comunicação sócio-cultural, passível de serabor<strong>da</strong>do sob perspectivas funcionais. Do estruturalismo terá ficado oobjectivo de descrever e explicar <strong>os</strong> text<strong>os</strong> no modo como funcionam emsituações reais, concretas e específicas, dentro de um desenho ou padrão<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.Esta p<strong>os</strong>ição tem como desvantagens, por um lado, o abandono doestudo do cânone e, por outro lado, uma demasia<strong>da</strong> fixação no que deextratextual existe na orgânica <strong>da</strong> produção, edição, distribuição e consumod<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e na institucionalização d<strong>os</strong> fenómen<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>.Crem<strong>os</strong>, contudo, ser p<strong>os</strong>sível moderar e articular estas duas vertentes.Montserrat Iglesias Sant<strong>os</strong>, no seu ensaio El sistema literario: teoríaempírica y teoría de l<strong>os</strong> polisistemas, considera que tendências como o NewHistoricism e <strong>os</strong> Cultural Studies, apesar do escasso rigor científico que lhesé atribuído, contribuiram para renovar a crítica literária domina<strong>da</strong> peladesconstrução e prepararam o caminho tanto para a teoria empírica comopara a teoria d<strong>os</strong> polissistemas e para a renovação de uma perspectiva decarácter científico d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> preconiza<strong>da</strong> por estas e que assentana imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de conceber a literatura sem ser como um d<strong>os</strong> factoresessenciais do social, sem que a literatura esteja directamente relaciona<strong>da</strong> ecomprometi<strong>da</strong> com o modo de construção <strong>da</strong>s próprias socie<strong>da</strong>des. Afirma aeste propósito Montserrat Iglesias Sant<strong>os</strong>: 87La noción de sistema – base evidente de las coincidênciasque existen entre amb<strong>os</strong> marc<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> -, conlleva una definición61


dela literatura de carácter funcional: el ámbito `literatura´ seestructura como un conjunto o red de element<strong>os</strong> interdependientesen el que el papel específico de ca<strong>da</strong> elemento viene determinadopor su relatión frente a l<strong>os</strong> otr<strong>os</strong>; en otras palabras, por la funciónque desempeña en dita red. Consequentemente, el texto literario ypor ende su interpretación pierden el carácter privilegiado del quegozaban en las aproximaciones tradicionales y dejan de constituiseen fin único de la investigación. De este modo se supera el llamadotextocentrismo de l<strong>os</strong> estudi<strong>os</strong> literari<strong>os</strong>. 88Julgam<strong>os</strong> que a superação de uma atitude «textocentrista» deve serencara<strong>da</strong> com a moderação e as objecções que acima expusem<strong>os</strong> em relaçãoao abandono do estudo do cânone e a uma demasia<strong>da</strong> fixação extratextualrelaciona<strong>da</strong> com a produção e consumo d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e com ainstitucionalização d<strong>os</strong> fenómen<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>.Quanto a<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> de afastamento entre a teoria empírica e a teoriad<strong>os</strong> polissistemas, consideram<strong>os</strong> que a teoria empírica, na perspectiva deSchmidt, releva a interdisciplinari<strong>da</strong>de como base indispensável a umaabor<strong>da</strong>gem científica do literário, <strong>da</strong>do que considera que o sistema literári<strong>os</strong>e organiza como qualquer outro sistema de acções comportamentaissociais. No entanto, <strong>os</strong> adept<strong>os</strong> do empirismo preocupam-se de tal modocom a op<strong>os</strong>ição ao que denominam «paradigma hermenêutico» quesubstituem a focalização n<strong>os</strong> text<strong>os</strong> por uma focalização n<strong>os</strong> sistemas, tantoliterári<strong>os</strong> como sociais, transformando a investigação empírica quase quenuma metateoria, afastando a interpretação textual, quando a suapreocupação deveria ser, para além de descrever <strong>os</strong> participantes nacomunicação literária, explicar <strong>os</strong> fact<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e sociais quecondicionam, ou são condicionad<strong>os</strong> por, process<strong>os</strong> e, sobretudo,procediment<strong>os</strong> literário-sociais.87 [1994: 312]88 sublinhado n<strong>os</strong>so.62


Detectam<strong>os</strong> ain<strong>da</strong>, como aspecto p<strong>os</strong>itivo <strong>da</strong> teoria empírica, o factode <strong>os</strong> seus adept<strong>os</strong> não aceitarem o cânone como o entende a tradição,substituindo-o por «convenções sistémicas»; no entanto, julgam<strong>os</strong> que ainterrogação sobre o valor do cânone, tal como a interrogação sobre o valorde normas e model<strong>os</strong>, deve ser recuperado noutra dimensão queinterrogue <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> cânones - e, sobretudo, <strong>os</strong> text<strong>os</strong> que atestam a suasobrevivência - mas que não negue esta mesma sobrevivência. Na mesmalinha de pensamento, a afirmação de que só é científico o conhecimento aque se chega a partir de experiência empírica deverá ser reformula<strong>da</strong> emfunção <strong>da</strong> objecção de que só aparentemente é objectiva porque sóaparentemente é aceite como consensual tanto pel<strong>os</strong> seus praticantes comopel<strong>os</strong> seus observadores.O próprio Schmidt advoga a intersubjectivi<strong>da</strong>de de critéri<strong>os</strong>, apesardo recurso sistemático a<strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> matemátic<strong>os</strong> e estatístic<strong>os</strong>.Crem<strong>os</strong>, no entanto, que estes procediment<strong>os</strong> poderão ser usad<strong>os</strong> comprecaução, ou seja, não como ver<strong>da</strong>des matemáticas absolutas mas com<strong>os</strong>imples aju<strong>da</strong> de instrumento metodológico conducente a um maisminuci<strong>os</strong>o e exaustivo conhecimento <strong>da</strong> produção literária. Assim <strong>os</strong>entendem<strong>os</strong>, sobretudo no que respeita a metodologia subjacente àobservação <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, que adiante referirem<strong>os</strong>.Serão, assim, esses procediment<strong>os</strong> simultaneamente articulad<strong>os</strong> comuma vertente de interpretação, encarando o princípio «intrasubjectivo» queSchmidt advogava para além <strong>da</strong> verificação de hipóteses através do recursoa experiência(s), o que conferirá à investigação uma dimensão mais alarga<strong>da</strong>e, a n<strong>os</strong>so ver, mais completa e conforme com a índole <strong>da</strong> próprianatureza do literário. Atingir-se-á, assim, uma perspectivação que englobea relação com a tradição, tanto antiga como moderna, e ain<strong>da</strong> com <strong>os</strong>model<strong>os</strong> e códig<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> bem como com uma dimensão a que63


chamarem<strong>os</strong> «socio-estética», partindo <strong>da</strong> definição de «cultural literacy» deE. D. Hirsch: 89Cultural literacy is the context of what we say and read; [...] Tobecome part of cultural literacy, an item must have lastingsignificance. Either it has found a place in our collective memory or ithas the promise of finding such place.A articulação que acima considerám<strong>os</strong> implicará, portanto, a inclusãode uma dimensão hermenêutica que complete a verificação experimental de<strong>da</strong>d<strong>os</strong> e que permita evidenciar aspect<strong>os</strong> modelares formais, temátic<strong>os</strong> ougenológic<strong>os</strong>. A partir <strong>da</strong> detecção desta pertinência poderão, por sua vez,relevar-se parâmetr<strong>os</strong> que traduzam o fazer hodierno <strong>da</strong> poesia portuguesa,um d<strong>os</strong> quais - a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia - interrogarem<strong>os</strong> edesenvolverem<strong>os</strong> no decorrer do presente trabalho.Adoptarem<strong>os</strong>, portanto, a partir <strong>da</strong> linha básica prop<strong>os</strong>ta peloempirismo, uma perspectivação do uso d<strong>os</strong> instrument<strong>os</strong> relaciona<strong>da</strong> com opluralismo na abor<strong>da</strong>gem de concepções e model<strong>os</strong> que p<strong>os</strong>sibilitem umareflexão sobre a complexa plurali<strong>da</strong>de do literário, interrogando-a adentrod<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong>.Além <strong>da</strong> teoria empírica de Siegfried Schmidt, consideram<strong>os</strong>pertinente referir, embora subsidiariamente, como atrás mencionám<strong>os</strong>, ateoria d<strong>os</strong> polissistemas de Itamar Even-Zohar, no que se refere ao seuobjectivo principal de descrever interferências entre literatura(s), língua(s) ecultura(s). 90 Seguindo, tal como Schmidt, uma linha de pensamento queafirma o metateórico na reflexão do literário como sistema, numaaproximação de integração polissistémica, Even Zohar não despreza oconceito de funcionalismo d<strong>os</strong> formalistas, revertendo-o e actualizando-o n<strong>os</strong>entido de considerar que as mu<strong>da</strong>nças do sistema literário, quando vistas89 [1993:ix,x]64


diacronicamente, implicam mu<strong>da</strong>nças dentro do próprio sistema, provoca<strong>da</strong>spor incompatibili<strong>da</strong>des. A ideia aproxima-se analogicamente d<strong>os</strong>mecanism<strong>os</strong> de uma guerra civil, o que faz com que, sincronicamente, <strong>os</strong>istema literário adquira dinamismo.A partir <strong>da</strong> ideia de dinamismo sincrónico, Even-Zohar define a noçãode polissistema como estrutura aberta, ou seja, como um sistema que éconstituído, por sua vez, por uma rede de sistemas interdependentes. Osdivers<strong>os</strong> sistemas do polissistema agem em função <strong>da</strong> deslocação d<strong>os</strong>fenómen<strong>os</strong> caracterizadores do literário num percurso entre centr<strong>os</strong> eperiferias, correspondendo o centro desse movimento à localização docânone. Deste modo, Even-Zohar consegue defender uma não identificação,quer do texto literário quer do sistema literário, com as obras literárias cujocorpus constitui cânone e cuja legitimação, como - embora numaperspectiva não experimental -, afirma Silvina Rodrigues Lopes em Alegitimação em literatura, 91 se encontra em boa parte na dinâmica que umainegável dimensão histórica implica:É através do compromisso e do equilíbrio precário que <strong>os</strong>estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> podem pr<strong>os</strong>seguir, garantindo a existência de algocomo a literatura cujo nascimento alia já mu<strong>da</strong>nça e conservação, anecessi<strong>da</strong>de de novo e a preservação do antigo, o desejo do futuro e apreservação <strong>da</strong> origem.Aproximám<strong>os</strong> esta afirmação de Silvina Rodrigues Lopes dop<strong>os</strong>icionamento de Even-Zohar apenas pela perspectiva de uma conciliaçãoentre element<strong>os</strong> estátic<strong>os</strong> e dinâmic<strong>os</strong>, tais como: o «compromisso» e o«equilíbrio precário»; a «mu<strong>da</strong>nça» e a «conservação»; o «novo» e o«antigo»; o «desejo do futuro» e a «preservação <strong>da</strong> origem»; ou, ain<strong>da</strong>, a«institucionali<strong>da</strong>de» e a «não institucionali<strong>da</strong>de». A dinâmica referi<strong>da</strong> por90 [1990]Número especial de Poetics To<strong>da</strong>y.65


Silvina Rodrigues Lopes vai, pois, de certo modo, ao encontro <strong>da</strong>sp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des do cânone dinâmico de Even-Zohar.Nesta ordem de ideias, saliente-se que, para Even-Zohar, o cânonecomo legitimação estática é substituído por uma espécie de «cânonedinâmico» constituído pel<strong>os</strong> model<strong>os</strong> que, estes sim, e não as obrasconcretas, adquirem um estatuto de repertório como conjunto aberto deregras utilizáveis como matéria ou material e passíveis de reger acriação, repertório esse capaz de uma abrangência que contemple «a duplaafirmação <strong>da</strong> literatura» referi<strong>da</strong> por Silvina Rodrigues Lopes.Reterem<strong>os</strong> como importante para o n<strong>os</strong>so trabalho a perspectivaapresenta<strong>da</strong> por Even-Zohar sobretudo nas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des que ela apresentano sentido de ser p<strong>os</strong>sível que a articulação de regras intersubjectivascom hipóteses empíricas permita individualizar e caracterizar aquiloque configura e determina a expressão literária, inseri<strong>da</strong> num certoâmbito cultural de uma certa socie<strong>da</strong>de, num certo tempo, tendo em contaque um estudo deste tipo conduz, não à formulação de leis exactas mas simà constatação de probabili<strong>da</strong>des e tendências.Importa-n<strong>os</strong> salientar a conciliação de perspectivas acima referi<strong>da</strong> namedi<strong>da</strong> em que o estudo inicial do n<strong>os</strong>so corpus, de cariz empírico, temcomo principal objectivo justamente a individualização de parâmetr<strong>os</strong>,surgid<strong>os</strong> a partir d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, e que configuram uma determina<strong>da</strong>expressão literária, adentro de uma am<strong>os</strong>tragem de determinado lapso detempo, de modo a poder iladir a interrogação de d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> maisrelevantes dessa individualização e que n<strong>os</strong> conduziria, no n<strong>os</strong>so trabalho,ao estudo <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema.A teoria d<strong>os</strong> polissistemas permite, ain<strong>da</strong>, descrever aspect<strong>os</strong>concret<strong>os</strong> <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s literaturas nacionais, se for considera<strong>da</strong> aarticulação <strong>da</strong>s transferências constantes, sincrónicas e diacrónicas, entre <strong>os</strong>91 [1994: 416]66


divers<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> sistémic<strong>os</strong> d<strong>os</strong> polissistemas, como confirma MontserratIglesias Sant<strong>os</strong> no texto El sistema literario: teoría empírica y teoría de l<strong>os</strong>polisistemas: 92 La evolución de l<strong>os</strong> sistemas literari<strong>os</strong> se contempla a la luzde las tenciones entre l<strong>os</strong> estrat<strong>os</strong> canonizad<strong>os</strong> y l<strong>os</strong> nocanonizad<strong>os</strong>; tensiones que tienen un carácter universal <strong>da</strong>do quepertenecen a la propria naturaleza de cualquier sistemasemiótico. 93A perspectivação polissistémica permite, pois, proporcionar umaarticulação do estudo de el<strong>os</strong> de coerência entre a literatura, a língua e aidenti<strong>da</strong>de cultural, o que, como já referido, acarreta novo p<strong>os</strong>icionamentode observação <strong>da</strong> história literária que terá como consequência o pôr emcausa de noções particulares dela decorrentes como, no caso que n<strong>os</strong>interessa, a noção de literatura nacional quando apenas considera<strong>da</strong> de persi. Relevam<strong>os</strong>, portanto, a problemática que implica a conciliação de algoforç<strong>os</strong>amente estático e redutor em relação ao sistema literário, como é umaliteratura nacional, com a complexi<strong>da</strong>de de cânones e model<strong>os</strong> que não sãoforç<strong>os</strong>amente «nacionais», sobretudo pela integração <strong>da</strong> vivência deautores estrangeir<strong>os</strong> «nacionalizad<strong>os</strong>» no que à língua respeita pelo acto <strong>da</strong>tradução. O modelo de ligação ou correlação do cânone com determina<strong>da</strong>língua, país ou cultura, bem como a questão do imp<strong>os</strong>sível isolamento oucircunscrição de uma literatura nacional manifestam-se, por exemplo, emrealizações <strong>da</strong> palavra poética, no dizer de poetas que introduzem n<strong>os</strong> seuspoemas uma língua estrangeira ou traçam uma intertextuali<strong>da</strong>de explícitacom poesia não nacional. Do primeiro caso apresentam<strong>os</strong> o exemplo do uso92 [1994: 334]93 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.67


do inglês no poema «O outro lado», de A esca<strong>da</strong> de Jacob, 94 de FernandoPinto do Amaral:Não consigo dormir. Há poucas horasdespedi-me de ti - «every timewe say goodbyeI die a little». Devo habituar-meàs fases dessa lua a que obedeces,às estranhas marés de ca<strong>da</strong> instanteque tu sabes viver como se f<strong>os</strong>seo único, o melhor <strong>da</strong> tua vi<strong>da</strong>isenta de remors<strong>os</strong> e de apeg<strong>os</strong>,tão próxima de tudo. A minha dorvai-se apagando à medi<strong>da</strong> que um anjodesce ao meu quarto e começa a torná-lofugaz imitação de um paraísoem que até o meu nome se alterasse.A estrofe reproduzi<strong>da</strong> é a primeira de cinco estrofes regulares de umpoema no qual a narrativi<strong>da</strong>de se manifesta, e no qual é conta<strong>da</strong> a história deuma distância e de uma despedi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>de proporciona<strong>da</strong>pela evocação <strong>da</strong> canção de Cole Porter. Este contexto explica a citação emlíngua inglesa pela reprodução mental <strong>da</strong> memorização de um momentopassado que teima em repercutir a sonori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s palavras ditas oupensa<strong>da</strong>s. Esta reprodução de musicali<strong>da</strong>de intensifica de modo quasecabalístico a despersonalização do próprio acto de nomear, que integra apersonagem na história <strong>da</strong> memória de um outro corpo ausente.Para além <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> língua estrangeira no poema, a dinâmicainteractiva entre literatura nacional e não nacional pode implicar o uso deoutra língua no poema, através presença <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de explícita, como94 [ed. ut. 2000: 157]68


o m<strong>os</strong>tra do poema «Tentação», de Os Amantes Obscur<strong>os</strong>, de Luís FilipeCastro Mendes, do qual apenas transcrevem<strong>os</strong> a primeira estrofe: 95TENTAÇÃOThe only way to resist temptation is to yeld to it.(Oscar Wilde)Eu não resistirei á tentação,Não quero que de mim p<strong>os</strong>as perder-te,Que só na fonte fria <strong>da</strong> razãoRenasça a minha sede de beber-te.Considerando que tanto o título como a epígrafe constituem parteintegrante e significante do poema, a citação <strong>da</strong> frase de Oscar Wildecondiciona tanto a interpretação do poema como qualquer outra <strong>da</strong>s suascomponentes linguísticas, ou talvez mais ain<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que salienta ocontraste semântico através do p<strong>os</strong>icionamento gráfico e do uso de umalíngua diversa.O uso <strong>da</strong> língua estrangeira no poema pode ser também explicado nasua causali<strong>da</strong>de pela construção, no poema, <strong>da</strong> ficçionalização de vivênciasem circunstâncias ou cenári<strong>os</strong> de uma sócio-cultura não nacional, mesmoque pela sucessão toponímica, como no poema «Quotidiano», de Diário doLago, de Maria Alzira Seixo: 96[...]Ler Os Lusía<strong>da</strong>s em inglês. You alone, you, pure love,wh<strong>os</strong>e/ Raw power drives human hearts. Tomar uma bebi<strong>da</strong>no bar, com Phil ou Hector. Entrar na livraria, escolherlivr<strong>os</strong> no cadeirão e tomar café. Contornar a Robbie House.Aguar<strong>da</strong>r o autocarro em Regenstein. Regressar ao confortomorno de Regents Park. Ver o correio. Pegar, uma a uma,95 [ed. ut. 1999: 417]69


nas fotografias. Ver a agen<strong>da</strong>. Fazer as contas. Contemplara bizarra estatueta. Afagar as azáleas. Folhear <strong>os</strong> livr<strong>os</strong>, ler.Ler. Ler. Atender o telefone. Ver um filme de Jean-ClaudeVan Dame, ou «Peyton Place», ou «Indiscreet», ou «IndianJones». Endireitar as cadeiras. Uma flor seca recor<strong>da</strong> Abrilpassado. Deitar com as luzes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a agitação <strong>da</strong>sárvores e o escuro do lago.É curi<strong>os</strong>o notar como a musicali<strong>da</strong>de épica se perde na sua tradução,enquanto que a simples enumeração de topónim<strong>os</strong> estrangeir<strong>os</strong> cria odespoletar de um ritmo e de uma sonori<strong>da</strong>de poética que adquirem relevocrescente na determinação <strong>da</strong> progressão de sonori<strong>da</strong>des no poema.Even-Zohar abor<strong>da</strong> esta questão do modelo de ligação do cânone adetermina<strong>da</strong> língua, país ou cultura, no que respeita o imp<strong>os</strong>sível isolamentode uma literatura nacional, também no texto La función de la literatura enla creación de las naciones de Europa, 97 afirmando logo n<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong>parágraf<strong>os</strong>:Para decirlo brevemente, las activi<strong>da</strong>des literarias comotales acaso no sean específicas de Europa, pero las funciones quedichas activi<strong>da</strong>des desempeñaron en la organización de la vi<strong>da</strong>europea, sí pueden ser en efecto propias y características de ella.Cuando estes fenómen<strong>os</strong> aparecen en países no europe<strong>os</strong> durantel<strong>os</strong> sigl<strong>os</strong> diecinueve y veinte, no se trata de hech<strong>os</strong> que siguendirectamente a otr<strong>os</strong> de naturaleza similar previamente existentesen es<strong>os</strong> países, sino más bien de una nueva activi<strong>da</strong>d, toma<strong>da</strong> delas culturas europeas. 98Crem<strong>os</strong> que estas observações podem aplicar-se, num âmbito maisrestrito, considerando que cânones e model<strong>os</strong> <strong>da</strong> «cultura literária»,96 [2001:29]97 [1994: 358]98 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.70


existentes a nível europeu (e também, por exemplo, americano ou, até,oriental), podem não só ser adoptad<strong>os</strong> como assumir uma existênciahomológica ou analógica concomitante. A adopção a<strong>da</strong>ptativa interessan<strong>os</strong>porque perspectiva<strong>da</strong> na sua vertente de constatação de variantes oudominâncias que não serão alheias nem às suas especifici<strong>da</strong>des nacionaisnem ao fazer mais alargado <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de. 99 É ao serviço destavia que mencionam<strong>os</strong> esta perspectiva no âmbito do n<strong>os</strong>so trabalho,sobretudo no que à aproximação <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa coma Expansive Poetry, n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América.2.8. CONSIDERAÇÕES DE SÍNTESEProcurám<strong>os</strong>, com este resumo crítico de diversas abor<strong>da</strong>gens <strong>da</strong>poesia na teoria, fun<strong>da</strong>mentar teoricamente o pluralismo metodológico autilizar neste trabalho, pluralismo esse que advém de aspect<strong>os</strong> pontuais demodel<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> que considerám<strong>os</strong> a ele apropriad<strong>os</strong>. Salientam<strong>os</strong>, assim, aimportância que atribuím<strong>os</strong> àquilo que poderia denominar-se comohipovivência <strong>da</strong> poesia nas abor<strong>da</strong>gens teóricas, procurando desenvolvêlano que se reporta ao estudo <strong>da</strong> poesia portuguesa do final do milénio. 100Privilegiar a linguagem quanto à explicação do fenómeno literário emgeral, e à poesia em particular, foi a directriz adopta<strong>da</strong> pelo estruturalismo.De uma perspectiva imanentista e funcional, não reterem<strong>os</strong> isola<strong>da</strong>mente adetecção <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem como constitutiva do poético,99 Não estando um estudo científico exaustivo de caracterização epocal contempladono âmbito deste trabalho, apenas referim<strong>os</strong> a contemporanei<strong>da</strong>de como aspecto aconsiderar em relação ao estudo <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia maisrecente.100 Salientam<strong>os</strong> de novo que a escolha de p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> e deindividuali<strong>da</strong>des se não encontra forç<strong>os</strong>amente relaciona<strong>da</strong> com uma história <strong>da</strong>teoria mas sim com o contributo que <strong>os</strong> vári<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> e seusp<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> individuais podem trazer ao n<strong>os</strong>so trabalho nas especifici<strong>da</strong>desfuncionais que julgám<strong>os</strong> relevantes.71


mas antes o seu reflexo na <strong>os</strong>cilação aristotélica entre o ser e o sentir, deque não consegue o estruturalismo desapegar-se por completo, e que otermo «poetici<strong>da</strong>de» havia de her<strong>da</strong>r, no seu uso depois d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta.Interessa-n<strong>os</strong>, deste p<strong>os</strong>icionamento teórico, reter a metodologia <strong>da</strong>sistematização, não para dela inferir uma classificação d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> de poesia,mas para averiguar, por um lado, <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong>s suas características eespecifici<strong>da</strong>des e, por outro lado, do que neles aponta para um contínuoliterário. Este objectivo implica, forç<strong>os</strong>amente, considerar não só que opresente se enraíza no passado mas também que não há presente no qualuma sombra se não projecte já no futuro. 101D<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> de cariz linguístico reterem<strong>os</strong>, para on<strong>os</strong>so trabalho, noções como, por exemplo, a de reiteração, a de sintaxerítmica ou a de paralelismo como instrument<strong>os</strong> de trabalho para aaproximação <strong>da</strong> prática poética do n<strong>os</strong>so corpus com recuperação,modificação ou transgressão de cânones e model<strong>os</strong>, individuais ou epocais,formais ou temátic<strong>os</strong>, sejam eles modern<strong>os</strong>, romântic<strong>os</strong>, clássic<strong>os</strong>,medievais ou antig<strong>os</strong>.Reterem<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, como acima e atrás ficou dito, a importância <strong>da</strong><strong>da</strong>pelo estruturalismo à linguística, e que nunca deixou, de um modo ou deoutro, mais ou men<strong>os</strong> explícita ou implicitamente, de estar presente n<strong>os</strong>p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> <strong>da</strong>s correntes teóricas ou <strong>da</strong>s assunções teóricasindividuais que por nós foram abor<strong>da</strong>d<strong>os</strong>.D<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> que, a partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, considerám<strong>os</strong>esboçarem uma crise do imanentismo estruturalista que conduzirá aorelativo afastamento <strong>da</strong> dominante linguística como componente essencial101A referi<strong>da</strong> «projecção no futuro» relaciona-se, sobretudo, com o estudoconducente à relevância <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de como resp<strong>os</strong>ta ao n<strong>os</strong>so questionamento,apresenta<strong>da</strong> no Anexo..72


do objecto <strong>da</strong> teoria literária, por integrarem o literário num vasto sistemaestético, reterem<strong>os</strong> para o n<strong>os</strong>so trabalho a necessi<strong>da</strong>de mais pragmáticade relacionar o texto literário com condicionantes contextuais eextratextuais, indicia<strong>da</strong>s n<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> text<strong>os</strong>, que conduzirão a que opensamento sobre o texto literário contemple realizações culturais eestéticas relaciona<strong>da</strong>s com o acto de comunicação do texto literário e com acomponente do imaginário do seu receptor. No n<strong>os</strong>so trabalho, a linguagempoética será considera<strong>da</strong> apenas uma <strong>da</strong>s componentes do discurso <strong>da</strong>poesia, podendo a caracterização deste discurso envere<strong>da</strong>r porcontextuali<strong>da</strong>des ou extratextuali<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s com o seu estatutoficcional ou com <strong>os</strong> seus procediment<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong>.Considerarem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> a contemplação, por parte d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>literári<strong>os</strong>, do contextualizar do texto literário e <strong>da</strong> abrangência <strong>da</strong>s relaçõesextratextuais do texto poético, que, como texto estético que é, se assume,simultaneamente, como sistema de comunicação e como sistemamodelizante, nunca isento de um contexto cultural epocal alargado ao fazerhodierno <strong>da</strong> literatura. A poesia como vivência, articula<strong>da</strong> com aconvencionali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> códig<strong>os</strong>, é também um d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> que, como jáafirmám<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> interessa desven<strong>da</strong>r neste trabalho.A estética <strong>da</strong> recepção, ao atribuir definitivamente um papelrelevante ao receptor, concede importância ao espaço material de realizaçãodo texto como espaço indicativo de prop<strong>os</strong>tas de leitura relaciona<strong>da</strong>s comreferentes vivenciais intra e extratextuais, o que, como anteriormentejustificám<strong>os</strong>, constitui uma <strong>da</strong>s linhas contributivas para a n<strong>os</strong>sa abor<strong>da</strong>gem<strong>da</strong> poesia, bem como a consideração do texto como prop<strong>os</strong>ta de leiturasvariáveis no tempo e no lugar que, na sua conjunção, p<strong>os</strong>sibilita aidentificação de características individualizantes <strong>da</strong> poesia, consoante aaceitação espacio-temporal <strong>da</strong> flutuação d<strong>os</strong> variad<strong>os</strong> model<strong>os</strong> e cânonesque, no n<strong>os</strong>so trabalho, dirão respeito à presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia.73


Considerarem<strong>os</strong> a articulação de aspect<strong>os</strong> estétic<strong>os</strong>, polític<strong>os</strong> ousociais com o texto poético mas numa configuração que eventualmenteenglobe a circunstanciali<strong>da</strong>de do acto de recepção do leitor. No entanto,integrarem<strong>os</strong> a aceitação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de liga<strong>da</strong> a classificações do textoliterário que partem <strong>da</strong> aceitação de cânones literári<strong>os</strong>. Crem<strong>os</strong> que umacontribuição para esta articulação reside, justamente, no que concerne anarrativi<strong>da</strong>de na poesia, e no seu desenvolvimento <strong>da</strong> ideia de considerar apoesia na relação entre pragmática de construção e efeit<strong>os</strong> de leitura.Quanto a<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> que surgem sob a égide de umatentativa de conciliação <strong>da</strong>s perspectivas histórica e hermenêutic<strong>os</strong>emiótica,salientarem<strong>os</strong> no n<strong>os</strong>so trabalho a detecção de referências paraadequar o relacionamento d<strong>os</strong> cânones e model<strong>os</strong> com <strong>os</strong> text<strong>os</strong>literári<strong>os</strong>, atentando em algumas características textuais comodenunciadoras de uma atitude modelar em função, por exemplo, do destinoestético, político ou social <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua escrita.Também reterem<strong>os</strong>, do p<strong>os</strong>icionamento de Henri Meschonnic, aabor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> relação entre o valor e a obra, pois interessa-n<strong>os</strong> relevar, parao n<strong>os</strong>so trabalho, a relação entre o indivíduo, a socie<strong>da</strong>de, a suatemporali<strong>da</strong>de e <strong>os</strong> seus código, no que respeita particularmente à presença<strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Importa-n<strong>os</strong>, portanto, considerar o texto poéticonuma dupla articulação, como misto de sistema e criativi<strong>da</strong>de, de objecto(s)e sujeito(s), de forma(s) e sentido(s), espaço de realização de model<strong>os</strong>contemporâne<strong>os</strong> bem como históric<strong>os</strong>. Através do estudo <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia portuguesa mais recente, é n<strong>os</strong>so objectivo salientar uma via deabor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia que poderia contribuir, ain<strong>da</strong> que muito pontualmente,para chamar a atenção para a necessi<strong>da</strong>de de se contruir o que, nas palavras74


de Pozuelo Yvanc<strong>os</strong>, seria «uma história <strong>da</strong>s relações entre literatura epúblico, uma semiótica <strong>da</strong> cooperação textual». 102Consideram<strong>os</strong>, em relação a<strong>os</strong> adept<strong>os</strong> <strong>da</strong> desconstrução e a autoresque a pré-anunciaram, como Harold Bloom, Jonathan Culler, Paul De Manou Roland Barthes, que a atitude aparentemente anti-hermenêutica enihilista <strong>da</strong> desconstrução, como atrás vim<strong>os</strong>, acaba por salientar, afinal, aintencionali<strong>da</strong>de como necessi<strong>da</strong>de até <strong>da</strong> própria leitura.Interrogámo-n<strong>os</strong> já sobre o facto de a atitude de permanenteinstabili<strong>da</strong>de, bem como a decorrente e consequente visão <strong>da</strong> leitura comoalegoria, reivindicarem ou não, para a poesia, a sua existência e veiculaçãoatravés de process<strong>os</strong> de semiotização como a redundância, o verso, a rima, amusicali<strong>da</strong>de ou a disp<strong>os</strong>ição gráfica. Admitim<strong>os</strong> a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de adesconstrução, pelo contrário, ter criado aberturas para um novo p<strong>os</strong>tulardesses process<strong>os</strong> de semiotização. Este é um d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> interessasalientar na abor<strong>da</strong>gem d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> de configuração <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de napoesia.Crem<strong>os</strong> que as p<strong>os</strong>ições assumi<strong>da</strong>s por Riffaterre e Thorne constituemum bom ponto de parti<strong>da</strong> para um trabalho conducente a uma hipótese deresp<strong>os</strong>ta a essa questão. A leitura do texto como co-texto implica, pelomen<strong>os</strong> no que à poesia diz respeito, que o texto seja parcialmente mediadopor um processo de semiotização que a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de nãoanula ou descura. Consideram<strong>os</strong>, pois, como já afirmado, que estesp<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> não entram em conflito com <strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> <strong>da</strong>desconstrução.Interessa-n<strong>os</strong> ain<strong>da</strong>, de novo, salientar como pressup<strong>os</strong>to para ametodologia do n<strong>os</strong>so trabalho que é a partir do indizível utópico <strong>da</strong>102 [1989: 127]75


falácia que se podem abrir nov<strong>os</strong> horizontes para a resolução <strong>da</strong>articulação entre <strong>os</strong> cânones e model<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, por um lado, e amobili<strong>da</strong>de do texto, por outro. É-n<strong>os</strong> assim p<strong>os</strong>sibilitado equacionar sobnova luz a problemática <strong>da</strong>s relações entre <strong>os</strong> text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e a suacapaci<strong>da</strong>de para dinamizar e alterar - ou serem dinamizad<strong>os</strong> e alterad<strong>os</strong> por -normas culturais e normas literárias, aspecto que interessa à n<strong>os</strong>saabor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa a partir do qualpretendem<strong>os</strong> interrogar não apenas element<strong>os</strong> caracterizadores do seufazer mas também uma articulação do seu fazer literário com cânones emodel<strong>os</strong>, hodiern<strong>os</strong> ou antig<strong>os</strong>, nacionais ou estrangeir<strong>os</strong>. 103Quanto ao experimentalismo, interessa-n<strong>os</strong> reter a autoreflexivi<strong>da</strong>dena experiência literária, preconiza<strong>da</strong> por Siegfried Schmidtcomo elemento veiculador de um equilíbrio entre a objectivi<strong>da</strong>de e asubjectivi<strong>da</strong>de, entre <strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e o texto literário. Reterem<strong>os</strong>,ain<strong>da</strong>, o crescente pragmatismo que no mundo hodierno articula ca<strong>da</strong> vezmais o texto literário com <strong>os</strong> media, integrando-o numa abrangência social,mas que deverá ultrapassar o relevo <strong>da</strong>do a<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de comunicação paraincidir no entendimento <strong>da</strong> literatura como um sistema de comunicaçã<strong>os</strong>ócio-cultural. Não n<strong>os</strong> absterem<strong>os</strong>, no entanto, de tentar perspectivar,pontualmente e subsidiariamente, a função do texto literário em questõesrelaciona<strong>da</strong>s com <strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de produção, mod<strong>os</strong> de divulgação, mercad<strong>os</strong> einteracção do sistema literário com <strong>os</strong> media, sempre que tal contribua parapôr em evidência aspect<strong>os</strong> descritiv<strong>os</strong> do estatuto enunciativo <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia.Tradução literal, n<strong>os</strong>sa, <strong>da</strong> frase «una historia de las relaciones entre literatura ypublico, una semiótica de la cooperación textual, una história de las categorias dela experiencia estética».103 A referência, embora sem intenção comparativista, no caso do n<strong>os</strong>so trabalho, foia do movimento <strong>da</strong> «Expansive Poetry» n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América.76


Reterem<strong>os</strong> como aspecto p<strong>os</strong>itivo para o n<strong>os</strong>so trabalho o facto de ateoria empírica não aceitar o cânone como o entende a tradição crítica massublinharem<strong>os</strong> que acham<strong>os</strong> dever ser ele recuperado numa dimensão queinterrogue, sobretudo, <strong>os</strong> text<strong>os</strong> que atestam a sobrevivência do cânone. Nãoencararem<strong>os</strong>, portanto, a experiência <strong>da</strong> observação empírica comoprocedimento que conduz a um conhecimento mas como simples aju<strong>da</strong> aoconhecimento <strong>da</strong> produção literária que não exclui nem a relativaobjectivi<strong>da</strong>de operacional do recurso à teoria nem a subjectivi<strong>da</strong>de do prazer<strong>da</strong> interpretação. A n<strong>os</strong>so ver, mais conforme com a índole <strong>da</strong> próprianatureza do literário será um estudo que, como atrás salientám<strong>os</strong>, englobe arelação com a tradição, tanto antiga como moderna, e ain<strong>da</strong> com <strong>os</strong> model<strong>os</strong>e códig<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, determinando uma abrangência que permita a reflexã<strong>os</strong>obre a manifesta existência de uma plurali<strong>da</strong>de de manifestações no querespeita a<strong>os</strong> poemas de autores portugueses n<strong>os</strong> quais se manifesta anarrativi<strong>da</strong>de.Reterem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>ições teóricas empíricas, essencialmente orelevar do pluralismo na abor<strong>da</strong>gem de concepções e model<strong>os</strong>, o que,julgam<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> permitirá abor<strong>da</strong>r o dinamismo de uma sincronia na suarelação com o que de histórico também a configura. Aplicarem<strong>os</strong>, portanto,no n<strong>os</strong>so estudo, a noção de cânone dinâmico de Even-Zohar, que constituie institui o cânone através de model<strong>os</strong> que adquirem um estatuto derepertório, ou seja, como anteriormente vim<strong>os</strong>, um estatuto de «regrasutilizáveis como matéria ou material, passíveis de reger a criação».Parece-n<strong>os</strong> existir nesta conciliação por nós sugeri<strong>da</strong>, uma maiorflexibili<strong>da</strong>de de manobra metodológica e uma abor<strong>da</strong>gem que manifestemais ampla intersubjectivi<strong>da</strong>de entre a sempre falível hipótese doestabelecimento de tipologias e a hipótese empírica <strong>da</strong> realização do texto, oque n<strong>os</strong> permitirá tentar individualizar aquilo que configura e determina aexpressão literária e enunciativa <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesamais recente, tendo o cui<strong>da</strong>do de realçar e ressalvar que um estudo deste77


tipo conduz, não à formulação de leis exactas, mas sim à detecção devariantes ou dominâncias peculiares que conduzam à constatação deprobabili<strong>da</strong>des, p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des e tendências, através do m<strong>os</strong>trar dep<strong>os</strong>síveis leituras que dêem conta do fazer literário.78


CAPÍTULO II - CÂNONE, PÓS-MODERNISMO EPOESIA1. CÂNONE LITERÁRIO E POESIAO cânone literário pode ser considerado, de um modo talvez maisevidente mas não men<strong>os</strong> perig<strong>os</strong>o ou redutor, como acervo de text<strong>os</strong> deautores dit<strong>os</strong> consagrad<strong>os</strong>, no decurso <strong>da</strong> educação escolar e n<strong>os</strong> manuais elivr<strong>os</strong> de história <strong>da</strong> literatura, quer comprovad<strong>os</strong> pela política de reediçõesadopta<strong>da</strong>, quer pela referência relevante por parte de crític<strong>os</strong> e académic<strong>os</strong>.Os element<strong>os</strong> do cânone, assim entendido, não são submetid<strong>os</strong> a umareavaliação, não são interpelad<strong>os</strong>, rejeitad<strong>os</strong> ou p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> em causa;permanecem rígid<strong>os</strong> e estátic<strong>os</strong>, quaisquer que sejam <strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> de g<strong>os</strong>toou de valor d<strong>os</strong> estu<strong>da</strong>ntes ou d<strong>os</strong> leitores d<strong>os</strong> referid<strong>os</strong> manuais e adiversificação <strong>da</strong> generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua recepção. Verificam<strong>os</strong>, assim, que asensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prática literária periférica em relação ao cânone, bem comoa sua aceitação por parte de um público alargado, bem ain<strong>da</strong> a apetência e asvivências colectivas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, não influenciam ou provocam, naprática, alterações de escolha e consagração no que ao cânone diz respeito.Referíamo-n<strong>os</strong> acima a<strong>os</strong> element<strong>os</strong> do cânone tradicional mas, decerto modo, o mesmo se passa com <strong>os</strong> element<strong>os</strong> do cânone hodierno, estesain<strong>da</strong> mais dependentes <strong>da</strong> sua divulgação e valorização por parte <strong>da</strong> críticae por grup<strong>os</strong> de intelectuais, não tão isent<strong>os</strong> de uma dimensão de79


parciali<strong>da</strong>de cultural e política como poderia parecer. Acontece talfenómeno quer na institucionalização e legitimação do cânone através d<strong>os</strong>media, quer na sua introdução em corpus de text<strong>os</strong> de estudo paraestu<strong>da</strong>ntes d<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> níveis de ensino.A situação enquadra-se a partir de constatações que têm comoreferência o n<strong>os</strong>so país, que melhor conhecem<strong>os</strong> e onde não encontram<strong>os</strong>uma flexibili<strong>da</strong>de de atitude que permita considerar uma dinâmica demobili<strong>da</strong>de nas obras considera<strong>da</strong>s institucionaliza<strong>da</strong>s como cânones <strong>da</strong>literatura, de modo a equacioná-las com a evolução colectiva d<strong>os</strong> g<strong>os</strong>t<strong>os</strong> evivências que marcam uma atitude colectiva de uma comuni<strong>da</strong>de perante opassado e o presente literári<strong>os</strong>.No caso do presente trabalho, interessaram-n<strong>os</strong> apenas alguns autoresmais destacad<strong>os</strong>, salvaguar<strong>da</strong>ndo to<strong>da</strong>via a n<strong>os</strong>sa investigação/catalogaçãodo corpus de poesia publica<strong>da</strong> em Portugal de 1990 a 1995, meramentecomo am<strong>os</strong>tragem e exemplo em que se podem detectar regulari<strong>da</strong>des deparâmetr<strong>os</strong> do fazer poético com eventuais p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de representaruma estética vivi<strong>da</strong> pela população de um país. Os text<strong>os</strong> de poesia e,subsequentemente, <strong>os</strong> seus autores, não podem deixar de relacionar-seintimamente tanto com o seu passado histórico, através d<strong>os</strong> cânonesseculares, como com o seu presente vivencial, através d<strong>os</strong> cânonescontemporâne<strong>os</strong>, interdinamizando-se mutuamente. O n<strong>os</strong>so trabalhoprocura articulá-l<strong>os</strong> e verificar quais as permanências e dominantes <strong>da</strong>s duasvertentes, bem como o seu modo de interacção no que diz respeito à poesiaportuguesa mais recente e, em particular, à presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de nessaprodução poética. Exemplificam<strong>os</strong> a dinâmica de interacção de cânonesnuma <strong>da</strong>s suas múltiplas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des, com o soneto « Não sei, amor,sequer se te consinto», de Pedro Tamen: 104104 [PEDROSA. 2001:189]80


Não sei, amor, sequer, se te consintoou se te inventas, brilhas, adormecesnas palavras sem carne em que te mintoa ver<strong>da</strong>de intemi<strong>da</strong> em que me esqueces.Não sei, amor, se as lavas do vulcãon<strong>os</strong> lavam, veras, ou se trocam tintasd<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> ao cabelo ou coraçãode tudo e de ti mesma. Não que sintasoutra coisa de mais que n<strong>os</strong> feneça;mas só não sei, amor, se tu não sabesque sei de certo a malha que n<strong>os</strong> teça,o vento que n<strong>os</strong> leves ou n<strong>os</strong> traves,a mão que te n<strong>os</strong> dê ou te n<strong>os</strong> peça,o princípio de sol que n<strong>os</strong> acabes.O modelo renascentista manifesta-se no uso formal do soneto, sem asinfracções com que o subverte o cânone hodierno. No entanto, apesar documprimento <strong>da</strong>s regras na regulari<strong>da</strong>de métrica, estrófica e rimática, eapesar <strong>da</strong> estruturação silogística, pode sentir-se também a p<strong>os</strong>sívelintencionali<strong>da</strong>de de um modelo temático camoniano subvertido. Assim, umcampo lexical ou uma recorrência sintáctica camonianas («amor»,«consinto», «minto/ a ver<strong>da</strong>de intemi<strong>da</strong> em que me esqueçes», «veras», «amalha que n<strong>os</strong> teça») entrecruzam-se com a duplici<strong>da</strong>de e cumplici<strong>da</strong>de deum campo lexical hodierno ao qual se mescla a referi<strong>da</strong> sintaxe («palavrassem carne», «o vento que n<strong>os</strong> leves ou n<strong>os</strong> traves», «o princípio de sol»).Por outro lado, o jogo maneirista de anástrofes, tal como o jogo linguístico,surgem desmistificado pelo pr<strong>os</strong>aicismo ou pela ironia de certasambigui<strong>da</strong>des («as lavas do vulcão/ n<strong>os</strong> lavam», «o vento que n<strong>os</strong> leves ou81


n<strong>os</strong> traves», «o princípio de sol que n<strong>os</strong> acabes»). As próprias construçõesanastróficas se vão degra<strong>da</strong>ndo progressivamente, ao longo do soneto,atingindo no último terceto uma transmutação do paradoxo antitéticocamoniano, subvertido pelo nonsense quase paródico <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.Ao abor<strong>da</strong>r o cânone literário, perspectivámo-lo essencialmentesegundo quatro vertentes <strong>da</strong> diacronia do seu entendimento, queconsideram<strong>os</strong> terem sido abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s na sua coexistência e convivência apartir, sobretudo, d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta do século vinte. Consideram<strong>os</strong>constituírem as duas primeiras vertentes, segundo Lillian S. Robinson em Inthe Canon´s Mouth, o «patriarchal literary canon» e o «dominant myth of ahuman universal». 105 Em tradução n<strong>os</strong>sa, tem<strong>os</strong>, portanto, em primeiro lugaro cânone literário patriarcal, o bíblico patriarcal, fonte <strong>da</strong> metáfora docânone e, em segundo lugar, o mito dominante de uma universalhumana. 106 Estas duas concepções de cânone literário interessaram-n<strong>os</strong> namedi<strong>da</strong> em que, na abor<strong>da</strong>gem do n<strong>os</strong>so corpus de poesia, e ao procurar <strong>da</strong>rconta <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, sentim<strong>os</strong> necessi<strong>da</strong>de deinformação acerca <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>s antigas origens literárias e interrogar-n<strong>os</strong>sobre como <strong>os</strong> mod<strong>os</strong> <strong>da</strong> sua permanência num «novo material» <strong>os</strong> poderiarevivificar, relacionando novas correntes estéticas com escolhas de padrõesestétic<strong>os</strong> dominantes, como anteriormente salientám<strong>os</strong>.Considerám<strong>os</strong>, pois, tanto a consagração como o desafio ao cânone,enfatizad<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que o n<strong>os</strong>so estudo abre fronteiras e voz auma totali<strong>da</strong>de de produção poética que engloba uma experiência social ecultural vasta e diversifica<strong>da</strong>, incluindo text<strong>os</strong> de autores que, pela suasituação periférica ou motiv<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, têm, à parti<strong>da</strong>, p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> derelação muito diversa com <strong>os</strong> cânones, sejam estes ancestrais ou hodiern<strong>os</strong>.Pretendem<strong>os</strong>, deste modo, relevar a importância <strong>da</strong> prática poética de um105 [1997: 78]106 Tradução n<strong>os</strong>sa, circunstancial.82


país, na sua globali<strong>da</strong>de, como importante veículo de manutenção e derenovação <strong>da</strong> tradição literária.Julgam<strong>os</strong> que, actualmente, pensar o cânone na sua dimensão deherança com projecção para o futuro passará inevitavelmente por aceitar nã<strong>os</strong>ó a sua mobili<strong>da</strong>de e dinâmica de recepção mas também a sua dinâmica anível de interferência na concretude <strong>da</strong> produção textual. Ain<strong>da</strong> em respeitoà produção, crem<strong>os</strong> que a herança de cânones no mundo <strong>da</strong> globalização, noqual a individualização luta por sobreviver, só poderá sobreviver quandoperspectiva<strong>da</strong> adentro de uma dimensão de mecânica de produção/recepçãoque ultrapasse elites e restrições valorativas e p<strong>os</strong>sa constituir o reflexo <strong>da</strong>smais diversas expressões poéticas e culturais, no n<strong>os</strong>so caso no exemplo <strong>da</strong>população de um país.Quanto ao aspecto valorativo, julgam<strong>os</strong> que mesmo o estudo <strong>da</strong>produção poética «subterrânea» despreza<strong>da</strong> pode contribuir, com a sua voz,dentro do seu espaço limitado de vigência, para a manutenção do cânone, namedi<strong>da</strong> em que reflecte um desejo de «fazer como», sobretudo se o seuespaço for considerado nas acepções acima foca<strong>da</strong>s, mas também sep<strong>os</strong>icionado em relação a realizações hodiernas do cânone. Por este motivo,consideram<strong>os</strong>, em terceiro lugar, o cânone entendido como parâmetrorelacionado directa e restritivamente com a obra de um autor e, emquarto lugar, o cânone como corpus representativo de uma tradição(nacional, europeia, ocidental etc.), assumido geralmente, e numa tripartiçãoalgo dúbia, como «antigo», «clássico» e «moderno» e, ain<strong>da</strong>, ora veiculandoo multiculturalismo, ora acentuando-o como resultante de uma raiz comumidentificadora, ora conferindo ênfase à diferenciação individualizadora.Se contradição parece haver nesta n<strong>os</strong>sa abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> presença docânone em relação a um corpus 107 que integra, lado a lado, tanto publicaçõesde autores «consagrad<strong>os</strong>» como de alguns «amadores anónim<strong>os</strong>», ou de107 Cf. Anexo.83


vári<strong>os</strong> «jovens promissores», essa contradição será, talvez, afinal, p<strong>os</strong>itivapara o questionamento de intencionali<strong>da</strong>de, pois pretende devolver a<strong>os</strong>estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> um «face a face» com o texto literário talvez assustadormas que está hoje definitivamente presente na vivência - e na sobrevivência- do literário. As trocas e permutas entre passado longínquo, passado recentee presente não podem já ser considera<strong>da</strong>s apenas a nível de elites, sob penade essas elites presenciarem a sua própria derrota e se afastarem <strong>da</strong> culturaliterária de um povo.Diríam<strong>os</strong> que a poesia, tal como a literatura em geral, ou tal comoqualquer outra expressão estética do mundo <strong>da</strong> cultura, constitui, emqualquer época, um movimento para o qual se tende, e não uma <strong>os</strong>cilaçãopendular estática, ou seja, constitui um momento de falso movimentoestático, pois provém <strong>da</strong> pressão que exerce o passado ao embater nopresente para se reflectir no futuro, emprestando assim ao presente umailusão de estabili<strong>da</strong>de ou cristalização. Trata-se de um fenómenocomparável ao que ocorre quando uma bola de bilhar faz movimentar umaterceira bola, ficando a do meio para<strong>da</strong>.Ora, este movimento silente e estático pode apresentar, por vezes, umaauto-consciência de abrangência multicultural (tão própria, também, do queé pós-moderno), mas que não poderá descurar nunca o modoindividualizador pelo qual essa globalização se manifesta, seja, no caso don<strong>os</strong>so país, a nível português ou europeu, e por americana ou oriental queseja a sua origem. Lillian S. Robinson, em In the Canon´s Mouth, 108 afirmaa este propósito, após ter referido vári<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> que demonstramestarm<strong>os</strong> a viver uma época na qual não vim<strong>os</strong> «de uma cultura», mas simcaminham<strong>os</strong> «para uma cultura»:So it may be high time to make sure we know what thiscanon culture really is about and that we can tell the difference84


etween a metaphor and a weapon, as th<strong>os</strong>e in power, bothacademic and governmental, continue to politicize an issue we´<strong>da</strong>lways considered political in another, rather milder and moreacademic sense.Refere ain<strong>da</strong> que a hegemonia, no domínio cultural como em outr<strong>os</strong>,não é algo que p<strong>os</strong>sa ser definido e defendido por bastiões culturais,polític<strong>os</strong>, académic<strong>os</strong> ou outr<strong>os</strong>, mas apenas pelo simples e óbvioreconhecimento <strong>da</strong> sua existência. Acrescentaríam<strong>os</strong> que essereconhecimento terá que passar, no que respeita ao n<strong>os</strong>so trabalho, pelopoder <strong>da</strong> produção poética que denominám<strong>os</strong> «subterrânea», poisencontram<strong>os</strong>, ladeando-se no tempo, realizações de autores consagrad<strong>os</strong> ede autores periféric<strong>os</strong> que contribuem para a manutenção do cânone atravésdo seu fazer poético. Considerem<strong>os</strong>, a título exemplar, o poema «GarciaLorca era poeta», de Carl<strong>os</strong> Lopes Pires: 109Garcia LorcaEra poeta e fazia poemas.Fazia poemas e trazia-<strong>os</strong> dentro d<strong>os</strong> bols<strong>os</strong>.N<strong>os</strong> seus poemasEsvoaçavam flores e pássar<strong>os</strong>,Ri<strong>os</strong> e multidões.Mas estava só quando o fuzilaram.G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de confrontar este poema com o poema «FredericoGarcia Lorca», 110 de 1993, em Sonet<strong>os</strong> do Obscuro Quê, de Manuel Alegre:108 [1997: 98]109 [1993:51]Edição de autor, de Lin<strong>da</strong>-a-Velha. A título de curi<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de lembram<strong>os</strong> queCarl<strong>os</strong> Lopes Pires, antes de se tornar um d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> sua Editorial Diferença,publicou em edição de autor de 1993 a 1995.85


Ele habita a metáfora e o duendepor dentro <strong>da</strong> guitarra ele desenhaEntre nardo e jasmim a mão que acendea flor <strong>da</strong> soleá por ti<strong>da</strong> a Espanha.O érre de Grana<strong>da</strong> o érre e o rioa lua o olival o mau agoiroonde súbito a noite é um arrepiocomo um toiro de morte como um toiro.E há um vento de presságio e agoniaum sussurro de choupo e alfazemaum verso onde se joga a vi<strong>da</strong> e a sorte.Começa então o canto e An<strong>da</strong>luzia.E o poeta está de pé no seu poemasobre a morte na arena sobre a morte.Não deixa de ser curi<strong>os</strong>o o facto de Manuel Alegre ter optado pelomodelo clássico do soneto enquanto que um poeta como Carl<strong>os</strong> Lopes Pires,na altura desconhecido d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> de grande divulgação, se decidiupelo verso livre, para abor<strong>da</strong>rem a temática de um poeta como Lorca.Crem<strong>os</strong> perceber nesta escolha dois mod<strong>os</strong> de interacção com o cânone: oprimeiro, na consciência do cânone <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de pela adopção de umaescolha de libertação de regras, o segundo, na consciência do uso modelardo cânone tradicional numa adequação hodierna.Não relevarem<strong>os</strong> aqui a comovente subjectivi<strong>da</strong>de emocional <strong>da</strong>simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura de Lorca, no poema de Carl<strong>os</strong> Lopes Pires, emcontraste com a forte intertextuali<strong>da</strong>de e domínio do jogo do conhecimentoliterário, manifestad<strong>os</strong> no soneto de Manuel Alegre, nem também <strong>os</strong>diferentes níveis de procediment<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> que demarcam uma prática110 [ed. ut. 1997: 656]86


literária provavelmente mediana <strong>da</strong> prática literária de um grande escritor.Interessa-n<strong>os</strong>, sim, neste confronto, relevar que amb<strong>os</strong> <strong>os</strong> poetas contribuempara a manutenção do cânone, adentro <strong>da</strong> perspectiva teórica queanteriormente referim<strong>os</strong>.Ao trabalhar a poesia de um lapso de tempo no qual impera, comoatitude de élite pós-moderna, a recuperação de model<strong>os</strong> queconfiguraram cânones antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong>, cuja simultanei<strong>da</strong>dedesenvolverem<strong>os</strong> no que respeita à presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia,g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de fazer com que o n<strong>os</strong>so trabalho despertasse a atenção para <strong>os</strong>reflex<strong>os</strong> contemporâne<strong>os</strong> desse poder cultural. Julgam<strong>os</strong> tal atitude só serp<strong>os</strong>sível se forem também considera<strong>da</strong>s as contaminações desses poderesacadémic<strong>os</strong> e culturais com as outras vozes mais abafa<strong>da</strong>s mas coexistentes,na globali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> produção poética de um tempo e de um lugar do qual nãoquereríam<strong>os</strong> excluir, por um lado, características comprovativas deglobalização nem, por outro lado, características individualizantes queprovam manterem-se ain<strong>da</strong> vigentes ou viventes noções que consideram<strong>os</strong>culturalmente individualizadoras, como as de povo e de nação.Na obra Canons and Context, 111 Paul Lauter p<strong>os</strong>iciona a problemáticado cânone literário numa perspectiva multicultural e delimitaniti<strong>da</strong>mente, por um lado, o cânone, sobretudo relacionado com a suaexistência e sobrevivência no ensino e, por outro lado, <strong>os</strong> aspect<strong>os</strong>político-sociais e culturais do contexto do cânone, fazendo-<strong>os</strong> evoluir emparalelo e em concatenação, mas não em interacção. Este n<strong>os</strong>so reparocrítico faz emergir o problema <strong>da</strong> separação contextual, que n<strong>os</strong> interessafocar em relação ao n<strong>os</strong>so trabalho. Julgam<strong>os</strong> que, mais do quecontextualizar o cânone em relação a poderes que, por sua vez, determinamas suas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des e potenciali<strong>da</strong>des específicas, interessa para a n<strong>os</strong>sa111 [1991: 126]87


abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia a questão do valor literário, articulado com a práticatextual, como contributo para a sobrevivência do cânone pel<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> d<strong>os</strong>eu uso na prática literária.Apesar de relevar a ética e a política como áreas a partir <strong>da</strong>s quais aquestão do cânone deve ser articula<strong>da</strong>, na reali<strong>da</strong>de, em boa parte d<strong>os</strong>ensai<strong>os</strong>, Lauter limita-se quase a não avançar para além <strong>da</strong> articulação <strong>da</strong>questão do cânone com problemáticas de prática pe<strong>da</strong>gógica.Reconhecem<strong>os</strong> que é imp<strong>os</strong>sível obnubilar as vozes ético-políticas quedeterminam boa parte <strong>da</strong> cultura que sanciona o cânone, mas continuam<strong>os</strong> aconsiderar de maior pertinência escutar as vozes textuais quepersonificam a consagração do cânone no presente e que, por tal,preconizam a sua eventual propagação em direcção ao futuro.Quer se queira, quer não, e seja em que diferentes sentid<strong>os</strong> forentendido, o cânone é indubitavelmente um poder e, como tal, não épassível de estatici<strong>da</strong>de nem de restrições elitistas de aplicação. Como poderque é, está sujeito ao seu estabelecimento, ascensão e que<strong>da</strong>. Aimortali<strong>da</strong>de do cânone e a sua força como arma defensora não sepotencializa tanto n<strong>os</strong> poderes que o p<strong>os</strong>sibilitam como, antes, nas vozesque o propagam. A hipótese de imortali<strong>da</strong>de, para o cânone, está,justamente, no paradoxo <strong>da</strong> sua permanência através <strong>da</strong> variabili<strong>da</strong>de.A este propósito, g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de m<strong>os</strong>trar dois excert<strong>os</strong> de dois poemas deNuno Júdice, em O Estado d<strong>os</strong> Camp<strong>os</strong>: 112ANÁLISE LITERÁRIALendo o poema que começa «junto de umseco, fero e estéril monte», o que vejo é o r<strong>os</strong>todessa que vivia em Lisboa, e cuja memória era caraao poeta que vai lembrando <strong>os</strong> seus «clar<strong>os</strong>olh<strong>os</strong>». Sobre essa imagem, p<strong>os</strong>so88


compreender a dor que o poeta sente, distantedela, e tendo perante sium desterro que o irá afastar, para sempre,<strong>da</strong> mulher que amou. [...].......................................................................................TEORIA DA COMUNICAÇÃO...............................................................................................................................................[...] O poema teráde obedecer às imp<strong>os</strong>ições do amor; e um desequilíbriode estrofes, uma vertigem de rimas, uma desordem demetáforas, fará viver para sempre o que só existe no tempode um sentimento que n<strong>os</strong> pertence, a mim e a ti, masque estas palavras levarão a todo o lado, para que não cesse.Quer no próprio título d<strong>os</strong> poemas, que designa já umaintencionali<strong>da</strong>de de que a voz poética se sobreponha ou, pelo men<strong>os</strong>,acompanhe a voz teórica, quer no uso <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de (no primeiroexcerto) ou <strong>da</strong> metalinguagem (no segundo excerto) se pode comprovar oparadoxo <strong>da</strong> permanência do cânone através <strong>da</strong> sua variabili<strong>da</strong>de nasrealizações literárias.Crem<strong>os</strong> que é também sob a perspectiva de dinâmica de imbricaçãotransformadora que se manifestam e podem ser encarad<strong>os</strong> problemas comoo do pluriculturalismo ou o <strong>da</strong> conciliação <strong>da</strong> teoria com a prática: nãoapenas como vozes solitárias que falam de si próprias e para si próprias, mastambém, e sobretudo, como coro complexo de vozes que se entrecruzampara formar uma melodia. Nesta complexi<strong>da</strong>de harmónica residirá, talvez,a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de resp<strong>os</strong>ta à interrogação sobre a vontade de permanência,112 [2003:126 e153]89


de transformação ou de mu<strong>da</strong>nça de parâmetr<strong>os</strong> modelares <strong>da</strong> produçãoliterária, considera<strong>da</strong> esta numa perspectivação provin<strong>da</strong> de um alargamentotanto do conceito de teoria como do <strong>da</strong> própria prática literária.No primeiro capítulo de O Cânone Ocidental, de Harold Bloom,intitulado «Uma Elegia em Louvor do Cânone», 113 podem<strong>os</strong> ler as seguintesafirmações:[...] a crítica literária, considera<strong>da</strong> como uma arte, foi e serásempre um fenómeno elitista. Foi um erro acreditar que a críticaliterária se podia tornar um suporte <strong>da</strong> educação democrática ou doprogresso social. [...]Se encararm<strong>os</strong> o Cânone como a relação de um leitor e deum escritor individuais com aquilo que foi preservado de entretudo o que foi escrito, esquecendo a ideia de cânone como umalista de livr<strong>os</strong> de estudo obrigatório, então o Cânone dá-se a vercomo sendo idêntico à literária Arte <strong>da</strong> Memória e não ao sentidoreligi<strong>os</strong>o de cânone. 114Parece-n<strong>os</strong>, pois, que só em term<strong>os</strong> de abstracção se podem separarcomo não coexistentes as «listas de livr<strong>os</strong> de estudo obrigatório» e a«literária Arte <strong>da</strong> Memória» visto que, a n<strong>os</strong>so ver, o valor estéticoconvencionalizado e <strong>os</strong> valores poétic<strong>os</strong> universais se encontram numlatente e permanente diálogo. Julgam<strong>os</strong> ser mais pertinente a visão <strong>da</strong>reiteração temporal de text<strong>os</strong> modelarmente considerad<strong>os</strong> comoconfigurando cânone - na sua existência intermitente, conjuga<strong>da</strong> comvariantes espácio-temporais - do que as questões históricas ou sincrónicasacerca <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s convenções culturais que determinam a aceitaçãoou rejeição momentânea e temporiza<strong>da</strong> desses text<strong>os</strong>.Na reali<strong>da</strong>de, a ser p<strong>os</strong>sível esta separação de facto, ela <strong>da</strong>ria razão deser ao título do capítulo de Bloom como expressão do «louvor elegíaco» ao113 [ed. ut. 1997: 28] Ed. orig. 1994.90


cânone, que , parcialmente, o próprio Bloom contraria se relacionarm<strong>os</strong> asafirmações do primeiro parágrafo citado com a seguinte 115 :O valor estético pode ser reconhecido ou experimentado naprática, mas não pode ser transmitido a<strong>os</strong> que são incapazes decaptar as suas sensações e percepções. Por isso, é sempre umatolice apresentar argument<strong>os</strong> em sua defesa.A integração de convenções literárias tradicionais, veicula<strong>da</strong>s atravésde cânone, só tem ver<strong>da</strong>deira existência na sua presença activa em outr<strong>os</strong>text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>. Para tal, não é necessário ser poeta para só através <strong>da</strong>poesia poder falar de poesia, 116 mas talvez para lá caminhem<strong>os</strong> se aprodução de poesia não for reconheci<strong>da</strong> como parte construtora <strong>da</strong>inteligibili<strong>da</strong>de estética, se ela não for situa<strong>da</strong> no cruzamento <strong>da</strong>sdeterminantes assumi<strong>da</strong>s pelas elites com as similitudes e recorrênciapresentes nas suas realizações marginais.Tomem<strong>os</strong> como exemplo a utilização do «estar em pr<strong>os</strong>a» por parted<strong>os</strong> poetas, ou seja, a apropriação de uma forma que tradicionalmentedefinia, pela sua negação, a poesia e <strong>da</strong> qual decorre uma op<strong>os</strong>içãocomplementar essencial para a recepção de text<strong>os</strong> publicad<strong>os</strong>intencionalmente como poesia e que adoptam, integral ou parcialmente, ouso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a como pertinência gráfica do poema. Vejam<strong>os</strong>, por curi<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de,o poema «Teresa», de Maria Eulália Macedo, em As mora<strong>da</strong>s terrenas: 117114 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.115 [ed. ut. 1997: 29] Ed. orig. 1994.116 Lembram<strong>os</strong> , a propósito, a «ci<strong>da</strong>de utópica» de Real Presences, de GeorgeSteiner, na qual se preconizava que o texto crítico ao poema deveria ser umpoema.117 [1994:73]91


55. TeresaDe manhã saí a comprar mel e nozes. Tenho cá a minha sobrinhaTeresa. Lin<strong>da</strong> como ela é, alta, séria, tranquila. Comem<strong>os</strong>juntas.Vam<strong>os</strong> tomar café, fumam<strong>os</strong> d<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> cigarr<strong>os</strong>. Namoraum moç<strong>os</strong>em curso e dono de uns olh<strong>os</strong> muito verdes.Relevam<strong>os</strong> a temática pr<strong>os</strong>aica do quotidiano e a ausência depertinência fónica musical, bem como a a<strong>da</strong>ptação do «estar em pr<strong>os</strong>a» a umgrafismo que sugere o «estar em verso», apenas com o intuito de confrontareste poema com um excerto de um texto de O Medo, de Al Berto: 11813 de abrila noite tranquila. a sombra do homem debruçado para ocaderno de notas, a luz incidindo sobre a página. silêncio onde sepode adivinhar o vento. Zéfiro, esse terrível vento que desviou odisco que Apolo lançava e matou Jacinto.a noite tranquila, a morte de Jacinto, o poema não será escrito.------------------------------------------------------------------o homem fecha a janela, acende a luz, abre o caderno de notase escreve: são três <strong>os</strong> poemas que não ousarei escrever...A temática do quotidiano é subverti<strong>da</strong>, no poema de Al Berto, pelaintensa pertinência fónica musical que empresta um som lírico ao poema, ecom tal intensi<strong>da</strong>de que contradiz o explícito estatuto diarístico que, por suavez, entra no jogo intimista <strong>da</strong> rede poética. Tudo isto permite o assumirpleno do «estar em pr<strong>os</strong>a», caso que não se <strong>da</strong>va no poema de Maria EuláliaMacedo. No entanto, apesar do distanciamento valorativo que consideram<strong>os</strong>existir nas duas realizações textuais, amb<strong>os</strong> expressam o recurso a um fazerEdição de autor, de Amarante.118 [1987: 477]92


poético que reconhece um modelo formal d<strong>os</strong> cânones hodiern<strong>os</strong>. 119 Estaconstatação corrobora o p<strong>os</strong>icionamento teórico que defende dever ser apoesia reconheci<strong>da</strong> como parte construtora <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de estética nocruzamento de práticas literárias tanto <strong>da</strong>s elites consagra<strong>da</strong>s como <strong>da</strong>s suasrealizações marginais.Reformularíam<strong>os</strong>, pois, a afirmação de Bloom, no sentido deconsiderar o valor estético como uma construção <strong>da</strong> prática, retomad<strong>os</strong> outransformad<strong>os</strong> valores convencionais do universo poético, mas sempre,essencialmente, com uma apropriação de familiari<strong>da</strong>de: 120Um poema não pode ser lido como poema, porque éprimeiramente um documento social ou, rara mas p<strong>os</strong>sivelmente,uma tentativa de triunfo sobre a fil<strong>os</strong>ofia. Contra esta abor<strong>da</strong>gemeu reclamo uma resistência tenaz cujo objectivo é conservar apoesia de um modo tão íntegro e puro quanto p<strong>os</strong>sível. 121A pureza que Bloom refere, ao insurgir-se contra a redução do estéticoao ideológico e ao metafísico, não deixará nunca de englobar ec<strong>os</strong> de vozesdo passado propaga<strong>da</strong>s a uma escrita partilha<strong>da</strong> e pratica<strong>da</strong> a divers<strong>os</strong> níveisde valorização e de publici<strong>da</strong>de, tendo como consequência que o «público»(presente consagrado) e o «quase privado» (existência paralelasecun<strong>da</strong>riza<strong>da</strong> em função do consagrado) intervenham na vivência, naaprendizagem, na manutenção e na propagação de cânones <strong>da</strong> poesia.Aliás, referindo-se ao ensino e ao abandono <strong>da</strong> literatura por parte d<strong>os</strong>estu<strong>da</strong>ntes, Bloom afirma ain<strong>da</strong>: 122119 Confronte-se, no Anexo, as constatações relativas à percentuali<strong>da</strong>de e à evolução doparâmetro «estar em pr<strong>os</strong>a» na poesia portuguesa de 1990 a 1995.120 [op. cit.: 29]121 Sublinhado n<strong>os</strong>so.122 [op. cit.: 30]93


Esse abandono é plenamente justificado, pois nãoconseguim<strong>os</strong> protegê-l<strong>os</strong> <strong>da</strong> per<strong>da</strong> d<strong>os</strong> padrões intelectuais eestétic<strong>os</strong> de realização e valor que se deu na n<strong>os</strong>sa profissão. Tudoo que agora podem<strong>os</strong> fazer é <strong>da</strong>r alguma continui<strong>da</strong>de ao estético,e não n<strong>os</strong> renderm<strong>os</strong> à mentira de que aquilo a que n<strong>os</strong> opom<strong>os</strong> é àaventura e a novas interpretações. 123Proteger <strong>os</strong> estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de padrões, no n<strong>os</strong>so ponto devista, consiste não só em indicar-lhes ou m<strong>os</strong>trar-lhes o modo como autoresconsagrad<strong>os</strong> e não consagrad<strong>os</strong> manejam, recuperam ou transformam essespadrões, mas também em fazer com que <strong>os</strong> estu<strong>da</strong>ntes joguem com essesvalores no espaço <strong>da</strong> escrita, recuperando valores e contribuindo, assim,para hipoteticamente evitar ou retar<strong>da</strong>r a morte do cânone.Apesar <strong>da</strong> descrença e do pessimismo de Bloom em relação ao futuro<strong>da</strong> educação literária e d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, não crem<strong>os</strong> na permanência doque, segundo ele, já está a acontecer, ou seja, que «<strong>os</strong> artefact<strong>os</strong> <strong>da</strong> culturapopular substitu[am], enquanto material didáctico, <strong>os</strong> difíceis process<strong>os</strong> decomp<strong>os</strong>ição d<strong>os</strong> grandes escritores», 124 justamente porque julgam<strong>os</strong>poderem reconhecer-se uns n<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>. Este aspecto constitui um objectiv<strong>os</strong><strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa interrogação à presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesahodierna. Não podem<strong>os</strong> deixar de assentir que é através d<strong>os</strong> escritores quese determinam cânones e se estabelecem ligações de continui<strong>da</strong>de esobrevivência do passado para o futuro, e que é pela contaminação que seformam <strong>os</strong> cânones mas, exactamente por isso, julgam<strong>os</strong> dever verificar-se eestu<strong>da</strong>r-se essa contaminação n<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> e níveis de produçãoliterária.Ao considerar uma variabili<strong>da</strong>de de espaç<strong>os</strong> e níveis de produçãoliterária na qual se processa a contaminação do literário tem<strong>os</strong> em vista umaexperiência partilha<strong>da</strong> por tod<strong>os</strong> e ca<strong>da</strong> um, escritores ou leitores. Referim<strong>os</strong>123 Sublinhado n<strong>os</strong>so.124 [op. cit.:467]94


esta totali<strong>da</strong>de no sentido que E. D. Hirsch lhe empresta na «Introdução» deThe Dictionary of Cultural Literacy: 125Cultural literacy, unlike expert knowledge, is meant to beshared by everyone. It is that shifting body of information that ourculture has found useful, and therefore worth preserving.Segundo Hirsch o admite, torna-se difícil identificar e delimitar oconhecimento presente no discurso público, sendo um critério p<strong>os</strong>sível o deverificar se <strong>os</strong> items conquistaram o seu lugar na memória colectiva ou seestão em vias de o conseguir. Foi precisamente este critério deintencionali<strong>da</strong>de que adoptám<strong>os</strong> no n<strong>os</strong>so trabalho quando n<strong>os</strong> propusem<strong>os</strong>observarar parâmetr<strong>os</strong> de realização textual <strong>da</strong> poesia portuguesa com vistaa interrogar dominantes que n<strong>os</strong> haviam de conduzir à pertinência de umestudo do estatuto ficcional e enunciativo <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia mais recente.Procurarem<strong>os</strong>, pois, como já afirmado na Introdução deste trabalho,demonstrar que a perspectivação actual <strong>da</strong> teoria, pelo men<strong>os</strong> de modo maisevidente n<strong>os</strong> últim<strong>os</strong> dois decéni<strong>os</strong>, se tem vindo a orientar no sentido deconseguir colmatar a falta de uma mu<strong>da</strong>nça na prática <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem d<strong>os</strong>text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>. Procurarem<strong>os</strong> também <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> fala do texto depoesia como complemento eficaz <strong>da</strong> teoria, seja esta fala clarifica<strong>da</strong> pelaintertextuali<strong>da</strong>de e pela metalinguagem, como n<strong>os</strong> poemas de Nuno Júdiceque atrás citám<strong>os</strong>, quer se manifeste de modo mais oculto, numa dimensãomais metafórica, mas também mais dramática, como crem<strong>os</strong> que sucedesobretudo nas duas primeiras estrofes do poema «Triste como um cãovelho», em Hotel Spleen, de Bernardo Pinto de Almei<strong>da</strong>: 126125 [1993: ix]126 [2003:109 a 110]95


Ela disse- porque a inocência não se perdede uma única veze para semprepode ser perdi<strong>da</strong> infinitas vezes.Eu disse: - triste, tristecontinuo triste como um cão velho.Mas também essas palavras não eram minhasPorque nenhumas palavras foram jamais minhas,n<strong>os</strong>sas. To<strong>da</strong>s as palavrasas usam<strong>os</strong> como coisas que passaramjá desfeitas <strong>da</strong> usura. E depois vêm outr<strong>os</strong>outr<strong>os</strong> que as dizem, as murmuram.2. PÓS-MODERNO E POESIAVivem<strong>os</strong> dias n<strong>os</strong> quais o escân<strong>da</strong>lo já não escan<strong>da</strong>liza. É este, aliás,um d<strong>os</strong> sintomas <strong>da</strong> inutili<strong>da</strong>de em que caíu o termo avantgardisme,referido a vanguar<strong>da</strong>s estéticas ou outras, substituído que foi pelo usopreferencial d<strong>os</strong> prefix<strong>os</strong> «neo» (neo-romantismo, neo-barroco) ou pelo«pós» (pós-modernismo) que, semanticamente contrári<strong>os</strong>, implicam umaacção que traduz não inovação e ruptura mas sim o sentido de encontrar umcaminho «a partir de» ou «depois de».No campo <strong>da</strong> literatura, o conhecimento do que de novo se produz,aliado ao conhecimento de valores vigentes no passado e <strong>da</strong> sua recuperação96


ou metamorf<strong>os</strong>e no presente, conduz a uma plural e amena convivência <strong>da</strong>sincertezas e d<strong>os</strong> recei<strong>os</strong> existenciais hodiern<strong>os</strong> com as interrogaçõesfun<strong>da</strong>doras e <strong>os</strong> med<strong>os</strong> ancestrais. Esta convivência, que reflecte umanecessi<strong>da</strong>de de abraçar parâmetr<strong>os</strong> culturais valorativ<strong>os</strong>, numa épocaem que o valorativo se traduz maioritariamente em bens sociais nãoculturais, de consumo mensurável e pr<strong>os</strong>aico, assume dimensõesproblemáticas no que se refere à hipótese de sobrevivência <strong>da</strong> literatura e,em particular, <strong>da</strong> poesia, tal como hoje ain<strong>da</strong> são entendi<strong>da</strong>s.Ao delinear hipóteses de vias de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> poesia, no presentetrabalho, interrogámo-n<strong>os</strong> sobretudo sobre a p<strong>os</strong>sível existência de umadiscordância ou, até, incoerência, entre as características <strong>da</strong> poesia que emPortugal foi produzi<strong>da</strong> entre 1990 e 1995 e <strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> valorativ<strong>os</strong> queessas características deixariam transparecer em função <strong>da</strong> sua semelhançaou op<strong>os</strong>ição com valores cuja vigência funciona como padrão estabelecidopel<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> crítico, intelectual, editorial e académico Não n<strong>os</strong>preocupám<strong>os</strong>, à parti<strong>da</strong>, com parâmetr<strong>os</strong> elitistas ou valorativ<strong>os</strong>teoricamente determinantes <strong>da</strong> recepção <strong>da</strong> poesia, nem com ditamesintelectuais e pe<strong>da</strong>gógic<strong>os</strong> que tradicionalmente determinam o seu valor. Osn<strong>os</strong>s<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> de observação foram, portanto, surgindo <strong>da</strong> leitura d<strong>os</strong>própri<strong>os</strong> poemas, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ordenar as suas características a fim de<strong>da</strong>r conta de uma plurali<strong>da</strong>de de realizações.Pusem<strong>os</strong> primeiramente a hipótese de que alguns d<strong>os</strong> items constantesnestas realizações e que são considerad<strong>os</strong>, teoricamente, comocaracterizadores de pós-modernismo, poderiam estar presentes não apenasnas obras de poetas dit<strong>os</strong> consagrad<strong>os</strong> mas também na produção poéticaglobal do país. A verificar-se esta hipótese, e partindo <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de decaracterísticas que a poesia pós-moderna em si encerra, poderíam<strong>os</strong>, talvez,<strong>da</strong>r-n<strong>os</strong> conta de manifestações que permitissem detectar achegas maisconsistentes no que respeita às p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de sobrevivência de cânonese model<strong>os</strong>, antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong>.97


Esta hipótese, como adiante se constatará, conduzir-n<strong>os</strong>-ia a relevar edesenvolver o estudo <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia no sentido de ainterrogar acerca de realizações que, em circunstâncias de produção, ediçãoe divulgação bem diversas, não deixavam, contudo, de exemplificar edemonstrar um uso de model<strong>os</strong>, mod<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> e procediment<strong>os</strong>textuais que se perspectivariam com uma tendência de continui<strong>da</strong>de notempo, o que n<strong>os</strong> conduziria, como afirmado, a um estudo <strong>da</strong> presença esobrevivência <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia.Sentim<strong>os</strong>, pois, necessi<strong>da</strong>de de tecer algumas considerações préviassobre o pós-modernismo, interessando-n<strong>os</strong>, mais que outr<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> deleconstantes, o aspecto <strong>da</strong> recuperação de valores do passado e o modo comoestes enformam nov<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> de escrita <strong>da</strong> poesia. Ressalvam<strong>os</strong> nãoentender como observação d<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> de escrita a transformação do texto depoesia em objecto de estudo apenas de uma perspectiva pragmática, poispretendem<strong>os</strong>, antes, servir-n<strong>os</strong> de element<strong>os</strong> desta perspectiva como umacomponente de aju<strong>da</strong> para a detecção de element<strong>os</strong> caracterizadores d<strong>os</strong>poemas do corpus por nós observado, f<strong>os</strong>sem esses element<strong>os</strong> estilístic<strong>os</strong>,elocutiv<strong>os</strong>, temátic<strong>os</strong>, gráfic<strong>os</strong> ou outr<strong>os</strong>.Não querem<strong>os</strong> deixar de referir, ain<strong>da</strong> que sucintamente, o facto de asteorias pós-modernistas se tornarem conheci<strong>da</strong>s sobretudo a partir do seuimpacto na crítica d<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América, vindo a assumir o papelde modelo <strong>da</strong> arte de vanguar<strong>da</strong> em mead<strong>os</strong> d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta. Podem nelasdetectar-se duas vertentes fun<strong>da</strong>mentais e fun<strong>da</strong>mentadoras de ideias: o«modernismo de Greenberg» e o «pós-modernismo <strong>da</strong> teoria francesa», estaúltima por vezes identifica<strong>da</strong> com pós-estruturalismo, semiótica ou mesmodesconstrução.Clement Greenberg, acérrimo defensor do formalismo na sua relaçãocom as artes plásticas, sobretudo em relação ao expressionismo na pintura,acaba por moderar a sua inflexibili<strong>da</strong>de n<strong>os</strong> seus últim<strong>os</strong> escrit<strong>os</strong>, de 1970 a98


1990, 127 preconizando uma reavaliação conducente a uma nova direcção domodernismo para lá do séc. XX. Na última entrevista que consta de ClementGreenberg, Late Writings, 128 afirma, referindo-se à pintura:Artists often do give themselves a rule - we give ourselves arule without beeing aware of it consciously. [...] Then modernismgave itself a rule: we can´t go into the illusion of the thirddimension with that freedom we used to. That rule became moreand more binding.Quanto ao «pós-modernismo <strong>da</strong> teoria francesa», por vezesidentifica<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> american<strong>os</strong> com pós-estruturalismo, semiótica ou mesmodesconstrução, teve a sua p<strong>os</strong>sível origem na retórica anti-formalista d<strong>os</strong>an<strong>os</strong> 60 que ganhou poder n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 70 com Barthes ou Foucault, e poderiaresumir-se, afinal, a uma op<strong>os</strong>ição entre o formalismo e o pósestruturalismo.Em 1988, em O inumano, 129 Jean-François Lyotard afirma:É frequente que se enten<strong>da</strong> «reescrever a moderni<strong>da</strong>de»neste sentido, o <strong>da</strong> relembrança, como se se tratasse de reparar eidentificar <strong>os</strong> crimes, <strong>os</strong> pecad<strong>os</strong>, as calami<strong>da</strong>des engendra<strong>da</strong>s pelodisp<strong>os</strong>itivo moderno - e por fim de revelar o destino que umoráculo, no princípio <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, teria preparado ecompletado na n<strong>os</strong>sa história.Não consideram<strong>os</strong> esta visão do pós-modernismo redutora como asanteriores, pois não considera o pós-modernismo como uma «leiturarevisionista de modernism<strong>os</strong> não formalistas», 130 no que é acompanhado127 Compilad<strong>os</strong> e editad<strong>os</strong> por Robert C. Morgan em Clement Greenberg, LateWritings, de 2003.128 [MORGAN, 2003:229]129 [1997:36]; ed. orig. 1988.130 Tradução literal, n<strong>os</strong>sa, de «revisionist reading of non-formalist modernisms».[McAULIFFE, 1998:III]99


pelo americano Chris McAuliffe, 131 que recusa o p<strong>os</strong>icionamento do pósmodernismoem term<strong>os</strong> de op<strong>os</strong>ição excluidora em relação ao formalismo, oque, como vim<strong>os</strong> no n<strong>os</strong>so Cap. 1, e como o próprio afirma McAuliffeafirma em Idées reçues: the role of theory in the formation ofp<strong>os</strong>tmodernism, 132 fecharia caminho às p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de leiturasrevisionistas («revisionist readings») do modernismo:The circulation of p<strong>os</strong>tstructuralist theory increased throughthe 1970s, but the pluralist character of the decade, founded onantiformalism, exacerbated the tendency to define p<strong>os</strong>tmodernismin binary opp<strong>os</strong>ition to formalism. This lead to the dominance ofnotions of rupture and redun<strong>da</strong>ncy, cl<strong>os</strong>ing the p<strong>os</strong>sibility ofrevisionist readings of modernism.Apesar deste fechamento, que com a Expansive Poetry vem a serultrapassado, consideram<strong>os</strong>, por outro lado, que a existência de uma visãopluralista e o radicalismo do neo-conservadorismo fazem com que asteorias do pós-estruturalismo adquiram relevo do ponto de vistainstrumental, p<strong>os</strong>sibilitando à teoria pós-moderna americana <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>metade d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta a aceitação de fragmentações dicotómicas como asde sequência e divisão, modernismo e pós-modernismo ou radicalismo econservadorismo, que correspondem à sequência e divisão cronológica d<strong>os</strong>an<strong>os</strong> sessenta a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta.É, portanto, o paradigma projeccional constituído pel<strong>os</strong> term<strong>os</strong>«sequência», «pós-modernismo», «conservadorismo», «an<strong>os</strong> oitenta, an<strong>os</strong>noventa...» que querem<strong>os</strong> relevar quando lhe contrapuserm<strong>os</strong> o NewFormalism relacionado com a Expansive Poetry, neste trabalho. O referidoparadigma pode ser exemplificado, na prática literária, tanto pela suacoexistência, como pela consciência <strong>da</strong> co-temporali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> articulação, o131 [1998:III]132 [1998: III]100


que se verifica também a nível <strong>da</strong> prática literária do poema, como n<strong>os</strong>exempl<strong>os</strong> que se seguem, o primeiro d<strong>os</strong> quais constituído pela n<strong>os</strong>sacitação de duas estrofes finais do poema de Jaime Rocha «Visão vinte equatro», 133 no qual, como em outr<strong>os</strong> poemas do livro Os que vão morrer, <strong>os</strong>imbolismo <strong>da</strong>s profissões que implicam o acto de construir funcionamcomo máscara ou subterfúgio para o pensar do fazer poético, bem como <strong>da</strong>sua temporali<strong>da</strong>de:É a sombra que me mete medo, dizia o pedreiro,ou o que está dentro dela.E é nessa zona que ele vive e constrói<strong>os</strong> mur<strong>os</strong>, indefini<strong>da</strong>mente, para saber o quegermina do lado de lá, onde supõe que esteja aver<strong>da</strong>de do mundo. Talvez ali não existisseapenas uma visão nua, um corpo deitadocoberto de alumínio.O espaço de sombra, indefinido pel<strong>os</strong> mur<strong>os</strong>, para além do qual e paraaquém do qual se pode encontrar a intersecção que p<strong>os</strong>sibilitaria,hipotéticamente, revelar a ver<strong>da</strong>de, funciona no contexto <strong>da</strong> série de poemasde Os que vão morrer como a afirmação de que o passado, o já feito, o jávivido, geram a construção <strong>da</strong> arquitectura <strong>da</strong>s vivências presentes. Noentanto, podem<strong>os</strong> também exemplificar o paradigma projeccional pósmodern<strong>os</strong>implesmente pela utilização conjunta, no poema, deintertextuali<strong>da</strong>de com model<strong>os</strong> epocais, como o faz Joaquim ManuelMagalhães, em segred<strong>os</strong>, sebes, aluviões, no poema «Galante, vagabundo,rufião»: 134133 [2000:36]134 [1985:44,45]101


Estava o galanteAo mar enc<strong>os</strong>tadoAs aves do céuQuase amortalhado.Com <strong>os</strong> bols<strong>os</strong> ras<strong>os</strong>Do lixo <strong>da</strong>s ruasA boquilha azulNo dedo anelado.Tinha as pernas quentesAs meias de lãEstava o galanteDa cor <strong>da</strong> manhã.As on<strong>da</strong>s batiamEu ia perdê-lo.Os cabel<strong>os</strong> pres<strong>os</strong>Num boné de feltroQuando me sorriaAs coisas de dentrocaíam nas rochas.Na chuva do ventoA escuna passaJá não é <strong>da</strong>quiÉ só o galanteFui eu quem o vi.O casaco abertoOs pés engraxad<strong>os</strong>Pobre do galanteCoitado coitado.A golpes de medoFazem<strong>os</strong> ap<strong>os</strong>tasG<strong>os</strong>ta mais de mimÉ doutro que g<strong>os</strong>ta.Pego-lhe na mãoSalga<strong>da</strong>, vaziaPouso a minha boca102


Na lanceta friaDo braço que prendeTodo o mar em ro<strong>da</strong>.O galante falaÉ a lua cheiaO galante fumaO sol encandeiaO galante injectaUm motor na veiaO galante fogeJá são dez e meia.Que morra o galanteNo mar enforcado.Matei o galanteSou eu o culpado.A interferência <strong>da</strong> cantiga medieval, <strong>da</strong> cantiga renascentista e <strong>da</strong>quadra popular entrecruzam-se como procedimento enunciativo quetransforma a problemática hodierna, conferindo-lhe intemporali<strong>da</strong>de. Esteaproveitamento de model<strong>os</strong> do passado literário pode manifestar-se tambémmais no âmbito temático que no formal e, também, com o intuito parodísticotão característico do pós-modernismo, mas em correlato com a poesialinguística, que se ain<strong>da</strong> se mantém, sobretudo em poetas que, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong>sessenta, estiveram ligad<strong>os</strong> ao experimentalismo, como podem<strong>os</strong> constatarno livro Sim...Sim!, de E. M. de Melo e Castro, que redimensiona a atitudeprovocatória do aspecto lúdico que abrange a aliança do jogo línguístico e<strong>da</strong> paródia ao modelo, leva<strong>da</strong> ao extremo <strong>da</strong> métrica e <strong>da</strong> conclusã<strong>os</strong>ilogística, desmistifica<strong>da</strong>s pela temática e pelo léxico, em poemas erótic<strong>os</strong>como o seguinte soneto: 135135 [2000:101]103


se a serpente morde / eu mordo / tu remordesse a serpente dura / eu duro / tu perdurasse a serpente volta / eu volto / tu revoltasse a serpente rasto / eu parto / tu regressasse o ver parte / eu quebro / tu requebrasse o ver age / eu abro / tu magiasse o ver sobre / eu subo / tu ferviasse o ver rubro / eu quebro / tu requebrasse o pente penteia / eu pranto / tu reprant<strong>os</strong>e o pente aperta / eu perto / tu despertasse o pente arranha / eu venho / tu aranhase a serpente regressa / eu torço / tu requebrasna serpente <strong>da</strong> pele / eu traço / tu sinalna serpente verbal / eu língua / tu analConsiderando o facto de as palavras que aludem a, ou designam, umaexistência literária surgirem sempre após essa existência no campo dofactual, podem<strong>os</strong> considerar que o termo «pós-moderno» começou porsurgir no final d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta em text<strong>os</strong> sobre a arte contemporânea, n<strong>os</strong>Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América, ganhando progressivamente correspondênciacom maior número de realizações artísticas ao longo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta. Estedesenvolvimento corresponderia a uma mu<strong>da</strong>nça cultural caracteriza<strong>da</strong> pelaaceitação de uma diversificação cumulativa que se propagaria, emcircunstâncias paralelas, na cultura europeia, na sequência <strong>da</strong>stransformações do pós-guerra, após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial.O termo «pós-moderno» teria, pois, inicialmente, um sentido deruptura intimamente liga<strong>da</strong> ao modernismo, que realizações como o referido104


soneto erótico de Melo e Castro, de 2000, ain<strong>da</strong> são testemunho. Crem<strong>os</strong>que esta noção de ruptura só havia de dissipar-se com maior evidênciaquando o elemento tempo permitiu, por um lado, um maior distanciamentona observação d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> e, por outro lado, uma afirmação de uni<strong>da</strong>de nainovadora diversi<strong>da</strong>de e no coexistente pluralismo <strong>da</strong>s realizações. Adesignação «pós-modernismo» terá, pois, adquirido estabili<strong>da</strong>de quando,por volta d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, passou a mencionar uma existência e acorresponder a uma reali<strong>da</strong>de aceite como unificadora em despeito de - oumesmo pelo facto de - ser comp<strong>os</strong>ta por diversi<strong>da</strong>des.Na perspectiva teórica, a relação do pós-modernismo com oestruturalismo e o pós-estruturalismo permanece ambígua até à aceitação dep<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> e como o são o do «prazer do texto» de Barthes e o de«free play work» <strong>da</strong> desconstrução de Derri<strong>da</strong>, por nós já referid<strong>os</strong>. Aconciliação, ou mesmo justap<strong>os</strong>ição, de diversas vozes, bem como ainteracção de pont<strong>os</strong> de vista, abrem caminho para uma dupla recuperaçãocriativa <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s realizações literárias do passado, aliando, noque respeita à produção poética, um novo conhecimento histórico a umnovo conhecimento <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de do sujeito Citam<strong>os</strong>, a esse respeito, umaafirmação de Ian Gregson em Contemporary poetry and P<strong>os</strong>tmodernism: 136What is particulary appropriate about them [modernistpoets] is that they suggest an equivocation between stability andinstability rather than the endless instabilities which is the permiseof the m<strong>os</strong>t radical p<strong>os</strong>tmodernists.Referíamo-n<strong>os</strong>, justamente, a esta <strong>os</strong>cilação entre «stability» e«instability» quando mencionám<strong>os</strong> a conciliação de vozes e a interacção depont<strong>os</strong> de vista como factores essenciais e configuradores de um diálogoplural que, através <strong>da</strong> sua própria imprecisão e hesitação de vozes, abre136 [1998:34]105


caminho para uma nova e varia<strong>da</strong> vivência <strong>da</strong>s realizações literárias dopassado, veiculando, simultaneamente, perspectivas <strong>da</strong> sua sobrevivência ep<strong>os</strong>sível vivência no futuro. Crem<strong>os</strong> ter deixado claro que não estam<strong>os</strong> areferir-n<strong>os</strong> a<strong>os</strong> process<strong>os</strong> de imbricação na dinâmica periodológica docontínuo literário, recuperando imbrica<strong>da</strong> ou alterna<strong>da</strong>mente valoresespecífic<strong>os</strong> de determina<strong>da</strong>s épocas literárias, mas antes n<strong>os</strong> referim<strong>os</strong> auma perspectiva que em parte se afasta <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de epocal destesprocediment<strong>os</strong>, justamente pela coexistência plural <strong>da</strong>s recuperações, deque pode ser exemplo, no longo poema em 52 estrofes de catorze vers<strong>os</strong>,que podem construir uma história ou ler-se independentemente, de Duende,de António Franco Alexandre, 137 e do qual aqui deixam<strong>os</strong> a m<strong>os</strong>tra <strong>da</strong>estrofe 10:Vi roma arder, e ner<strong>os</strong> vári<strong>os</strong>bronzead<strong>os</strong> à luz <strong>da</strong> califórniaguar<strong>da</strong>r em naftalina n<strong>os</strong> armári<strong>os</strong>timi<strong>da</strong>mente, a lira babilónia;as capitais <strong>da</strong> terra, uma a uma,desfeitas em rumor e negra espuma,atingi<strong>da</strong>s de noite no seu centro;mas nunca vi paris contigo dentro.E falta-me esta imagem para terinteiro o álbum que me coube em sortecomo um cinema onde passava «a morte»;solene imperador, abrindo o mantoonde ocultei a cólera e o pranto,falta-me ver paris contigo dentro.Tanto a estrofe singular como o seu conjunto, recuperam aregulari<strong>da</strong>de estrófica e a narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> épica sobre um jogo deintertextuali<strong>da</strong>de com Teoría y juego del duende, de García Lorca, aliado a137 [2002:18]106


uma veiculação poética d<strong>os</strong> object<strong>os</strong> do quotidiano e de situações sociopolíticas<strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de.Em relação ao uso do próprio termo «pós-modernismo», g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong>ain<strong>da</strong> de frisar que ultrapassarem<strong>os</strong> questões acerca <strong>da</strong> sua pertinência, umavez que se vulgarizou tanto n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> académic<strong>os</strong> como mediátic<strong>os</strong> e que, an<strong>os</strong>so ver, não implica o erróneo significado de «fim do modernismo»,considerado este fim no sentido em que o pós-modernismo seria uma novaépoca que negaria a continuação do modernismo, surgindo «depois» dele.Crem<strong>os</strong> que relevante será pôr a tónica na evidência de o pós-modernismorecuperar dinamicamente a história, e acentuar que dessa história fazemparte tanto o passado ancestral como o passado recente, através <strong>da</strong>própria acção do presente. Julgam<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, ser importante, para o n<strong>os</strong>sotrabalho relevar a recuperação dinâmica <strong>da</strong> história literária tal como ela semanifesta em centrali<strong>da</strong>des e periferias geográficas e culturais, dentro <strong>da</strong>realização literária <strong>da</strong> poesia portuguesa mais recente, não n<strong>os</strong> coibindo deapresentar text<strong>os</strong> tanto de autores consagrad<strong>os</strong> como de outr<strong>os</strong>, sempre queo n<strong>os</strong>so juízo de valor o achar pertinente.James Longenbach, em Modern poetry after modernism, afirma que on<strong>os</strong>so sentido do que constitui a literatura pós-moderna não pode serlimitado, pois «very different styles embody equally legitimate responses tomodernism». 138 Crem<strong>os</strong> que esta afirmação de Longenbach contempla duasperspectivas que consideram<strong>os</strong> importantes para o n<strong>os</strong>so trabalho: por umlado, a plurali<strong>da</strong>de como legitimação caracterizadora <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de deuma reali<strong>da</strong>de literária e, por outro lado, a atitude pós-moderna como«resp<strong>os</strong>ta ao modernismo» sendo, ela própria, também moderna.Articulando as duas premissas <strong>da</strong> afirmação cita<strong>da</strong>, a resp<strong>os</strong>ta aomodernismo implica, a n<strong>os</strong>so ver, uma ligação de intimi<strong>da</strong>de performativa138 [1997: 9].107


com a «pergunta», o que, por sua vez, pressupõe que a produção literáriapoética pós-moderna também englobe a recuperação e transformação devalores estétic<strong>os</strong> do modernismo. Esta aparentemente complexa duplaarticulação parece-n<strong>os</strong> bem sintetiza<strong>da</strong> na citação que James Longenbachfaz de Ran<strong>da</strong>ll Jarrell: 139P<strong>os</strong>tmodern poetry was, essentially, an extension ofmodernism; it was what modern poetry wished or found itnecessary to become.Entendem<strong>os</strong> a palavra «extension» no sentido de dinâmicatransformadora que ele pode englobar, e acrescentaríam<strong>os</strong>, a esse propósito,que a poesia pós-moderna se caracteriza não só como o devir domodernismo mas também o devir <strong>da</strong> poesia ocidental e, p<strong>os</strong>sivelmente,como o advento de uma interacção de culturas, através do que literariamenteestá a ser escrito tanto como através <strong>da</strong> incógnita de tudo o que , emliteratura, poderá vir-se a escrever.A recuperação do já literário, presente no texto p<strong>os</strong>teriormente escritoe situado na hodierni<strong>da</strong>de, foi um d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> de realização <strong>da</strong> poesia aque maior atenção procurám<strong>os</strong> <strong>da</strong>r, na medi<strong>da</strong> em que levanta questõesdificilmente conciliáveis no que respeita à adequação <strong>da</strong>s determinantespoéticas com a existência de valores. Procurám<strong>os</strong> suplantar este problemaconsiderando, primeiramente, a observação de dominantes e excepções non<strong>os</strong>so corpus inicial de trabalho e, p<strong>os</strong>teriormente, relevando, de entre asdominantes encontra<strong>da</strong>s, a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, por seraquela cuja interrogação n<strong>os</strong> pareceu mais pertinente, tanto quanto à suaprojeccionali<strong>da</strong>de temporal, como quanto à sua articulação portuguesa maisrecente.139 [op. cit.:21]108


Assim, não considerarem<strong>os</strong> uma diferenciação entre o modernismo e opós-modernismo basea<strong>da</strong> numa cisão, forç<strong>os</strong>amente artificial, decaracterísticas formais, temáticas e valorativas, quer textuais quer críticas,mas, pelo contrário, basear-n<strong>os</strong>-em<strong>os</strong> no facto de o pós-modernismo secaracterizar justamente pela abertura à coexistência e ao convívio <strong>da</strong>sdiferenciações referi<strong>da</strong>s, não rejeitando nem excluindo <strong>os</strong> text<strong>os</strong> já escrit<strong>os</strong>,mas antes emprestando, a partir deles, uma novi<strong>da</strong>de dinâmica à totali<strong>da</strong>ded<strong>os</strong> text<strong>os</strong> que estão a ser escrit<strong>os</strong> num determinado lapso de tempo, numdeterminado lugar. Aliás, já <strong>os</strong> poetas do primeiro modernismo portuguêsprocuraram expandir as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des do texto de poesia através <strong>da</strong> própriaprática <strong>da</strong> poesia, embora o fizessem por vezes através de text<strong>os</strong> de carizensaístico ou, sobretudo, <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a de panflet<strong>os</strong> e manifest<strong>os</strong>.O poeta americano Robert Pinsky escreve em Poetry and the World:«Death is the mother of beauty». 140 G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong>, numa perspectiva do que éa n<strong>os</strong>sa visão do pós-moderno, de substituir a beleza pela poesia e poderafirmar a «morte como mãe <strong>da</strong> poesia», na medi<strong>da</strong> em que o renascersimultâneo de uma plurali<strong>da</strong>de de mortes vem anulá-las e negá-las,confirmando a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia e <strong>da</strong> literatura e aliando-as ao human<strong>os</strong>entir, como o faz Manuel António Pina: 141--------------------------------------------------------------Terem<strong>os</strong> então, enfim, uma casa onde morare uma cama onde dormire um sono onde coincidirem<strong>os</strong>com a n<strong>os</strong>sa vi<strong>da</strong>,um sono coerente e silenci<strong>os</strong>o,uma palavra só, sem voz, inarticulável,anterior e exterior,140 [1988, 133]141 [2001:233]; ed. orig. 1999.109


como um limite tendendo para destino nenhume para palavra nenhuma.Também Richard Schwartz, na «Introdução» ao seu livro After theDeath of Literature, 142 considera a problemática <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des deexpansão d<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> poétic<strong>os</strong> como fulcro do seu ensaio, salientando:My intention is to contextualize past issues in useful waysand begin to look toward the future.[...] I believe that eclecticism and the convergence of highand popular culture, which some have seen as caracteristicallyp<strong>os</strong>tmodern, provides some support for the practice. Thus, I askthe reader´s indulgence as I move between intellectual history,genre fiction, popular culture, education statistics and personalreminiscences. 143No n<strong>os</strong>so trabalho, procurám<strong>os</strong> <strong>da</strong>r conta, justamente, destaplurali<strong>da</strong>de, por entenderm<strong>os</strong> ser a maneira que julgám<strong>os</strong> mais eficaz paraprocurar negar a pretensa «morte <strong>da</strong> poesia» através de um olhar queabrangesse realizações independentes sob uma perspectiva de interacção quelhes proporciona uma sobrevivência comum.O facto de o passado só interessar à maioria d<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong>modernistas como referência de rejeição não implica que o passado nãoestivesse implícito já nessa negação. O que diferencia o pós-modernismodo modernismo é, precisamente, a interacção dinâmica e assumi<strong>da</strong>entre a escrita do passado (seja distante, seja recente) e o momento deuma escrita do presente. Esta escrita avança para o futuro sem vergonha<strong>da</strong>s suas origens, sem receio do poder <strong>da</strong> sua história e, mais ain<strong>da</strong>,consciente, por um lado, do que se perdeu ou se está a perder e, por outrolado, do que se salvou e do que está ain<strong>da</strong> por salvar. Desta consciência <strong>da</strong>142 [1997: 6, 7]110


preservação histórica do literário pelo próprio fazer <strong>da</strong> poesia n<strong>os</strong> dão contapoemas já d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, como «Delf<strong>os</strong>» 144 [sic], de David Mourão--Ferreira:Delf<strong>os</strong>É o centro do mundo É o reino de ApoloQuem foi que pôs aqui Afrodite em «blue-jeans»subindo o anfiteatro ao encontro do Soldepondo na penumbra o esplendor <strong>da</strong>s ruínasComo galga <strong>os</strong> degraus Lá em cima é o estádioEu enc<strong>os</strong>to o ouvido ao umbigo <strong>da</strong> TerraÉ para mim agora a sentença do oráculoQue sem eu perguntar me responde MulherMas sei dentro de mim e sei que não me iludoQue vim dizer adeus à minha juventudeA transgressão estrófica alia<strong>da</strong> ao uso do alexandrino coadjuva atemática de articulação do moderno com o antigo, do presente com as suasorigens, do sentimento <strong>da</strong> acui<strong>da</strong>de irreversível do tempo com a suainfinitude. Dentro do que se n<strong>os</strong> depara como uma plurali<strong>da</strong>de pós-modernaaparentemente caótica, surgem-n<strong>os</strong> a ordem e a autori<strong>da</strong>de do passado(individual, social, literário, público, histórico...), surge-n<strong>os</strong> to<strong>da</strong> umahistória <strong>da</strong> poesia, recria<strong>da</strong> na palavra do poema, e atesta<strong>da</strong> também pelaprática poética pessoal e individual de muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> grandes nomes e valores<strong>da</strong> poesia nacional, mas também, em paralelo, por esse mundo subterrâneoconstruído pela escrita de pessoas que se espraiam quase anonimamente143 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.111


pelo n<strong>os</strong>so país e a<strong>os</strong> quais quisem<strong>os</strong> <strong>da</strong>r, neste trabalho, um pequeno lugarque julgam<strong>os</strong> merecerem pelo seu contributo para a sobrevivência <strong>da</strong> ediçãode poesia em Portugal, como o exemplifica o «Poema» de Cá Dentro, deHelder Vitória Mação: 145POEMAUm poema não se faz de palavras vazias.Faz-se d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> lid<strong>os</strong>,faz-se <strong>da</strong>s almas que ardem por dentro.faz-se. Simplesmente.O meu poema não morre <strong>da</strong>s lembranças.Vive <strong>da</strong> angústia de não saber nascernas palavras já ditas e por saber dizer.Acho até que o meu poema já existiu,não existe.Foi poema e nunca é poema.Nunca soube parar de ser.Crem<strong>os</strong> que a prática <strong>da</strong> poesia, sobretudo n<strong>os</strong> dois últim<strong>os</strong> decéni<strong>os</strong>do século vinte, se pauta essencialmente pela capaci<strong>da</strong>de de conhecer a suaanteriori<strong>da</strong>de, seja ela literária ou linguística, estética ou histórica. Julgam<strong>os</strong>poder verificar com o n<strong>os</strong>so trabalho que é esse conhecimento <strong>da</strong>anteriori<strong>da</strong>de de ontem - revelado n<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> como mol<strong>da</strong> o textopoético de hoje e no exemplo de todo um país que é o n<strong>os</strong>so – a grandeforça que determina a sobrevivência do poder d<strong>os</strong> cânones e model<strong>os</strong>(copiad<strong>os</strong>, renovad<strong>os</strong>, transformad<strong>os</strong> ou rejeitad<strong>os</strong> que sejam) que atravésd<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, crem<strong>os</strong>, hão-de continuar a configurar o reconhecimento <strong>da</strong>produção poética.144 [1966: 47]145 [1995: 120]Helder Vitória Mação é maestro de orfeão e cor<strong>os</strong> em Tanc<strong>os</strong>.112


Dentro desta perspectiva a poesia pós-moderna apresentar-se-iacomo duplamente narrativa, pois tende a contar o indivíduo inserido n<strong>os</strong>entimento <strong>da</strong> sua mundivivência e, paralelamente, conta a história <strong>da</strong>própria poesia tal como ela se apresenta na palavra poética do sujeito,relacionando intimamente o dizer pessoalizado <strong>da</strong> poesia com o seu dizerhistórico.Numa época na qual a marca de duplici<strong>da</strong>de do discurso poético setransformou, curi<strong>os</strong>amente, numa marca de univoci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leituras <strong>da</strong>poesia, estas acabam por representar a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de de um passadoliterário que parecia esquecido, facto este que constitui, de certo modo, amarca característica de um período de transição. Alargando o n<strong>os</strong>so campode observação <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> poesia para além <strong>da</strong>s obras de autores dit<strong>os</strong>consagrad<strong>os</strong>, pretendem<strong>os</strong> introduzir a plurali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s marca demu<strong>da</strong>nça partilha<strong>da</strong>s no fazer do texto poético por parte <strong>da</strong> população deum país, de modo a poder, talvez, entrever a esperança de um futuro aolongo do subterrâneo desta transição.A n<strong>os</strong>sa preocupação, ao abor<strong>da</strong>r sumariamente a problemática <strong>da</strong>pertinência ou não pertinência de uma delimitação temporal para o pósmodernismo,não implica a noção de autonomização a não ser na medi<strong>da</strong> emque a produção poética que aceitám<strong>os</strong> denominar pós-moderna reflecte, apartir dela própria, a consciência de se localizar numa temporali<strong>da</strong>deparadoxal, tanto depois do modernismo como ain<strong>da</strong> no modernismo, namedi<strong>da</strong> em que também deste já transforma e recupera valores.Não considerám<strong>os</strong>, portanto, o pós-modernismo do ponto de vista deuma ideologia, nem sequer do ponto de vista em que pudesse reunirproduções de text<strong>os</strong> de poesia que eventualmente agrupassem escritores soba égide de model<strong>os</strong> particulares deles característic<strong>os</strong>. Procurám<strong>os</strong>, assim, <strong>da</strong>ra maior abrangência p<strong>os</strong>sível ao uso do termo «pós-modernismo», de modoa poder englobar aspect<strong>os</strong> textuais e paratextuais bem divers<strong>os</strong>, mas que113


julgám<strong>os</strong> pertinentes para a detecção <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de sobrevivência, doantigo ao moderno, nas mais diversas expressões <strong>da</strong> poesia portuguesa maisrecente.Encaram<strong>os</strong>, pois, o pós-modernismo, não como fuga àindividualização mas antes como realização reivindicadora de umaindividualização original e individual através <strong>da</strong> própria demonstraçãodo conhecimento do passado, tanto o distante como o recente.Pretendem<strong>os</strong> salientar a demonstração de que uma abertura inovadora podeser cria<strong>da</strong> e existir a partir do uso múltiploe <strong>da</strong> convencionali<strong>da</strong>deconheci<strong>da</strong>, reconheci<strong>da</strong>, revisita<strong>da</strong>, recria<strong>da</strong> e renova<strong>da</strong>. VictorShklovsky afirmava em Art as Technique 146 que a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia estáem transmitir as sensações <strong>da</strong>s coisas tal como percebi<strong>da</strong>s e não tal comoconheci<strong>da</strong>s. A n<strong>os</strong>so ver, o pós-moderno vem, pela sua própria existência,contradizer, de certo modo, esta afirmação, ao proclamar a articulação doperceber com o conhecer.Ian Gregson, em Contemporary Poetry and P<strong>os</strong>tmodernism, 147articula A perpectiva do «estrangement» de Shklovsky com a teoria do«dialogic» de Mikhail Bakhtin do seguinte modo:These two are generally regarded as the m<strong>os</strong>t important ofthe Russian formalist critics. The importance of the dialogic lies inits emphasis (as opp<strong>os</strong>ed to the single voice of traditional lyricpoetry) on the interrelation and interaction of voices. There is ap<strong>os</strong>tmodernist element in this in the way it opp<strong>os</strong>es the privilegingof any voice but there is an anti-p<strong>os</strong>tmodern element also in theway it dwells on the felt authenticity of each voice[...]What must be said in favor of mainstream poetry in the pastfifteen years [1980 – 1995] is that it has been self-consciously the146 [1965, 4]147 .[1996: 6]114


opp<strong>os</strong>ite of an exclusive club. It has been an anti-establishmentwhich has placed the margins at the center. 148Interessa-n<strong>os</strong> relevar as afirmações de Ian Gregson que dizem respeitoà plurali<strong>da</strong>de de vozes e à - embora relativa - importância concedi<strong>da</strong> àexpressão periférica, e que julgam<strong>os</strong> constituírem uma achega de defesa don<strong>os</strong>so p<strong>os</strong>icionamento de abor<strong>da</strong>gem à poesia que tem<strong>os</strong> vindo a explanar.A importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao estudo <strong>da</strong> articulação de uma «plurali<strong>da</strong>de de vozes»do «centro» e <strong>da</strong>s «margens» parece-n<strong>os</strong> uma perspectivação essencial parapensar o pós-modernismo como força de suporte <strong>da</strong> sobrevivência <strong>da</strong>poesia num mundo dominado pela atitude mediática globalizante, no qual aestética, a política e a economia tendem a equivaler-se como cenáriodeterminante, e determinador, <strong>da</strong> escrita literária. Talvez o poeta como«panfletário» tenha adquirido, n<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> dias, uma nova dimensão, umadimensão não consciente <strong>da</strong> sua atitude propagandística e defensora, masque se manifesta e se destaca <strong>da</strong> obscuri<strong>da</strong>de quando se observa atentamenteo pulsar híbrido <strong>da</strong> poesia «subterrânea» escrita pela população de um país,contando ela própria <strong>os</strong> valores antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong> que só poderão,hipoteticamente, sobreviver com a colaboração do contributo <strong>da</strong>s suas vozese <strong>da</strong>s suas interrogações sobre a poética, como o faz Armando Pinheiro emum d<strong>os</strong> poemas de O Ninho <strong>da</strong> Cegonha: 149Porque hei-de escrever na primeira pessoa?Isso engrandece-me ou avilta-me,define-me ou apaga-me,apazigua-me ou angustia-me?Mais valeratransferir-me para uma terceira pessoa,men<strong>os</strong> próxima, do singular ou do plural,148 Sublinhado n<strong>os</strong>so.149 [1994:11]115


mesmo uma coisa inanima<strong>da</strong>.Viajaria incógnito, comungaria mais<strong>da</strong> essência do universo.Lodo rolando por vertentes poli<strong>da</strong>s,a névoa e a noite velariam meu rasto.--------------------------------------------------Outro aspecto do pós-modernismo que g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de relevar dizrespeito ao modo como quebra hierarquias, tanto no que respeita a barreirasestéticas como a barreiras morais ou políticas, o que se pode provar pelapresença, na poesia pós-moderna, de uma imagística plena de hibridismono distanciamento entre factual e ficcional. Esta questão põe em jogo aproblemática do diálogo entre pós-modernismo e realismo e a sua p<strong>os</strong>sívelresolução (ou dissolução) quando se considera que o configurar <strong>da</strong>expressão pós-moderna, pelo facto de ser constituí<strong>da</strong> por múltiplasplurali<strong>da</strong>des não pleonásticas, teria de revelar ou corresponder a tantasreali<strong>da</strong>des quant<strong>os</strong> <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>, <strong>os</strong> estad<strong>os</strong> de espírito, as perspectivas deobservação e as formas que toma a comunicação. Ora, quer parecer-n<strong>os</strong> queé a expressão plural de reali<strong>da</strong>des não forç<strong>os</strong>amente contemporâneas que dácarácter op<strong>os</strong>itivo ao dito diálogo, e prova é que podem<strong>os</strong> encontrar napoesia pós-moderna, por exemplo, cas<strong>os</strong> de intertextuali<strong>da</strong>de explícita comtext<strong>os</strong> marcantes de outr<strong>os</strong> períod<strong>os</strong>.O que na reali<strong>da</strong>de acontece é que a convencionali<strong>da</strong>de surge comfrequência dissemina<strong>da</strong> por vári<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> de vista, escolhas e focalizações.Em muitas <strong>da</strong>s práticas <strong>da</strong> poesia pós-moderna, e aliás já também domodernismo, se pode observar uma atitude do sujeito como criador demund<strong>os</strong> que exploram as próprias fronteiras entre o sujeito e <strong>os</strong>mund<strong>os</strong>, tanto do passado como <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escrita, tanto <strong>da</strong>mundivivência factual do sujeito como <strong>da</strong> sua vivência do literário. EmContemporary Poetry and P<strong>os</strong>tmodernism, Ian Gregson transcreve, a este116


propósito, um poema de Roy Fisher 150 que, na sua extrema contenção,transmite a reflexão <strong>da</strong> representação articula<strong>da</strong> com o contínuo temporal doacto <strong>da</strong> escrita do poema:I could sayThe poem has alwaysAlready started, the parapectSnaking away, its gray line guardingThe football field and the seaNão só na presença de reflexão metalínguística se reflecte aintromissão do fazer poético perspectivado em dimensões temporaisdistintas. Encontram<strong>os</strong>, por vezes, no poema, o uso concomitante de mod<strong>os</strong>passad<strong>os</strong>, como o seguinte poema de Corpo Atlântico, de Hugo Sant<strong>os</strong>: 151Ouve, diz minha mãe.Ouço. Sinto o cheiro <strong>da</strong> terra e <strong>os</strong> furtiv<strong>os</strong> pass<strong>os</strong> de quem veioCobrar o penhor de qualquer dúvi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s lembranças.Há um lugar no teu corpo onde convergemOs ri<strong>os</strong> e as solidões. Um lugarOnde <strong>os</strong> vent<strong>os</strong> retomam as harpas <strong>da</strong> distânciaE avisam ser chega<strong>da</strong> a hora d<strong>os</strong> prodígi<strong>os</strong>.A utilização de lexemas como «penhor» e «harpas» tem o efeito deprojectar como que um véu semântico vindo <strong>da</strong> época clássica sobre ocampo lexical relacionado com <strong>os</strong> quatro element<strong>os</strong>: água, terra, ar e fogo,considerado, neste poema, «corpo» como determinante do paradigma fogo.Por outro lado, o corpo dito como cenário transporta-n<strong>os</strong> para uma prática150 [GREGSON,1996:182]; Roy Fisher citado por Ian Gregson.151 [1994:19]117


pós-moderna. Justificamo-lo a partir <strong>da</strong> visão <strong>da</strong> relação entre lirismo emodelo assumi<strong>da</strong> por Jean-Michel Maulpoix, em La Voix d´Orphée: 152Il ne s´agit ni d´imiter, ni d´exprimer, mais de créer, C´est-àdirede métamorph<strong>os</strong>er le lyrisme en style, de faire d´une force uneforme telle que la force l´habite, l´anime et la fasse vibrer, jusquàdoner <strong>da</strong>ns l´art le plus concerté l´illusion de la vie.No entanto, a dinâmica transformacional do passado já se manifestavan<strong>os</strong> an<strong>os</strong> cinquenta e sessenta em poetas do experimentalismo, no entantodelinea<strong>da</strong> num aproveitamento mais linguístico, metalinguístico e deparódia ao modelo, criando uma «ilusão de vi<strong>da</strong>» que remetia tanto para avivência humana como para a vivência do pensamento sobre o próprio fazerliterário, como é o caso do «soneto soma 14 x», de E. M. de Melo e Castro,publicado em 1963 em Poligonia do Soneto: 153SONETO SOMA 14 x1 4 3 4 22 3 3 0 64 1 6 1 23 2 2 1 65 0 0 1 82 1 2 5 41 4 0 1 83 2 4 1 43 1 2 3 55 4 1 2 23 0 4 2 5152 [1989:62]153 [ed. ut. Antologia - 1979:478]118


4 3 3 1 35 1 2 1 58 9 3 5 3O percurso lúdico que se inicia com o jogo entre «soma» e «sema»desenvolve-se no esquema modelar d<strong>os</strong> 14 vers<strong>os</strong> do soneto, tendo este a«arrogância de «somar metricamente» 14 e expandir ao seu fechamentomatemático (ou lógico) com um «verso» que soma 28 (2x14). Nãoresistim<strong>os</strong> a transcrever o «soneto» que se lhe segue, no livro, e que ilustraum outro percurso de aproveitamento semântico de modelo temático e detransformação modelar formal: 154uma chama não chama a mesma chamahá uma outra chama que se chamaem ca<strong>da</strong> chama que chama pela chamaque a chama no chamar se incendeiaum nome não nome o mesmo nomeum outro nome nome que nomeiaem ca<strong>da</strong> meio o meio pelo nomeque o nome no nome se incendeiauma chama um nome a mesma chamaem ca<strong>da</strong> nome o chama pelo nomeque a chama no nome se incendeiaum nome uma chama o mesmo nomehá uma outra chama que nomeiaem ca<strong>da</strong> chama o nome que se chamao nome que na chama se incendeia154 [id. Ibid.:479]119


Este soneto, que aparentemente m<strong>os</strong>tra uma menor transgressão, vistousar a língua portuguesa e cumprir a métrica decassilábica, não deixa de sermen<strong>os</strong> transgressor e inventivo, tanto pelo modo como recupera aregulari<strong>da</strong>de estrófica exagerando-a («terceto» que é quadra) como pelomodo como semanticamente recupera pelo jogo de palavras o nonsensecultista do soneto barroco brincando, ain<strong>da</strong>, com camp<strong>os</strong> lexicais ondeimpera a sinonímia (campo do «chamar», campo do «nomear») ou ahomofonia que provoca jogo semântico («chamar», «chama», «incendeia»).Já Mário de Sá-Carneiro, lado a lado com manifestações de rupturadrástica como as que se encontram no poema «Manucure», 155 se socorria deprocediment<strong>os</strong> inovadores a nível do uso do léxico mas que se delineavamsobre uma base formal clássica, como o exemplifica o soneto «Salomé» 156 :Insónia roxa. A luz a virgular-se de medo,Luz morta de luar, maus Alma do que a lua...Ela <strong>da</strong>nça, ela range. A carne, álcool de nua,Alastra-se pra mim num espasmo de segredo...Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...Tenho frio... Alabastro! A minha Alma parou...E o seu corpo resvala a projectar estátuas...Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,Golfa-me <strong>os</strong> sei<strong>os</strong> nús, ecoa-me em quebranto...Timbres, elm<strong>os</strong>, punhais... A doi<strong>da</strong> quer morrer-me:Mordoura-se a chorar - há sex<strong>os</strong> no seu pranto...Ergo-me em som, <strong>os</strong>cilo, e parto e vou arder-meNa boca imperial que humanizou um Santo...155 [ed. ut. s.d:116] poema publicado em 1915.120


A forma e a temática de raiz clássica, assim como o uso dehiperpontuação, são subverti<strong>da</strong>s pela realização <strong>da</strong> intrusão de imagensdelirantes, sonoras e colori<strong>da</strong>s como as que podem<strong>os</strong> encontrar na pinturaexpressionista alemã («insónia roxa», «ela <strong>da</strong>nça, ela range», «o aromaendoideceu», «o seu corpo resvala a projectar estátuas», «timbres» «hásex<strong>os</strong> n<strong>os</strong> seu pranto», «ergo-me em som»).Podem<strong>os</strong> verificar, pel<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> de prática literária apresentad<strong>os</strong>,que a convencionali<strong>da</strong>de, tanto d<strong>os</strong> model<strong>os</strong> formais como d<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong>, éutiliza<strong>da</strong> desde iníci<strong>os</strong> do modernismo como modo de alcançar umalibertação, por paradoxal que p<strong>os</strong>sa parecer. O que julgam<strong>os</strong> ser já maiscaracterístico do pós-modernismo é a utilização de model<strong>os</strong> convencionaisnão tanto como forma de libertação pela infracção ou transformação, masantes pelo modo como essa convencionali<strong>da</strong>de confere à expressão <strong>da</strong>poesia um suporte ou uma legitimação. O convencional já não surgecomo pretexto para discussão <strong>da</strong> própria convencionali<strong>da</strong>de, como nasprimeiras déca<strong>da</strong>s de modernismo, mas sim como conhecimento pós--moderno e modo de reconhecimento legitimador dessa convencionali<strong>da</strong>de,veiculando como que um diálogo entre o pensamento cerebral sobre o «jáfeito» no mundo <strong>da</strong> produção lírica e o sentimento quase corporal do«fazer» lírico.Há como que a conciliação consciente e prop<strong>os</strong>ita<strong>da</strong> entre a passa<strong>da</strong>vivência do mundo e a presente interpretação dessa vivência, funcionando apar com uma nova e presente vivência, numa dupla perspectiva que sediversificasse porque dupla e se unificasse porque perspectiva una torna-se,por isso, por vezes difícil determinar a genuini<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autonomia <strong>da</strong>poesia pós-moderna, e mais ain<strong>da</strong> especificar relações diferenciais entre o156 [ed. ut. s.d:116]; poema publicado em 1913.121


pós-modernismo e o modernismo. Já aqui afirmám<strong>os</strong> adoptar o termo pósmodernismono sentido em que o não consideram<strong>os</strong> como designativo deuma op<strong>os</strong>ição mas sim de uma continui<strong>da</strong>de em relação ao modernismo.No entanto, essa continui<strong>da</strong>de pode levantar questões no que respeitaà sua especifici<strong>da</strong>de. Ian Gregson, por exemplo, quando, em ContemporaryPoetry and P<strong>os</strong>tmodernism, 157 opõe moderno e pós-moderno, defende que<strong>os</strong> poetas pós-modernistas, quando consideram a relação entre o mundo e <strong>os</strong>entido, privilegiam a arbitrarie<strong>da</strong>de em detrimento <strong>da</strong> atitude mimética e,quando consideram a relação entre a linguagem e o mundo, privilegiam aconstrução em detrimento do organicismo. Afirma também que a poesiapós-modernista é quase sempre céptica e quase nunca mística, e consideraain<strong>da</strong> que a atitude d<strong>os</strong> pós-modernistas para com o modernismo foi a deadoptarem e alargarem as formas e temas modernistas, levando-<strong>os</strong> maisalém mas sem argumentar contra eles. 158Apesar <strong>da</strong> p<strong>os</strong>ição que referim<strong>os</strong>, adopta<strong>da</strong> em Contemporary Poetryand P<strong>os</strong>tmodernism, 159 Ian Gregson não deixa de aí citar, a propósito <strong>da</strong>obra de John Ashbery, o seguinte excerto de uma entrevista <strong>da</strong><strong>da</strong> por este:understanding comes about... as a sort of Penelope´s webthat´s constantly being taken apart when it´s alm<strong>os</strong>t completed,and that´s the way we grow in our knoledge and experience».Without acknowledging it, Ashbery was here quoting from DavidKalstone´s essay on him: «Like Penelope´s web, the doing andundoing of Ashbery´s poems is often their subject: fresh starts,repeated collisions of plain talk with the tantalizing and frustratingpromises of poetry». 160157 [1996: 182 a 184]158 [1996: 209 a 211159 [1996: 216]160 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.122


É curi<strong>os</strong>o verificar que Ian Gregson aceita, em relação a uma obraespecífica de um concreto autor, o paradoxo que nega quando disserta sobre<strong>os</strong> pós-modernistas em geral. Consideram<strong>os</strong> o p<strong>os</strong>icionamento de Gregson,acima referido, paradigmático de uma linha de abor<strong>da</strong>gem e leitura <strong>da</strong>produção poética pós-moderna que, de uma parte, exige do pós-modernismouma diferença op<strong>os</strong>itiva em relação ao modernismo mas, de outra parte,critica o afastamento e a diferença.Julgam<strong>os</strong> que uma <strong>da</strong>s questões mais problemáticas que surgemquando se pensa o pós-modernismo em term<strong>os</strong> <strong>da</strong> sua relação complementarou integrativa com o modernismo é, justamente, provocado pelaincapaci<strong>da</strong>de tradicional em se aceitar, simultaneamente, a semelhança e adiferença, ou seja, aceitar o paradoxo de uma similitude diferente cujaexistência se processa simultaneamente em vári<strong>os</strong> plan<strong>os</strong>, ou seja, ain<strong>da</strong>,ver nesse paradoxo a essenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria diferença.Crem<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, que a arbitrarie<strong>da</strong>de e a construção não anulamcompletamente a atitude mimética e o organicismo, considerad<strong>os</strong> estes emterm<strong>os</strong> de relacionamento do mundo com o sentido e com a linguagem. Domesmo modo, consideram<strong>os</strong> existir, em grande parte <strong>da</strong> produção poéticapós-moderna que conhecem<strong>os</strong>, uma aliança entre o misticismo e ocepticismo a que poderíam<strong>os</strong> chamar «cepticismo místico», dentro doparadigma d<strong>os</strong> paradox<strong>os</strong> que alimentam a produção pós-moderna.Refutarem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> a atitude dogmática, implícita na acusação de Gregson,de que <strong>os</strong> poetas pós-modern<strong>os</strong> deveriam argumentar contra as formas e <strong>os</strong>temas modernistas pois consideram<strong>os</strong> que «levar adiante» implica já umareformulação crítica e a atitude de reformulação crítica não se manifestaapenas em relação a formas e temas do modernismo mas prolonga-se notempo <strong>da</strong> existência do passado literário.Mais uma vez n<strong>os</strong> situam<strong>os</strong> perante a dificul<strong>da</strong>de de aceitar oparadoxal como caracterizador, ou seja, a questionabili<strong>da</strong>de de um123


paradoxo caracterizador que, em n<strong>os</strong>sa opinião, não deveria sercontestado, uma vez que a única monologia p<strong>os</strong>sível na voz pós-modernasurge, justamente, <strong>da</strong> dialogia de, e por, um cruzamento de vozes quejustapõe e, simultaneamente, presentifica conflit<strong>os</strong> passad<strong>os</strong>. Esteprocedimento gera a criação inovadora de experiências descontínuas queacabam por formar padrões de sentido de uma continui<strong>da</strong>de.Curi<strong>os</strong>amente, assim se determinariam melhor as noções de tempo ede lugar em literatura porque, a n<strong>os</strong>so ver, o princípio de acção mental dopoeta pós-moderno coincide com o princípio de acção mental do filósofo, namedi<strong>da</strong> em que consideram<strong>os</strong> este como alguém que tem consciência de quepensa. Assim, o poeta pós-moderno tem também consciência de que opoema que produz , logo à parti<strong>da</strong>, se não rege por regras ou categoriaspré-estabeleci<strong>da</strong>s, embora elas p<strong>os</strong>sam vir a estar presentes no poema,mais implícita ou mais explicitamente, como testemunho <strong>da</strong> n<strong>os</strong>talgia <strong>da</strong>scertezas de um passado. È justamente por isto que na generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesiapós-moderna surge impressa uma aparente instabili<strong>da</strong>de e se enforma aconheci<strong>da</strong> «auto-reflexão» pós-moderna que, por sua vez, leva a reflectirsobre a reali<strong>da</strong>de literária já existente, e sua sobrevivência pela práticapoética.Estas observações levam-n<strong>os</strong> a retomar a questão <strong>da</strong> pertinência dealiar ao conhecimento d<strong>os</strong> poetas consagrad<strong>os</strong> o <strong>da</strong> produção de poetas dit<strong>os</strong>«menores». 161 Crem<strong>os</strong>, no entanto, pertinente, a achega que a n<strong>os</strong>saobservação poderá ter trazido, no sentido de constatar que a existência deparâmetr<strong>os</strong> do estatuto ficcional e enunciativo na produção poética pósmodernade autores consagrad<strong>os</strong> se manifesta também na restante produçãopoética.É por este motivo que, no n<strong>os</strong>so trabalho, n<strong>os</strong> interessa <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>sobrevivência de cânones e model<strong>os</strong>, sobrevivência essa que atenua limites161 Confronte-se Anexo.124


ou fronteiras espácio-temporais do literário, recuperando e transformandocânones e model<strong>os</strong>, formas e temas, e assegurando assim a sua passagempara o futuro. Antonio García Berrio, na sua Teoría de la literatura, 162 numsubcapítulo em que abor<strong>da</strong> a tradição como formadora do valor poético,veiculando-a com <strong>os</strong> fun<strong>da</strong>ment<strong>os</strong> não arbitrári<strong>os</strong> <strong>da</strong>s convenções culturais,afirma:Lo que entendem<strong>os</strong> por convencionalism<strong>os</strong> culturales, quefun<strong>da</strong>n el sistema de principi<strong>os</strong> consensuado como discursoliterario, tiene una amplia base explicita y consciente de normasobjectivas y materiales privativ<strong>os</strong>. Todo ello funciona en laproducción literaria como un marco contextual de referenciasinternas a la serie artística. Se forma assí el principio de latradición literaria como contexto convencional [...]A mi juicio esa via de investigación tipológica y formal del<strong>os</strong> <strong>da</strong>t<strong>os</strong> tradicionales de contexto, entre l<strong>os</strong> que se gesta ca<strong>da</strong>nuevo texto, diseñando su proprio espacio de originali<strong>da</strong>d entre susantecedentes literarioa más imediat<strong>os</strong>, es una manera ilustrativa dedefinir y delimitar la convencionali<strong>da</strong>d literaria respecto a lanove<strong>da</strong>d y al valor poétic<strong>os</strong>. Por supuesto que aclara ja, de entra<strong>da</strong>,la superior complexi<strong>da</strong>d de l<strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> que rigen laconvención cultural. 163Consideram<strong>os</strong> a observação simultânea <strong>da</strong> produção periférica e <strong>da</strong>consagra<strong>da</strong>, mesmo que contemporâneas, como fazendo parte de umacontextuali<strong>da</strong>de que age mutua e simultaneamente na sincronia <strong>da</strong> produção.Julgam<strong>os</strong>, pois, encontrar nas afirmações de García Berrio apoio para an<strong>os</strong>sa metodologia de trabalho de investigação no que respeita à detecção doconvencional que se manifesta na presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesiaportuguesa mais recente, tendo sempre presente que a realização dessa162 [1991:300]163 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.125


convencionali<strong>da</strong>de no poema origina, por sua vez, process<strong>os</strong> desingularização e de inovação, a partir d<strong>os</strong> quais aparece a plurali<strong>da</strong>decaracterizadora <strong>da</strong> poesia, pós-moderna ou outra que aquela seja. Nestasua linha de plurali<strong>da</strong>de e diversificação, o pós-modernismo assumerealizações poéticas que permitem, de modo exemplar, <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>importância <strong>da</strong> recuperação de convenções, quer a nível de cânone, quer anível de model<strong>os</strong> que se manifestam exemplarmente no estatutoenunciativo <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa mais recente.O pós-modernismo estabelece, no plano <strong>da</strong> história literária, umaponte <strong>da</strong>s mais diversifica<strong>da</strong>s e completas entre um paradigma deconvenções e uma poética individual inovadora que, deixando de lado aatitude de diálogo fechado entre o poeta e <strong>os</strong> seus univers<strong>os</strong> e universaisliterári<strong>os</strong>, se dirige para uma inclusão em parâmetr<strong>os</strong> mais vast<strong>os</strong> que <strong>os</strong>literári<strong>os</strong>, porque originad<strong>os</strong> em necessi<strong>da</strong>des sócio-culturais. E este desejode alargamento está patente, justamente, na repetição de cert<strong>os</strong> valorespoétic<strong>os</strong> convencionais, presentes de modo relevante na produção poética,tanto consagra<strong>da</strong> como subterrânea, por nós observa<strong>da</strong>.G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de finalizar estas observações sobre cânone, pósmodernismoe poesia citando ain<strong>da</strong> uma afirmação de García Berrio, 164 quen<strong>os</strong> parece sintetizar quatro <strong>da</strong>s linhas principais linhas que, se não f<strong>os</strong>sempor demais ambici<strong>os</strong>as, g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> tivessem orientado ao longo dopresente trabalho mas que, no entanto, procurám<strong>os</strong> ter sempre em mente:El universo literario se constituye assi como un sistema dotado decuatro niveles de resolución armónica y homogénea:164 [1991:323]126


el conjunto de factores de expresión y de simbolizaciónantropológica,el espacio de representación verbal en el texto artístico,la estructura paradigmática de formas arquitectónicas delsistema literario y, por último,el conjunto de l<strong>os</strong> universales estétic<strong>os</strong>.127


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CAPÍTULO III - PERPLEXIDADES ENTRE NARRATIVAE POEMA1. FICÇÃO, FICCIONALIDADE, FICÇÃO POÉTICANão é facto inusitado poderm<strong>os</strong> encontrar a designação de ficçãoidentificando-se com o termo narrativa ou usa<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, como termoop<strong>os</strong>itivo de poesia. A identificação terminológica, de cariz quasesinonímico, entre ficção e narrativa, opondo-se a poesia, surge, quasesempre, em afirmações como as seguintes: «a poesia, em verso ou em pr<strong>os</strong>a,tem pouco a ver com a ficção» ou «<strong>os</strong> romancistas ficcionam mais que <strong>os</strong>poetas» ou, ain<strong>da</strong>, «a instituição literária separa a poesia <strong>da</strong> ficção». Não émuito frequente encontrar um ensaio no qual se associe poesia a ficção.Aliás, é inusual deparar-se-n<strong>os</strong> a preocupação com a abrangência d<strong>os</strong>ignificado do termo ficção, e mais ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suas relações, quer decomplementari<strong>da</strong>de quer de op<strong>os</strong>ição, com as noções de poesia e denarrativa.Calculam<strong>os</strong> que tal acontece por ter sido a noção de ficção,tradicionalmente, remeti<strong>da</strong> para um a priori inseparável <strong>da</strong> criação,intimamente liga<strong>da</strong> ao acto criador e à obra cria<strong>da</strong>, seja esta pictórica,escultórica, cinematográfica, fotográfica, literária ou outra. É, pois,compreensível que o mais evidente, o mais óbvio, escape à sua interrogação,ao seu questionamento. E isto sucede tanto em text<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> ou ensaístic<strong>os</strong>como no uso <strong>da</strong> palavra ficção no quotidiano. Podem ouvir-se129


correntemente frases como: «A reali<strong>da</strong>de ultrapassa a ficção» (assimilaçãodo estranho e inver<strong>os</strong>ímil à ficção), «Isto até parece ficção!», (comparaçãocom o inacreditável, o inver<strong>os</strong>ímil) «Estás a ficcionar!» (metáfora paramentir) ou «Fui ver um filme de ficção» (sinédoque que refere a ficçãocientífica).As afirmações acima referi<strong>da</strong>s remetem uma noção quotidiana de«ficção» para algo de inacreditável, inver<strong>os</strong>ímil, falso, pouco credível ounão existente na reali<strong>da</strong>de factual, mas aliando-a, por outro lado, a umacomparação com a factuali<strong>da</strong>de. Do mesmo modo, para a leiga op<strong>os</strong>içãoentre ficção e poesia terá também contribuído o facto de, sobretudo nasegun<strong>da</strong> metade do século vinte, a poesia por vezes se ter afastado <strong>da</strong> suavertente narrativa, identifica<strong>da</strong> esta empiricamente, por muit<strong>os</strong> leitores, coma noção de ficção. Releve-se que <strong>os</strong> referid<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> de estranheza oude inver<strong>os</strong>imilhança em relação à ficção provêm também do conhecimento<strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de epocal e <strong>da</strong>s suas características, que tendem a projectar noleitor um horizonte de espera ordenado e racionalizado, imp<strong>os</strong>to,inconscientemente que seja, pelas instituições e c<strong>os</strong>tumes dominantes notempo <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de na qual se movimenta o leitor.A ficção, tal como é entendi<strong>da</strong> pelo leitor comum, afasta-se sempre,embora com diferentes graus de distanciamento, <strong>da</strong> normativi<strong>da</strong>de factualporque constrói e institui, a partir <strong>da</strong> referência desta, um mundo que deladifere pela transformação através <strong>da</strong> utilização de um material p<strong>os</strong>to a<strong>os</strong>erviço <strong>da</strong> arte e que, no caso <strong>da</strong> literatura, é um mundo construído com omanuseamento <strong>da</strong> língua, <strong>da</strong> palavra. Este mundo construído na e pelapalavra, nomeia-o o leitor comum como mundo de ficção, mundo irreal,mundo inventado, mundo imaginado, mas muito raramente como mundorepresentado. Crem<strong>os</strong> que tal sucede porque a imaginação usa, numadinâmica transformacional, tanto o trabalho com a palavra como a130


epresentação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de factual, como afirma Thomas Pavel em Universde la Fiction 1 :L´imagination p<strong>os</strong>e des masques sur les ch<strong>os</strong>esenvironnantes. [...] Elle transforme et, prenant place <strong>da</strong>ns lematériau artistique, elle crée des mondes fictifs, soit deshorizons imprévus, des représentations métamorph<strong>os</strong>ant, plusou moins radicalement, la réalité. C´est un jeu de fairesemblant. 2Para o comum d<strong>os</strong> leitores, este jogo de «faz de conta», inerente àtransformação do factual em ficcional, referi<strong>da</strong> por Pavel, está no cerne <strong>da</strong>atitude de recepção <strong>da</strong> ficção entendi<strong>da</strong> como sinónimo de narrativa eexplica essa errónea sinonímia pois, do ponto de vista leigo do leitorhodierno, a poesia seria men<strong>os</strong> detentora <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de criar mund<strong>os</strong>paralel<strong>os</strong> à factuali<strong>da</strong>de, o que é consequência de um entendimentotradicional <strong>da</strong> poesia como meio de expressão do eu e do género lírico.No entanto, já n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta Julia Kristeva enunciava, emSemiótica do Romance 3 :A estrutura carnavalesca é como que o traçado de umac<strong>os</strong>mogonia que não conhece a substância, a causa, aidenti<strong>da</strong>de, fora <strong>da</strong> relação com o todo que não existe senão nae pela relação. A sobrevivência <strong>da</strong> c<strong>os</strong>mogonia carnavalesca éantiteológica (o que não quer dizer antimística) eprofun<strong>da</strong>mente popular. Permanece como um substrato muitasvezes esquecido ou perseguido <strong>da</strong> cultura ocidental oficial aolongo de to<strong>da</strong> a sua história, e manifesta-se no seu melhor n<strong>os</strong>1 [1988:74]2 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.3 [1977:85,86]131


jog<strong>os</strong> populares, no teatro medieval e na pr<strong>os</strong>a medieval (asanedotas, <strong>os</strong> fabulári<strong>os</strong>, o romance de Renart) 4Apesar de discor<strong>da</strong>rm<strong>os</strong>, hoje, face a certas realizações demiscigenação genológica, <strong>da</strong> dicotomização tipológica do discurso emdiscurso monológico e discurso dialógico, de que parte Kristeva para anoção de estrutura carnavalesca e de menipeia, quisem<strong>os</strong> aqui salientar opapel de desempenho no jogo, assumido pelo leitor quando seconsciencializa <strong>da</strong> ficção inscrita, por exemplo, na leitura de um romance, esegue a configuração desse mundo, consciente do afastamento <strong>da</strong>factuali<strong>da</strong>de, como se verifica, por exemplo, n<strong>os</strong> jog<strong>os</strong> de crianças, n<strong>os</strong>jog<strong>os</strong> populares ou nas configurações narrativas medievais.Por outro lado, o leitor comum tem a noção de que, ao ler umromance, está a ser levado a reconsiderar a sua reali<strong>da</strong>de factual, pois aficção tanto a metamorf<strong>os</strong>eia como a revela. Julgam<strong>os</strong> ser por isso que aidentificação de ficção com narrativa tem lugar: pela consciência econstatação de que o mundo narrado (o mundo ficcional) é umatransformação do mundo factual que depende do trabalho artístico <strong>da</strong>imaginação, tendo como instrumento a linguagem, ou seja, a criação de ummundo outro, que apenas pode ser inventado porque o mundo factual existee nesse mundo outro se torna a evidenciar, a representar e a contar.A percepção <strong>da</strong> ficção como jogo, tal como a identificação de ficçãocom um mundo literário onde se articulam personagens temporais que agemem espaç<strong>os</strong> e constroem mund<strong>os</strong> paralel<strong>os</strong>, parecem-n<strong>os</strong> ser motiv<strong>os</strong> queexplicam a razão por que o termo ficção tem sido vulgarmente usado com<strong>os</strong>inónimo de narrativa, excluindo as realizações <strong>da</strong> poesia, sobretudo para oleitor do século vinte. Vejam<strong>os</strong> alguns exempl<strong>os</strong> que poderão conduzir,eventualmente, um leitor leigo em questões de estud<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> a adoptar asinonímia acima menciona<strong>da</strong>.4 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.132


Confrontarem<strong>os</strong> as primeiras frases de alguns romances portuguesesd<strong>os</strong> an<strong>os</strong> cinquenta a setenta com poemas que com eles se p<strong>os</strong>sam relacionarpela aparente semelhança de articulação de personagens, espaç<strong>os</strong>, acções outemporali<strong>da</strong>des. Começarem<strong>os</strong> pelo romance Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s Flores 5 , deAugusto Abelaira, que abrim<strong>os</strong> com a intuição de um primeiro impulso, ecuja primeira edição <strong>da</strong>ta de 1959:Sentado com as pernas cruza<strong>da</strong>s, uma <strong>da</strong>s mã<strong>os</strong> nobolso e a outra a brincar com um lápis, Giovanni Fazioobservava <strong>os</strong> pass<strong>os</strong>, para diante e para trás, de um casal deingleses. Ele - chamar-te-ás John, decidiu - recuara dois ou trêsmetr<strong>os</strong>, e ela - Mary - dirigia-se devagar para <strong>os</strong> degraus dopalácio, sob o olhar indiferente do David.Apesar <strong>da</strong> intervenção pseudocriativa do narrador, que assume ofingimento do papel do escritor no momento <strong>da</strong> escrita, decidindo que nomedeve atribuir a uma personagem, não esqueçam<strong>os</strong> que este é um narradorpersonageme que, por tal, configura uma plausibili<strong>da</strong>de que não chega adenunciar a máscara <strong>da</strong> ficção.Partindo de temática similar, e também <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong> presença deum espaço estrangeiro, de turistas, de visita a monument<strong>os</strong>, bem como <strong>da</strong>acção de observação do que rodeia uma personagem por parte <strong>da</strong> mesma,procurám<strong>os</strong> um poema no qual se pudesse identificar uma representaçãomundivivencial paralela, e escrito aproxima<strong>da</strong>mente na mesma déca<strong>da</strong>.Encontrám<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> poemas p<strong>os</strong>síveis no livro Do Tempo ao Coração, 6publicado em 1966, <strong>da</strong> autoria de David Mourão-Ferreira, um d<strong>os</strong> quaistranscrevem<strong>os</strong>:5 [1959:11]; ed.ut. 2ª edição.6 [1966:47]133


Delph<strong>os</strong>É o centro do mundo É o reino de ApoloQuem foi que pôs aqui Afrodite em «blue-jeans»subindo o anfiteatro ao encontro do Soldepondo na penumbra o esplendor <strong>da</strong>s ruínasComo galga <strong>os</strong> degraus Lá em cima é o estádioEu enc<strong>os</strong>to o ouvido ao umbigo <strong>da</strong> TerraÉ para mim agora a sentença do oráculoque sem eu perguntar me responde MulherMas sei dentro de mim e sei que não me iludoQue vim dizer adeus à minha juventudeTerra de turismo, personagem que observa o que a rodeia, incluindouma mulher que por ela é baptiza<strong>da</strong> com o nome de Afrodite; a história deuma vi<strong>da</strong> que se conta... Mas serão estes element<strong>os</strong> suficientes para que,neste poema, o leitor reconheça o «contar de uma história», mesmo que eminício, mesmo que esboçado, o que no excerto de Abelaira é evidente? Nãoo crem<strong>os</strong>. Para além <strong>da</strong> abertura que se gera e que conduz à dialógicaapetência de uma continui<strong>da</strong>de, a linguagem do texto de Abelaira não pedeao leitor a prop<strong>os</strong>ta de um mundo interior a descobrir. Poderíam<strong>os</strong>argumentar que em amb<strong>os</strong> <strong>os</strong> text<strong>os</strong> se encontra a referência a um lugarfactual; no entanto, se <strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> mencionad<strong>os</strong> f<strong>os</strong>sem inexistentes nafactuali<strong>da</strong>de, existiriam à mesma como hipotétic<strong>os</strong> países inventad<strong>os</strong>.Por outro lado, a mulher do poema de Mourão-Ferreira parece poderaproximar-se mais <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de, com a aspereza familiar <strong>da</strong> ganga d<strong>os</strong>seus «blue-jeans» do que a inglesa referi<strong>da</strong> por quem confessa ter inventadoo nome Mary. Parece, pois, que o poema poderia ter mais força no seu134


enraizamento qualitativo na factuali<strong>da</strong>de, reforçado pelo facto de a máscara<strong>da</strong> ficção estar nomea<strong>da</strong>, aponta<strong>da</strong> e indicia<strong>da</strong> no texto de Abelaira e não nopoema. No entanto, em Delph<strong>os</strong>, apesar de não ser confessa<strong>da</strong> a máscara, alinguagem desven<strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>des segun<strong>da</strong>s, como a referência intertextual,e configura uma plurali<strong>da</strong>de de sentiment<strong>os</strong> transmitid<strong>os</strong> que abre umapolissemia ausente do texto de Abelaira.Não duvi<strong>da</strong>m<strong>os</strong> que <strong>os</strong> dois text<strong>os</strong> sejam ficção, no sentido em queliteratura se pode identificar com ficção, segundo Gérard Genette emFiction et Diction: 7Si donc il existe un et un seul moyen pour le langage dese faire à coup sûr oeuvre d´art, ce moyen est sans doute bien lafiction.Embora admita também que a linguagem humana determina doisregimes de literarie<strong>da</strong>de - o constitutivo e o condicional -, e especifique queo primeiro rege dois tip<strong>os</strong> de prática literária que considera serem a ficção ea poesia, não deixa, contudo, de salvaguar<strong>da</strong>r que um terceiro tipo de práticaliterária engloba a ficção em forma poética, que designa por «diction». 8Dicotomiza, pois, «littérature de fiction» (que p<strong>os</strong>sui como dominante oimaginário) e «littérature de diction» (que p<strong>os</strong>sui como dominante ascaracterísticas formais), não deixando, contudo, de realçar que estadicotomia tem uma certa flexibili<strong>da</strong>de que não exclui «amalgame et mixité».Interessa-n<strong>os</strong> realçar, neste p<strong>os</strong>icionamento, a literatura comoficcionali<strong>da</strong>de produzi<strong>da</strong> com a arte <strong>da</strong> linguagem, pois este ponto devista permite a abertura a uma mais alarga<strong>da</strong> visão entre ficção,ficcionali<strong>da</strong>de e narrativi<strong>da</strong>de, que interessa particularmente ao n<strong>os</strong>sotrabalho.7 .[1991:20]8 [1991:31]135


Retomando <strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> de Abelaira e Mourão-Ferreira,consideram<strong>os</strong> ser p<strong>os</strong>sível que alguém entre eles estabelecesse umainstintiva diferenciação, atribuindo a classificação de ficção ao primeiro e ade poesia ao segundo, e pretendendo, por tal, designar uma diferença entrenarrativa e poema ou texto narrativo e texto lírico. Esta constataçãocomum leva-n<strong>os</strong> ao cerne <strong>da</strong> problemática que pretendem<strong>os</strong> abor<strong>da</strong>r: comodistinguir poesia narrativa e narrativi<strong>da</strong>de na poesia? Que limitesestabelecer, que características textuais determinam o estatuto narrativo, oude narrativi<strong>da</strong>de, do texto lírico?No exemplo do poema transcrito, de David Mourão-Ferreira, está ounão presente a narrativi<strong>da</strong>de? Não tem<strong>os</strong> dúvi<strong>da</strong>s quanto à configuraçãonarratológica de um mundo ficcional, na sua dimensão de transformação doreal factual em real ficcional, pois esta dimensão implica, afinal, umacapaci<strong>da</strong>de muito mais «reveladora» que «transformadora». No entanto,como considerar a vertente «evocadora» quando esta parece fingirrepresentar uma não evocação, o que acontece quando deparam<strong>os</strong>, numpoema, com element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong>? E, de sobremaneira, quando esteselement<strong>os</strong> definem cenas, personagens, acções, embora não configurandouma linha diegética? Consideram<strong>os</strong> que o distanciamento do poemanarrativo, nestes cas<strong>os</strong>, pode permitir a designação de narrativi<strong>da</strong>de nopoema.Crem<strong>os</strong> que a via para a clarificação <strong>da</strong> articulação entre poesia,narrativa e narrativi<strong>da</strong>de, essencial à definição terminológica no n<strong>os</strong>sotrabalho, passa pelo estatuto enunciativo do poema, esteja este em verso ouem pr<strong>os</strong>a, aliado à presença de element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> <strong>da</strong>narrativa mas que, por se encontrarem num determinado contexto, apesar <strong>da</strong>sua eventual incompletude, determinam a identificação <strong>da</strong> presença denarrativi<strong>da</strong>de no poema. Tomem<strong>os</strong> como exemplo, de escolha um tantoaleatória, e como ponto de parti<strong>da</strong> para a n<strong>os</strong>sa reflexão, as primeiras três136


estrofes do poema d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa «Longe <strong>da</strong> histeria», 9 de Luís FilipeCastro Mendes:Muitas vezes o poema,decisão bruscaou efeito <strong>da</strong> manhã nas altas janelasdo seu entendimento,muitas vezes o poema partiade um movimento sem nome, semprovado atributo,movimento sequer às ervas destinado.Mas a consolação,rápi<strong>da</strong> fuga.A reflexão metalinguística presente neste poema serve-n<strong>os</strong>duplamente de ponto de referência, na medi<strong>da</strong> em que m<strong>os</strong>tra, por parte dopoeta, a consciência de que o poema parte de uma factuali<strong>da</strong>de não concreta,ou seja, não <strong>da</strong>s «janelas», mediadoras sobre o mundo exterior, nem <strong>da</strong>s«altas janelas» que distanciariam mais o sujeito do mundo, nem sequer <strong>da</strong>s«manhãs» que tornariam esse distanciamento men<strong>os</strong> localizávelespacialmente, mas sim do «efeito <strong>da</strong>s manhãs nas altas janelas», ou seja, deuma impalpabili<strong>da</strong>de que, contudo, pertence a uma sup<strong>os</strong>ta factuali<strong>da</strong>deprévia. Esta impalpabili<strong>da</strong>de é reforça<strong>da</strong> pela referência a «um moviment<strong>os</strong>em nome» nem corpo, uma «rápi<strong>da</strong> fuga» sem sujeito, que parecem negaraté a factuali<strong>da</strong>de do uso <strong>da</strong> própria palavra de que é feito o poema.Julgam<strong>os</strong> que a referência à ficção, à ficção poética, se pode ler nestepoema como o contar <strong>da</strong> construção ficcional do poema, no entanto,consideram<strong>os</strong> estar dele ausente a efabulação pertencente à narrativi<strong>da</strong>de,9 [1999:63]; poema de A Ilha d<strong>os</strong> Mort<strong>os</strong>, de 1991, in Poesia Reuni<strong>da</strong> (1985-1999).137


pois não está nele presente a evidência do contar de uma história compersonagens que agem num espaço e dentro de uma temporali<strong>da</strong>de, nemsequer de uma cena que permita despoletar no leitor a sua completudenarrativa. Folheando, ain<strong>da</strong>, Poesia Reuni<strong>da</strong> de Luís Filipe Castro Mendes,e chama<strong>da</strong> a n<strong>os</strong>sa atenção, desta vez, para a presença frequente <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de, seleccionám<strong>os</strong> o poema «Anoitecer de Ouro Preto», 10 do qualtranscrevem<strong>os</strong> a primeira estrofe:Nas gel<strong>os</strong>ias se quebrato<strong>da</strong> a luz e to<strong>da</strong> a graçaque em rai<strong>os</strong> de sol se dispersafaz-se cinza nesta praça.N<strong>os</strong> alt<strong>os</strong> sobrad<strong>os</strong> velh<strong>os</strong><strong>da</strong>s casas com seus fantasmasum vulto vem de joelh<strong>os</strong>trazer-me a pena <strong>da</strong>s almas.Anoiteceu; mas aquinesta praça de Ouro Pretotant<strong>os</strong> r<strong>os</strong>t<strong>os</strong> que entreviforam sombras de um só medo.Porque <strong>os</strong> mort<strong>os</strong> me procuram?Quant<strong>os</strong> crimes cometi?Cai tão cedo a noite escuraque nem sei o que vivi.Não é, pois, apenas o uso de model<strong>os</strong> formais e temátic<strong>os</strong> ligad<strong>os</strong> àpoesia tradicional popular ou a<strong>os</strong> romanceir<strong>os</strong> do romantismo que leva oleitor a receber o poema como narrativo. A presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de éconfigura<strong>da</strong> pela existência, no poema, de element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> que,existindo na narrativa e no poema narrativo, neste caso se entrecruzam, seomitem e se relacionam no poema, assumindo uma configuração diegética10 [1999:351]; poema de Outras Canções, de 1998, in Poesia Reuni<strong>da</strong> (1985-1999).138


com características peculiares, mas que permite a visualização de umespaço, de uma personagem que assume acção e de um esboço de história acontar.Crem<strong>os</strong> ter apontado que o termo ficcionali<strong>da</strong>de, num sentido lato, devasta abrangência, poderá corresponder quase a criativi<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> emque to<strong>da</strong> a criação supõe a existência de um criador e de uma obra cria<strong>da</strong>, ecorrespondendo esta ao resultado de um processo de transp<strong>os</strong>ição e detransformação do factual para o ficcional através <strong>da</strong> dinâmica doimaginário criativo p<strong>os</strong>to ao serviço <strong>da</strong>s mais diversas matérias e materiais,ou vice-versa. Frases como «a reali<strong>da</strong>de às vezes parece ficção» ou «areali<strong>da</strong>de por vezes ultrapassa a ficção» podem ser ouvi<strong>da</strong>s correntemente,demonstrando um conhecimento intuitivo e generalizado, emboraterminologicamente impreciso, <strong>da</strong> existência de uma diferença entre realfactual e real ficcional. Do mesmo modo, é crença generaliza<strong>da</strong> que <strong>os</strong>escritores que produzem obras de ficção criam cont<strong>os</strong> ou romances e queaqueles que escrevem poesia, seja esta em verso ou pr<strong>os</strong>a, estão afastad<strong>os</strong><strong>da</strong> ficção. Crem<strong>os</strong> resultar este conhecimento empírico de uma erróneasinonímia entre ficção e narrativa.Julgam<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, que esta sinonímia provém do facto de, sobretudodurante grande parte do século vinte, a poesia se ter afastado <strong>da</strong> sua vertentenarrativa. Parece ter ficado esquecido que a poesia sempre estevepredominantemente liga<strong>da</strong> à narrativa, desde a poesia épica grega a<strong>os</strong>romanceir<strong>os</strong> e poemas narrativ<strong>os</strong> do romantismo, passando pelas cantigastrovadorescas e pela narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lírica renascentista, por exemplo. Oafastamento <strong>da</strong> poesia <strong>da</strong> sua origem narrativa sucede, porventura, devido àausência, na maioria <strong>da</strong> produção poética do século vinte, de personagens,de uma linha diegética, de cenári<strong>os</strong>, de temporali<strong>da</strong>des, de uma linhadiegética articulante de acções ver<strong>os</strong>ímil e logicamente encadea<strong>da</strong>s, que139


teria originado a crença de que a poesia e a narrativa se encontram separa<strong>da</strong>se dissocia<strong>da</strong>s.O significado de ficção e, por inerência ou analogia, o deficcionali<strong>da</strong>de, não são, consequentemente, muito questionad<strong>os</strong>. Noentanto, é de reconhecimento comum que a ficcionali<strong>da</strong>de é determinante dorasgo estético-ficcional presente na expressão artística, resultante <strong>da</strong>criativi<strong>da</strong>de literária, pictórica ou cinematográfica, por exemplo, comoexpressões liga<strong>da</strong>s à criativi<strong>da</strong>de artística e, até, à estética em geral.Interessa-n<strong>os</strong>, particularmente, para o n<strong>os</strong>so trabalho, a visão <strong>da</strong>ficcionali<strong>da</strong>de como determinadora <strong>da</strong> existência do literário e, portanto,também <strong>da</strong> poesia em particular, deixando de lado questões genológicas.Igualmente n<strong>os</strong> reportam<strong>os</strong> à narrativi<strong>da</strong>de como determinadora <strong>da</strong> presençade realizações narratológicas tradicionalmente presentes no modo narrativomas podendo configurar existências textuais que ao modo narrativo nãopertencem.Ricard Ripoll Villanueva, no seu texto «L´aventure du fictif», 11 para ocongresso L´effet de fiction, afirma estar convicto de que, na procurahumana de sentido, o desejo de aventura se faz acompanhar de um desejo deficção, aliando a aventura à constituição de um sentido exterior aoindivíduo e a ficção à construção <strong>da</strong> sua intimi<strong>da</strong>de mais recôndita, eescreve:Le besoin de mentir est un besoin urgent de seconfronter à l´identité. En inventant une histoire, j´invente despersonnages Qui vivent des aventures que j´aurais pu vivre,que j´aurais aimé vivre, sans risque puisque je contrôle la viede ces personnages.Du côté du romanesque celà est accepté. La fiction estclaire. Mais du côté de la poésie, que se passe-t-il? Y a-t-il11 Texto ain<strong>da</strong> não publicado, mas disponível na net, em:http://www.fabula.org/effet/interventions/14.php140


fiction ou, comme l´affirme Genette, la poésie fait-elle partiede la diction? 12Crem<strong>os</strong> que, a partir do momento em que <strong>da</strong> representação artísticase trata, a construção <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de e a sua relação de imanência com afactuali<strong>da</strong>de não podem ser p<strong>os</strong>tas em causa. Poderem<strong>os</strong>, talvez,equacionar, sim, duas vertentes: a primeira, centra<strong>da</strong> no imaginário, emconexão com as pulsões íntimas; a segun<strong>da</strong>, centra<strong>da</strong> na imaginação, liga<strong>da</strong>à invenção consciente de uma história. O termo ficcionali<strong>da</strong>de, usado porGenette, assume uma espécie de herança paralela à literarie<strong>da</strong>de deJackobson. Do mesmo modo, a poesia reconstrói o factual em expressãoficcional. O que é p<strong>os</strong>to em causa é o facto de esta representação, no poema,se assumir pela dicção e não pela ficção. Ora, na poesia narrativatradicional, esta reconstrução do real a partir do discurso tende a ser li<strong>da</strong>mais como expressão de atitude do que como expressão de discurso e, napresença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, a miscigenação é a evidência pelaqual a própria narrativi<strong>da</strong>de se define.Um romance ou um poema podem oferecer um horizontetransformado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de quotidiana factual, através <strong>da</strong> dicção que <strong>os</strong>ficcionaliza; <strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> na sua recepção, contudo, divergirão. Assim, napoesia narrativa, bem como na presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, areconstrução ficcional do factual tende a ser li<strong>da</strong> mais como atitude do quecomo discurso, ou seja, uma atitude que m<strong>os</strong>tra, predominantemente, ap<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de aventura, através do m<strong>os</strong>trar do desejo de ficção. Estaintencionali<strong>da</strong>de latente na poesia narrativa, tal como na presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia, e independentemente do uso de primeira ou terceirapessoas, estabelece uma espécie de abismo entre o dizer (ligado aoimaginário) e o mentir (ligado à imaginação). O dizer está intimamenteligado ao já vivido, ao já experimentado, à poesia lírica O mentir está12 Sublinhado n<strong>os</strong>so.141


elacionado com a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de viver, com a aventura, com a poesianarrativa. Crem<strong>os</strong> que a narrativi<strong>da</strong>de na poesia se instala nessa errânciaentre o dizer e o mentir, entre poeta e aventureiro, ou seja, entre fiction ediction, na terminologia de Genette, ou num poema como este de Um Barcono Rio, de António Carl<strong>os</strong> Cortez: 13às três horas <strong>da</strong> manhã entrei nas ruas de salamanca.eram ruas crava<strong>da</strong>s de branco, as ruas de salamanca.disseram-me que não havia porto de mar nas casas quentesde salamancae só aí to<strong>da</strong>s as velas de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> barc<strong>os</strong> circularam nas ruasde salamancao sangue é uma espécie de exército marinho guar<strong>da</strong>ndomilharesde milhas <strong>da</strong>s ruas de salamanca. O sangue do poemaocre como as ruas de salamanca às três <strong>da</strong> manhã.um corpo baleado de branco como um porto de maraguar<strong>da</strong>ndo o momento exacto em que entrar nas ruas desalamanca f<strong>os</strong>se a ci<strong>da</strong>de mais perfeita para se fazer um poema:nas ruas de salamanca implícitas entregas.A descrição <strong>da</strong>s ruas de Salamanca e o esboço <strong>da</strong>s suas históriasnocturnas faz-se, no poema, justamente através do entrecruzamento, lacunarque seja, entre o dizer e o mentir, entre a representação ficcional poética e arepresentação ficcional narrativa. As ruas «eram ruas crava<strong>da</strong>s de branco»,ladea<strong>da</strong>s por «casas quentes», e assumiam um tom «ocre[...] às três <strong>da</strong>manhã», quando a violência as assolava com «sangue» e «um corpobaleado». No entanto, <strong>da</strong>s ruas de Salamanca se diz também «que não haviaporto de mar nas casas» mas que «só aí to<strong>da</strong>s as velas de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> barc<strong>os</strong>circulavam nas ruas» onde podia ver-se «o sangue do poema» como «umcorpo baleado de branco», entrecruzando o dizer e o mentir.13 [2002:31]142


Assim, podem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> observar que a relação entre narrativa e poesiaé uma relação, à parti<strong>da</strong>, incompleta, não delimitável e lacunar, porqueimplica também a admissão de que a poesia épica e a poesia dramática, nan<strong>os</strong>sa era de corrente miscigenação genológica, se transformaram noutr<strong>os</strong>text<strong>os</strong>, quase não subsistindo hoje, em geral, na poesia. Poderíam<strong>os</strong> afirmar,como é corrente, que a épica deu lugar ao romance e a poesia dramática aoteatro. No entanto, onde catalogaríam<strong>os</strong> o «romance-poema» e o próprio«poema em pr<strong>os</strong>a»?... Curi<strong>os</strong>amente, a lírica é, talvez, a poesia que, na suaessência, mais se manteve idêntica: a palavra do eu no mundo, numatentativa de atingir uma fusão com o real e com a linguagem, acresci<strong>da</strong>,hoje, <strong>da</strong> p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de se desdobrar naquele que deseja, simultaneamente,a aventura, pela tal errância entre o dizer e o mentir, no imponderável <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia.2. NARRATIVIDADE NA POESIA2.1. NARATIVA, NARRATIVIDADE E POESIACrem<strong>os</strong> que uma <strong>da</strong>s razões que leva a maioria d<strong>os</strong> leitores hodiern<strong>os</strong>a sentir-se mais à vontade perante a eventuali<strong>da</strong>de de leitura de um conto oude um romance, em detrimento de um livro de poesia, é o facto de anarrativa dizer ao leitor, de certo modo, bastante do que já lhe era familiar,ou conhecido, e que nele pode despoletar uma atitude de leitura marca<strong>da</strong>pelo reconhecimento. Na maioria <strong>da</strong>s realizações <strong>da</strong> poesia moderna, 14 pelo14 Enten<strong>da</strong>-se o adjectivo «moderna», aqui, como intimamente relacionado com a práticaliterária vigente no modernismo, referi<strong>da</strong> em relação à poesia.143


contrário, o que é dito não pode ser lido de imediato, nem como familiar ouconhecido, nem como estranho e desconhecido, pois o mundo defactuali<strong>da</strong>des exteriores ou interiores ao ser humano que se manifesta nopoema encontra-se geralmente oculto, ou parcialmente oculto, dissolvido ematm<strong>os</strong>feras ou indicadores de sentid<strong>os</strong> apenas suspeitad<strong>os</strong>, que solicitam umdesven<strong>da</strong>mento nem sempre fácil e evidente.Talvez a única certeza conheci<strong>da</strong> pelo leitor que se encontra peranteum poema seja a certeza <strong>da</strong> linguagem que este utiliza, seja a familiari<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s palavras que o compõem. No entanto, ao contrário, por exemplo, doromance tradicional, 15 as palavras familiares tornam-se, no poema,frequentemente estranhas, quase desconheci<strong>da</strong>s, porque se concentra nelasuma focalização que quase não admite hierarquias de relevância oupertinência. Enquanto, no romance, ou no conto, as palavras se subordinamà retórica textual, articulando-se em interdependência com um enredo, comas consequentes temporali<strong>da</strong>des de diegese, ver<strong>os</strong>imilhança de acção ourepresentação descritiva, no poema moderno é usual as palavrasconstituírem em si um simulacro substitutivo de cenário e enredo, mas que oanula através <strong>da</strong> encenação de si mesmas e d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> que sugerem. EmLa Voix d´Orphée, Jean-Michel Maulpoix salienta esta facul<strong>da</strong>de autoencenativa<strong>da</strong> palavra na poesia moderna do seguinte modo: 16Du privilège classique de l´objet représenté, lalittérature a progressivement glissé vers celui, romantique, dusujet qui le représente, puis vers celui, moderne, du langageévocatoire. Una telle évolution traduit la lente mise à jour del´essence poétique à travers l´histoire de la poésie.15 Consideram<strong>os</strong> aqui, por um objectivo de maior clareza, o romance até finais do séc. XIX.As inovações do romance no séc. XX, a partir do «nouveau roman», com to<strong>da</strong> afragmentarie<strong>da</strong>de, diversificação e desconstrução estrutural, temática e linguística, bemcomo a miscigenação genológica, serão por nós, p<strong>os</strong>teriormente e pontualmentemenciona<strong>da</strong>s.16 [1989:65]144


Acrescentaríam<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, que no romance <strong>os</strong> event<strong>os</strong>, as personagens,a temporali<strong>da</strong>de ou o espaço geram as palavras do discurso de uma história,enquanto que na poesia, pelo contrário, as palavras adquirem uma dimensãodiscursiva que institui a dinâmica gera<strong>da</strong> e constitui <strong>os</strong> seus presumíveisevent<strong>os</strong>, as suas p<strong>os</strong>síveis personagens, a sua hipotética temporali<strong>da</strong>de, ou oimaginário do espaço <strong>da</strong> sua «história inexistente». É, assim, remeti<strong>da</strong> anoção de história para a de historici<strong>da</strong>de, ou seja, para uma «história d<strong>os</strong>sentid<strong>os</strong>» presentificad<strong>os</strong> na poesia, nela presentificad<strong>os</strong>, adivinhad<strong>os</strong> econstruíd<strong>os</strong>, tanto como por temporalizar, por adivinhar e por construir.A própria potenciali<strong>da</strong>de do ritmo de leitura, seja este mental ou oral,mas sempre intimamente liga<strong>da</strong> a<strong>os</strong> factores acima exp<strong>os</strong>t<strong>os</strong>, determina umamaior lentidão na reprodução vozea<strong>da</strong> <strong>da</strong> poesia, <strong>da</strong>ndo peso e sabor aoritmo de ca<strong>da</strong> palavra e ao seu florescer múltiplo, modificando esse peso ouesse ritmo a ca<strong>da</strong> renova<strong>da</strong> aproximação do poema. Esta processa-se, pois,como se a linguagem e as palavras, no poema, f<strong>os</strong>sem um corpo, ouelement<strong>os</strong> de corp<strong>os</strong>, a adivinhar progressivamente pel<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>inteligentes do leitor, e contrapondo-se, por isso, ao visualizar fílmico <strong>da</strong>linguagem e <strong>da</strong>s palavras no romance. No entanto, esta contrap<strong>os</strong>içãoatenua-se ou anula-se quando se trata do poema narrativo ou, pelo men<strong>os</strong>,<strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema.Ler um poema é uma experiência diferente de qualquer outro tipo deleitura, seja ela literária ou não, porque nenhuma leitura n<strong>os</strong> pode prepararpara a leitura <strong>da</strong> poesia a não ser a própria experiência de ler poesia, vistoque nenhum outro texto tem como principal contexto a própria voz d<strong>os</strong>ujeito lírico; nem nenhum outro se inventa a si próprio engendrando aautori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas palavras; e, ain<strong>da</strong>, nenhum outro texto harmoniza umatão grande dependência de voz, som e sentido, dependendo,simultaneamente, de uma deseja<strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de, como n<strong>os</strong> transmite o145


excerto de um poema de António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a, de Pequenas Combinações<strong>da</strong> Pátria e do mau tempo: 17O poema também aspiraa uma certa estabili<strong>da</strong>de.Detesta ser caleid<strong>os</strong>cópioou aquário,mas não renunciaa ser um corpo de água.E, ain<strong>da</strong> que pareça estranho,também sonha com mulheres.Pela sua pupila verbalperpassam com certa frequênciasei<strong>os</strong>, pernas e ancasou a flor roxa de um sexo.------------------------------------------Não p<strong>os</strong>so pedir ao poemaque diluaestas imagens vivas.Com <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> desej<strong>os</strong> combinad<strong>os</strong>penetram<strong>os</strong> num fruto cintilanteque por igual n<strong>os</strong> pertencee que de nós se desgarra como um cantopara outr<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong>,que são o n<strong>os</strong>so horizontepara além do olvido.A humanização do poema, neste texto, representa um d<strong>os</strong> veícul<strong>os</strong>,simultaneamente, mais sedutor e mais subtil <strong>da</strong> metalinguagem, vistoultrapassar a multiplici<strong>da</strong>de de sentid<strong>os</strong> e comunicar uma estabili<strong>da</strong>de de17 [1995:8]146


segurança iniciática («corpo de água», «lençol de água») que se espraia, ouse partilha «para outr<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong>», mantendo-se adentro do próprio sentido dehorizonte do p<strong>os</strong>sível. Em The Weather of Words - poetic invention, 18 MarkStrand defende, teoricamente, uma semelhante visão <strong>da</strong> poesia visto que,depois de referir considerar que a poesia representa a forma de umaestabili<strong>da</strong>de para além d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> p<strong>os</strong>síveis, afirma:It may be, therefore, that reading poetry is often a searchfor the unknown, something that lies at the heart of experiencebut cannot be pointed out or described without being altered ordiminished - something that nevertheless can be contained sothat it is not so terrifying. It is not knowledge but rather someoccasion for belief, some reason for assent, some avowal ofbeing. It is mysterious or opaque, and even it invites the reader,it wards him off. This unknown can make him uncomfortable,force him to do things that would make it seem less strange,and this usually means inverting a context in which to set it,something that counteracts the disembodiedness of the poem. 19A solicitação do desven<strong>da</strong>mento do desconhecido, alia<strong>da</strong> à experiênciacomo desconforto <strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong> crença e do espaço de ser, levam-n<strong>os</strong> aconsiderar que as afirmações de Mark Strand p<strong>os</strong>sam ser enquadra<strong>da</strong>s noconceito de «estranheza» <strong>da</strong> desconstrução. Esta observação não deixa,contudo, de relevar o contexto no qual o leitor constrói e pode explicarsituações, <strong>da</strong>d<strong>os</strong> ou asserções presentes no poema e que não poderá nuncaser desprezado ou substituído, mesmo considerando a globali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaelocução. Apesar do seu poder de sedução e encantamento, o poema há-desempre resistir a to<strong>da</strong>s as leituras que não correspon<strong>da</strong>m a significad<strong>os</strong> ouinterpretações parciais, nisto se aproximando <strong>da</strong> visão <strong>da</strong> leitura comoalegoria, foca<strong>da</strong> por Aguiar e Silva no ensaio «A Teoria <strong>da</strong> desconstrução, a18 [2000:48, 49]147


hermenêutica literária e a ética <strong>da</strong> leitura», 20 do qual citam<strong>os</strong> as afirmaçõesseguintes:A desconstrução advoga, por conseguinte, um modelohermenêutico fun<strong>da</strong>do exclusivamente na intentio operis erejeita quaisquer model<strong>os</strong> hermenêutic<strong>os</strong> de algum modohipotecad<strong>os</strong> à intentio auctoris e à intentio lectoris.---------------------------------------------------------------------------Nenhuma leitura pode, em term<strong>os</strong> epistemológic<strong>os</strong>,reivindicar um estatuto de racionali<strong>da</strong>de científica que atornaria uma leitura verifica<strong>da</strong>, corrobora<strong>da</strong>, em term<strong>os</strong>popperian<strong>os</strong>, e por conseguinte uma leitura estabiliza<strong>da</strong> (nãonecessariamente definitiva). O texto literário não p<strong>os</strong>sui, nãoencerra, um significado ver<strong>da</strong>deiro, perfeitamente delimitado econcluso, que o leitor p<strong>os</strong>sa desocultar e apreenderobjectivamente. 21Melhor que ninguém, <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> poetas têm consciência <strong>da</strong>proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura com a alegoria, como n<strong>os</strong> sugere o exemplo dopoema «Alegoria», de As Regras <strong>da</strong> perspectiva, de Nuno Júdice: 22ALEGORIAMu<strong>da</strong>nça: chave de tantas <strong>da</strong>s figurasQue construíram o poema, mol<strong>da</strong>ram aSua forma, abriram à sonori<strong>da</strong>de do crepúsculo<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> inúteis <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>,- inspira, uma vez mais, a passagem <strong>da</strong>ssombras que procuram o abrigo do tempo,19 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.20 In o escritor, revista <strong>da</strong> Associação Portuguesa de Escritores, nº1, Março de 1993, pp. 74a 79.21 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.22 [1990: 7]148


sonhando o destino perecível do humano;não as expulses de dentro <strong>da</strong> esperança,condenando-as à imobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> treva;abre-lhes a porta lumin<strong>os</strong>a do fim - revelando,num parêntesis de eterni<strong>da</strong>de,o r<strong>os</strong>to mortal que anuncia o instante.Nesta «alegoria de alegoria», podem<strong>os</strong> ler as «sombras», o«crepúsculo» ou as «trevas» como força potencial de uma mobili<strong>da</strong>de«lumin<strong>os</strong>a» que articula o desconhecido com o conhecido, o obscuro com asua p<strong>os</strong>sível evidência, ou o momento fugaz <strong>da</strong> percepção com aintemporali<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as vindouras percepções conti<strong>da</strong>s no «parêntesisde eterni<strong>da</strong>de» que é o poema.Nem tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> poemas modern<strong>os</strong>, contudo, se fecham numa obscura oudesconheci<strong>da</strong> experiência mundivivencial que exija, por parte do leitor, aclarificação lumin<strong>os</strong>a de uma escura opaci<strong>da</strong>de. Poemas há que falam demodo claro e límpido de experiências banais, comummente partilha<strong>da</strong>s,através de voz lírica, pelo poeta e pelo seu leitor, quer sob a sombrareconfortante d<strong>os</strong> seus antepassad<strong>os</strong>, quer à luz <strong>da</strong> vivência presente.Prep<strong>os</strong>ita<strong>da</strong>mente, e por confronto, ain<strong>da</strong> de Nuno Júdice, <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong>vers<strong>os</strong> do poema «Numa tarde de Inverno», de Cartografia de Emoções: 23Numa Tarde de InvernoAtravessei o campo com a chuva de dezembro,sem <strong>da</strong>r pela chuva, enquanto a tua sombra meperseguia. Pisei a terra molha<strong>da</strong>, sabendo quepor baixo de mim a água procura mais água,até que <strong>os</strong> ribeir<strong>os</strong> se juntam na confluênciade ri<strong>os</strong> e enxurra<strong>da</strong>s, inun<strong>da</strong>ndo outr<strong>os</strong>23 [2001: 159]149


camp<strong>os</strong>. Ouvi a tua voz atrás de mim,chamando-me, como se alguma coisa tivesseficado nesses síti<strong>os</strong>: que melancolia de amor?,que hesitação nas palavras que esperei, semque as tivesses dito? [...]-------------------------------------------------------A força sinestésica e pictórica <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cena ofereci<strong>da</strong> aoleitor nestes vers<strong>os</strong> alicia-o a comungar de uma vivência conta<strong>da</strong>, aocontrário do poema anterior, no qual dominava a presença de um convite aoleitor para com ele pensar o poema no poema, a construção <strong>da</strong> poesia.Dizer metalinguístico do pensar a poesia, ou dizer claro do contar aexperiência de um mundo partilhado, são afinal, estas, duas <strong>da</strong>s tarefasdifíceis e um d<strong>os</strong> desafi<strong>os</strong> au<strong>da</strong>ci<strong>os</strong><strong>os</strong> que <strong>os</strong> poetas enfrentam e quecoexistem na sua intenção de falar acerca do que, em constante mutação,p<strong>os</strong>sui imutabili<strong>da</strong>de. Falar na e pela poesia, utilizando convençõeslinguísticas e poéticas de um determinado tempo, feitas, também, <strong>da</strong>sconvenções de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, produto estas, por sua vez, <strong>da</strong> interacçãoentre a mutabili<strong>da</strong>de e a imutabili<strong>da</strong>de de paradigmas e fazeresliterári<strong>os</strong>.É certo que o poema tanto se aproxima como se afasta <strong>da</strong>s convençõesdo momento literário <strong>da</strong> sua produção, ou de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> jápassad<strong>os</strong>. O pós-modernismo é disso belo exemplo, ao fazer o leitorilusoriamente acreditar que o que lê lhe pertence agora, pelas convenções deoutro tempo alquimicamente transforma<strong>da</strong>s em presente. Mark Strand, emThe Weather of Words - PoeticIinvention, num capítulo intitulado «BeyondMinimalism, Beyond Realism, Beyond Modernism», 24 comenta, a estepropósito:24 [2000:59]150


M<strong>os</strong>t of us hate the passing of anything with which wehave been identified, so we find ways of extending it. To lookbeyond us is an intolerable thought. We can only hope thatbeyond us will be n<strong>os</strong>talgia for us and that we will bereinvented along with our devotions and dogmas. Thealternative is frightening. 25É neste sentimento de transformação do já feito, assumido comopotencial de valor presente e futuro, que consiste um d<strong>os</strong> subterfúgi<strong>os</strong>consoladores que a poesia encontra, tanto para escapar ao lugar-comumcomo para transformá-lo, mas é também, precisamente, pela continui<strong>da</strong>de,no tempo, do uso de certas convenções, que o leitor é ain<strong>da</strong> capaz dereconhecer um texto como sendo um poema, esteja ele em verso ou empr<strong>os</strong>a, inserido num livro de poesia ou num romance, contando ou nãocontando uma história, ficcionalizando sempre.A título de exemplo, imaginem<strong>os</strong> um leitor que, para poder ler emmaior conformi<strong>da</strong>de com o seu conhecimento pessoal de poesia, tentassecriar uma pontuação imaginária para um poema no qual se verificasse aausência de sinais de pontuação. Esse leitor imaginário poderia construirvárias hipóteses de pontuação que provocassem várias hipóteses ou nuancesde significado; no entanto, de na<strong>da</strong> lhe serviria esse exercício sem fim, vistoque o poema fora criado com, e surgira de, essa ambigui<strong>da</strong>de de ausência depontuação, que lhe era inerente e essencial, que lhe conferia uma aberturasugestiva e, ain<strong>da</strong>, que pedia ao leitor que o lesse desse modo e,simultaneamente, no modo de um outro e num modo outro. No entanto, ocerto é que, paradoxalmente, a experiência desse leitor com o poemaultrapassara a própria mensagem de mutabili<strong>da</strong>de do poema, ao criar um«conforto individual de leitura» que não deixou, por isso, de ser25 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.151


interpretativo do poder de liber<strong>da</strong>de encantatória de pontuação que o ditopoema em si continha, num vozeamento do silêncio <strong>da</strong> palavra de outro.Herberto Helder, em Photomaton & Vox, escreve, no poemametalinguístico «(a carta do silêncio)»: 26Há às vezes uma tal veemência no silêncio que urgeinquirir se a poesia não é uma prática do silêncio.A poesia vem dele, atravessa-o na pauta verbal como seapurasse a subtileza de um timbre último, evaporável.Atravessa-o então e procura-o no próprio centro ondenasceu.Há uma tensão extenuante neste movimento do silênci<strong>os</strong>obre si mesmo.A veemência, a devoração reptilínea pela cau<strong>da</strong>, sãouma pessoal experiência aniquiladora e regenerativa.Como no percurso hermético, enleia-n<strong>os</strong> primeiro umapelo errático, e insinuações, a insinuação de uma extensaimagem fragmenta<strong>da</strong>.Há, pois, no silêncio <strong>da</strong> poesia, algo para além do conhecimentoliterário e mundivivencial do leitor e que se situa num nível que transcendeo seu próprio conhecimento, agindo sobre este numa espécie de adequaçãomútua, na qual o leitor manobra o poema sendo manobrado por ele. Assim,a experiência de leitura do poema sobrepõe-se à abertura <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sua mensagem. Crem<strong>os</strong> que esta adequação pode reportar-se tanto a umpoema lírico tradicional como a um poema experimental, visto queconsideram<strong>os</strong> que a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>de sempre esteve alia<strong>da</strong> àpoesia, f<strong>os</strong>se ela para ser canta<strong>da</strong>, li<strong>da</strong>, dita ou vista. Tomem<strong>os</strong> comoexemplo o «Poema objecto», de Melo e Castro: 2726 [1987:171, 172]27 [MENÉRES e CASTRO, 1979: 1º vol.:476]; de Visão, 1972.152


O grafismo do labirinto arquitectónico que se alia à palavra para,aparentemente, a encarcerar, permite, afinal, ao leitor, a liber<strong>da</strong>de de decidirqual a opção <strong>da</strong> aventura do percurso gráfico de leitura a percorrer e conduzao jogo de uma multiplici<strong>da</strong>de de escolhas semânticas que, por sua vez,produzem diferentes efeit<strong>os</strong> de pertinência fónica, dependentes <strong>da</strong>s opçõesde percurso gráfico de leitura e, consoante elas, com um efeito de maior oumenor disforia, de maior ou menor musicali<strong>da</strong>de.De modo ain<strong>da</strong> mais acentuado se nota este fenómeno na poesia dita«linguística», que exemplificarem<strong>os</strong> com o poema «Investigaçã<strong>os</strong>emântica», de Mário Cesariny de Vasconcel<strong>os</strong>, do qual reproduzim<strong>os</strong> asúltimas «estrofes»: 2828 [MENÉRES e CASTRO, 1979: 1º vol.:287]; de 19 prop<strong>os</strong>tas de prémio Aldonso Ortigã<strong>os</strong>egui<strong>da</strong>s de Poemas de Londres, 1971.153


Eu ventretenhotu ventretensele ventretemnós ventretem<strong>os</strong>vós ventretendeseles ventretêmEu ventretinhatu ventretinhasele ventretinhanós ventretínham<strong>os</strong>vós ventretínheiseles ventretinhamEu ventretive-tetu ventretiveste-teele ventreteve-senós ventretivem<strong>os</strong>-tevós ventretiveste-v<strong>os</strong>eles ventretiveram-teEu ventreter-te-eitu ventreter-me-ásele ventreter-se-ánós ventre-tern<strong>os</strong>-em<strong>os</strong>vós ventre-tern<strong>os</strong>-heiseles ventreter-se-ãoSe eu te ventretivesse...Também neste poema a disp<strong>os</strong>ição gráfica d<strong>os</strong> «temp<strong>os</strong> verbaisestrofes»oferece ao leitor alguma liber<strong>da</strong>de de escolha quanto ao percursode leitura gráfica que produzirá, consoante a aventura <strong>da</strong> escolha, leiturassemânticas diversas que interagirão com a criação de temporali<strong>da</strong>desmusicais distintas. A própria p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de pausa na palavra, paradescodificação de sentid<strong>os</strong> múltipl<strong>os</strong>, ímplicita nas primeiras estrofesapresenta<strong>da</strong>s, está presente de modo mais explícito na penúltima estrofe, ouna antepenúltima, se assim o decidir considerar o percurso de leitura154


escolhido pelo leitor. Mas tanto no poema de Melo e Castro como no deCesariny está presente o amor como tema arquetípico. 29G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> an<strong>da</strong> de citar, a propósito do exemplo <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>decomo inerência transtemporal <strong>da</strong> poesia, o humor com que AlbertoPimenta, em obra quase incompleta, 30 refere a serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> artecom a música:-- quando perguntam<strong>os</strong> para que serve a arte, vem um e diz: asvítimas n<strong>os</strong> meus quadr<strong>os</strong> são símbol<strong>os</strong> <strong>da</strong> per<strong>da</strong> diária <strong>da</strong>sn<strong>os</strong>sas vi<strong>da</strong>s. este só pinta vítimas, pronto. pronto. outro diz:penso que o mais importante para um artista é chegar ao fundo<strong>da</strong> sua personali<strong>da</strong>de. outro proclama: as forças <strong>da</strong> natureza,trovoa<strong>da</strong>s, tempestades, montanhas e nevoeir<strong>os</strong>, luzes numacaverna, fogo e florestas são temas que eu tenho repetido,derivando de um conteúdo referencial simbólico. para outro, amu<strong>da</strong>nça é importante para a obra de arte. e outro ain<strong>da</strong> afirma:também inevitavelmente acontece com as condiçõesatm<strong>os</strong>féricas.-- um grande momento que soluciona por assim dizer tudo é ocoro <strong>da</strong>s valquírias; dum modo geral, a música é o momentoem que o espírito humano m<strong>os</strong>tra do que é capaz.Interessa-n<strong>os</strong>, neste exemplo, relevar a afirmação <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>decomo elemento unificador do humano com a temporali<strong>da</strong>de, tanto naarte em geral como na poesia. Salientam<strong>os</strong> este aspecto porque estam<strong>os</strong> emcrer que, de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> mod<strong>os</strong> do literári<strong>os</strong>, o lírico será aquele que sofreumen<strong>os</strong> mu<strong>da</strong>nças de fundo, pela constância de características de que éexemplo a musicali<strong>da</strong>de, e que permanecem através do tempo. Aventam<strong>os</strong>29 Usam<strong>os</strong> o termo «tema» na sua acepção sincrónica. Não consideram<strong>os</strong> o aspecto de atemática poder ser, eventualmente, sempre arquetípica, remetendo para a pontuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>realização temporal <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> e leitmotiven.30 [1990: 297]155


esta hipótese porque tanto a musicali<strong>da</strong>de lírica como a temática lírica,mesmo quando aparentemente profun<strong>da</strong>mente altera<strong>da</strong>s, como n<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong>referid<strong>os</strong>, acabam por manter presente a exteriorização de umasubjectivi<strong>da</strong>de humana que transcende o tempo e que, desde a antigui<strong>da</strong>de,estabelece o berço em que se embalam, simultaneamente, a privaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>individuali<strong>da</strong>de humana e a sua integração na universali<strong>da</strong>de.A musicali<strong>da</strong>de do poema, na viragem do milénio, tal como natradição lírica, e seja ele ou não veículo de narrativi<strong>da</strong>de, não deixa de n<strong>os</strong>lembrar que vivem<strong>os</strong> num <strong>da</strong>do tempo muito particular, tal como não deixade n<strong>os</strong> recor<strong>da</strong>r que o conhecimento do tempo presente não pode separar-se<strong>da</strong>s suas raízes no passado. Talvez por isso mesmo, por um fenómenoinconsciente, se tivessem começado a recuperar, de um modo maisobviamente evidente e confessado, convenções e model<strong>os</strong> do passado,justamente na altura em que o sentimento de uma globalização crescentecomeçou a ameaçar a determinação <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de mundivivencial. 31A dificul<strong>da</strong>de actual, mas não a imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> identificação ereconhecimento do texto como poema continua, afinal, a processar-seatravés de umas quantas convenções transtemporais como o recurso àsmetáforas e à metonímia, o uso de métrica, de rima, ou de padrõesestrófic<strong>os</strong>,de pertinência fónica ou de ritm<strong>os</strong>, sempre articulad<strong>os</strong> por umfazer actualizador. Recorrendo ain<strong>da</strong> a Mark Strand, em The Weather ofWords - Poetic Invention, 32 poderíam<strong>os</strong> com ele sintetizar a situação <strong>da</strong>poesia moderna como não sendo tão diferente <strong>da</strong> poesia de todo o sempre:«This is the secret life of poetry. It is always paying homage to the past,extending tradition into the present». Também Carl<strong>os</strong> de Oliveira, em OAprendiz de Feiticeiro 33 , afirma:31 Problemática relaciona<strong>da</strong> com a «Expansive Poetry», a abor<strong>da</strong>r no Capítulo V - «O uso<strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema».32 [2000: 50]156


Em todo o caso tem<strong>os</strong> consciência, mais ou men<strong>os</strong>, quea poesia de ca<strong>da</strong> um se faz também com a poesia d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> nopermanente confronto <strong>da</strong> criação. Para descobrir o que há depessoal em nós, para n<strong>os</strong> distanciarm<strong>os</strong>, já se vê. Mas não sefoge completamente a cert<strong>os</strong> context<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, a certaparentela. Entram<strong>os</strong> sempre com maior ou menorconhecimento do facto numa linhagem que n<strong>os</strong> convém e édentro dela que trabalham<strong>os</strong> pelas n<strong>os</strong>sas pequenasdescobertas, mesmo <strong>os</strong> que se pretendem duma completaoriginali<strong>da</strong>de. Não há revoluções que rompam cerce com opassado. Olhem para elas, procurem bem, e lá encontrarão asfontes, as referências, próximas ou distantes. Claro, <strong>os</strong>escritores que contam são aqueles que acrescentam ou opõemalguma coisa ao que já existe, ou o exprimem de maneiradiferente, mas cortes totais, rupturas, não se dão. 34As afirmações de Carl<strong>os</strong> de Oliveira explicitam a «vi<strong>da</strong> secreta <strong>da</strong>poesia», referi<strong>da</strong> por Mark Strand, propagando-a até à especifici<strong>da</strong>de docaso individual. É no secreto acto de redescobrir, no passado, «o que háde pessoal em nós», que se situa a imp<strong>os</strong>siili<strong>da</strong>de de uma fuga total a<strong>os</strong>context<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>. A poesia, crem<strong>os</strong> também, há-de sempre referir-se àexperiência humana passa<strong>da</strong> e presente mas, ao mesmo tempo, e por issomesmo, referir-se a si própria, à sua linguagem, à especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suaspalavras, à musicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua leitura, como árvore de veícul<strong>os</strong> de sentidoportadora de uma comunicação que ultrapassará sempre, fatalmente, oalcance primeiro <strong>da</strong> sua determinação.O poema, mesmo que carregado de narrativi<strong>da</strong>de, será, pois, quasesempre, portador de uma voz lírica, abafa<strong>da</strong>, por vezes, por disfarcescarnavalesc<strong>os</strong> circunstanciais de convenções ou de model<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> quepoderão caracterizar moviment<strong>os</strong> ou épocas. No entanto, sob essa máscara o33 [1973:263]34 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.157


poema respira; sob esse disfarce oferece o r<strong>os</strong>to de uma humani<strong>da</strong>deespecular na qual o leitor poderá sempre reconhecer-se. Transcrevem<strong>os</strong>, aeste propósito, como síntese magnífica, um poema de Aquele Grande RioEufrates, 35 de Ruy Belo:REMATE PARA QUALQUER POEMAPasseou pel<strong>os</strong> espelh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> diassuas clandestinas alegriasque mal se reflectiram desertaram.Este transitar especular por um tempo já paradoxalmente sabido comoefémero e infinito surge frequentemente em poemas n<strong>os</strong> quais está presentea narrativi<strong>da</strong>de, independentemente de abor<strong>da</strong>rem ou não uma reflexãometelinguística. A título de exemplo, transcrevem<strong>os</strong> as primeiras estrofes deum poema de Imagias, de Ana Luísa Amaral: 36METAMORFOSESNão em bar de Kashbah, mas em caféde Leça <strong>da</strong> Palmeira (pequena vila ao nortedo país), a tua voz aqui me leva láO resto: é só mu<strong>da</strong>r na gente aquia roupa ocidental para barba e burel,vislumbrando punhal entre mil pan<strong>os</strong>O resto: é só virar a cor do espectropara branco e cinzento - já agora,35 [2000:29]; de Aquele Grande Rio Eufrates, 1961.36 [2002:58]158


em lugar <strong>da</strong>quela mesa, organizar piano(em contraponto)O resto: é só subir a temperaturauns vinte graus (ou mais), disfarçar a ternuracomo, há cinquenta an<strong>os</strong>, esses doisO resto: é inventar em Leça <strong>da</strong> Palmeira,no meio de nevoeiro tão imenso,um olhar tenso a disfarçar-se brando(um poço de desejo, e ventoinhaem avião de espanto)-------------------------------------------------------O confronto d<strong>os</strong> dois espaç<strong>os</strong> geográfic<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> element<strong>os</strong> cénic<strong>os</strong> quelhes correspondem sugere o contar <strong>da</strong> viagem trazido para o regresso doviajante e produzem no leitor um efeito de estatuto de ouvinte. Este efeito,enfatizado pela presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema, aponta e releva amescla paradoxal de temp<strong>os</strong> e de espaç<strong>os</strong>, de sugerir ou de contar, por issoquerem<strong>os</strong> acreditar que o poema continuará a ser, enquanto o homemexistir, o lugar do seu privilégio imaginário e vivencial, um lugar onde asconstrições de limites, além ou aquém de todo o existir, se tornemmusicalmente palpáveis.A poesia, em verso ou em pr<strong>os</strong>a, p<strong>os</strong>suidora <strong>da</strong> clareza <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de ou detentora do fechamento obscuro do não narrativo, será,concomitantemente, a encenação, musical, <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de de um lugarsem tempo e a mise-en-scène, ouvi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> obrigatória temporali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong>lugares. O poema corresponderá pois, porventura, ao lugar <strong>da</strong> voz lírica, <strong>os</strong>ítio <strong>da</strong> voz narrativa, ou o espaço <strong>da</strong> voz simultaneamente lírica enarrativa, mas onde, lado a lado, de mã<strong>os</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong>s, se ficcionam e se tornamdizíveis e palpáveis tanto a ausência do tempo como a sua presença; tanto aausência do homem como a presença do homem; tanto a velha morte como159


a antiga vi<strong>da</strong>. Crem<strong>os</strong> que o poema será sempre o espaço a que pertence aidentificação <strong>da</strong> imaginação com o pensamento e com o sentir; será sempreo lugar que permite ao leitor viver em si próprio como se estivesse fora doalcance de si próprio, pairando ou pousando no ritmo mais íntimo do seuser.2.2. ROMANESCO, EFABULAÇÃO, STORYTELLING E POESIASendo o público leitor de poesia, no mundo de hoje, um públicominoritário, constituído por uma dominante de académic<strong>os</strong>, professores,crític<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, intelectuais e escritores, poderá uma vertente utilitária epragmática <strong>da</strong> poesia constituir uma resistência a este status quo? Poderá opoema construir uma abertura à adesão de nov<strong>os</strong> leitores, precisamente, pelaoferta <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des do romanesco e <strong>da</strong> efabulação a um mundoemissor que <strong>os</strong> descurou e a um público receptor que por eles anseia?Segundo uma interpretação <strong>da</strong> escola de Copenhaga acerca <strong>da</strong> teoriaquântica, a existência de uma partícula depende <strong>da</strong> sua criação por parte doobservador. Do mesmo modo, o contar de uma história confere à vi<strong>da</strong>humana e à reali<strong>da</strong>de factual o traço essencial <strong>da</strong> criação do dizer <strong>da</strong>existência <strong>da</strong> sua visibili<strong>da</strong>de. Assim sendo, a duali<strong>da</strong>de do fazer <strong>da</strong> praxise do construir <strong>da</strong> poeisis acaba por instituir, se releva<strong>da</strong> a primeira, a práticaliterária determinante <strong>da</strong> simbi<strong>os</strong>e de ambas, visto que o «contar de umahistória» não existe sem as acções e o discurso d<strong>os</strong> seres human<strong>os</strong>, ou deseus substitut<strong>os</strong>, por exemplo, alegóric<strong>os</strong>, seja no texto em pr<strong>os</strong>a, seja notexto em verso, sejam estes ou não reconhecid<strong>os</strong> como poesia pel<strong>os</strong> seusleitores.Um exemplo óbvio <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong>de do que acabám<strong>os</strong> de afirmar será apopulari<strong>da</strong>de hodierna <strong>da</strong>s biografias de vult<strong>os</strong> célebres, sobretudo se160


contemporâneas, sobretudo se condimenta<strong>da</strong>s com o sabor picante doescân<strong>da</strong>lo dialogado e acompanhado, até, de pormenores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> íntima epriva<strong>da</strong>; mais ain<strong>da</strong> se acompanha<strong>da</strong>s do toque fac-similado do real factual,enfatizado pela apresentação de fotografias, corrobora<strong>da</strong>s estas pelaapresentação de depoiment<strong>os</strong> de amig<strong>os</strong> íntim<strong>os</strong> que sejam, de preferência,figuras públicas aparentemente fidedignas. Ora, esta vertente biográficaestá presente também em muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poemas de linha narrativa queobservám<strong>os</strong>. João Miguel Fernandes Jorge é um d<strong>os</strong> poetas de cuja obra aeste propósito adiante m<strong>os</strong>trarem<strong>os</strong> e comentarem<strong>os</strong> alguns poemas.Referimo-lo aqui por term<strong>os</strong> assistido a uma mesa redon<strong>da</strong>, por ocasião dolançamento de um livro deste, O Lugar do Poço, e <strong>da</strong> simultâneainauguração de uma exp<strong>os</strong>ição de desenh<strong>os</strong> de Rui Chafes. 37 Contavam <strong>os</strong>autores memórias de uma viagem à Grécia que junt<strong>os</strong> haviam efectuado, erelatavam ao público presente o modo como essa vivência comum originarauma permuta de poemas e desenh<strong>os</strong>, alguns d<strong>os</strong> quais haviam de vir aconstituir e justificar a co-autoria de O Lugar do Poço por parte de amb<strong>os</strong>.Exemplo <strong>da</strong> importância pragmática do fundo biográfico naficcionali<strong>da</strong>de será o <strong>da</strong> subsistência d<strong>os</strong> contadores de histórias n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong>rurais, vestígio d<strong>os</strong> longínqu<strong>os</strong> shâmanes e substituíd<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong>citadin<strong>os</strong> - e até, já, e ca<strong>da</strong> vez mais, n<strong>os</strong> próprias periferias 38 - , por veícul<strong>os</strong>nascid<strong>os</strong> <strong>da</strong>s modernas tecnologias como revistas, televisão, cinema ou net,que assumem agora o papel do contador de histórias que tornava visíveis <strong>os</strong>mit<strong>os</strong> familiares, as histórias contemporâneas ou a ficção em torno <strong>da</strong>spersonali<strong>da</strong>des públicas, e que proliferam lado a lado com agentescontratad<strong>os</strong> de produção de ficção vivencial ou de factuali<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de semivirtual,de que são exemplo <strong>os</strong> reality shows televisiv<strong>os</strong>. A revelaçãopública ofereci<strong>da</strong> pelo contador de histórias criava reali<strong>da</strong>de humana,37 Referimo-n<strong>os</strong> a uma mesa redon<strong>da</strong> informal, com João Miguel Fernandes Jorge e RuiChafes, à volta <strong>da</strong>s mesas do pátio interior <strong>da</strong> «Galeria 33», no Funchal, em 1998.38 Confronte-se no ANEXO, a este propósito, <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> <strong>da</strong> pesquisa efectua<strong>da</strong>.161


tornava-a visível, mas essa necessi<strong>da</strong>de pública do «contador de histórias»traduz-se, hoje, na necessi<strong>da</strong>de de criar a lumin<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de de uma reali<strong>da</strong>dehumana individualizante que ca<strong>da</strong> vez mais tende a desaparecer por entre aprogressiva cegueira <strong>da</strong>s atitudes de submissão ao global.Torna-se ca<strong>da</strong> vez mais evidente e necessária a função do contador dehistórias que a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia desempenha e assume,sobretudo a partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, não sendo por acaso que o seuressurgimento coincide com a expansão <strong>da</strong> globalização, como adianteverem<strong>os</strong>. Mas poderíam<strong>os</strong> interrogar-n<strong>os</strong> sobre se o destino destes nov<strong>os</strong>storytellers será também, à semelhança d<strong>os</strong> antig<strong>os</strong> shâmanes ou d<strong>os</strong>contadores de histórias d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> rurais, o seu fatal desaparecimentoprogressivo. Arthur Mortensen, em The Marriage of ´Praxis` and´Poeisis`, 39 sintetiza esta problemática do seguinte modo:As we write a story, we bring together praxis andpoeisis; we marry actor and maker. Unlike the builder of askyscraper, or the maker of pretty verses, the storyteller acts tomake the world real by the making of art. And, for the poet todeclare himself averse to story, or for a novelist or filmmaker,is to pronounce himself on the side of cha<strong>os</strong> and of death. […]We cannot forget that the act of writing is to make the invisiblevisible, to give eyes that the living might see one another, andto make the presence of human beings in the world known. 40É, pois, considera<strong>da</strong> a expressão pela arte como um modo deevidenciar o mundo factual como uma reali<strong>da</strong>de, e a vivência humana comofactor individualizador, fazendo reviver e renascer o pormenor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> porentre o ca<strong>os</strong> global, destacando-a do cenário negativista de morte, destruiçãoe frustrações que rodeia o homem no mundo hodierno, fazendo subverter,39Ensaio disponível no site «Expansive Poetry & Music Online»,http://www.n2h<strong>os</strong>.com/acm p.2 de2.40 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.162


através <strong>da</strong> comunicação estética, a ordem de uma reali<strong>da</strong>de rejeita<strong>da</strong> pel<strong>os</strong>eu negativismo espraiante. E talvez seja este contexto, justamente, ogarante de que <strong>os</strong> nov<strong>os</strong> «contadores de histórias», simbolicamente «nov<strong>os</strong>shâmanes», «nov<strong>os</strong> aed<strong>os</strong>» ou «nov<strong>os</strong> trovadores», são como quereencarnad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> nov<strong>os</strong> poetas que assumem a narrativi<strong>da</strong>de na poesia.A<strong>os</strong> seus leitores, é razoável pensar que atrairá ca<strong>da</strong> vez mais a temática quese aproxima <strong>da</strong>s acções e do discurso <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de factual, e que assume ocontar <strong>da</strong> vivência humana diferencia<strong>da</strong> - seja ela individual ou colectiva -,arborando uma naturali<strong>da</strong>de próxima <strong>da</strong> sua expressão oral. Observem<strong>os</strong>, atítulo exemplificativo, algumas estrofes do poema «Olímpia», de Ilhas, 41 deSophia de Mello Breyner Andresen:Ele emergiu do poente como se f<strong>os</strong>se um deusA luz brilhava demais no obscuro loiro do seu cabeloEra o hóspede do acasoReunia mal as palavrasForam junt<strong>os</strong> a Olímpia lugar de atletasTerra á qual pertenciamOs seus larg<strong>os</strong> ombr<strong>os</strong> as ancas estreitasA sua força esguia espessa e baloiça<strong>da</strong>E a sua testa de novilhoJantaram ao ar livre num rumor de verão e de turistasUma leve brisa passava entre divers<strong>os</strong> r<strong>os</strong>t<strong>os</strong>------------------------------------------------------------------De qualquer forma em Patras poeirentaNo abafado subir <strong>da</strong> noiteTomaram barc<strong>os</strong> diferentesDe muito longe ain<strong>da</strong> se via41 [1992:34,35]163


No cais o vulto espesso baloiçado esguioQue entre luzes com as sombras se fundiaSob a desprezível indiferençaNão dela mas d<strong>os</strong> deusesPermitamo-n<strong>os</strong> apenas destacar a bela e simples efabulaçãoromanesca de uma breve e linear história de amor e de corp<strong>os</strong>, passa<strong>da</strong> numVerão grego, conta<strong>da</strong> por um sujeito lírico que se confunde com umnarrador omnisciente mas não participante e que interfere empaticamentecom o leitor tanto ou mais que um tradicional sujeito lírico na primeirapessoa do singular, configurando, em simultâneo, o distanciamento <strong>da</strong>dopelo contar na terceira pessoa. Que vai p<strong>os</strong>sibilitar o afastamento <strong>da</strong>efabulaçãoPõe-se, portanto, a questão do papel <strong>da</strong> função <strong>da</strong> pragmatici<strong>da</strong>de<strong>da</strong> poesia no mundo de hoje e surge, consequentemente, a interrogaçãoacerca do que é que a poesia poderá comunicar e revelar que interesse oleitor, num mundo em que a cultura tem vindo a abandonar a crença noimaginário e no mito. Reconduzid<strong>os</strong> à n<strong>os</strong>sa pergunta inicial sobre se, tend<strong>os</strong>ido o público leitor de poesia, por tradição e evidência, um públicominoritário, poderá a «utili<strong>da</strong>de» <strong>da</strong> poesia residir, hodiernamente, na ofertade ficção a um mundo que a recusou, argumentar-se-á que hoje, mais do quenunca, a ficção está presente nas mais diversas manifestações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>quotidiana, desde <strong>os</strong> anúnci<strong>os</strong> publicitári<strong>os</strong> a<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> d<strong>os</strong> polític<strong>os</strong>.Crem<strong>os</strong> que, pelo contrário, estas manifestações vêm ao encontro de umdesejo de efabulação e de romanesco por parte d<strong>os</strong> ci<strong>da</strong>dã<strong>os</strong> do mundoglobal.É tradicional considerar-se que a utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia se tornainsignificante se confronta<strong>da</strong> com o prazer <strong>da</strong> sua leitura, <strong>da</strong> sua sonori<strong>da</strong>dedita, <strong>da</strong> sua dimensão metafórica e onírica. No entanto, verificám<strong>os</strong> que no164


mundo de hoje ou, pelo men<strong>os</strong>, nas duas déca<strong>da</strong>s que antecederam aviragem do milénio, o interesse pela temática do mundo contemporâneo ed<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> vivenciais pessoais, tal como pela presença de umanarrativi<strong>da</strong>de que <strong>os</strong> diga, tem vindo a crescer na poesia, negando opreconceito modernista de que o familiar se opõe ao belo e ao artístico.Ca<strong>da</strong> vez mais frequentemente n<strong>os</strong> surgem, nas realizações de poesia,poemas que dramatizam histórias individuais, inserindo-as quer num cenáriode delação ou crítica social, política, histórica, quer na intimi<strong>da</strong>de de umcenário pessoal. Ca<strong>da</strong> vez mais a narrativi<strong>da</strong>de empresta a maior númerode poemas uma voz dramática que projecta o reconhecimento do mundoactual através do drama ou <strong>da</strong> sátira, <strong>da</strong> comiseração ou <strong>da</strong> ironia, não raroacompanha<strong>da</strong> de uma aparente indiferença provocadora de reacção e deagitar d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> individuais.É que o contar de uma história, já por si mesmo e, sobretudo, searticulado pela voz do poema, implica e demonstra uma preocupaçã<strong>os</strong>egun<strong>da</strong> <strong>da</strong> representação, consciente ou inconsciente que ela seja, bemcomo a intencionali<strong>da</strong>de funcional de uma pragmática linguística, de talmodo que a articulação <strong>da</strong> obra do poeta com as expectativas do leitorestransforma, alarga e subverte a dimensão natural e tradicional <strong>da</strong> enunciaçãoe <strong>da</strong> recepção <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s histórias tradicionais. Esta dimensão éreleva<strong>da</strong> pelo uso simultâneo de uma paleta multicolori<strong>da</strong> usa<strong>da</strong> pel<strong>os</strong>poetas ao longo d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, aplica<strong>da</strong> no contar <strong>da</strong> visão renovadora e,mesmo, esclarecedora e iluminadora do mundo em que o poeta vive, numaatitude paradoxal de simultâneas revelações de rejeição e desejo, ou seja,num pensamento sentido, simultaneamente céptico e sonhador, duplamenteracional e emotivoAntónio R. Damásio, em O Erro de Descartes - Emoção, Razão eCérebro Humano, 42 releva <strong>os</strong> fun<strong>da</strong>ment<strong>os</strong> naturais <strong>da</strong> razão e defende que42 [1995:12]165


cert<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> do processo emocional são indispensáveis ao processoracional e refere, na «Introdução», ao sintetizar <strong>os</strong> seus objectiv<strong>os</strong>:Comecei a escrever este livro no intuito de sugerir que arazão talvez não seja tão pura como muit<strong>os</strong> de nós pensam<strong>os</strong>que é, ou desejaríam<strong>os</strong> que f<strong>os</strong>se, e que a emoção poderá nã<strong>os</strong>er, de todo, intrusa no baluarte <strong>da</strong> razão: para o pior e para omelhor, faz parte dela. [...]Uma segun<strong>da</strong> noção do livro é, portanto, que a essênciado processo de viver uma emoção não é nenhuma misteri<strong>os</strong>aquali<strong>da</strong>de mental associa<strong>da</strong> a um objecto, mas sim a percepçãodirecta de uma paisagem específica: a do corpo. 43Realçam<strong>os</strong> a interpretação emotiva e racional na sua articulação com aconsciência do corpo - humano ou do poema - como paisagem na qual seinscreve o sentir e o dizer do mundo. Esta noção de que a emoção é umapercepção tanto mental como corporal manifesta-se, em poetas d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>oitenta e, sobretudo, noventa, na expressão de um campo metafóricometonímicoque sobrepõe paisagem e corpo, como no poema «Horizonte»,de Corp<strong>os</strong> Celestes, de António Cândido Franco: 44O meu peito é a linha do horizonteé uma lareira líqui<strong>da</strong>que me tem sincopado a flor d<strong>os</strong> rins.Enc<strong>os</strong>to a minha vi<strong>da</strong> o ouvido ao peitocomo se o enc<strong>os</strong>tasse à terra.Na<strong>da</strong> <strong>os</strong> diferencia peito e terra.Por cima do peito flutuam pontes sonh<strong>os</strong>que crescem do meu corpoaí onde germinam to<strong>da</strong>s as estrelas.43 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.44 [1990:11]166


A correlação metafórica e metonímica transfere o corpo humano parauma identificação sensível que se encontra fora de si próprio, tão longe, até,como «a linha do horizonte», tão próxima, ain<strong>da</strong>, como o consolo de uma«lareira líqui<strong>da</strong>». Esta correlação pode mesmo processar-se através deprocediment<strong>os</strong> textuais que tornam men<strong>os</strong> óbvia a correlação do corpo coma natureza, mas igualmente manifestando a existência d<strong>os</strong> element<strong>os</strong> cénic<strong>os</strong>através <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de do corpo humano e <strong>da</strong> fusão d<strong>os</strong> element<strong>os</strong>corpotais com a natureza, como num poema de Contemplação do Olhar, deCarl<strong>os</strong> Nogueira Fino: 4511por deslizar a pele na tua pele <strong>os</strong> ram<strong>os</strong> essescrescem como a seiva do íntimo percursoas folhas dormem seguras pelas veiaspor ser este silêncio o magma do silêncioo magnetismo doce d<strong>os</strong> vocábul<strong>os</strong> a penumbra centrípetado corpopor saber que estes laç<strong>os</strong> se contraem nas têmporasonde <strong>os</strong> flanc<strong>os</strong> <strong>da</strong>s árvores se abatemsobre as árvorespor escavar as pálpebrasno apogeu do sanguesobre as últimas mã<strong>os</strong> incandescentesCrem<strong>os</strong> que o acto de contar uma história, bem como a problemáticade interpenetração mediática do factual e do ficcional, que atrás referim<strong>os</strong>,45 [1992:12]167


alia<strong>da</strong> à projecção do corpo como paisagem, e <strong>da</strong> paisagem como corpo, temuma relação directa com a fil<strong>os</strong>ofia subjacente à investigação de AntónioDamásio, bem como com varia<strong>da</strong>s correntes de pensamento que interagemcom a cultura e que realçam a defesa <strong>da</strong> manifestação do individual, comoreacção à racionali<strong>da</strong>de vigente no mundo <strong>da</strong> globalização.Contudo, já Hegel, na sua Estética, no início do «Segundo Capítulo»do volume A Arte Simbólica, 46 deixava entrever um p<strong>os</strong>sível relacionamentodo emotivo individual e o emotivo racional como aliança entre o finito e oinfinito, entre a intuição e a alma universal:No segundo capítulo m<strong>os</strong>trarem<strong>os</strong> como a significaçãoque até aqui esteve mais ou men<strong>os</strong> obscureci<strong>da</strong> pela formasensível particular, acaba por se libertar e oferecer-se em to<strong>da</strong> aclareza à consciência.Assumir a emoção racional do individual lado a lado com aassumpção <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de emocional do universal é, também, assumir aintromissão <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de na factuali<strong>da</strong>de. Assim, assumir o contar deuma história, seja ela guia<strong>da</strong> por um fio diegético lógico e completo, seja elaofereci<strong>da</strong> sob a forma de esboço de conto ou de uma cena, muitas vezes porcompletar, constitui, talvez, uma resp<strong>os</strong>ta d<strong>os</strong> poetas actuais, não apenasface ao mundo <strong>da</strong> globalização, sobre o qual adiante reflectirem<strong>os</strong>, mastambém face à impotência d<strong>os</strong> professores, crític<strong>os</strong>, editores e jornalistaspara despertar ou aju<strong>da</strong>r a manter o g<strong>os</strong>to pela poesia, por parte de umpúblico que sempre em relação a ela foi minoritário e que tende adesinteressar-se <strong>da</strong> literatura e de tudo o que for sentido como não útil,como ausente de um factor de entretenimento ou de compensação material.46 [1956:45]168


Um exemplo interessante, apresentado por Arthur Mortensen em«What Can Poetry Reveal That Matters?», 47 é o <strong>da</strong>s largas audiências do rap(também denominado folk poetry, expressão esta que n<strong>os</strong> parece reveladora<strong>da</strong> sua abrangência). O que neste fenómeno n<strong>os</strong> interessa realçar é oexemplo <strong>da</strong> abrangência de recepção de text<strong>os</strong> cujo enfoque se encontra natransmissão oral de uma narrativa acompanha<strong>da</strong> de música, ou <strong>da</strong>musicali<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> a uma narrativa, o que aproxima a poesia docarácter de efabulação romanesca que ela quase sempre p<strong>os</strong>suiu.Em Portugal, uma efabulação romanesca equivalente pode encontrarsenas letras d<strong>os</strong> fad<strong>os</strong>, sobretudo do fado castiço tradicional, ouvido porvelh<strong>os</strong> e jovens, como o cantava Alfredo Marceneiro, que gingava longashistórias de repetido refrão, com variantes que acompanhavam o evoluir <strong>da</strong>história. O teor era quase sempre dramático, contemplando amoresproibid<strong>os</strong>, ausências, orações e intrigas, traições reais ou engendra<strong>da</strong>s paramaior enre<strong>da</strong>mento e suspense, vinho, violência, agressão, arrependiment<strong>os</strong>,crenças ingénuas e, sobretudo, paixão. Tudo isto em cenári<strong>os</strong> que iam domoínho rural a<strong>os</strong> Paç<strong>os</strong> Reais, <strong>da</strong>s vilas perdi<strong>da</strong>s à grande ci<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s ruelasa<strong>os</strong> cais.Afinal, parece acontecer que as poucas grandes audiências para«histórias em verso» 48 sejam constituí<strong>da</strong>s por um público jovem e em geralentregue a si próprio. Não querem<strong>os</strong> com isto dizer que este é um caminhode que <strong>os</strong> poetas de hoje se apropriam. Contudo, é óbvia a necessi<strong>da</strong>de, porparte do público, de histórias que contem a sua história e a sua História, querelatem <strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> que esse mesmo público tem de lembrar,enfrentar e ultrapassar, sejam eles polític<strong>os</strong> ou sociais, ou contem eles o47 Artigo <strong>da</strong> autoria de Arthur Mortensen, acessível na net, no site «Expansive Poetry &Music Online», Cppyright © 1998. http://www.n2h<strong>os</strong>.com/acmpartone.html48 Não levantarem<strong>os</strong> aqui a questão de as letras do rap serem ou não considera<strong>da</strong>s poesia,porque o que aqui n<strong>os</strong> interessa é realçar, através de um exemplo, o enfoque na narrativaacompanha<strong>da</strong> de música, ou <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> a uma narrativa, o que aproxima apoesia do carácter de efabulação romanesca que ela sempre p<strong>os</strong>suíu.169


homem e a sua vi<strong>da</strong> quotidiana com as suas perplexi<strong>da</strong>des e esperanças,estranhezas e desej<strong>os</strong>, negativi<strong>da</strong>des e alegrias, cepticism<strong>os</strong> e sonh<strong>os</strong>.Já atrás frisám<strong>os</strong> a importância que vem progressivamente adquirindo,n<strong>os</strong> media, a intromissão <strong>da</strong> «ficção do contar de uma história», que semanifesta desde <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> à publici<strong>da</strong>de de produt<strong>os</strong>quotidian<strong>os</strong> de consumo imediato. Os tradicionais slogans ficam ca<strong>da</strong> vezmais em plano secundário, funcionando, frequentemente, como uma espéciede ponto final conclusivo de uma cena feérica, romanesca, de humor, deaventura ou de drama com final geralmente feliz. Tod<strong>os</strong> estes exempl<strong>os</strong>enformam a sugestão, a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de ou a probabili<strong>da</strong>de de haver, latente,um público que espera <strong>da</strong> poesia que esta, pela sua p<strong>os</strong>sível componente denarrativi<strong>da</strong>de, lhes conte algo que lhe interesse porque lhe diz directamenterespeito, porque lhe revela fact<strong>os</strong> ou sentires com a clareza de quem contauma história e porque evidencia vivências óbvias e comuns que constituempertença tanto do poeta como do leitor, tanto do contador de históriascomo do seu ouvinte.Do exp<strong>os</strong>to, e salvaguar<strong>da</strong>ndo o devido distanciamento quanto àexpressão de intenção e valor literári<strong>os</strong>, podem<strong>os</strong> ponderar a hipótese <strong>da</strong>existência de um paralelismo entre, por exemplo, a crónica propagandísticamediática e o seu cruzamento na produção poética n<strong>os</strong>sa contemporânea,que exemplificam<strong>os</strong> com um excerto do poema «Hades», de Limites parauma Árvore, de Fernando Guimarães: 49Chegam lentamente: é um grupo de turistas envelhecid<strong>os</strong>.N<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>que percorrem há sempre demasia<strong>da</strong>s sombras. Agoracontemplamalgumas árvores cujas copas se tornam maiores naqueleinstante, a bran<strong>da</strong>simetria d<strong>os</strong> mur<strong>os</strong>, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> nomes que existem170


espalhad<strong>os</strong> em ca<strong>da</strong> jardim. Formam pequen<strong>os</strong> grup<strong>os</strong>;demoram-se um poucodiante de um lago, e apontam para <strong>os</strong> peixes, <strong>os</strong> cisnesque <strong>os</strong> fitam indiferentes. Começam então a ter medodesses olh<strong>os</strong>porque reconhecem ali o que poderia ser um abismo.---------------------------------------------------------------------A escolha deste poema prendeu-se com uma n<strong>os</strong>sa experiência comotelespectadores de um programa do canal de televisão «Odisseia» queapresentava uma reportagem sobre um lar para id<strong>os</strong><strong>os</strong>, na Suécia, e que n<strong>os</strong>fez, na sua sequência, procurar este poema, que tínham<strong>os</strong> na memória. Areferi<strong>da</strong> reportagem apresentava a vi<strong>da</strong> no lar de um modo extremamenteenternecedor e poético mas sem deixar de transmitir uma certa tristezasombria, uma inocência quase dramática e um medo do oculto final tãopróximo, que também encontram<strong>os</strong> neste poema.Não é, pois, de admirar, o ressurgimento, sobretudo no último decéniodo século, <strong>da</strong> efabulação e do cruzamento do romanesco com <strong>os</strong>torytelling, tanto n<strong>os</strong> media como na arte em geral e na poesia emparticular. Estes procediment<strong>os</strong> manifestaram-se na poesia d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> domovimento <strong>da</strong> «Expansive Poetry», n<strong>os</strong> E.U.A, ou no uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia europeia que lhe é contemporânea e, no caso que mais n<strong>os</strong>interessa, na poesia portuguesa.Embora o número de ven<strong>da</strong>s de uma publicação não seja garante <strong>da</strong>sua importância literária, <strong>da</strong> sua permanência epocal ou transepocal, ouain<strong>da</strong> de uma recepção do valor literário constituinte de cânone, a poesia,como expressão artística performativa que tem sido, desde as suas origensmais remotas, exige como prova de existência e relevância a audiência e avoz, mental ou física, de uma leitura. Arthur Mortensen afirma mesmo,49 [2000:70,71]171


eferindo-se a<strong>os</strong> poetas que não assumem a poesia narrativa ou anarrativi<strong>da</strong>de na poesia hodierna 50 :Maybe it´s time for such poets, and they are a legion, t<strong>os</strong>tep out of the shadow of academic and small readings world,and put their stuff in front of wider audiences. […] With thesame high polish on performance as other participants offer, Ihave heard brilliant poetry read in such settings, whereaudiences didn´t boo because it contained ideas more difficultthan usual… What I have noticed, m<strong>os</strong>t of all, in suchpresentations, is that where the poet cares to communicate, andcares to deliver the work (or find someone who can), audiencestake this respect as a sign that they should listen; and they oftenapplaud. 51É certo que a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, apesar de limitaçõesde cariz, sobretudo, diegético, oferece, tal como a poesia narrativa, umespaço mais evidente de diálogo, proporcionando o lugar de preenchimentode uma necessi<strong>da</strong>de do homem na socie<strong>da</strong>de e na cultura finisseculares. Talcarência sucede não só porque a poesia, com a sua musicali<strong>da</strong>de e as suasmetáforas explícitas, oferece um contexto vivencial, pessoal e íntimo, que aciência quase nunca proporciona, mas também porque esse contextoconstitui uma sóli<strong>da</strong> referência inerente à componente humana, numasocie<strong>da</strong>de na qual economia e ciência se sobrepõem ferozmente à arte e àsideologias, deixando o homem carente de referências e raízes, à deriva entreuma margem de guerra e destruição e uma margem de frustrante consoloconsumista, atitude esta que até através <strong>da</strong> própria poesia é critica<strong>da</strong>, como é50 Artigo <strong>da</strong> autoria de Arthur Mortensen, acessível na net, no site «Expansive Poetry &Music Online», Cppyright © 1998. http://www.n2h<strong>os</strong>.com/acmpartone.html, no qualArthur Mortensen se refere a poetas american<strong>os</strong> <strong>da</strong> «Expansive Poetry» como M. A.Schaffner, Frederick Fernstein, Robert McDowell, Dick Allen, Dana Gioia e FrederickTurner, ou ao sucesso de ven<strong>da</strong>s do inglês Craig Raine, que atingiu com um livro depoesia narrativa cifras de ven<strong>da</strong> nunca antes alcança<strong>da</strong>s por livr<strong>os</strong> de poesia.51 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.172


o caso do poema «Hardcore», 52 de Adília Lopes, do qual transcrevem<strong>os</strong> aúltima estrofe: 53 Saiu <strong>da</strong>s suas tamanquinhaspara calçar escarpins de vernizmas ficou descalçadepois tiveram de lhe cortar <strong>os</strong> péspodres de ric<strong>os</strong>Sendo a atitude de consumismo quase sempre punitiva e castradora,como o fresco implícito no poema de Adília Lopes o enfatiza, e apenasmuito esporádica e efemeramente consoladora, e tal, ain<strong>da</strong>, para apenas parauma minoria d<strong>os</strong> ci<strong>da</strong>dã<strong>os</strong>, pode, talvez, iladir-se que a dita atitudeconsumista acaba por espelhar mais uma frustração permanente deimpotência do que uma satisfação momentânea do consolo. Determina-se,consequentemente, nas socie<strong>da</strong>des n<strong>os</strong>as contemporâneas, uma latente ecrescentemente generaliza<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de humana de aliança do familiarcom o ficcional, de união <strong>da</strong> imagem conheci<strong>da</strong> com a ideia, deconsonância <strong>da</strong> linguagem simples do quotidiano com a linguagem quetransfigure esse quotidiano, mantendo-o familiar. E esta necessi<strong>da</strong>derepercute-se na estética, na arte, na poesia.Tal necessi<strong>da</strong>de determina o desejo de uma identificação com aaliança do mundivivencial ficcionalizado que se apresente de modo maisfacilmente reconhecível e identificado, e que proporcione a pr<strong>os</strong>secução doalcance de um sentimento de ilusão de existência de um mundo maisoptimista, onde as raízes se não tivessem esquecido e abandonado. Ummundo onde as utopias ain<strong>da</strong> se pudessem conjecturar, onde <strong>os</strong> sonh<strong>os</strong> defuturo tivessem a liber<strong>da</strong>de de existir em paz. Deste contexto se pode partirpara a inferição <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> efabulação e <strong>da</strong> retórica textual a ela52 Poema incluído em Os 5 livr<strong>os</strong> de vers<strong>os</strong> salvaram o tio,1ª ed. <strong>da</strong> Autora, 1991.173


liga<strong>da</strong> na criação do romanesco como aventura representável e, ain<strong>da</strong>, aocontar <strong>da</strong> plausibili<strong>da</strong>de ver<strong>os</strong>ímil do storytelling, componentes estas que seencontram presentes na poesia quando esta é portadora de narrativi<strong>da</strong>de.Tal como a história <strong>da</strong>s civilizações ou, mesmo, o percurso diacrónicoevolutivo e transformacional de ciências como a biologia ou a química, aliteratura existe através do seu estatuto de infindável narrativa construí<strong>da</strong> aolongo de sécul<strong>os</strong> e sécul<strong>os</strong>. Contudo, ao contrário <strong>da</strong> ciência, a grande força<strong>da</strong> poesia foi sempre a <strong>da</strong> sua metaforici<strong>da</strong>de, não a <strong>da</strong> sua exactidão. Hoje,que a ciência põe em causa a exactidão d<strong>os</strong> cânones científic<strong>os</strong>, é a poesia aprocurar reinstaurar a precisão <strong>da</strong> linguagem, a reinventar a utilização demodel<strong>os</strong>, a aproximar-se do rigor do plausível. E, no uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia, tal como na poesia narrativa, é necessária uma exactidão nodomínio do que respeita à força lógica <strong>da</strong> representabili<strong>da</strong>de.Dizíam<strong>os</strong> que a grande força <strong>da</strong> poesia sempre foi metafórica, não deexactidão; no entanto, a ver<strong>da</strong>de subjacente à metáfora está, justamente, emfazer ver representações, prováveis ou improváveis, mas plausíveis e,sobretudo, reconhecíveis. Tais representações manifestam-se literariamentedesde a construção de uma ficção científica à criação de um poema portadorde narrativi<strong>da</strong>de. Ora, o homem <strong>da</strong> viragem do milénio precisa dessa ilusãoambígua, entre o p<strong>os</strong>sível e o provável, ofereci<strong>da</strong> com a coerência, asimplici<strong>da</strong>de de linguagem e a ver<strong>os</strong>imilhança crível d<strong>os</strong> cont<strong>os</strong> de infânciaou do romance burguês, para que a p<strong>os</strong>sa facilmente apreender ecompreender, e nela p<strong>os</strong>sa acreditar.A era <strong>da</strong> descontinui<strong>da</strong>de, d<strong>os</strong> jog<strong>os</strong> com a linguagem, e mesmo <strong>da</strong>meditação metalinguística, na poesia, emprestou-lhe, durante déca<strong>da</strong>s, emuito particularmente ao longo do segundo quartel do século vinte, amoderna enfatização d<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> especiais de adivinhação complexa edesven<strong>da</strong>mento difícil e dúctil. Hoje existe um público expectante que53 [2000:175]174


procura no poema sentiment<strong>os</strong> e ideias coerentes que se concentrem numamedi<strong>da</strong> de cenas mais que numa medi<strong>da</strong> de vers<strong>os</strong>. Cenas por vezesfragmenta<strong>da</strong>s, é certo, pois reflectem a desordem d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, tentandoembora organizá-la. Cenas que também, concomitantemente, desorganizema tirania <strong>da</strong>s ordens político-sociais imp<strong>os</strong>tas, e ordenem a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong>hipotética segurança do contar <strong>da</strong> representação efabula<strong>da</strong> de umanarrativa. Cenas como podem<strong>os</strong> encontrar em Auto-retrato, de J<strong>os</strong>éAg<strong>os</strong>tinho Baptista, no poema «Desarmaram as ten<strong>da</strong>s», 54 do qualtranscrevem<strong>os</strong> as primeiras estrofes: 55Desarmaram as ten<strong>da</strong>s, atravessaram a estepe,Regressam para sempre ás mora<strong>da</strong>s frias.Canções que se ouviam como uma prece,lament<strong>os</strong>,exércit<strong>os</strong> maculando a neve, uma história deextermínio,máscaras onde se oculta uma grande dor -matam<strong>os</strong> euma inglori<strong>os</strong>a morte espera-n<strong>os</strong> em campo aberto.Dep<strong>os</strong>tas as armas, cresce o rumor d<strong>os</strong> moribund<strong>os</strong>.Alguém chora junto ás sebes,A cabeça volta-se para <strong>os</strong> seus mort<strong>os</strong> ----------------------------------------------------------------A sequência quase cinematográfica proporciona ao leitor as imagens ea ban<strong>da</strong> sonora de uma «história de extermínio», desde <strong>os</strong> seus travellings<strong>da</strong> travessia <strong>da</strong>s «estepes» até às panorâmicas d<strong>os</strong> «exércit<strong>os</strong> maculando aneve» e a<strong>os</strong> cl<strong>os</strong>e-ups <strong>da</strong>s «armas» e <strong>da</strong>s «sebes». O próprio som54 De Auto-retrato (1ªed. 1986), in Biografia (2000).175


acompanha esta progressão de aproximação, articulando sequencialmente«canções», «prece», «lament<strong>os</strong>», «rumor», «alguém chora junto às sebes».Eno cl<strong>os</strong>e-ups <strong>da</strong>s sebes se reúne a simultanei<strong>da</strong>de de imagem e som. Estesrecurs<strong>os</strong> paralel<strong>os</strong> a<strong>os</strong> cinematográfic<strong>os</strong> permitem uma mais fácilvisualização, ouvido e abertura de sentid<strong>os</strong> por parte do leitor.O leitor, o auditor de poesia, necessita hoje, mais do que nunca, aforça, tão humana quanto divina, <strong>da</strong> certeza de uma ilusão de práticaromanesca ou de participação identificadora que, configurando a ficção deuma efabulação, o ajude a identificar-se a si próprio como ser capaz deviver aventura e, portanto, de projectar sonho na sua reali<strong>da</strong>de. E este lugarde ilusão proporciona<strong>da</strong> pelo «m<strong>os</strong>trar em cena», deman<strong>da</strong>do para a poesia,e pela poesia, passa pela força <strong>da</strong> coerência romanesca, pelo vigor <strong>da</strong>efabulação e <strong>da</strong> representação narrativa, pelo calor próximo <strong>da</strong> clareza deuma voz musical que conta uma história, que se eleva perante o seu leitor,ou a sua audiência, mais que para dizer, para contar, para m<strong>os</strong>trar contando.É um lugar ain<strong>da</strong> pouco povoado mas que existe - <strong>os</strong> poetas de hoje sabemnoca<strong>da</strong> vez mais e melhor - porque, afinal, foi o lugar que, nas suas origens,a poesia ocupou. Esteve apenas esquecido no tempo, olvi<strong>da</strong>do pel<strong>os</strong>moment<strong>os</strong> absorventes e monopolizantes de um apagado e ensombrecidopercurso político, social, fil<strong>os</strong>ófico e humano, num mundo de emoçõesembota<strong>da</strong>s pelo sentido do colectivo, mas também sobrevivendo nummundo que, indivíduo a indivíduo, tem vindo a tentar ultrapassar o «Erro deDescartes» e a devolver à razão a sua componente emocional e efabuladoraNo ensaio «Beyond Confession: The Poetics of P<strong>os</strong>tmodern Witness», emAfter Confession - poetry as autobiography, 56 Alicia Ostriker afirma, apropósito do desconforto com uma identificação política e cultural n<strong>os</strong>últim<strong>os</strong> decéni<strong>os</strong> do século vinte:55 [2000:338]56 [2001:323]176


One way of describing the poetics of p<strong>os</strong>tmodernwitness is to say that it combines modernist strategies with thepoetry of witness. 57 This latter phrase, originally associatedwith the Polish poet and Nobel laureate Czeslaw Mil<strong>os</strong>z, is thesubtitle of Carolyn Forché´s anthology Against Forgetting, acollection of work by some 140 twentieth-century poets of«extremity» - poets of five continents who personally testify toour century´s horrors, from Armenian genocide to TiananmenSquare.O que Alicia Ostriker afirma em relação ao pós-modernismo parecen<strong>os</strong>ser, precisamente, a ponte de ligação com a poesia <strong>da</strong> viragem domilénio no que esta revela de necessi<strong>da</strong>de de testemunho biográfico aliado àmundivivência, mas já não como testemunho <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de passa<strong>da</strong>, antescomo testemunho de uma intenção de salvação individual, através do intuitode criação, na literatura em geral e na poesia em particular, de univers<strong>os</strong>ficcionais que remetam de modo óbvio para uma factuali<strong>da</strong>de deseja<strong>da</strong>, ouatravés <strong>da</strong> compreensão, pela presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, comoarauta de uma espécie de «hipálage do mundo», como o transmite um d<strong>os</strong>Poemas com Pessoas, de Vasco Graça Moura: 58soneto <strong>da</strong> poesia narrativafoi assim que cheguei à poesia narrativa:n<strong>os</strong> poemas moviam-se figurase a essas figuras aconteciam coisase essas coisas tinham um sentido deslizante,era uma espécie de hipálage do mundo:com precisão a seta era dirigi<strong>da</strong>à maçã equilibra<strong>da</strong> na cabeça <strong>da</strong> criança,57 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.58 [2001:169] - de Poemas com pessoas, de 1997.177


mas devolvia-se, ao arco, depoisde varar o coração d<strong>os</strong> circunstantese era a vibração do arco a derrubar o fruto,num zunido do ar que a flecha deslocavana sua trajectória. foi assim que chegueià poesia narrativa: havia flores n<strong>os</strong> alpese a cor<strong>da</strong> em vibração levava à música.Neste «soneto», que anuncia titularmente a sua infracção ao modelorenascentista, é o próprio poema que remete a leitura para o reconhecimentodo modelo e que se afirma como espaço no qual as personagens podem agir,configurando um tempo narrativo intertextual e arquetípico, provindo <strong>da</strong> suaarticulação com o mundo exterior circun<strong>da</strong>nte e com o mundo interiorimaginativo. Apesar <strong>da</strong> referência directa e autotélica ao modelo, comorecuperação pela transgressão, ain<strong>da</strong> dentro do fazer modernista,encontram<strong>os</strong> já, neste «soneto», como que uma declaração apologética quetanto aponta para o renovar <strong>da</strong> narrativa na poesia como para o seupassado de narrativi<strong>da</strong>de aliado à lírica renascentista, o que n<strong>os</strong> parecerelevar já uma atitude tanto pós-moderna como sequencial, e indiciar, ain<strong>da</strong>,a recuperação narrativa do final do milénio.Se lembrarm<strong>os</strong>, por exemplo, a herança do nouveau roman ou a <strong>da</strong>poesia experimental, ain<strong>da</strong> hoje presente na obra de escritores portugueses, 59tem<strong>os</strong> de convir que a convulsão, quer <strong>da</strong> espasmódica retórica <strong>da</strong>representação, quer do hermetismo do jogo linguístico, quer, ain<strong>da</strong>, de umaaliança d<strong>os</strong> dois, pode levar o leitor a presumir que o aparente ca<strong>os</strong> querecebe e percebe, do e no texto literário, em geral, e no poema, emparticular, corresponde a uma representação do ca<strong>os</strong> factual que o rodeia.Tal identificação poderia, ain<strong>da</strong>, ser erroneamente interpreta<strong>da</strong> como178


constituindo uma explicação única para a existência de mod<strong>os</strong> e model<strong>os</strong> doliterário hodierno, se não veiculasse a sua procedência, como sequência econsequência de mod<strong>os</strong> ou model<strong>os</strong> existentes no passado.Pretendem<strong>os</strong> salientar <strong>os</strong> risc<strong>os</strong> que a poesia assumiu, ao longo dequase todo o século vinte, em relação a<strong>os</strong> seus leitores e à sua própriasobrevivência, ao veicular o hermetismo inerente à recusa de «efabular»,alia<strong>da</strong> a uma mediação aparentemente desordena<strong>da</strong> e de difícildescodificação para o alcance de um público não especializado. Foramrisc<strong>os</strong> necessári<strong>os</strong> e inevitáveis de um percurso, é certo, e que reflectiram arenovação social e política de uma época de pós-guerra e de póscolonialismo,mas que deixaram sérias marcas na adesão à poesia por partede um público mais lato. 60Se acaso tivéssem<strong>os</strong> de considerar uma só dominante na poesiaportuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, ela era, certamente, o comprazimento nohermetismo, caso manifesto, por exemplo, tanto na apropriação de umatemática auto-reflexiva, como no caso <strong>da</strong> presença temática obsessiva <strong>da</strong>metalinguagem ou no de procediment<strong>os</strong> de translineação agramatical e a-semântica. São disso paradigmátic<strong>os</strong>, no modo narrativo, <strong>os</strong> romances de umRui Nunes, n<strong>os</strong> quais o princípio <strong>da</strong> fulgurização se sobrepõe ao <strong>da</strong>ver<strong>os</strong>imilhança, criando mais figuras que personagens, ou, no modo lírico, apoesia de um Alberto Pimenta, nunca desenraiza<strong>da</strong> do dramatismo do «fazerpúblico» e do jogo meramente linguístico. Procurarem<strong>os</strong> <strong>da</strong>r conta , emparalelo, <strong>da</strong> apresentação pública de um poema que, em Obra quaseincompleta, se faz acompanhar <strong>da</strong>s fotografias do evento, nas quais o poetasurge vestido com uma «bata de laboratório»: 6159 Referimo-n<strong>os</strong> a poetas como António Aragão, Ana Hatherly, Alberto Pimenta, Melo eCastro ou Salette Tavares que marcaram a poesia experimental portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>sessenta a setenta.60 Muit<strong>os</strong> são <strong>os</strong> exempl<strong>os</strong>, passad<strong>os</strong> em situação de aula, que poderíam<strong>os</strong> referir, e n<strong>os</strong>quais uma maioria esmagadora de alun<strong>os</strong> recusa o «moderno hermetismo» em proveito <strong>da</strong>«clássica clareza».61 [1990:359 a 373]179


-Figueira[m<strong>os</strong>tra uma caixa de cartão]há quanto tempo já [tira fig<strong>os</strong> <strong>da</strong> caixa]tem para mim sentido [parte <strong>os</strong> fig<strong>os</strong> e...]que saltes a floraçãoquase de todo[...alinha-<strong>os</strong>]e insinues no fruto [leva um figo à boca]a tempo resoluto[ajoelha]sem alarde[levanta-se]o teu segredo puro [põe lado a lado fig<strong>os</strong> e um livro]<strong>os</strong> teus ram<strong>os</strong>[abre o livro e folheia]como o cano <strong>da</strong> fonte [m<strong>os</strong>tra as páginas recorta<strong>da</strong>s ...]que torcid<strong>os</strong> impelem [... que configuram uma caixa...]para baixo a seiva [... para <strong>os</strong> fig<strong>os</strong>]e para o alto.[eleva um <strong>os</strong>teário]Nem o poeta nem, sequer, o romancista do modernismo tinham, pois,que manifestar intenção ou evidência de compreensibili<strong>da</strong>de, antes, pelocontrário, se compraziam no uso do metonimicamente inacessível ou <strong>da</strong>ausência de plausabili<strong>da</strong>de directa, como se <strong>os</strong> seus poemas ou romancesfizessem parte de uma arte mediúnica assente em códig<strong>os</strong> quase secret<strong>os</strong> eofereci<strong>da</strong> a acess<strong>os</strong> quase privad<strong>os</strong>, desde que com estes procediment<strong>os</strong> seevidenciasse, na apresentação do poema, conter este um grau detranscendência do comum e de afastamento do «já feito» que o justificasse esancionasse como arte. No entanto, para um público mais abrangente, queinteresse poderia ter um poema sem o elo aparente e directo que oconectasse com o sentir <strong>da</strong> vivência humana e com a sua plausibili<strong>da</strong>de, sejaesta a de um certo uso <strong>da</strong> linguagem, a <strong>da</strong> cumplici<strong>da</strong>de de uma retóricatextual, a de um desdobramento temático, ou outra?A ausência de plausabili<strong>da</strong>de é um aspecto <strong>da</strong> irracionali<strong>da</strong>de,inadmissível tradicionalmente na área de ciências como a Física ou aBiologia. No entanto, admissível como projecção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de na arte,180


como o surrealismo bem o sublinhou, mesmo em Portugal, em text<strong>os</strong> comoo Comunicado d<strong>os</strong> Surrealistas Portugueses, 62 assinado, curi<strong>os</strong>amente, a 25de Abril de 1950, por Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur doCruzeiro Seixas, e do qual, a propósito <strong>da</strong> presença do irracional comoprojecção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de na arte, e vice-versa, transcrevem<strong>os</strong> o seguinteexcerto:Querem<strong>os</strong> afirmar - e afirmam<strong>os</strong> - que a ver<strong>da</strong>deiraactuação surrealista, não se limitando ao campo político, aofil<strong>os</strong>ófico, ao estético ou a qualquer outro mas reunindo-<strong>os</strong>tod<strong>os</strong> no Real-Imaginário, não pode nem deve seguir a rota dequalquer um destes caminh<strong>os</strong> mas agir dentro de tod<strong>os</strong> eles.[...] Contra a a<strong>da</strong>ptação do Homem numa máquina dedefender pátrias e partid<strong>os</strong>, propom<strong>os</strong> a criação do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montando umcomêta extrememente longo e fulgurante. 63Contar uma história plausível, mesmo que seguindo as rotas maisdiversas, mesmo que cruzando as linhas mais utópicas, e seja ela conta<strong>da</strong> noquotidiano ou na arte do texto de um poema, é um acto que exige umacontextualização social credível. Contar uma história exige um olhar nã<strong>os</strong>ó virado para o interior mas também apontado para o exterior lógico esequencial do sujeito que assume a expressão coerente do contar dessahistória, perspectiva esta que adquire menor relevância na poesia portuguesan<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta.Como será constatado a propósito <strong>da</strong> «Expansive Poetry», a práticaliterária <strong>da</strong> poesia n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa recuperou element<strong>os</strong> formais e62 Este comunicado foi enviado em 25-4-50 para Londres a Simon Watson Taylor,destinando-se a ser publicado conjuntamente com outras comunicações de grup<strong>os</strong>surrealistas de diversas nações. A sua primeira publicação, em Portugal, como inédito, foiincluí<strong>da</strong> a páginas 105 a 108 do terceiro volume de Os Modernistas Portugueses -escrit<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, proclamações e manifest<strong>os</strong>, coordenado por Petrus e editado por Text<strong>os</strong>Universais, C.E.P., Porto, s.d.181


a<strong>da</strong>ptou model<strong>os</strong> <strong>da</strong> lírica do passado como meio para desbloquear as cisõesentre o humano e o natural, o consciente e o inconsciente, o presente e opassado, a ordem e o ca<strong>os</strong>, o racional e o instintivo - paradigmas de vi<strong>da</strong> emorte, como sempre e como desde sempre, afinal, traçando aconciliação <strong>da</strong>expressão antinómica <strong>da</strong> psique humana. Jane Hirshfield, no capítulo «TwoSecrets: On Poetry´s Inward and Outward Looking», do seu livro NineGates - Entering the Mind of Poetry, 64 sintetiza a relação do mundoimagístico exterior com o mundo interior que enforma a significação,n<strong>os</strong> seguintes term<strong>os</strong>:Outer images carry reflective and indirect meanings asPoems of this kind - the great majority of poems, that is -generally take one of three p<strong>os</strong>sible stances. In the first stance,outer reference serves the poet´s interior thinking: the worldbeyond the self appears, but the relationship is that ofmonologue, with a human-centered consciousness dominating.In the second stance, the poet and the outer world stand face toface in mutual regard; out of that meeting, the poem´sstatements arise. Here the relationship is that of dialogue, withthe wider world treated as both equal and other. In the thirdstance, the poet becomes an intermediary, a medium throughwhom the world of objects and nature beyond humanconsciousness may speak; in poetry´s transparent and activetranscription, language itself becomes an organ of perception. 65Apesar de Jane Hirshfield considerar, como elemento diferenciador<strong>da</strong>s instâncias de localização referi<strong>da</strong>s, apenas duas instâncias <strong>da</strong> psique -«eu/ego» e «eu/superego» (ou «I»/«the poet» e «the self»), não articulandoas três instâncias fun<strong>da</strong>doras <strong>da</strong> psicologia <strong>da</strong>s profundezas (ego, super-egoe id), poderíam<strong>os</strong> considerar as relações, por ela identifica<strong>da</strong>s, entre o63 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.64 [ 1997:131]182


mundo exterior e a psique, como p<strong>os</strong>síveis model<strong>os</strong> de relacionamento d<strong>os</strong>ujeito poético com o mundo. Estes model<strong>os</strong> corresponderiam a uma relaçãode subjectivi<strong>da</strong>de, a uma relação de especulari<strong>da</strong>de e a uma relação deobjectivi<strong>da</strong>de que, apesar <strong>da</strong>s reticências que estas compartimentaçõessistémicas podem merecer - crem<strong>os</strong> que as três instâncias de localização seentrecruzam sempre, embora com diferentes dominantes - tem a vantagemde permitir problematizar de modo sintético <strong>os</strong> pont<strong>os</strong> de parti<strong>da</strong> para umaarticulação <strong>da</strong> representação na poesia com a psique do escritor. Julgam<strong>os</strong>que a terceira dominante poderá estar na raiz <strong>da</strong> justificação de umanecessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia hodierna, como n<strong>os</strong>aponta uma <strong>da</strong>s estrofes do longo poema que constitui Depois que Tudorecebeu o Nome de Luz ou de Noite, 66 de Bernardo Pinto de Almei<strong>da</strong>:Disseste: queria ser o livroque tu escreves: mas é esse livrooutra voz que a corrente <strong>da</strong> tua voz em mimoutro lugar que se p<strong>os</strong>sa nomearao men<strong>os</strong> nomearsem que nele o teu nome paire como o augúrioque devasta tudoto<strong>da</strong> a terra do meu corpo ondelavrando célere um incêndio determinaque na<strong>da</strong>na<strong>da</strong> - ouve bem: na<strong>da</strong> -depois de ti ficará em medi<strong>da</strong>de ser colhid<strong>os</strong>obre essa terra agorapara sempre devasta<strong>da</strong>?65 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.66 [2002:16]183


O desejo de incorporação, manifestado através do livro e <strong>da</strong> escrita,determina a representação, no próprio poema, e em relação à própria poesia,de uma instância profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> psiche, tanto referente ao escritor como aoleitor. Essa representação remete, por isso, para a intemporali<strong>da</strong>de do nãolugare não para a ausência.Este enraizamento em alter-ego <strong>da</strong> poesia na nomeação, seja de siprópria, seja do mundo palpável no qual se inscreve, determina nanarrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia uma «outra voz» e um «outro lugar» que nãoapenas o do intimismo transmitido sem tempo, sem event<strong>os</strong>, sem odistanciamento do contar também para outrem, enraizado num tempohistórico. Este vínculo é manifesto na produção poética portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>noventa, e já em text<strong>os</strong> de poesia d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, reflectindo umanecessi<strong>da</strong>de de recuperação e aceitação do passado para poder ultrapassar asfissuras de uma diegese do presente. Tal necessi<strong>da</strong>de está, por sua vez,relaciona<strong>da</strong> com uma reacção não apenas de cariz literário mas também e,talvez, sobretudo, com as determinantes de censura social naponderabili<strong>da</strong>de ou na imponderabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> psique humana. Ora, umahistória, tal como uma melodia, é constituí<strong>da</strong> por uma sequência de event<strong>os</strong>- imprevisíveis porque na imprevisibili<strong>da</strong>de dialógica do «que se segue»está o seu poder de captação e sedução - mas capazes de seremreproduzid<strong>os</strong> de serem dit<strong>os</strong> de novo e, sobretudo, contad<strong>os</strong>, uma e outravez mais, numa renova<strong>da</strong> e renovadora atitude de reitera<strong>da</strong> sedução.Há, portanto, uma plausiibili<strong>da</strong>de e uma inevitabili<strong>da</strong>de dereconhecimento d<strong>os</strong> event<strong>os</strong> narrad<strong>os</strong> que confere ao leitor, ou ao ouvinte,<strong>da</strong> poesia na qual está presente a narrativi<strong>da</strong>de, tal como na poesianarrativa, a segurança pessoal de reconhecer e poder reproduzir um mundoque lhe foi ou é familiar. Esta atitude vem ao encontro <strong>da</strong> carência deestabili<strong>da</strong>de e do contraponto <strong>da</strong> oferta de uma repetição que conferesegurança, através <strong>da</strong> renovação e reactualização do hábito histórico do(re)conhecimento previsível d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong>, mesmo que contad<strong>os</strong> pelo contador184


de histórias, num mundo onde a imprevisibili<strong>da</strong>de e a instabili<strong>da</strong>deficcionalmenteimperem.Frederick Turner, um d<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores do movimento <strong>da</strong> «ExpansivePoetry», ao abor<strong>da</strong>r a relação entre, por um lado, a livre escolha e uso demodel<strong>os</strong> formais e, por outro lado, a narrativi<strong>da</strong>de, afirma, em The Innermeaning of Poetic Form: «When we respond to the meter of the mythic plotof a poem, we are released into our entire evolutionary history». 67 E explicaain<strong>da</strong> que, quando uma audiência 68 ouve a musicali<strong>da</strong>de e o ritmo <strong>da</strong>métrica usa<strong>da</strong> num poema, se está a <strong>da</strong>r um importante primeiro passo parao reconhecimento <strong>da</strong> unificação dessa audiência com o universo físicopresente, ao mesmo tempo que se afirma uma espécie de atitude solidária ede aceitação para com o passado. Segundo Turner, esta dupla atitude gera, eé gera<strong>da</strong> por, forças que ultrapassam «habili<strong>da</strong>dezinhas linguísticas» 69 nopoema, preferindo defender o imprimir e conferir à poesia uma ordem e umrigor que, aliad<strong>os</strong> à narrativi<strong>da</strong>de, fazem <strong>da</strong> poesia uma espécie de versãoacelera<strong>da</strong> <strong>da</strong> própria evolução humana, na qual se reconhecem não apenas aselites intelectuais mas um público muito mais alargado. Conclui FrederickTurner:We are to take seriously the return to meter andnarrative proclaimed by the new formalists and expansivists, awhole new set of intellectual, imaginative, and socialresponsibilities open up for the poet. Or perhaps it would bemore accurate to say that the old responsibilities will comeback in a new form. Essentially, the poets of the coming eramust be shamans. 70 A shaman is not just a private person67 [1996: 96]68 Para Frederik Turner o termo «audience», por nós traduzido como «audiência»,engloba tanto o leitor que «ouve mentalmente» como o dizer vocalizado e/ou público.69 [1996: 99]«habili<strong>da</strong>dezinhas linguísticas» é a n<strong>os</strong>sa prop<strong>os</strong>ta de tradução para a expressão «cleverlittle linguistic capabilities»70 Sublinhado n<strong>os</strong>so.185


voicing his or hers personal angst or expressing pure personalesthetic, phil<strong>os</strong>ophical or political opinions. A shaman speaksto, and for, a whole culture. Moreover it is part of the duty ofthe shaman to be to some extent public, even popular, to sellhis or her visions in the marketplace, to hear and respond to theneeds and yearnings of the patrons wh<strong>os</strong>e conscience they are.Os poetas do final do milénio, tal como <strong>os</strong> shâmanes - ou como nov<strong>os</strong>shâmanes - representam o desejo de consciência falante, narra<strong>da</strong>, musica<strong>da</strong>e ritma<strong>da</strong> do homem ou <strong>da</strong> raça ou <strong>da</strong> cultura humana que <strong>os</strong> ladeiam. Umavez assumido este papel, ficaria aberto caminho para uma resolução, pelomen<strong>os</strong> parcial, de certas dificul<strong>da</strong>des na recepção <strong>da</strong> poesia por parte de umpúblico mais abrangente. Por exemplo, ao abor<strong>da</strong>r um determinado motivode uma determina<strong>da</strong> temática, o factor didáctico estaria automaticamentepresente e o poeta diria aquilo que ele próprio necessita saber e transmitir,através do uso de model<strong>os</strong> que facilitariam a clareza <strong>da</strong> sua transmissão,coincidindo com as expectativas do seu público, também este consideradona sua necessi<strong>da</strong>de aprender a saber, ouvir, reconhecer e reconhecer-se.Salientam<strong>os</strong>, portanto, a par <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de, a problemática<strong>da</strong> importância pragmática <strong>da</strong> recepção interferente na própriaintencionali<strong>da</strong>de, presentes na poesia de poetas como Vasco Graça Moura,de quem citam<strong>os</strong>, de Outr<strong>os</strong> Lugares, o poema «guião para santaapolónia»: 71entre correntes de ar, numa estaçãode caminho-de-ferro, parte alguéme alguém está a chegar e tudo semse avistarem por entre a multidão.fica o destino à solta, mas refémde ironias do acaso e <strong>da</strong> emoção186


e descuid<strong>os</strong> do tempo e <strong>da</strong> razãon<strong>os</strong> trilh<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong> de ninguém.ou por passarem an<strong>os</strong>, por ser vãousar adversativas: mas, porém...por várias deslembranças que tambémdesencontra<strong>da</strong>mente vêm e vãona ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna, quando quemassim ia passando estava à mão.A implícita intencionali<strong>da</strong>de de di<strong>da</strong>ctismo, presente neste poema,articula a evocação de procediment<strong>os</strong> formais e de leitmotiven temátic<strong>os</strong>tradicionalmente modelares com uma situação do quotidiano, o que permiteuma fácil identificação d<strong>os</strong> seus leitores ou ouvintes com a narrativi<strong>da</strong>de d<strong>os</strong>eu próprio viver diário e torna a recepção do poema eventualmenteacessível a um público alargado. Por tudo isto, muitas <strong>da</strong>s realizações domodo lírico pedem emprestad<strong>os</strong> <strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> narrativ<strong>os</strong> e aacessibili<strong>da</strong>de de linguagem tradicionalmente usad<strong>os</strong> no modo narrativo, eque detectám<strong>os</strong> como vector, primeiramente inovador, depois relativamentedominante, na poesia portuguesa <strong>da</strong> viragem do milénio e configurando, emgrande parte, a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de nesta poesia.Os nov<strong>os</strong> shâmanes têm p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de encaminhar-se para uma <strong>da</strong>smais raras e deseja<strong>da</strong>s ambições: uma audiência mais vasta, ou seja, umpúblico que não existe apenas na esperança de reconhecimento e abertura dohermetismo do poema moderno. Este público, sem desprezar as realizaçõesdo modernismo e do pós-modernismo, avança para além d<strong>os</strong> cortes ou doreconhecimento com <strong>os</strong> cânones do passado; é um público que aceita ainovação como recuperação de uma esperança que contradiga adesesperança <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> cultura que o rodeiam; um público que71 [2002:40]187


avança com o prazer <strong>da</strong> redescoberta de si mesmo, confiante, de mã<strong>os</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong>scom <strong>os</strong> seus poetas em direcção a um antigo-moderno ritual decomunicação narrativa refun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> reconstrução d<strong>os</strong> seus mund<strong>os</strong> e domundo.Defendendo <strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> acima referid<strong>os</strong>, J<strong>os</strong>eph S. Salemi, 72 noensaio The Culture Vultures, ataca cert<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> elitistas que rodeiam atransmissão oral pública <strong>da</strong> poesia e define com humor o que entende por«abutres <strong>da</strong> cultura», 73 explicitando que se trata de um certo tipo de pessoaque frequenta amiúde conferências, vernissages, concert<strong>os</strong>, exp<strong>os</strong>ições eoutras manifestações artísticas, desde que estas se situem a nível de umstatus social e cultural entendido como elitista. Refere ain<strong>da</strong> que este tipo deespectadores culturais permaneceram na socie<strong>da</strong>de ocidental desde oRenascimento, quando se tornou evidente a clivagem entre classes sociaisditas cultas e classes sociais ditas incultas. 74Na reali<strong>da</strong>de, tod<strong>os</strong> conhecem<strong>os</strong> pessoas que correspondem ao esboçod<strong>os</strong> «abutres <strong>da</strong> cultura », tal como descrit<strong>os</strong> por J<strong>os</strong>eph S. Salemi, e quenem por isso deixam de apreciar ver<strong>da</strong>deiramente pintura, música ouliteratura, por exemplo. O problema, e o humor que a partir dele se podeconstruir, está no facto de a maior motivação <strong>da</strong>s referi<strong>da</strong>s pessoas secentrar na consciência de um certo prestígio social d<strong>os</strong> seus act<strong>os</strong> e, apenassecun<strong>da</strong>riamente, o prazer <strong>da</strong> usufruição estética em si mesma.É curi<strong>os</strong>o relacionar o epíteto «abutres <strong>da</strong> cultura» com umapanorâmica <strong>da</strong> poesia na segun<strong>da</strong> metade do século vinte, pois até muitorecentemente não se colocava sequer a questão <strong>da</strong> presença d<strong>os</strong> «abutres <strong>da</strong>cultura» em relação à poesia, em Portugal. Sendo esta uma <strong>da</strong>s maismarginaliza<strong>da</strong>s manifestações de arte, facto este facilmente reconhecível72 Dr. J<strong>os</strong>eph S. Salemi, do Department of Classics, Hunter College, C.U.N.Y., colaborador<strong>da</strong> revista Exppansive Poetry & Music Online; ref.ª ao ensaio consultável na net emhttp://www.n2h<strong>os</strong>.com/acm/cult0401.html73 «abutres <strong>da</strong> cultura» é a prop<strong>os</strong>ta de tradução que apresentam<strong>os</strong> para a expressão «culturevultures».188


pelo número restrito de leituras públicas e mediáticas ou pela dominância deedições de um número quase fixo de autores, consagrad<strong>os</strong> por parte <strong>da</strong>sgrandes editoras. Sem desprezar o esforço de algumas editoras quasebeneméritas, especializa<strong>da</strong>s em divulgação de nov<strong>os</strong> poetas e de novapoesia, mesmo assim é sobejamente conhecido que o impacto depublicações de poesia é niti<strong>da</strong>mente muito inferior, por exemplo, ao <strong>da</strong>publicação de romance.A introdução de leitura de poesia em manifestações públicas e a suadivulgação n<strong>os</strong> media fazia-se com mesura parcimoni<strong>os</strong>a e muitoparcamente releva<strong>da</strong>. Realmente, deslocar-se até à Livraria Bertrand paraouvir ler meia dúzia de poemas de um livro acabado de lançar pela «mão»<strong>da</strong> voz douta e hermética de um bem cotado confrade de lides literárias, coma modesta cobertura mediática de dois ou três suplement<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, nãopoderia ter o prestígio social de uma i<strong>da</strong> ao S. Carl<strong>os</strong>, com plateia de dupl<strong>os</strong>actores a arvorar e transbor<strong>da</strong>r marcas de vestuário recentemente adquiri<strong>da</strong>sna Av. <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de e atropelando-se para pousar para a cobertura de umaimprensa corriqueira e sensacionalista. Esses - em Portugal mais rar<strong>os</strong>? -«abutres <strong>da</strong> cultura», já a implacabili<strong>da</strong>de de Alexandre O´Neillimplicitamente englobava, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, nas primeiras estrofes doconhecido poema «O país relativo», 75 com a palavra de um sorriso irónicoque não deixa, ain<strong>da</strong> hoje, de manifestar certa amargura:País por conhecer, por escrever, por ler...País purista a pr<strong>os</strong>ear bonito,a versejar tão chique e tão pudico,enquanto a língua portuguesa se vai rindo,galhofeira, comigo.74 Salemi refere o historiador Burckhardt mas não identifica a fonte.75 [1986:153]; do livro de poemas De Ombro na Ombreira, de 1969.189


País que me pede livr<strong>os</strong> andejantescom o dedo, hirto, a correr as estantes.País engravatado todo o anoe a assoar-se à gravata por engano.Apesar <strong>da</strong> contextualização na poesia d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, crem<strong>os</strong> que,neste poema, <strong>os</strong> adjectiv<strong>os</strong> «bonito» e «chique», que caracterizam,respectivamente, o «pr<strong>os</strong>ear» e o «versejar», se poderão interpretar comocrítica tanto à escrita como a quem recebe essa escrita, alargando-se, depois,ao país literário e a todo o país. Também no ensaio The Culture Vultures, járeferido, J<strong>os</strong>eph S. Salemi não resiste a recorrer a um certo humor satíricoquando conta ter recentemente 76 assistido em Manhattan a um recital depoesia no vigésimo an<strong>da</strong>r de um arranha-céus, onde pôde ouvir, por parte deuma senhora que não descreve, mas que nós facilmente imaginám<strong>os</strong> comboa i<strong>da</strong>de inactiva e respectivo peso de acumula<strong>da</strong>s frustrações, o seguintecomentário: «Isn´t it wonderful? Here we are, high up above the streets,reveling in all this beautiful poetry. And we´re totally isolated from thebarbarians on the ground!» 77 . Salemi confidencia-n<strong>os</strong> ter ficado morto pordizer-lhe que, no fundo, a atitude dela era perfeitamente representativa docerne <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> poesia contemporânea, ou seja, uma poesia comuma audiência circunscrita a um pequeno círculo de «mutual masturbatorswho produce it and praise it». 78Salvaguar<strong>da</strong>ndo a veia satírica de Salemi, mas repondo a devi<strong>da</strong> ecorrespondente mesura, crem<strong>os</strong> poder afirmar que este estado de coisas estájá em visível mu<strong>da</strong>nça, mesmo em Portugal. Apesar de viverm<strong>os</strong> numasocie<strong>da</strong>de onde a aparência se desenha ca<strong>da</strong> vez mais niti<strong>da</strong>mente contra <strong>os</strong>mur<strong>os</strong> <strong>da</strong> importância, subalternizando a competência, o conhecimento ou a76 o ensaio é de 1998.77 ensaio consultável na net, no endereço http://www.n2h<strong>os</strong>.com/acm/cult0401.html78 ensaio consultável na net, no endereço http://www.n2h<strong>os</strong>.com/acm/cult0402.html190


capaci<strong>da</strong>de de acção, e apesar de a celebri<strong>da</strong>de fácil e a reconhecimentomediático serem ain<strong>da</strong> tomad<strong>os</strong> como erróneo garante de valor ouquali<strong>da</strong>de, a situação descrita afecta já, também, a produção <strong>da</strong> poesia.Muit<strong>os</strong> poetas, sobretudo jovens e ain<strong>da</strong> desconhecid<strong>os</strong>, fazem <strong>da</strong> sua poesiauma resp<strong>os</strong>ta às exigências editoriais, passando por cima do desejo deescrita do poema em si e tendo em mente, grandemente, a sua recepção. Estaatitude - mais evidente, por exemplo, no romance - vem modificar também ap<strong>os</strong>tura d<strong>os</strong> «abutres <strong>da</strong> cultura», que agora se vêem obrigad<strong>os</strong> aseleccionar, de entre as mais diversas manifestações, quais as que serãodignas <strong>da</strong> sua presença. Uma sessão de poesia numa escola? Um programade televisão dito cultural? A sessão de poesia do «Dia Mundial <strong>da</strong> Árvore»<strong>da</strong> Câmara Municipal? Ou outra? Ou outras?Estará declara<strong>da</strong> a guerra entre a poesia do cânone, antigo ouhodierno que ele seja, e a poesia «publicitária» e publicita<strong>da</strong>, pois apoesia surge com <strong>os</strong> mais diversificad<strong>os</strong> intuit<strong>os</strong> e n<strong>os</strong> suportes maisdivers<strong>os</strong>, seja em anúnci<strong>os</strong> televisiv<strong>os</strong>, em sacolas de pão <strong>da</strong> pa<strong>da</strong>ria, n<strong>os</strong>taipais de um prédio em demolição ou n<strong>os</strong> frontespíci<strong>os</strong> d<strong>os</strong> eléctric<strong>os</strong>?Interrogamo-n<strong>os</strong> se, numa socie<strong>da</strong>de onde as diferenças de classes ca<strong>da</strong> vezmen<strong>os</strong> se medem pela p<strong>os</strong>se de bens materiais, poderão acaso ain<strong>da</strong> surgir eressurgir valores diferenciadores a nível <strong>da</strong>s preferências intelectuais ouideológicas, no âmbito d<strong>os</strong> g<strong>os</strong>t<strong>os</strong> artístic<strong>os</strong>, no leque de p<strong>os</strong>turas perante asmanifestações estéticas? A confusa indecisão d<strong>os</strong> «abutres <strong>da</strong> cultura»parece ser disso um indício. Como vão reagir <strong>os</strong> poetas? Como estão eles jáa reagir?A progressiva intervenção <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia é, em parte,uma resp<strong>os</strong>ta, consciente ou subconsciente que ela seja, à necessi<strong>da</strong>de declareza de comunicação como meio de tornar a poesia mais acessível a<strong>os</strong>leitores, de modo a captar-lhes o interesse tanto no âmbito <strong>da</strong> recepção191


como no <strong>da</strong> produção. 79 Poderem<strong>os</strong> acrescentar que o leitor hodiernomaioritário, não elitista, quer ver a ficção acontecer narrativamente ante <strong>os</strong>seus olh<strong>os</strong>, seja o veículo dessa ficção um romance, seja um conto, seja umpoema. A isso o habituaram <strong>os</strong> media, onde ca<strong>da</strong> vez mais a componenteficcional se amalgama com <strong>os</strong> event<strong>os</strong> factuais, desde <strong>os</strong> cas<strong>os</strong> do dia a<strong>os</strong>escân<strong>da</strong>l<strong>os</strong> polític<strong>os</strong>. Mas nisso pensam, talvez, também, <strong>os</strong> poetas quando,n<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> poemas, realçam a necessi<strong>da</strong>de de objectificação, deconcretude, de dimensão de quase objectalização quotidiana <strong>da</strong> linguagem.Apresentam<strong>os</strong> abaixo o exemplo de alguns vers<strong>os</strong> do poema «A InvençãoNatural», 80 do livro TR3S, 81 de António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a:As pálpebras têm sedede palavras confidentes.As pupilas estão suspensasentre navi<strong>os</strong> e ombr<strong>os</strong>.A garganta aspira às terras altasBati<strong>da</strong>s pelo vento.Uma ou duas veias clandestinasaguar<strong>da</strong>m a maré <strong>da</strong>s lâmpa<strong>da</strong>s.Um dedo de argilaquer tocar uma nascenteou uma boca de pedra.---------------------------------------Uma porta deita-se vagar<strong>os</strong>a com a cor do outono.Escrevo para saborear uma outra línguaconivente com a trama do espaço.79 Vejam-se <strong>os</strong> gráfic<strong>os</strong> <strong>da</strong> pesquisa de edições de autor, no Anexo.80 [1995:76 a 78]81 Por incapaci<strong>da</strong>de técnica não pudém<strong>os</strong> reproduzir o «3» provido de acento circunflexo,que confere ao grafo presente no livro um aspecto gráfico muito semelhante ao <strong>da</strong> palavra«TRÊS».192


A c<strong>os</strong>ificação, diríam<strong>os</strong> que quase calcificação <strong>da</strong> voz, <strong>da</strong>s palavras,do olhar e, ao longo do poema, de tudo o que do ser humano é pertença,oferece-n<strong>os</strong> uma dimensão de premência de concretude que convoca odesejo de projecção no espaço, como escultura que se esculpe e m<strong>os</strong>tra oucomo história que se constrói e se conta. Diríam<strong>os</strong>, pois, que uma <strong>da</strong>smissões d<strong>os</strong> poetas de hoje (outrora araut<strong>os</strong>, trovadores, aed<strong>os</strong> oushâmanes...) é a de serem uma espécie de repórteres íntim<strong>os</strong> do mundo emque vivificam a voz do dizer <strong>da</strong> poesia e a voz <strong>da</strong> recriação <strong>da</strong> leitura, aoreflectir o poeta p<strong>os</strong>icionado tanto face a si próprio como a um mundo quetambém é pertença de outr<strong>os</strong>.Uma <strong>da</strong>s chaves para aquilo a que chamam<strong>os</strong> reportagem íntima <strong>da</strong>poesia <strong>da</strong> viragem do milénio será, pois, a presença, de pormenores deintencionali<strong>da</strong>de dialógica de acção, ou de tempo e espaço, que rodeiapersonagens mais ou men<strong>os</strong> defini<strong>da</strong>s e cujas consequências ou resoluçõespermitem ao leitor acreditar num artefacto simbólico, num imaginário feitode experiência, pesquisa, meditação, referência e objectali<strong>da</strong>de, ou seja, numenraizamento factual.Este enraizamento factual, apesar de poder ser virtualmenteinvocado na companhia <strong>da</strong> expressão de sensações, emoções, musicali<strong>da</strong>des,ritm<strong>os</strong>, rimas, vers<strong>os</strong>, metáforas, imagens, metonímias, alegorias e outr<strong>os</strong>element<strong>os</strong> pr<strong>os</strong>ódic<strong>os</strong> tradicionalmente aliad<strong>os</strong> à lírica, 82 tende hoje aapoiar-se numa intenção de argumento fílmico, seja na construção de cenas,seja no dizer de uma história que determina e configura a narrativi<strong>da</strong>de dopoema. As contingências dialógicas <strong>da</strong> presença de um enredo, mesmo queembrionárias, conferem ao poema o fio com que este atrai, pela sua82 Jean-Michel Maulpoix, em La voix d´orphée, (1989), afirma: «Le lyrisme n´est pasl´expression de sentiments personnels: il n´ a de cesse de se délivrer du fugace et dutransitoire, d´ échaper au moi contingent et de lui prêter un corps glorieux enl´amalgamant idéalement à la substance de tout ce qui est».(p.13).«Loin de resteindre le champs de l´ art, ou de le borner, l´ idée d´imitation l´ ouvre àl´universel. Elle ne saurait par là s´opp<strong>os</strong>er à l´idée de lyrisme: il semble plutôt qu´elle enfraie déjà le chemin [...]».(p.39)193


plausabili<strong>da</strong>de factual, a vivência do seu leitor, pois estar consciente de quese vive é, de certo modo, estar consciente de que se escreve a n<strong>os</strong>sa própriahistória, escolhendo-lhe dia a dia o enredo e o discurso e, tal como nopoema impregnado de narrativi<strong>da</strong>de, fabricar essa história à medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suase <strong>da</strong>s n<strong>os</strong>sas interrogações.Estas interrogações, contudo, transitam constantemente, nummovimento de vai-vem pendular, <strong>da</strong>s questões práticas do quotidiano paraas grandes e sempre idênticas questões fun<strong>da</strong>mentais - e fun<strong>da</strong>cionais - quedesde sempre acompanham o homem, a humani<strong>da</strong>de e a poesia. Há sempreuma circunstância do passado remoto original que se repete e que transferepara a actualização do presente, revelando um desenvolvimento lógico, masplural e diversificado, de escolhas. Esta pluriopcionali<strong>da</strong>de despoletaconsequências que actuam de tal modo que, mesmo que só pelo fio lógico ever<strong>os</strong>ímil de uma linha diegética, e ain<strong>da</strong> que ténue, se apresenta, sedesenvolve, se clarifica e se representa o passado no presente, perante aleitura de um leitor que não é forç<strong>os</strong>amente ideal. 83 Não podem<strong>os</strong>, contudo,desprezar a abertura que, quando a narrativi<strong>da</strong>de está presente na poesia, seentrecruza com a rigidez de um sistema de solidez lógica e que traça,portanto, uma ver<strong>os</strong>imilhança credível mas fecha<strong>da</strong>.Também não podem<strong>os</strong> deixar de considerar o princípio implícito, equase totalitária, vindo a crescer desde a fantasia romântica, que impregnoua poesia modernista do século vinte até a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, e segundo o qualtod<strong>os</strong> <strong>os</strong> process<strong>os</strong> e procediment<strong>os</strong> seriam p<strong>os</strong>síveis e válid<strong>os</strong> desde quedesconstruíssem ou desafiassem a plausibili<strong>da</strong>de do esperado ou do já feito,desde que anulassem a presentificação de um passado de dogmas e model<strong>os</strong>.Terão, eventualmente, olvi<strong>da</strong>do que a negação d<strong>os</strong> dogmas é o caminho para83 A noção de «leitor ideal», por nós aqui utiliza<strong>da</strong>, não se confina ao leitor ideal de Eco,em Lector in Fabula, mas alarga-se até para além do usual leitor de poesia enquadradoem círcul<strong>os</strong> de académic<strong>os</strong>, crític<strong>os</strong>, docentes, intelectuais.194


a recuperação <strong>da</strong> crença, como Eduardo Lourenço, 84afirma:a este propósito,Nenhum deus escapa à perversão do ritual inventadopara o tornar presente. Chega sempre um dia em que énecessário negá-lo para o sentir ain<strong>da</strong> mais vivo.Esta consciência de uma articulação, afinal sempre presente, entredogma e inovação, entre reali<strong>da</strong>de passa<strong>da</strong> e virtuali<strong>da</strong>de futura, entrelimitação e anarquia, entre evolução e reacção, entre redutibili<strong>da</strong>de eirredutibili<strong>da</strong>de ou, ain<strong>da</strong>, entre universalismo e individualismo, anunciavasee denunciava-se já em alguns artig<strong>os</strong> de presencistas, de entre <strong>os</strong> quaiscitam<strong>os</strong> um excerto de um ensaio incluído no Nº 2 <strong>da</strong> «Presença», de 28 deMarço de 1929, <strong>da</strong> autoria de J<strong>os</strong>é Régio: 85É evidente que mesmo entre <strong>os</strong> romântic<strong>os</strong>, mesmoentre <strong>os</strong> modernistas, mesmo entre <strong>os</strong> primitiv<strong>os</strong>, asensibili<strong>da</strong>de, a inteligência, a imaginação - to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>descriadoras - podem vibrar em uníssono ao fogo de não sei quêque se chama inspiração artística... E nascerá então uma obraforte do seu íntimo equilíbrio - uma obra clássica. Assim oclassicismo deixa de ser esse desacôrdo seja com que doutrinaestética fôr, porque deixa êle mesmo de ser uma escola, umadoutrina estética, uma corrente.[...] Por tudo isto chegam<strong>os</strong> a admitir a compatibili<strong>da</strong>dedo classicismo e do modernismo. 86Esqueceu, porventura, a generali<strong>da</strong>de do pensamento modernista, esteolhar de compatibili<strong>da</strong>de para com o passado de que são construíd<strong>os</strong> tod<strong>os</strong>84 [1981:15]85 [s.d.:24,26] Cf. AAVV. Os Modernistas Portugueses - escrit<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, proclamações emanifest<strong>os</strong>. Vol.II- «Da Presença a<strong>os</strong> Surrealistas», Ed. Text<strong>os</strong> Universais, C. E. P.,Porto, s.d..195


<strong>os</strong> futur<strong>os</strong>, sem <strong>da</strong>r-se conta que se estava a desenvolver e a consoli<strong>da</strong>r omais despótico d<strong>os</strong> dogmas, aquele que, ao preço <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de a todo ocusto, e pelo seu hermetismo exacerbado, afastaria <strong>da</strong> poesia a hipótese deadesão e leitura por parte de um público mais lato. Contudo, estão dissoconscientes <strong>os</strong> poetas finisseculares, quando n<strong>os</strong> seus poemas abor<strong>da</strong>m opragmatismo <strong>da</strong> comunicação poética aliado à recuperação do passadoliterário, como é o caso do seguinte excerto de um poema de João LuísBarreto Guimarães. In Rua 31 de fevereiro: 87recomeçar traçando son<strong>os</strong> faces destin<strong>os</strong>falando por talvez valer tentar como se acaso(mesmo serena) ain<strong>da</strong> houvesse algo porensaiar. sei que saíste <strong>da</strong> superfície que tentasoutras margens inquieta (ombr<strong>os</strong> frágeis chamasfrias ou) um sítio onde o corpo repousar algohá que perdura muito além <strong>da</strong> emoção onde<strong>os</strong> verb<strong>os</strong> são reais em lugar <strong>da</strong> ilusãoPor entre tentativas, inquietações e incertas margens, o poema enraízao princípio do sonho no princípio <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, ancorando-<strong>os</strong> a amb<strong>os</strong> natemporali<strong>da</strong>de sem tempo do «recomeçar». O objecto lírico femininointensifica esta duplici<strong>da</strong>de de imparáveis vas<strong>os</strong> comunicantes e abre portasà identificação p<strong>os</strong>sível do sujeito lírico com a mulher, a escrita, a páginaou, ain<strong>da</strong>, a renovação <strong>da</strong> poesia pela sua paragem momentânea numareali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>. Uma reali<strong>da</strong>de onde poema, corpo ou peso temporal <strong>da</strong>escrita p<strong>os</strong>sam «repousar», partilhando um espaço literário e vivencialfeito <strong>da</strong>s pequenas ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> poesia e do quotidiano.86 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.87 [1991:67] referido em 9 Poetas para o século XXI, org. de J<strong>os</strong>é Ricardo Nunes[2000:37].196


É cedo ain<strong>da</strong> para afirmá-lo, mas podem<strong>os</strong> bem supor, pelaexperiência revivificadora <strong>da</strong> poesia narrativa e <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia,preconiza<strong>da</strong> pela «Expansive Poetry» n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong>Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América, que anarrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa vem, p<strong>os</strong>sivelmente, tentar recuperarparte desse público abandonado, porque a mais importante lição que umcontador de histórias poderá aprender será olhar para o mundo e pensar queo princípio de que tudo é p<strong>os</strong>sível é, afinal, uma falácia apenas dirigi<strong>da</strong> auma minoria que dela é cúmplice. Em Escritores, Intelectuais, Professores,Roland Barthes afirmava: 88Em suma, n<strong>os</strong> limites do próprio espaço docente, tal como ele é<strong>da</strong>do, tratar-se-ia de trabalhar para traçar pacientemente uma formapura, a de flutuação (que é a própria forma do significante); estaflutuação não destruiria na<strong>da</strong>; contentar-se-ia em desorientar a Lei: asnecessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> promoção, as obrigações <strong>da</strong> profissão (que na<strong>da</strong>proíbe desde logo de honrar com escrúpulo), <strong>os</strong> imperativ<strong>os</strong> do saber,o prestígio do método, a crítica ideológica, tudo está aí, mas queflutue. 89O emprego e a relevância conferi<strong>da</strong> ao verbo flutuar parecem-n<strong>os</strong>genialmente encontrad<strong>os</strong>, aplicando-se não só à situação deensino/aprendizagem, que n<strong>os</strong> interessa profissionalmente, como, crem<strong>os</strong>, àtransmissão/recepção <strong>da</strong> expressão artística e, portanto, <strong>da</strong> poesia. Naver<strong>da</strong>de, na<strong>da</strong> do que o ser humano p<strong>os</strong>sa construir consegue ter ap<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de divergir <strong>da</strong> sua interacção com a natureza. Tod<strong>os</strong> estam<strong>os</strong>conscientes de que som<strong>os</strong> element<strong>os</strong> pertencentes a um determinado mundo,e não a outro, e de que o máximo que podem<strong>os</strong> fazer é alterar ordens ouconjugar element<strong>os</strong> em arranj<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> mas sempre, inevitavelmente,88 [1975:60,61]89 Sublinhado n<strong>os</strong>so.197


pertencentes à factuali<strong>da</strong>de do Presente ou à ficção do dizer <strong>da</strong> História, naqual estam<strong>os</strong> inserid<strong>os</strong>, <strong>da</strong> qual fatalmente som<strong>os</strong> agentes.Por tudo isto, quanto mais a poesia assumir a evidência d<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>de uma relação men<strong>os</strong> distancia<strong>da</strong> dessa factuali<strong>da</strong>de, embora deixando-seflutuar sobre ela, mais a poesia avançará no percurso de aproximação eatracção de um maior número de leitores. Mais premente, ain<strong>da</strong>, será fazê-lonuma época em que a incerteza do mundo global faz despertar aespecifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação d<strong>os</strong> seres human<strong>os</strong> entre si, e deles com a naturezae com <strong>os</strong> imutáveis valores fun<strong>da</strong>cionais. Não é por acaso que a poesianarrativa se manteve na tradição popular, pois, ao contar histórias, elacoordena e controla, na sua simplici<strong>da</strong>de, a clareza <strong>da</strong> evidência <strong>da</strong> triplarelação <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de com a factuali<strong>da</strong>de e a poetici<strong>da</strong>de. Verem<strong>os</strong>adiante se é esta aproximação narrativa de um distanciamento lírico quea narrativi<strong>da</strong>de na poesia finissecular irá contemplar.198


CAPÍTULO IV -REPRESENTAÇÕES E SUBVERSÕES DANARRATIVIDADE NA POESIA1. NARRATIVIDADE, POESIA E MODERNISMOUma inevitabili<strong>da</strong>de à qual é imp<strong>os</strong>sível escapar quem escreve poesiaé a de que, ou utiliza o leque de model<strong>os</strong> usado ao longo d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong> - sejameles temátic<strong>os</strong> ou formais -, retomando-<strong>os</strong> ou tranformando-<strong>os</strong>, ou <strong>os</strong> recusaliteralmente, configurando essa mesma recusa um outro modelo ou outr<strong>os</strong>model<strong>os</strong>. Partindo do princípio que esses model<strong>os</strong> constituem uma relaçãotemático-pr<strong>os</strong>ódica que reflecte a vertente multicultural <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,tem<strong>os</strong> que admitir, quando n<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionam<strong>os</strong> perante a poesia portuguesa, aevidência <strong>da</strong> sua proveniência <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s origens, desde o mundoislâmico, milénio e meio antes de Cristo, passando pelo classicismo grecoromano,pela Europa renascentista de Norte e Sul, até à mais recenteinfluência sul-americana <strong>da</strong> temática do maravilh<strong>os</strong>o.A narrativi<strong>da</strong>de na poesia, como parte <strong>da</strong> tradição oral de qualquercultura em qualquer parte do mundo, e secun<strong>da</strong>riza<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> poetas domodernismo, estava destina<strong>da</strong> a ressurgir e a reviver numa época na qual ahumani<strong>da</strong>de, ausente de finali<strong>da</strong>des ou objectiv<strong>os</strong> espirituais e ideológic<strong>os</strong>,procura refúgio num sentido ficcional que a ajude a superar o negativismo<strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de. Esta necessi<strong>da</strong>de engendra, por sua vez, um desejo de199


clareza e lógica na comunicação, factores estes que se encontram nanarrativi<strong>da</strong>de, quer esta se realize na narrativa quer no poema, quando estestêm como intenção <strong>da</strong>r ao leitor ou ao ouvinte a marca <strong>da</strong> pessoali<strong>da</strong>de clarad<strong>os</strong> contadores de histórias.Crem<strong>os</strong> que, no contexto de dispersão na unificação que caracteriza omundo global, <strong>os</strong> poetas que adoptam a narrativi<strong>da</strong>de não têm outra escolhaque não seja a de manipular, como retórica <strong>da</strong> pragmática de aproximaçãoao leitor, a evidência de que uma história tem que ter uma linha diegéticaevidente, mesmo que não completa, por menor que seja ou por maior queseja o fechamento metafórico, metonímico ou imagístico que nela seentrelaça. O modernismo habituou <strong>os</strong> leitores de poesia a procurar n<strong>os</strong>jog<strong>os</strong> de hermetismo, f<strong>os</strong>sem eles gráfic<strong>os</strong>, linguístic<strong>os</strong>, ou outr<strong>os</strong>, adecifração do obscuro e do jogo privado do poeta como atitude deaproximação e cumplici<strong>da</strong>de na leitura do poema, razão esta pela qual asconvenções e model<strong>os</strong> tradicionais que acima referim<strong>os</strong> não funcionavamcomo adjuvantes de comunicação. No entanto, convenção modelar, técnicaou regra, ao contrário do que o modernismo exibiu, não são factoresproibitiv<strong>os</strong> <strong>da</strong> inovação, <strong>da</strong> imaginação ou <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de. Nesta linhade ideias, consideram<strong>os</strong> que o pós-modernismo teve e tem um papelimportante na vertente humanista do percurso de conscencialização <strong>da</strong>redescoberta transformacional do passado literário articula<strong>da</strong> não só àsp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des discursivas como à contextuali<strong>da</strong>de paratextual outranstextual. Lin<strong>da</strong> Hutcheon releva-o no capítulo 11 de A Poetics ofP<strong>os</strong>tmodernism, intitulado «Discourse, power, ideology: humanism andp<strong>os</strong>tmodernism»: 90What p<strong>os</strong>tmodernism´s focus on its own context ofenunciation has done is to foreground the way we talk andwrite within certain social, historical, and institutional (and90 [1988:184]200


thus political and economical) frameworks. In other words, ithas made us aware of «discourse».Um d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> relevantes como fio condutor <strong>da</strong> permanênciahistórica através <strong>da</strong> recriação em contexto presente, no que respeita a poesiaé, pois, a causali<strong>da</strong>de institucional que se manifesta no discurso em aspect<strong>os</strong>como, por exemplo, a já referi<strong>da</strong> pertinência do som como base <strong>da</strong>pr<strong>os</strong>ódia, inerente à poesia desde as suas origens, e que não deixou deestar presente na poesia experimental e linguística. Outro aspecto aconsiderar será o do uso tradicional <strong>da</strong> linguagem figurativa, do maissimples jogo de palavras à mais complexa metáfora, preconizado desde aantigui<strong>da</strong>de, 91 e usado ao longo d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong>. Qualquer d<strong>os</strong> dois exempl<strong>os</strong>n<strong>os</strong> dá conta do modo como o discurso nunca deixa de acompanhar, comoelemento estabilizador, as mu<strong>da</strong>nças de contexto ideológico ou sóciopolíticoou cultural, pois veicula uma performance na mente do leitor, quer anível <strong>da</strong> leitura mental do som, suas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des articulativas e decomp<strong>os</strong>ição sonora, quer a nível <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> decifração vivencial dometafórico, e que desde sempre se encontraram aliad<strong>os</strong> à poesia.Assim, a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura, ao criar o seu ritmo, a sua imagética, asua coerência de desenvolvimento <strong>da</strong> retórica textual ou, ain<strong>da</strong>, a descoberta<strong>da</strong> lógica de um fio diegético, articula vári<strong>os</strong> níveis estratológic<strong>os</strong> <strong>da</strong>mensagem e projecta-<strong>os</strong> num mesmo plano conferido pela leitura mental.Simultaneamente, articula também p<strong>os</strong>turas em relação a uma autori<strong>da</strong>de ea um reconhecimento com a historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s influências d<strong>os</strong> poderespolítico, social, institucional, cultural e histórico, presentes comocontextuali<strong>da</strong>des inerentes à produção textual e sua recepção. Ou seja, tanto91 Já referi<strong>da</strong> por Aristóteles, na Poética: «Necessária será, portanto, como que a misturade to<strong>da</strong> a espécie de vocábul<strong>os</strong>. Palavras estrangeiras, metáforas, ornat<strong>os</strong> e tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>outr<strong>os</strong> nomes de que falám<strong>os</strong>, elevam a linguagem elevam a linguagem acima do vulgare do uso comum, enquanto <strong>os</strong> term<strong>os</strong> correntes lhe conferem clareza». [XXII.138][1990:136]201


a produção como a recepção se movem, simultaneamente, inevitavelmente,tanto nas estratificações textuais como nas estratificações históricas.Esta dupla movimentação manifesta-se tanto mais quanto maior alacunari<strong>da</strong>de do texto em relação a p<strong>os</strong>síveis referências, explícitas ouímplicitas, à sua contextuali<strong>da</strong>de mundivivencial. Na leitura de poesia, ofacto de, ao ler um poema, o leitor se poder eventualmente apoiar, porexemplo, na solidez de uma cena ou de uma história conta<strong>da</strong>, transporta-opara uma segurança que compensa o fechamento ou a dificul<strong>da</strong>deinterpretativa, conferindo ao poema e ao leitor a solidez de uma intençãoque lhes é tanto fun<strong>da</strong>dora como próxima.A presença desta intenção de não arbitrarie<strong>da</strong>de liberta o leitor, emparte, <strong>da</strong> obrigação de construir ele próprio uma história que se oculte portrás do fechamento retórico e constitua um espaço de diegese que, aliás,nunca deixou de estar presente, de modo mais ou men<strong>os</strong> evidente, nanarrativi<strong>da</strong>de que marca a lírica tradicional. Esta narrativi<strong>da</strong>de lírica aliase,por vezes, a uma referência ao quotidiano, leva<strong>da</strong> hoje a algunsextrem<strong>os</strong> de insolência quase satírica, como na poesia de uma Adília Lopes,<strong>da</strong> qual destacam<strong>os</strong>, a esse propósito, <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> estrofedo poema «Anonimato e Autobiografia» 92 :Um poeta assinava <strong>os</strong> seus vers<strong>os</strong> com o seu nomemas um romance por ser autobiográficoassinou com um pseudónimo pouco banalcontava no romance (e foi isto que o levoua decidir-se por um pseudónimo)que comia ao pequeno almoçoalheiras às rodelas com sala<strong>da</strong> de tomateO exagero <strong>da</strong> identificação do romance com a autobiografia pr<strong>os</strong>aica,desmistifica<strong>da</strong> pela ficcionalização de um pseudónimo inventado,202


contrapõe-se ironicamente à afirmação <strong>da</strong> poesia como veículo de uma falsaexpressão autobiográfica, satirizando <strong>os</strong> subterfúgi<strong>os</strong> através d<strong>os</strong> quais ésuperado o vazio pr<strong>os</strong>aico.Estruturar um verso ou as estrofes de um poema, criar um pequenotexto em pr<strong>os</strong>a com características pr<strong>os</strong>ódicas tradicionais <strong>da</strong> poesia, ouintroduzir num poema o banal quotidiano ou a lógica de representação <strong>da</strong>narrativa, são act<strong>os</strong> que conferem uma modelização poética que tem o poderde organizar impressões soltas dotando-as de uma finali<strong>da</strong>de sem a qual omais livre d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> não provoca sentido. O leitor <strong>da</strong> viragem do milénio,o leitor inserido no mundo de expansão desindividualizadora <strong>da</strong>globalização, sente bem esta necessi<strong>da</strong>de de encontrar um sentido deafirmação individual através de uma organização mundivivencial que,enraiza<strong>da</strong> na tradição, se projecte numa dimensão também presente epessoal. Anthony Giddens, em O mundo na era <strong>da</strong> globalização, 93 numcapítulo intitulado «Tradição», aponta esta necessi<strong>da</strong>de:Tradição e c<strong>os</strong>tume, duas coisas que têm condicionadoas vi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s pessoas durante uma boa parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> História<strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. No entanto, não deixa de ser notável que <strong>os</strong>académic<strong>os</strong> e <strong>os</strong> especialistas lhe dêem tão pouca atenção. Hádiscussões intermináveis sobre o que significa ser moderno,mas muito poucas acerca <strong>da</strong> tradição.[...]O termo «tradição» no sentido que lhe é <strong>da</strong>doactualmente é, na reali<strong>da</strong>de, um produto d<strong>os</strong> dois últim<strong>os</strong>sécul<strong>os</strong> <strong>da</strong> Europa. [...] na I<strong>da</strong>de Média não existia a noçãogenérica de tradição. Não havia necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra,precisamente porque tradição e c<strong>os</strong>tume estavam por to<strong>da</strong> aparte. 9492 [2000:167]93 [2000:46 a 47]94 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.203


Partindo destas constatações, que julgam<strong>os</strong> poder articular com o factode a necessi<strong>da</strong>de de recuperar a tradição surgir em proporção inversa à doavanço <strong>da</strong> globalização, crem<strong>os</strong> encontrar uma <strong>da</strong>s razões que justificamestar a presenciar-se um renascimento <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia. O actode renascer implica, em si mesmo, uma dupla atitude de transformação egénese em relação a um anterior nascimento ou existência, por isso aquidiferenciám<strong>os</strong> poesia narrativa de narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Na ver<strong>da</strong>de, o uso<strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de ressurgiu, quer se manifeste em poemas breves quer empoemas long<strong>os</strong>, seja com métrica ou com verso livre, contando cenas brevesou sagas extensas, através de monólog<strong>os</strong> dramátic<strong>os</strong> ou diálog<strong>os</strong> doquotidiano, em linguagem corrente quotidiana ou em linguagem de tradiçãopoética e, na maioria d<strong>os</strong> cas<strong>os</strong>, alternando ou entrecruzando estes recurs<strong>os</strong>.Ao contrário de há vinte an<strong>os</strong> atrás, é hoje comum abrir um livro de poesiaacabado de publicar e encontrar nele a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de, sejam <strong>os</strong>seus poemas <strong>da</strong> autoria de um d<strong>os</strong> poetas premiad<strong>os</strong> pela atenção <strong>da</strong> ediçãoe <strong>da</strong> crítica, seja uma obscura edição de autor.Os fact<strong>os</strong> assinalad<strong>os</strong> levam-n<strong>os</strong> a considerar o ressurgimento do«contador de histórias», que referirem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> no capítulo dedicado àExpansive Poetry, e que recupera a arte de contar pormenores ou cenas dehistórias de vi<strong>da</strong>s, que se desenrolam em tempo quase sempre hodierno e emespaç<strong>os</strong> que são familiares ao leitor. Contudo, esta característica, que seprevê confira uma maior abertura <strong>da</strong> poesia a um também maior número deleitores, não afasta desta uma certa complexi<strong>da</strong>de e fechamento que ain<strong>da</strong>persistem, nascid<strong>os</strong> que foram <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de fragmentária e <strong>da</strong> supremaciaformal e d<strong>os</strong> element<strong>os</strong> abstract<strong>os</strong> que aju<strong>da</strong>ram a configurar o modernismo.A atitude do fazer na poesia modernista, que atravessou todo o séculovinte, levou <strong>os</strong> poetas a esquecerem a sua origem de «shamânes»,«aed<strong>os</strong>» ou «trovadores», a esquecerem o contar, na poesia, de uma históriareconhecível como tal, e a preferirem o caminho indicado pela liber<strong>da</strong>de do204


verso livre do romantismo à chama<strong>da</strong> de atenção para a factuali<strong>da</strong>de,presente já, contudo, no poema em pr<strong>os</strong>a simbolista.Ao longo do Modernismo, 95 a fragmentarie<strong>da</strong>de do texto estético e,portanto, do texto literário e do poema, constituiu um d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> maisregulares de uma realização modelar, realização esta que se apoiava narejeição de uma visão globalitária <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, tanto <strong>da</strong> expressão artísticacomo <strong>da</strong> própria linguagem que a configura. O espaço <strong>da</strong> página onde seinscrevia o poema podia ser considerado como equivalente à tela d<strong>os</strong>moviment<strong>os</strong> pictóric<strong>os</strong> de índole abstraccionista e fragmentária de escolascomo o <strong>da</strong><strong>da</strong>ísmo ou o cubismo. Predominava a arte abstracta, qualquer quef<strong>os</strong>se o assunto ou a temática, e a linguagem canalizava-se pararepresentações simbólicas resultantes de uma reconversão do pragmatismo<strong>da</strong> mensagem através dessas representações simbólicas veicula<strong>da</strong>s emanipula<strong>da</strong>s pel<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>, pelas transmutações de memórias e peladimensão onírica do pensamento. Do romantismo ao simbolismo e a<strong>os</strong>urrealismo se foi construindo esta atitude modelar centra<strong>da</strong> nohermetismo e <strong>da</strong> qual <strong>os</strong> poetas estavam conscientes, de modo evidente, demead<strong>os</strong> a finais do século vinte, quer pela mera prática poética, quer pelapresença <strong>da</strong> metalinguagem na poesia, como o indicam, a título exemplar,n<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> de Jorge de Sena, em 1961, no quarto d<strong>os</strong> Quatro Sonet<strong>os</strong> aAfrodite Anadiómena, 96 ou nas palavras de Fernando Guimarães, em 1996,em As Quatro I<strong>da</strong>des: 9795 Consideram<strong>os</strong> aqui, designa<strong>da</strong>s por um único termo mais abrangente, as diferentesp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de fases do modernismo, referindo-n<strong>os</strong> a um lapso de tempo que vai doinício do século vinte a finais d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, início d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, considere-se ounão o pós-modernismo como uma fase do modernismo.96 [1979:108]; in Antologia <strong>da</strong> Poesia Portuguesa - 1940-1977, 1º volume, de M.Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro.97 [1996:90]205


De Jorge de Sena:IVAMÁTIATimbórica, morfia, ó persefessa,meláina, andrófona, repitimbídia,ó basilissa, ó scótia, masturlídia,amata cíprea, calipígea, tressade jardinatas nigras, pasifessa,luni-r<strong>os</strong>ácea lambi<strong>da</strong>ndo erídiaerínia, erítia, erótia, erânia, egídia,eurínoma, ambológera, donlessa.Àres, Hefáist<strong>os</strong>, Adonísio, tut<strong>os</strong>alipigmai<strong>os</strong>, atilíci<strong>os</strong>, fut<strong>os</strong><strong>da</strong> lívia <strong>da</strong>mita<strong>da</strong>, organissanta,agonimais se esgorem moritur<strong>os</strong>,necrotentav<strong>os</strong> de escancárias dur<strong>os</strong>,tantisqua abradimembra a teia canta.De Fernando Guimarães:O autor deu instruções para que o seu livro, logo queficasse concluído, se mantivesse fora do alcance de tod<strong>os</strong>aqueles que o quisessem ler, por mais interessad<strong>os</strong> queestivessem. Mas, pouco a pouco, insinuou-se no seu espírito asuspeita de que poderiam imaginar que ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s suaspáginas não passasse de um amontoado de palavras, talvez semqualquer sentido, <strong>da</strong>do que seria de prever que desconfiassem<strong>da</strong> razão por que tinham sido impedid<strong>os</strong> de as ler.206


Tal como do soneto de Jorge de Sena, de 1979, apesar deaparentemente transgressivo e enraizado na poesia linguística, se nãoencontram ausentes as referências temáticas e formais ao classicismorenascentista, também no poema em pr<strong>os</strong>a, de Fernando Guimarães, de1996, a ironia do medo do hermetismo aponta a dedo a preocupaçãoimplícita com a originali<strong>da</strong>de, apesar do uso <strong>da</strong> metalinguagem na pseudoreflexãopoética do «imaginar».Era natural que, em tal contextualização abstraccionista, fragmentáriae hermética, a narrativa, como «contar de uma história», manifestasseprocediment<strong>os</strong> retóric<strong>os</strong> como, por exemplo, a desconstrução <strong>da</strong> linhadiegética e <strong>da</strong> própria gramática textual ou, ain<strong>da</strong>, a insistência narepresentação simbólica e hermética de personagens com funcionali<strong>da</strong>denarrativa prop<strong>os</strong>ita<strong>da</strong>mente ambígua. Parecia ter-se esquecidodefinitivamente, na poesia, a arte de contar uma história na qual astradicionais componentes de espaço, tempo, personagens e acção surgissemdefini<strong>da</strong>s e identificáveis. Parecia ter-se abandonado o discurso como dizerde uma história para se transformar o próprio discurso nessa história, tal asua desconstrução linguística ou desviantes obscuras <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>demetalinguística, por exemplo. É, portanto, natural que o poema tambémsugerisse, tal como a narrativa, um apagamento <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>detradicional e revelasse, pela sua abstracção, originali<strong>da</strong>de, inesperado ouirreverência, a recusa de uma relação evidente de conexão ou de causali<strong>da</strong>deentre o mundo factual e a sua representação ficcional. 98Na reali<strong>da</strong>de, as mu<strong>da</strong>nças, mesmo que aparentementerevolucionárias, mesmo que aparentemente negando a activi<strong>da</strong>de dopassado, acabam sempre por ser mais uma mu<strong>da</strong>nça que não deixa de se98 Utilizam<strong>os</strong> o termo «ficção» na sua dimensão de relação directa com a arte <strong>da</strong> linguagem,considera<strong>da</strong>s estas como determinantes <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de, segundo referência a G.Genette, em Fiction et Diction, [1991: 19 e ss].207


apoiar-se fun<strong>da</strong>mentalmente em pormenores, detalhes, retábul<strong>os</strong> e variantesdo próprio passado, e <strong>os</strong> escritores do século vinte tiveram e têm dissoconsciência, como o indicia o primeiro parágrafo do conto «Holan<strong>da</strong>», emOs Pass<strong>os</strong> em Volta, 99 de Herberto Helder:Um poeta está sentado na Holan<strong>da</strong>. Pensa na tradição. Diz parasi: eu sou alimentado pel<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong>, vivo afogado na história de outr<strong>os</strong>homens. Contudo, a sua alma é atravessa<strong>da</strong> por um sopro de quali<strong>da</strong>deoriginal. Tem a alma perdi<strong>da</strong> - é um inocente que maneja o fogoinfernal. Abre-se no fundo <strong>da</strong> sua meditação holandesa um grandelago. A solidão - e em volta passeiam vacas. A Holan<strong>da</strong> agora é isto:vacas, e ao centro - o inferno, a revolucionária inocência de um poetasentado.O enraizamento no espaço e no tempo do passado pode ser sempreconsiderado como um veículo para o despoletamento ou para a libertação <strong>da</strong>inocência original <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de, mesmo que esta se configure nas origensmais remotas do literário. No que respeita à poesia, consideram<strong>os</strong>, porexemplo, que ao longo do Modernismo ela não perdeu nunca uma <strong>da</strong>s suascaracterísticas fun<strong>da</strong>mentais e fun<strong>da</strong>doras: a pertinência <strong>da</strong> sonori<strong>da</strong>de queencanta o «leitor-ouvinte» e com ele brinca. Se existe uma lógica depermanência e de identificação na e <strong>da</strong> poesia, ela estará, certamente, narazão do ser mais remoto <strong>da</strong> própria poesia, ou seja, no modo como o poemasoa e no modo por que canta, como atrás referim<strong>os</strong> e exemplificám<strong>os</strong>.Crem<strong>os</strong> ser esta afirmação tão váli<strong>da</strong> para uma cantiga de amigo como paraum soneto renascentista, para um poema em verso branco do romantismoou, ain<strong>da</strong>, para um poema - linguístico ou experimental que seja - domodernismo. Porque a poesia foi, é e será para ser ouvi<strong>da</strong>, pela dicção <strong>da</strong>voz de outrem ou pela voz mental de um solitário silêncio individual. Apoesia é activa e pede a acção de uma performance <strong>da</strong> sonori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua99 [1963:17]208


leitura; pede a modulação do seu som no tempo ou n<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>; pede amusicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra, ou <strong>da</strong> frase, ou <strong>da</strong>s frases, simultaneamenteprovin<strong>da</strong> e realiza<strong>da</strong> nas leituras <strong>da</strong> imaginação <strong>da</strong>s suas sonori<strong>da</strong>des. R. T.Jones, em Studying Poetry, 100 põe nestas a tónica do seu estudo e comenta:Though I offer no definition of poetry, I hope to show it can berecognised.[...]----------------------------------------------------------------------------A poem, like a musical comp<strong>os</strong>ition, is not a group of marks onpaper, but an experience recreated by following - as carefully,intelligently, and imaginatively as one can - the indications given bythe printed notation.Em muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poemas de poetas portugueses, sobretudo a partir d<strong>os</strong>an<strong>os</strong> oitenta, encontrám<strong>os</strong>, adentro do uso <strong>da</strong> metalinguagem, referência àmusicali<strong>da</strong>de na poesia. É, pois, p<strong>os</strong>sível que, no próprio poema, se desenhea pauta simultânea do som e <strong>da</strong> evocação do som, <strong>da</strong> referência àmusicali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> própria musicali<strong>da</strong>de e, até, <strong>da</strong> negação de sonori<strong>da</strong>de quea provoca, de que <strong>da</strong>m<strong>os</strong> exemplo com um poema de A Casa, aEscuridão, 101 de J<strong>os</strong>é Luís Peixoto:<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> são <strong>os</strong> degraus <strong>da</strong> esca<strong>da</strong> que o príncipedesce devagar. o seu pé direito está sobre esta palavra.antes d<strong>os</strong> vers<strong>os</strong>, estava o quarto e a janela. o príncipedesce devagar. o seu pé esquerdo está sobre esta palavra.entra no interior <strong>da</strong> casa. ouve-se a noite. não se ouveo coração do príncipe. ouve-se, neste verso, o seu pé direito.100 [1986:5 e 32]101 [2002:50]209


Curi<strong>os</strong>amente, <strong>os</strong> «vers<strong>os</strong>» funcionam como metáfora d<strong>os</strong> «degraus»,e vice-versa, tal como acontece com o «pé» e a «palavra», situando-se numespaço sem limites configurado pela noite, onde se ouve e se não ouve avi<strong>da</strong> e a poesia, no poema metonimizad<strong>os</strong> como «coração de príncipe» e«verso». A articulação entre a «factuali<strong>da</strong>de ficciona<strong>da</strong>» e o apontar <strong>da</strong>feitura dessa ficcionalização encontram o seu registo poético perfeito não sóno ritmo métrico e na pertinência de sonori<strong>da</strong>des do poema, mas também namusicali<strong>da</strong>de que se desprende <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong>s acções descritas.Estando a musicali<strong>da</strong>de intimamente liga<strong>da</strong> ao ritmo mnemónico docontar, crem<strong>os</strong> que a geral secun<strong>da</strong>rização <strong>da</strong> poesia narrativa, 102 por parted<strong>os</strong> poetas do modernismo, se deveu ao abandono de model<strong>os</strong> fix<strong>os</strong> erígid<strong>os</strong> tradicionais em proveito do ênfase <strong>da</strong>do à desconstrução <strong>da</strong>gramática textual, ao hermetismo simbólico ou à instrumentalização lúdica<strong>da</strong> linguagem, como acima referim<strong>os</strong>. O apelo ao irracional poético e àapresentação e conjugação <strong>da</strong> representação de imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des sobrepõeseà necessária presença de um mínimo de plausibili<strong>da</strong>de lógica, temática esequencial, próxima <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de, requerid<strong>os</strong> tanto pela poesia narrativacomo pela presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia.Poderá objectar-se que poemas como Leonorana, de Ana Hatherly, de1979, 103 apesar <strong>da</strong> ausência de uma lógica articula<strong>da</strong> pela frase, seaproximam <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de. Vejam<strong>os</strong> algumas <strong>da</strong>s «XXXI variações»:102 Salvaguar<strong>da</strong>m<strong>os</strong> aqui a existência constante de poesia narrativa em publicações depoetas populares e de poetas não consagrad<strong>os</strong> ou periféric<strong>os</strong>, no sentido de nãoacompanhamento de cânones que lhes eram contemporâne<strong>os</strong>, em relação a<strong>os</strong> quais apoesia narrativa poderia ser p<strong>os</strong>iciona<strong>da</strong> como «fora de mo<strong>da</strong>», considera<strong>da</strong> por nós«mo<strong>da</strong>» no sentido de predominância de configurações estéticas vigentes e referentes adeterminantes de periodologia literária.103 [1979:93 a 100]; de Anagramático, de 1970, in Antologia <strong>da</strong> Poesia Portuguesa - 1940-1977, 2º volume, de M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro.210


VRIAÇÃO IIquando leonor pela manhã estava nuaacor<strong>da</strong> e sente essa verdura irmã <strong>da</strong>form<strong>os</strong>ura <strong>da</strong>s fontes e <strong>da</strong> verduraestende o pé e pisa o chão descalçae treme de verdura pela form<strong>os</strong>ura <strong>da</strong>manhã primeiro jacto <strong>da</strong> fonte de verduraseu pé descalço treme de frio como trememas faces <strong>da</strong> verdura abrindo suas bocasà aragem fria <strong>da</strong> manhã segura como afonte segura <strong>da</strong> verdura <strong>da</strong> aurora e nuacomo leonor fremente pela verdura e tãoform<strong>os</strong>a como a fonte que irrompe desúbito como o dia estende o pé descalçopara fora do leito <strong>da</strong> fundura <strong>da</strong> noiteem que dormem as fontes a verdura aform<strong>os</strong>ura e leonor insegura ergue-se acaminho pela verdura e na verdura colheform<strong>os</strong>ura vai para a fonte nua----------------------------------------------------------------------------VARIAÇÃO XX211


VARIAÇÃO XXXEscrevo leonor porque descrevo e descrevo porque escrevendo otempo inscreve-se nas linhas imaginárias por onde escrevo oque descrevoas parábolasApesar <strong>da</strong> presença, na «Variação II», de um esboço paródico <strong>da</strong>sugestão de narrativi<strong>da</strong>de presente no mote e nas voltas camonianas, noentanto, o uso simultâneo, ao longo do poema, <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>metalinguagem, <strong>da</strong> poesia linguística e <strong>da</strong> poesia gráfica experimental,aliad<strong>os</strong> à ausência <strong>da</strong> relação do protagonismo de uma personagem comuma factuali<strong>da</strong>de que não seja a de uma existência literária evoca<strong>da</strong>,confere-lhe um distanciamento d<strong>os</strong> element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> queentendem<strong>os</strong> necessári<strong>os</strong> à consideração <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia, ou seja, a coexistência de personagem, acção eespaço, aliad<strong>os</strong> a uma diegese, mesmo que ímplicita ou esboça<strong>da</strong>. 104Consideram<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> esse distanciamento mesmo em relação a<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong>que uma Expansive Poetry havia de praticar e preconizar, ao utilizar edefender o alargamento do uso simultâneo <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des formais <strong>da</strong>poesia e <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de, com o objectivo de conferir à poesia uma maiorabertura e clareza, em função do alargamento do público receptor <strong>da</strong>s suasrealizações.Crem<strong>os</strong>, pois, no que à narrativi<strong>da</strong>de se refere, não poder considerarcomo tradicionalmente narrativo um poema como Leonorana, de AnaHatherly. Consideram<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong>, que a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesiasecun<strong>da</strong>riza o pastiche e a interacção entre element<strong>os</strong> na qual não existarelação de plausabili<strong>da</strong>de ou nexo de causali<strong>da</strong>de. Ora, constituindo aausência destas relações e destes nex<strong>os</strong> o cerne <strong>da</strong> atitude fragmentária212


modernista, é natural que a narrativi<strong>da</strong>de tenha sido subvaloriza<strong>da</strong>, só vindoa começar a ser recupera<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong> pela prática d<strong>os</strong> poetas do pósmodernismo.105Na reali<strong>da</strong>de, o poeta finissecular, ao reassumir no seu poema o contarde uma história, ou mesmo o simples descrever de uma cena ou a anotaçãode um episódio vivencial, bem como ao investir no poder <strong>da</strong> linguagem a<strong>os</strong>erviço de combinações inerentes a um objectivo de funcionali<strong>da</strong>depragmática, está automaticamente a devolver à palavra, à frase, àlinguagem e à gramática textual do poema, uma autori<strong>da</strong>de e um certonúmero de convenções que o modernismo deixara em segundo plano. Estaautori<strong>da</strong>de, estas convenções, são, obviamente, recupera<strong>da</strong>s em context<strong>os</strong> ecom associações diferentes e diversifica<strong>da</strong>s, o que vem permitir conectar aessenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ficção com a arte <strong>da</strong> linguagem, numa dimensão quepermite, pela sua realização em simultanei<strong>da</strong>de com process<strong>os</strong> derepresentação e ver<strong>os</strong>imilhança, o ressurgir de uma lírica narrativa, tanto napoesia narrativa como na presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Comoexemplo de poesia narrativa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa, apresentam<strong>os</strong> um excerto«canto» 23 de Segundo Livro de Ishtar, 106 de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino, queconta a epopeia de Gilgamesh pela voz de um sujeito lírico que ora seconfunde com um narrador heterodiegético, ora com um narradorpersonagemface à sua própria autodiegese:só uma ave amava a tua facesó uma pétalaa luz descia pelo rio etérea e despoja<strong>da</strong>como um sinal submerso<strong>os</strong> puls<strong>os</strong> quando104 Cf. «Conjunturas», no Anexo.105 Não entrando em discussões ou debates sobre o termo «pós-modernismo», limitamo-n<strong>os</strong>aqui a utilizá-lo na medi<strong>da</strong> e no sentido em que a vulgarização do mesmo suplanta essesmesm<strong>os</strong> debates, como já anteriormente referido.106 [1994:29]213


se abreminun<strong>da</strong>m-n<strong>os</strong> a boca as manhãs desfalecematrás <strong>da</strong>s tuas armasque silênci<strong>os</strong> escondesque ímpet<strong>os</strong> seguras intact<strong>os</strong> sob <strong>os</strong> múscul<strong>os</strong>a ci<strong>da</strong>de era uruke tinha quatro torres e quatro bailarinasmortas n<strong>os</strong> odores--------------------------------------------------------Confrontando-se com a «epopeia de Gilgamesh» e text<strong>os</strong> similares depoesia narrativa, <strong>os</strong> poemas n<strong>os</strong> quais considerám<strong>os</strong> a presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de não sustentam uma narrativa na qual se p<strong>os</strong>sam reconhecer<strong>os</strong> element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> que tradicionalmente a configuram, mas apenasalguns desses element<strong>os</strong>, e/ou em parte sugerid<strong>os</strong>, como no caso do poema«À tarde esquecido de mim», 107 de A Arma do R<strong>os</strong>to, de Paulo J<strong>os</strong>éMiran<strong>da</strong>:Julgo ser capaz de ficar to<strong>da</strong> a tarde esquecido de mimSentado nesta mesa <strong>da</strong> Pastelaria do Largo de São Paulo de fronte à igrejaDo santo meu homónimo e a única que frequentoQuatro vezes por ano no início <strong>da</strong>s estações.Mas tenho este compromisso e antes dele o silêncio de Cristo espera-mePara depois partir ao encontro de mais uma dor de um fim de cigarro qualquer.Os mendig<strong>os</strong> na Praça entreaju<strong>da</strong>m-se nessa hora de repouso sob as árvorespedem-me o tabaco que partilham com o pão de Deus e agradecemna igreja o seu deserto atinge-me com lágrimas de emoçãocomo se só eu f<strong>os</strong>se esperado pelo Filho e pelo Pai nessa hora.vinte vinte e cinco minut<strong>os</strong> depois regresso ao sol insuportável <strong>da</strong>s três107 [1998:48]214


já não me queixo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e desculpo <strong>os</strong> gest<strong>os</strong> mais vis <strong>da</strong>s pessoasjulgo ser capaz de ficar to<strong>da</strong> a tarde esquecido de mim.O longo poema em «cant<strong>os</strong>» de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino, apesar de serportador de uma linguagem e de uma imagética que o aproxima de umadimensão lírica, apoia-se numa diegese de fragmentarie<strong>da</strong>de épica quepermite o contar pormenorizado de personagens e acções de uma longahistória em sequências de progressão <strong>da</strong> história. O poema de Paulo J<strong>os</strong>éMiran<strong>da</strong>, pelo contrário, embora usando uma retórica textual e linguísticamais próxima <strong>da</strong> narrativa, acaba apenas por sugerir personagens e acçõespontuais de uma cena esboça<strong>da</strong> que acabam por não despoletar a dialogianarrativa, por isso o considerarm<strong>os</strong> como um poema p<strong>os</strong>ssuidor denarrativi<strong>da</strong>de e não um poema narrativo.Leonard Schwartz, em A Flicker at the Edge of Things, 108 referindo-seà poesia n<strong>os</strong> E.U.A., n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa, sintetiza do seguinte modo aquiloque ele considera serem duas linhas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> epistemologia dopoema:To state the matter more simply: on one hand, the <strong>da</strong>ilyself, p<strong>os</strong>ited in a routine and unproblematic manner, achievingits occasional epiphanies in a routine and unproblematicmanner, glancing out of the window at a bird or a werm andseeing itself; on the other hand, th<strong>os</strong>e poetries […] in which asystem of interlocking parts operates without an atomized selfat its center[…]. Two epistemologies of the poem - the self atthe window, finding its words in the need to express: or elsethe materiality of found and unfound language organizedthrough an impersonal science or magic: aspects of the sameimperative of immediacy. 109108 SCHWARTZ [1998: 12]109 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.215


Embora não concor<strong>da</strong>ndo com a consideração dicotómica, semprerestritiva e redutora, a formulação de Leonard Schwartz tem a virtude derelevar uma visão do transcendental na poesia d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa que acabapor ser uma espécie de síntese entre o «eu» e a «negação do eu». Exprime,assim, implicitamente, um alerta para esta síntese bipolar como um caminhode divergência clarificadora em relação à tradicional visão do transcendentalcomo algo, objecto ou ser, que se situa fora, ou para além, do «eu quepensa». Consideram<strong>os</strong> esta ilação importante para o pensar <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia <strong>da</strong> viragem do milénio porque, justamente, a presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de vem apontar para um caminho onde a poesia se preocupamen<strong>os</strong> com a universali<strong>da</strong>de, com as ideologias ou com a fil<strong>os</strong>ofia, econtempla prioritariamente a proximi<strong>da</strong>de com o ser vivente, com o tornarvisível a percepção do eu e do mundo, e do eu no mundo, como modo emeio de tornar também visíveis, e vivíveis, valores sociais e individuais quese esfumam lentamente no hoje do espraiar do mundo global.Apesar desta objecção, concor<strong>da</strong>m<strong>os</strong> com a conclusão que LeonardSchwartz apresenta, quando argumenta que, segundo ele, a poesia é hojeum melhor e mais eficaz veículo de transporte do transcendental, umavez que mais próxima do «humano respirar»: 110Everything is dead, no question. But when by definitioneverything is dead, by the same logic nothing is dead. Aboveall, it´s a question of overcoming our own projections of thevoid.Crem<strong>os</strong> que tanto o movimento <strong>da</strong> «Expansive Poetry», n<strong>os</strong> E.U.A.,como o reassumir progressivo, desde finais d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia europeia, representam uma necessi<strong>da</strong>de deestabelecer como que uma relação de defesa <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de, através de110 [1998:13]216


uma relação de proximi<strong>da</strong>de ou de contigui<strong>da</strong>de entre o eu que pensa, com apessoali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas raízes, e o contexto mundial de desenraizamentoimpessoal, massificante. Neste desajustamento, a poesia narrativafunciona, adentro <strong>da</strong> expressão estética, adentro <strong>da</strong> expressão literária, comoa vere<strong>da</strong> de ilusória segurança conducente ao reajustar de uma paisagemimaginária que liberta <strong>da</strong> tirania de uma igual<strong>da</strong>de de aparências, recriandoas histórias pessoais em função do homem como ser p<strong>os</strong>suidor <strong>da</strong> suahistória e <strong>da</strong> sua História. Esboça-as, pois, no «imperfeito presente» docontar, e não como personagem indiferencia<strong>da</strong> de referência a um imp<strong>os</strong>to«presente absoluto» que lhe é imp<strong>os</strong>to pela configuração sócio-política eeconómico-cultural <strong>da</strong> hodierni<strong>da</strong>de. Deste modo, delineia-se como p<strong>os</strong>sívelp<strong>os</strong>suir a história na História, numa fuga para dentro e para fora doinexplicável, através <strong>da</strong> magia ou do feitiço <strong>da</strong> palavra poética conta<strong>da</strong>, quetudo m<strong>os</strong>tra sem explicar, como pode subentender-se de algumas frases deManuel Alegre em «O que sei de poesia» 111 :Não sei falar de literatura. Não sei se sei falar de poesia.Sobretudo não sei se a poesia tem alguma coisa a ver com aliteratura. Talvez esteja antes ou depois <strong>da</strong> literatura. [...]Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente <strong>da</strong>quele sujeitoque vem<strong>os</strong> nas trib<strong>os</strong> primitivas, de plumas na cabeça,repetindo palavras mágicas enquanto <strong>da</strong>nça e pula ao ritmo deum tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com palavras a<strong>os</strong>om de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho.Tal como as palavras mágicas d<strong>os</strong> adivinh<strong>os</strong>, a estabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>representação, o conforto de ver surgir no espelho o reflexo, tanto dopresente de si próprio como <strong>da</strong> pertença a um passado cultural e históricoque especificamente lhe pertence desde a origem mágica d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong>,encontrá-las-á, paradoxalmente, o leitor de poesia, no reconhecimento <strong>da</strong>s111 [1997:743]217


convenções que conferem a segurança de uma espécie de novo realismo, eque sugerem a estabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> purificação do presente, tanto comopreenchem o vazio provocado pelas rupturas com a diferença. O imaginárioaniquila o imediato e altera a condição humana, mas o imaginário contadorecupera para o imediato a dimensão humana, a devolução <strong>da</strong> segurançasecular <strong>da</strong>s histórias conta<strong>da</strong>s, ou, ain<strong>da</strong>, a dimensão de proximi<strong>da</strong>de entre odivino e o humano <strong>da</strong> missão <strong>da</strong>s palavras d<strong>os</strong> «shâmanes».2. LIBERTAÇÃO E DESEJO DE MUDANÇAPode frequentemente ler-se, ou ouvir-se dizer, em publicações deíndole ensaística ou em produções audiovisuais mediáticas, que o mundo dehoje atravessa uma época intrinca<strong>da</strong> e pen<strong>os</strong>a na qual <strong>os</strong> valores human<strong>os</strong> ehistóric<strong>os</strong> se encontram subvertid<strong>os</strong>, atitude esta que acaba por provocar umolhar para o passado em busca de equilíbrio. Como exemplo, referim<strong>os</strong> aideologia <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de mercado aplica<strong>da</strong> ao domínio <strong>da</strong> arte, nodesignado «pós-modernismo», aplicação essa provin<strong>da</strong> do desfazamentoentre o modernismo na arte e a moderni<strong>da</strong>de política, económica e social.No âmbito <strong>da</strong> arte, como em outr<strong>os</strong>, olhar o passado pode tornar-secontraproducente e enganador, na medi<strong>da</strong> em que, pela dinâmica derecuperação que implica, induz à convicção de um falso avanço ouprogresso, o que, no dizer de Gérard Conio, em L´Art contre les masses, 112vem impedir a lucidez crítica e autoreflexiva do caminho que deve construiro futuro sem cair na vulgari<strong>da</strong>de de n<strong>os</strong>tálgicas repetições. Ao ser humanode hoje interessa, sobretudo, o hoje e o amanhã, ou seja, uma certa hipótese112[2003:v e ss]; consulte-se, ain<strong>da</strong>, entrevista na web: http://www.voxpoetica.org/entretiens/conio.htm218


de resistência às transformações mundiais e culturais, ou seja, ain<strong>da</strong>,encontrar um ponto de referência para olhar o futuro sem ter que limitar-seapenas a lamentar ou copiar o passado.Ultrapassar <strong>os</strong> obstácul<strong>os</strong> que são, por um lado, a herança do passado,e, por outro lado, a op<strong>os</strong>ição à moderni<strong>da</strong>de social e política - é sob estaperspectiva individualizante de desejo de libertação de uma criação artísticae de defesa <strong>da</strong> poesia e do seu fazer como valor espiritual acessível, contra omaterialismo social, que n<strong>os</strong> interessa ler a poesia como criativi<strong>da</strong>deendógena e individualizadora, e não como especulação exógena colectiva.No entanto, a expressão poética reflecte sempre, tal como outraexpressão artística, a movimentação de um sistema de acção colectivo queengloba, por exemplo, dimensões políticas ou sociais. N<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta esetenta, o escritor, como indivíduo, tende, de certo modo, a apagar-se para<strong>da</strong>r lugar a uma espécie de parte colectiva de empenho de trabalho degrupo,a que não foram alheias razões de intervenção política, o que levou,julgam<strong>os</strong>, pelo men<strong>os</strong> em parte, à recusa <strong>da</strong> subjectivi<strong>da</strong>de, relevante napoesia. É por isso que, em Portugal, a produção poética, sobretudo após o25 de Abril de 1974, tem vindo a demonstrar, nas suas mais diversasrealizações, clar<strong>os</strong> indíci<strong>os</strong> de uma certa desorientação que espelha tanto asituação sócio-política do país como a crise generaliza<strong>da</strong> do pensamento, <strong>da</strong>actuação económica e <strong>da</strong> cultura, não exclusivamente portuguesas, nãoapenas ocidentais, mas até, também, mundiais.O resultado <strong>da</strong> situação acima menciona<strong>da</strong> foi, sobretudo n<strong>os</strong> an<strong>os</strong>oitenta, o de uma poesia mais desprovi<strong>da</strong> de certezas ou orientaçõesdefini<strong>da</strong>s, cujo provável denominador comum terá sido o retorno a umclassicismo conceptual que se adivinhava já, apesar <strong>da</strong> anterior ap<strong>os</strong>ta nanovi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> poesia experimental ou <strong>da</strong> vertente de poesialinguística, maioritariamente n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta. Recuem<strong>os</strong>, pois, pormoment<strong>os</strong>, até à indiscutível baliza que constituiu o 25 de Abril de 1974 emPortugal, pois é a partir desta <strong>da</strong>ta que <strong>os</strong> poetas portugueses mais sentem o219


impulso ideológico que - agora não aprisionado e sem desculpas - deviasurgir, sem constrições, à luz do dia.Não querem<strong>os</strong> deixar de mencionar o trabalho poético de escritorescomo Manuel Alegre, Natália Correia, António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a, João Rui deSousa, Casimiro de Brito ou J<strong>os</strong>é Manuel Mendes, entre muit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, queantes já <strong>da</strong> revolução de Abril publicavam text<strong>os</strong> de ideologia anti-fascista eque contribuíram, como vates interventores, para a libertação <strong>da</strong> poesia sobas restrições do fascismo. Querem<strong>os</strong>, no entanto, e de sobremaneira, realçarque, passa<strong>da</strong> a euforia revolucionária, esses poetas se vão progressivamenteinserir numa talvez um tanto disfórica ver<strong>da</strong>de humana que se imiscui navisão ilumina<strong>da</strong> e profética do desejo de mu<strong>da</strong>nça, expresso na poesia destespoetas. Na sua realização global, a poesia referi<strong>da</strong> vai construindo econstituindo uma nova visão <strong>da</strong> poesia e do mundo que havia de serexplora<strong>da</strong> no pós-25 de Abril. Manuel Frias Martins, em 10 an<strong>os</strong> depoesia em Portugal / 1974-1984 / leitura de uma déca<strong>da</strong> 113 afirmou a estepropósito:Mais do que um conhecimento do presente emliber<strong>da</strong>de, a poesia d<strong>os</strong> militantes polític<strong>os</strong> antifascistasoferece-se como a memória desse presente. É uma poesia degesta heróica que nós pressentim<strong>os</strong> em ca<strong>da</strong> vocábulo, em ca<strong>da</strong>emoção mol<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo intelecto, ou, mais frequentemente,derramando na linguagem o ímpeto de justiça, de liber<strong>da</strong>de e as(des)razões <strong>da</strong> opressão. 114Não deixa de ser curi<strong>os</strong>o que as razões aponta<strong>da</strong>s por Frias Martins,em relação à produção poética do segundo quinquénio d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, eque realçam «tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> text<strong>os</strong> afirmativ<strong>os</strong> <strong>da</strong> rep<strong>os</strong>ição no palco <strong>da</strong>História do drama do homem individual em luta pela sua própria113 [1985:18]114 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.220


dignificação social», 115 voltem, cerca de vinte an<strong>os</strong> depois, a fazer-se sentircomo objectiv<strong>os</strong> prementes <strong>da</strong> poesia, desta feita não apenas em Portugalmas também noutr<strong>os</strong> países, face ao inimigo comum chamado globalização.A poesia deste período, e embora por razões diferentes, sai d<strong>os</strong>círcul<strong>os</strong> elitistas ocult<strong>os</strong> para a vi<strong>da</strong> quotidiana, é canta<strong>da</strong> e vivi<strong>da</strong>, contahistórias - então de liber<strong>da</strong>de e libertação, agora do quotidiano - numalinguagem que se simplifica para que o povo facilmente a compreen<strong>da</strong>. Nãoestam<strong>os</strong> muito longe d<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> <strong>da</strong> Expansive Poetry, n<strong>os</strong> E.U.A d<strong>os</strong>an<strong>os</strong> oitenta, ou <strong>da</strong> tónica na narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa d<strong>os</strong>an<strong>os</strong> mais recentes. Mas que aconteceu de permeio?Nem dez an<strong>os</strong> haviam decorrido após a Revolução, e como estávam<strong>os</strong>já longe do di<strong>da</strong>ctismo e <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de popular de um J<strong>os</strong>é Carl<strong>os</strong> Ary d<strong>os</strong>Sant<strong>os</strong>. Curi<strong>os</strong>amente, dez an<strong>os</strong> mais e esse di<strong>da</strong>ctismo, essa simplici<strong>da</strong>de,seriam renovad<strong>os</strong>, em contexto e com objectiv<strong>os</strong> pragmátic<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> mascom a intenção pragmática de maior divulgação e acessibili<strong>da</strong>de, emboracom objectiv<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>..O pragmatismo e o di<strong>da</strong>ctismo ideológico-polític<strong>os</strong> pré e pósrevolucionári<strong>os</strong>depressa se esgotam no que de prática ideológica e difusãopanfletária haviam sido úteis. Consequentemente, tanto o espaço <strong>da</strong> páginado poema como <strong>os</strong> jog<strong>os</strong> <strong>da</strong> sua linguagem não podem já ser retomad<strong>os</strong>como desinibidores de um cansaço que pouco diálogo receptor provocara.Quanto a<strong>os</strong> leitores, ca<strong>da</strong> qual está mais empenhado em provar realizações edimensões de activi<strong>da</strong>de e lugar na nova socie<strong>da</strong>de, mais ou men<strong>os</strong> iludid<strong>os</strong>ou desiludid<strong>os</strong> com o desenvolver d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong>. E a poesia voltaria aviver, quase exclusiva e predominantemente, n<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> fechad<strong>os</strong> d<strong>os</strong>mei<strong>os</strong> académic<strong>os</strong>, crític<strong>os</strong> e especializad<strong>os</strong>. Ca<strong>da</strong> vez mais o ideológico, <strong>os</strong>ocial, o político e, até, o ético, ou desaparecem do poema, ou o sustentamatravés do humor, <strong>da</strong> ironia ou <strong>da</strong> paródia, ou o arreigam em suportes de115 [1985:19]221


ecuperação. Estam<strong>os</strong> a caminho <strong>da</strong> controvérsia sobre a existência ou nãode um pós-modernismo desinibidor de um cansaço pós-revolucionário quepouco diálogo provocara aquando <strong>da</strong> sua recepção.G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de exemplificar brevemente o percurso a que aludim<strong>os</strong>através do confronto de poemas de Manuel Alegre e de António Ram<strong>os</strong>R<strong>os</strong>a, 116 escrit<strong>os</strong> antes e após o 25 de Abril. Assim, seleccionám<strong>os</strong>, deManuel Alegre, primeiramente as duas últimas estrofes de «Bicicleta derecad<strong>os</strong>», de Praça <strong>da</strong> Canção, de 1965, 117 e em segui<strong>da</strong> «Herberto Helderem visita», de Coimbra Nunca Vista, de 1995 118 :-----------------------------------------------------Desde o Minho ao Algarveeu vou pel<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>.E vêm homens perguntar se houve milagreperguntam pela chuva que já tar<strong>da</strong>perguntam pel<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> que foram à guerraperguntam pelo sol perguntam pela vi<strong>da</strong>e vêm homens espantad<strong>os</strong> às janelasouvir o meu recado ouvir minha canção.Porque eu trago notícias de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> filh<strong>os</strong>eu trago a chuva e o sol e a promessa d<strong>os</strong> trig<strong>os</strong>e um cesto carregado de vindimaeu trago a vi<strong>da</strong>na minha bicicleta de recad<strong>os</strong>atravessando a madruga<strong>da</strong> d<strong>os</strong> poemas116 Tanto Manuel Alegre como António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a escreveram text<strong>os</strong> paradigmátic<strong>os</strong> dopercurso de um fazer que pretendem<strong>os</strong> exemplificar. Justificam<strong>os</strong> a exclusão de tant<strong>os</strong>outr<strong>os</strong> text<strong>os</strong> e de tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> autores, que com estes constituem paradigma, não só pelopróprio carácter exemplar e pontual que, no contexto do presente capítulo, representam,como também por uma n<strong>os</strong>sa preferência pessoal, <strong>da</strong> qual, voltam<strong>os</strong> a salientar, nãoabdicám<strong>os</strong> no decorrer do presente trabalho.117 [1997:49], ed. orig. 1965118 [1995:71]222


É bem visível, neste poema, a dinâmica renovadora do arauto quecruza sem cesar a «madruga<strong>da</strong> d<strong>os</strong> poemas», levando «recad<strong>os</strong>» e«canções», numa projecção de movimento físico, tornado circular pelabicicleta que percorre o país, e de movimento mental pelas promessas depaz, «trigo» e «vi<strong>da</strong>». A este movimento quase centrífugo corresponde omovimento centrípeto <strong>da</strong> resp<strong>os</strong>ta d<strong>os</strong> que, imóveis como o seu país, oarauto esperam para se lhe confessar, para saber esperanças e novas d<strong>os</strong> seusmund<strong>os</strong> perdid<strong>os</strong> ou ansiad<strong>os</strong>. É níti<strong>da</strong>, n<strong>os</strong> dois últim<strong>os</strong> vers<strong>os</strong>, a síntese <strong>da</strong>intervenção goethiana do poeta, que alia o fazer <strong>da</strong> poesia a objectiv<strong>os</strong> deíndole interventiva político-social.Paradigma de tant<strong>os</strong> poemas escrit<strong>os</strong> em 1965 na Praça <strong>da</strong> Canção, eem 1967, em O Canto e as Armas, a poesia de Manuel Alegre é um d<strong>os</strong>lugares onde se processa, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta e oitenta, a transição para umapoética mais afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong> esperança e <strong>da</strong> convicção <strong>da</strong> intervenção política,como germen de liber<strong>da</strong>de, e mais próxima <strong>da</strong> memória d<strong>os</strong> lugares, <strong>da</strong>reflexão metalinguística e <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de, como genoma derevivificação cultural e poética, de que é exemplo o já referido poema«Herberto Helder em visita», de Coimbra Nunca Vista, de 1995:Pela noite adiante ele traziaUma metáfora c<strong>os</strong>mopolitaEra a Europa e o poema onde floriaR<strong>os</strong>a a r<strong>os</strong>a a palavra nunca escrita.Comboi<strong>os</strong> de Antuérpia vadiagemDo ser como pastor de poesia.Ou Bruxelas <strong>da</strong> noite - essa viagemOnde o poema a si mesmo se fazia.Pela noite adiante de repenteCoimbra era uma Europa loucamentetoca<strong>da</strong> por um ritmo por um rito.223


Era o oculto tremor de uma grafia.Pela noite adiante ele escreviar<strong>os</strong>a a r<strong>os</strong>a o poema nunca escritoPara além <strong>da</strong> transferência <strong>da</strong> temática <strong>da</strong> ideologia para umadimensão estética e priva<strong>da</strong>, que convoca a memória <strong>da</strong>s pessoas e lugares,parece-n<strong>os</strong> níti<strong>da</strong> a dimensão intertextual, não apenas no uso <strong>da</strong> citação maspelo que n<strong>os</strong> parece implicitamente existir de evocação, sobretudo, de OsPass<strong>os</strong> em Volta, de Herberto Helder. Não querem<strong>os</strong> deixar de referir ocampo lexical construído a partir <strong>da</strong>s palavras «metáfora», «poema»,«palavra», «escrita», «poesia», «escrevia» que indicia uma poética inscritano próprio poema e que, em outr<strong>os</strong> poemas de Coimbra Nunca Vista,adquire uma dimensão mais evidentemente metalinguística.Contrariamente a Manuel Alegre, António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a cedoabandona uma poesia cuja temática está liga<strong>da</strong> à intervenção contra ainjustiça fascista, presente sobretudo em O Grito Claro, 119 de 1958 eViagem através de uma nebul<strong>os</strong>a, 120 de 1960, encaminhando-a para aansie<strong>da</strong>de do fazer poético e do encontro com a palavra e o seu espaço, evindo a produzir uma obra de cariz metalinguístico <strong>da</strong>s mais regulares evinca<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s últimas três déca<strong>da</strong>s do século. Escolhem<strong>os</strong>, como exemplo <strong>da</strong>sua primeira e curta fase inicial, um pequeno excerto do longo eepocalmente paradigmático poema «O boi <strong>da</strong> paciência»: 121Noite d<strong>os</strong> limites e <strong>da</strong>s esquinas n<strong>os</strong> ombr<strong>os</strong>Noite por de mais aguenta<strong>da</strong> co fil<strong>os</strong>ofia a maisQue faz o boi <strong>da</strong> paciência aqui?Que fazem<strong>os</strong> nós aqui?Este espectáculo que não vem anunciado119 [2001:15 a 26]120 [2001:27 a 36]224


tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> dias cumprido com as leis do diabotod<strong>os</strong> <strong>os</strong> dias metido pel<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> adentroNuma evidência que n<strong>os</strong> cegaAté quando?-------------------------------------------------------No entanto, no mesmo livro, já António Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a escrevia: 122Em qualquer parte um homemdiscretamente morre.Ergueu uma flor.Levantou uma ci<strong>da</strong>de.Enquanto o sol perduraou uma nuvem passasurge uma nova imagem.Em qualquer parte um homemabre o seu punho e ri.Estava aberto o caminho para Estou vivo e escrevo sol, publicado em1966, destinado a ser um d<strong>os</strong> marc<strong>os</strong> <strong>da</strong> obra de Ram<strong>os</strong> R<strong>os</strong>a e cujo título,se n<strong>os</strong> é permiti<strong>da</strong> a sinédoque, iluminaria to<strong>da</strong> a sua obra futura com odizer do silêncio e do sol <strong>da</strong>s palavras.Pretendem<strong>os</strong>, com o exemplo de poemas destes dois autores, realçarduas p<strong>os</strong>turas op<strong>os</strong>tas na poesia que rodeou a Revolução de Abril e a que amaioria d<strong>os</strong> poetas não fugiu, mais ou men<strong>os</strong> aberta e empenha<strong>da</strong>mente quef<strong>os</strong>se mas, também, que a tod<strong>os</strong> acabou por projectar para sen<strong>da</strong>s outras,passado que foi o período pós-revolucionário.121 [2001:23], orig. 1958.225


3. DIMENSÃO CRÍTICA, METALINGUÍSTICA E PICTÓRICAO cansaço <strong>da</strong> poesia nas suas temáticas social, política e fil<strong>os</strong>ófica nãooriginou apenas o desvio para o trabalho com uma temáticametalinguística, que corresponde a uma simbi<strong>os</strong>e entre o discurso teórico eo discurso estético, e que havia de prolongar-se na poesia portuguesa aolongo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa, corporizando mesmo, no poema, paraalém de discurso teórico, por vezes um discurso crítico. As definições depoética, poema, poeta, escrita, retórica, escritor, leitor e outras estãopresentes com relevância em grande parte d<strong>os</strong> autores consagrad<strong>os</strong> d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>oitenta e noventa, de tal modo que a n<strong>os</strong>sa escolha tem, forç<strong>os</strong>amente, umcunho restritivo e uma marca pessoal. Assim, transcrevem<strong>os</strong> dois excert<strong>os</strong>do poema monoestrófico de Nuno Júdice, «Princípio de Retórica», de AsRegras <strong>da</strong> perspectiva, de 1990: 123Na música, a perfeição tem o nome deharmonia; pelo men<strong>os</strong> na estética clássica,cujo cânone obedece ás leis <strong>da</strong> natureza. Napoesia, porém, essa regra nem sempre severifica; e ver-se-á, na análise do poema,a dissonância entre as palavras e o mundoquebrar a vontade <strong>da</strong> beleza, e trazerde volta a inquietação do inacabado, oudo que nunca chega a começar. [...]----------------------------------------------------[...] Não há aqui repetição, mas a n<strong>os</strong>talgiado único, um arquétipo que se confunde com a imageminscrita no fundo <strong>da</strong> memória, de que to<strong>da</strong>s122 [2001:17], orig. 1958.123 [2000:380]226


as outras constituem o reflexo degra<strong>da</strong>do. O verso,porém, não faz senão romper essa totali<strong>da</strong>de,lembrando na insistência <strong>da</strong> sílaba apura imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de regresso; e na matériaverbal <strong>da</strong> estrofe encontro, mais do queo presente, um r<strong>os</strong>to usadocomo o amor que me obriga ao passado.É aparentemente óbvia a abor<strong>da</strong>gem, no poema, <strong>da</strong> enumeração dequestões pertencentes habitualmente, no século vinte, ao domínio <strong>da</strong> teoria<strong>da</strong> literatura, como a noção de estética ou de cânone, a musicali<strong>da</strong>de doverso, a análise literária, a representação em poesia, a relação entre som esentido, <strong>os</strong> arquétip<strong>os</strong>, o verso e a métrica, <strong>os</strong> camp<strong>os</strong> lexicais. No entanto, esobretudo na metáfora d<strong>os</strong> últim<strong>os</strong> dois vers<strong>os</strong>, o leitor é livre de descobrirno poema uma poética do próprio poema, que a menciona, ou, por exemplo,relacionar analogicamente o poema com as poéticas d<strong>os</strong> escritores anterioresao século vinte e, então, reler o poema com o sorriso de quem recria umatripla dimensão muito sua.A utilização <strong>da</strong> metalinguagem na poesia portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitentae noventa espelha, talvez, uma necessi<strong>da</strong>de de reflectir sobre o poema ereflectir sobre a poesia, mas também a premência de reflectir sobre acultura, de pensar experiências estéticas paralelas, na literatura do passadoou numa relação interartes, o que constituíu uma <strong>da</strong>s variações preferi<strong>da</strong>spel<strong>os</strong> poetas no uso do recurso à intertextuali<strong>da</strong>de, ímplicita ou explícitano poema. A este propósito, refere Manuel Frias Martins em 10 an<strong>os</strong> depoesia em Portugal / 1974-1984 / leitura de uma déca<strong>da</strong>: 124Remeter o acto criador para o espaço envolvente <strong>da</strong> suaconsciência teórica, bem como para o suporte intelectual do seu124 [1985:100]227


substrato teórico, equivale a legitimar a comp<strong>os</strong>ição de ca<strong>da</strong>poema como se de uma arte poética se tratasse.[...] É este entendimento <strong>da</strong> escrita e do seu modelobiológico que assegura a uni<strong>da</strong>de do cruzar do poema com areflexão teórica. 125Esta síntese <strong>da</strong> atitude referi<strong>da</strong> por nós a propósito do uso <strong>da</strong>metalinguagem pode perspectivar-se, também, numa relação com odiscurso estético no poema, por vezes criando-se mesmo o poema a partir deuma realização estética, seja pictórica ou outra. O texto surge, também, efrequentemente, subvertido no seu plano de especifici<strong>da</strong>de estética atravésde procediment<strong>os</strong> retóric<strong>os</strong> conectad<strong>os</strong> com a descrição, a dramatização ou avisualização, como o recurso ao diálogo, à ekphrasis ou à citação. Estapreocupação implícita parece-n<strong>os</strong> men<strong>os</strong> uma realização pós-moderna - umavez que transforma e nega o reconhecimento <strong>da</strong> forma estética de per si - eser mais, já, o denunciar <strong>da</strong> aproximação reconciliadora <strong>da</strong> poesia com anarrativa e de um sujeito que se conta e conta o mundo a um receptorhodierno, que com ele partilhe fact<strong>os</strong> e emoções contad<strong>os</strong>. De momento,g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de m<strong>os</strong>trar o início de «Pequena homenagem à pintura», 126 deFernando Guimarães, em Limites para uma árvore:ELA - Se olhares para mim, o que podes ver?ELE - Eu não te vejo porque procuro apenas as cores que sei hámuito serem aquelas que me podes <strong>da</strong>r. Espero por elas. As minhasmã<strong>os</strong> procuram-nas. Afastam tudo o que as oculta. As folhas, onevoeiro, alguns vult<strong>os</strong>. Também <strong>os</strong> cortinad<strong>os</strong>, <strong>os</strong> vestid<strong>os</strong>.ELA - Se é assim, o que pode então ser visto?125 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.126 [2000:101 a 103]228


ELE - Outras folhas, outr<strong>os</strong> vestid<strong>os</strong>. Mas esses é como se f<strong>os</strong>semteus, principiam a pertencer-te.ELA - É assim que a tua mão começa a tocar nessa tela...-----------------------------------------------------------------------O recurso ao diálogo no poema, simultaneamente miscigenizante, quergenológica quer linguisticamente, permite um efeito como que de umapoética lírica <strong>da</strong> pintura e <strong>da</strong> poesia, p<strong>os</strong>ta em cena no poema por umaargumentação quase socrática mas redimensiona<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong> <strong>da</strong>ssensações e d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> que o pensar a arte implica. Também afocalização numa produção estética pictórica pode, por vezes, servir deimpulso para a criação do poema, como no «Retrato 127 de la Marquesa de laSolana, de Goya», 128 em Uso de Penumbra, de Fernando Echevarría, poemado qual citam<strong>os</strong> a penúltima <strong>da</strong>s treze estrofes:12O preto em violeta se conturba.Depois d<strong>os</strong> pés, <strong>da</strong> orla de trabalho,arqueia-se a fronteira de fractura.Ou será o mundo que chegou ao cabopara poder desprender a suaforma, sem outra distracção de lado?É de aí que se modulamR<strong>os</strong>as, cinzent<strong>os</strong>, gratidão de branc<strong>os</strong>.E aí também que a ameaça incuba.E a form<strong>os</strong>ura se inicia em an<strong>os</strong>.127 O poema é precedido de uma reprodução do referido retrato de Goya.128 [1995:73 a 82]229


No caso deste poema, o seu leitor tem, à parti<strong>da</strong>, o contar <strong>da</strong>visualização do retrato referido. Mas como pode um poema, através depalavras, traduzir uma experiência espacial? Se se tratar, por exemplo, deum objecto, qual a proporção ou porção do objecto que será referi<strong>da</strong>?Explícita ou implicitamente? Por que palavras e através de que model<strong>os</strong> ousubterfúgi<strong>os</strong> retórico-estilístic<strong>os</strong>? E ain<strong>da</strong>: de que recurs<strong>os</strong> <strong>da</strong> narrativa ou<strong>da</strong> lírica pode o poema apropriar-se para transla<strong>da</strong>r, como que por magia,um sistema semiótico no qual imperam as dimensões bi ou tridimensionaispara um outro sistema semiótico no qual impera a relação decorrespondência entre o som e o sentido, na componente imagética <strong>da</strong>palavra?Como podem, enfim, as palavras do poema, sendo sign<strong>os</strong> arbitrári<strong>os</strong>,traduzir o signo natural de um objecto pertencente à reali<strong>da</strong>de factual?Como pode a palavra imaterializar a matéria? Ou, resumindo estas diversasquestões, como pode um poema ser um poema pictórico, representar oirrepresentável, e fazer representar essa «representação do nãorepresentável»na visão de narrativa pictórica <strong>da</strong> mente d<strong>os</strong> seus leitores?Murray Krieger, que se interessou pelo princípio ekphrástico napoesia <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de desde <strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, define ekphrasis como «theillusionary representation of the unrepresentable, even while thatrepresentation is allowed to masquerade as a natural sign, as if it could be anadequate substitute for the object». 129 Sublinham<strong>os</strong> a expressão«masquerade as a natural sign» porque n<strong>os</strong> parece que é a que vai maisexplicitamente ao encontro <strong>da</strong> ideia, defendi<strong>da</strong> por Krieger, <strong>da</strong> ekphrasiscomo milagre e miragem: milagre por a linguagem conseguir traçar aquiloque parece ser o instante em que uma visão parou; miragem porque a ilusãodessa visão pode ser sugeri<strong>da</strong> pelas palavras de um poema.129 [1992:xiv], ed. orig. 1976.230


Passam<strong>os</strong> a explicar este ponto partindo de um d<strong>os</strong> poemas de AVoz do Olhar, de Albano Martins, livro que alterna fotografias de object<strong>os</strong>,murais, esculturas ou pinturas com poemas que as descrevem, e cujo títulopoderia ser, só por si, uma definição do princípio ekphrástico comorepresentação poética <strong>da</strong> arte visual. O poema que abaixo transcrevem<strong>os</strong>é precedido, no livro, por uma fotografia colori<strong>da</strong>, intitula<strong>da</strong>, tal como opoema, «Coiote uivando», 130 e referi<strong>da</strong> como sendo um pormenor do escudodo rei asteca Ahuizol:Dele não se diráque é uma aveempluma<strong>da</strong>. Nas patas,cintila o ouro<strong>da</strong>s unhas onde deviamassentar as penas. E no brilhod<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> e nomovimento <strong>da</strong> boca espreguiça-seo dorso alado <strong>da</strong> serpenteque nele dorme. São assimas cobras: escondem, ou antes,disfarçam o seu venenonas coresde que se vestem. E,Se abrem a boca, devoramtodo o azul e vermelho<strong>da</strong>s paletas. E não conhecemoutras tintas. O ouroé apenas o disfarce<strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de, o vernizdo furor.130 [1998:95]231


Podem<strong>os</strong> bem imaginar o leitor a avançar e recuar de uma página paraa outra, procurando em vão na imagem cert<strong>os</strong> element<strong>os</strong> do poema outentando encontrar na imagem um pormenor, significativo para ele, mas queo poeta abandonara. Por exemplo, a serpente que domina o poema pode ounão ser li<strong>da</strong> visualmente na representação pictórica do coiote. Ou poder-se-áver neste uma ave empluma<strong>da</strong>, cuja existência é nega<strong>da</strong> peremptoriamenteno poema. Quanto à cor, o poema menciona «turquesas», «obsidianas»,«mar», «esmeral<strong>da</strong>s», mas acrescenta, como que anulando as coresenuncia<strong>da</strong>s: «se abrem a boca, devoram / todo o azul e vermelho / <strong>da</strong>spaletas». Por outro lado, enfatiza anaforicamente o «ouro», hiperbolizadoain<strong>da</strong> pelo uso <strong>da</strong>s palavras «brilho» e «verniz». Quanto ao relevo, a leiturado poema aponta para a tridimensionali<strong>da</strong>de do animal vivo - e mais, emmovimento -, mas não para uma dimensão de baixo relevo. É porque o leitorse encontra na p<strong>os</strong>se simultânea <strong>da</strong> reprodução fotográfica e do poema quefica clara a noção de «representação ilusória do irrepresentável», o que nãoimpede, paralelamente, uma leitura polissémica do poema, isolado ou nãodo seu referente factual de representação.Mas, como afirma Manuel Frias Martins, em As trevas inocentes, apropósito de A Voz do Olhar, de Albano Martins, «o alcance artístico destelivro reside exactamente no modo como são gerid<strong>os</strong> <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> paradox<strong>os</strong><strong>da</strong> representação, através de palavras, <strong>da</strong>quilo que mais intensamente só oolhar pode captar». 131Esta preocupação implícita com a descrição, a m<strong>os</strong>tra dramática ouuma ekphrasis revisita<strong>da</strong> parece-n<strong>os</strong>, pois, como anteriormente afirmám<strong>os</strong>,denunciar já uma crescente aproximação <strong>da</strong> poesia com a narrativa,contemplando o sujeito inserido na reali<strong>da</strong>de quotidiana, em sintonia com <strong>os</strong>seus object<strong>os</strong>, em interacção com as formas de expressão estética que delafazem parte.131 [2001:180]232


Assim, adensa-se na produção poética d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> mais recentes <strong>os</strong>ujeito que se assume ou se apaga, que se conta e conta o mundo em quese situa, dirigindo-se explícita ou implicitamente a um receptor seucontemporâneo que com ele é sup<strong>os</strong>to partilhar na carne <strong>os</strong> fact<strong>os</strong> e emoçõescontad<strong>os</strong>, atitude esta defendi<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, n<strong>os</strong>E.U.A., e que no capítulo V abor<strong>da</strong>rem<strong>os</strong>.Também o Passado, com a sua História e <strong>os</strong> seus <strong>os</strong> Mit<strong>os</strong>, veiopovoar as páginas brancas <strong>da</strong> poesia, sobretudo a partir de finais d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>setenta. A poesia dita «culta» ressurge <strong>da</strong>s cinzas <strong>da</strong> pós-revolução e éesqueci<strong>da</strong> a desvalorização do livresco com objectiv<strong>os</strong> de acessibili<strong>da</strong>derevolucionária. As poéticas opacizam-se e, ou inovam em caminh<strong>os</strong> deexperimentalismo, ou envere<strong>da</strong>m pela recuperação de model<strong>os</strong> tradicionais,ou amb<strong>os</strong> em conjugação, mas sem ver<strong>da</strong>deiramente assumir a suarecuperação, tol<strong>da</strong>ndo-<strong>os</strong> de humor ou de contemporanei<strong>da</strong>de, mas só sereconhecendo num discurso novo, progressivamente, ao logo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>oitenta e, sobretudo, na déca<strong>da</strong> de noventa, na representação do mundoque lhe é contemporâneo mas que não deixa, por tal, de se conectar com aHistória e o Mito. Dessa manutenção de passad<strong>os</strong> que se articulam com opresente é exemplo o poema «Personna», 132 de Ilhas, de Sophia de MelloBreyner Andresen:Mitológica personagem - pareceUm falcão do EgiptoSob seu lógico discurso permaneceIntacto o não ditoMas algo de falcão nele se inscreveHieróglifo indecifrávelE o deus que ele foi ou nele esteveDesarticula seu olhar instável233


O título do poema é a chave que abre a dimensão dramática <strong>da</strong>ambigui<strong>da</strong>de temporal e mundivivencial, percepciona<strong>da</strong> no ponto decruzamento do passado com o presente, entre um «lógico discurso» e um«hieróglifo indecifrável». A aliança transformadora do passado históricoe/ou do mito com o quotidiano vivido surge também, por vezes, em outr<strong>os</strong>poemas e poetas, de um modo mais subtil, como que envergonhado ouescondido, mas quase sempre articulando passado e presente através <strong>da</strong>descrição mais ou men<strong>os</strong> explícita de uma cena que, por vezes, se aliamesmo a uma reflexão metalinguística sobre poética, bem como umaintertextuali<strong>da</strong>de modelar, de que é exemplo o poema «De viagens», 133 deOutras Canções, de Luís Filipe Castro Mendes:Um templo. Um museu abandonado.Será de viagens feita a poesia?Ou tão só d<strong>os</strong> seus rest<strong>os</strong>, <strong>da</strong> memóriade term<strong>os</strong> sido a morte e o próprio dia?Como o sol a morrer noutra baía,desfeito em mar e espuma, redençãode outra luz que por dentro n<strong>os</strong> traía,de outra luz que tecia a solidão,assim faço poesia <strong>da</strong> viagem,como se na viagem <strong>da</strong> poesiacoubesse inteira e nua a n<strong>os</strong>sa imageme um arremedo irónico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.(Um templo. Um museu abandonado.Um pôr-do-sol em estampa colori<strong>da</strong>)132 [1992:19]234


Crem<strong>os</strong> que, neste poema, se inter-relacionam as várias perspectivaspor nós anteriormente aponta<strong>da</strong>s: o «templo» do passado que resiste aotempo até ao «fazer poesia» de um presente que um dia será passado; ou <strong>da</strong>definição de «viagem <strong>da</strong> poesia» à interrogação d<strong>os</strong> seus «rest<strong>os</strong> <strong>da</strong>memória». Mas, não estivessem <strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa conectad<strong>os</strong> com onomeado pós-modernismo, também na poesia se revela a subversãorebelde e paródica sobre o mito e a história, que irreverentementedesconstrói a experiência cultural em geral e que chega a configurar umaparódia de si mesma, como na poesia de Adília Lopes, <strong>da</strong> qualseleccionám<strong>os</strong> um poema de Sete ri<strong>os</strong> entre camp<strong>os</strong>: 1341(anti-Camões)É bomTu não seresEuÉ bomEu ser euE tu seres tuA madruga<strong>da</strong>Não separaO amadoDa ama<strong>da</strong>Não separaNa<strong>da</strong>Que o livroVá porÁgua abaixoMas que marid<strong>os</strong>Me aconteçam133 [1998:20]134 [1991:72,73]235


2(anti-Ricardo Reis)O rioÉ bomPara na<strong>da</strong>rE as floresPara <strong>da</strong>rO restoSão cantigasCasa-te com LídiaTem bébésPassa a lua-de-melNa Grécia3(pró-Meendinho)Na ermi<strong>da</strong>De São SimeãoDar-te-eiA minha mãeMeu barqueiroO jogo de referências intertextuais com o soneto de Camões ou com atemática de Ricardo Reis é negado pela subversão paródica em função deuma mundivivência quotidiana actual. No entanto, a recuperação lírica <strong>da</strong>cantiga de amigo medieval vem trazer ao poema o sentimento que nas duasprimeiras partes lhe fora negado pela paródia, o que, paradoxalmente, acabapor remeter para um efeito de recuperação do sentimento e <strong>da</strong> emoção queatinge, retr<strong>os</strong>pectivamente, todo o poema.236


Também na poesia de Alberto Pimenta podem<strong>os</strong> encontrar esta duplasubversão entre o paródico e o lírico em Read & mad, 135 de quetranscrevem<strong>os</strong> as duas primeiras <strong>da</strong>s oito estrofes do poema IV:Err<strong>os</strong> meus, má fortuna, amor ardente...Não sei. falta-me um sentido, um tactoPara a vi<strong>da</strong>, para o amor, para a glória.Tudo passei: mas tenho tão presenteA grande dor <strong>da</strong>r cousas que passaram!Para que serve qualquer históriaOu qualquer facto?Aqui é a intertextuali<strong>da</strong>de com a lírica camoniana que permite umjogo ambíguo que se confessa literário e que ri <strong>da</strong> história <strong>da</strong> literatura aomesmo tempo que dela se aproveita para deixar um rasto de sentimentolírico. Contudo, na obra de Joaquim Manuel de Magalhães, e já em mead<strong>os</strong>d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, a simbi<strong>os</strong>e entre a referência histórica, o mito, oparódico e o lírico opera-se também através de referenciali<strong>da</strong>desintertextuais mas articula<strong>da</strong>s numa dimensão mais próxima do pastiche, eacompanha<strong>da</strong> de narrativi<strong>da</strong>de, como no longo poema de índole narrativa«Galante, Vagabundo, Rufião», 136 de segred<strong>os</strong>, sebes, aluviões, do qualapresentam<strong>os</strong> um excerto:IEstava o galanteao mar enc<strong>os</strong>tadoas aves do céuquase amortalhado.135 [1990:261]136 [1985:44 a 55]237


Com <strong>os</strong> bols<strong>os</strong> ras<strong>os</strong>do lixo <strong>da</strong>s ruasa boquilha azulno dedo anelado.Tinha as pernas quentesas meias de lãestava o galante<strong>da</strong> cor <strong>da</strong> manhã.As on<strong>da</strong>s batiameu ia perdê-lo.------------------------------Ao longo do poema desenham-se como que duas histórias emparalelo: a do contar <strong>da</strong> vivência no mundo actual e a do contar <strong>da</strong> relaçãodessa vivência com uma vivência literária medieval. Um triplo subterfúgiopara escapar à morte, duplicando e entrelaçando as duas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des donarrar, e inserindo-as no lirismo para melhor as subverter mutuamente.3. SUBJECTIVIDADE E EXPERIÊNCIA DO CORPO:METAMORFOSESSituando-se contra a ironia, o riso e a paródia, sem relevantecomprometimento social e político, como <strong>os</strong> poemas anteriores o indiciam,e já bem na presença do sentimento que se não refugia na intertextuali<strong>da</strong>de,ressurge n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa o já anunciado sujeito de um lirismoque, ain<strong>da</strong> n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, quase se envergonhava de se assumir como tal,e se disfarçava romanticamente de liber<strong>da</strong>de formal, se mascaravasimbolicamente de poema em pr<strong>os</strong>a, a adivinhar já, na sua problemática238


existencial, uma vindoura maior libertação n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> recentes. G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong>de referir, a este propósito, Al Berto e Luís Miguel Nava pela aliança dolirismo ao poema em pr<strong>os</strong>a e à narrativi<strong>da</strong>de, e ain<strong>da</strong> pelo contributo queesta aliança traria para uma maior liber<strong>da</strong>de de diversi<strong>da</strong>de de escolha deprocediment<strong>os</strong> p<strong>os</strong>ta ao serviço <strong>da</strong> poesia. Do primeiro, escolhem<strong>os</strong> doisexcert<strong>os</strong> de O Medo, 137 diário que conta a história de uma escrita e quereinscreve a objectivi<strong>da</strong>de do tempo e do espaço narrativo numa dimensãopessoal de subjectivi<strong>da</strong>de lírica de modo a produzir um efeito de fusão docorpo-personagem com a acção e com a própria escrita:28 de maioo mar, vivem<strong>os</strong> em frente ao mar, aqui n<strong>os</strong> mantem<strong>os</strong>precariamente viv<strong>os</strong>, sem fascínio, sem project<strong>os</strong>, sem esperança,amamo-n<strong>os</strong>.quase anoiteceu, penso que não devia preocupar-me commais na<strong>da</strong> que não f<strong>os</strong>se escrever. Mas o silêncio donde a escritairrompe está muito perto <strong>da</strong>quilo que vivo, escrevo pouco, prefiroviver.A noite incendeia o lado esquivo do coração, ouço-meatentamente, como se morresse. Regresso a casa e à página embranco.29 de maioa manhã estilhaça-se em feixes de luz pelas frinchas <strong>da</strong>janela. Não estou aqui. Fumei ganzas até me sentir paralisado.Nenhum gesto é necessário, na<strong>da</strong> se move para além <strong>da</strong> pele, etudo se mantém vivo.Curi<strong>os</strong>amente, o facto de existir uma componente diarística nestestext<strong>os</strong> não provoca, como seria previsível, uma aproximação entre facto e137 [1985:267]239


ficção, julgam<strong>os</strong> que devido a<strong>os</strong> referentes <strong>da</strong> linguagem se aproximarem dereferentes não textuais ao mesmo tempo que se refere uma mediação líricaentre o sentir do «silêncio donde a escrita irrompe» e a descrição do próprioviver do processo <strong>da</strong> escrita, do pensar que a centralização não está em«mais na<strong>da</strong> que não f<strong>os</strong>se escrever». Esta mediação entre testemunhar aspróprias vivências e <strong>da</strong>s vivências do processo poético que veicula asprimeiras é acompanha<strong>da</strong> por uma tonali<strong>da</strong>de melancólica que «incendeia olado esquivo do coração» e que se projecta, estilhaça<strong>da</strong> em «feixes de luz»tanto sobre o sujeito que se assume como escritor em pleno processo deescrita como sobre o mundo que o rodeia e sobre o leitor, e que paira comoleve nuvem sobre to<strong>da</strong> a poesia de Al Berto.Curi<strong>os</strong>amente, é a presença dessa mesma melancolia que permiterelativizar a disforia, pois é contrabalança<strong>da</strong>, como no caso do n<strong>os</strong>soexemplo, pelo uso <strong>da</strong> descrição e <strong>da</strong> dramatização na euforia <strong>da</strong> temática <strong>da</strong>criação literária. Algo de semelhante se produz em poemas de Luís MiguelNava, em alguns d<strong>os</strong> quais o acto <strong>da</strong> escrita se torna cenário, ou em outr<strong>os</strong>,n<strong>os</strong> quais a metaforici<strong>da</strong>de lírica <strong>da</strong> linguagem impele para segundo plano adimensão narrativa, como em «Os prat<strong>os</strong> <strong>da</strong> balança», 138 de Poemas:Por entre as rochas um rapaz, nas mã<strong>os</strong> levando umabalança, avança em direcção ao mar. Vai procurá-lo, pesá-lo.Num d<strong>os</strong> prat<strong>os</strong>, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar,há-de trazer superfície a força <strong>da</strong>s entranhas e atrair o céu, háde-ofazer precipitar-se até com ele se confundir, e as própriasrochas através <strong>da</strong>s quais o rapaz segue hão-de pesar no pratoferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato <strong>os</strong>eu sorriso.A consciência de que o poema é um jogo de linguagem e demeteforici<strong>da</strong>de alia-se, neste poema, à descrição <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong>,240


simultaneamente a construindo e desconstruindo ao ritmo <strong>os</strong>cilante de umamágica balança que pudesse virtualmente pesar e equilibrar o sonho e avi<strong>da</strong>. Escrita e corpo, escrita e cenário, cenário e corpo ou corpo e naturezamedeiam-se e interpenetram-se n<strong>os</strong> poemas de Al Berto e Luís MiguelNava, abrindo caminho, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa, a uma poética do corpo.Nesta poética, querem<strong>os</strong> deixar, num lugar à parte, calmo e suave,Eugénio de Andrade e Herberto Helder, entre o corpo, a natureza e areflexão poética, já a caminho de uma poética <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de e doerotismo d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>, como podem<strong>os</strong> constatar no poema «Enquantoescrevia», 139 de Memória doutro rio, de Eugénio de Andrade:.Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-melentamente a mão direita. A noite chegava com essesantiquíssim<strong>os</strong> mant<strong>os</strong>; a árvore ia crescendo, escolhendo paradomínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmenteeu, este homem sem desej<strong>os</strong> de outro corpo estendido ao lado?Já não me lembro; passava <strong>os</strong> dias a dormir à sombra <strong>da</strong>quelaárvore; era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, epedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como apalma <strong>da</strong> mão. Isso pedia; como se tivesse sede.Escrita, corpo e natureza confundem-se na construção metonímica docrescimento <strong>da</strong> árvore que penetra o corpo a partir <strong>da</strong> mão e o p<strong>os</strong>sui, e nelese metamorf<strong>os</strong>eia, e com ele escreve e sente e reflecte e pede. Figurando ametamorf<strong>os</strong>e um processo de ruptura e de separação simultâneas queabrange sempre transformação, seja ela imediata ou, sobretudo, progressiva,não admira que ele surja ligado não só ao feérico, ao cabalístico e aoalquímico do dizer <strong>da</strong> natureza pela escrita de um corpo, mas também àliteratura em épocas de transição conecta<strong>da</strong>s com metamorf<strong>os</strong>es <strong>da</strong>s138 [1987:81]139 [1980:175]241


condições mundivivenciais. O poder de transformação <strong>da</strong>s fa<strong>da</strong>s, d<strong>os</strong>alquimistas e d<strong>os</strong> deuses transfere-se então para a palavra d<strong>os</strong> poetas que,como Herberto Helder, constroem e exibem a sua poética a partir do soprodivino ou cósmico <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong>s origens e <strong>da</strong> criação. A título de exemplo,um excerto do(s) longo(s) poema(s) que constroem Flash: 140O que está escrito no mundo está escrito de ladoA lado do corpo - e tu, pura alucinação <strong>da</strong> memória,Entra no meu coração como um braço vivo:O dia traz as paisagens de dentro delas, a noite é um grandeBuraco selvagem -E a voz agarra em todo o espaço, desde o epicentro às constelaçõesD<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> abert<strong>os</strong>: e irrompe o sangueDas imagens ferozes;--------------------------------------------------------------------------------aquilo que se escreve é o próprio corpo pregado como uma estrelaà púrpura <strong>da</strong>s madeiras, a<strong>os</strong> lençóisofuscantes chei<strong>os</strong> de sangue, de águamagnetiza<strong>da</strong> - [---]--------------------------------------------------------------------------------Também aqui a dimensão metamórfica se revela, mas na sua facetamais violenta, mais «selvagem», mais «feroz», atingindo directamente ocoração do sujeito, do corpo, <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> escrita, para depois seprojectar em ressonância n<strong>os</strong> object<strong>os</strong> íntim<strong>os</strong> e familiares. Alia-se porvezes, também, a um ritual quase místico-religi<strong>os</strong>o, como podem<strong>os</strong>encontrar frequentemente na poesia de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista ou de J<strong>os</strong>éTolentino Mendonça. Do primeiro, de Paixão e Cinzas, o poema«Ofício»: 141140 [2001:69,70]141 [1992:48]242


O meu salmo é um só verso despe<strong>da</strong>çado.Escrevo em prata ardente o ocaso <strong>da</strong>slitanias.A escuridão desce sobre a palavra e,como um presságio,o condor passa muito alto, para lá <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>.A cruz <strong>da</strong> n<strong>os</strong>sa morte vai à deriva pelascolinas.O ritual religi<strong>os</strong>o do «salmo», <strong>da</strong> «litania» e <strong>da</strong> «cruz» adquirem umadimensão em que a mística religi<strong>os</strong>a se transforma numa mitologiapessoal, feita de solidão melancólica e quase dolor<strong>os</strong>a, alia<strong>da</strong> à escrita,porque grava<strong>da</strong> «em prata ardente», sob a ameaça <strong>da</strong> «escuridão». Tanto areali<strong>da</strong>de vivencial ameaça<strong>da</strong> pela morte como a meditação sobre a escritaparecem funcionar na zona nebul<strong>os</strong>a e instável <strong>da</strong> insegurança de umasubjectivi<strong>da</strong>de mais saud<strong>os</strong>a que imaginária ou mística.Em J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça, o ritual místico, ao contrário <strong>da</strong> poéticade J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, desvia-se pelo caminho d<strong>os</strong> afect<strong>os</strong> e <strong>da</strong>simbi<strong>os</strong>e do corpo com o c<strong>os</strong>m<strong>os</strong>, como na primeira estrofe do poema «Apresença mais pura», de A que distância deixaste o coração: 142Na<strong>da</strong> no mundo mais próximoMas aqueles a quem negam<strong>os</strong> a palavraO amor, certas enfermi<strong>da</strong>des, a presença mais puraOuve o que diz a mulher vesti<strong>da</strong> de solQuando caminha no cimo <strong>da</strong>s árvores«a que distância <strong>da</strong> língua comum deixasteo teu coração?»142 [1998:43]243


Um segundo lugar à parte para a subversão <strong>da</strong> metamorf<strong>os</strong>e do corpoe <strong>da</strong> palavra através <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem do mundivivencial no espiritualismoespecular de um sujeito poético que, por vezes melancolicamente, se olhaao espelho para ver nesse espelho a página do poema, que por sua vez lhereverbera a imagem. Uma pausa, pois, para a antecipação de Ruy Belo, napoesia de quem a ci<strong>da</strong>de é corpo sensual que medita com lucidez quasedivinamente melancólica a certeza <strong>da</strong>s interiori<strong>da</strong>des, deixando correr oolhar por um pequeno excerto de despeço-me <strong>da</strong> terra <strong>da</strong> alegria: 143-----------------------------------------------Resta-me ain<strong>da</strong> o café isso me restaum silêncio odor<strong>os</strong>o a flores murchasnum ajuste de contas com a vi<strong>da</strong>Sou alto como a própria solidãomas sob aquela madruga<strong>da</strong> lúgubrecom a obstinação recôndita d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>eu sofro muito mais por p<strong>os</strong>suir um nomeQuando mordias um secreto pranton<strong>os</strong> bocejantes doming<strong>os</strong> <strong>da</strong> morteg<strong>os</strong>tava de an<strong>da</strong>r de quarto em quartoentre as algas <strong>da</strong> minha intimi<strong>da</strong>de----------------------------------------------------Também em mais jovens poetas a intimi<strong>da</strong>de onírica mas física queparte <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de é pretexto para especulari<strong>da</strong>des e interrogações sobre amediação poética do quotidiano, como no seguinte excerto de «Gingal», deLuís Quintais, em A Imprecisa melancolia: 144143 [1978:46]144 [1995:52]244


Se uma ci<strong>da</strong>de deslizasse pelas águasnós não saberíam<strong>os</strong> classificá-la: uma ci<strong>da</strong>de lacustre,uma ci<strong>da</strong>de movente, uma ci<strong>da</strong>de folha de papelcirculando indecisa e lenta sobre a superfícielíqui<strong>da</strong> de um rio?-------------------------------------------------------------------Importa salientar a visão, aparentemente impessoal, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, quesurge como produto <strong>da</strong> interrogação onírica de algo ou alguém que se nãoidentifica, conduzindo, assim a uma harmonia entre as hipóteses mais oumen<strong>os</strong> próximas ou afasta<strong>da</strong>s de uma hipotética metamorf<strong>os</strong>e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>desitua<strong>da</strong> entre o mental e o físico mas acabando por remeter para ainterrogação especular.Outro parâmetro do fazer poético que encontrám<strong>os</strong> em progressãoascendente em direcção a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa e a espraiar-se pelo novo miléniofoi o <strong>da</strong> natureza como corpo, representante do erotismo de uma poética<strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de e do erotismo d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> que havia de acompanhar <strong>os</strong>últim<strong>os</strong> decéni<strong>os</strong> do século vinte, e já referi<strong>da</strong> na sua articulação com areflexão poética. Fazendo do corpo o lugar onde se vê, se sente, se escreve,se descreve, se imagina e se passa o mundo, esta poética do erotismo d<strong>os</strong>sentid<strong>os</strong> harmoniza espacialmente o sujeito lírico, a natureza e acultura.Atentem<strong>os</strong> em dois excert<strong>os</strong> do poema «Vivit sub pectore vulnus», deInquietação <strong>da</strong> Água, de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino: 145245


----------------------------------------------------------a<strong>os</strong> poetasnão é <strong>da</strong>do saberem como a sarça d<strong>os</strong> braç<strong>os</strong> queimaquando ardemsob um céu de aparênciasnem que pensam as avesque apenas pelas árvores se acendem na síntese do voo-----------------------------------------------------------------talvez por assentar <strong>os</strong> ded<strong>os</strong> sobre a mesaa minha alma subapel<strong>os</strong> fi<strong>os</strong> de luz que me lançaram as aves que não sintopairar no meu silêncioe desçam <strong>da</strong>s janelas pel<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> que nelas esquecihá muito tempo.A harmonia espacial onde confluem o sujeito lírico, a natureza e acultura estavam já presentes, como atrás verificám<strong>os</strong>, em poetas portuguesesd<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, mas n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa esse interfluxo adquireuma dimensão paradoxalmente mais metafórica e mais pragmática, através<strong>da</strong> intromissão nesta temática de procediment<strong>os</strong> relativ<strong>os</strong> à presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia, que implicam em geral livre escolha e liberto usode aproveitamento de model<strong>os</strong> formais, que n<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong> seguintesaprofun<strong>da</strong>rem<strong>os</strong>, pelo que n<strong>os</strong> limitam<strong>os</strong>, por agora, a apresentar doispoemas representativ<strong>os</strong> desse fazer. O primeiro, de Rui Pires Cabral,pertence a Super-Reali<strong>da</strong>de 146 e dá o título à obra:145 [1998:16 a 18]146 [1995:7]246


Eu era de terra quando me procuraste,estranho à fraqueza d<strong>os</strong> teus act<strong>os</strong>, baçopara <strong>os</strong> teus sentid<strong>os</strong>.Parávam<strong>os</strong> o carro num beco qualquer,queimávam<strong>os</strong> o rastilho <strong>da</strong>s palavrasaté ao deserto onde dávam<strong>os</strong> as mã<strong>os</strong>.Lá fora, a reali<strong>da</strong>de era o espaço inteirodeitado pel<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong>, o mundo caído para dentrodo silêncio.Gastávam<strong>os</strong> depressa o tempo, perdid<strong>os</strong>no n<strong>os</strong>so único mapa,nenhum sinal de mu<strong>da</strong>nça no regresso a casa.É bem visível a libertação de uma opaci<strong>da</strong>de retórica, que acompanhauma simplici<strong>da</strong>de linguística, bem como a centralização nas acções, fact<strong>os</strong> esentires do quotidiano, temperad<strong>os</strong> apenas, aqui e ali, por uma translúci<strong>da</strong>metáfora e, ao longo do poema, pela musicali<strong>da</strong>de que lhe empresta apresença de alguma regulari<strong>da</strong>de métrica e rimática.O uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de não se limita a poemas curt<strong>os</strong> que quase apenasdelineiam uma cena. São por vezes long<strong>os</strong> poemas onde um fio diegéticorelativamente sólido sustenta a fragmentarie<strong>da</strong>de estrófica, como no poema«nocturno de malmö», 147 em Outr<strong>os</strong> Lugares, de Vasco Graça Moura:o homem de avental de couro estendeu-me um copo de vinho tinto.eu não sabia se estava acor<strong>da</strong>do, mas aceitei, dizendo:«procuro o venerável snorri sturluson». com um bestoafável significou-me que talvez o encontrasse lá dentro147 [2002:60 a 61]247


e mandou-me entrar numa porta onde se liagregers antikwariat böcker alla sorterers. e estava lá muita gentesenta<strong>da</strong>, mas não me detive e atravessei a sala. era de noitee entrei noutra sala e voltei á esquer<strong>da</strong> e entrei noutra evoltei à direita e entrei noutra e havia mais. «veja», sussurrouuma voz a meu lado, «veja <strong>os</strong> dicionári<strong>os</strong>. Ninguém podedescrever uma figura de mulher em ales stenar sem saberem que língua há-de escolher as palavras.--------------------------------------------------------------------------Poderia intitular-se este poema «Aventura kafkiana numa biblioteca»,de tal modo a história em si e <strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> seentrecruzam numa espécie de intertextuali<strong>da</strong>de genológico-temática com aobra de escritores mestres <strong>da</strong> narrativa, como Kafka.A narrativi<strong>da</strong>de é o parâmetro de realização poética 148 por nósescolhido e privilegiado neste trabalho, não apenas em função de umaescolha pessoal, mas porque considerám<strong>os</strong> que é o representanteemblemático de uma exploração, por parte <strong>da</strong> poesia, de uma atitude queprocura o encontro do fazer poético com o sistema social no qual se integra.A este propósito, e referindo-se, principalmente à pintura, J<strong>os</strong>é DiazFernández afirma, em El nuevo romanticismo / polémica de arte, política yliteratura: 149A una socie<strong>da</strong>d en constante persecución de sus formas,la ha precedido un arte en fuga, lleno de extraví<strong>os</strong> y desvel<strong>os</strong>.[...] Parece que ahora es cuando el artista ha aprendido a «ver»,148 Note-se que o uso de um parâmetro paradigmático não exclui, na prática literária, o usoconcomitante de outr<strong>os</strong> eventuais parâmetr<strong>os</strong> que o acompanhem.149 [1985:137]248


operación clásica; pero olvi<strong>da</strong><strong>da</strong> durante larg<strong>os</strong> añ<strong>os</strong> deabstracción y de subjectivismo. 150Consideram<strong>os</strong> que é, justamente, pelo percurso deste «ver» que anarrativi<strong>da</strong>de na poesia d<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> dias vai ao encontro <strong>da</strong> tentativa deresolução do paradoxo <strong>da</strong> arte no final do milénio, presa num movimentopendular entre vanguardism<strong>os</strong> e revivalism<strong>os</strong>. A presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>deliberta a poesia <strong>da</strong> opaci<strong>da</strong>de retórica que acompanha a auto-reflexão, areivindicação ou a argumentação. Pela narrativi<strong>da</strong>de se aproximará o poema<strong>da</strong> antiga voz d<strong>os</strong> shâmanes, hoje actualiza<strong>da</strong>, conciliando a libertação doimaginário e o pragmatismo de uma significação organiza<strong>da</strong> tanto no corpodo poema como na instauração de referências a uma factuali<strong>da</strong>de doquotidiano.150 Sublinhado n<strong>os</strong>so.249


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CAPÍTULO V - EXPANSIVE POETRY ENARRATIVIDADE1. NEW NARRATIVE e NEW FORMALISMNo século vinte, quer na Europa quer n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América,e sobretudo a partir <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de cinquenta e sessenta, o verso livre ebranco impôs-se na poesia como modo dominante de expressão, e em taisproporções que pouc<strong>os</strong> foram <strong>os</strong> poetas a manter o uso de model<strong>os</strong> formaistradicionais. Neste aspecto, como adiante salientarem<strong>os</strong>, a p<strong>os</strong>ição d<strong>os</strong>escritores e crític<strong>os</strong> d<strong>os</strong> E.U.A. foi bastante mais radical, não facilitando aabertura do caminho d<strong>os</strong> jovens poetas que, sobretudo no último quinquéniod<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, tentaram impor a recuperação do poema longo de índolenarrativa.A imp<strong>os</strong>ição d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> de complexi<strong>da</strong>de e fechamento <strong>da</strong>Language Poetry marcavam, então, ain<strong>da</strong>, a crença nas habili<strong>da</strong>deslinguísticas, alia<strong>da</strong>s a uma descontextualização <strong>da</strong> prática factual quedificultava a transmissão <strong>da</strong> emoção e a adesão d<strong>os</strong> leitores. Os poetasapeli<strong>da</strong>d<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> norte-american<strong>os</strong> como new narrative poetslutavam, justamente, por um alargamento de recepção e audiência para <strong>os</strong>seus poemas que implicava o desprezo pel<strong>os</strong> artifíci<strong>os</strong> linguístic<strong>os</strong> <strong>da</strong>251


Language Poetry. Os New Narrative Poets defendiam, pois, o poemalongo, o uso de model<strong>os</strong> formais (embora não desprezassem totalmente overso livre mas sim o uso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a) e a coerência lógica <strong>da</strong> narrativa nopoema, como mei<strong>os</strong> de abor<strong>da</strong>gem de experiências, individuais oucolectivas que f<strong>os</strong>sem, mas sempre com o intuito de captar e interessar umaaudiência de leitores mais alarga<strong>da</strong> que a d<strong>os</strong> restrit<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> eacadémic<strong>os</strong>.O objectivo d<strong>os</strong> New Narrative Poets consistia, pois, eprimordialmente, em abor<strong>da</strong>r temáticas mais directamente liga<strong>da</strong>s aopr<strong>os</strong>aico do quotidiano, trabalhando uma linguagem que com a suasimplici<strong>da</strong>de f<strong>os</strong>se compatível. Salientem<strong>os</strong>, contudo, que estes poetas nãopraticavam a poesia narrativa <strong>da</strong> história conta<strong>da</strong> em verso, vin<strong>da</strong>, maisrecentemente, do romantismo. Relevam<strong>os</strong>, portanto, a necessi<strong>da</strong>de dediferenciar poema narrativo (tradicional) de narrativi<strong>da</strong>de na poesia (queimplica o uso por vezes parcial de procediment<strong>os</strong> usuais <strong>da</strong> retórica <strong>da</strong>narrativa, como adiante especificarem<strong>os</strong>). A este propósito citam<strong>os</strong> Carl<strong>os</strong>Reis e Ana Cristina Lopes, no seu Dicionário de narratologia: 1Como quer que seja, o que parece certo é que anarratologia pode ultrapassar o estádio <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>tulaçõesteóricas, elabora<strong>da</strong>s por via hipotético-dedutiva, e facultar àanálise d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> narrativ<strong>os</strong> instrument<strong>os</strong> operatóri<strong>os</strong>rigor<strong>os</strong><strong>os</strong>, com fecun<strong>da</strong>s consequências de índolemetodológica. 2N<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, n<strong>os</strong> E.U.A., a maioria d<strong>os</strong> académic<strong>os</strong>, crític<strong>os</strong>,editores e, mesmo, poetas, ain<strong>da</strong> se opunha vigor<strong>os</strong>amente ao uso <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Apesar <strong>da</strong> voz quase solitária de The Reaper,revista fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1980 e que, em 1985, defende o reaparecimento <strong>da</strong>1 [1991:281]2 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.252


narrativa na poesia, outras publicações começam a surgir, advogando anarrativi<strong>da</strong>de na poesia, tal como <strong>os</strong> númer<strong>os</strong> <strong>da</strong> The Kenyon Review, <strong>da</strong>Primavera de 1983 e do Outono de 1985, foram dedicad<strong>os</strong> à narrativa napoesia. 3 Esta progressiva aceitação e ascendente intromissão naspublicações críticas e literárias havia de conduzir a uma atitude maistolerante em relação ao pregmatismo d<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> d<strong>os</strong> New NarrativePoets, como Robert McDowell havia de salientar no seu ensaio «The NewNarrative Poetry», em Expansive Poetry, 4 ao citar, exemplarmente, aspalavras de Louis Simpson, um d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> New Narrative Poetry:«M<strong>os</strong>t poetry is mere fantasy; m<strong>os</strong>t pr<strong>os</strong>e is merelyreporting the surface of things. We are still waiting for thepoetry of feeling, words as common as a loaf of bread, whichyet give off vibrations.»Robert McDowell comenta ain<strong>da</strong>, acerca de Louis Simpson, que esteacabou por contribuir grandemente para a criação e aceitação <strong>da</strong>, por elenomea<strong>da</strong>, «poetry of feeling», desenvolvendo um estilo muito pessoal eparticular de poesia narrativa que quebrou a bipolarização d<strong>os</strong> argument<strong>os</strong>crític<strong>os</strong> a favor e contra a nova poesia narrativa, argument<strong>os</strong> estes que sebaseavam, predominantemente, em divergências dicotómicas sobre se apoesia deveria ser «inclusiva» ou «exclusiva». Na ver<strong>da</strong>de, <strong>os</strong> NewNarrative Poets enfatizavam a questão de a poesia dever ser tanto umaexperiência priva<strong>da</strong> como uma experiência em função do público, ou seja, aexpressão do individual na poesia deveria apresentar-se num contextocomunitário que existe fora do individualismo do poeta mas que nem porisso deixa de o envolver.3 Estes númer<strong>os</strong> <strong>da</strong> The Kenyon Review foram editad<strong>os</strong>, respectivamente, por FrederickTurner e Mark Jarman, académic<strong>os</strong> e futuras figuras de relevo <strong>da</strong> Expansive Poetry.4 [1989:103], F. Fernstein (ed).253


Em 1985, no seu nº11, a acima referi<strong>da</strong> revista The Reaper, publica,<strong>da</strong> autoria de Robert McDowell e Mark Jarman, uma lista de dez element<strong>os</strong> 5que consideravam essenciais na elaboração do new narrative poem e queconstituíu como que uma pré-síntese <strong>da</strong>s linhas de acção de to<strong>da</strong> aExpansive Poetry, pelo que valerá a pena reproduzi-l<strong>os</strong>, ain<strong>da</strong> quelacunarmente, e comentá-l<strong>os</strong> sucintamente:1. A beginning, a middle and an endJust as it is hard to get the whole story, it is hardto allow a story to tell itself. [...]Julgam<strong>os</strong> que a ideia essencial, assente na preconização <strong>da</strong>presença de uma história com «princípio, meio e fim», se não refere a umarealização explícita e concreta no poema mas pretende, antes, constituir umachama<strong>da</strong> de atenção para a clareza do reconhecimento de uma históriaconta<strong>da</strong> em relação à recepção do poema. Entendem<strong>os</strong>, assim, que <strong>os</strong>poemas <strong>da</strong> New Narrative, mesmo quando apenas sugerem determina<strong>da</strong>setapas diegéticas, são sup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> indicá-las implícita mas claramente aoreceptor do poema.2. ObservationThe poet wh<strong>os</strong>e senses are attuned to all of theelements of the story can create both the impressionof participation and witness.Crem<strong>os</strong> ser este um d<strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> por que estes jovens poetasse batiam: encontrar um equilíbrio entre o dizer do sentido interiormente e odizer do observado exteriormente, de tal modo que, tanto para o enunciadorcomo para o receptor, a miscigenação narrativo-lírica se apresentassetanto com o distanciamento de um testemunho de fact<strong>os</strong> como com a5 [1989:105,106], F. Fernstein (ed).254


emoção de quem neles participasse. Assim se delinearia a transmissão docontar de uma história sem dela excluir a hipótese <strong>da</strong> inclusão decomponentes líricas.3. Compression of timeWhether a narrative poem is 4,600 or 46 lineslong, the poet must handle the passage of time. [...]This restriction demands the poet´s restraints inchoice of language. A rhythm is necessary too [...],rhythm is movement, movement is time, and timemust be compressed.Mais do que uma justificação para o uso de model<strong>os</strong> formaistradicionais, consideram<strong>os</strong> que a «compressão do tempo» está directamenterelaciona<strong>da</strong> com a diferenciação entre poesia explicitamente narrativa emera presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia, em maior ou menor grau,visto que, se na poesia narrativa a presença de narrativi<strong>da</strong>de se identificaperfeitamente com procediment<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> do modonarrativo, o mesmo não acontece quanto à simples presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia, pois esta não implica uma identificação total com procediment<strong>os</strong>narratológic<strong>os</strong>, mas apenas <strong>os</strong> usa coadjuvando uma retórica textualtradicionalmente identificável com o modo lírico. Donde se compreende apreocupação com a relação entre a «compressão do tempo» e as «restriçõesde escolha de linguagem».4. Containment[...] A character must be consistent; an act mustlogically follow acts preceding it. Even illogical actsmust be logically constructed.5. Illuminating of private gestures255


[...] A poet who makes a character´s private gesturesaccessible is engaged in the act of definition, not byproclamation but by presentation.6. UnderstatementThis device sustains and contributes to thedevelopment of drama. Without drama there is notension; without tension the story sags.Consideram<strong>os</strong> <strong>os</strong> três pont<strong>os</strong> transcrit<strong>os</strong> na sua relação com <strong>os</strong>procediment<strong>os</strong> comuns à construção lógica e à ver<strong>os</strong>imilhança de umanarrativa, independentemente <strong>da</strong> miscigenação genológica na qual p<strong>os</strong>saexistir e delinear-se. Assim se preconiza, no ponto 4., a construção lógicad<strong>os</strong> event<strong>os</strong>, mesmo quando se trate de «act<strong>os</strong> ilógic<strong>os</strong>», tal como seevidencia, no ponto 5., a «apresentação» de personagens numa definiçãoque, quanto a nós, se refere à representação, na relação transformacional dofactual para o ficcional, ou, ain<strong>da</strong>, no ponto 6., a referência à dialogia comofactor de arranque e continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção e sua relação com <strong>os</strong> event<strong>os</strong>contad<strong>os</strong>.7. Humor[...] But humor in a narrative poem might displaymore tenderness than irony allows. Humor may alsochange the pace subtly, allowing the reader to reflecton what has been read and prepare for what is tocome.A preocupação <strong>da</strong> New Narrative Poetry com a acessibili<strong>da</strong>de dopoema ao público que o recebe está bem patente nesta abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>funcionali<strong>da</strong>de do «humor». A substituição <strong>da</strong> subtileza fina e encoberta<strong>da</strong> «ironia» pela evidência simples do «humor». Levando este ao riso, e256


considerado este predominantemente p<strong>os</strong>sível na ausência do sentimento, 6 apresença do humor no poema narrativo conduziria o leitor a moment<strong>os</strong>pausa de afastamento sentimental n<strong>os</strong> quais a reflexão sobre a históriaconta<strong>da</strong> f<strong>os</strong>se p<strong>os</strong>sível, no decurso <strong>da</strong> sua própria leitura.8. LocationMemorable literature is the history of authorswho have successfully presented their intimateinvolvement with an identifiable region.Mais uma vez, neste ponto, é enfatizado o objectivo desta novapoesia narrativa que consiste em intervir, concomitantemente, do íntimo edo exterior do emissor para o íntimo e o exterior do receptor, solicitandoassim, por parte do leitor, a adesão simultânea à expressão do sentimentoindividual e à expressão <strong>da</strong> vivência quotidiana por ele identifica<strong>da</strong> epartilha<strong>da</strong>.9. Memorable Characters[...] One might tell us something about ourselves[...] But our fascination with character is also adesire to connect with someone who is notourselves, not even like us, as far as we can tell.[...]Na sequência d<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> de identificação e partilha abor<strong>da</strong>d<strong>os</strong>no ponto 8., o «fascínio pela personagem» vem salientar o desejáveldesdobramento, em coexistência, do sujeito lírico-narrador em sujeitoque vive e sujeito que conta. Este desdobramento, surgindo em alternância,é essencial para uma p<strong>os</strong>sível identificação, por parte do leitor, com apersonagem que desejaria ser e não, apenas, com a sintonia sentimental do6 Cf. Bergson [s.d.:53 a 62]257


contar íntimo de outro, pois a adesão á narrativa passa sempre pelo desejode ser (ou ser como, ou nunca vir a ser como) o herói narrado.10. A compelling subjectThe way a story is told will determine weather ornot it is compelling to readers who know how toread narrative in poems. [...] This alone explains theinability of many poets to write narrative.De novo encontram<strong>os</strong> já preconiza<strong>da</strong> para a New Narrative Poetry arelação de intencionali<strong>da</strong>de pragmática e didáctica que <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong>Expansive Poetry haviam de relçar n<strong>os</strong> seus text<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores.Muitas <strong>da</strong>s dez prop<strong>os</strong>tas acima cita<strong>da</strong>s podem encontrar-serealiza<strong>da</strong>s, com maior ou menor concomitância, em muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poemas d<strong>os</strong>New Narrative Poets. Relevam<strong>os</strong> apenas o uso simultâneo, em muit<strong>os</strong>poemas, de verso livre e model<strong>os</strong> tradicionais, que seria uma <strong>da</strong>s marcasdistintivas <strong>da</strong> Expansive Poetry. Robert McDowell, ain<strong>da</strong> no seu ensaio«The New Narrative Poetry», em Expansive Poetry, 7 salienta a principalsintonia <strong>da</strong>s realizações <strong>da</strong> New Narrative, afirmando:Though all of these poets would argue fine points whenit comes to discussing the shape and mission of narrative inpoetry, all would agree that the m<strong>os</strong>t frequently publishedpoetry of the sixties and seventies had become increasinglyself-conscious and remote to the general reader. They woul<strong>da</strong>gree that what poetry then lacked m<strong>os</strong>t was compellingsubjects and poets who could tell the stories of our time. 87 [1989:108], F. Fernstein (ed).8 Sublinhado n<strong>os</strong>so.258


Salientam<strong>os</strong> a intencionali<strong>da</strong>de de aproximação do público através <strong>da</strong>preconização de temáticas directamente relaciona<strong>da</strong>s com as vivênciashodiernas, abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s através do contar de uma história. No entanto,relevarem<strong>os</strong> também que <strong>os</strong> New Narrative Poets não desprezam ameditação ou o confessionalismo lírico, mas usam-no simplesmente emfunção, e ao serviço, do contar de uma história, e não, comotradicionalmente, ao serviço <strong>da</strong> expressão de um egocentrismo poéticoindividualizado. Assim, <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> New Narrative trabalham uma poesiade inclusão, na qual a lírica, a narrativi<strong>da</strong>de, o confessionalismo e asvivências quotidianas hodiernas se interpenetram ou ladeiam, realçando adiversi<strong>da</strong>de de pont<strong>os</strong> de vista <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s experiênciascomuns que querem contar.A poesia narrativa de um Wordsworth ou a de um William Carl<strong>os</strong>Williams poderiam ser exemplo de uma antecedência que se consideraria,eventualmente, ter a sua continui<strong>da</strong>de nas realizações <strong>da</strong> New Narrative. Noentanto, <strong>os</strong> poemas narrativ<strong>os</strong> que a esta foram anteriores procuravam, emgeral, uma lineari<strong>da</strong>de e uma coerência diegética que se adequasse a umarelação ideal com o mundo e as suas mundivivências. A New Narrative vemapresentar a novi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fragmentação, e esta não na linha de um T. S.Eliot ou de um Ezra Pound, mas antes num mais diversificado jogo deaproveitamento de model<strong>os</strong> formais conjugad<strong>os</strong> e p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> ao serviço docontar de uma história, num poema não forç<strong>os</strong>amente longo masobrigatoriamente portador de clareza no contar, tanto do ponto de vistalinguístico como temático, como mesmo de retórica textual.Realçam<strong>os</strong> de novo que <strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> d<strong>os</strong> New Narrative Poets nãopunha de parte o autobiográfico. Mark Jarman, no ensaio «Robinson, Fr<strong>os</strong>t,Jeffers and the New Narrative Poetry», em Expansive Poetry, 9 afirma que o9 [1989:85 a 98], F. Fernstein (ed).259


dilema destes jovens poetas, a quem ele chama «neo-narrative poets», éjustamente o dilema entre comprometer-se ou não com o destino <strong>da</strong>spersonagens que criam para veicular as histórias d<strong>os</strong> seus poemas. Estaproblemática é mais evidente n<strong>os</strong> poemas que se constroem sobre ummonólogo assumido na primeira pessoa e n<strong>os</strong> quais o sujeito líricodesempenha as funções de um narrador autodiegético. No entanto, adiferença crucial está no realçar o que acontece ao sujeito e não nas suaselocubrações sobre <strong>os</strong> fact<strong>os</strong> de que é protagonista. Esta especulação interioré deixa<strong>da</strong> muito subtilmente a cargo do leitor através de recurs<strong>os</strong> textuaiscomo, por exemplo, o papel de testemunha do sujeito lírico, que abre umcampo especulativo a partir <strong>da</strong>s suas afirmações. A título exemplificativo,transcrevem<strong>os</strong> <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> <strong>da</strong> primeira estrofe e a última estrofe deum poema de Andrew Hudgins: 10I´m standing in the universitylibrary, staring at the German booksand I don´t parle eine word of Allemand.Actually I´m listening to a girl name Bethcall her boyfriend in El Paso.[...]----------------------------------------------------Regretis the only word that I can make out clearly,and even then I can´t decide if it´s hersor if she´s repeating what he said.But with a smile she hangs the phone up andclicks down the hall to the elevator, leavingthe bottom of the booth fluffed with pink tissue.Over the whole of German literature10 [1989:91]260


I see her smiling, framed in the cl<strong>os</strong>ing doors;her afterimage holds the same sure p<strong>os</strong>e,floating on air, in the empty shaft, and fading.O poema conta-n<strong>os</strong>, essencialmente, um acto normal do quotidiano:observar e ouvir o que <strong>os</strong> que n<strong>os</strong> rodeiam fazem e dizem. Neste caso, aobservação, a escuta e as conjecturas, por parte de um sujeito líriconarrador,em relação a uma estu<strong>da</strong>nte que telefona para o namorado. Noentanto, tais conjecturas do observador acompanham imperceptivelmenteessa observação, o que lhe vai permitir, n<strong>os</strong> dois últim<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> do poema,deixar em aberto, a «flutuar no ar», tal como a lembrança <strong>da</strong> rapariga, <strong>os</strong>sentiment<strong>os</strong> que se foram instalando ao longo do poema, tanto no sujeitolírico-narrador como no hipotético leitorEm paralelo, em Portugal, quinze an<strong>os</strong> depois, <strong>os</strong> últim<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> dopoema «À janela, num dia de feira», de O Estado d<strong>os</strong> Camp<strong>os</strong>, de NunoJúdice: 11[...] Mas a uma janela,vejo-te: a mulher que interrompe a tarde para espreitaro que se passa, na rua. E a beleza do teu r<strong>os</strong>to despenteiaesta ci<strong>da</strong>de de província, e subverte a ordem <strong>da</strong> própriafrase com que comecei. Os teus olh<strong>os</strong> são o meu complemento;e a linha em que a camisola corta o tronco, no início d<strong>os</strong>eio, corresponde a um predicado que não descubro,agora que voltaste a fechar a janela, e as facha<strong>da</strong>sperderam o nexo <strong>da</strong> gramática.Tal como no poema de Andrew Hudgins, a observação distancia<strong>da</strong> dálugar ao descrever, ao contar, mas também ao sentir e ao considerar,sobretudo referente à ambigui<strong>da</strong>de resultante <strong>da</strong> referência simultânea à261


mulher no afastamento e na proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terceira e segun<strong>da</strong> pessoas. Noentanto, estes últim<strong>os</strong> são deixad<strong>os</strong> ao leitor como abertura, como umaprovocação à procura de situações similares que com a vi<strong>da</strong> quotidiana doleitor tenham a ver.Em qualquer d<strong>os</strong> dois poemas podem<strong>os</strong> verificar que tanto o iníciocomo o final funcionam como uma espécie de media res, tanto para <strong>os</strong>ujeito enunciador como para o leitor porque, acaba<strong>da</strong> que está a descrição<strong>da</strong> cena e <strong>da</strong> história que lhe subjaz, há uma parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de uma mulherque é apresenta<strong>da</strong>, representa<strong>da</strong>, deixa<strong>da</strong> em suspenso na forma que tomoupela voz que a narrou, mas uma forma que é tão provisória na emissão comona recepção.Esta simbi<strong>os</strong>e de observação, descrição, meditação e comentárioíntimo, que n<strong>os</strong> poemas citad<strong>os</strong> corresponde a uma miscigenação narrativolíricacontribui para a manifestação de um paradoxo que se revelafrequentemente aquando <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia e queconsiste numa aura de mistério que frequentemente envolve as personagense que provém, justamente, <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de observadora e vivencial de umsujeito lírico-narrador, e sua consequente projecção no leitor. Estesprocediment<strong>os</strong> interconectam-se com a parciali<strong>da</strong>de ou a fragmentari<strong>da</strong>de deum pequeno enredo que tem de ser completado pelo leitor em relação aopoema, e justamente através do cruzamento de pont<strong>os</strong> de vista intern<strong>os</strong> eextern<strong>os</strong>.Dick Allen, um d<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> e poetas que praticou o New NarrativePoem e que haveria de fazer parte do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry, aoabor<strong>da</strong>r a problemática d<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> do cruzamento de pont<strong>os</strong> de vistaintern<strong>os</strong> e extern<strong>os</strong> no poema narrativo, no seu ensaio «Preliminary thoughtson evaluating the long poem», 12 salienta:11 [2003:28, 29]12 [1989:78], F. Fernstein (ed).262


In judging the poem which extends beyond the length ofthe usual lyric, we approach and must deal with considerationsapplied to judging pr<strong>os</strong>e fiction. [...]Na sequência desta afirmação, considera que, quanto mais longofor o poema narrativo, maior é a necessi<strong>da</strong>de de explicitar uma históriacom o seu enredo e as suas personagens bem defini<strong>da</strong>s e consistentes.Admite, ain<strong>da</strong>, que o «long poem» pode ser considerado como uma sériede poemas breves mas que, neste caso, o poeta deve ter cui<strong>da</strong>do em nãoproceder como se esses poemas constituíssem uma «extended imagisticlyric» mas sim se f<strong>os</strong>sem condutores fragmentári<strong>os</strong> de «explicit narrativeand dramatic elements». 13 A este propósito g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de citar algumasafirmações de Jorge de Sena em Sobre o Romance: 14Recentemente, durante algum tempo se exigiu que aliteratura de ficção constituísse um documento humano.Exigiu-se, depois, que constituísse um documento social.Exige-se hoje, salvo opinião melhor autoriza<strong>da</strong>, uma coisa queserá a miscelânea destas duas. E, em qualquer d<strong>os</strong> trêsmoment<strong>os</strong> creio que se p<strong>os</strong>tularia sempre, como indispensável,a representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de tal como ela é, francamentedescrita e luci<strong>da</strong>mente interpreta<strong>da</strong>.[...]A predisp<strong>os</strong>ição narrativa, ou o que queiram<strong>os</strong> chamarlhe,com ser essencial, está, porém muito próxima <strong>da</strong>s origensorais do mero prazer (ou também utilitarismo) narrativo. 15O New Narrative Poem não pode, pois, ser considerado como <strong>os</strong>imples contar de uma história através de um poema, nisto residindo a sua13 [1989:79], F. Fernstein (ed).14 [1986:25 e 30]15 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.263


inovação: mais que ser e confessar, contar; mas contar sem deixar de sere de confessar.Ain<strong>da</strong> n<strong>os</strong> E.U.A., ain<strong>da</strong> n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, e simultaneamente aoressurgir <strong>da</strong> narrativa na poesia, começou a manifestar-se uma práticapoética de recusa do verso livre, frequentemente pela voz d<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong>poetas que aliavam o uso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema ao uso de model<strong>os</strong>formais tradicionais.Assim como <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> haviam sido catalogad<strong>os</strong> pelacrítica como New Narrative Poets, <strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> e outr<strong>os</strong> seriam designad<strong>os</strong>como New Formalism Poets. Divergiam d<strong>os</strong> poetas formalistas d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>cinquenta essencialmente pela temática do mundo quotidiano <strong>da</strong> experiênciavivi<strong>da</strong>, pela linguagem coloquial e pelo uso múltiplo e selectivo, por vezesno mesmo poema, d<strong>os</strong> model<strong>os</strong> formais.Um d<strong>os</strong> poetas ligad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> crític<strong>os</strong>, simultaneamente, à NewNarrative e ao New Formalism foi Dana Gioia, poeta, universitário, crítico efun<strong>da</strong>dor do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry, que considera no seu ensaio«Notes on the New Formalism», em Expansive Poetry, 16 não haver motiv<strong>os</strong>válid<strong>os</strong> para uma clivagem entre New Narrative Poets e New FormalistPoets, pois <strong>os</strong> seus objectiv<strong>os</strong> e práticas acabam por constituir realizaçõessimilares que demonstram que a literatura mu<strong>da</strong> para manter a sua forçavital o que, no caso <strong>da</strong>s realizações referi<strong>da</strong>s, se manifesta, essencialmente,pelo uso <strong>da</strong> narrativa e de model<strong>os</strong> formais, contra a situação deestagnação <strong>da</strong> revolução literária <strong>da</strong>s infracções modelares e do verso livre,inovadora e dinâmica em mead<strong>os</strong> do século mas agora transforma<strong>da</strong> emstatus quo estagnador.A controvérsia e as polémicas que estas realizações suscitaram n<strong>os</strong>mei<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> e académic<strong>os</strong> d<strong>os</strong> E.U.A. devem ser perspectiva<strong>da</strong>s no seu16 [1989:158 a 175], F. Fernstein (ed).264


contexto literário-cultural, adentro <strong>da</strong> radicalização do uso do «free verse».Seria difícil, em Portugal, compreender reacções tão exalta<strong>da</strong>s, pois amanutenção de model<strong>os</strong> sempre se encontrou, a par com realizações deleslibertas, na obra de autores de relevo como David Mourão-Ferreira, NatáliaCorreia, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Eugénio de Andrade, entremuit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>. Pela radicalização referi<strong>da</strong>, Dana Gioia sente necessi<strong>da</strong>de derealçar, no mesmo ensaio: 17When the language of poetic criticism has become so distorted,it becomes important to make some fun<strong>da</strong>mental distinctions. Formalverse, like free verse, is neither bad or good. The terms are strictlydescriptive not evaluative. They define distinct sets of techniquesrather than rank the quality or nature of poetic performance. Nor dothese techniques automatically carry with them social, political, oreven, in m<strong>os</strong>t cases, aesthetic values. 18Defende, ain<strong>da</strong>, a preferência do uso <strong>da</strong> rima e <strong>da</strong> métrica na poesianarrativa por considerar que enformam o «som físico <strong>da</strong> linguagem»,necessário à memorização e recitação <strong>da</strong> poesia, aju<strong>da</strong>, até, de compreensão.Contudo, não deixa de afirmar a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de do uso simultâneo demétrica e rima, a par de verso livre e branco, no mesmo poema.Salienta, contudo, as dificul<strong>da</strong>des do processo de comunicação-recepção emrelação a este último, visto que, neste caso, a organização visual do poemana página se torna essencial à organização do som. Esta quase arbitrarie<strong>da</strong>deapresenta, segundo ele, entraves á comunicação, visto que <strong>os</strong> artifíci<strong>os</strong>visuais separam o verso livre e branco do discurso organizado <strong>da</strong> falaquotidiana.Concorde-se ou não com esta última asserção de Dana Gioia, o facto éque o uso de model<strong>os</strong> formais her<strong>da</strong>d<strong>os</strong> <strong>da</strong> tradição veio trazer à poesia uma17 [1989:159], F. Fernstein (ed).18 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>265


libertação provoca<strong>da</strong> pelo alargamento do leque de escolha, permitindo a<strong>os</strong>poetas explorar uma linguagem mais próxima do quotidiano, articula<strong>da</strong> coma tradicionali<strong>da</strong>de literária conjuga<strong>da</strong> com a recuperação <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de eapontando, assim, para objectiv<strong>os</strong> de maior abertura de divulgação erecepção d<strong>os</strong> seus poemas.Uma <strong>da</strong>s realizações mais curi<strong>os</strong>as nasci<strong>da</strong> destas inovações ep<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de novas combinações é o «pseudo-formal poem» que, nasua aparência gráfica visual oferece o reconhecimento de um modelo formalmas que simultaneamente o infringe. Dana Gioia chama-lhes «formasabertas» e usa-as a par de formas fixas e de verso livre, consoante o quecomunica e o efeito de comunicação desejado. Por isso termina o seu ensaiocom as seguintes afirmações: 19The important arguments will not be about technique inisolation but about the fon<strong>da</strong>mental aesthetic assomptions ofwriting and judging poetry. At that point the real issuespresented by American poetry in the ´Eighties will becomeclearer: the debasement of poetic language; the prolixity of thelyric; the bankruptcy of the confessional mode; the inability toestablish a meaningful aesthetic for new poetic narrative; andthe denial of musical texture in the contemporary poem. Therevival of traditional forms will be seen then as only oneresponse to this trouble situation. Only time will prove whichresponses were m<strong>os</strong>t persuasive. 20De facto, aquilo que provavelmentenão tem precedentes e é realmenteinovador é a existência, n<strong>os</strong> E.U.A. d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, de divers<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> dejovens poetas, sejam eles denominad<strong>os</strong> pela crítica como New Narrative ouNew Formalists, mas que, dispers<strong>os</strong> pelo país, rejeitaram as limitaçõesimp<strong>os</strong>tas pelo status quo universitário e crítico e iniciaram um novo19 [1989:175], F. Fernstein (ed).266


percurso de exploração de p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des pr<strong>os</strong>ódicas. Muit<strong>os</strong> deles haviamde vir a fazer parte do Expansive Poetry Movement, como Timothy Steele,Frederick Fernstein, Mary Jo Salter, Jim Powell, Alan Shapiro, Robert Shawe, claro, Dana Gioia, de quem transcrevem<strong>os</strong> as duas primeiras e a últimaestrofe do poema «Equations of the Light», 21 bem exemplificativo <strong>da</strong>falaci<strong>os</strong>a clivagem entre New Narrative e New Formalism:Turning the corner, we discovered itjust as the old wrough-iron lamps went on -a quiet, tree-lined street, only one block long,resting between the noisy avenues.The street lamps splashed the shadow of the leavesacr<strong>os</strong>s the whitewashed brick, and each tall window,glowing through the ivy-decked façade,promised lives as perfect as the light.---------------------------------------------------------------Or were we so deluded by the strangeEquations of the light, the vagrant windSearching the trees, we believed this briefConjunction of our separate lives was real?O modelo formal, a narrativi<strong>da</strong>de e o lirismo entrecruzam-se nestepoema cuja história conta<strong>da</strong> não tem um enredo evidente no sentidotradicional do termo mas que, com o uso <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de de linguagemconstrói uma dimensão de emoção lírica que vem confirmar-n<strong>os</strong> que, pelofacto de a linguagem usa<strong>da</strong> num poema ser simples, isso não implicaforç<strong>os</strong>amente uma simplici<strong>da</strong>de na evocação de sentiment<strong>os</strong>, <strong>os</strong> quais, no20 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.21 Publicado no The New Yorker, em 1986 e integrado na colectânea organiza<strong>da</strong> por F.Fernstein [1989:206,207]267


caso deste poema, são transmitid<strong>os</strong> predominantemente através <strong>da</strong>cenografia e <strong>da</strong> interrogação final.E porque as realizações estéticas se podem aproximar também porparalelism<strong>os</strong> e ver<strong>da</strong>deiras ou falsas coincidências, g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> deconfrontar este poema de Dana Gioia com o «soneto destruído» de VascoGraça Moura: 22 talvez logo na berma de uma estra<strong>da</strong>um par se beije transtorna<strong>da</strong>mentee o destino <strong>os</strong> separe de repenteentre as duas e as três <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>talvez a lua fria <strong>os</strong> desinventee só lhes traga sombras e mais na<strong>da</strong>e por saí<strong>da</strong> só lhes dê a entra<strong>da</strong>para o túnel <strong>da</strong> noite à sua frentetalvez então as faces se desolemtalvez depois em cinza e solidãoa aurora ponha um luto, talvez colemas nuvens o seu dorso rente ao chãotalvez por não ousar ninguém mereçao que viveu, talvez não amanheça.Também neste poema o aproveitamento de um modelo formal é p<strong>os</strong>toao serviço do ritmo do contar de um episódio e se imiscui na tonali<strong>da</strong>delírica. Apesar <strong>da</strong> construção anafórica com o advérbio «talvez», nestepoema, poder considerar-se equivalente à retórica varia<strong>da</strong> e conducente àexplícita interrogação do poema de Gioia, a disforia trazi<strong>da</strong> pela melancoliaportuguesa afasta mais o espaço descrito <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>, embora em22 [2002:312]; soneto de 1998 incluído em poesia 1997-2000.268


amb<strong>os</strong> seja uma lumin<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de ténue, na noite, que abre a dimensãodivagadora e lírica n<strong>os</strong> dois poemas. Apesar de ser mais evidente oafastamento do sujeito lírico em relação ao episódio contado, no poema deVasco Graça Moura, pela ausência desse sujeito explícito, e men<strong>os</strong> evidentena primeira pessoa do plural do poema de Dana Gioia, amb<strong>os</strong> testemunhama importância <strong>da</strong> criação de uma cenografia de dimensão narrativa quasecinematográfica; amb<strong>os</strong> se inscrevem no espaço <strong>da</strong> modelização acualizantede model<strong>os</strong>, amb<strong>os</strong> partem do sentido humano comum <strong>da</strong> partilha de umaexperiência vivi<strong>da</strong>, características estas tão caras a<strong>os</strong> poetas do NewFormalism e que a formação do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry havia deacarinhar.2. EXPANSIVE POETRYO movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry, tal como a maioria d<strong>os</strong>moviment<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>, não surgiu n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> <strong>da</strong> América como umgrupo organizado à parti<strong>da</strong>, mas sim através <strong>da</strong>s realizações e iniciativas dealguns poetas que, por volta d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta, escreviam poesia na qualfaziam reviver, concomitantemente, model<strong>os</strong> formais tradicionais e poesianarrativa, recriando-<strong>os</strong> ou adequando-<strong>os</strong> mutuamente. Defendiam, através<strong>da</strong> sua prática literária, realizações considera<strong>da</strong>s pela crítica comoantiqua<strong>da</strong>s ou marginais e, acima de tudo, rebelavam-se contra a práticaúnica do verso livre, contra a temática autobiográfica e contra oexperimentalismo na poesia, presentes na grande maioria d<strong>os</strong> poetasconsiderad<strong>os</strong> de relevo e valorizad<strong>os</strong> durante o século vinte, sobretudo n<strong>os</strong>269


an<strong>os</strong> sessenta e setenta; ou seja, <strong>os</strong> Expansive Poets, afinal, viravam c<strong>os</strong>tasao cânone vigente <strong>da</strong> poesia que lhes era contemporânea.Como anteriormente julgám<strong>os</strong> deixar implícito, não irem<strong>os</strong> consideraraqui a tripla clivagem <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> Expansive Poetry em ExpansivePoetry, em New Narrative Poetry e em New Formalist Poetry, antesadoptarem<strong>os</strong> o termo Expansive 23 tal como Kevin Walzer o utiliza 24 ,realçando as afini<strong>da</strong>des entre New Formalist Poetry e New NarrativePoetry, na medi<strong>da</strong> em que as realizações poéticas correspondentes a estasdesignações, imp<strong>os</strong>tas por parte do meio crítico, acabam ambas por secentrar em objectiv<strong>os</strong> de revivificação e renovação <strong>da</strong> tradição poética,aliad<strong>os</strong> à contemporanei<strong>da</strong>de, seja através do uso de convenções formais,seja através <strong>da</strong> adopção <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de, seja, ain<strong>da</strong>, pela coincidência <strong>da</strong>autoria de text<strong>os</strong> <strong>da</strong> New Formalist Poetry e <strong>da</strong> New Narrative Poetry, quese projectaria até na Expansive Poetry.De facto, tal como observa Kevin Walzer em The Gh<strong>os</strong>t of Tradition,no capítulo 7, «Expansive Influence», 25 a reali<strong>da</strong>de é que, em cerca de duasdéca<strong>da</strong>s, o movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry trouxe à poesia d<strong>os</strong> E.U.A. umcorpus relevante de poesia que renovou tradições formais e de uso denarrativi<strong>da</strong>de no poema, alargando, ao mesmo tempo, p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>desretóricas e temáticas. Estas realizações vieram trazer à baila questões umtanto negligencia<strong>da</strong>s de pr<strong>os</strong>ódia e técnicas narrativas no poema, paraalém de provocarem, com <strong>os</strong> seus debates e text<strong>os</strong> de resp<strong>os</strong>ta à crítica, um23 No «Prefácio» a The Gh<strong>os</strong>t of Tradition, Kevin Walter enfatisa que o objectivo do seulivro não é apenas relevar a crescente importância do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry. eexaminar e interpretar a obra de alguns d<strong>os</strong> seus poetas mais significantes, mas tambémreflectir sobre a influência do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry na poesia e na história <strong>da</strong>literatura contemporânea. É esta última perspectiva que aqui relevam<strong>os</strong> e que n<strong>os</strong>interessa focalizar. [1998:ix a xiv]24 O termo «Expansive», relacionado com a nomeação do movimento de poetas, foiutilizado pela primeira vez por Wade Newman em 1988, pretendendo com ele transmitiro grande interesse d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry em expandir tanto o alargamento <strong>da</strong>sp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des formais disponíveis ao poeta para uso na sua poesia como a abertura deuma audiência de «leitores-ouvintes» para a poesia.270


corpus teórico e crítico que levou estas questões para além d<strong>os</strong> mur<strong>os</strong> d<strong>os</strong>mei<strong>os</strong> académic<strong>os</strong>, através d<strong>os</strong> media, com particular relevo para a net.Kevin Walzer refere ain<strong>da</strong> que um d<strong>os</strong> mais contundentes op<strong>os</strong>itoresao movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry foi Jonathan Holden, 26 de quem cita aseguinte afirmação, por fim já um tanto conciliatória:After conceding that poetry has been marginalized inthe twentieth century and admitting that there is a tremendousamount of mediocre verse written to<strong>da</strong>y, the university is thekey to restauring poetry´s relevance, rather than the cause of itsirrelevance. [...] «democratization» of poetry has always beencrucial in overturning Modernist elitism, making poetry moreaccessible, and increasing his audience.Walzer comenta depois, com humor, que não sabe se Holden, quand<strong>os</strong>e refere a «audience», inclui quem está fora <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de e, adiante,considera que uma <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s por que se pode detectar a influência <strong>da</strong>Expansive Poetry é a emergência de de uma geração de nov<strong>os</strong> poetas,quase tod<strong>os</strong> nascid<strong>os</strong> por volta d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta e setenta, e que se têmvindo a impôr em term<strong>os</strong> editoriais e de ven<strong>da</strong>s. Um d<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> querefere é o de Annie Finch, de quem transcreve um poema-resp<strong>os</strong>ta a umcrítico que atacara a aliança «feminism and form»:Sir, I am not a bird of pray:a Lady does not seize the <strong>da</strong>y.I trust that brief Time will unfoldour youth, beore he makes us old.How could we two write lines of rhymeWere we not fond of numbered Timeand grateful to the vast and sweet25 [1998:185 a 196]26 [1998: 187].É citado o livro de ensai<strong>os</strong> The Fate of American Poetry, de 1991.271


trials his <strong>da</strong>ys will make us meet?The Grave´s not just the body´s curse!No skeleton can pen a verse!So while this numbered World we see,let´s sweeten Time with poetry,and time, in turn, may sweeten Loveand give us time our love to prove.You´ve praised my eyes, forehead, breast;You´ve all our lives to praise the rest.Podem<strong>os</strong> encontrar o mesmo espírito de assumpção <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>delivre de críticas, mas que a estas esboça um sorriso irónico, em InêsLourenço, no poema «Feira do Livro», 27 de Um quarto com ci<strong>da</strong>des aofundo:Enfunava a laringe, relendoas tão edita<strong>da</strong>s palavrasonde ornara a humani<strong>da</strong>de campestre<strong>da</strong> sua infância, emvibráteis reverberaçõespara <strong>os</strong> jovens de trémulas pestanasatent<strong>os</strong> na assistência à cerimóniaque o pavimento suportava, enquantolá fora balouçavam as tíliasacima d<strong>os</strong> banc<strong>os</strong> vermelh<strong>os</strong>,endurecid<strong>os</strong> pelas sombrasdo fim <strong>da</strong> tarde.Como pode constatar-se, <strong>os</strong> jovens poetas que praticam o uso livre demodel<strong>os</strong> e a narrativi<strong>da</strong>de estão já um pouco mais distanciad<strong>os</strong> de questõescomo as influências marxistas, ou feministas, ou, mesmo, d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>culturais. A sua maior preocupação é viver e viver poesia; fazer poesia de27 [2000:93]272


um modo simples e claro, em melodias que narrem e captem, ca<strong>da</strong> vez mais,um ca<strong>da</strong> vez mais vasto público de leitores e ouvintes.Na reali<strong>da</strong>de, foram muit<strong>os</strong> <strong>os</strong> poetas d<strong>os</strong> dois últim<strong>os</strong> decéni<strong>os</strong> d<strong>os</strong>éculo vinte, n<strong>os</strong> E.U.A., a ser profun<strong>da</strong>mente influenciad<strong>os</strong>, ou dirigid<strong>os</strong>,pelas ideias teóricas, teoréticas e fil<strong>os</strong>óficas do pós-modernismo acerca <strong>da</strong>poesia e <strong>da</strong> cultura em geral, problematizando e equacionando desafi<strong>os</strong> que,afinal, não constituiam propriamente uma inovação mas eram, sim, trazid<strong>os</strong>à superfície através do discurso de crític<strong>os</strong> e teóric<strong>os</strong> seus contemporâne<strong>os</strong>.A este propósito, afirma Lin<strong>da</strong> Hutcheon em A Poetics of P<strong>os</strong>tmodernism 28 :What interests me here, however, is not the detail of thedebate but the fact that history is now, once again, an issue -and rather a problematic one at that. It seams to be inevitabelytied up with that set of challenged cultural and socialassumptions that also condition our notions of both theory an<strong>da</strong>rt to<strong>da</strong>y: our beliefs in origins and ends, unity and totalization,logic and reason, consciousness and human nature, progressand fate, representation and truth, not to mention the notions ofcausality and temporal homogeneity, linearity and continuity. 29A prática literária pós-modernista, no entanto, apesar de enraiza<strong>da</strong> navontade de encarnar a autorização para transgredir as convenções - numrevisitar crítico <strong>da</strong> história que subentende a essenciali<strong>da</strong>de do conceitooperacional pós-moderno de «processo/procedimento» - não tinha comoobjectiv<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> e declarad<strong>os</strong> nem explorar e expandir asp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des formais ao dispor d<strong>os</strong> poetas, nem a defesa do uso <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de, nem relevar a recepção (também no sentido de audiência)<strong>da</strong> poesia, tal como <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry pretendiam praticar e28 [1988:87] - cap. 6 - «Historicizing the p<strong>os</strong>tmodern: the problematizing of history»29 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.273


defender. É por isto que a Expansive Poetry irá despertar o velho eameaçador fantasma d<strong>os</strong> model<strong>os</strong> <strong>da</strong>s antigas tradições e trazê-lo de novopara a ribalta, o que, embora não eliminando model<strong>os</strong> contemporâne<strong>os</strong>,não deixou de provocar acesa polémica n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> e académic<strong>os</strong> d<strong>os</strong>E.U.A.Fazem<strong>os</strong> questão, ain<strong>da</strong>, de diferenciar a Expansive Poetry <strong>da</strong>Language Poetry (em foco, sobretudo, na América d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta e, ain<strong>da</strong>,oitenta, e que podem<strong>os</strong> relacionar com a poesia experimental e linguística,sobretudo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta e setenta, em Portugal) na medi<strong>da</strong> em que <strong>os</strong>poetas <strong>da</strong> Language Poetry consideram e usam a linguagem como umatalho conducente à escrita de poemas elaborad<strong>os</strong>, de difícil audição, cujoprincipal objectivo era, predominantemente, m<strong>os</strong>trar e evidenciar, na escrita,a imensa multiplici<strong>da</strong>de de sentid<strong>os</strong> que o trabalho com a linguagem é capazde criar. Esta importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao trabalho <strong>da</strong> linguagem escrita diferenciasedo modo como ela é usa<strong>da</strong> pel<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, reflectindoa escrita destes um objectivo muito mais pragmático, pois é usado comomeio útil, ou ferramenta do fazer, conectado este com o relevo <strong>da</strong>do a umarealização acústica que facilite a leitura, seja ela mental ou oral.O objectivo pragmático primordial, nesta atitude, conduz, pois, <strong>os</strong>poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry a usar a linguagem como instrumento quep<strong>os</strong>sibilita o clarificar de pensament<strong>os</strong> e ideias em vez de, como naLanguage Poetry, <strong>os</strong> obscurecer, permitindo ain<strong>da</strong> realçar o poder de contarhistórias através <strong>da</strong> poesia, revivificando, simultaneamente, efeit<strong>os</strong> do uso<strong>da</strong> rima e <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong>de rítmica <strong>da</strong> métrica, relacionad<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> com oobjectivo de facilitar a recepção. Foi através do uso destas linhas modelaresde realização que <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry puderam ser capazes dedespertar velhas tradições que tinham sido silencia<strong>da</strong>s e esqueci<strong>da</strong>s, emboranão completamente bani<strong>da</strong>s. 30 Estas antigas e adormeci<strong>da</strong>s tradições haviam30 Referimo-n<strong>os</strong>, sobretudo, à manutençãp destes model<strong>os</strong> através <strong>da</strong> «poesia subterrânea» eà sua panorâmica distribucional no país, consoante gráfic<strong>os</strong> do Anexo.274


permanecido, como um lençol de água, latentes na existência cala<strong>da</strong> depublicações secun<strong>da</strong>riza<strong>da</strong>s ou na voz de poetas «subterrâne<strong>os</strong>», para seremdepois retoma<strong>da</strong>s por jovens poetas e lembra<strong>da</strong>s e glorifica<strong>da</strong>s por nov<strong>os</strong>circunstancionalism<strong>os</strong> socio-literári<strong>os</strong> e fil<strong>os</strong>ófico-polític<strong>os</strong>. Assim seconstrói a história literária, assim também as antigas linhas modelares <strong>da</strong>prática poética sobreviveram, latentes, à espera de novas pedra<strong>da</strong>s no charcoque as trouxessem de novo à vi<strong>da</strong>, num outro contexto e numa outradimensão.O facto de <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry utilizarem model<strong>os</strong> dopassado, tal como a sua agressivi<strong>da</strong>de contra o status quo seucontemporâneo, valeu-lhes duras batalhas verbais com a crítica, até quefortalecessem e impusessem o seu modo de fazer, nomea<strong>da</strong>mente batalhasverbais com outr<strong>os</strong> poetas e crític<strong>os</strong> e, sobretudo, n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> universitário e<strong>da</strong> imprensa literária. No entanto, se quiserm<strong>os</strong> compreender <strong>os</strong> text<strong>os</strong>crític<strong>os</strong> d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, tem<strong>os</strong> forç<strong>os</strong>amente queconsiderar a sua reacção à agressivi<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> que sobre elesescreveram crític<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> e teóric<strong>os</strong>, mesmo, ou sobretudo, porque amaioria deles defende um p<strong>os</strong>icionamento h<strong>os</strong>til que criou um ambienteeditorial adverso. Este p<strong>os</strong>icionamento adverso foi fomentado, sobretudo,por poetas que pertenciam a<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> universitári<strong>os</strong> e, entre estes, alguns d<strong>os</strong>que assumiam docência de cadeiras de escrita criativa, 31 facto este queestendeu a atitude adversa a<strong>os</strong> jovens estu<strong>da</strong>ntes. Estes docentes, em geralpoetas eles própri<strong>os</strong>, atacaram violentamente a Expansive Poetry e <strong>os</strong> seuspoetas, acusando-<strong>os</strong> de atitudes reaccionárias e de elitismo anti-nacional,apenas porque pretendiam despertar e fazer reviver cert<strong>os</strong> model<strong>os</strong> rimátic<strong>os</strong>ou métric<strong>os</strong> de poesia, aliad<strong>os</strong> a uma poesia narrativa que se exprimia porvezes em poemas relativamente breves mas, maioritariamente, de extensa31 Cadeiras geralmente referi<strong>da</strong>s como Criative Writing.275


dimensão, por vezes quase épica, embora contemplando integração delírica.Houve alguns crític<strong>os</strong> e escritores, sobretudo poetas relacionad<strong>os</strong> como movimento, como, por exemplo, Kevin Walzer, que consideraram que arazão de ser desta h<strong>os</strong>tili<strong>da</strong>de era, p<strong>os</strong>sivelmente, o facto de a ExpansivePoetry ser «a direct rejection of the poetic culture and aesthetic they havecreated and nurtured» 32 tal como Walzer desenvolve em The Gh<strong>os</strong>t ofTradition: 33On the other hand, P<strong>os</strong>tmodern theorists who championLanguage Poetry and avant-garde writing in general refuseeven to acknowledge the p<strong>os</strong>sibility that contemporary poetscould reject the avant-garde (paradoxically the m<strong>os</strong>tconservative literary tradition in the late twentieth century) andstill reflect current critical concerns with popular culture, thelegacies of Modernism, and the relevance of older styles andmodes of writing. 34Na reali<strong>da</strong>de, se é certo a Expansive Poetry E.P. se encontrardirectamente relaciona<strong>da</strong> com a praxis poética e crítica, certo é também que<strong>os</strong> seus poetas desafiam, simultaneamente, a estabili<strong>da</strong>de dessa mesmapraxis pel<strong>os</strong> mod<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> quais usam, concomitantemente, tanto model<strong>os</strong>tradicionais como model<strong>os</strong> <strong>da</strong> prática do cânone que lhes é contemporâneo.Julgam<strong>os</strong> que o motivo por que tal acontece pode residir no facto de, n<strong>os</strong>an<strong>os</strong> oitenta, quando a Expansive Poetry começou a ser divulga<strong>da</strong> econheci<strong>da</strong>, tanto o uso de model<strong>os</strong> métric<strong>os</strong> como <strong>da</strong> poesia narrativaain<strong>da</strong> serem considerad<strong>os</strong>, pela generali<strong>da</strong>de de crític<strong>os</strong> e académic<strong>os</strong>, comorealizações de um passado definitivamente ultrapassado e comomanifestações de uma perspectiva capitalista. Este p<strong>os</strong>icionamento contra a32 [1998:xi], «Prefácio» a The Gh<strong>os</strong>t of Tradition.33 [1998:ix]276


Expansive Poetry, assumido publicamente tanto pela crítica universitáriacomo pela crítica mediática <strong>da</strong> especiali<strong>da</strong>de, pode, provavelmente, serexplicado por uma proximi<strong>da</strong>de de uso ou por um persistente arreigamento auma visão tradicional que considera que a poesia se deve rebelar contra asocie<strong>da</strong>de presente e contra o passado cultural, visão esta geralmenteapoia<strong>da</strong> tanto pelo academismo como pel<strong>os</strong> circuit<strong>os</strong> de crítica e edição depoesia.É curi<strong>os</strong>o constatar que a visão referi<strong>da</strong> implica um paradoxo que n<strong>os</strong>parece evidente e que consiste no facto de <strong>os</strong> poetas louvad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> mei<strong>os</strong>docentes e crítica mediática serem, também, e simultaneamente,considerad<strong>os</strong> e incentivad<strong>os</strong> pela própria socie<strong>da</strong>de que deveriam acusar eatacar na sua poesia, sendo, até, <strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> poetas que haviam sidoincentivad<strong>os</strong> pelo capitalismo que deveriam ter denunciado e contra o qualdeveriam ter lutado.Frederick Feirstein e Frederick Turner salientaram esta contradição nasua «Introdução» a Expansive Poetry - Essays on the New Narrative & NewFormalism: 35Many of us included in this anthology, having begunwriting only in free verse, started to question what using formreally had to do with politics. In fact, we began to see theinsistence on writing only in free verse and only the lyric asterribly confining in itself. Though we had began by writingpersonal poems, as we became more experienced with life, wewanted to write about others and to try other forms, thenarrative and dramatic forms that would allow for this. 36Ain<strong>da</strong> na mesma «Introdução», Feirstein e Turner admitem que overso livre e branco era útil, sobretudo, na escrita de poemas narrativ<strong>os</strong>34 Sublinhado n<strong>os</strong>so.35 [1989:x]277


ou de poemas dramátic<strong>os</strong>, visto ser neles quase sempre utilizado o discursodirecto, não deixando, também, de salientar que o uso de model<strong>os</strong> métric<strong>os</strong>ou rimátic<strong>os</strong> tradicionais são essenciais no acto criador, para configurar«contrapuntal tensions» no verso que vão ao encontro <strong>da</strong> «tension in theaction». Também salientam o facto de <strong>os</strong> poemas que estão em verso livreserem «not only supported by rhetoric from within but from without». 37Apesar de óbvia, esta constatação não deixa de ser relevante, namedi<strong>da</strong> em que põe a tónica num d<strong>os</strong> principais objectiv<strong>os</strong> definid<strong>os</strong> pel<strong>os</strong>poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry n<strong>os</strong> seus text<strong>os</strong> acerca do movimento, ou seja, adefesa de que o poema lírico, para chegar à sua audiência de leitores ou deouvintes, deve «contar o enredo do seu canto» numa linguagem simplese musical mas sempre natural. Como releva Timothy Steele, um d<strong>os</strong> poetasd<strong>os</strong> começ<strong>os</strong> <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> Expansive Poetry: 38 «it was important todeflate inflated diction in order to capture the audience». 39Sendo Timothy Steele um d<strong>os</strong> poetas que desafiou acerrimamente aidentificação do poema lírico com o verso livre, não surpreende que, n<strong>os</strong>seus poemas, tenha utilizado grande varie<strong>da</strong>de de model<strong>os</strong> formais paraconstruir poemas de linguagem simples e cuja temática se centra nacontemporanei<strong>da</strong>de, arvorando por isso <strong>os</strong> seus poemas um enraizamento dedupla tradicionali<strong>da</strong>de, manifesta<strong>da</strong> quer na recuperação de model<strong>os</strong>formais quer na preferência temática pela exteriori<strong>da</strong>de ao sujeito lírico.É, contudo, prova <strong>da</strong> imensa flexibili<strong>da</strong>de a que se propunham <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong>Expansive Poetry o facto de também encontrarm<strong>os</strong> na sua obra o uso deverso livre, quase sempre aliado a moment<strong>os</strong> de interiori<strong>da</strong>de do sujeito,mas estes articulad<strong>os</strong> numa projecção com a exteriori<strong>da</strong>de.Podem<strong>os</strong>, assim, encontrar na obra de Timothy Steele uma dominantede poemas que apelam directamente para a intimi<strong>da</strong>de do leitor ao falar de36 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.37 [1989:xi, xii]38 Sublinhado n<strong>os</strong>so.278


uma exteriori<strong>da</strong>de contemporânea comum, através do contar de históriasreplectas de referências a<strong>os</strong> event<strong>os</strong> e emoções vivid<strong>os</strong> no quotidiano, como,por exemplo, no poema «Homage to a Carnegie Library», de The ColorWheel: 40In the reading roomA boy takes notesFrom a World Book volume.His school report´sAbout the telescopeOr AlexanderOr (that old show-stopper)The Venus flytrap.Snow falling outside,A radiator hisses;Inquiries are whispered;Someone coughs; a book cl<strong>os</strong>esWith an audible thump.Newspapers on spindlesHang, limp verticals,In a rack by a lamp.And the boy, determined,With his pencil scratchesHis notepad´s green-linesYellow pages...Companionable room,In that early <strong>da</strong>rknessYou stood in promiseOf a sunnier time.39 Ed./Net - http://www.cortlandreview.com/features/00/06/.40 [1994:34]279


From broad shallow shades,The bulbs over the tablesGl<strong>os</strong>s the rich wood´sGrainy surfaces,Though the <strong>da</strong>rk grow deeper,Though the boy discoverThe streets all quietThrough the homeward night.A descrição de uma cena observa<strong>da</strong> por um sujeito lírico quesimultaneamente se inscreve e se oculta no poema (mas com funçõesidênticas à de um narrador heterodiegético não omnisciente) centraliza-se,inicialmente, na visão e observação de uma personagem mas abre,progressivamente, essa descrição à comunhão de vivências com o sujeitolírico-narrador através <strong>da</strong> abertura sinu<strong>os</strong>a d<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong>. Este alargamento deespaço faz-se através <strong>da</strong> restrição do enquadramento de uma janelapartilha<strong>da</strong>, o que provoca um efeito de imaginação cúmplice entreobservador e observado, que projecta, ain<strong>da</strong>, para o leitor, a assumpção <strong>da</strong>sduas funções e dupla identificação com o sujeito lírico/narrador e com oobjecto lírico/personagem.Tal como a maioria d<strong>os</strong> poemas de Timothy Steele, a força <strong>da</strong>simplici<strong>da</strong>de deste poema, escrito com regulari<strong>da</strong>de estrófica e métrica, bemcomo o relevar de pormenores cénic<strong>os</strong> que rodeiam a estabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>acção, convocam o leitor a viver, através <strong>da</strong> sua própria experiênciaquotidiana, emoções e cenário que o sujeito lírico-narrador diz que sente evê, e que o objecto lírico-personagem sente e vê, num procedimentonarrativo de desdobramento. Parece-n<strong>os</strong> importante esta cinematografiado olhar na medi<strong>da</strong> em que desenha, ou filma, ou projecta, o esboço de umahistória a completar pela vivência, simultaneamente sensível e mental, <strong>da</strong>experiência do quotidiano do leitor, história essa cuja temática, ideias eemoções são aproxima<strong>da</strong>s e veicula<strong>da</strong>s através de uma linguagem clara,280


lógica, directa e quase corrente. Por p<strong>os</strong>suir tais características, o poematorna acessível e fácil, por parte do leitor, uma identificação de si próprio,tanto com a situação descrita como com a própria regulari<strong>da</strong>de formal queembala, ritma e simplifica o processo de memorização instantâneanecessário a uma compreensão primeira. 41Não querendo avançar muito por comparativism<strong>os</strong> forçad<strong>os</strong>,salientam<strong>os</strong> apenas que, em Portugal, numa flexibili<strong>da</strong>de temporal queengloba as últimas duas ou três déca<strong>da</strong>s do milénio, encontrám<strong>os</strong>realizações poéticas muito semelhantes em características (que não emobjectiv<strong>os</strong> declarad<strong>os</strong>) a<strong>os</strong> process<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> ExpansivePoetry, e que adiante desenvolverem<strong>os</strong>, aquando <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na prática <strong>da</strong> poesia portuguesa. G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong>, desde já, deaqui deixar, um tanto aleatoriamente mas pelo paralelismo de queconstituem exemplo, o testemunho de excert<strong>os</strong> de poemas de JoaquimManuel Magalhães, de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista e de Vasco Graça Moura,respectivamente escrit<strong>os</strong> em 1978, 1994 e 2002.De Joaquim Manuel Magalhães, de Antonio Palolo,42 as duasprimeiras <strong>da</strong>s cinco estrofes de um poema que conta a inevitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>srepetições d<strong>os</strong> percurs<strong>os</strong> de um enamoramento, oferecendo ao leitor aobservação simultânea de um caso pontual e de generalizações, através deum processo elocutório tradicional <strong>da</strong> relação entre sujeito lírico e objectoamado, a<strong>da</strong>ptado à narrativi<strong>da</strong>de do poema:Vais ca<strong>da</strong> vez mais cedo para a rua<strong>da</strong>ntes só o outro dia te levava.Não tem mal, deixa-me falar<strong>da</strong>s pessoas encontra<strong>da</strong>s num jardimescondo-me no verde d<strong>os</strong> seus olh<strong>os</strong>41 Referimo-n<strong>os</strong> a uma memória imediata e primeira, necessária ao primeiro impacto <strong>da</strong>leitura42 [2001:166,167], ed. orig. 1978.281


se f<strong>os</strong>sem <strong>os</strong> meus, esses acor<strong>da</strong>vamcom a folha de fogo <strong>da</strong> videirana lata<strong>da</strong> ao dia mais brilhantede maio qunado as aves voltame a glicínia começa a cair.É assim, eu sei. Depois de se querer tudoquerem<strong>os</strong> só o corpo e depois nem isso,apenas que te lembresde certo canto de rua, <strong>da</strong> garrafanum café do bairro, do papelque tanto recado te levou,do jardim onde ao anoitecerenrolávam<strong>os</strong> cigarr<strong>os</strong>na folha de papel «conquistador».-------------------------------------------O contar <strong>da</strong> história do desgaste de uma relação amor<strong>os</strong>a pela er<strong>os</strong>ãodo quotidiano surge de modo intermitente no poema, centralizado n<strong>os</strong>primeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> <strong>da</strong>s estrofes, e funcionando <strong>os</strong> restantes vers<strong>os</strong> como umaespécie de monólogo interior do sujeito que conta, implicando, por isso,uma maior densi<strong>da</strong>de rítmica e lírica, sobretudo na evocação acusadora doobjecto, embora nunca deixando de lado um campo lexical relacionado com<strong>os</strong> gest<strong>os</strong> do quotidiano.Apesar <strong>da</strong> ausência de um uso modelar tradicional sem infracções,crem<strong>os</strong> poder afirmar que este poema se interliga com as realizações quehaveriam de marcar, sobretudo, <strong>os</strong> New Narrative Poets, inclusive pelaintrodução de situações e object<strong>os</strong> do quotidiano reportad<strong>os</strong> em linguagemsimples. Do mesmo modo julgam<strong>os</strong> poder considerar a presença d<strong>os</strong>pormenores de cenári<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> object<strong>os</strong> e personagens esboça<strong>da</strong>s, no longopoema «Travessa de São Filipe», de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, em Canções282


<strong>da</strong> Terra Distante, 43 do qual transcrevem<strong>os</strong> uma estrofe, para além <strong>da</strong>sprimeiras três e duas últimas:Cheguei cedo, na primavera d<strong>os</strong> rapazes.O cão do norte veio morrer às portas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,já do amigo compadecido.Havia dálias e crav<strong>os</strong> e gladíol<strong>os</strong> e as tias atrás<strong>da</strong>s cortinas.As cortimas tinham o medo nas suas ren<strong>da</strong>s.Eu tinha o medo no coração.O tédio parava na imobili<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> guin<strong>da</strong>stes.Havia sombras de um beco uma luz muito triste.As trepadeiras enre<strong>da</strong>vam-se n<strong>os</strong> mur<strong>os</strong> e subiam.No terraço, a minha vi<strong>da</strong> sentava-se longamente.Ao longe, a palmeira recortava o deu perfil eparecia uma esfingeuma faca aponta<strong>da</strong> ao céu.------------------------------------------------------------------Amei em frente uma cabeleira de trigo errante ena sua doura<strong>da</strong> exaltação<strong>os</strong> metais que refulgiam.Era uma cabeleira ondulando. Eram velas ondulandona pequena alegria.---------------------------------------------------------------------Agora chove n<strong>os</strong> abacates e n<strong>os</strong> araçás.Chove por dentro, diluvianamente,para sempre.A ternura escava a sua mora<strong>da</strong> subterrânea.43 [1994:11 a 14]283


Oculto as minhas nascentes.Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho éuma obssessão de mastr<strong>os</strong> e linhas de água.Eu era um rapaz muito cedo na primavera.O sujeito lírico, que suporta um desdobramento em narrador epersonagem, veicula o contar de um regresso à terra natal, num passado que,inicialmente, se não adivinha ser distante mas onde ressoa a n<strong>os</strong>talgia de umregresso de Ulisses e onde, paralelamente, se tece em «trigo errante» umaurdidura de Penélope em fi<strong>os</strong> de «cabeleira ondulando», em trama fina de«velas ondulando». O regresso acabará por se transformar em momentoiniciático de um reconhecimento sem tempo, a chover «por dentro,diluvianamente, / para sempre» num percurso circular de epopeia ou dememória de vi<strong>da</strong>.O confessionalismo de índole quase autobiográfica que se desprendedo poema (e se centraliza, nestas estrofes, na metonímia intimista do verso«No terraço, a minha vi<strong>da</strong> sentava-se longamente») ajusta o lirismo ànarrativi<strong>da</strong>de justamente através <strong>da</strong>s descrições, sejam estas maispormenoriza<strong>da</strong>s ou meras sugestões, esboç<strong>os</strong> ou apontament<strong>os</strong>. Semelhanteprocesso retórico, mas acompanhado pelo cumprimento parcial de ummodelo formal, tão característico d<strong>os</strong> New Formalism Poets, se podedetectar no poema «ain<strong>da</strong>», de Vasco Graça Moura, em Outr<strong>os</strong> lugares, doqual transcrevem<strong>os</strong> as três primeiras e as duas últimas estrofes: 44no filme, o homem cruza o sky-linede helicóptero, ao amanhecer.por sobre o hudson ain<strong>da</strong> há luzes ezonas de névoa esbranquiça<strong>da</strong>.44 [2002:48,49]284


a mulher espera-o num terraçoelevado, apoia uma <strong>da</strong>s mã<strong>os</strong>no gradeamento e perscrutao céu ain<strong>da</strong> pálido, então acena,ain<strong>da</strong> sem saber se ele a avista.está de roupão de banho eacordou há pouco, despentea<strong>da</strong>e matinal de sono e vento.-----------------------------------------um efémero encantamentoque doendo lhes dure até mais tarde.nova iorque tem sagezas destas, quasea preto e branco, reflecti<strong>da</strong>s na água,como o aceno que trocaram, ou a pele<strong>da</strong>s coisas que não disseram, ouo tempo todo de repente, ain<strong>da</strong>sem ter de haver dia seguinte.O processo de mise en abyme, neste poema, convoca o encaixamentoe a interacção de um espaço de ficção televisiva num outro espaço de ficção,este último despoletado, por sua vez, pela dimensão criativa e imagináriaque «nova iorque» faz nascer no sujeito lírico. Este último corresponde a umsujeito lírico que se oculta, e oculta a dimensão do seu lirismo, por trás depseudo-clichés mediátic<strong>os</strong> que, por seu turno, criarão uma segun<strong>da</strong>dimensão de mise en abyme, especular em relação ao leitor do poema queacaba por se ver a si mesmo ocupando a p<strong>os</strong>ição de personagem.Mais ain<strong>da</strong> que n<strong>os</strong> dois poemas anteriores, são aqui evidencia<strong>da</strong>stécnicas <strong>da</strong> narrativa e, mesmo, de narrativa cinematográfica, talvez porque285


a própria temática do poema exponha em paralelo um enredo «fílmico» eum enredo «pseudo-factual».Muriel Rukeyser, em The Life of Poetry, 45 ao comparar a técnica defotogramas do cinema com a poesia, relaciona as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des dedescrição ou de reprodução <strong>da</strong> imagem factual com a extensão do seusignificado e considera que este resulta tanto mais evidente e aberto quantomaior for a selecção d<strong>os</strong> fotogramas de continui<strong>da</strong>de, ou <strong>da</strong> força derepresentação do discurso organizado em sequência. Embora se refira,como exemplo, ao imagismo, crem<strong>os</strong> poder articular com <strong>os</strong> procediment<strong>os</strong>narrativ<strong>os</strong> <strong>da</strong> Expansive Poetry a sua afirmação seguinte:Now the relation of writing to the arts of sight may beseen in a wide range of forms, from the image lifted out of thepoem to the title of a painting: and perhaps m<strong>os</strong>t clearly to ourtime, in films, with the writing that goes into the script anddetermines the image track, and the dialogue we hear as we«see» the finished movie. There is no word for the audienceaction before a movie or na opera or a television screen. Thecombination of sense-action is too clear; but the lack of a wordis true before any of the arts. 46Na reali<strong>da</strong>de, a acção <strong>da</strong> audiência está centra<strong>da</strong> na inteligência dopoder visual que se gera a partir do descritivo, seja este oferecido por umfotograma, seja pela linguagem de um poema. Julgam<strong>os</strong> que anarrativi<strong>da</strong>de, alia<strong>da</strong> à empatia com o mundo vivencial e visual do leitor -e de que o poema transcrito é um d<strong>os</strong> múltipl<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> p<strong>os</strong>síveis -,institui uma tónica imagística experimental prep<strong>os</strong>ita<strong>da</strong>. Esta imagísticareflecte um objectivo preciso <strong>da</strong> escrita d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry,visto que, quer do ponto de vista <strong>da</strong> prática literária quer do d<strong>os</strong> text<strong>os</strong>45 [1996:133]46 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.286


crític<strong>os</strong> destes poetas, se transmite uma forte preocupação com apragmática no que respeita à vivência imagética e à sua consequenteacessibili<strong>da</strong>de ao poema. Os leitores ou ouvintes de poesia, ao lerem ououvirem um poema, devem sentir de imediato que estão a ler ou ouvir algofamiliar sobre si própri<strong>os</strong> e acerca <strong>da</strong> sua própria vivência. Talvez seja poresta intencionali<strong>da</strong>de que um outro poeta <strong>da</strong> Expansive Poetry, Dana Gioia,afirma, no decurso de um diálogo com Paul Lake, outro autor do movimento<strong>da</strong> Expansive Poetry: 47 .As the pop culture of what was now society began tointermingle with the academic world, notions of what wasfashionable rather than aesthetically began to infiltrate poetry.Poets became afraid of writing. 48Talvez por isso, também, em «The Dilemma of the long poem», 49Dana Gioia se interrogue:Are stories no longer told in poetry? Important ideas nolonger discussed at length?[...] The orthodox academic reply isthat the intensity and concentration of modern poetry has madethe long poem imp<strong>os</strong>sible. 50E reconhece ain<strong>da</strong> que a concentração polissémica característica <strong>da</strong>poesia lírica do século vinte, sobretudo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta e setenta, tevecomo óbvia consequência o agonizar <strong>da</strong> extensão do poema. Além destacausa, Dana Gioia aponta como causali<strong>da</strong>de prévia para essa situação dequase perigo de extinção o facto de o poema «expansivo» necessitar aforça de uma certa rigidez e a funcionali<strong>da</strong>de de uma certa47 ) Ed./ Net - http://home.earthlink.net/arthur505/lake1 (20-03-2001)48 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.49 ) «The Dilemma of the Long Poem» foi publicado pela primeira vez em The KenyonReview, Vol. V, 1983.287


egulari<strong>da</strong>de modelar que p<strong>os</strong>sam suportar, acompanhar, apoiar e guiartanto o poeta como o leitor e, sobretudo, o leitor-ouvinte de poesia,características essas, como vim<strong>os</strong>, despreza<strong>da</strong>s pel<strong>os</strong> model<strong>os</strong> de cânone <strong>da</strong>poesia hodierna, sobretudo a de mead<strong>os</strong> do século vinte. É a partir destabase argumentativa que Dana Gioia defende <strong>os</strong> poemas narrativ<strong>os</strong> long<strong>os</strong> -em Portugal tão praticad<strong>os</strong> por Ruy Belo -, valorizando a conexão destescom a ideia de que o poema extenso, «expansivo», deve criar a suaprópria forma discursiva.Publicado em 2000, o ensaio The Poetry of Life and the Life of Poetry,de David Mason, expõe uma problemática que, julgam<strong>os</strong>, decorre <strong>da</strong>aceitação desta noção de que o poema «expansivo», deve criar a sua própriaforma discursiva, ao expor o paradoxo controverso <strong>da</strong> coexistência do versolivre como expressão do «eu» («self») 51 e o uso <strong>da</strong> métrica como expressãode uma experiência para além do «eu»: 52As I read contemporary poetry, I have found a greatdeal of self indulgence. Though I have nothing against thepersonal in art, I do want it transformed, made into somethingbeyond an advertisement for the self. 53Podem<strong>os</strong> encontrar constatações semelhantes na escrita poética oucrítica de outr<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, compreendendo, assim, arazão <strong>da</strong> sua intencionali<strong>da</strong>de quando encontram<strong>os</strong>, alternando no mesmopoema, presença de métrica, rima e verso livre e branco, como traçad<strong>os</strong> deum caminho nuanceado que conta a experiência do eu («self») para além desi próprio, até às suas dimensões mais profun<strong>da</strong>s de enraizamento endógeno50 Sublinhado n<strong>os</strong>so.51 Julgam<strong>os</strong> que o termo inglês «self» se pode relacionar com as instâncias do «ego» e do«superego» no primeiro aparelho psíquico <strong>da</strong> terminologia freudiana <strong>da</strong> «psicologia <strong>da</strong>sprofundezas», que aproximava ain<strong>da</strong> bastante estas instâncias. Confronte-se Freud[1969:31 a 39].52 [2000:15]288


e exógeno. Sublinham<strong>os</strong> que essa alternância formal é intencionalmenteassumi<strong>da</strong> na mu<strong>da</strong>nça dessas formas ao longo do poema, acompanhandoalternâncias temáticas, operacionali<strong>da</strong>de de narradores, personagens, temp<strong>os</strong>ou espaç<strong>os</strong>, variação de acções, sentiment<strong>os</strong> ou atm<strong>os</strong>feras.Dana Gioia é aqui mencionado como exemplo de um d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong>Expansive Poetry que trabalha com maior varie<strong>da</strong>de de model<strong>os</strong> formais,criando uma poética cuja expressivi<strong>da</strong>de é <strong>da</strong>s mais diversifica<strong>da</strong>s. No seulivro de poesia The Gods of Winter encontram<strong>os</strong> uma exemplar alternânciade poemas líric<strong>os</strong> breves com long<strong>os</strong> poemas narrativ<strong>os</strong>, articulando-sepela coerência de uma dimensão segun<strong>da</strong> de narrativi<strong>da</strong>de, unifica<strong>da</strong>ain<strong>da</strong> pela continui<strong>da</strong>de temática em torno <strong>da</strong> morte de um filho. Estaunificação é reforça<strong>da</strong> pelo acompanhamento de um tom elegíaco que semanifesta ao longo d<strong>os</strong> poemas líric<strong>os</strong> e narrativ<strong>os</strong>, estejam estes pontuad<strong>os</strong>pela sonori<strong>da</strong>de métrica e rimática ou em verso livre, mas tod<strong>os</strong> elespautad<strong>os</strong> pela presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de. Um d<strong>os</strong> poemas, intitulado«Planting a Sequoia», conta a história <strong>da</strong> dor de uma família devasta<strong>da</strong> pelamorte do filho de um de sete irmã<strong>os</strong>. É um poema muito simples e calmoonde se ouve a sonori<strong>da</strong>de lenta e musical de uma melancolia elegíaca.Da<strong>da</strong> a longa extensão do texto, dele transcrevem<strong>os</strong> apenas as suas últimasestrofes 54 :But to<strong>da</strong>y we kneel in the cold planting you, our native giant,Defying the practical custom of our fathers,Wrapping in your roots a lock of hair, a piece of an infant´s birth cord,All that remains above earth of a first-born son,A few stray atoms brought back to the elements.53 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.54 [1998:10]289


We will give you what we can - our labor and our soil,Water drawn from the earth when the skies fail,Nights scented with the ocean fog, <strong>da</strong>ys softened by the circuit of bees.We plant you in the corner of grove, bathed in western light,A slender shoot against the sunset.And when our family is no more, all of his unborn brothers dead,Every niece and nephew scattered, the house torn down,His mother´s beauty ashes in the air,I want you to stand among strangers, all young and ephemeral to you,Silently keeping the secret of your birth.O sujeito lírico assume-se neste poema como um narrador participanteque se introduz na pele <strong>da</strong> personagem do pai, mantendo, simultaneamente,um ponto do vista homodiegético, subterfúgio este que confere ao actoconjunto do plantar <strong>da</strong> sequoia uma dimensão sentimental de cerimóniainiciática que transcende a morte do filho e perpetua <strong>os</strong> afect<strong>os</strong> e a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>família.O s<strong>os</strong>sego conformado, quase etéreo, aliado à força emocional que sedesprende destas estrofes, constitui um bom exemplo do modo como DanaGioia trabalha um discurso directo quase oculto e silente, como oração quef<strong>os</strong>se murmura<strong>da</strong> em linguagem simples mas melódica e n<strong>os</strong>tálgica ,queconvoca a emoção e a projecta, simultaneamente, na vivência do leitor.Mesmo n<strong>os</strong> seus mais long<strong>os</strong> poemas, podem<strong>os</strong> encontrar <strong>os</strong> moment<strong>os</strong>líric<strong>os</strong> quase pur<strong>os</strong> que se encontravam na antiga poesia épica, enfatizad<strong>os</strong>,ain<strong>da</strong>, pelo já referido uso alternado <strong>da</strong> métrica, <strong>da</strong> rima e do verso branco.É o próprio Dana Gioia que deste modo se auto-analisa, em «Notes on theNew Formalism» 55 :In my own poetry I have always worked in both fixe<strong>da</strong>nd open forms. Each mode opened up p<strong>os</strong>sibilities of style,290


subject, music, and development the other did not suggest, atleast at that moment. Likewise, experience in each modeprovided an illuminating perspective on the other. Working infree verse helped keep the language of my formal poems varie<strong>da</strong>nd contemporary, just as writing in form helped keep my freeverse more focused and precise. I find it puzzling therefore thatso many poets see these modes as opp<strong>os</strong>ing aesthetics ratherthan complementary techniques. 56Esta defesa do alargamento <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des formais do poema étambém defendi<strong>da</strong> por Timothy Steele, no seu ensaio «Tradition andrevolution: the modern movement and free verse» , 57 onde defende que overso livre « does not represent a rejection of traditional poetic discipline,but is rather an innovation of the sort which inevitably accompanies changesin style and taste». Na ver<strong>da</strong>de, quando certas convenções entram emdeclínio, outras surgem e se impõem que, por sua vez, irão ser p<strong>os</strong>tas departe pel<strong>os</strong> poetas que, an<strong>os</strong> após, mais cedo ou mais tarde, provavelmentetentarão recuperá-las de novo, num processo quase simultaneamentependular e transitivo.Salientam<strong>os</strong>, contudo, que o motivo alegado pel<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong>Expansive Poetry, n<strong>os</strong> seus text<strong>os</strong>, para justificar e defender o usoconcomitante de verso livre, métrica, rima e narrativi<strong>da</strong>de, não n<strong>os</strong>parece reflectir uma atitude em relação a mo<strong>da</strong>s ou dogmas mas, pelocontrário, manifestar um desejo de expansão <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de uso <strong>da</strong>srelações entre formas e temáticas modelares ou canónicas <strong>da</strong> poesia e, aofazê-lo, «expandir» tanto <strong>os</strong> seus mei<strong>os</strong> de trabalho como a sua audiência dereceptores.55 Ed. / Net - http://home.earthlink.net/arthur505/lake1 (20-03-2001)56 .Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.57 «Tradition and Revolution: the modern movement and free verse» foi publicado em TheSouthwest Review, Vol. 70, 1988.291


No que respeita a<strong>os</strong> text<strong>os</strong> crític<strong>os</strong>, julgam<strong>os</strong> que a sua relevância deveincidir n<strong>os</strong> text<strong>os</strong> <strong>da</strong> autoria d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, entre<strong>os</strong> quais se contam Dick Allen, Annie Finch, Dana Gioia, Paul Lake, DavidMason, Mary Jo Salter, Timothy Steele or Frederick Turner, autores deensai<strong>os</strong> e participantes em longas entrevistas nas quais expunhamclaramente e sem rodei<strong>os</strong> <strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> <strong>da</strong> Expansive Poetry. Mark Jarmanand Robert McDowell sintetizam esses objectiv<strong>os</strong> em «Navigating theFlood»: 581. Take pr<strong>os</strong>ody off the hit list. 2. Stop calling formlesswriting poetry. 3. Accuracy, at all c<strong>os</strong>ts. 4. No emotion withoutnarrative. 5. No more meditating on the meditation. 6. No morepoems about poetry. 7. No more irresponsibility of expression.8. Raze the House of Fashion. 9. Dismantle the Office ofTranslation. 10. Spring open the Jail of the Self». 59Deixando de parte um comentário ao exagero polémico quecaracteriza a maioria d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>dores de moviment<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>,crem<strong>os</strong> dever realçar, nestes objectiv<strong>os</strong>, a apologia d<strong>os</strong> model<strong>os</strong> formais edo uso <strong>da</strong> narrativa, bem como certa desconfiança em relação ao uso <strong>da</strong>metalinguagem no poema.. De notar, também, a preocupação com apr<strong>os</strong>ódia que, apesar de certa ambigui<strong>da</strong>de na enunciação, n<strong>os</strong> não pareceexcluir o verso livre, <strong>da</strong><strong>da</strong> a contextualização e a prática literária járeferi<strong>da</strong>s.58 ) «Navigating the Flood» foi o ensaio de introdução do primeiro número de «TheReaper», uma pequena revista publica<strong>da</strong> n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e direcciona<strong>da</strong> para adivulgação <strong>da</strong> poesia narrativa. Os seus númer<strong>os</strong> foram p<strong>os</strong>teriormente objecto <strong>da</strong>publicação de uma antologia organiza<strong>da</strong> por Mark Jarman e Robert McDowell epublica<strong>da</strong> em 1996 sob o título The Reaper Essays.59 [1998:5];ed.orig. 1981.292


3. ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE A EXPANSIVE POETRY E ANARRATIVIDADE NA POESIA PORTUGUESAJulgam<strong>os</strong> pertinente, nesta reflexão sobre a Expansive Poetry,interrogarmo-n<strong>os</strong> acerca <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de do movimento n<strong>os</strong> E.U.A e <strong>da</strong>sua relação p<strong>os</strong>sível com o questionamento genológico que interfere sempreque um texto adquire uma dimensão híbri<strong>da</strong> ou miscigenante. Se, para tal,partirm<strong>os</strong> do princípio de que a adopção <strong>da</strong> narrativa pela lírica transcende opróprio conceito de adopção, não poderá, por isso, emergir comocaracterística específica, nem genológica nem contextual. Como Earl Minerdefende em Comparative Poetics, a objecção resultaria irrelevante, poisdeveríam<strong>os</strong> identificar <strong>os</strong> element<strong>os</strong> narrativ<strong>os</strong>, na lírica, embora «no poemof any length will remain pure in genre». O jogo de duplici<strong>da</strong>de entre <strong>os</strong>ujeito lírico e o narrador aproxima em vez de afastar, como Minerreforça: «lyric uses other genres to become more lyrical». 60Considerám<strong>os</strong>, pois, a articulação <strong>da</strong> questão genológica com o espaçocultural e sócio-político no qual se configura passível de aproximação comoutras realizações, mesmo que não organiza<strong>da</strong>s em moviment<strong>os</strong>, mesmo quetantas vezes dispersas territorialmente, como no caso <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> mais recentes que adiante serádesenvolvido. Deste modo, socorremo-n<strong>os</strong> <strong>da</strong> p<strong>os</strong>ição defendi<strong>da</strong> por ÁlvaroManuel Machado e Daniel-Henri Pageaux em Da Literatura Compara<strong>da</strong> àTeoria <strong>da</strong> Literatura: 6160 [1990:101,103]61 [1988:158].293


O texto literário é o lugar dialético onde se articulamestruturas textuais e extratextuais [...] Paralelamente a<strong>os</strong>estud<strong>os</strong> «intra-nacionais» (que levam a problematizar a ideia denação) torna-se necessário desenvolver, a partir de relações defacto, semelhanças ou homologias referenciáveis, estud<strong>os</strong> intere intracontinentais. 62Se considerarm<strong>os</strong>, pois, o texto literário como o lugar de umadialéctica, o lugar onde as palavras encontram <strong>os</strong> mund<strong>os</strong>, terem<strong>os</strong> deadmitir que as relações factuais entre <strong>os</strong> text<strong>os</strong> podem encontrar-se edetectar-se muito para além <strong>da</strong> ideia restritiva de nações. Deste ponto devista, podem justificar-se tanto estud<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong> como formais com ointuito, ou no sentido de, detectar representações literárias e univers<strong>os</strong>literári<strong>os</strong> coerentes que podem surgir, crescer e expandir-se -paralelamente e mesmo que por homologia ou semelhança - dentro deterritóri<strong>os</strong> culturais e literári<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>.Julgam<strong>os</strong>, perante este ponto de vista, ser válido equacionar omovimento <strong>da</strong> Expansive Poetry como uma aju<strong>da</strong> para a compreensão <strong>da</strong>poesia de poetas portugueses que, sobretudo a partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta enoventa, tal como <strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, tomaram ao seu serviçoas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de alargamento textual, o aproveitamento de model<strong>os</strong>formais e as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> adopção <strong>da</strong> narrativa pela lírica. Em Portugal,no entanto, não se equacionou um movimento inovador e de debatescrític<strong>os</strong>, talvez pela manutenção esporádica d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> e procediment<strong>os</strong>referid<strong>os</strong> por parte de poetas men<strong>os</strong> recentes, aliás estu<strong>da</strong>d<strong>os</strong> e louvad<strong>os</strong>pela crítica e pel<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> universitári<strong>os</strong>, escolares e editoriais.Considerando <strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> caracterizadores <strong>da</strong> Expansive Poetry jáantes abor<strong>da</strong>d<strong>os</strong>, e confrontando-<strong>os</strong> com a observação <strong>da</strong>s obras de poesia62 Sublinhado n<strong>os</strong>so.294


publica<strong>da</strong> em Portugal n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa, 63 verificám<strong>os</strong> existir apresença simultânea de verso livre, métrica, rima e narrativi<strong>da</strong>de emmuitas actuais edições de poesia, quer n<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> de autores consagrad<strong>os</strong>,quer noutr<strong>os</strong> considerad<strong>os</strong> menores, quer f<strong>os</strong>sem publicad<strong>os</strong> por grandes oumédias editoras, quer em edições de autor de província.No entanto, para além dessa simples circunstância, observám<strong>os</strong>factores que n<strong>os</strong> levam a estabelecer e frisar diferenças - diferenças essasque podem articular-se do seguinte modo: por um lado, a generali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong>poetas consagrad<strong>os</strong> utilizava <strong>os</strong> model<strong>os</strong> referid<strong>os</strong> como uma entremúltiplas escolhas e, quase sempre, infringindo em algum pormenor anormativi<strong>da</strong>de modelar, de modo a deixar ain<strong>da</strong> transparecer uma vertentetransformacional de experimentação; por outro lado, quase tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> poetasdit<strong>os</strong> menores seguiam escrupul<strong>os</strong>amente as normas d<strong>os</strong> model<strong>os</strong>tradicionais e utilizavam o verso livre como mais um modelo, este moderno,mas não havendo uma relação directa entre a escolha modelar formal e atemática, o que demonstra uma atitude de ausência de a<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de,alargamento e criativi<strong>da</strong>de face ao uso <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des formaisdisponíveis.Por outro lado, ao reler a poesia de alguns d<strong>os</strong> mais relevantes poetasportugueses, assim considerad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> académic<strong>os</strong>, crític<strong>os</strong> e principaiseditoras d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta a noventa, verificám<strong>os</strong> que já alguns d<strong>os</strong> seuspoemas manifestavam a tendência inovadora para o uso simultâneo demodel<strong>os</strong> formais tradicionais aliad<strong>os</strong> à presença <strong>da</strong> narrativa no poema.Exemplificarem<strong>os</strong>, p<strong>os</strong>teriormente, esta constatação com poemas deAlexandre O´Neill, David Mourão-Ferreira, Fernando Guimarães, FernandoPinto do Amaral, Nuno Júdice, João Miguel Fernandes Jorge, JoaquimManuel de Magalhães, J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, Luís Miguel Nava, Manuel63 Reafirmam<strong>os</strong> a flexibili<strong>da</strong>de do n<strong>os</strong>so p<strong>os</strong>icionamento no que a periodologia se refere.Citarem<strong>os</strong>, por tal, poetas cujo percurso na narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia se desenvolveu desde<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta a dois mil e três.295


Alegre, Ruy Belo e Vasco Graça Moura, entre outr<strong>os</strong>. No entanto, poragora, escolhem<strong>os</strong> Natália Correia como exemplo paradigmático, <strong>da</strong><strong>da</strong> aóbvia aproximação de parte <strong>da</strong> sua poesia - e sobretudo porque tal processovinha já desde <strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta - com as preocupações de intencionali<strong>da</strong>deque haviam de ser declara<strong>da</strong>s pel<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong>oitenta, tanto pela sua prática poética como pelas afirmações d<strong>os</strong> seus text<strong>os</strong>fun<strong>da</strong>dores.Pretendem<strong>os</strong> exemplificar uma <strong>da</strong>s diferenças fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> práticado uso de model<strong>os</strong> formais e <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa e napoesia d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry, porquanto, em Portugal, nunca semanifestou, pelo men<strong>os</strong> de um modo explícito, qualquer sectarismo deexclusão em relação a poetas que fizessem uso simultâneo do verso livre ede model<strong>os</strong> tradicionais, o que permitiu proporcionar à poesia portuguesa, eem relação a<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> referid<strong>os</strong>, um fluxo de continui<strong>da</strong>de que, embora<strong>os</strong>cilante, diverge do caso d<strong>os</strong> E.U.A., onde sucedeu uma ruptura drástica,segui<strong>da</strong> de movoment<strong>os</strong> inovadores e de renovação.Reter-n<strong>os</strong>-em<strong>os</strong>, por ora, em dois exempl<strong>os</strong>, o primeiro paradigmáticode um uso que vem d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, o segundo já do novo milénio. Aescolha do n<strong>os</strong>so primeiro exemplo recaíu em dois long<strong>os</strong> poemasnarrativ<strong>os</strong> de Natália Correia: «Cântico do País Emerso», de 1961, 64 e «Osjardins de Adónis», de 1985, 65 em Poesia Completa. 66 O primeiro destespoemas foi escrito durante a ditadura salazarista e evoca uma caracterizaçãotanto medieval como renascentista de um tal «Capitão d<strong>os</strong> Imp<strong>os</strong>síveis» quesurgiria do tempo para libertar o país <strong>da</strong> opressão. Transcrevem<strong>os</strong> abaixo asprimeiras três estrofes e o canto final do poema:64 [1999: 197 a 217]65 [1999:524 a 531]66 [1999:524 a 531]296


Não sou <strong>da</strong>qui. Mamei em peit<strong>os</strong> oceânic<strong>os</strong>Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lavaMestiça de on<strong>da</strong> e de enxofres vulcânic<strong>os</strong>Sou de mim mesma pomba húmi<strong>da</strong> e brava.De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueir<strong>os</strong>Barbead<strong>os</strong> pelo sol pentead<strong>os</strong> pela bruma!Que extraístes do ar dessa coisa nenhumaA génese a pluma do meu país natal.Não sou <strong>da</strong>qui <strong>da</strong>s praias <strong>da</strong> tristezaDo insone jardim d<strong>os</strong> glaciaresLevai minha nudez minha belezaE colocai-a à sombra d<strong>os</strong> palmares.Tanto a métrica utiliza<strong>da</strong> como parte <strong>da</strong> escolha de camp<strong>os</strong> lexicais(divin<strong>da</strong>des e heróis; criação, génese e escrita), sempre relacionad<strong>os</strong> com apoesia e a libertação, podem trazer à mente do leitor moment<strong>os</strong> líric<strong>os</strong>,dramátic<strong>os</strong> e épic<strong>os</strong>, nomea<strong>da</strong>mente d´Os Lusía<strong>da</strong>s, de Camões. No entanto,a experiência do sujeito lírico, por se articular com a escrita como veículo deacção no presente, m<strong>os</strong>tra<strong>da</strong> como um foco de luz vindo do passado parailuminar o mundo onde se processa essa mesma escrita, desafia o leitor aver-se como reflexo de um sujeito lírico inserido num mundo moderno,conquanto num enquadramento especular de antiga e oculta beleza. Assim,o uso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>ódia conduz model<strong>os</strong> tradicionais à aproximação <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de, desenhando novas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de escrita e de leitura dopróprio passado literário.O segundo texto de Natália Correia que apresentam<strong>os</strong> é o poema emcinco cant<strong>os</strong> Os jardins de Adónis, que conta a história de um jardim através<strong>da</strong>s acções d<strong>os</strong> seus sucessiv<strong>os</strong> e diferentes visitantes, enquadrando ashistórias de amor, por estes vivi<strong>da</strong>s, nas mu<strong>da</strong>nças que vão ocorrendo no297


eferido jardim. Ca<strong>da</strong> canto adopta uma diversa escolha formal modelar quese a<strong>da</strong>pta tanto ao desenvolvimento do tema como à diferença <strong>da</strong>s diversaspersonagens que vão sucessivamente surgindo a visitar o jardim.Transcrevem<strong>os</strong> abaixo as últimas duas estrofes <strong>da</strong> Parte I, as primeiras duas<strong>da</strong> Parte II e a estrofe única que constitui a Parte V que, aliás, coincide como final do poema:I.....................................................................................Urdi<strong>da</strong>s pelo fado fungível do mancebo,Precoces caem as folhas e as flores morrem cedo;E do n<strong>os</strong>so destino corroboram <strong>os</strong> desígni<strong>os</strong>,Seus volúveis jardins suspens<strong>os</strong> sobre abism<strong>os</strong>.IIRecusa, amigo, <strong>da</strong> lide o ardil que, fátuo,Nenhum deus quer ou lembra;E entrem<strong>os</strong> no jardim como quem no sagradoDo que se ignora entraNa fonte, ao tempo alheio, voz de água estremeci<strong>da</strong>,Gorgoleja o delfimA área que reúne todo o pouco <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>No explendor do jardim.....................................................................................298


VNo jardim numa enterneci<strong>da</strong> horaExtravia<strong>da</strong> de i<strong>da</strong>des e mu<strong>da</strong>nçasVêm <strong>os</strong> velh<strong>os</strong> apanhar a bolaDa alegria doura<strong>da</strong> <strong>da</strong>s crianças.Na Parte I, a regulari<strong>da</strong>de alexandrina quase perfeita, bem como arima consoante ou toante d<strong>os</strong> dístic<strong>os</strong>, surgem liga<strong>da</strong>s à temática do tempo,<strong>da</strong> fatal regulari<strong>da</strong>de do destino e <strong>da</strong> extensão do anátema <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>dehumana finita. Na Parte II encontram<strong>os</strong> a aparência gráfica do verso livre,sendo no entanto comp<strong>os</strong>ta por quadras que alternam, cruzad<strong>os</strong>, vers<strong>os</strong> deseis sílabas e vers<strong>os</strong> entre as onze e as treze sílabas, com rima quase sempretoante, o que n<strong>os</strong> leva a relacionar esta progressão de liber<strong>da</strong>des formaiscom a apóstrofe à liber<strong>da</strong>de que constitui tema desta Parte II, e que se alia auma diversificação do sujeito lírico, conduzindo a narrativi<strong>da</strong>de entrenarrador e personagem, alheio às circunstâncias vitais <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de. NaParte V voltam<strong>os</strong> a encontrar a regulari<strong>da</strong>de formal perfeita - talvez a maisperfeita -, a do soneto, para transmitir uma despersonalização que medeia atemporali<strong>da</strong>de finita e a intemporali<strong>da</strong>de (<strong>da</strong> infância à velhice, donascimento à morte), e orquestrad<strong>os</strong> pela perfeição <strong>da</strong> renovação semprep<strong>os</strong>sível e explicável pela lógica silogística <strong>da</strong> natureza e do soneto.Todo o poema evidencia a versatili<strong>da</strong>de e a adequação deprocediment<strong>os</strong> retóric<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> <strong>da</strong> lírica e <strong>da</strong> narrativa, que permitemenfatizar a relação <strong>da</strong> ambivalência do espaço com a <strong>da</strong>s emoções. Estaambivalência é articula<strong>da</strong> num tempo que vai e vem como a entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong><strong>da</strong>s personagens no jardim, proporcionando um belíssimo exemplo de comoa uma exploração nuancea<strong>da</strong> do tema pode corresponder também à mu<strong>da</strong>nçana utilização de model<strong>os</strong> formais, num todo unificado tanto pelacentralização espacio-emotiva, como pelo uso <strong>da</strong> musicali<strong>da</strong>de própria <strong>da</strong>299


métrica regular e <strong>da</strong> rima, bem à maneira de muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poemas que <strong>os</strong>poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry haviam de escrever n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> oitenta e noventa.Este uso d<strong>os</strong> model<strong>os</strong> formais em função <strong>da</strong> temática e p<strong>os</strong>to,ain<strong>da</strong>, ao serviço <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de do poema, veio a ser complementadopor vári<strong>os</strong> poetas portugueses mais recentes que a estas características aliamo uso de uma linguagem e de uma espaciali<strong>da</strong>de mais próximas doquotidiano, à maneira (mas não como consequência) <strong>da</strong> Expansive Poetry,uso que havia de se prolongar pelo novo milénio, pelo que, ain<strong>da</strong> a título deexemplo, transcrevem<strong>os</strong> o poema de Nuno Júdice «Cena de Rua», de OEstado d<strong>os</strong> Camp<strong>os</strong>: 67A mulher com o chapéu de chuva na mãoespera o autocarro que há-de vir; mesmoque chova, o chapéu de chuva fica fechado;chega o autocarro, e olha para o lado.Está ali de manhã à noite, com o tempo a passarsem ela <strong>da</strong>r por ele. Se lhe perguntam porquê,fala <strong>da</strong> chuva qie está para cair; se a avisam<strong>da</strong> chuva, fala do autocarro que vai chegar.O mundo devia ser como a vi<strong>da</strong> dessa mulher,igual de manhã até à noite, sem razões para <strong>da</strong>r- apesar do autocarro que não vai chegar,a essa rua sem fim onde não pára de chover.A cena descrita nas duas primeiras estrofes, nas quais a regulari<strong>da</strong>deformal se interpenetra com a repetitivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção conta<strong>da</strong>, aproxima adescrição <strong>da</strong> «vi<strong>da</strong> dessa mulher» de um hipotético mundo vivencial doleitor, tanto pela simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem como pelo quotidiano <strong>da</strong>personagem e do espaço. O sujeito lírico parece dela estar ausente, cedendo300


o seu papel a um narrador que tudo observa e que, por sua vez, pareceoferecer uma fotografia, cedendo ao leitor a voz interpretativa <strong>da</strong> imagem,de tal modo a situação descrita lhe deverá ser familiar. No entanto, naterceira e última estrofe, esse sujeito lírico - narrador permite-se opinar, masopina sem se m<strong>os</strong>trar, oculto, como um deus ou como um vulgar serhumano que, instalado anonimamente na cena, se fizesse passar, também,por leitor, oferecendo e vivendo a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s emoções através <strong>da</strong>simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem.Apesar <strong>da</strong>s fronteiras, crem<strong>os</strong>, pois, poder relacionarhomologicamente a Expansive Poetry norte-americana com a poesiaportuguesa, a partir de algumas questões subsequentes à fam<strong>os</strong>a «nutshelldefinition» que sintetiza a realização d<strong>os</strong> objectiv<strong>os</strong> do movimento <strong>da</strong>Expansive Poetry nas palavras do seu poeta Dick Allen 68 :Expansive Poetry is a narrative, dramatic and sometimeslyric poetry of the late 20th Century that conveys significantnon-confessional observations, thoughts and feelings about theworld outside the Self and about the Self´s variousrelationships with this outer world. In carrying such content, itgenerally uses traditional rhyme and meter - sometimeslo<strong>os</strong>ened or roughened - incorporating natural speechpatterns. 69Mas quem escreve esta poesia? Onde? Quando e desde quando? Teráo movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry, n<strong>os</strong> E.U.A., <strong>da</strong>do ênfase, voz e impulsoa um desejo de realização e comunicação, através do contar musical de umahistória, desde sempre presente na poesia e na humani<strong>da</strong>de? Pensam<strong>os</strong> que,no que repeita à poesia portuguesa por nós observa<strong>da</strong> no decurso deste67 [2003:49]68 [1984:48]69 Sublinhad<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>.301


trabalho, podem<strong>os</strong> arriscar uma afirmação p<strong>os</strong>itiva, já levemente perceptívelna hipótese prop<strong>os</strong>ta por Manuel Frias Martins, em As Trevas Inocentes: 70[...] julgo que a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> Noventa, sobretudo a<strong>os</strong> an<strong>os</strong>Noventa, coube a tarefa de escrever (narrar) uma <strong>da</strong>s versõesdo grandi<strong>os</strong>o epitáfio <strong>da</strong> poesia que, principalmente desde <strong>os</strong>primeir<strong>os</strong> modernistas, o século XX foi levando a cabo atravésdo gradual desgaste <strong>da</strong>s formas poéticas canónicas. Muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong>nov<strong>os</strong> poetas que surgiram no final desta déca<strong>da</strong> são de grandequali<strong>da</strong>de. Mas exactamente porque o são, a sua consciência dotrabalho poético aponta quase sempre para uma espécie de«Requiem pela poesia» [...] É dolor<strong>os</strong>o viver com estesentimento de per<strong>da</strong>. Contudo, é ele que se encontra no cerne<strong>da</strong> estratégia artística actual, e é por ele que se há-de definir or<strong>os</strong>to <strong>da</strong> arte por vir.Frias Martins acentua que o modernismo do século vinte utilizouformas do cânone de tal modo que o paradigma de alguns poetasportugueses d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa seria a melodia de um epitáfio, ou umRequiem pela poesia. Contudo, também constata que o seu sentimento deper<strong>da</strong> se pode comparar a um atalho dolor<strong>os</strong>o que conduzirá <strong>os</strong> poetas a<strong>os</strong>eu futuro. O atalho dolor<strong>os</strong>o do medo que percorre as duas últimasestrofes do poema «Grafias», 71 de Em Trânsito, de Carl<strong>os</strong> Bessa:Escreve! E eu escrevi tenho medoE chovia e as folhas que o vento arrastavaBites de sms traziam-me a mentiraDo olhar ou de como podem<strong>os</strong> com eleO eu dessa gramática de plural difícilE <strong>os</strong> teus olh<strong>os</strong> a olhar-me e o meu coração a sorrirE o ardor e outr<strong>os</strong> xix que n<strong>os</strong> meus se inscreviam.70 [2001:73]71 [2003:66]302


Sim, amanhã vou estar doenteSem qualquer vontade de escrever ou de Ter medoVou ficar por casa a ler livr<strong>os</strong> velh<strong>os</strong>À procura de palavras que eleminem <strong>os</strong> travessões tod<strong>os</strong>As tantas vírgulas que entre nós são abism<strong>os</strong>Esses monstr<strong>os</strong> que vêm desde a infânciaEm ec<strong>os</strong> de vogais ca<strong>da</strong> vez mais cheias de lama e cinza.Assim o medo de hoje convocará o passado, e um amanhã, e outroamanhã ain<strong>da</strong>... porque o futuro é também, sempre, uma dinâmica feita dediversa renovação; dolor<strong>os</strong>a, talvez, mas também fervilhante <strong>da</strong> seiva que,endógena e exogenamente, acaba sempre por cumprir <strong>os</strong> desej<strong>os</strong> de sangue evi<strong>da</strong> <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.303


304


CAPÍTULO VI - CONFIGURAÇÕES DANARRATIVIDADENOTA PRÉVIAOs element<strong>os</strong> narrativ<strong>os</strong> que configuram a narrativi<strong>da</strong>de podemencontrar-se, afinal, em qualquer forma de comunicação, visto quecomunicar é contar. No entanto, uma narrativa, no âmbito do literário, nãoanseia apenas contar mas também proporcionar o prazer do discursooferecido e recebido. N<strong>os</strong> dias de hoje vai sendo ca<strong>da</strong> vez mais usual arealização do texto narrativo para além do romance ou do conto,redimensionando ou miscigenando estes através <strong>da</strong> crónica, <strong>da</strong>s memóriasou do diário, o que pressupõe uma maior relevância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao narrar doimiscuir subjectivo em relação a<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> narrad<strong>os</strong>. Assim considerám<strong>os</strong>que sucedia, como corolário, em relação à poesia.Quanto à delimitação hipotética de características que enformem opoema de narrativi<strong>da</strong>de, a questão surge-n<strong>os</strong> num paradigma quantitativo enão qualitativo. Entre poesia explicitamente narrativa (na qual anarrativi<strong>da</strong>de se identifica com procediment<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> do modonarrativo) e mera presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia (que utiliza <strong>os</strong>procediment<strong>os</strong> referid<strong>os</strong> mas de modo coadjuvante com uma retórica textualtradicional do modo lírico) existe uma gra<strong>da</strong>ção de descontinui<strong>da</strong>de ou defragmentarie<strong>da</strong>de em relação ao poema narrativo tradicional que não podeser mensurável. Uma salvaguar<strong>da</strong>, pois, para a subjectivi<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>critéri<strong>os</strong>.305


Pelo acima exp<strong>os</strong>to, ao abor<strong>da</strong>r configurações <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de napoesia portuguesa mais recente, não pretendem<strong>os</strong> estabelecer taxinomias emfunção de uma mais ou men<strong>os</strong> exaustiva detecção de model<strong>os</strong> e realizaçõestextuais. É n<strong>os</strong>sa intenção, tão somente, relevar alguns d<strong>os</strong> estatut<strong>os</strong>temátic<strong>os</strong> e enunciativ<strong>os</strong> que detectám<strong>os</strong> surgirem com maior frequêncian<strong>os</strong> poemas n<strong>os</strong> quais se afirmava a narrativi<strong>da</strong>de e m<strong>os</strong>trar de que mod<strong>os</strong>e realizam na escrita de alguns poetas.Salientam<strong>os</strong>, pois, que as configurações <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poemaserão por nós abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s preferencialmente a nível do discurso. MariaAlzira Seixo refere, no capítulo «Poética <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de na ficção europeia doPós-modernismo», em Poéticas <strong>da</strong> Viagem na Literatura, que ao nível dodiscurso está sempre subjacente «um modo integrativo de o conceber comoformulação sócio-histórica e intersubjectiva», 1 que procurarem<strong>os</strong> nãodescurar. Acrescenta ain<strong>da</strong> Maria Alzira Seixo: 2Considerando fun<strong>da</strong>mentalmente esse corpus, 3estabeleci três tip<strong>os</strong> de configuração no escrito ficcional: aconfiguração comunicativa, a configuração textual e aconfiguração especulativa.E explicita, ain<strong>da</strong>, <strong>os</strong> respectiv<strong>os</strong> desdobrament<strong>os</strong> nocionais, quepassam<strong>os</strong> a resumir: 4- na configuração comunicativa, <strong>os</strong> níveis metalinguístico,intertextual e pragmático.- na configuração textual, <strong>os</strong> níveis narrativo, descritivo e oenunciativo.1 [1998b:166, 167]2 [id. Ibid.:167]3 Mencionado em nota e referente a autores <strong>da</strong> literatura europeia do século XX.4 [id. Ibid.:167]306


axiológico.- Na configuração especulativa, <strong>os</strong> níveis historicista, alegórico eCrem<strong>os</strong> que esta síntese n<strong>os</strong> pode orientar metodologicamente naabor<strong>da</strong>gem de tão diversifica<strong>da</strong>s realizações textuais, de modo a clarificaralguns d<strong>os</strong> estatut<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong> e enunciativ<strong>os</strong> <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesiaportuguesa mais recente, ordenando a sua diversificação interactuante demodo a clarificar o n<strong>os</strong>so discurso.Assim, abor<strong>da</strong>rem<strong>os</strong> o quotidiano tendo em conta, preferencialmente,razões que envolvem a configuração comunicativa pragmática;aproximarem<strong>os</strong> a questão <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>s cenas e <strong>da</strong> cenografia numadominante de configuração textual; finalmente, m<strong>os</strong>trarem<strong>os</strong> realizações <strong>da</strong>temática <strong>da</strong> memória predominantemente em função <strong>da</strong> configuraçãoespeculativa n<strong>os</strong> seus níveis historicista e alegórico. Não deixarem<strong>os</strong>,contudo, de entrecruzar model<strong>os</strong> de configuração, como se torna inevitávelsempre que se trata de poesia, de literatura, de arte, ou de outra qualquerforma de expressão individual <strong>da</strong> emoção estética <strong>da</strong> mundivivência.1. O QUOTIDIANOO problema <strong>da</strong> relação entre a poesia e a vi<strong>da</strong> ultrapassa em muito aproblemática <strong>da</strong> relação entre experiência vivi<strong>da</strong> e experiência poetiza<strong>da</strong>.A tradição lírica determinou, ao longo do tempo, o modo como <strong>os</strong> poetasentenderam a experiência, ou seja, como uma representação mimética doautobiográfico destina<strong>da</strong> a ser recebi<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong>s convenções epocais dessa307


pessoali<strong>da</strong>de, representa<strong>da</strong> no entrelaçar do sentimento, <strong>da</strong> fala, <strong>da</strong> confissãoe, portanto, <strong>da</strong> experiência emocional partilha<strong>da</strong> no e pelo poema.Na reali<strong>da</strong>de, crem<strong>os</strong> que até a moderna lírica acabou por ser umaespécie de reinterpretação dessa longínqua tradição europeia que distinguiaars inveniendi (uso de um leque de tópic<strong>os</strong> à disp<strong>os</strong>ição do poeta) e ratioindicandi (ver<strong>da</strong>de e correcção do discurso do orador), mas instaurando umainevitável fronteira entre a experiência vivi<strong>da</strong> e a experiência poetiza<strong>da</strong>.Contudo, e já desde o romantismo, a <strong>os</strong>cilação entre estas experiências abreo moderno caminho de uma certa ambigui<strong>da</strong>de, na qual a indeterminação doalcance do que é «vivido e poetizável» acaba por ter apenas como limite asdisponibili<strong>da</strong>des linguísticas, passando a ser a própria experiência dodiscurso determinante <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong>.N<strong>os</strong> ensai<strong>os</strong> de The End of the Poem - Studies in Poetics, de GiorgioAgamben, podem<strong>os</strong> encontrar, em «The Dictation of Poetry», a seguinteinterrogação: 5 How could it happen that speech is no longer capable ofmaking life and maintaining it in its autonomy? [...] God exists,but not the world. There could be no clearer way to express therupture of the life-poetry and log<strong>os</strong>-c<strong>os</strong>m<strong>os</strong> link. 6Na sen<strong>da</strong> do existencialismo, e passando a ser a própria experiência dodiscurso determinante <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong>, como n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta bemsentido foi, uma inversão se impunha, que não isolasse, n<strong>os</strong> dias de hoje, deum lado vi<strong>da</strong> e de outro poesia, e o movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry n<strong>os</strong>E.U.A. foi bem exemplo disso.Na narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> mais recentes apresença do quotidiano revela, através <strong>da</strong> sua configuração comunicativa,5 [1999:82]308


uma preocupação pragmática a que não estará completamente alheia umaintenção de expansão do campo de leitores. Assim, do uso linguagemcorrente ao de model<strong>os</strong> formais que facilitam a leitura musical do poema, ou<strong>da</strong> presença <strong>da</strong> mais varia<strong>da</strong> temática do quotidiano, diversas são asconfigurações que se n<strong>os</strong> apresentam, 7 desde o cenário às personagens, àsacções, às cenas ou às histórias conta<strong>da</strong>s, ou ain<strong>da</strong> ao papel d<strong>os</strong> element<strong>os</strong>cénic<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> object<strong>os</strong>. Esta presença de element<strong>os</strong> do quotidiano no poemanem sempre surge isenta de uma crítica a que chamarei «social-pessoal»,porque incide, primordialmente, n<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> que o mundo provoca sobre <strong>os</strong>ujeito, como no poema «Gótico Americano», 8 de Manuel António Pina, emPoesia Reuni<strong>da</strong>:Uma recor<strong>da</strong>ção chegapara fender <strong>os</strong> alicerces,a dúvi<strong>da</strong> rasga as cortinaspor onde se coa o sangue d<strong>os</strong> dias felizes.As filhas passa<strong>da</strong>s já não correm no jardim,Já ninguém responde quando chamoPel<strong>os</strong> seus vag<strong>os</strong> nomes que chamoComo se chamassem eles por mim.Tu lavas a louça na cozinhaEntre cheir<strong>os</strong> suj<strong>os</strong> e rest<strong>os</strong> de comi<strong>da</strong>,Ou ficas à janela infinitamente;Os vizinh<strong>os</strong> mu<strong>da</strong>ram-se, o cão morreu para sempre.6 Sublinhado n<strong>os</strong>so.7 Crem<strong>os</strong> dever ressalvar, ain<strong>da</strong>, que a n<strong>os</strong>sa tripartição em relação a<strong>os</strong> temas d<strong>os</strong> sub--capítul<strong>os</strong> se deveu a uma questão de organização metodológica que não impede a suainteracção sempre que ela seja eluci<strong>da</strong>tiva de um ou outro aspecto a salientar.8 [2001:154]; de Um Sítio onde pousar a cabeça, de 1991.309


A casa agora é feita d´ ângul<strong>os</strong> agud<strong>os</strong>,De perguntas, de poç<strong>os</strong> descobert<strong>os</strong>,E nós perdemo-n<strong>os</strong> por dentro doutr<strong>os</strong> mund<strong>os</strong>por portas que se abriram para dentro.O meu coração repousaNa cave no meio <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>E eu vagueio lá fora entre sentid<strong>os</strong>.Sou eu quem chama, não me ouves bater?As infracções à quadra tradicional popular não evitam que sejatransmitido um quotidiano ritmado e repetitivo, vindo de há muito, de umatradição social na qual o sujeito se declara enre<strong>da</strong>do, embora procureocultar-se ao longo de quase todo o poema. No entanto, por entre adescrição d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> e object<strong>os</strong> banais do quotidiano, é níti<strong>da</strong>, de quadrapara quadra, a progressiva expressão d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>: dúvi<strong>da</strong> (pela súbitaconsciência <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça), desamparo (pela ausência do passadocompensador), solidão (pela exclusão <strong>da</strong> abertura de um diálogo),desnorteamento (pelo fechamento n<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> interiores), desespero (pelainterrogação que é súplica sem resp<strong>os</strong>ta). E é justamente na última quadra,ao chegar à dimensão do desespero, que o sujeito lírico - narrador epersonagem desta cena do quotidiano - abandona a linguagem referente aoquotidiano e recupera uma enunciação lírica que n<strong>os</strong> pode levar do anteriano«coração [que] repousa» ao pessoano «vaguear entre <strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>» ou aoapelo <strong>da</strong> citação que constitui o verso final: «Sou eu quem chama, não ouvesbater?», retomando a inicial «recor<strong>da</strong>ção» que não faz ressuscitar <strong>os</strong>moment<strong>os</strong> felizes. Entre «recor<strong>da</strong>ção» e «coração», a identi<strong>da</strong>de de origensfaz ecoar a quase homofonia <strong>da</strong> inutili<strong>da</strong>de vazia do quotidiano.310


Vejam<strong>os</strong> ain<strong>da</strong>, numa dimensão do quotidiano, mas situando-o entre <strong>os</strong>ocial e o pessoal, o poema «seis», 9 de Joaquim Manuel Magalhães, inConsequência do Lugar:Comprei-lhe requeijão durante vári<strong>os</strong> dias.No último enganou-se n<strong>os</strong> dinheir<strong>os</strong>Fez o embrulho num papel errado.Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em troc<strong>os</strong>.Continuei por entre <strong>os</strong> corredoresDo resto do supermercado e viaA ca<strong>da</strong> espaço vazio de caixotesO seu olhar a seguir as minhas compras.Quando estava prestes a curvar-sePara pesar um frango, uma morcela,Coelh<strong>os</strong> brav<strong>os</strong>, queij<strong>os</strong> ou fiambreSorria-lhe de novo. Erguia logoO corpo alertado turvavam-se-lhe as mã<strong>os</strong>Hesitava pelo ar refrigerado do balcãoAté estender <strong>os</strong> seus produt<strong>os</strong>À primeira mulher e às que se seguiam.Com a cesta de metal já quase cheiaDeve ter visto o adeus <strong>da</strong>do nas coisasDe comer para muito tempo:Veio pois numa qualquer desculpaFingir que levava fard<strong>os</strong> para dentro.Fui atrás, soube-lhe as horas de sairVim esperá-lo depois <strong>da</strong> caixa, à porta.Os carr<strong>os</strong> iam de regresso às casas,O ar tol<strong>da</strong>do de novembro em solQue vem antes <strong>da</strong> chuva,N<strong>os</strong> autocarr<strong>os</strong> iam por detrás d<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong>R<strong>os</strong>t<strong>os</strong> que doía ver passar.9 [2001:168, 169];de António Palolo, de1978.311


Chegou metendo um pente n´ algibeira,A sacola que for a matinal ao ombro,Atravessou comigo o quadradoDa praça que o trânsito parou.À última luz do dia via-lhe o cabeloCom o pó <strong>da</strong>s horas de trabalho.Por agora dizia-me o seu nomeEntre dentes rasgad<strong>os</strong> pelas cáriesMas sorrindo tanto sob a pele escuraQue eu fechava <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> para perdurarAté tirar-lhe a camisola, as meiasTrocar o meu hálito de dentífric<strong>os</strong>Pelo seu cansado de erva doutras formasContra <strong>os</strong> horári<strong>os</strong> as coisas do dinheiroOutr<strong>os</strong> a dizer-lhe o que devia ser.De mim havia de ir para uma paragemÀ espera do transporte de que sairiaNum d<strong>os</strong> caixotes de arrabalde,O corpo satisfeito mas fendidoDo prazer combinado para outro diaQue podia voltar ou não voltar a haver.Não é por acaso que perpassa por todo o poema a definição de umafamiliari<strong>da</strong>de quotidiana <strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de do cenário, que passa d<strong>os</strong>upermercado para o interior de um quarto indefinido, depois derapi<strong>da</strong>mente atravessar praças e ruas vagamente percorri<strong>da</strong>s por trânsito eautocarr<strong>os</strong>, e acabando numa «paragem/À espera do transporte». É que orelativo fechamento lexical decorrente <strong>da</strong> opção temática do quotidianodesenha uma trama de fechamento semântico que, por um lado, facilita aclareza <strong>da</strong> comunicação, mas, por outro lado, obriga à inclusão desubterfúgi<strong>os</strong> que transformem o aspecto discursivo <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de emcomponente <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de.312


Esses subterfúgi<strong>os</strong> ultrapassam, neste poema, o mero aspecto formal<strong>da</strong> distribuição estrófica ou <strong>da</strong> métrica, com o seu efeito de regulari<strong>da</strong>dequase que de canção, ou ain<strong>da</strong> a pertinência fónica, sobretudo do anaforismo<strong>da</strong>s nasais e <strong>da</strong> vocalização iterativa do [i], condutores de ritmo e demusicali<strong>da</strong>de, e que têm a sua relevância na recepção melódica do poema.No entanto, a história do encontro sexual que, por se desenrolar numcenário banal, e com personagens típicas do quotidiano, e ain<strong>da</strong> com umdesfecho realista, poderia, para cert<strong>os</strong> leitores, remeter para a ausência desentiment<strong>os</strong> e emoções, é subverti<strong>da</strong> por um sujeito lírico que, apesar de seassumir também como narrador-personagem, consegue, através <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra que transfigura o dizer do olhar, assegurar aafirmação sentimental e emotiva de uma subjectivi<strong>da</strong>de.Assim, por exemplo, a abertura dialógica do primeiro contacto - «Rilheo primeiro convite. Riu-se em troc<strong>os</strong>.» - vem perturbarmetonomicamente a banali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação de compra e ven<strong>da</strong> numsupermercado, introduzindo-lhe uma dimensão poético-romanesca. Tambémem vers<strong>os</strong> como «O corpo alertado turvavam-se-lhe as mã<strong>os</strong>/ Hesitava peloar refrigerado do balcão», ou «Os carr<strong>os</strong> iam de regresso às casas / O artol<strong>da</strong>do de novembro em sol», ou mesmo «À última luz do dia via-lhe ocabelo/Com o pó <strong>da</strong>s horas do trabalho», ou ain<strong>da</strong> «Entre dentes rasgad<strong>os</strong>pelas cáries/Mas sorrindo tanto sob a pele escura», o pr<strong>os</strong>aico é subvertidopela antecipação ou pr<strong>os</strong>secução do imaginário metafórico poético. Aencenação surge, assim, numa pragmática enunciativa <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dedo poema que, subvertendo o quotidiano, constrói muito subtilmente aacessibili<strong>da</strong>de à clareza <strong>da</strong> história conta<strong>da</strong> e deixa entrever, pela frincha <strong>da</strong>intromissão <strong>da</strong> construção metafórica e imagística, o esboço de uma poéticad<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>, a desbravar.O facto de abor<strong>da</strong>r e contar uma experiência do dia-a-dia no poemarequer, pois, a quase que invenção de uma diversa linguagem literária que313


transfigure <strong>os</strong> moment<strong>os</strong> de linguagem quotidiana e coloquial através <strong>da</strong>intromissão de breves moment<strong>os</strong> de linguagem poética tradicional, de modoa permitir a abertura do redimensionar do quotidiano contado também emfunção <strong>da</strong> recepção. Encontram<strong>os</strong>, mesmo, poemas n<strong>os</strong> quais esteprocedimento se auto-evidencia através de uma ironia não isenta de certaamargura, como em «adjectivo tão», 10 de Em Trânsito, de Carl<strong>os</strong> Bessa:Chegou, sentou-se e começou num rancorTanta saliva porque a mobíliaAs cores garri<strong>da</strong>sA arte, as namora<strong>da</strong>s, <strong>os</strong> livr<strong>os</strong>Até <strong>os</strong> filmes.Tens medo de não conseguir?Tens medo do tol<strong>da</strong>do olhar que dirigem para aí?Chega-se a casa para a televisão, para a comi<strong>da</strong>Para as pequenas vilezas d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>.Estás tão adjectivo, hoje.Chegas, mu<strong>da</strong>s de casaco e de camisaE o esqueleto <strong>da</strong>s fantasias continuaAs palavras estão ca<strong>da</strong> vez mais difíceisImagina que hoje me pediramUma pequena fortuna pela consideraçãoEnquanto lá tinham outra vezA humilhação em saldo.Contrariamente ao poema de Joaquim Manuel Magalhães,anteriormente referido, no qual a narrativi<strong>da</strong>de dimensionava o construir deuma narrativa, o poema de Carl<strong>os</strong> Bessa apresenta uma diversa dimensão<strong>da</strong> configuração <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de. A sup<strong>os</strong>ta linha diegética é substituí<strong>da</strong>pela ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> à cena, transmiti<strong>da</strong> esta por um sujeito lírico que começa,10 [2003:52]314


n<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> <strong>da</strong> primeira estrofe, por se identificar com umhipotético narrador que se distancia de uma personagem observa<strong>da</strong>(«Chegou, sentou-se e começou num rancor», verso que instaura, à parti<strong>da</strong>,uma dialogia) para, inespera<strong>da</strong>mente, n<strong>os</strong> dois vers<strong>os</strong> finais <strong>da</strong> estrofe, seintroduzir na cena como observador participante e inquiridor («Tens medode não conseguir?»), instaurando, simultaneamente, a dúvi<strong>da</strong> quanto aoobjecto do seu questionamento: um outro ou ele próprio?Esta ambigui<strong>da</strong>de é reforça<strong>da</strong> pela impessoali<strong>da</strong>deintroduzi<strong>da</strong> na segun<strong>da</strong> estrofe («Chega-se a casa») que implica umaprogressiva introdução do leitor no texto, já anteriormente esboça<strong>da</strong>, e queprovoca o desafio de uma identificação mais plena na progressão últimaestrofe do poema: «Chegas, mu<strong>da</strong>s de casaco e de camisa / E o esqueleto<strong>da</strong>s fantasias continua». O captar do leitor para o interior do poema instaura--se, assim, progressivamente, e tendo como grande alia<strong>da</strong> a referência a<strong>os</strong>gest<strong>os</strong> e object<strong>os</strong> do quotidiano: chegar a casa, sentar-se, estar rodeado pelamobília, uma eventual mulher, a televisão, a comi<strong>da</strong>; mu<strong>da</strong>r de roupa,dialogar na solidão ou ficar no embaraço do silêncio e <strong>da</strong> impotentehumilhação.A atenção pr<strong>os</strong>aica <strong>da</strong><strong>da</strong>, neste poema, ao detalhe <strong>da</strong>s pequenas acçõesou object<strong>os</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> prática, com <strong>os</strong> quais o leitor tão familiarizado está,permite uma fácil aproximação identificadora, mas tais aspect<strong>os</strong> tambémsão subvertid<strong>os</strong>, não só pela dimensão quase crítica que aponta a dedo a suainserção numa socie<strong>da</strong>de e na sua cultura. É de considerar, também, a beleza<strong>da</strong> dimensão poética quase oculta que se pode desprender a partir <strong>da</strong>banali<strong>da</strong>de de moment<strong>os</strong>, circunstâncias e act<strong>os</strong>, como o sugere o verso«Para as pequenas vilezas d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>» que, servindo de eixo ao poema(formal e semanticamente), encontra <strong>os</strong> seus motores rotativ<strong>os</strong> no verso«Tens medo de não conseguir?», na primeira estrofe, e no verso «Aspalavras estão ca<strong>da</strong> vez mais difíceis», na terceira estrofe. Pretendem<strong>os</strong>exemplificar uma espécie de movimento de inversão e recomeço que se315


opera, até, a partir <strong>da</strong> disp<strong>os</strong>ição gráfica de ampulheta que o poema quasedesenha na página, e que enfatiza a circulari<strong>da</strong>de que determina o ciclo dobanal, do dia-a-dia repetitivo para o qual o leitor é inevitavelmente atraído.Por vezes, <strong>os</strong> object<strong>os</strong> banais surgem aparentemente secun<strong>da</strong>rizad<strong>os</strong>no poema tendo como função, em geral, conferir a uma cena de violênciasocial a emotivi<strong>da</strong>de terna, pied<strong>os</strong>a, violenta ou impied<strong>os</strong>a, <strong>da</strong> dimensãohumana, como acontece em «História Urbana», 11 de Eliot e OutrasObservações, de Pedro Mexia:Acabaram com o rapaz nas esca<strong>da</strong>s do metro.A<strong>da</strong>gas subtis, acera<strong>da</strong>s, suaves em registo de irónicapie<strong>da</strong>de, pietà sem regaçoesvaindo-se na esca<strong>da</strong>ria,pupilas dilata<strong>da</strong>s pelo chão <strong>os</strong> livr<strong>os</strong> e o blusão.Acabaram com o rapaz nas esca<strong>da</strong>s do metro.Tinha 16 an<strong>os</strong>, a rapariga, e apanhou a linha verde.É nestes poemas de menor dimensão, e n<strong>os</strong> quais a presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de se manifesta através de uma pequena cena ou de um esboço dehistória quotidiana repetitiva, que <strong>os</strong> mais insignificantes element<strong>os</strong> dereferência à factuali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> pelo leitor - como a mobília, a comi<strong>da</strong> e atelevisão, no poema de Carl<strong>os</strong> Bessa, ou <strong>os</strong> livr<strong>os</strong> e um blusão, no poema dePedro Mexia - podem adquirir uma inespera<strong>da</strong> e fun<strong>da</strong>mental dimensãocomo motores pontuais de dessacralização d<strong>os</strong> camp<strong>os</strong> lexicais tradicionais<strong>da</strong> lírica, permitindo a intromissão de uma outra dinâmica de equilíbriometafórico. É justamente desta dicotomia que nascem tanto a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>dede transformação poética <strong>da</strong> cena, quanto o seu p<strong>os</strong>sível e hipotéticoprolongamento diegético, por parte do leitor.Descrever um lugar comum, uma ocorrência banal do quotidiano, oumencionar construções, object<strong>os</strong> ou seres com <strong>os</strong> quais o leitor está316


familiarizado, permite também, por vezes, facilitar a comunicação e aabertura de sentiment<strong>os</strong> e emoções, até em poemas mais long<strong>os</strong> ehermétic<strong>os</strong>, que <strong>os</strong>cilam entre o pensar a arte e o pensar o quotidiano, ou,simplesmente, entre o existir e o pensar, como é o caso do poema em quatroCant<strong>os</strong> que constitui o livro Depois que Tudo recebeu o Nome de Luz ouNoite, 12 de Bernardo Pinto de Almei<strong>da</strong>, do qual transcreverem<strong>os</strong> algunsexcert<strong>os</strong>:IÉ ver<strong>da</strong>de que há um momento breveem que tudo se decide-- esta rua em vez <strong>da</strong> outraesta camisa em vez <strong>da</strong>quelaeste passo que se dá e não um outroaquele que precisamente iria abrir uma portapara outro universo.-----------------------------------------------------II------------------------------------------------------------------Sobre as c<strong>os</strong>tas de uma cadeira mu<strong>da</strong>O meu casaco de um linhoMuito brancoRepousa como se f<strong>os</strong>se <strong>os</strong> meus ombr<strong>os</strong>As minhas c<strong>os</strong>tas e o peitoAmarrotad<strong>os</strong>E um par de ócul<strong>os</strong> escur<strong>os</strong>Reflecte sobre a cómo<strong>da</strong>11 [2003:34]12 [2002:15 a 55]317


A luz azula<strong>da</strong> <strong>da</strong> manhã.------------------------------------------------------Na<strong>da</strong> no entanto me distrai-- percebe por favor --dessa visão ao longeaonde já discretamente se anunciaum nevoeiro subtilque caie que -- já sabes e já sei --a tudo acabará por envolvernum véu impenetrável.----------------------------------------------------------------Não é apenas a obsessiva e melódica alternância de cadências eritm<strong>os</strong> - a qual acompanha o estado de espírito do sujeito perante umasituação que se arrasta no percurso do longo poema - que pauta a mu<strong>da</strong>nçade ritm<strong>os</strong> de leitura e de identificação progressiva do leitor com a situaçãodo protagonista <strong>da</strong> história de uma ausência difícil que o que o rodeia nãoaju<strong>da</strong> a superar. São também as alusões ao quotidiano, sobretudo a<strong>os</strong>pequen<strong>os</strong> object<strong>os</strong> de descrição e pertença pessoal («camisa», «casaco delinho», «par de ócul<strong>os</strong> escur<strong>os</strong>»), tal como <strong>os</strong> pormenores <strong>da</strong>s paisagens(«nevoeiro subtil», «véu impenetrável») que criam uma aliança afectiva e dereconhecimento, tal como criam um jogo de antinomias entre o quotidiano eo poético. Ritm<strong>os</strong> e object<strong>os</strong> acompanham a calma resignação ou a revolta;a esperança ou a desesperança desta história de amor, lembrança e sau<strong>da</strong>de.A inclusão, no mesmo poema, de temática e imagística pertencentes àlírica convencional, alia<strong>da</strong>s a um redimensionamento épico, encontram umcontraponto na minúcia d<strong>os</strong> pormenores doméstic<strong>os</strong> ou triviais. Destecontraponto nasce uma dimensão poética <strong>da</strong> experiência quotidiana queaju<strong>da</strong> o leitor a clarificar o espaço de conjectura sócio-linguística e318


histórico-literária que perpassa, escondido em máscara de quase banali<strong>da</strong>de,por to<strong>da</strong> a força de emoções que o poema transmite.Sucede, por vezes, que esta dimensão poética <strong>da</strong> experiência doquotidiano implica dimensões paralelas que não configuram apenas umacrítica social, familiar ao leitor pela experiência, mas sim pelo «ouvircontar» mediático de situações de alcance mundial, como sucede no poema«Bem Yehou<strong>da</strong>», 13 em O Puro e o Impuro, de Francisco J<strong>os</strong>é Viegas:Ela disse «obrigado» («to<strong>da</strong>h», no seu perfeito hebraico) saindo para a rua,ajeitando a metralhadora entre <strong>os</strong> sac<strong>os</strong> de compras. O meio <strong>da</strong> tardede Sexta-feira é o começo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mesmo para ela, que vem de Hebrone tem ain<strong>da</strong> tempo para ir às lojas. Entra em casa e esconde a armano armário. Acenderá as velas, mais tarde, ao jantar; escutará um salmoneste shabbat. As janelas de Jerusalém estão vagamente ilumina<strong>da</strong>s,quando as estra<strong>da</strong>s se esvaziam e <strong>os</strong> restaurantes servem comi<strong>da</strong> marroquinaou aquela esplana<strong>da</strong> troca o sagrado peloprofano. Nunca se entenderá este dia. Ela ajeita a metralhadora entre<strong>os</strong> sac<strong>os</strong> de compras, agradece quando o homem d<strong>os</strong> jornais lhe abrea porta para a Bem Yehou<strong>da</strong>. «É o começo do ano». As melhores maçãsde Netivot e o mel d<strong>os</strong> camp<strong>os</strong> antes do mar estão sobre a mesa quandochega a casa, depois voltará para Hebron, de manhã: que sentidotem a vi<strong>da</strong>? Que salmo alegrará o seu r<strong>os</strong>to ao despedir-se de Jerusalém?O uso do modelo do soneto, redimensionado na sua métrica, vemcomplementar o relato longo e lento que assume o contar <strong>da</strong>s viagens na vozd<strong>os</strong> viajantes. Como eles, o sujeito lírico-narrador oculta-se para <strong>da</strong>r lugara<strong>os</strong> event<strong>os</strong>, a<strong>os</strong> us<strong>os</strong> e c<strong>os</strong>tumes, a<strong>os</strong> detalhes de uma personagem que ésegui<strong>da</strong> por algum tempo. E o leitor não deixará, certamente, de ouvir esse13 [2003:23]319


lento e vagar<strong>os</strong>o contar com uma emoção saborea<strong>da</strong> em brando sobressalto,talvez perto de uma cena de notícia televisiva pelo seu conteúdo, mas bemlonge d<strong>os</strong> flashes <strong>da</strong>s notícias mediáticas pelo modo do seu contar.Consideram<strong>os</strong> dever interrogar, neste momento, <strong>os</strong> mod<strong>os</strong> como, noenunciar d<strong>os</strong> poemas até agora comentad<strong>os</strong>, a linguagem e <strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> deretórica de representação, enquanto veiculadores de expressão estética,podem, de certo modo, sofrer algum apagamento ou secun<strong>da</strong>rização aoincluir o quotidiano.A interacção <strong>da</strong>s referências ao quotidiano com referênciasculturais, manifesta<strong>da</strong>s estas, ou não, por intertextuali<strong>da</strong>de explícita ou pelorecurso ao uso <strong>da</strong> metalinguagem, permitem que tais referências, no poema,p<strong>os</strong>sam ser li<strong>da</strong>s na sua dimensão de construção estética denuncia<strong>da</strong> comotal, mas com uma maior acessibili<strong>da</strong>de interpretativa que lhes é conferi<strong>da</strong>,justamente, pela intromissão <strong>da</strong>s representações de ocorrências, object<strong>os</strong> ouseres pertencentes à mundivivência do banal quotidiano.Tal como referim<strong>os</strong> ao focar a Expansive Poetry, não n<strong>os</strong> parece que aabor<strong>da</strong>gem, no poema, de histórias ou cenas <strong>da</strong> rotina quotidiana excluanem a experiência poética <strong>da</strong> linguagem nem a tradicional transmissã<strong>os</strong>entimental do lirismo, como n<strong>os</strong> parece ter ficado evidente n<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong>apontad<strong>os</strong>. G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong>, contudo, de aliar ain<strong>da</strong> um exemplo que, pela fortecomponente lírica sentimental, reponde, de modo evidente, às eventuaisobjecções acima referi<strong>da</strong>s. Citam<strong>os</strong> dois excert<strong>os</strong> de uma estrofe do poema«Hot», de Fernando Pinto do Amaral, em Poesia Reuni<strong>da</strong>: 14Três semanas depois de saber que existiasvoltava a mim quando ontem, de surpresa,atendi o telefone e eras tua romper o equilíbrio de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> mund<strong>os</strong>.14 [2000:150 a 153]320


............................................................................................A tua vi<strong>da</strong> amava aquelas sombraso pequeno terraço onde falám<strong>os</strong>de países longínqu<strong>os</strong> e viagensonde irias tentar fugir não sei a quê.Os decibeis ardiam no saxofonee entre <strong>os</strong> ded<strong>os</strong> de alguém o pianopodia, se eu quisesse, ter-me segre<strong>da</strong>do<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> de um poema sem palavrasfeito apenas <strong>da</strong>quelas quase-lágrimasescorrendo pela música, entre nóso vazio do mundo, condensadon<strong>os</strong> gest<strong>os</strong> familiares que tod<strong>os</strong> esboçavamsó para ti, ó princesa <strong>da</strong>s fa<strong>da</strong>ssubitamente ergui<strong>da</strong>: «Agora vou <strong>da</strong>nçar!»-------------------------------------------------------A musicali<strong>da</strong>de límpi<strong>da</strong> conferi<strong>da</strong> a<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> pessoais e quotidian<strong>os</strong>representad<strong>os</strong> é atravessa<strong>da</strong> por moment<strong>os</strong> de sensuali<strong>da</strong>de difusa do corpoque partem tanto do ritmo do poema como <strong>da</strong> evocação <strong>da</strong> música nopoema. É precisamente essa musicali<strong>da</strong>de que projecta a voz lírica e permitea sua própria auto-encenação num palco que realça a sensibili<strong>da</strong>de intimista,quase confessionalmente translúci<strong>da</strong>, mas que, justamente porque exp<strong>os</strong>taem cena, simultaneamente a desdramatiza e dela se distancia.O esboço d<strong>os</strong> instrument<strong>os</strong> musicais («saxofone», «piano») povoa desonori<strong>da</strong>de a vaguidão d<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> («terraço», um sup<strong>os</strong>to bar, «o vazio domundo»), interrompe-se de quando em vez pela intrusa brusquidão domovimento simultâneo de corpo e voz («subitamente ergui<strong>da</strong>: `Agora vou<strong>da</strong>nçar!´»). Assim, a aparente banali<strong>da</strong>de do suporte d<strong>os</strong> object<strong>os</strong> e d<strong>os</strong>espaç<strong>os</strong> delineia-se como rasto de suporte clássico a penetrar a subversão <strong>da</strong>vivência lírica pela moderni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua efabulação.321


Esta dispersa pontuali<strong>da</strong>de narrativa do poema liberta-ofragmentariamente, como se configurasse o contar de pequenas reflexõesemotivas e poéticas: «eras tu / a romper o equilíbrio de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> mund<strong>os</strong>»,«A tua vi<strong>da</strong> amava aquelas sombras», «O piano podia [...] ter-me segre<strong>da</strong>do/ <strong>os</strong> vers<strong>os</strong> de um poema sem palavras / feito apenas <strong>da</strong>quelas quaselágrimas/ escorrendo pela música»). O efeito é o de uma libertaçãoconstelar do poema, como se minúsculas histórias, projecta<strong>da</strong>s na vivênciaquotidiana <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ou cristaliza<strong>da</strong>s no sentir presentificado dereverberações, penetrassem o espaço silenci<strong>os</strong>o <strong>da</strong> alma lírica do leitor.2. A CENOGRAFIA E AS CENASÉ por vezes difícil, quando interfere a subjectivi<strong>da</strong>de de uma leitura,separar o cenário <strong>da</strong> cena. Tudo se passa como na observação <strong>da</strong>sfotografias, e tanto mais quanto mais elas n<strong>os</strong> estiverem distancia<strong>da</strong>s notempo. Numa é o cenário de fundo que adquire vi<strong>da</strong>, que conta essa tarde ouesse dia, ou a história desse jardim ou dessa casa, deixando desfoca<strong>da</strong> aon<strong>os</strong>so olhar a cara humana situa<strong>da</strong> em primeiro plano. Noutra é o cenárioque, apesar de muito colorido e vivo, é desprezado pelo n<strong>os</strong>so olhar, que secentra obssessivamente nas mã<strong>os</strong> <strong>da</strong> figura em primeiro plano, ampliando-ase trazendo-as à vi<strong>da</strong> de uma movimentação, deslocando-as mesmo paraoutr<strong>os</strong> cenári<strong>os</strong> ou temp<strong>os</strong>, aliando-as ao riso ou à apatia de uma face.Assim se passa com alguns poemas cuja narrativi<strong>da</strong>de n<strong>os</strong> é p<strong>os</strong>síveladivinhar e completar mais a partir do cenário do que <strong>da</strong>s personagens ou322


<strong>da</strong>s acções explícitas. Vejam<strong>os</strong> o poema «Gravura», 15 de Um Quarto comCi<strong>da</strong>des ao Fundo, de Inês Lourenço:Era o quarto <strong>da</strong> Mãecom uma cama escura, uma gravura<strong>da</strong> gruta de Lourdes, uma colchaverde, uma Singerde cabeça escondi<strong>da</strong>, pan<strong>os</strong>de crochet com fot<strong>os</strong> de parentes perdid<strong>os</strong>,o roupeiro ain<strong>da</strong> com as toucas de baptismoe o grande gavetão com as mantilhas de ir á missae uma bisnaga de perfume vazia.---------------------------------------------------------------É a partir <strong>da</strong> descrição minuci<strong>os</strong>a, mas fragmenta<strong>da</strong>, do quarto e,sobretudo, d<strong>os</strong> seus object<strong>os</strong>, que o leitor pode imaginar a personagem <strong>da</strong>Mãe e reconstruir hábit<strong>os</strong> familiares recor<strong>da</strong>d<strong>os</strong> por um sujeito lírico que seesconde sob a máscara de um narrador, distanciado, como se observassequase imparcialmente uma «gravura». No entanto, <strong>os</strong> hábit<strong>os</strong> familiares e asua ausência em relação ao sujeito estão implícit<strong>os</strong> na descrição, quer pelarecorrência a um léxico conectado quer com a religi<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de («uma gravura /<strong>da</strong> gruta de Lourdes», «toucas de baptismo», «mantilhas de ir à missa») quercom hábit<strong>os</strong> caseir<strong>os</strong> de classe média («casa escura», «Singer», «colchaverde», «pan<strong>os</strong> de crochet»), quer, ain<strong>da</strong>, com a sau<strong>da</strong>de que se evola doúnico objecto ligado à pessoali<strong>da</strong>de - a «bisnaga de perfume vazia», cujolento e presumível lapso de odor, ain<strong>da</strong> latente como que por magia,despertará, na cena descrita, a história de uma vi<strong>da</strong> de mulher no retrato <strong>da</strong>mãe desapareci<strong>da</strong>.15 [2000:35]323


Ain<strong>da</strong> numa configuração do contar a partir do cenário, emencionando mesmo um retrato como ponto de parti<strong>da</strong>, transcrevem<strong>os</strong>alguns excert<strong>os</strong> do poema «Avó Leonor», 16 de Pedro Mexia, no livro EmMemória:Mau fotógrafo, num momento de sorteOu golpe de luzTirei o último retrato,O que melhor traduzA minha avóPouco antes <strong>da</strong> sua morte.---------------------------------------------------São <strong>os</strong> olh<strong>os</strong>, por detrás d<strong>os</strong> ócul<strong>os</strong>De ar<strong>os</strong> branc<strong>os</strong>,Que fazem <strong>da</strong> foto o modo comoA recor<strong>da</strong>m<strong>os</strong>,Olh<strong>os</strong> de quem tem muito cui<strong>da</strong>doCom as emoçõesMas é capaz de atravessar <strong>os</strong> err<strong>os</strong>De várias gerações---------------------------------------------------Na casa patriarcal, mas já depois de o maridoE de <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> homens terem morrido,A minha avó sabia o mesmo que nós,Mas dizia men<strong>os</strong>E as conversas eram amenasDe tom familiarFrases sobre a televisão e a hora de deitar----------------------------------------------------------16 [2000:72 a 74]324


Ao contrário de Inês Lourenço que, no poema «Gravura», oferece aoleitor um cenário povoado de pistas para a construção de uma história, noretrato de «Avó Leonor» Pedro Mexia assume no seu poema a voz de umsujeito que parte de uma descrição minuci<strong>os</strong>a de fotografia - maisinterpreta<strong>da</strong> do que objectivamente descrita -, tira<strong>da</strong> ver<strong>os</strong>imilmente pelopróprio, e a partir <strong>da</strong> qual começa a desven<strong>da</strong>r características <strong>da</strong> personagemque irão conduzir, ao longo do poema, ao contar <strong>da</strong> história familiar e <strong>da</strong>srepercussões que nela teve a figura retrata<strong>da</strong>. No entanto, a lineari<strong>da</strong>de não éconstante, pois avanç<strong>os</strong> e recu<strong>os</strong> no tempo conferem a ver<strong>os</strong>imilhança dorecor<strong>da</strong>r e, mesmo, do rectificar («A minha avó sabia o mesmo quenós, / Mas dizia men<strong>os</strong>») que reconduz à estatici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fotografia inicialcomo que numa reapreciação, numa nova comunhão do «golpe de luz» oudo gesto e <strong>da</strong> voz que perpetuam a imagem.Por vezes, a fragmentari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cenas faz parte de uma uni<strong>da</strong>decenográfica relaciona<strong>da</strong> com um tema que percorre a série de poemas deum livro, funcionando, deste modo, como uma espécie de estratégiadiscursiva que permite o reenvio d<strong>os</strong> poemas uns para <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>. Por vezes,até, esse reenvio é deixado à hipotética arbitrarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escolha do leitor, oque acentua o jogo de interacção complementar <strong>da</strong>s cenas nas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>desde enunciação narrativa. Podem<strong>os</strong> encontrar este tipo de jogo de módul<strong>os</strong>articuláveis na poesia de João Luís Barreto Guimarães, que exemplificam<strong>os</strong>com dois excert<strong>os</strong> de Lugares Comuns: 17Tentar adivinhar quem poderia ali ter estado. O tempoque terá deixado, o g<strong>os</strong>to ou não por tabaco, definir esse r<strong>os</strong>topelo rótulo do que bebeu, atribuir-lhe uma i<strong>da</strong>de, um sexo, umperfil, explorar ca<strong>da</strong> detrito na resenha de vestígi<strong>os</strong>.17 [2000:11, 48]; [NUNES, 2002:39, 40]325


--------------------------------------------------------------------Um Café, o espaço físico de um Café, o vidro que lhecorre a facha<strong>da</strong>, não deixa também de ser em si mesmo umaloja, uma enorme montra de rua para onde quem lá passa podedemorar o olhar, não apenas pelo que aí é visível todo o diamas também para quem, dentro, sob as mesas se senta.O Café funciona, ao longo do conjunto de poemas, como um cenáriorecorrente que permite o contar de uma dupla história: a história dopróprio «Café» e <strong>da</strong>s pessoas que o frequentam, e a história <strong>da</strong> escrita que onarrador escreve no café, e sobre a qual se interroga e <strong>da</strong> qual conta <strong>os</strong>procediment<strong>os</strong>, num processo de hipotip<strong>os</strong>e: «Abro o caderno e escrevo queestou a escrever no caderno». 18 O leitor é livre de percorrer a «história doCafé», saltando a «história <strong>da</strong> escrita», ou seguir esta , ou seguir ambassimultaneamente. No entanto, qualquer que seja a opção de leitura, ela terásempre a protecção do uso <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a e <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de do quotidiano cenáriodo «Café» como suporte <strong>da</strong> concatenação do relatar do quotidiano <strong>da</strong>escrita. É do silêncio subjacente a estes act<strong>os</strong>-cenári<strong>os</strong> que flui amusicali<strong>da</strong>de narra<strong>da</strong> d<strong>os</strong> pequen<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> avanç<strong>os</strong> e recu<strong>os</strong><strong>da</strong> escrita e o completar do ambiente no qual ela se processa.Também a reflexão sobre a escrita provoca, por vezes, um percursoinverso, o <strong>da</strong> expressão de uma interiori<strong>da</strong>de que suporta as cenas parap<strong>os</strong>sibilitar o seu contar. Em Mapas O Assombro A Sombra, ManuelGusmão segue esse caminho não só no poema mas na série de poemas, doprimeiro d<strong>os</strong> quais m<strong>os</strong>tram<strong>os</strong> algumas estrofes: 19118 [2000:27]19 [REIS-SÁ, 2000:173 a 175]; de326


----------------------------------------------------------------tu escreves - dizes tu como se não f<strong>os</strong>se ver<strong>da</strong>deo que a escrita deve fazer ao longo <strong>da</strong> tua tristeza,<strong>da</strong> tua esperança. - Assim, isto; vês: isto?Assim: as mã<strong>os</strong> é que o dizem sobre ti; garantem.Fazem que não há paz entre <strong>os</strong> vers<strong>os</strong>, as estrofes,entre ca<strong>da</strong> letra do nome que [me] põe a voz em movimento.É preciso de vez em quando insistir em que alguém está aquia falar. que essa fala deveria poder afastar um poucoo gesto <strong>da</strong> morte que se quer instalar entre ca<strong>da</strong> voz.E tu respondes: é como se visses pela boca, pelas mã<strong>os</strong>,Mas o ar não respondesse ao que te escuto, ou eu morresse.Ou então não estavas já ali, descias no elevador ao encontroDo meu esquecimento. Há um marulho nas árvores do largo.-------------------------------------------------------------------------É o diálogo inscrito na própria reflexão <strong>da</strong> escrita do poema - e queperde progressivamente a sua bivalência como p<strong>os</strong>sível monólogo - quefunciona como um cenário abstracto, como um fundo de palco liso e negrode onde surgem as vozes do diálogo entre as personagens: eu e tu, como nalírica tradicional, em diálogo retórico imaginado ou lembrado. É nessecenário obscuro que se iluminam <strong>os</strong> corp<strong>os</strong>, e que um ou outro apontamentodo quotidiano (o «elevador», «as árvores do largo») surge a lembrar arepresentação do enraizamento factual cénico. Será também desse pano defundo negro que se destacarão <strong>os</strong> silênci<strong>os</strong> e <strong>os</strong> murmúri<strong>os</strong> de um act<strong>os</strong>exual que tanto fecha o poema como remete para o seu início, num327


ecomeço de percurso de escrita e de percurso corporal que se indiciamcomo repetitiv<strong>os</strong> de uma ou de to<strong>da</strong> uma escrita..Maria Teresa Horta, no último poema de Minha Senhora de Mim,entrecruza corp<strong>os</strong> sem cenário explícito ao partilhar cenas de aproximaçãofísica, sensual e sexual, que são conta<strong>da</strong>s como que numa inversão <strong>da</strong>progressão <strong>da</strong> acção e que funcionam, no conjunto de poemas do livro,como uma iteração de cenas de aproximação e afastamento que terão a suaresolução e desfecho no poema final. Escolhem<strong>os</strong>, deste percurso narrativo,o poema «Entre nós e o tempo» 20 :Assim... meu amorPenetra o tempoAs ancas devagarAs pernas lentasO charco d<strong>os</strong> teusOlh<strong>os</strong>E a laranja a palpitar dentroDo meu ventreAssim... meu amorPenetra o tempoA boca devagarOs ded<strong>os</strong> lent<strong>os</strong>A raiva do punhal que enterrasNo sol past<strong>os</strong>oDo meu ventre20 [2001:85]328


Assim... meu amorPenetra o tempoOs rins devagarO espasmo lentoOs dístic<strong>os</strong> ou as estrofes de três vers<strong>os</strong> dominam tanto este textocomo a maioria d<strong>os</strong> poemas do livro, a<strong>da</strong>ptando-se ao ritmo <strong>da</strong>saproximações e afastament<strong>os</strong> d<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> e criando, através <strong>da</strong> rima, d<strong>os</strong>paralelism<strong>os</strong> e <strong>da</strong>s construções anafóricas uma harmonia de musicali<strong>da</strong>de emovimento que substitui a irrelevância do cenário. O cenário é a ausênciaque dele fazem <strong>os</strong> corp<strong>os</strong> - o cenário são <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> - e a história ésuporta<strong>da</strong> por uma diegese ténue que articula dialogicamente as cenas d<strong>os</strong>seus encontr<strong>os</strong>. Fica ao leitor a história sem história que acompanha o contode pôr em liber<strong>da</strong>de o animal humano contra o animal humano, em sexo eamor.Muit<strong>os</strong> são <strong>os</strong> poemas cujo estatuto enunciativo recorre aprocediment<strong>os</strong> de configuração cénica similares a<strong>os</strong> que tem<strong>os</strong> vindo aobservar, como meio de introduzir a narrativi<strong>da</strong>de, quer de modo maisimplícito, quer mais explicitamente. No entanto, embora men<strong>os</strong>frequentemente, é interessante verificar que tanto a evocação de cenas comoa apresentação de cenári<strong>os</strong> se pode verificar através do recurso àmetamorf<strong>os</strong>e. O exemplo que seleccionám<strong>os</strong> foi de Corpo Atlântico, deHugo Sant<strong>os</strong>, volume que, na n<strong>os</strong>sa opinião, conta, em quarenta e seispoemas monoestrófic<strong>os</strong>, a história de um amor trovadoresco, quaseprovençal, redimido <strong>da</strong> sua colocação temporal por uma dimensã<strong>os</strong>urrealizante, característica do realismo fantástico mas vin<strong>da</strong> <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>smedievais. Citam<strong>os</strong> as seguintes estrofes: 2121 [1994:19, 35]329


9Viajo nas quatro estações do teu corpo 22escrevo na pele <strong>os</strong> dias, <strong>os</strong> meses, a lenta agonia<strong>da</strong>s horas.Entre a alba e o entardecer decifro <strong>os</strong> hieroglif<strong>os</strong>traçad<strong>os</strong> dum a outro infinito.Escrevo como se o tempo f<strong>os</strong>se ain<strong>da</strong> adiávele tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> prodígi<strong>os</strong> permanecessem disponíveisao olhar e ao silêncio.Diz apenas que me amas. Todo o restoas palavras, <strong>os</strong> haveres, as dúvi<strong>da</strong>sou o submerso encanto do esquecimento --pouco mais é que o consabido caracterdo que, lentamente, morre.Supõe-te então uma nau devagar atravessandoo nevoeiro.--------------------------------------------------------------25Pelo tacto reconhecerei o teu corpo, terra.Enre<strong>da</strong>-me n<strong>os</strong> braç<strong>os</strong> <strong>da</strong>s tuas faiase deixa adormecer sobre mim <strong>os</strong> brand<strong>os</strong> vent<strong>os</strong>que descem sobre o xadrez <strong>da</strong>s furnas.Quero ser o filho mais incógnito do teu ventre:aquele que reconhece nas tuas dunas<strong>os</strong> sei<strong>os</strong> maternais d<strong>os</strong> profund<strong>os</strong> ocean<strong>os</strong>que te percorrem.Não precisas chamar-me: estarei aírecolhendo o trigo, catalogando as ânforase tatuando o teu nome no barro humedecidopor qualquer lágrima do exílio.330


Uma forte dimensão metonímica percorre todo o texto, conferindo, apar com a evolução <strong>da</strong>s duas personagens únicas, uma uni<strong>da</strong>de lógica,coerente e ver<strong>os</strong>ímil à fragmentação em estrofes (ou cant<strong>os</strong>?). Estadimensão metonímica encontra-se alia<strong>da</strong> à configuração metamórfica docorpo de mulher como cenário e do cenário como corpo de amantes,presente em vers<strong>os</strong> como «Viajo nas quatro estações do teu corpo / escrevona pele», «Supõe-te então uma nau», «o teu corpo, terra./ Enre<strong>da</strong>-me n<strong>os</strong>braç<strong>os</strong> <strong>da</strong>s tuas faias», «nas tuas dunas / <strong>os</strong> sei<strong>os</strong> maternais d<strong>os</strong> profund<strong>os</strong>ocean<strong>os</strong> / que te percorrem».Como contraponto desta viagem no corpo de uma mulher,encontram<strong>os</strong> o relato <strong>da</strong> viagem, aliado à confissão <strong>da</strong> escrita e d<strong>os</strong>sentiment<strong>os</strong> desejad<strong>os</strong> ou vivid<strong>os</strong> - «Diz que me amas.»; «Não precisaschamar-me: estarei aí» - que subtilmente esboçam a dimensão de umahistória de amor tão intenso que não tem princípio nem fim e só pelometamórfico consegue existir e dizer-se.Considerando que a metamorf<strong>os</strong>e se não processa apenas de almapara alma mas também como resultado <strong>da</strong> empatia entre corpo humano enatureza, é, de certo modo, indiferente que ela seja uma transformaçãoalquímica ou transformadora, súbita ou lenta, visto que resulta sempre numaalteração de aparência ou circunstância numa exteriorização de essência oude carácter. Ca<strong>da</strong> metamorf<strong>os</strong>e representa, pois, uma mu<strong>da</strong>nça dentro <strong>da</strong>mu<strong>da</strong>nça, alia<strong>da</strong> ao visualizar do processo transformativo que a comprova,simultaneamente, como ser e cenário.N<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> de hoje, em que muit<strong>os</strong> poetas procuram ultrapassar umamoderni<strong>da</strong>de marca<strong>da</strong> pelo disfarce <strong>da</strong> subjectivi<strong>da</strong>de e do autobiográfico, écompreensível que o recurso retórico à metamorf<strong>os</strong>e sirva de22 Mantivém<strong>os</strong> o itálico por ter sido a escolha gráfica do poeta ao longo do seu livro.331


equacionamento verbal que permite um oculto desven<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s situaçõesemocionais e/ou autobiográficas, como acontece, pontual mas regularmente,ao longo do(s) poema(s) que constituem o volume O Deus Familiar, 23 dopoeta madeirense Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino:Nessa altura o meu pai amassava o pão com as mã<strong>os</strong>----------------------------------------------------------------chegava a casa ao despontar do diamesmo a tempo de acender o sol que havia deamassar-lhe o sonobatê-lo contra a cama escassaesquartejar-lhe o sonhoincendiar-lhe uma fogueira por dentro---------------------------------------------------------------------um corpo de água uma vértebra exp<strong>os</strong>tauma sílabauma inscrição para sempre com cicatriztatuagemalmauma coisa violenta como um longo silêncioque se quebrauma cor<strong>da</strong> parti<strong>da</strong>um violoncelo que se esvai em sangueo som como uma abóba<strong>da</strong> que na<strong>da</strong> já sustenta---------------------------------------------------------e as paredes enormesde onde <strong>os</strong> sin<strong>os</strong> sobem para as torres e agonizam23 [2001: 7,332


Ao contrário do uso <strong>da</strong> metamorf<strong>os</strong>e em Corpo Atlântico, de HugoSant<strong>os</strong>, que centra o processo metamórfico no corpo <strong>da</strong> mulher, n<strong>os</strong> poemasde O Deus Familiar, de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino, a metamorf<strong>os</strong>e processa-seentre alma e natureza («acender o sol que havia de amassar-lhe o sono»,«incendiar-lhe uma fogueira por dentro») ou, mais raramente, entre <strong>os</strong>object<strong>os</strong> e uma componente do corpo humano conecta<strong>da</strong> semântica ousimbolicamente com <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> e as emoções («um corpo de água umavértebra exp<strong>os</strong>ta / uma sílaba», «um violoncelo que se esvai em sangue»).Permite também que a introdução <strong>da</strong> fantasia emotiva lírica subverta abanali<strong>da</strong>de do quotidiano («Nessa altura o meu pai amassava o pão com asmã<strong>os</strong>») que acaba por ser contado ao longo do livro, sempre como queoculto pela dimensão de fantástico que lhe é conferido pelo recursoconstante à metamorf<strong>os</strong>e.Estes exempl<strong>os</strong> do uso <strong>da</strong> metamorf<strong>os</strong>e como suporte <strong>da</strong>configuração de cenas criam um cenário móvel, em permanente einespera<strong>da</strong> mutação, que penetra e é penetrado pelo corpo <strong>da</strong>spersonagens. A dimensão metonímica que se relaciona com a construçãometamórfica do cenário permite conferir ao contar do banal quotidiano umaforte dimensão poética que, no caso <strong>da</strong> poesia de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino,dispensa o apoio melódico de formas tradicionais, delineando-se a partir doverso livre e branco que funciona como um pano de fundo de liber<strong>da</strong>debranca e átona onde o poema inscreve as palavras <strong>da</strong> sua musicali<strong>da</strong>de.333


3. A MEMÓRIAQuando enfraquece o sentimento de pertença a um lugar, a umaatitude, a uma identi<strong>da</strong>de palpável, alcançável, presente, o contraponto poderesidir como vim<strong>os</strong>, no prazer sensual de encenar e penetrar as cenasquotidianas, imaginárias ou estéticas. Esse contraponto, contudo, podeancorar-se muito simplesmente na expressão <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> memória,configurando ou efabulando cenas ou histórias que recuperam para opresente <strong>da</strong> escrita do poema n<strong>os</strong>talgias ou compensações.O estado de espírito que proporciona a viagem ao passado, seja esteindividual ou colectivo, implica quase sempre tanto um certo alheamento dopresente quanto o vagabundear um tanto aleatório pelo tempo, pel<strong>os</strong>espaç<strong>os</strong>, pelas pessoas e pel<strong>os</strong> object<strong>os</strong>. Reviver o passado pressupõetambém a consciência <strong>da</strong>s lacunas a preencher, <strong>da</strong>s minúcias a aumentar,d<strong>os</strong> desej<strong>os</strong> não cumprid<strong>os</strong> a inventar. Por tudo isto, quando à temática <strong>da</strong>memória se alia a presença de narrativi<strong>da</strong>de no poema, é natural que aefabulação se apresente de um modo men<strong>os</strong> logicamente coerente, comavanç<strong>os</strong> e recu<strong>os</strong> no tempo e na espaciali<strong>da</strong>de, tanto do que é contado comodo poema, com simultanei<strong>da</strong>de de síntese e expansão, por vezes emdesequilíbrio, e acompanha<strong>da</strong>, em geral, de uma maior liber<strong>da</strong>de de escolhaformal.No entanto, é por vezes uma intensa contenção que confere ao narrar<strong>da</strong> memória, no poema, uma cristalização simultaneamente conti<strong>da</strong> epolifaceta<strong>da</strong>, como no seguinte poema, de A Criança em Ruínas, 24 de J<strong>os</strong>éLuís Peixoto:na hora de pôr a mesa, éram<strong>os</strong> cinco:334


o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãse eu. depois, a minha irmã mais velhacasou-se. depois, a minha irmã mais novacasou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,na hora de pôr a mesa, som<strong>os</strong> cinco,men<strong>os</strong> a minha irmã mais velha que estána casa dela, men<strong>os</strong> a minha irmã maisnova que está na casa dela, men<strong>os</strong> o meupai, men<strong>os</strong> a minha mãe viúva, ca<strong>da</strong> umdeles é um lugar vazio nesta mesa ondecomo sozinho. mas irão estar sempre aqui.na hora de pôr a mesa, serem<strong>os</strong> sempre cinco.enquanto um de nós estiver vivo, serem<strong>os</strong>sempre cinco.A simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação de per<strong>da</strong>, lembra<strong>da</strong> na sua progressão notempo e, simultaneamente, reconstruí<strong>da</strong> e presentifica<strong>da</strong> pela admissãodeificadora e milagr<strong>os</strong>a <strong>da</strong> memória, tem o seu suporte cénico na referênciaà «casa», à «mesa» e às personagens que nela c<strong>os</strong>tumavam estar presentes.A memória dessa cena ca<strong>da</strong> vez mais despovoa<strong>da</strong> é acompanha<strong>da</strong> - econtraria<strong>da</strong> - pelo valor estético do eco linear ou do emprego quasecabalístico de sequências de palavras como «cinco» «depois», «cinco»,«men<strong>os</strong>», «cinco»...De notar, ain<strong>da</strong>, a reiteração d<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sessiv<strong>os</strong>, que fazem reverberar emsuavi<strong>da</strong>de musical a força <strong>da</strong> emoção senti<strong>da</strong> e reforçam a p<strong>os</strong>se do passadono momento presente. O sentimento uno e diverso, pela repetiçã<strong>os</strong>ituacional e diferença de nomeação, fende a página e rasga as palavras namorte e ressurreição do ritmo anafórico que se aproximara perig<strong>os</strong>amente <strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> respiração do poema e do leitor.A lengalenga <strong>da</strong>s histórias populares ou infantis, com a suacomponente de diferença pela repetição e sucessão d<strong>os</strong> event<strong>os</strong>, é aqui24 [2001:13]335


enfatiza<strong>da</strong> pela quase regulari<strong>da</strong>de métrica em estrofe única, com presençaeventual de rima interna e externa. Contudo, a dimensão de pureza quaseinfantil não chega a ser subverti<strong>da</strong> pela n<strong>os</strong>talgia e pelo dramatismoirreversível <strong>da</strong> situação lembra<strong>da</strong> e pelo paradoxo final de continui<strong>da</strong>de deum até «sempre» <strong>da</strong> p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> memória, deixando em aberto oconsolo pacífico e calmo <strong>da</strong> lembrança afinal sempre viva.Por vezes, a narrativi<strong>da</strong>de, no poema que assume a fala <strong>da</strong> memória,parte <strong>da</strong>s paisagens, d<strong>os</strong> object<strong>os</strong> ou <strong>da</strong> sensoriali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> quepermanecem para além do tempo, como num poema de Maria do R<strong>os</strong>árioPedreira, em A Casa e o Cheiro d<strong>os</strong> Livr<strong>os</strong>: 25Depois de tudo, fica a lembrança d<strong>os</strong> lugares ed<strong>os</strong> seus nomes; d<strong>os</strong> quart<strong>os</strong> virad<strong>os</strong> a poenteonde as imagens do rio nunca se repetem nas janelase tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> enred<strong>os</strong> são consentid<strong>os</strong> sobre as camas.Ao fundo, havia um armário de madeira com espelhoonde as n<strong>os</strong>sas roupas trocavam de perfumepara que <strong>os</strong> dias se vestissem sempre melhor.E, sobre a cómo<strong>da</strong>, num espelho mais antigo,a tarde reflectia algumas <strong>da</strong>s alegrias <strong>da</strong> infância.Não era o quarto de nenhum de nós,mas a ele regressávam<strong>os</strong> sempre com a pressade quem anseia <strong>os</strong> cheir<strong>os</strong> quentes e antig<strong>os</strong><strong>da</strong> casa conheci<strong>da</strong>: como quem espera ser aguar<strong>da</strong>do.Pressenti, porém, que não era eu quem aguar<strong>da</strong>vas:uma noite, pedi-te mais um cobertor em vez de um abraço.25 [2002:29]336


Ao contrário do poema de J<strong>os</strong>é Luís Peixoto, no qual a sequência deuma temporali<strong>da</strong>de se articulava ver<strong>os</strong>imilmente com o desaparecimento oupermanência <strong>da</strong>s personagens, contando uma pequena história, neste poemade Maria do R<strong>os</strong>ário Pedreira a diegese, além de mais redutora, apresentamaiores lacunas e ambivalências a completar pelo leitor. Assim, é a partir <strong>da</strong>afirmação <strong>da</strong> memória («Depois de tudo, fica a lembrança») que começa asurgir a visualização do cenário ou d<strong>os</strong> object<strong>os</strong>, vist<strong>os</strong> no reflexo <strong>da</strong>lembrança, surgid<strong>os</strong> d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> ou <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> evocad<strong>os</strong> («onde as n<strong>os</strong>sasroupas trocavam de perfume», «E, sobre a cómo<strong>da</strong>, num espelho maisantigo, / a tarde reflectia algumas <strong>da</strong>s alegrias <strong>da</strong> infância», «de quem anseia<strong>os</strong> cheir<strong>os</strong> quentes e antig<strong>os</strong> / <strong>da</strong> casa conheci<strong>da</strong>»).O processo de lembrança do passado delineia-se «como quem esperaser aguar<strong>da</strong>do», pela sugestão d<strong>os</strong> gest<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> odores e <strong>da</strong>s sensações tácteis,que no poema funcionam, simultaneamente, como indicadores decaracterização d<strong>os</strong> lugares, <strong>da</strong>s personagens e, até, <strong>da</strong> tentativa delocalização do próprio tempo.Julgam<strong>os</strong> detectar neste poema uma infracção modelar ao soneto,permitindo a construção de uma lógica formal que apoia a ilogici<strong>da</strong>deerrante do lembrar, verificando-se também uma circulari<strong>da</strong>de conclusivaque remete para o tempo presente, necessária a quem conta o passado, talcomo no poema de J<strong>os</strong>é Luís Peixoto também se notava.Por vezes, é a consciência repentina de um momento banal ou de umacena do quotidiano, vivid<strong>os</strong> no presente, que fazem despoletar o processodo recuo no tempo e trazem as lembranças perfeitas ou as recor<strong>da</strong>çõesimperfeitas de uma relação amor<strong>os</strong>a, como sucede no poema «As delíciasdo verbo», 26 em Imagias, de Ana Luísa Amaral:26 [2002:45]337


Estava hoje tão bem, com o sol a cairsobre pened<strong>os</strong> cobert<strong>os</strong> de mil cores,o frio a ameaçar, mas a lareira acesa,e tinha até comprado jantar pré-cozinhado,sem ser do meu c<strong>os</strong>tume,que me faz falta o lumee <strong>os</strong> cheir<strong>os</strong> como sôfrego alpinista,subindo em corredor de neve ausenteEstava hoje tão quente de chegare tinha p<strong>os</strong>to a mesa, e na<strong>da</strong> demoravao meu c<strong>os</strong>tume,quando li o teu nome de repenteE a injustiça de te ter em nomemas não te ter aquiembrulhou-me cenário e coração------------------------------------------Esta conjugação de quotidiano, cena e memória abre, logo desde aprimeira estrofe do poema, uma dialogia que virá a conferir uma progressivae maior importância à memória ao longo do poema e que se agudiza a partirdo surgir do imprevisto («quando li o teu nome de repente»),redimensionando, a partir <strong>da</strong>í, tanto o dizer do quotidiano em term<strong>os</strong> detempo como uma mu<strong>da</strong>nça de perspectiva <strong>da</strong>quele em função <strong>da</strong> relação doespaço com as emoções («mas não te ter aqui / embrulhou-me cenário ecoração»). Este irromper do imprevisto nomeado faculta, pois, o desenrolardo fio <strong>da</strong> memória, provocando um apagamento progressivo do presente noqual se centrava o início do poema.338


A temática <strong>da</strong> memória, alia<strong>da</strong> ao sentimento amor<strong>os</strong>o, podetambém não surgir directamente conecta<strong>da</strong> com uma alusão evidente aoquotidiano, mas antes redimensiona<strong>da</strong> pela sensuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> memóriacentra<strong>da</strong> no corpo, como no longo poema «Hotel Spleen 3 a », 27 de BernardoPinto de Almei<strong>da</strong>, em Hotel Spleen, do qual transcrevem<strong>os</strong> excert<strong>os</strong> dealgumas estrofes:Estou agora pensando nessa mulher de r<strong>os</strong>to graveolh<strong>os</strong> espantad<strong>os</strong> - mulher de r<strong>os</strong>to quase líquidode quem nenhuma lágrima se viunem quando a manhã explodiu e um cant<strong>os</strong>e fez ouvir e tudo pareceu parar:mã<strong>os</strong> nerv<strong>os</strong>as o corpo frágil a veloci<strong>da</strong>deque a habitava tendendo-a muito para além de si mesma------------------------------------------------------------------------------------Quis secar-lhe as lágrimas mas já estavam secasbeijar-lhe <strong>os</strong> lábi<strong>os</strong> mas estavam fri<strong>os</strong>olhá-la n<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> mas <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> baixaram-seapertá-la ao peito mas não respirava-----------------------------------------------------------------------------------Lembrando-a assim, nua dentro de mimFui até ela e abracei-a: apertei-aContra o peito disse-lhe que a amava como a queriaEnvolver em ternura como queria escrever-lheUma carta de amor como as cartas de amorQue to<strong>da</strong> a gente escreve,To<strong>da</strong> a gente escreve,Mas o vento levando-a para longeO vento cruel que chegava do norte muito espessoArrastava-a fundo para dentro de um espelho negroMesmo se estendendo para ela <strong>os</strong> meus ded<strong>os</strong>---------------------------------------------------------------------------------27 [2003:58 a 61]339


Belíssimas trovas à memória de uma mulher - mulher amante, mulhermorta, mulher estátua, mulher imagina<strong>da</strong>, mulher sempre viva no corpo e naalma e no coração de quem a lembra e conta. Neste poema, a musicali<strong>da</strong>de ea densi<strong>da</strong>de imagética transformam a simplici<strong>da</strong>de temática de um modoexemplar, dominando uma relação de aparente distanciamento discursivoentre narrador e personagem que se desdobra e coabita com a intimi<strong>da</strong>delírica partilha<strong>da</strong> entre sujeito e objecto através do processo mental <strong>da</strong>recor<strong>da</strong>ção.Articulando também temática tradicional com referências pontuais àbanali<strong>da</strong>de do quotidiano, mas fazendo destas o centro de irradiação <strong>da</strong>semoções de uma experiência por vezes dolor<strong>os</strong>a, que pressupõe memóriasantigas, encontram<strong>os</strong> nas vozes plurais <strong>da</strong> poesia de Manuel de Freitas,como no excerto que citam<strong>os</strong>, do poema fragmentado que constitui Büchleinfür Johann Sebastian Bach: 28--------------------------------------------------------------------------------------É uma fotografia de alguémque vai morrer. Deus,tanto quanto sei, nunca apreciouo preto e branco de Maplethorpe.É um homem,portanto.Esconde-seou m<strong>os</strong>tra-se na securaquase oriental <strong>da</strong>s flores. Biomb<strong>os</strong>,talvez biomb<strong>os</strong>. Imprimemno seu corpo a luz fatídica de Setembro.E na<strong>da</strong> disso tem, para já, uma relação directa com a buganvíliaque me sepultou a infância.........................................................................................................28 [2003:15]340


A recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> infância surge articula<strong>da</strong> pelas referências à música, 29à imagem, ao tempo sazonal e à quase que humanização do divino,delineando a hesitação entre a memória como recor<strong>da</strong>ção pessoal e amemória como ciclo de renovação e continui<strong>da</strong>de religi<strong>os</strong>a e cultural,acompanha<strong>da</strong> por uma varie<strong>da</strong>de de níveis discursiv<strong>os</strong> que se concentram eentrecruzam, como na estrofe acima transcrita, dimensionando as cenasconta<strong>da</strong>s numa temporali<strong>da</strong>de simultaneamente pessoal e colectiva.A necessi<strong>da</strong>de de representar o passado numa circulari<strong>da</strong>de queilumine reciprocamente passado e presente não surge apenas em poemascuja narrativi<strong>da</strong>de é p<strong>os</strong>ta ao serviço de sentiment<strong>os</strong> , emoções ouvivências individuais. Por vezes é um passado mais distante que provocauma memória situa<strong>da</strong> entre o individual e o colectivo porque, por exemplo,plasmado num quadro renascentista, num filme ou numa cena de literaturamedieval, a partir d<strong>os</strong> quais se desenvolve o dizer <strong>da</strong> memória, como é ocaso d<strong>os</strong> poemas que segui<strong>da</strong>mente citam<strong>os</strong>.O primeiro, de Uso de Penumbra, de Fernando Echevarría, pertenceao longo poema «La Pietà d´Avignon», 30 conjunto de vinte estrofes queconstroem uma narrativa a partir <strong>da</strong> reprodução de um quadro, e <strong>da</strong>s quaiscitam<strong>os</strong> duas:6E, então, a Ma<strong>da</strong>lena perpetuaA dolor<strong>os</strong>a contensão do prantoreclinado somente sobre a curvado sacramento. EnquantoJoão destrinça na coroa dupla29 Já o livro anterior, [sic], referia Bach.30 [1995:61 a 72]341


o místico sentido. E o arcanodo peso <strong>da</strong> cabeça que deslumbraa discrição <strong>da</strong> sua mão por baixo.---------------------------------------------20De aí, a analogia abre-se imóvelao ouro excelso que alicerça a urbeviática. Ou, de dentro, transfigura a morteem glória. A cuja paração incumbe<strong>da</strong>r mobili<strong>da</strong>de justa de ordemonde o luto, de si, em si sucumbe.Apesar <strong>da</strong> ausência <strong>da</strong> reprodução do quadro e <strong>da</strong>s restantes estrofes,esperam<strong>os</strong> conseguir exemplificar o processo de dupla articulação de níveisde memória que no poema estão implicad<strong>os</strong>. Entre a resistência <strong>da</strong>spersonagens ao tempo, às crenças e a<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> <strong>da</strong> «Ma<strong>da</strong>lena perpétua»,surge a «analogia [que se] abre imóvel», permitindo a viagem temporal deactualização d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> e emoções contad<strong>os</strong>. Delineia-se, assim, umadimensão <strong>da</strong> memória narra<strong>da</strong> que articula o mundo <strong>da</strong> arte e o mundo <strong>da</strong>religião, confrontad<strong>os</strong> na pessoalização mística do poema.A conjugação entre temp<strong>os</strong> e níveis divers<strong>os</strong> na história, na arte, nareligião, na escrita e na memória configura o elemento de conexão p<strong>os</strong>sívelao inventar de uma história que é, por um lado, a história conta<strong>da</strong> nareligi<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de do quadro, e, por outro lado, a história trazi<strong>da</strong> através dotempo estético <strong>da</strong> arte, reconstruíd<strong>os</strong> amb<strong>os</strong> pela sua interpretação torna<strong>da</strong>escrita de poema.A memória de uma fotografia, de um quadro, de uma escultura, de umtexto literário, de uma música ouvi<strong>da</strong> ou de um filme visto podem ser342


também o pequeno elemento que desperta a memória mas que, por vezes, aperturba, interferindo nas recor<strong>da</strong>ções com um efeito que poderíam<strong>os</strong>designar como «intertextuali<strong>da</strong>de com a memória pessoal», e de que podeser um exemplo o poema «O céu sobre Berlim (Der Himmel überBerlin)», 31 de A Engan<strong>os</strong>a Respiração <strong>da</strong> Manhã, de Inês Lourenço:No filme de Wenders, comvers<strong>os</strong> de Handke, <strong>os</strong> anj<strong>os</strong> fingemestar fart<strong>os</strong> de um tempoinfinito. Sonham com <strong>os</strong>pequen<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> de sentar-se à mesaa jogar cartas, Ser cumprimentado narua, nem que seja por um aceno. Terfebre. Ficar com <strong>os</strong> ded<strong>os</strong> suj<strong>os</strong>de ler o jornal. Entusiasmar-se com umarefeição ou com a curvade uma nuca. Mentircom habili<strong>da</strong>de. Ao an<strong>da</strong>rsentir a <strong>os</strong>satura mexer-se a ca<strong>da</strong>passo. Supor, em vez de sabersempre tudo. Cá em baixo, <strong>os</strong>human<strong>os</strong> não suspeitam <strong>da</strong> belezado peso, que <strong>os</strong> segura á terra e fingemo futuro em ca<strong>da</strong> minuto, paradeixar de dizer agora, agora, agora...Mesmo para quem não queira dimensionar a interpretação destepoema com alguma <strong>da</strong> temática obssessiva d<strong>os</strong> filmes de Wim Wenders, énotória a relação de op<strong>os</strong>ição d<strong>os</strong> paradigmas <strong>da</strong> perfeição e <strong>da</strong> imperfeiçãoque articulam uma dimensão de simultânea adesão e recusa à memóriacinematográfica e à memória de vi<strong>da</strong>. Apesar <strong>da</strong> linguagem íntima e pessoalque articula a referência cultural com a sensibili<strong>da</strong>de individual, perpassa o31 [2002:20]343


poema o paradoxo <strong>da</strong> harmonia entre a factuali<strong>da</strong>de e o sonho, entre ohumano e o divino, magistralmente resumido por Eça de Queirós, no finaldo conto «Perfeição», na última fala de Ulisses: «Voltar à perfeição <strong>da</strong>scoisas imperfeitas».Por vezes, pois, a dimensão místico-religi<strong>os</strong>a acompanha a dimensão<strong>da</strong> memória na narrativi<strong>da</strong>de do poema, de tal modo que quase miscigenao distanciamento necessário ao contar do passado religi<strong>os</strong>o e histórico e aaproximação do exteriorizar d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> individuais e presentes emrelação a esse passado. O Sinal de Jonas, de Carl<strong>os</strong> Lopes Pires, articula-seem volta de um silêncio que permite a lembrança <strong>da</strong>s origens mais iniciais,ditas, por exemplo, n<strong>os</strong> seguintes excert<strong>os</strong> do poema «Coração» 32Repara agora em duas ou três coisas.Senta-te na clari<strong>da</strong>de do poema.Lá fora a vi<strong>da</strong> chove e secaram as r<strong>os</strong>as.Tu contarás pel<strong>os</strong> teus ded<strong>os</strong>o meu barro e as minhas agonias.--------------------------------------------------Dirás algumas palavras de incenso e mirrae lembrarás a minha dor.Passaram sécul<strong>os</strong> e sécul<strong>os</strong>,homens tant<strong>os</strong> homens,cinza e r<strong>os</strong>as e cinzas,o vinagre na boca <strong>da</strong> sementea água escoando-se nas tuas mã<strong>os</strong>,doravante a árvore:na<strong>da</strong> existe fora do coração do Homem.32 [1999:42]344


É a «clari<strong>da</strong>de do poema» que serve de veículo à transp<strong>os</strong>ição doespaço onde é p<strong>os</strong>sível habitar uma memória ancestral, e que serve demedi<strong>da</strong> a um tempo incomensurável («passaram sécul<strong>os</strong> e sécul<strong>os</strong>»). Noentanto, a construção ap<strong>os</strong>trófica que inicia o poema («Repara») indicia umdiálogo ambíguo com um ser divino ou uma enti<strong>da</strong>de religi<strong>os</strong>a («Dirásalgumas palavras de incenso e mirra», «contarás pel<strong>os</strong> teus ded<strong>os</strong> / o meubarro e as minhas agonias»). A distância temporal desta enti<strong>da</strong>de de temp<strong>os</strong>iniciais, e a proximi<strong>da</strong>de do diálogo - quase monológico - que com ela seinstaura na palavra do poema, é afirma<strong>da</strong> e assegura<strong>da</strong> pela ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaexistência como antigo sentimento e crença remota.Assim é dita a memória, como uma viagem ou uma compensaçãobíblica, à parti<strong>da</strong> partilha<strong>da</strong> como bem cultural e vivencial, para um certoalienamento ou lacuna <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong> ou guar<strong>da</strong><strong>da</strong> no corpo <strong>da</strong> almae na alma do corpo, visto que «na<strong>da</strong> existe fora do coração».De entre <strong>os</strong> poemas cuja narrativi<strong>da</strong>de penetra um passado maisdistante e convoca uma memória situa<strong>da</strong> entre o individual e o colectivo, <strong>os</strong>egundo exemplo que seleccionám<strong>os</strong> foi de Os que vão morrer, de JaimeRocha, volume que, na n<strong>os</strong>sa opinião, conta, em quarenta e cinco poemas, ahistória fragmenta<strong>da</strong> mas p<strong>os</strong>suidora de indubitável cadência narrativa, <strong>da</strong>utopia quotidiana <strong>da</strong> vivência sempre iniciática <strong>da</strong> relação entre o homem ea mulher, e entre eles e o mundo que <strong>os</strong> cerca. Tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> poemas sãopercorrid<strong>os</strong> por uma dimensão surrealizante que atravessa o tempo,característica que é pertença do realismo fantástico mas também vin<strong>da</strong> <strong>da</strong>slen<strong>da</strong>s medievais, ou <strong>da</strong>s mais longínquas Metamorf<strong>os</strong>es de Ovídio, quereleva essa dimensão lendária e quase surreal <strong>da</strong>s memórias iniciáticas.Citam<strong>os</strong> as seguintes estrofes: 3333 [2000:38,39]345


Visão vinte e cincoE eis que a mulher aparece dentro <strong>da</strong> sombra,largando o sangue entre as árvores, e é o seucorpo visível que se transforma e se deixa levarpela noite, esquecendo que a sua alma estápresa ao homem que a algemou para sempre.Não é ela que eu vejo, espanta-se o pedreiro.E as mã<strong>os</strong> dele enlouquecem até à exaustão.Uma coisa na<strong>da</strong> humana sai do tronco de umsicómoro. É a mulher esvaindo-se na cinza,uma borboleta esmaga<strong>da</strong> por um cilindro.Porque era tarde demais e o amor do homem,tal como as aves, morreu com o esplendor<strong>da</strong>s últimas uvas.Visão vinte e seisE é precisamente na cinza que ela se constrói como r<strong>os</strong>to reflectido na lua. Desliza para fora de umastro enevoado como se f<strong>os</strong>se essa ave azul.Ou o monstro em seu lugar, saltando para o dorsode uma zebra e esvoaçando depois rente á madeira.Tudo se dilui num pântano em que o espelho é o seuPróprio corpo e as sombras se confundem com as casas.Porque nesse lugar as mulheres são p<strong>os</strong>suí<strong>da</strong>s pelaEscuridão e a<strong>os</strong> homens cabe morrer ensanguentad<strong>os</strong>.Para que a luz ressuscite e o pedreiro a veja,Subitamente, num valado, despindo-se entre as sebes,Enquanto no meio d<strong>os</strong> malmequeres, o anjo,De joelh<strong>os</strong> nus, vai tocando o desespero.346


A dimensão metamórfica do maravilh<strong>os</strong>o adquire tal intensi<strong>da</strong>de nestapoesia que as personagens, como «a mulher» e «o pedreiro», quase sediluem na acção cénica d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> p<strong>os</strong>síveis de um passado provindo doinício do mundo, e apenas deixam perpassar uma ou outra alusão àcontemporanei<strong>da</strong>de. As imagens de uma desfiguração entre o belo e ohorrível acompanham a pintura harmónica do mágico e do feérico comolembrança d<strong>os</strong> iníci<strong>os</strong>, como passado <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.Tal como nas narrativas poéticas de um J<strong>os</strong>é Riço Direitinho, todo ocenário é construído em função <strong>da</strong> dimensão alegórica <strong>da</strong>s personagens,«Porque nesse lugar as mulheres são p<strong>os</strong>suí<strong>da</strong>s pela / Escuridão e a<strong>os</strong>homens cabe morrer ensanguentad<strong>os</strong>»). Também aqui a dimensãometamórfica sublinha o maravilh<strong>os</strong>o («Desliza para fora de um / astroenevoado como se f<strong>os</strong>se essa ave azul.») e constrói uma dimensãoextremamente subtil do quotidiano, arreiga<strong>da</strong> na memória <strong>da</strong>s crenças maisprimitivas e autênticas que o sustentam, redimensionando cabalisticamenteas suas cenas e assim sustentando a dimensão poética e narrativa do poema.347


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CAPÍTULO VII - EXEMPLOS DE NARRATIVIDADE NAPOESIA PORTUGUESA MAISRECENTECRITÉRIOS DE SELECÇÃONa n<strong>os</strong>sa abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa maisrecente procurám<strong>os</strong> seguir um percurso de relação entre a teoria e a práticaliterária que se dimensionasse progressivamente rumo a uma ca<strong>da</strong> vez maiorcentralização no poema. Pretendem<strong>os</strong>, pois, neste capítulo, <strong>da</strong>r ain<strong>da</strong> maiorênfase à prática literária em si.Os poetas que seleccionám<strong>os</strong> contam-n<strong>os</strong>, através d<strong>os</strong> seus poemas, ahistória complexa e varia<strong>da</strong> <strong>da</strong> configuração <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>dena poesia portuguesa d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> mais recentes, tenham eles iniciado o seupercurso de escrita n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, setenta ou oitenta. A sua escolha nãoobedeceu, pois, a conceit<strong>os</strong> de moviment<strong>os</strong> ou gerações; teve, antes, comoponto de parti<strong>da</strong>, a sua representativi<strong>da</strong>de, sobretudo em função do estudo<strong>da</strong> configuração <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Joaquim ManuelMagalhães, em Rima Pobre, 1 afirma:Ca<strong>da</strong> vez mais <strong>os</strong> poemas albergam uma fiação, sepropõem contar história, de enredo que pode ser complexo eantilinear, mas que pretende fixar-se em regras que imprimemao lirismo um tom de narrativi<strong>da</strong>de (sem narrativismo ou1 [1999:186]349


descritivismo tradicionalizantes, o que é dizer não ligad<strong>os</strong> a<strong>os</strong>model<strong>os</strong> her<strong>da</strong>d<strong>os</strong> <strong>da</strong> narrativa d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong> xviii e xix).Procurám<strong>os</strong>, justamente, proporcionar uma polifonia que desse conta<strong>da</strong> exemplari<strong>da</strong>de dessas «regras que imprimem ao lirismo um tom denarrativi<strong>da</strong>de» no estatuto ficcional e enunciativo <strong>da</strong> poesia de algumas <strong>da</strong>svozes que considerám<strong>os</strong> serem algumas <strong>da</strong>s mais representativas <strong>da</strong>presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia mais recente.Pretendem<strong>os</strong>, pois, neste capítulo, m<strong>os</strong>trar um pouco <strong>da</strong> palavra d<strong>os</strong>nov<strong>os</strong> shâmanes, apresentando como que uma n<strong>os</strong>sa pequena antologiapessoal comenta<strong>da</strong>, cujo critério de selecção, para além <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>sespecifici<strong>da</strong>des acima exp<strong>os</strong>tas, foi, secun<strong>da</strong>riamente, o n<strong>os</strong>so g<strong>os</strong>to pessoal,ou o prazer especial que tivem<strong>os</strong> na leitura de alguns d<strong>os</strong> poemas.Apresentarem<strong>os</strong>, assim, poemas de Vasco Graça Moura, Nuno Júdice, JoãoMiguel Fernandes Jorge, Al Berto, J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, Carl<strong>os</strong>Nogueira Fino e J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça. 2Salvaguar<strong>da</strong>m<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> que, na escolha d<strong>os</strong> três últim<strong>os</strong> poetas, porserem madeirenses, a involuntária mas natural comunhão de imaginári<strong>os</strong>nascid<strong>os</strong> <strong>da</strong> ilha p<strong>os</strong>sa ter, também, afectado a n<strong>os</strong>sa preferência e escolha.2 G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> de referir a imp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de incluir Fernando Pinto do Amaral, cuj<strong>os</strong>poemas, não fora por razões que se prendem à orientação desta tese, estariam por nósincluíd<strong>os</strong> nesta m<strong>os</strong>tra.350


1. Vasco Graça MouraÉ frequente ouvir-se dizer, a propósito <strong>da</strong> obra poética de Vasco GraçaMoura, que ela poderia ser um documento demonstrativo <strong>da</strong> mestria comque se podem utilizar diversas temáticas e model<strong>os</strong>, numa exibição de umaconsciência teórica que se entrecruza com um comprazimento no discursocarregado de referências culturais. Crem<strong>os</strong> que aquilo que consideram<strong>os</strong> ser,nesta perspectivação, um exagero, está mais na ausência decomplementari<strong>da</strong>de do que nas afirmações em si. Na reali<strong>da</strong>de, na poesia deVasco Graça Moura, o manejo d<strong>os</strong> temas e model<strong>os</strong> que a história literárialhe oferece - e à maneira d<strong>os</strong> poetas <strong>da</strong> Expansive Poetry - não se sobrepõe,nem sequer se antecipa, à presença de um conteúdo vivencial e emotivo;muito men<strong>os</strong> as referências culturais se isolam <strong>da</strong> formulação <strong>da</strong>s vivênciaspresentes e do quotidiano, frequente que é a sua dimensão narrativa.Julgam<strong>os</strong> que o que acontece é, antes, um perpassar constante, na suapoesia, do dizer no próprio poema a história <strong>da</strong> poética que o constitui, eque não se apresenta como teoria transforma<strong>da</strong> em poema mas antes comoreflexão - quantas vezes desdramatiza<strong>da</strong> pela ironia - surgindo, ain<strong>da</strong>,frequentemente alia<strong>da</strong> não só ao passado estritamente literário mas tambémao cultural, sejam esses passad<strong>os</strong> próxim<strong>os</strong> ou longínqu<strong>os</strong>.Estas vertentes conjugam-se n<strong>os</strong> seus poemas sem efeit<strong>os</strong> delineari<strong>da</strong>de sequencial ou de retórica discursiva e encontram-sefrequentemente alia<strong>da</strong>s a uma referenciali<strong>da</strong>de de valor narrativo. Aliás, é opróprio poeta quem o assume na voz do poema «há quem escrevapersistindo», de O Concerto Campestre: 33 de 1993, in Poesia 1963-1995 [2001:399]351


Há quem escreva persistindo numas rilkeanasimagens delica<strong>da</strong>s, inflectindo <strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> nas subtilezasde i-las cantando como se o verso f<strong>os</strong>se uma coisa pura,como se narrar f<strong>os</strong>se um hábito diferentecruzado com as coisas, a op<strong>os</strong>ição <strong>da</strong>s coisas, o caeirismo. deus.Eu prefiro a narração. <strong>os</strong> meus poemas têm ca<strong>da</strong> vez maisessa tendência perversa de neles sempre aconteceralguma coisa a alguém num tempo e num lugar.--------------------------------------------------------------------------------Consideram<strong>os</strong> que esta auto-reflexão sobre a tendência para anarrativi<strong>da</strong>de, que neste poema é apresenta<strong>da</strong> em irónico contraste críticocom as «rilkeanas imagens delica<strong>da</strong>s», não impede o poema de utilizar asmesmas sob uma capa subtil que consiste na sua mal disfarça<strong>da</strong> falsacentralização numa complexi<strong>da</strong>de modelar ou linguística. Esta, na sua obra,vai <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de barroca ao pr<strong>os</strong>aísmo, mas quase sempre configurandouma articulação de dispersões e fragmentari<strong>da</strong>des que, por sua vez,configura a estratégia <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na sua poesia.É justamente por isso que consideram<strong>os</strong> existir, na poesia de VascoGraça Moura, não tanto o tão apregoado «cansaço civilizacional» como,diríam<strong>os</strong>, uma alegria escondi<strong>da</strong> e displicentemente saudável com que opoeta di<strong>da</strong>cticamente brinca com as cansa<strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> civilização. Estejogo processa-se na complexi<strong>da</strong>de de realizações bem diversas, por vezes,até, aparentemente inconciliáveis, que se desdobram em coragem e medo,aceitação e recusa, sereni<strong>da</strong>de e violência, ternura e ironia, benevolência erispidez. Consideram<strong>os</strong> que alguns d<strong>os</strong> poemas que melhor e com maisclareza m<strong>os</strong>tram a «simples complexi<strong>da</strong>de» deste jogo são <strong>os</strong> que352


constituem Letras do Fado Vulgar, obra <strong>da</strong> qual escolhem<strong>os</strong> o poema«ficção e reali<strong>da</strong>de»: 4ela cantava o fado e de repentefez-se na tasca enorme zaragata:chegara o seu amante <strong>da</strong> fragatae não g<strong>os</strong>tou de ouvi-la tão ardentee ao ver que <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> dela se cravavamn<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de um rufia devagara cena foi de faca e algui<strong>da</strong>rcomo depois <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> relatavamcalaram-se o guitarra e o violae <strong>os</strong> mais à meia-luz emudeciampois só pass<strong>os</strong> felin<strong>os</strong> se mediamnum lampejar riscado a ponta e molaé quando um deles cambaleia e vence-oa golfa<strong>da</strong> fatal de sangue e vinhotingindo peito, mangas, colarinho,e a quebrar num soluço esse silênciojá não há cas<strong>os</strong> destes na ci<strong>da</strong>dee eu já não sei quem estendeu a mãomas num golpe certeiro ao coraçãotornou-se esta ficção reali<strong>da</strong>dePodem<strong>os</strong> encontrar neste poema <strong>os</strong> ingredientes temátic<strong>os</strong> e modelaresdo fado antigo, tradicional, como o decassílabo, depois caído mais emdesuso, e o remeter do contar <strong>da</strong>s histórias para o passado de uma cena que«depois <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> relatavam». Reconhecem<strong>os</strong> as recorrências temáticas4 de 1997, in Poesia 1997-2000 [2001 a:231]353


castiças: a fadista, a «tasca», a «zaragata», o ciúme, «a cena [...] de faca ealgui<strong>da</strong>r» passa<strong>da</strong> «à meia-luz», na qual a luta fatal com navalhas de «pontae mola» acaba em morte «fatal de sangue e vinho».No entanto, a quinta quadra, que termina o poema, remete já para umadimensão diferente <strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção cultural popular do fado, revivi<strong>da</strong> nasprimeiras quatro estrofes, desde logo pela admissão de que o contado é umatripla ficção, pois já se não cantam fad<strong>os</strong> com histórias destas e «já não hácas<strong>os</strong> destes na ci<strong>da</strong>de»; segui<strong>da</strong>mente, pela intromissão do sujeito líricoque se assume como enti<strong>da</strong>de capaz de contaminar o real e o ficcional,introduzindo-se como personagem que teria também estatuto e poderautoral, e cujo poder divino de convocar metamorf<strong>os</strong>es ironicamente residenum «coração» apunhalado, capaz de tornar a «ficção reali<strong>da</strong>de».É, pois, na articulação <strong>da</strong>s primeiras quatro estrofes com esta últimaque se forma o jogo <strong>da</strong> pressup<strong>os</strong>ta crítica ao «cansaço civilizacional»através do sorriso infantil - e, talvez, um tanto melancólico - com que opoeta di<strong>da</strong>cticamente brinca com as cansa<strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> civilização. Étambém nesta articulação que se joga o dizer poético <strong>da</strong> tradição e o pensarsobre o dizer poético <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, afirmado numa quase inocente ironia.Fernando Guimarães, em A Poesia Contemporânea Portuguesa, 5refere, em relação a Vasco Graça Moura, a ironia «numa dimensãokierkgaardiana», como «um jogo entre o afastamento e a presença, aver<strong>da</strong>de e as `ágeis recorrências <strong>da</strong> retórica´, o amor e `um estatuto / deproduzir o amor´». G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de aqui referir Le journal d´ un séducteur,de Kierkgaard, no qual o protagonista se debate em permanência, por umlado, com a consciência <strong>da</strong> fria e irónica retórica do seu pensamento e <strong>da</strong>ssuas intenções e, por outro lado, com a realização destes face às reacções(previstas ou não) <strong>da</strong> mulher ama<strong>da</strong>. É que o drama do sedutorkierkgaardiano, na n<strong>os</strong>sa interpretação, equivale a desejar que a sua ironia5 [2002:116]354


seja detecta<strong>da</strong>, simultaneamente, como ver<strong>da</strong>de e como mentira, o que adesfaz e permite exprimir o paradoxo <strong>da</strong> coexistência simultânea do cinismoe <strong>da</strong> afectivi<strong>da</strong>de.Crem<strong>os</strong> que estas reflexões acerca <strong>da</strong> ironia têm a ver com <strong>os</strong> mod<strong>os</strong>pel<strong>os</strong> quais se revela o estatuto ficcional e enunciativo na narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>poesia de Vasco Graça Moura, visto que aquele se delineia quase sempreentre, por um lado, as circunstâncias literárias e/ou <strong>da</strong> tradição cultural e,por outro lado, a dimensão quotidiana, sentimental e emotiva. As primeirasrequerem a precisão do academismo; a segun<strong>da</strong> necessita a relativaimprecisão do confessionalismo autobiográfico; a conjugação <strong>da</strong>s duasrequer um complexo jogo de disfarce <strong>da</strong>s articulações entre a racionali<strong>da</strong>dee a emotivi<strong>da</strong>de, entre o saber e o sentir.Estes process<strong>os</strong> constituem, por vexes, um forte desafio ao leitor, quehesita entre a atitude de interrogar e tentar discernir inteligentemente, e oimpulso de abraçar num único gesto a complexa conjugação de máscarasque abarca, com um sorriso, o doméstico e o culto, o sentimental e oreflexivo. Vejam<strong>os</strong>, a este propósito, três excert<strong>os</strong> do poema monoestrófico«apolo e mársias, uma invenção a duas vozes», de Poemas com Pessoas: 6estava uma ninfa no restaurante, senta<strong>da</strong>à minha mesa. eu disse-lhe, erguendoo tinto velho, entre as r<strong>os</strong>as cor depecado e a chama pláci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s velas, comoo território <strong>da</strong> música é povoado <strong>da</strong>sconvalescências <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de do mundo.-----------------------------------------------Segue-se um diálogo arqui-intelectual sobre a música, conduzido pelo«Eu - Sedutor», que, não sendo ilógico, tem a d<strong>os</strong>e suficiente de exagero ede barroquismo verbal para fazer sorrir o leitor, e durante o qual a «ninfa»355


tenta rip<strong>os</strong>tar às quase secretas insinuações eróticas que a pretexto demúsica são introduzi<strong>da</strong>s. E continuam:-----------------------------------------temi mais abstracções fil<strong>os</strong>ofantese servi-lhe mais vinho e atalheicom a tira<strong>da</strong> que julguei definitiva,e até podia, quem sabe? <strong>da</strong>r engateou namoro sem graves dissonâncias:«n<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong> que vão do remorsomais denso à trama lumin<strong>os</strong>a domais etéreo contentamento, a experiência<strong>da</strong> música restitui-n<strong>os</strong> a origem e o destino,entre o trágico, o patético, [...]----------------------------------------------------«isso é muito complicado», disse ela,entretanto ensimesma<strong>da</strong> no café, enquantoacendia um cigarro e assoprava depoisdelica<strong>da</strong>mente o fósforo, num ziguezague<strong>da</strong> mão, «você devia ler o adornoe umas coisas sobre o efémero».Resolvi <strong>da</strong>r-lhe uma lição e rematei:«paixão, desejo, tempestade, c<strong>os</strong>mo, tudo na arteé subterrâneo e solar e a apolo coubesempre a pelagem hisurta de mársiase a mársias a tentação de apolo.»foi quando ela sorriu com delica<strong>da</strong>superiori<strong>da</strong>de, brincando com a facae perguntou, cheia de uma infinitapaciência, se eu tinha a certeza.Crem<strong>os</strong> que neste poema o maneirismo, em vez de sacralizar o banal,como acontece em outr<strong>os</strong> poemas de Vasco Graça Moura, dessacraliza o6 de 1997, in Poesia 1997-2000 [2001 a:93 a 94]356


intelectual; e fá-lo não só pela intromissão de linguagem corrente («e atépodia, quem sabe? Dar engate») como pelo humor fino de quem conta umaanedota de que foi protagonista, de quem se aceita e se ri de si próprio, <strong>da</strong>scenas em que participa e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em que vive. No entanto, as reflexõesculturais estão presentes, a descobrir por entre um misto de serie<strong>da</strong>de eexagero. Se na poesia de Vasco Graça Moura são, muitas vezes, abanali<strong>da</strong>de, a domestici<strong>da</strong>de ou o lugar-comum que servem de ponto departi<strong>da</strong> para contar um episódio que provoca o leitor pelo seu desconcerto,neste caso a provocação centra-se num pretenso quotidiano intelectualelitista ao qual sabem<strong>os</strong> que o autor pertence e com o qual brinca., numdesafio à adesão e cumplici<strong>da</strong>de do leitor.Na série de Poemas com Pessoas encontram<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> dessaconfiguração particular <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de, que é acompanha<strong>da</strong> peladramatização de discurso directo ou diálogo mas, em alguns poemas,revestindo uma dimensão de maior pureza lírica que implica umafastamento tanto <strong>da</strong> ironia como <strong>da</strong>s referências culturais. G<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> departilhar «junto ao retrato»: 7era vermelha a r<strong>os</strong>aque a minha mulher cortou para pôr junto ao retratode minha mãe, que fazia an<strong>os</strong> ontem.era de um fulgor surdo e recatado,a implodir tantas coisas já sem nomepara o interior macio <strong>da</strong>s pétalas.«pus uma r<strong>os</strong>a do jardim junto ao retrato<strong>da</strong> tua mãe», disse ela então ao telefone,«uma r<strong>os</strong>a vermelha muito bonita», acrescentoucom uma leve sombra na voz e era sombriaa r<strong>os</strong>a, mesmo ao telefone, por ser o diad<strong>os</strong> seus an<strong>os</strong>, e era sombrio recordá-la.357


uma flor pode ser de uma obscura incandescênciajunto de alguém. prende-se a delicad<strong>os</strong> filament<strong>os</strong> <strong>da</strong> memóriacomo a cabel<strong>os</strong> enre<strong>da</strong>d<strong>os</strong>. era sombria a r<strong>os</strong>asobre a cabeça branca, o olhar bond<strong>os</strong>o, as feições pláci<strong>da</strong>s,o que de minha mãe não se desfigurou e a r<strong>os</strong>a iluminava devagar,junto ao retrato.O pr<strong>os</strong>aísmo do telefonema não é suficiente, neste poema, para cortara intimi<strong>da</strong>de lírica confessa<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> imagem quase virtual de uma r<strong>os</strong>avermelha junto a um retrato distante, cuja dupla ausência (do retrato e <strong>da</strong>pessoa retrata<strong>da</strong>) evidencia a força <strong>da</strong>s memórias convoca<strong>da</strong>s. Acentralização temática encontra, pois, uma dimensão coesa na linguagem,por se tratar <strong>da</strong> temática <strong>da</strong> lembrança de um ente querido.Object<strong>os</strong> ou situações banais quotidianas são também, por vezes,cenário do qual parte esta simplici<strong>da</strong>de sentimental e mágica, como a <strong>da</strong>infância, em «biblioteca itinerante», de Poemas com Pessoas: 8Quatro crianças de chapéu de palhaE bibe curto às risquinhas, e livro aberto no colo,------------------------------------------------------------a história pode começar assim,por ser a d<strong>os</strong> menin<strong>os</strong> que, nas páginas abertas,iam a caminho <strong>da</strong> floresta e se enfronharamem tanta vegetação mágica, ou a d<strong>os</strong> menin<strong>os</strong>que escorregaram por um buraco encantado abaixo---------------------------------------------------------------ou a tantas outras coisas a que jogam <strong>os</strong> menin<strong>os</strong>e as meninas, por exemplo a apanhar conchasmesmo que só na imaginação, se perderam no mundoque não brinca.7 de 1997, in Poesia 1997-2000 [2001 a:124].358


primeiro foi o cão.ladrou, ergueu a pata, pôs-seà frente deles, a <strong>da</strong>r a cau<strong>da</strong> muito contente, e quisajudá-l<strong>os</strong> a encontrarem a saí<strong>da</strong>. Masdesorientou-se facilmente,por ser ain<strong>da</strong> cachorrinho e estarhá muito pouco tempo nesta história-----------------------------------------------------------------voltar as folhas mais depressa que eles,empurrando-as como as pás de um cata-vento,num sobressalto de palavras e imagens colori<strong>da</strong>s,soletrando aplicad<strong>os</strong> ca<strong>da</strong> página,até à hora <strong>da</strong> meren<strong>da</strong>.Neste poema, é com simplici<strong>da</strong>de que o real surge fragmentado, bemenquadrado numa cena, com a inclusão de descrições que contam o modocomo pode ser maravilh<strong>os</strong>a a aventura <strong>da</strong>s crianças no mundo <strong>da</strong> leitura, oque contradiz quem afirme que não há depuração linguística na poesia deVasco Graça Moura. Tanto neste poema como no anterior se encontraausente a capa modelar enraiza<strong>da</strong> no passado, bem como a ausência deironia ou de referências culturais, deixando a nu, na liber<strong>da</strong>de formal dopoema, o livre arbítrio <strong>da</strong> expressão <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> exteriorização <strong>da</strong>emoção.A centralização temática encontra, pois, de novo, um veículo de nãodispersão na linguagem, por se tratar, no primeiro poema, de temática que secentraliza na per<strong>da</strong> e lembrança de um ente querido e, neste segundo, <strong>da</strong>descrição de uma cena de um mundo infantil, no qual a vivência do real estámuito próxima <strong>da</strong> efabulação.8 de 1997, in Poesia 1997-2000 [2001 a:97 a 98]359


No entanto, também neste poema se revela um outro procedimento aoqual Vasco Graça Moura recorre frequentemente. Referimo-n<strong>os</strong> àintertextuali<strong>da</strong>de. Se neste poema ela é apenas muito subtilmente sugeri<strong>da</strong>,como, por exemplo, na referência a Lewis Carrol, no verso «escorregam porum buraco encantado abaixo», e noutr<strong>os</strong> ela configura apenas o mote docontar, poemas há que assumem uma dimensão intertextual muito maisdirecta e prolonga<strong>da</strong>, quase que de recuperação de um arquétipo do passado,e onde o processo de contaminação com o presente se encontra mais diluído.É o caso do poema «píramo e tisbe», de Uma Carta no Inverno: 9um triste desencontro matou píramoe tisbe. ovídio, sabe-se, inspirou-oa <strong>da</strong>nte e a leitura deste inspira-mo------------------------------------------------lá quando <strong>os</strong> pais d<strong>os</strong> dois opõem a essapaixão, em babilónia, o interditoe o mais que a este caso não interessa,ou não sabe, por faltar escrito:há sempre coisas mal documenta<strong>da</strong>scujo desfecho ouvido é inaudito.------------------------------------------------Depois desta referência à intertextuali<strong>da</strong>de o poema continua, comregulari<strong>da</strong>de formal (tercet<strong>os</strong> decassilábic<strong>os</strong> à maneira do sonetorenascentista, com rima em paralelismo perfeito, à maneira <strong>da</strong>s cantigas deamigo), e a história de Píramo e Tisbe é conta<strong>da</strong> seguindo muito de perto <strong>os</strong>9 de 1997, in Poesia 1997-2000 [2001 a:39 a 43].360


núcle<strong>os</strong> diegétic<strong>os</strong> <strong>da</strong> versão de Ovídio:- <strong>os</strong> jovens conversam através deuma fen<strong>da</strong> na parede que separa as duas casas e combinam fugir:E como nesse ensejo combinassemÀs famílias fugir tranquilamenteQuando <strong>os</strong> palores <strong>da</strong> lua iluminassema desoras o sono a to<strong>da</strong> a gente,iam guiá-l<strong>os</strong> por caminho estreitoerr<strong>os</strong> seus, má fortuna, amor ardente-----------------------------------------------------Não deixa de ser curi<strong>os</strong>a a dupla manifestação <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de,resultante <strong>da</strong> p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> introdução do primeiro verso do conhecid<strong>os</strong>oneto camoniano, apenas com a alteração de um som, no p<strong>os</strong>sessivo, que setorna exequível devido à escolha modelar polifaceta<strong>da</strong> e que relembra,pontualmente, a dimensão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de citação e transformação naintertextuali<strong>da</strong>de.A história de Píramo e Tisbe continua depois a ser conta<strong>da</strong>, como queesqueci<strong>da</strong> a referência à lírica camoniana e ao que ela poderá dever a text<strong>os</strong>arquetípic<strong>os</strong> como <strong>os</strong> <strong>da</strong>s Metamorf<strong>os</strong>es. Os amantes tinham, pois, encontromarcado sob uma amoreira, mas Tisbe assusta-se com a presença de umaleoa ensanguenta<strong>da</strong> e refugia-se numa gruta. Tal atitude provocará umtrágico mal entendido, como haveria de acontecer sécul<strong>os</strong> depois em Romeue Julieta, pois Píramo, ao chegar e ver a leoa ensanguenta<strong>da</strong>, julga que estadevorou Tisbe e mata-se com a a<strong>da</strong>ga que levava, o que conduz Tisbe amatar-se também, quando, p<strong>os</strong>teriormente, descobre o corpo do amantemorto. Estes fact<strong>os</strong> são observad<strong>os</strong> e mantid<strong>os</strong> no poema:361


mata-se ela também, e não estancao sangue aberto a golpes de punhal.e a amoreira que <strong>da</strong>va amora brancapor ser a sua cor mais natural,pela raiz o líquido bebeue mudou de repente o visual,porque a partir de então se escureceucom o sangue vertido nesse instantee em vermelho amoras converteu-----------------------------------------------e eu fiz do caso apenas ironiapara falar de píramo e de tisbenoutro registo, tal como o fariaoutro qualquer autor [...]--------------------------------------------------Note-se novo afastamento do registo linguístico geral, agora adoptadono verso «e mudou de repente o visual». Há como que uma quebra, maisevidente que outras anteriores, como se uma diversa enti<strong>da</strong>de estivesse aquerer intrometer-se no domínio <strong>da</strong> linguagem do narrador, sobrepondo-selhe(«eu fiz do caso apenas ironia / para falar de píramo e de tisbe / noutroregisto, tal como o faria // outro qualquer autor »).Na ver<strong>da</strong>de, a história acaba nas duas estrofes seguintes e as restantesdoze estrofes tratam <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de em relação a text<strong>os</strong> clássic<strong>os</strong> e a<strong>os</strong>namorad<strong>os</strong> do quotidiano moderno, surgindo no poema, pela primeira vez, apresença de um «eu» que apaga, agora definitivamente, a voz do narrador <strong>da</strong>história de Píramo e Tisbe e se vira de vez para a actuali<strong>da</strong>de quotidiana,362


mantendo, porém, referências intertextuais e alguma d<strong>os</strong>e demetalinguagem:e afinal eu tenho pena deles:no seu quotidiano convulsivocomo romeu, julieta, leonor teles,e tanta história mais feita do viv<strong>os</strong>entido <strong>da</strong> paixão que vibra nelacontra um acaso às vezes decisivo,embora já se saiba que arrepelamoral e bons c<strong>os</strong>tumes, mas é puramatéria de poema ou de novela:<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> são literaturae a literatura um bumerangueque n<strong>os</strong> regressa às mã<strong>os</strong> sob a figurade uma metamorf<strong>os</strong>e desde o sangue.O distanciamento pela intromissão do «eu» permite sancionar afragmentarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s contaminações temáticas e linguísticas e, ao mesmotempo, manter uma centralização temática que suporta a súbitadiversificação <strong>da</strong> linguagem. É também este distanciamento que permiteafirmar «tanta história mais feita do vivo», e que permite a sua«metamorf<strong>os</strong>e» em «pura / matéria do poema ou <strong>da</strong> novela». Umametamorf<strong>os</strong>e que vem «desde o sangue», precisamente como a metamorf<strong>os</strong>e<strong>da</strong> amoreira <strong>da</strong> história de Píramo e Tisbe, afinal no cabo do poemaretoma<strong>da</strong>.Text<strong>os</strong>s que marcam a narrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia, que correm <strong>da</strong>inquietação de uma memória de infância ao «fait-divers», d<strong>os</strong> incidentes e363


acidentes do percurso de vi<strong>da</strong> individual ou colectivo, às vivências íntimas econfessionalmente segre<strong>da</strong><strong>da</strong>s, mas também abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, com pungência oucom auto-ironia. Poemas perpassad<strong>os</strong>, na sua trama, pela configuração <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de - quase escondi<strong>da</strong> em sabedorpreci<strong>os</strong>ismo - d<strong>os</strong> «sentiment<strong>os</strong> que são literatura» na poesia de VascoGraça Moura.2. Nuno JúdiceTal como a obra poética de Vasco Graça Moura, também a poesia deNuno Júdice tem sido marca<strong>da</strong> por uma forte vertente metalinguística e pelarevisitação de tradições temáticas e modelares literárias. Contudo, na escritade Nuno Júdice, a metalinguagem assume, pela sua forte recorrência ecentralização temática no poema, a dimensão de uma «arte poética»coerente, embora dispersa em realizações fragmentárias. Esta vertente podeapresentar-se, eventualmente, em alternância com a revisitação literária, porvezes no mesmo poema, perspectiva esta que mais n<strong>os</strong> interessa, por seencontrar frequentemente alia<strong>da</strong> à narrativi<strong>da</strong>de. É o caso do poema «CenaMitológica», em As regras <strong>da</strong> perspectiva, 10 no qual se conta a função, emrelação à poesia, de nove divin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mitologia grega, as nove musas:As nove mulheres, debruçando-se na fonte,Escorrem <strong>os</strong> cabel<strong>os</strong> de ouro. Nenhuma se lembraDe que o seu reflexo se tinge de vermelhoCom o sangue do horizonte; e <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> fixam-se10 [1990:49 a 53]364


na ideia antiga de que na<strong>da</strong> é presente, o tempoescorrendo como areia por entre <strong>os</strong> ded<strong>os</strong>. Porémuma voz canta o seu encontro. [...]-------------------------------------------------------------A aproximação <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> referência mitológica e literária,tanto com a intemporali<strong>da</strong>de como com o tempo presente, delineia-se logo apartir desta primeira estrofe, que identifica as nove musas com novemulheres que, num vago presente, «debruçando-se na fonte, / escorrem <strong>os</strong>cabel<strong>os</strong> de ouro», o que as aproxima de «uma voz [que] canta o seuencontro», na ambigui<strong>da</strong>de de um presente intemporal, agora ou desdesempre. Esta ambigui<strong>da</strong>de temporal atravessa, mesmo, o nível lexical, emparadigma epocal <strong>da</strong> história literária, pois a «fonte» e o «ouro» d<strong>os</strong> cabel<strong>os</strong>tanto podem remeter para personagens de um cenário bucólico como para ofeérico ou o lendário.As nove estrofes seguintes são dedica<strong>da</strong>s, respectivamente, a: Calíope(a principal musa, a protectora <strong>da</strong> poesia épica); Clio (épica e história);Erato (lírica e temática amor<strong>os</strong>a); Melpomene (lírica e tragédia); Tália(comédia); Terpsicore (<strong>da</strong>nça, canto e deleite <strong>da</strong> poesia); Euterpe (arte detocar flauta); Polínea (mímica e <strong>da</strong>nça), Urânia (mãe de Orfeu e protectora<strong>da</strong> astronomia). Podem<strong>os</strong> constatar, na escolha do encadeamento, umpercurso <strong>da</strong>s «poéticas» clássicas que é acompanhado, tal como na primeiraestrofe, por uma conexão de temporali<strong>da</strong>des. Exemplificam<strong>os</strong> com a quintaestrofe, dedica<strong>da</strong> a Melpomene:To<strong>da</strong>s se esquecem de Melpomene, a que entrou derepente com o r<strong>os</strong>to desfeito <strong>da</strong> insónia. Grita!como se a água recebesse um choro que as nuvensnão reconhecem, lágrimas humanas desafiando ageração d<strong>os</strong> element<strong>os</strong>, o curso <strong>da</strong>s emoções liberto<strong>da</strong> natureza. Não a ouvem; roubam-lhe <strong>os</strong> reflex<strong>os</strong>365


familiares <strong>da</strong> morte; concedem-lhe a palidezde uma existência de limbo, a vi<strong>da</strong> intransitivade uma alegoria. Então, descendo a esca<strong>da</strong>ria dopoema, despe a túnica que o verso manchou; erasga a nudez do peito com as unhas ágeis do remorso,de Tália o riso ouvindo, que <strong>os</strong> ares infecta. «Irmã,diz por que escarneces?» [...]-------------------------------------------------------------------A encenação de uma tragédia que não é ouvi<strong>da</strong>, a quem é reconheci<strong>da</strong>uma «existência de limbo», «alegórica», que «desce a esca<strong>da</strong>ria do poema»ao longo d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, escarneci<strong>da</strong> pela comédia, constitui uma demonstraçãode como neste poema se articulam, através de uma encenação, anarrativi<strong>da</strong>de e o vão conflito entre códig<strong>os</strong>, a memória literária e a poéticaactual, não deixando de lado a recuperação de um certo exacerbamento <strong>da</strong>emoção e to<strong>da</strong> a sua veiculação mais pessoal.Mas, por vezes, na poesia de Nuno Júdice, a referência ao passadoliterário funciona como um jogo oculto, quase sempre discretamente regidopela ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong>, no poema, à representação de uma cena frequentementealia<strong>da</strong> à memória, como em «Chevalier de la Table Ronde», de Um Cantona Espessura do Tempo: 11Tu, concentras-te no copoque é preciso beber até ao fim;enquanto <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, à tua volta,cantam, julgando com issoincitar-te. Mas tu bebes porque a imagemo exige: o fotógrafo, que já ninguémconsegue identificar [...]obrigou-te ao sacrifício <strong>da</strong> p<strong>os</strong>e. [...]---------------------------------------------------366


De ti lembro-me. Amei-te. Masnão é só isso. A fotografia, a pretoe branco, mantém a luz dessa manhã-----------------------------------------------------------[...] E é disso que me lembro: a tuaatenção para dentro, onde este improvávelpoema futuro se viria a inscrever.A cena, reconstruí<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> imprecisão cromática do preto ebranco de uma fotografia, apaga o clarão amarelado do flash e o vermelhodo vinho, deixando centrar a pura lembrança do amor na recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> «luzdessa manhã», imp<strong>os</strong>sível de situar no tempo do passado, imp<strong>os</strong>sível dereviver em relevo no tempo do presente mas p<strong>os</strong>sível de eternizar, no quetinha de mais oculto e vivo («a tua atenção para dentro»), através <strong>da</strong> suainscrição aberta no poema.A recuperação <strong>da</strong> cultura, do quotidiano, d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> ou <strong>da</strong>ssensações, implicando um processo de recuperação pela memória, necessitaum ponto de parti<strong>da</strong>, seja ele referência literária, retrato ou paisagem. Vári<strong>os</strong>d<strong>os</strong> poemas de Nuno Júdice partem de e para a meditação, através <strong>da</strong>descrição de object<strong>os</strong>, situações e personagens do quotidiano, como opoema «Cena de Rua», de O Estado d<strong>os</strong> Camp<strong>os</strong>: 12A mulher com o chapéu de chuva na mãoespera o autocarro que há-de vir; mesmoque chova, o chapéu de chuva fica fechado;chega o autocarro, e olha para o lado.Está ali de manhã à noite, com o tempo a passarsem ela <strong>da</strong>r por ele. Se lhe perguntam porquê,fala <strong>da</strong> chuva que está para cair; se a avisam<strong>da</strong> chuva, fala do autocarro que vai chegar.11 [1992:51]12 [2003:49]367


O mundo devia ser como a vi<strong>da</strong> dessa mulher,igual de manhã até à noite, sem razões para <strong>da</strong>rapesar do autocarro que não vai chegar,a essa rua sem fim onde não pára de chover.O uso de uma linguagem comum, com laiv<strong>os</strong> de cantilena coloquialque toca as raias <strong>da</strong> anedota, nas duas primeiras estrofes, indicia o cinismo<strong>da</strong> reflexão final. No entanto, o efeito descritivo visual <strong>da</strong> cena corta aaparente frieza necessária ao cinismo, desenhando, antes pelo contrário, afigura de uma personagem marca<strong>da</strong> por uma louca lucidez patética,pungente e dolor<strong>os</strong>a, que contamina a reflexão final. Este efeito detransmissão é conseguido por um jogo em que a linguagem funciona comomediadora ambígua entre o espaço real e o ponto de vista de umainteriori<strong>da</strong>de lírica do narrador, contrapondo-<strong>os</strong>.Noutr<strong>os</strong> poemas, surge-n<strong>os</strong> conta<strong>da</strong> a banali<strong>da</strong>de mundivivencial massubverti<strong>da</strong> em vivência lírica pura, tanto através de artifíci<strong>os</strong> <strong>da</strong> linguagemque dimensionam um plano quase surrealista, como pela introdução de umapersonagem que contracena, tendo como função ser como que um suportelírico camuflado, tal como encontram<strong>os</strong> no poema «A mesa <strong>da</strong> sibila», deCartografia de Emoções, 13 do qual transcrevem<strong>os</strong> alguns excert<strong>os</strong>:Era como se aí pousassem <strong>os</strong> pássar<strong>os</strong>. Um bancode areia no meio <strong>da</strong> mesa. Também ninguém disse na<strong>da</strong>quando <strong>os</strong> pássar<strong>os</strong> vieram, e pousaram mesmono meio <strong>da</strong> mesa: [...]----------------------------------------------------------------------[...] «Foi para istoque se pôs a mesa» perguntaste. E começám<strong>os</strong> a levantar<strong>os</strong> prat<strong>os</strong>, a tirar a toalha, e a ver <strong>os</strong> pássar<strong>os</strong> - como batiamas asas, e levantavam voo, e batiam com as cabeças n<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong>368


<strong>da</strong>s janelas, por trás <strong>da</strong>s quais o dia se levantava coma majestade do sol.«Quero que estes pássar<strong>os</strong> voltem paraa mesa», disse. Então voltaste a pôr a toalha: e foi com<strong>os</strong>e o campo e o mar se juntassem no meio <strong>da</strong> sala,debaixo do candeeiro de vidro. Havia ali brilh<strong>os</strong> quepoderiam ter durado mais do que a própria luz. [...]--------------------------------------------------------------------O quotidiano, acompanhado e realçado pela banali<strong>da</strong>de do diálogoinserido, acaba por se subverter e por se traçar no delírio <strong>da</strong> imaginação deum narrador-personagem que assume o dizer próprio do delírio metonímicode um sujeito lírico. Mais uma vez Nuno Júdice faz uso de model<strong>os</strong> eprocess<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> que articulam o banal e o onírico, por vezes numadimensão de sensuali<strong>da</strong>de que se aproxima tanto do mediúnico como d<strong>os</strong>acro, tanto <strong>da</strong> dimensão espiritual humana como do humano animal. Nãodeixa, contudo, de recuperar uma vertente narrativa que muitas vezes o épela própria articulação <strong>da</strong> coerência de ver<strong>os</strong>imilhança d<strong>os</strong> fragment<strong>os</strong>enunciad<strong>os</strong> que, por isso mesmo, melhor espelham a ambivalênciaconcomitante, mas não paradoxal, entre o natural sentimental e humano e ocultural consciente e reflexivo.Encontram<strong>os</strong>, por vezes, na poesia de Nuno Júdice, uma ironia leve ebrincalhona no contar <strong>da</strong> recuperação do quotidiano quando este se delineianuma aliança com o cultural, o que transforma a referência cultural emparódia. Citam<strong>os</strong> o poema «Conto de fa<strong>da</strong>s», de Cartografia <strong>da</strong>s Emoções: 1413 [2001:18,19]14 [2001b:125]369


Na varan<strong>da</strong>, a bela infanta apagao cigarro. O céu sem lua atira-lheas estrelas para cima, deixando-a sujade uma cinza cósmica que elasacode para o vaso de flores, ondeo príncipe deixou um bilhete: «Hojenão pode ser, meu amor»; e ela,deitando a beata do quinto an<strong>da</strong>rpara a rua, volta para a sala. «Estáspronta?» Ela não responde. Senta-se,apenas, ao colo do sapo, e beija-o,esperando que se transforme em conde,man<strong>da</strong>ndo o príncipe, mais o amordele, e o palácio, às urtigas.A mescla de conto de fa<strong>da</strong>s tradicional com a crítica à socie<strong>da</strong>decontemporânea confere uma dimensão paródica que apenas <strong>os</strong> adult<strong>os</strong>podem percepcionar, o que reforça duplamente a paródia. Contudo, arecuperação de cont<strong>os</strong> tradicionais surge também, na obra de Nuno Júdice,mas numa realização de humor bem diverso, centrado no passado com<strong>os</strong>entimento de per<strong>da</strong> que funciona como sendo a companhia de uma solidão,como em «O inventor de histórias», de Cartografia <strong>da</strong>s Emoções: 15Nessa ci<strong>da</strong>de havia uma floresta; nessa casa umaclareira; e nessa clareira um homem que morreu, a olharo fogo. Nessa noite, não se via o céupor entre <strong>os</strong> ram<strong>os</strong>; mas tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> ruíd<strong>os</strong> <strong>da</strong> noite interrompiamo pensamento do homem, e o crepitar <strong>da</strong> lenhailuminava-lhe o r<strong>os</strong>to, enquanto morria.15 [2001b:125]370


Nesse tempo, em que não havia a ci<strong>da</strong>de nem a casa, eapenas a floresta se estendia para além de ri<strong>os</strong> e montes,de vales e montanhas, de rebanh<strong>os</strong> e mana<strong>da</strong>s, um homemolhava o fogo e morria. Na sua cabeça, porém, tinham-seformado histórias que atravessaram <strong>os</strong> temp<strong>os</strong>até chegarem ao quarto que já fora uma clareira,numa ci<strong>da</strong>de sem árvores nem pássar<strong>os</strong>.------------------------------------------------------------------------[...]Mas as histórias que inventou soltaram-sedele; e correram o mundo e <strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, enquantooutr<strong>os</strong> homens abateram florestas, construíram ci<strong>da</strong>des,inventaram outras histórias.O homem não soube o que aconteceu a esta história. Masinventou-a para que, um dia, um outro a pudesse contar.Apesar <strong>da</strong> enunciação e <strong>da</strong> articulação de element<strong>os</strong> narratológic<strong>os</strong> emmuito semelhante à que é habitual n<strong>os</strong> cont<strong>os</strong> infantis ou n<strong>os</strong> cont<strong>os</strong>tradicionais populares, apesar, ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong> dimensão garrettiana, vin<strong>da</strong> deRousseau, <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> pureza do homem no seu meio natural,parece-n<strong>os</strong> sobrepor-se a estas dimensões a figura do contador de históriascomo poeta, incrito num texto de outro poeta ou shâmane. Na históriaconta<strong>da</strong> encontra-se oculta tanto a sau<strong>da</strong>de do acto criador poético como asau<strong>da</strong>de do natural, reencontra<strong>da</strong>s no acto de escrita do poema. Como se,neste poema, essa escrita aproximasse o sujeito lírico / narrador, de algoperdido que só a palavra pode recuperar. Como se de um acto de amor setratasse.Por vezes <strong>os</strong> poemas de Nuno Júdice apresentam todo um dimensionarcénico que convoca o passado literário a partir de uma objectalização que,aparentemente, sublimina a intervenção intertextual pela importância que371


aquela assume no contar, como é o caso do longo poema monoestrófico«Romance de Cordel do Banqueiro Suici<strong>da</strong> e <strong>da</strong> Cómo<strong>da</strong> D. Maria», em AFonte <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, 16 do qual transcrevem<strong>os</strong> alguns vers<strong>os</strong>:Nas grandes casas de outrora, de estuquestrabalhad<strong>os</strong>, brônze<strong>os</strong> portais, colunas clássicasno meio de gravuras com cenas de caça e ninfasnuas, uma cómo<strong>da</strong>, sozinha, enc<strong>os</strong>ta<strong>da</strong> á parede<strong>da</strong> copa, apodrecia com a humi<strong>da</strong>de. Passavam por ela<strong>os</strong> criad<strong>os</strong> de libré, as senhoras de grandes tulesesvoaçantes, <strong>os</strong> generais do império de botascoloniais, - e a cómo<strong>da</strong>, sozinha, desfazia-se comoo tempo que por ela passava. [...]----------------------------------------------------------------------enc<strong>os</strong>ta<strong>da</strong> à parede, a cómo<strong>da</strong> resiste: suja,podre, de gavetas desencaixa<strong>da</strong>s, com as ferragensdesemparelha<strong>da</strong>s, só a ela ninguém cobriu, só elafica, por fim, na casa vazia. [...]------------------------------------------------------------------------[...] (Foi essacómo<strong>da</strong> que, há dias, se vendia na feira <strong>da</strong> ladrapor meia dúzia de t<strong>os</strong>tões - e ninguém lhe pegava).A história <strong>da</strong> cómo<strong>da</strong>, do ambiente humano que a rodeia e do suicídiopessoano do banqueiro entrelaçam-se no que poderia ser uma paródia aoromance de cordel, não f<strong>os</strong>se a serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dimensão cultural e a ironia d<strong>os</strong>últim<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> do poema, que incluem um aparte parentético e que remetempara uma amarga n<strong>os</strong>talgia disfarça<strong>da</strong> de ironia.Numa perspectiva temática diversa, mas com o mesmo delici<strong>os</strong>oprazer <strong>da</strong> recuperação de temas e códig<strong>os</strong>, agora intimamente ligad<strong>os</strong> a umatemática amor<strong>os</strong>a, não g<strong>os</strong>taríam<strong>os</strong> de deixar de referir o poema em sete16 1997, in Poesia Reuni<strong>da</strong> 1967-2000; [2000:863,864]372


partes (ou cant<strong>os</strong>) «Carta de Orfeu a Eurídice», de Pedro Lembrando Inês, 17no qual o recurso a uma narração em solilóquio de diálogo fictício, com<strong>os</strong>ubterfúgio narratológico para recor<strong>da</strong>r o passado, n<strong>os</strong> faz lembrar algunsprocess<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> de Em Nome <strong>da</strong> Terra, de Vergílio Ferreira,romance no qual o diálogo mental imaginado em forma epistolar permite aoprotagonista, recor<strong>da</strong>ndo event<strong>os</strong> ao dirigir-se à mulher já morta, tentarvencer a solidão e a recuperar a vivência perdi<strong>da</strong> de um passado a dois.Assim começa a «Carta de Orfeu a Eurídice», de Nuno Júdice:1Assim, <strong>os</strong> viv<strong>os</strong> também se tornam fantasmas: bato-lhesà porta <strong>da</strong> alma, vagueio num descampado de sentiment<strong>os</strong>,chamo-<strong>os</strong> - e vejo-<strong>os</strong> partir. Construo a solidãocom <strong>os</strong> pe<strong>da</strong>ç<strong>os</strong> <strong>da</strong>s imagens que me deixaram. Ergoedifíci<strong>os</strong> a partir de memórias, de palavras, de gest<strong>os</strong> queficaram <strong>da</strong>s n<strong>os</strong>sas conversas [...]-------------------------------------------------------------------------2--------------------------------------------------------------------------[...] Guardo-te aí, flor matinal,esperando que a água <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> te refloresça, e uma novavibração te devolva á ilusão do presente. O centro é este: o lugardo encontro, onde <strong>os</strong> deuses n<strong>os</strong> roubaram o acessório,e um todo se fixa no que é aparente, e passa.Porque a convocação pela lembrança de um pensamento se esvairapi<strong>da</strong>mente («Chamo-<strong>os</strong> - e vejo-<strong>os</strong> partir»), as imagens e a metonímiafuncionam como suporte de fixação <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong>s suas construçõesauxiliares imagina<strong>da</strong>s («Ergo / edifíci<strong>os</strong> a partir de memórias»). Também aexpressão «o centro é este» surge repeti<strong>da</strong> em context<strong>os</strong> recorrentes ao17 [2001 a :42 a 56]373


longo de todo o poema, relevando a memória e o isolamento que permite <strong>os</strong>eu povoamento como ponto emanador de uma p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de dereconstrução de vi<strong>da</strong> perdi<strong>da</strong>, oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> falta de uma presença ama<strong>da</strong>:3-------------------------------------------------------------------Olho-te, então, contra a perspectiva do efémero. Contoca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s olheiras construí<strong>da</strong>s no trabalhodo amor, sabendo que um vórtice de esquecimentoas restituirá à insónia <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>. [...]----------------------------------------------------------------------6------------------------------------------------------------------------[...]por que não me volteimais cedo, para te ver uma última vez á luz do dia,com a gola <strong>da</strong> tua camisa entreaberta, e <strong>os</strong> cabel<strong>os</strong> solt<strong>os</strong>por entre <strong>os</strong> ram<strong>os</strong> do pinhal? Tu, a quem chamo amorneste lugar de onde saíste, deixando apenas um vazioque na<strong>da</strong> ocupa.O paralelismo com a história de Orfeu e Eurídice mantem-se ao longodo poema, com maiores ou menores afastament<strong>os</strong>, para terminar nesse«centro» de solidão que medeia a lembrança e transforma o amor, tal comoo de Orfeu e Eurídice, numa história que acompanha o tempo <strong>da</strong> memória,pessoal ou literária:374


7-------------------------------------------------------------------[...] Aqui, a distância é o que nã<strong>os</strong>epara: o medo <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça dissipa-se;e a recor<strong>da</strong>ção é o que está depois do que foivivido, como se f<strong>os</strong>se a memória a construiro dia de amanhã.Esta exorcização do imp<strong>os</strong>sível retorno ao passado, em term<strong>os</strong> detradição literária, toma, em cert<strong>os</strong> poemas de Nuno Júdice, a forma regularde uma musicali<strong>da</strong>de de dimensão lírica confessional que profere o quasecabalístico, o quase sobrenatural, tal como na cena que constitui o poema«Vazio», de O Estado d<strong>os</strong> Camp<strong>os</strong>: 18Pedra a pedra, esvazio este lugar onde outroran<strong>os</strong> encontrám<strong>os</strong>. Deixo-o limpo de vers<strong>os</strong> e desílabas, seco de lágrimas e de suor, silenci<strong>os</strong>ocomo o espaço de onde as aves se ausentaram.Depois, pedra a pedra, construo a memóriaem que te vou guar<strong>da</strong>r. Ergo-a desse campoonde te abracei, sobre folhas e flores, ouvindoa música do vento por entre ram<strong>os</strong> e sombras.«Mas para que a queres?», perguntas-me. «Semmim, sem o calor <strong>da</strong> minha voz, sem o corpoque amaste?» E pedra a pedra volto a esvaziartudo, como se estivesses aqui, sem na<strong>da</strong> encontrar.Percurso de Sísifo ou movimento <strong>da</strong> melancolia <strong>da</strong> memóriade uma per<strong>da</strong>, o ritual repete-se, circularmente implícito, porque o amor é18 [2003:58]375


«silenci<strong>os</strong>o como o espaço de onde as aves se ausentaram» e se não podeapagar d<strong>os</strong> mais íntim<strong>os</strong> diálog<strong>os</strong> mentais que suportam e acarinham a sualembrança.Crem<strong>os</strong> terem sido poemas como este que levaram Eduardo PradoCoelho, em O Cálculo <strong>da</strong>s Sombras, 19 a, a propósito de O Movimento doMundo, de Nuno Júdice: «alguns d<strong>os</strong> mais bel<strong>os</strong> e comovedores poemas deamor <strong>da</strong> literatura portuguesa encontram-se neste livro».3. João Miguel Fernandes JorgeUm d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> poesia de João MiguelFernandes Jorge consiste na presença de uma emoção que olha n<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> omundo <strong>da</strong>s coisas, d<strong>os</strong> homens, d<strong>os</strong> afect<strong>os</strong>, <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> cultura. Ageografia exterior ao sujeito surge, pois, conta<strong>da</strong> através de cenas oupequenas histórias que se narram, em geral, a partir de um cruzamento entrea representação quase fotográfica dessa geografia exterior e a suaefabulação, mas sem deixar de manter semi-submersa uma intersecção como mundo pessoal de um sujeito lírico que lhes está subjacente.Os seus poemas parecem configurar, por vezes, como quefragment<strong>os</strong> narrativ<strong>os</strong> de um diário, de um relato de viagem ou de um livrode memórias, eivad<strong>os</strong> de intervenções intensas de ritm<strong>os</strong> e melodias, cujadiscursivi<strong>da</strong>de empresta ao banal a musicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte poética, e de quen<strong>os</strong> parece ser um bom exemplo o poema «S. Mateus», de Terra N<strong>os</strong>tra: 2019 [1997:366]20 de 1992, in A Pequena Pátria [2002:94,95]376


O avião chegou de S. Miguel.Saíram pouc<strong>os</strong> passageir<strong>os</strong>. Um caixeiroviajante percebia-se. Talvezque f<strong>os</strong>se alguém de gestão ou marketing,destes d<strong>os</strong> banc<strong>os</strong> ou d<strong>os</strong> empréstim<strong>os</strong>para uma Europa uni<strong>da</strong>. Depois duasciganas. De negro veste uma, outrade castanho e vidrinh<strong>os</strong>. Enormes.Escuras. O cigano atravessou a pistadevagar e resmungava contra a vi<strong>da</strong> e <strong>os</strong>negóci<strong>os</strong>, contra o mal que se sentiaperdido na Atlântico. Por último ohomem novo entrou na gare. E a suanoiva estava ao seu lado. Picoense, ele;ela não sei, mas pela fala do continenteseria beirã e prometia firmar o sangueoriginal <strong>da</strong> ilha. Os pais e <strong>os</strong> parentespróxim<strong>os</strong> esperavam. Feita a introdução<strong>da</strong> noiva saíram ti<strong>os</strong> e irmã<strong>os</strong>. Ficaramsó <strong>os</strong> pais do noivo e <strong>os</strong> noiv<strong>os</strong>.O pai falava em tom apaixonado de S.Mateus e quase insinuava que, ele próprio,merecia aquela noiva. Tod<strong>os</strong> eles eramalt<strong>os</strong> como me dizem ser a gente desta ilha.Pronúncia clara e a frase um poucoenre<strong>da</strong>dora. Eu não sei bem,ouvia «S. Mateus» muito amiúde. Família deúltim<strong>os</strong> baleeir<strong>os</strong> se tratava e a mãe rendeiraain<strong>da</strong>, via-a <strong>da</strong>r ao filho uma pequenacaixa de ourives. Abriu-ae dela tirou um anel de pedra verde;um verde que se vê cobrir o fundo de umacaldeira. A noiva baixou <strong>os</strong> olh<strong>os</strong>.Aceitou num d<strong>os</strong> seus ded<strong>os</strong> o anel,377


como quem acaba de adquirir certasabedoria insular; uma maneira justa deter as coisas, o amor e o verdedo mar - que também era o <strong>da</strong>quelapedra -, e a morte.Em quase todo o poema predomina uma ordenação descritiva,enumerativa e de cariz cinematográfico, pois à panorâmica do avião segueseum zoom de aproximação, a permitir uma descrição sumária d<strong>os</strong>passageir<strong>os</strong> que descem do avião: o caixeiro viajante, as duas ciganas, ocigano. Passa-se depois a um p<strong>os</strong>sível plano americano, já na gare, do joveme <strong>da</strong> noiva, personagens nas quais se vai centrar o episódio, e que adescrição anterior permite localizar geográfica e socialmente. É p<strong>os</strong>sível queo embevecido pai do noivo mereça um plano mais aproximado, e a caixa e oanel cl<strong>os</strong>e-ups em crescendo, até a<strong>os</strong> ded<strong>os</strong> <strong>da</strong> noiva.Esta descrição cinematográfica é feita por um narrador que seoculta como mero observador heterodiegético, neutro, sem participação, talcomo a lente de uma câmara, e cuja ciência se fica quase pela simples visão,alia<strong>da</strong> à conjectura («Talvez / que f<strong>os</strong>se alguém de gestão»; «Picoense ele; /ela não sei, mas pela fala do continente / seria beirã»; «Eu não sei bem /ouvia »). No entanto, ao relatar que «O pai falava em tom apaixonado [...] equase insinuava que, ele próprio, merecia aquela noiva», este narradorindicia a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de, além de ver e, pontualmente, conjecturar, poderevoluir para a intervenção que lhe poderia conferir um ponto de vista maispróximo. Na ver<strong>da</strong>de, n<strong>os</strong> últim<strong>os</strong> cinco vers<strong>os</strong> do poema, mito, símbolo emetáfora remetem o comentário final para uma dimensão de maiorpessoali<strong>da</strong>de, de sensibili<strong>da</strong>de íntima acerca do que foi observado, e deempatia e comunhão de sentiment<strong>os</strong>, que cria uma dimensão ambígua nestenarrador subitamente tão próximo de um sujeito lírico.É nestes últim<strong>os</strong> cinco vers<strong>os</strong> que se acentua o equilíbrio entrediscurso narrativo e poético, sustentado que fora, ao longo do poema, pelo378


equilíbrio métrico acompanhado de dispersa rima toante e sublinhado porpertinência fónica, sobretudo no insistente uso de consoantes contínuas, queconferem, no seu entrecruzar, uma suave musicali<strong>da</strong>de em surdina. Estepano de fundo rítmico e melódico é frequentemente usado na poesia de JoãoMiguel Fernandes Jorge para ultrapassar a lineari<strong>da</strong>de do contar de umacena banal quotidiana e como que disfarçar a dimensão sentimental líricaque lhe está subjacente.A observação descritiva, e aparentemente objectiva e fria, <strong>da</strong> paisagemhumana e geográfica pode, em outr<strong>os</strong> poemas, ser pretexto para aintromissão de um devaneio mental e íntimo que parte de um elementoexterior observado, como a «Sé» do poema «Casa de Chá em Vila Real», deTron<strong>os</strong> e Dominações: 21Numa manhã de junho sentado à mesa de umacasa de chá em Vila Real tive um sonho [...]-----------------------------------------------------------Por mim se fez este balcão peloqual foram introduzid<strong>os</strong> à minha presença <strong>os</strong>frades dominican<strong>os</strong> <strong>da</strong> Sé, ali defronte.Vinham <strong>da</strong>r-me a interpretação <strong>da</strong>s cornijasacachorra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> sua casa.-------------------------------------------------------------------[...] Falavamjá d<strong>os</strong> melhores trech<strong>os</strong> do bispo Osório,admirável em latim.Ao lado crescia aquela árvorecuja altura era grande dentro e fora <strong>da</strong>379


minha cabeça.Viam as aves do céu fazerem mora<strong>da</strong>n<strong>os</strong> ram<strong>os</strong>, <strong>os</strong> frades acharam sombrasob as traves de madeira <strong>da</strong> sua igreja ecantavam derrubai a árvore cortai-lhe <strong>os</strong> ram<strong>os</strong> sacudia as folhas.A única coisa a fazer era beber o chá eEsperar pela esquina <strong>da</strong> aveni<strong>da</strong>.Não sendo João Miguel Fernandes Jorge um poeta em cuja obrafrequentemente se manifeste o onírico ou o fantástico, recorre, no entanto,por vezes, a esta dimensão como recurso retórico para ultrapassar <strong>os</strong> plan<strong>os</strong>lineares do quotidiano e inserir no poema a confissão de um sentimentoíntimo ou de uma crítica que passa pelo social e pelo cultural, comopudem<strong>os</strong> observar. No entanto, amb<strong>os</strong> se podem manifestar por um artifíciode aparente distanciamento entre o Eu e o Outro, através de um processo dedesdobramento, muito comum à narrativa, e que consiste em instaurar aambigui<strong>da</strong>de entre narrador e narrador-personagem, fenómeno que n<strong>os</strong>parece suceder no poema «Um Crime entre a Várzea e Candelária», deBellis Azorica: 22Acordou e acendeu o candeeiro. Eram cincoe meia <strong>da</strong> manhã. Em breve surgiria a luz crepuscular.Sentia-se bem, com uma força inespera<strong>da</strong>. Vestiu--se, apagou a lâmpa<strong>da</strong> vela<strong>da</strong> e saiu de casa fechando acancela do quintal. O mar muito calm<strong>os</strong>em a menor ondulação; raro, numa manhã de novembro.----------------------------------------------------------------------O homem encontra na berma <strong>da</strong>s rochas o corpo inerte de um bêbado,inconsciente mas vivo. Depois de hesitar «sentiu-se poder<strong>os</strong>o e com as mã<strong>os</strong>rodou-o até se despenhar nas rochas», voltando então para casa:21 de 1985, in A Pequena Pátria [2002:70,71].380


----------------------------------------------------------------------[...] Entrouna cozinha e disse «levantei-me muito cedo». O pão,branco e quente, cortado em fatias sobre a mesalembrou-lhe <strong>os</strong> dentes, regulares e muito branc<strong>os</strong>, pordetrás d<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong>. E o ruído <strong>da</strong> máquina de café, n<strong>os</strong>ilêncio <strong>da</strong> casa, chegou a<strong>os</strong> ouvid<strong>os</strong> como o de umanimal novo a cair no fundo <strong>da</strong> ravina.Quisera ser deus tal qual <strong>os</strong> deuses, sem pie<strong>da</strong>de.Merecera o café que bebia; um prazer simples entre océu e o mar.Podem<strong>os</strong> ler este poema narrativo seguindo a ordem pela qual ele seapresenta, de acordo com uma cronologia linear, mas podem<strong>os</strong> também lê-locomo uma construção proléptica, considerando o final como seu início, ouseja, contando a história do seguinte modo: alguém, no seu dia-a-dia, aopequeno almoço, (quem sabe se lendo o jornal) perante o «branco do pão» eo «ruído <strong>da</strong> máquina de café, no / silêncio <strong>da</strong> casa», relembra uma cena vista(ou li<strong>da</strong> como «caso do dia») e inventa ou completa a sua história, na qualapenas <strong>os</strong> últim<strong>os</strong> três vers<strong>os</strong> indiciam, e de modo ambíguo, a intromissãodo Eu («quisera» e «merecera» podendo corresponde tanto à primeira comoà terceira pessoas do singular), enquanto comenta mentalmente a impie<strong>da</strong>ded<strong>os</strong> deuses-homens.A fuga à repugnância ou à revolta do humano circun<strong>da</strong>nte podeassumir, pois, na poesia de João Miguel Fernandes Jorge, a realização <strong>da</strong>camuflagem de uma história conta<strong>da</strong> distancia<strong>da</strong>mente, quase como quenum relato de «caso do dia». Mas, por vezes, este distanciamento anula-sepelo assumir <strong>da</strong> voz do poema por parte de um sujeito-lírico-narrador, capazde confessar um apontamento que se pode ler como autobiográfico, descrito22 [1999:97,98]381


com a intimi<strong>da</strong>de poética de um diário, como na história de amor - ou nodrama desdramatizado em três act<strong>os</strong> ou poemas - conta<strong>da</strong> em «BreveEncontro no Inverno Passado», de Tron<strong>os</strong> e Dominações: 23IPela terceira vez n<strong>os</strong> encontrám<strong>os</strong> entre o toldo<strong>da</strong> rua e a porta do hotel ladea<strong>da</strong> por palmeirasanãs. Sabíam<strong>os</strong> demasiado um do outro.--------------------------------------------------------------Ain<strong>da</strong> na manhã <strong>da</strong> véspera estivéram<strong>os</strong> sentad<strong>os</strong>na sala <strong>da</strong> pequena biblioteca <strong>da</strong>Frick Collection. Lia as proveniências deum bispo de Grecco e eu, impaciente, amarrotavapapéis onde tentava recolher notas sobre o Ticiano<strong>da</strong> luva.---------------------------------------------------------------IIAs janelas do hotel estavam ilumina<strong>da</strong>s.Nós vivíam<strong>os</strong> bastante dessa espécie de luz.Não havia ninguém no vestíbulo quando saím<strong>os</strong>A caminho do meu quarto. Ou teria sido <strong>os</strong>eu quarto? Esta questão perdi-a no tempo;---------------------------------------------------------------Nenhum de nós fazia descer a mão p´lo desejodo outro.Era a hora heróica do perigo e ca<strong>da</strong> umdesconhecido e terrível sabia a intenção de morrer semum grito, sem uma palavra.------------------------------------------------------------------23 de 1985, in Antologia Poética 1971-1994; [1995:64 a 67]382


IIIDeixara pois cair a cabeça sobre o meuombro.Passou as mã<strong>os</strong> sob a luz <strong>da</strong> noite.«Amanhã havem<strong>os</strong> de escrever, ca<strong>da</strong> um aseu modo e irradiando o infinito do mundo,um romance de amor.»-----------------------------------------------------------------------História de amor, de n<strong>os</strong>talgia, de erotismo, mas também história deinteriori<strong>da</strong>de, de recuo sobre si próprio, aberta em três pausas, em surdina.História de um lirismo que nem as breves referências culturais à pintura (tãofrequentes na obra deste poeta) nem o moderno cenário conseguem atenuar,e onde as convenções líricas e romanescas coabitam sem que haja um olharóbvio ao passado literário, porque o não permitem as referências a ummundo íntimo, feito <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> e <strong>da</strong> emotivi<strong>da</strong>de que cruza<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>.No entanto, em outr<strong>os</strong> poemas <strong>da</strong> obra de João Miguel FernandesJorge a sensuali<strong>da</strong>de e a emotivi<strong>da</strong>de surgem como que inseri<strong>da</strong>s numentrecruzamento de mund<strong>os</strong> exteriores, geográfic<strong>os</strong> ou históric<strong>os</strong>,convoca<strong>da</strong>s por ritm<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>, mas unifica<strong>da</strong>s na sua intromissãofragmentária quer por uma temática, quer por núcle<strong>os</strong> lexicais emparalelismo recorrente.Tal acontece, por exemplo, quando se trata de cenas ou paisagenspovoa<strong>da</strong>s de uma viagem, nas quais surge uma intensa pacificação, como sea travessia de territóri<strong>os</strong> do percurso fizesse aligeirar, pela sua progressãocontínua, o ver e o sentir <strong>da</strong>s intensi<strong>da</strong>des que só o todo do percursorecupera. Pensam<strong>os</strong> em O Lugar do Poço, 24 livro escrito e desenhado por de24 [1997]383


João Miguel Fernandes Jorge e Rui Chafes, e do qual pudém<strong>os</strong> ouvirpessoalmente contar a versão de génese que <strong>os</strong> autores quiseram querecebêssem<strong>os</strong>: <strong>os</strong> apontament<strong>os</strong> paralel<strong>os</strong>, em poema e desenho, de umaviagem à Grécia, p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> p<strong>os</strong>teriormente em confronto.Contudo, para além do contar do percurso geográfico, turístico,cultural e histórico - e como em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> relat<strong>os</strong> de viagem - tomam relevoas pequenas cenas e as pequenas grandes vivências que foram observa<strong>da</strong>s esenti<strong>da</strong>s casualmente mas que ficaram reti<strong>da</strong>s na memória. A título deexemplo, alguns excert<strong>os</strong> de uma cena que imaginam<strong>os</strong> completa<strong>da</strong> eficciona<strong>da</strong> pela imaginação, tanto do poeta como do pintor: 25XVIIIA um tempo tranquil<strong>os</strong>, violent<strong>os</strong>. Chegaram ao hotel ain<strong>da</strong> dedia e as diferenças obrigaram-me a fixá-l<strong>os</strong>. O primeiro---------------------------------------------------------num carro a cair de velho, coberto de ferrugem de um ror denoites ao relento; desajeitado no vestir, casaco tão desbotadocomo o automóvel e calças que se percebiam num fio, sapat<strong>os</strong>que não viam graxa há meses; i<strong>da</strong>de não muitovisível [...]----------------------------------------------------------------------O outro, camisa azul-vivo - falo ain<strong>da</strong> de Krois<strong>os</strong> eAristodikus - e tudo era novo para uso pleno de um corpopoupado pela vi<strong>da</strong>; excelente seria o carro.-----------------------------------------------------------------------[...] Mas ao cair <strong>da</strong>noite tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> pormenores se esbatiam, anulavam-se com <strong>os</strong>sapat<strong>os</strong> usad<strong>os</strong> de Aristodikus; tudo submergiu no escuro<strong>os</strong> alt<strong>os</strong> cim<strong>os</strong> do Parnaso [...]-------------------------------------------------------------------------25 [1997:26,27]384


[...] qualquer importância qualquerdissemelhança se tornou igual ao abandono <strong>da</strong> noite:sobre uma cadeira sobre uma cama no artifício do própriocorpo, não houve mais o olhar do outroa solidão abandonou-<strong>os</strong>. Equem chegasse à varan<strong>da</strong> fronteira, segund<strong>os</strong> mais tarde,na<strong>da</strong> distinguiria; na obscuri<strong>da</strong>de somente a incandescênciad<strong>os</strong> cigarr<strong>os</strong> quando se elevavam para se prenderem n<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong> edesciam devagar, mor<strong>os</strong>amente, com a dimensão de uma dracmaem fogo.Este fragmento XVIII articula-se num conjunto de vinte e cinco,seguid<strong>os</strong> de um paralelismo, em desenho, <strong>da</strong>s impressões, paisagens, cenase referências culturais que se lêem e vêm como se se tratasse de um albumde fotografias desenhado pela memória de uma viagem, no qual se incluemas associações e referências suscita<strong>da</strong>s pelas imagens, e vice-versa. Crem<strong>os</strong>relevante o facto de, na obra de João Miguel Fernandes Jorge, anarrativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lógica discursiva permitir estas como que sobrep<strong>os</strong>ições deplan<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> quais nunca está excluí<strong>da</strong> uma vertente de intimismo lírico, nemquando predomina uma amálgama de quotidiano, pastiche, paródia ereferência histórica e literária, como no poema «Capítulo XLIII», deCrónica: 26COMO DOM JOHAM, FILHO DELREI DOM PEDRODE PORTUGAL, FOI FEITO MESTRE DAVIS---------------------------------------------------------------------«Conto supor nele um espírito ávido mas prudenteain<strong>da</strong> que levado pela afortuna <strong>da</strong> juventude.»Inclina<strong>da</strong>s as cabeças, em sinal de assentimento,correram a ci<strong>da</strong>de dizendo385


«Pretende-se contactar com rapaz, cerca20 an<strong>os</strong>, que no dia 22 de dezembro tomoucombóio 17.34, Cais do Sodré. Vestia bluejeans, sapat<strong>os</strong> branc<strong>os</strong> desporto. Será futurorei.»Distante podíam<strong>os</strong> ouvir vers<strong>os</strong> do antifonário moçárabeEm poemas como este a narrativi<strong>da</strong>de instaura-se a partir de umaintertextuali<strong>da</strong>de quase genológica que, simultaneamente, articula passadoliterário, passado colectivo e presente do quotidiano, o que requer umadimensão de leitura que siga essa articulação entre vári<strong>os</strong> plan<strong>os</strong> culturais,vivenciais e temporais, e sem a qual a dimensão narrativa se perde. Contudo- e o poema acima transcrito é, ain<strong>da</strong>, disso exemplo - paisagens,personagens, cenas e efabulação nunca se aproximam do pensamento, <strong>da</strong>crítica ou <strong>da</strong> erudição, dit<strong>os</strong> acerca do visionado, sem que tragam a seu lado,com maior ou menor intensi<strong>da</strong>de, um rasto de emoção que permanece,contaminando retroactivamente o poema, como sucede na terceira estrofe de«O mar de Okhotsk desagua na baía do Funchal», de Não é Certo esteDizer: 27A porta grande abre sobre o mare demorou-se com sombras no diáriodo seu r<strong>os</strong>to. Abriu o livro paraqueimar um pouco a ruína <strong>da</strong>s horas. Edeixou-se prender às frases de um p<strong>os</strong>talque, entre páginas, vinha. De um lado: aimagem <strong>da</strong> velha ponte em madeira de Istambul. Do26 de 1977, in , in Antologia Poética 1971-1994; [1995:29].386


outro lado: «na Ásia <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des marítimas tenhoviajado com abandono ealgum apego. Não existem viagens sem que n<strong>os</strong>percam<strong>os</strong> - acredita.»A estrofe abre-se como se a «porta grande» f<strong>os</strong>se a cortina de umpalco que desven<strong>da</strong> um cenário sem limite, aberto «sobre o mar», quepermite o encaixamento de viagens sem restrição de percurso físico oumental, do «diário do seu r<strong>os</strong>to» à abertura do «livro», ao folhear <strong>da</strong>s«páginas» onde se encontra o «p<strong>os</strong>tal» no qual a «imagem» é a última caixaa abrir. Esta sequência de acções que partem de object<strong>os</strong> em encaixamentopermite o fechamento do percurso inverso e a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de tudoreiniciar, numa ordem quase matemática de quem, estático, mas a preparar--se para a leitura, recebe notícias perdi<strong>da</strong>s de um viajante que comcumplici<strong>da</strong>de lhe diz: «Não existem viagens sem que n<strong>os</strong> percam<strong>os</strong> --acredita».Mesmo quando a efabulação se limita a ser quase como um quadrovivo secular, prestes a mover-se num cenário onde se pintam pensamento eemoção, como neste caso, a produção do imaginário torna-se intensa, talcomo é intensa, na poesia de João Miguel Fernandes Jorge, a fixação deuma intencionali<strong>da</strong>de que privilegia sentiment<strong>os</strong> e emoções, entrecruzandoreferências, tal como planta que se enr<strong>os</strong>ca no troco de uma árvore,redimensionando a sua história e emprestando-lhe a poética musicali<strong>da</strong>ded<strong>os</strong> sons do seu movimento cénico.27 De 1997, in Funchal em Fundo; [2002:29]387


4. Al BertoA narrativi<strong>da</strong>de na obra poética de Al Berto configura-se quasesempre a partir <strong>da</strong> centralização num Eu. Element<strong>os</strong> como o espaço ou aspersonagens surgem representad<strong>os</strong> e articulad<strong>os</strong> em função do dizer pessoale íntimo de uma subjectivi<strong>da</strong>de feita de decepção, de melancolia, de revolta,de desespero, de agonia, de doença ou de morte. Esta disforia conjunta geracomo que uma voz coincidente, colectiva, única - a voz do Eu e a voz domundo; a voz <strong>da</strong>s coisas e a voz do corpo; a voz que se encena a si própria eao suporte material que a rodeia; a voz que fala <strong>da</strong> sua concretização emescrita e <strong>da</strong>s atm<strong>os</strong>feras que rodeiam o processo dessa escrita.E o tempo rodeia to<strong>da</strong>s essas vozes para depois as penetrar e logo seafastar, colaborando na configuração de um modo fragmentário de contarcuja dispersão é ain<strong>da</strong> amplifica<strong>da</strong> pelo constante uso <strong>da</strong> metáfora e <strong>da</strong>metonímia, como no poema em sete moment<strong>os</strong>, intitulado «Regresso àsHistórias Simples», de Uma Existência de Papel, 28 do qual citam<strong>os</strong> <strong>os</strong>eguinte fragmento:2o esplendor d<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong> deixa a noitedevassar o sorriso do rapaz onde pernoito(é uma história simples)aprisiono luas dentro <strong>da</strong> gaiola de águafujo com o domador d<strong>os</strong> astr<strong>os</strong>pel<strong>os</strong> segred<strong>os</strong> do mar28 de 1985, em O Medo [1987:557 a 565]388


a tinta d<strong>os</strong> lim<strong>os</strong> manchou-lhe a embriagueznas mã<strong>os</strong> pararam <strong>os</strong> gest<strong>os</strong> e o receio de tocarum deusno peito rebentou o novelo de luzesquando <strong>os</strong> sex<strong>os</strong> se derramaram-------------------------------------------------------------ain<strong>da</strong> guardo a gaiola de luas s<strong>os</strong>sega<strong>da</strong>smas o domador de astr<strong>os</strong> diluiu-se no instanteem que tudo se ofereceu e tudo se perdeu(não disse que era uma história simples?)Na ver<strong>da</strong>de, a simplici<strong>da</strong>de desta «história» poderia ficar-se pel<strong>os</strong> doisprimeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong> do poema, como mote a ser ou não desenvolvido, pois a«história simples» ancora-se essencialmente no modo como to<strong>da</strong> ela acabapor se materializar no corpo <strong>da</strong>s personagens que, por sua vez, sendo duas,vivem <strong>da</strong> memória do dizer de uma delas, ao qual se sobrepõe como queoutro dizer paralelo, o <strong>da</strong> linguagem utiliza<strong>da</strong>, que gera uma fortecomponente simbólica.Aparentemente simples, também, a referência à «noite», às «luas» e ao«mar» como vago fundo cénico que, no entanto, se complexificaprogressivamente e adquire uma dimensão espacial onírica através <strong>da</strong>particularização d<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> onde a acção se desenrola («rapaz ondepernoito», «fujo com o domador de astr<strong>os</strong> / pel<strong>os</strong> segred<strong>os</strong> do mar» ou «nopeito rebentou um novelo de luzes»).O espaço aparentemente aberto fecha-se pelo dizer desse mesmoespaço, pois a linguagem, em vez de apenas referir, como parece pretender,expande-se pelo alargamento simbólico <strong>da</strong> referência, dinamitandoestelarmente a aparente lineari<strong>da</strong>de. Este processo, em muit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>389


poemas de Al Berto, rege-se pela repetição de camp<strong>os</strong> lexicais obsessiv<strong>os</strong> emetamórfic<strong>os</strong>, como o que tem como paradigma o corpo, num excerto de«O Homem Queimado por Dentro», 29 em O Anjo Mudo: 30---------------------------------------------------------------------------Quando te ausentares destes camp<strong>os</strong> de sarças, abrirei asmã<strong>os</strong> onde teu corpo se incendiou - e espalharei no desertoas cinzas do n<strong>os</strong>so destino. Porque a alma é ar e se<strong>da</strong>. Fumo.Mas vem, vem pescar quando as neves derreterem.Mergulha teus braç<strong>os</strong> nus em meus olh<strong>os</strong> protegid<strong>os</strong> por duasfileiras de cíli<strong>os</strong> de aço. Vem, sob este céu de tormenta e dealt<strong>os</strong> abert<strong>os</strong> - vem, pescador coberto de ruivas escamas. Emteus olh<strong>os</strong> meus ded<strong>os</strong> de vime contemplam <strong>os</strong> peixes maistristes do mundo.Levanta-se o vento e passa. Tua cabeça adormeci<strong>da</strong>põe-se a brilhar. À tua volta, um halo de penumbra onde aminha mão entra vagar<strong>os</strong>amente, suplicando-te um gesto ouum nome.E dizes-me: quando era criança morria muito.----------------------------------------------------------------------------Na solidão e na ausência, o corpo amante, o corpo amado e o lugaridentificam-se, apesar <strong>da</strong>s referências a uma geografia exterior ao corpo: <strong>os</strong>«camp<strong>os</strong> de sarças» e o «deserto», tanto pela sua dimensão mística comoporque surgem conotad<strong>os</strong> com «as cinzas» do destino e com a «alma» de«ar e se<strong>da</strong>», corporizam-se na nudez <strong>da</strong> pele, no «deserto» d<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> ou naaspereza táctil d<strong>os</strong> sex<strong>os</strong>.29 de 1992.30 [2000:150]390


To<strong>da</strong> a cena se ancora na invocação desses corp<strong>os</strong>, <strong>da</strong> sua história e <strong>da</strong>sau<strong>da</strong>de dessa história, num «halo de penumbra» entre a visão lembra<strong>da</strong> <strong>da</strong>suavi<strong>da</strong>de bran<strong>da</strong> <strong>da</strong> neve a derreter e, no pólo op<strong>os</strong>to, a agu<strong>da</strong> perfuraçãodo tormento d<strong>os</strong> «cíli<strong>os</strong> de aço». A ausência e a sua presentificação pelamemória corporizam-se no corpo sofredor, pelas mã<strong>os</strong>, pel<strong>os</strong> braç<strong>os</strong>, pel<strong>os</strong>olh<strong>os</strong> , pel<strong>os</strong> ded<strong>os</strong>, pela «cabeça adormeci<strong>da</strong>». Assim a obsessão lexicalacompanha um olhar sobre o corpo que sustenta a dimensão onírica de umamelancólica sau<strong>da</strong>de, intensamente lírica, que acompanha o contar e quenem o grafismo <strong>da</strong> pr<strong>os</strong>a consegue minimizar.O sentimento de desencanto, a mágoa ou a dor de uma ausência aliam--se, por vezes, na obra de Al Berto, à convocação <strong>da</strong> pureza <strong>da</strong> infância ou àmanifestação de uma aliança com a natureza pura e deserta ou, ain<strong>da</strong>, a umaforte vivência empática com a arte, sobretudo a pintura, como no poema«Paul Klee e o Peixe de Lume», de Três Pinturas a Óleo sobre Tela: 31se repentinamentea infância me doesse a meio <strong>da</strong> oceânica noiteno espelho de rubra água cerca<strong>da</strong> pela trevaonde nenhum r<strong>os</strong>to ousa reflectir-se brilhariao minúsculo peixe de lumee na obscuri<strong>da</strong>de púrpura sua cabeça de ouroincendiaria o transparente interior <strong>da</strong>s anémonasas escamas de jade fulgurand<strong>os</strong>imulam um sol em ca<strong>da</strong> sonhovibra um búzio triste uma alga ou um peixe como estecresce a partir do centro rubro <strong>da</strong> telaacende e apaga o distante pulsar <strong>da</strong> infãnciaacordo em sobressaltodeparo com a subtil inteligência do peixe31 in O Medo; [2000:491]391


imobilizado na magia barata dum bilhete p<strong>os</strong>talsei que está numa galeria de arte em hamburgodeixa-se consumir pelo tempoe pelo olhar <strong>da</strong>lgum visitante furtivo sonhadorA minuci<strong>os</strong>a descrição do quadro de Klee não se limita a umprocedimento ekphrástico numa tentativa de representação do nãorepresentávelna visão pictórica <strong>da</strong> mente d<strong>os</strong> seus leitores. O termo técnicoekphrasis, tal como na Antigui<strong>da</strong>de <strong>os</strong> professores de retórica o definiam,designava <strong>os</strong> process<strong>os</strong> de uma descrição viva e completa que tinha comoobjectivo trazer, perante a visão mental do ouvinte, pessoas, lugares ouaconteciment<strong>os</strong>. A ekphrasis dissemina<strong>da</strong> na linguagem do poema surgecomo milagre e miragem: milagre por a linguagem conseguir traçar aquiloque parece ser o instante em que a visão se deteve; miragem porque a ilusãodessa visão se redimensiona no eclodir <strong>da</strong> cristalização sugeri<strong>da</strong> pelasvertentes descritiva e surrealizante configura<strong>da</strong>s pelas palavras do poema.No entanto, neste poema de Al Berto entrecruza-se também uma visãometamórfica de tudo o que, no quadro, convoca o brilho intermitente eestelar <strong>da</strong> infância. O próprio divagar a partir d<strong>os</strong> element<strong>os</strong> pictóric<strong>os</strong> que,na última estrofe, se desven<strong>da</strong> como uma reprodução do quadro num p<strong>os</strong>tal,não lhe corta a magia, antes p<strong>os</strong>sibilita uma identificação final com o sujeitoque penetrou, movimentou e reencenou o quadro de Klee, introduzindo neleuma ideal infância, introduzindo-se nele metamorficamente e deixando-se,também, «consumir pelo tempo / e pelo olhar de algum furtivo sonhador»,identificando o seu destino com o <strong>da</strong> arte.O processo metamórfico surge em primeiro plano na poesia de AlBerto, como recurso conciliador do lírico e do narrativo, mesmo quando atemática se aproxima parcialmente do trivial quotidiano, o que acontece no392


longo poema «Carta <strong>da</strong> Árvore Triste», 32 de Três Cartas <strong>da</strong> Memória <strong>da</strong>sÍndias: 33 -------------------------------------------------------------ajeitas o roupão para cobrires o peito desarrumadodepoiscom a chávena de café na mão mexendo o açúcararrastando <strong>os</strong> chinel<strong>os</strong> de borracha virás até aquionde encontrarás esta carta------------------------------------------------------------escrevo-te enquanto não amanhecea morte desperta em mim uma planta carnívorao mundo parece despe<strong>da</strong>çar-se pel<strong>os</strong> desert<strong>os</strong> do meudelíriopântano de lodo entre a pele <strong>da</strong> noite e a manhãespaço de penumbra e de incertezas------------------------------------------------------------mudám<strong>os</strong> de mora<strong>da</strong> sempre que foi preciso recomeçarvivíam<strong>os</strong> como nóma<strong>da</strong>s sem nunca n<strong>os</strong> habituarm<strong>os</strong>à ci<strong>da</strong>demas na<strong>da</strong> disto chegou para n<strong>os</strong> entenderm<strong>os</strong>o tempo transformou-se num relógio de argilatudo esqueci dessas derivase pelo corpo d<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> desencontr<strong>os</strong> diluíram-se<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>a ver<strong>da</strong>de é que nunca teria conseguido escrever-tesob o peso <strong>da</strong> luz do diaa clari<strong>da</strong>de amputar-me-ia todo o desejocegar-me-iatentaria cicatrizar as feri<strong>da</strong>s reabertas pela noitesou frágil planta nocturna e tristeo sol ter-me-ia sido fatalconduzir-me-ia ao entorpecimento <strong>da</strong> memória32 [2000: 431 a 442]33 de 1985, in O Medo; [2000: 429 a 466]393


A «Carta» pr<strong>os</strong>segue com similar jogo de alternâncias, ora lembrando,prevendo e contando um quotidiano banal, com <strong>os</strong> seus pormenores porvezes comezinh<strong>os</strong>, ora centrando-se n<strong>os</strong> afect<strong>os</strong> do seu emissor, como se,por moment<strong>os</strong>, esquecesse que escrevia para um destinatário e desse livrecurso à expansão <strong>da</strong>s suas angústias numa «penumbra de incertezas» quepermite a congregação de mund<strong>os</strong> íntim<strong>os</strong> secret<strong>os</strong> e de mund<strong>os</strong> exterioresenvolventes. Deste modo se vão reconstruindo, em alternância, cenas <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> doméstica e expressões vivas de sentiment<strong>os</strong> confessad<strong>os</strong>.Contudo, o poema m<strong>os</strong>tra-se dominado pela narrativa <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de,porque o aparente solilóquio de um diálogo cujo destinatário, ausente, nãopode retorquir - característica do epistolar -, tem aqui a função de relevar avertente confessionalista. É, justamente, pela permissivi<strong>da</strong>de desta vertenteconfessional («a morte desperta em mim uma planta carnívora», «o tempotornou-se num relógio de argila», «sou frágil planta nocturna e triste») quena «Carta» se introduz o desvario surrealizante que acompanha a confissão.Este procedimento enunciativo duplo, que alia o autobiográfico aoonírico encontra-se, aliado ao contar do próprio processo <strong>da</strong> escrita, nodiário «O Medo». 34 Apesar de duplamente fragmentado, quer pelatripartição temporal (1982, 1984 e 1985) quer pelas elisões <strong>da</strong>temporali<strong>da</strong>de diarística, crem<strong>os</strong> poder considerar uma unificação, por umlado pelo duplo encadeamento narrativo d<strong>os</strong> fact<strong>os</strong> contad<strong>os</strong> (o olharquotidiano sobre a solidão e as memórias, contrapondo-se à história <strong>da</strong>evolução do próprio acto de escrita do diário) e, por outro lado, pelaretroactivi<strong>da</strong>de com que se continuam ou completam cenas anteriormenteesboça<strong>da</strong>s e que haviam sido interrompi<strong>da</strong>s. Contudo, estas duas dimensõesnarrativas são ain<strong>da</strong>, ao longo de «O Medo», perturba<strong>da</strong>s por apartes34 [2000:259 a 276; 399 a 426; 469 a 478]394


oníric<strong>os</strong> surrealizantes que dificultam, pela sua interferência constante, aconciliação do narrar <strong>da</strong>s duas histórias paralelas.Aliás, estas três dimensões apresentam-se logo no início do Diário: 35(1982)16 de maioesqueço-me de tudo, por isso escrevo. Longe do terrorao sismo inesperado <strong>da</strong>s estrelas, escrevo com a certeza de quetudo o que escrevo se apagará do papel no momento <strong>da</strong> minhamorte.----------------------------------------------------------------------------levanto-me <strong>da</strong> cama, arrasto-me até à janela. O martalvez se aviste <strong>da</strong>li. Mas o mar só se torna nítido quand<strong>os</strong>onho, não se consegue avistar <strong>da</strong> janela. Volto a deitar-me.o mar, o d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>, dep<strong>os</strong>itou sal lumin<strong>os</strong>o n<strong>os</strong> cant<strong>os</strong><strong>da</strong> casa, formando desérticas paisagens onde queimo <strong>os</strong> ded<strong>os</strong>,o tacto, vagar<strong>os</strong>amente. N<strong>os</strong> corredores já não é p<strong>os</strong>sívelencontrar sinais de pass<strong>os</strong> nem de facas pelas paredes. Silêncio,apenas o silêncio com gumes de luz atravessa o silêncio <strong>da</strong>casa.As primeiras frases quase constituem um resumo d<strong>os</strong> event<strong>os</strong> queconstituirão a diegese, em alternância, do Diário, desde a centralização notempo presente <strong>da</strong> escrita ao preconizar de um fim que coincidirá com amorte do escritor. Segui<strong>da</strong>mente, surge o contar do dia-a-dia na casa, queindicia a n<strong>os</strong>talgia, o fechamento, a privação de um espaço de convíviohumano, tal como anuncia o refúgio num mundo onírico que se desenrolaparalelamente à escrita e à vivência quotidiana. A frase charneira destaarticulação - «Mas o mar só se torna nítido quando sonho» - permite a35 [2000:261, 262]395


passagem para um mundo no qual o vivido e o imaginado se interpenetram econfundem.Estes níveis <strong>da</strong> narração fazem-se acompanhar de procediment<strong>os</strong>enunciativ<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>, com divers<strong>os</strong> us<strong>os</strong> <strong>da</strong> linguagem, mas não deixamnunca de manter pont<strong>os</strong> de contacto temátic<strong>os</strong> que <strong>os</strong> aproximam comoenunciad<strong>os</strong> do mesmo Diário. As estrelas, o terror e a morte; o mar, apenumbra e o silêncio; a casa, a paisagem longínqua e o corpo sãoleitmotiven desenhando núcle<strong>os</strong> lexicais que, por sua vez, sustentam to<strong>da</strong> aharmonia discursiva.Por vezes, um desdobramento do narrador (em segun<strong>da</strong> e terceirapessoas do singular ou primeira do plural) parece fazer <strong>os</strong>cilar pormoment<strong>os</strong> a harmonia conferi<strong>da</strong> pela pessoali<strong>da</strong>de à fragmentari<strong>da</strong>dediarística e narrativa, como n<strong>os</strong> excert<strong>os</strong> seguintes, de 1982: 3625 de maio-------------------------------------------------------------quase me esqueci de que não estou sozinho. toco aode leve o r<strong>os</strong>to de M., o coração deixa de sangrar. olho-odormir a meu lado, longe <strong>da</strong> minha insónia. ergo-me para ovácuo que n<strong>os</strong> envolve e chamo por mim. [...]28 de maioo mar, vivem<strong>os</strong> frente ao mar. aqui n<strong>os</strong> mantem<strong>os</strong>precariamente viv<strong>os</strong>. sem fascínio, sem project<strong>os</strong>, semesperança, amamo-n<strong>os</strong>.------------------------------------------------------------------------a noite incendeia o lado esquivo do coração, ouçomeatentamente, como se morresse. regresso a casa e àpágina em branco.36 [2000:267]396


A momentânea certeza <strong>da</strong> presença de outra personagem éconstantemente p<strong>os</strong>ta em causa pela intromissão <strong>da</strong> linguagem simbólicaque, liricamente («Ergo-me para o vácuo que n<strong>os</strong> envolve»), questiona areferenciali<strong>da</strong>de acaba<strong>da</strong> de afirmar («toco ao de leve o r<strong>os</strong>to de M.»). Aesta ambigui<strong>da</strong>de segue-se, geralmente, uma referência à escrita («regressoa casa e à página em branco»), como se a referenciali<strong>da</strong>de em relação àspessoas e coisas f<strong>os</strong>se imagina<strong>da</strong> e apenas a página branca <strong>da</strong> escritaconstituísse a ver<strong>da</strong>deira referência à factuali<strong>da</strong>de, como é afirmado quaseno fim do Diário:(1985)--------------------------------------------------------------------20 de Janeiroescrever é um modo falsamente inofensivo de n<strong>os</strong>suici<strong>da</strong>rm<strong>os</strong>. um dia esquece-se tudo, escrevemo-n<strong>os</strong>. nofundo, sou um homem sentado, a escrever, num recantoinacessível do meu próprio corpo.----------------------------------------------------------------------------13 de abrilo homem fecha a janela, acende a luz, abre o caderno denotas e escreve: são três <strong>os</strong> poemas que não ousarei escrever...Três poemas ou três fragment<strong>os</strong> de um diário...Assim o corpo e aescrita se fundem em narrador e acção, e se amalgama a motrici<strong>da</strong>de d<strong>os</strong>fact<strong>os</strong> narrad<strong>os</strong>, ao mesmo tempo que é veiculado o lirismo constante quepercorre o Diário. Assim desenham <strong>os</strong> mund<strong>os</strong> representad<strong>os</strong> uma dupladimensão simbólica: a de um texto que finge contar o percurso de umaescrita e a de uma ficção poética <strong>da</strong> escrita, ou do «Medo» de escrever: «sãotrês <strong>os</strong> poemas que não ousarei escrever...»397


TRÊS POETAS MADEIRENSES5. J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho BaptistaN<strong>os</strong>tálgica viagem <strong>da</strong> lembrança ou melancólica peregrinação pel<strong>os</strong>lugares <strong>da</strong> memória, a poesia de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista conta, emepisódi<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> e em diversa dimensão narrativa, o exílio de um sujeito emsi mesmo, corpo e mente desdobrad<strong>os</strong> em múltiplas variantes quesacralizam o sonho, o devaneio e <strong>os</strong> vestígi<strong>os</strong> do passado, proporcionando aenunciação de representações essencialmente em função <strong>da</strong> ausência.A perseguição constante do ausente ou do idealizado, centra<strong>da</strong> n<strong>os</strong>ujeito, leva à construção imaginária de lugares desconhecid<strong>os</strong>, exótic<strong>os</strong> oudistantes, mas também a um certo fantasiar <strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>ções d<strong>os</strong> lugares <strong>da</strong>infância, e que, n<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> an<strong>os</strong> de escrita de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista,aludiam, por vezes, a uma dimensão civilizacional, mais com mágoa quecom crítica, como no poema «Pela estra<strong>da</strong> fora Jack», 37 de Deste LadoOnde: 3837 de1976, in Biografia398


Caminhavas na tua américa de sorriso podresan francisco san diego san j<strong>os</strong>épela estra<strong>da</strong> forapela estra<strong>da</strong> fora <strong>da</strong>s tuas ci<strong>da</strong>des irreaissuando o sangue <strong>da</strong> Terra Prometi<strong>da</strong>-----------------------------------------------------------caminhavas e eu crescia.também atravessei o atlântico jackmas enjoei palavra que enjoei loucamente--------------------------------------------------------------em funchal city dei long<strong>os</strong> passei<strong>os</strong> solitári<strong>os</strong>viajei em velh<strong>os</strong> cargueir<strong>os</strong> para o sonhoe durante vinte an<strong>os</strong> esperei o outono.oh crepúscul<strong>os</strong> lent<strong>os</strong> onde me suicidei no verãoenquanto no mundo aldeias e aldeias eramdevora<strong>da</strong>s pelo fogo yankee.sabias jack?As referências à emigração ou à guerra do Vietname não conseguemsufocar a solidão («em funchal city dei long<strong>os</strong> passei<strong>os</strong> solitári<strong>os</strong>»), asviagens para o sonho («viajei em velh<strong>os</strong> cargueir<strong>os</strong> para o sonho») ,o lento econtínuo desespero («crepúscul<strong>os</strong> lent<strong>os</strong> onde me suicidei no verão»), acomunhão com a indizibili<strong>da</strong>de do tempo nomeado («e durante vinte an<strong>os</strong>esperei o outono») e a identificação com a personagem que se conta e seinterpela («também atravessei o atlântico», «sabias jack?»)38 [2000:12,13]; versão revista e actualiza<strong>da</strong>.399


Vivências e lugares, memórias e invenções confundem-se,identificam-se ou metamorf<strong>os</strong>eiam-se no espaço do desejo depreenchimento <strong>da</strong> solidão e do fechamento quase autista que ritma regular elentamente a musicali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> seus poemas. Mas também transparece,ocasionalmente, uma autoconsciência <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de narrativa,nomeando-se com lucidez, como no próprio título do poema «Romance», deDeste Lado Onde: 39tudo começou como começam as chuvas e <strong>os</strong> meses quentes,com o parto <strong>da</strong>s mulheres e animais tristes, a luz do archote edo dia, o tempo <strong>da</strong> prece e <strong>da</strong> vindima.era aí que o coração crescia, oprimido pelas invernias,obsessivo no silêncio e na doença;entretanto, a casa acumulando pressági<strong>os</strong> e ruínas, guar<strong>da</strong>vao acaso e o medo de uma aldeia ameaça<strong>da</strong>.-------------------------------------------------------------------------então, junto ao litoral a minha vi<strong>da</strong> senta-se, desabriga<strong>da</strong> efria, com o vento frio de outubroe o frio d<strong>os</strong> companheir<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>.As primeiras estrofes do poema parecem sugerir uma dimensãonarrativa que se manifesta desde as primeiras palavras com que se podeiniciar uma história («tudo começou») passando pela descrição <strong>da</strong> aldeia eseus habitantes, <strong>da</strong> época do ano e do ambiente <strong>da</strong> casa. No entanto, asegun<strong>da</strong> estrofe indicia já uma intromissão camufla<strong>da</strong> do Eu lírico («era aíque o coração crescia») e que se vai alargando ao longo do poema emdetrimento <strong>da</strong> clareza do fio condutor d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong>, porque estes são39 [2000:57]400


subvertid<strong>os</strong> pela sua identificação com o sujeito e pela identificação destecom <strong>os</strong> espaç<strong>os</strong>.Na última estrofe, esta identificação parece quase desaparecer para <strong>da</strong>rlugar a uma dimensão espiritual e imagética que funde novamente sujeito,cenário e personagens, através <strong>da</strong> metonímia («a minha vi<strong>da</strong> senta-se»).Assim, <strong>os</strong> element<strong>os</strong> que marcam o distanciamento entre factual e ficcionalvão acentuando essa distância, tornando-se mais próxim<strong>os</strong> <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de<strong>da</strong> imaginação e <strong>da</strong> memória.Em muit<strong>os</strong> poemas de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista delineia-se estatransfiguração de paisagens, personagens, object<strong>os</strong> e temp<strong>os</strong>, pois aobsessão de povoar a solidão com a lembrança só é p<strong>os</strong>sível contando-acom a intromissão de um imaginário muito íntimo e pessoal. É, talvez, porisso, que <strong>os</strong> livr<strong>os</strong> deste poeta p<strong>os</strong>suem uma linha de continui<strong>da</strong>de temáticaque permite ler as sequências de poemas (ou, até, to<strong>da</strong> a sua obra) como sede um longo poema se tratasse. O livro O Último Romântico 40 é um claroexemplo do contínuo narrativo proporcionado por esta articulação implícita,a propósito <strong>da</strong> qual citarem<strong>os</strong> quatro estrofes: 41Estrangeiro lembra-te <strong>da</strong>queles barc<strong>os</strong> esquecid<strong>os</strong> no sonho,nessa baía de quando eras jovem, com<strong>os</strong> seus afluentes e a lira;não digas na<strong>da</strong>;detém-te como quem chega,segue como quem vem pela estra<strong>da</strong> que correao lado do mar,com o cais de pedra e lodo,com a sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s horas de sal e profecia -feliz aquele cujo coração dezembro não há-dehabitar--------------------------------------------------------------------------40 de 1981, em Biografia.[2000:129 a 190]41 [2000:137, 149, 150]401


Como euna sua cama de lençóis volúveisdemorando o beijo, o lume,descendo, indo, subindo entrecabel<strong>os</strong>, pele, sei<strong>os</strong> de delica<strong>da</strong>i<strong>da</strong>de,apetite de mel, esparso aroma de canelae mirra,penetrante cadência, de fora para dentro,ferozmente.Como eu, naquele outono em Tamaulipas,hás-de ouvir as rudes notas <strong>da</strong> canção doGolfo, esse visível ardor vulcânico,esse ardor<strong>os</strong>o canto,tangíveis cor<strong>da</strong>s de tangível arte,altíssimas chamas na cratera fumegante -como se tudo,melodia e ritmo, devota sereni<strong>da</strong>de dequem se morre, ardendo ardesseAssim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se conta e decide.As aves e <strong>os</strong> tocadores de harpa, a Índia e o México, homens do mar eárvores <strong>da</strong> terra, Delf<strong>os</strong> e Esmirna, ri<strong>os</strong> e pampas, i<strong>da</strong>s e regress<strong>os</strong>, corp<strong>os</strong> earomas, Grana<strong>da</strong> e Babilónia, sei<strong>os</strong>, pele e canela, orquídeas e gladíol<strong>os</strong>,vozes, luzes e corp<strong>os</strong>, harmonias de liras e silênci<strong>os</strong>, sempre rumando asul... Dispersam-se as personagens, as cenas, <strong>os</strong> lugares e <strong>os</strong> temp<strong>os</strong> para sereunirem numa só enti<strong>da</strong>de lírica que finge dirigir-se a um «Estrangeiro».Este fingimento é, afinal, um subterfúgio para melhor dizer ainteriori<strong>da</strong>de e a imaginação, para povoar este longo poema de umsimbolismo que parece reescrito pela memória d<strong>os</strong> lugares e do imaginário402


<strong>da</strong> infância tanto como pela imaginação descritiva de lugares com referênciafactual, mas transp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> para o sonho infantil de quem nunca <strong>os</strong> visitou eque, por isso mesmo, <strong>os</strong> instala, acima de tudo, na sua alma.Em outr<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> a articulação narrativa é mais explícita, embora semantenha, por exemplo, uma referência à mulher e ao amor que se nãoidentifica espacial ou temporalmente porque amb<strong>os</strong> se identificam com opróprio sujeito e com ele se confundem, tanto como <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> lugares. Talacontece, de modo mais evidente n<strong>os</strong> text<strong>os</strong> Morrer no Sul 42 e Jeremias oLouco, 43 este último um longo poema narrativo em trinta e um poemas oucant<strong>os</strong>. Abor<strong>da</strong>rem<strong>os</strong>, destes, algumas estrofes, 44 a título exemplificativo domodo como neles se configura a narrativi<strong>da</strong>de:eu jeremiascriador d<strong>os</strong> céus e infern<strong>os</strong>, do vale e doprado e do delta além,<strong>da</strong> sagra<strong>da</strong> loucura, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> históriatambém,aqui sou.bem aventurado seja o meu nome,o azul do mediterrâneo e o crepúsculo <strong>da</strong> riviera,bem aventurad<strong>os</strong> sejam <strong>os</strong> dias de cólera,o homem do mar, o guerreiro maia e <strong>os</strong> adoradoresde alá.-----------------------------------------------------------------Logo neste primeiro poema de Jeremias o Louco começa a delinear-sea ambigui<strong>da</strong>de entre um narrador-personagem-sujeito lírico que se assume42 [1983]43 [1978]403


como «jeremias», com fortes referências ao profeta bíblico mas p<strong>os</strong>suidorde incongruências delirantes em relação a este, como a identificação comDeus («eu jeremias / criador d<strong>os</strong> céus e infern<strong>os</strong>») mas também criador «<strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> história» e complacente para com as diversas religiões epersonali<strong>da</strong>des a elas liga<strong>da</strong>s («bem aventurad<strong>os</strong> [...] o guerreiro maia e <strong>os</strong>adoradores / de alá», «venha a mim ma<strong>da</strong>lena e ju<strong>da</strong>s e caim»).Ao longo do poema, as vozes d<strong>os</strong> narradores situam-se em alternância,ora sendo narrador- personagem «jeremias», ora surgindo um narrador nãointerveniente, ora surgindo um narrador que se assume como enti<strong>da</strong>de naprimeira pessoa do singular e que tanto pode corresponder a «jeremias»como a um narrador-sujeito lírico dele independente, como, ain<strong>da</strong>, a umajunção d<strong>os</strong> dois na mesma enti<strong>da</strong>de narradora. Vejam<strong>os</strong> um excerto no qualse verificam algumas destas hipóteses:ele não voltou.decorreram an<strong>os</strong> e a amendoeira não <strong>da</strong>rá flor.talvez o cão aí continue,ao longo de sucessivas noites de vigília,farejando a ausência,o lugar vago-----------------------------------------------------------------quando jeremias irrompeu na ci<strong>da</strong>de,pela enc<strong>os</strong>ta que se estende a leste,dir-se-ia que só o silêncio respirava através detudo-------------------------------------------------------------------44 [2000:63, 75, 91]404


quando invadi a metrópole tod<strong>os</strong> me apedrejarameu vinha só.para trás para sempre deixara uma ilha, o quintal em declive,as vinhas que desciam a enc<strong>os</strong>tauma era de excessivo silêncio [...]durante sécul<strong>os</strong> viajei entre o árctico e o trópico,decifrando o mistério de estranh<strong>os</strong> dialect<strong>os</strong>,consultando as profanas escrituras, testament<strong>os</strong> eexercíci<strong>os</strong> sobre a loucuraA transição <strong>da</strong> terceira pessoa para a primeira, que deveriacorresponder a diferentes narradores, é anula<strong>da</strong> pelo assumir indiferente deacções por parte de um e de outro, o que, se f<strong>os</strong>se respeita<strong>da</strong> aver<strong>os</strong>imilhança lógica <strong>da</strong> representação ficcional, não deveria confundir-se.De notar, ain<strong>da</strong>, que este imiscuir <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz que assume ocontar <strong>da</strong> história acontece em moment<strong>os</strong> n<strong>os</strong> quais a intervençãoconfessional de memórias pessoais, alia<strong>da</strong> a uma intensificação demusicali<strong>da</strong>de, confere, pontualmente, mais ampla dimensão lírica ao poema.Refira-se ain<strong>da</strong> que, nas últimas estrofes deste longo poema, se exibee se desven<strong>da</strong> uma tripla instância narrativa, assumi<strong>da</strong> por uma mulher, umhomem e a «loucura de jeremias», numa conjugação de identificação e deexplicação <strong>da</strong> história conta<strong>da</strong> que remete a leitura para o início do poema:amei-te quanto pudesobre a terra d<strong>os</strong> antepassad<strong>os</strong>,sobre o olhar ferido <strong>da</strong> águia azteca,sobrevoandoo tempo alto e azul,atenta sobretudo à loucura de jeremias,o homem que sou.405


tudo aconteceu assim,invariavelmente na planície sufocante e na puraneve d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>,na penumbra <strong>da</strong>s tardes do Pacífico e no Golfoonde renunciám<strong>os</strong> à paixão e à vi<strong>da</strong>.conheci-tequando eras apenas o viajante sem nomea rapariga admirável de veracruz.A conjugação de identificações, aparentemente explicativa de umauni<strong>da</strong>de, mais não faz, afinal, que remeter o leitor para o desejo dedescoberta de uma nova leitura. Muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> e até d<strong>os</strong> poemas de J<strong>os</strong>éAg<strong>os</strong>tinho Baptista terminam com a abertura desta p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de circularque remete para um tempo e um espaço anteriores, por vezes ancestrais,misturando e sobrepondo memórias e referências que tanto se aproximam <strong>da</strong>factuali<strong>da</strong>de como se afastam para o plano delirante <strong>da</strong> imaginação.Talvez por isso, também, a sensuali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> ambientes se sobreponhaà corporali<strong>da</strong>de, ou mesmo, por vezes, à narrativi<strong>da</strong>de, como no poema«Travessa de São Filipe», de Canções <strong>da</strong> Terra Distante, do qualtranscrevem<strong>os</strong> algumas estrofes: 45-----------------------------------------------------------Retive o g<strong>os</strong>to <strong>da</strong>s tâmaras e do fruto do paraíso.Amei em frente uma cabeleira de trigo errante ena sua doura<strong>da</strong> exaltação<strong>os</strong> metais que refulgiam.Era uma cabeleira ondulando. Eram velas ondulandona pequena alegria.45 [1994:11 a 14]406


Crescia-se com <strong>os</strong> gerâni<strong>os</strong>, ao abandono.--------------------------------------------------------------------As manhãs repetem <strong>os</strong> sintomas <strong>da</strong> doença.Mal respiro, e o pólen faz-me enlouquecer.Um pássaro de papel cai junto à janela.A avó sobressalta-se.Agora chove nas abacates e n<strong>os</strong> araçás.Chove por dentro, diluvianamente,para sempre.A ternura escava a sua mora<strong>da</strong> subterrânea.Oculto as minhas nascentes.Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho éuma obsessão de mastr<strong>os</strong> e linhas de água.Eu era um rapaz muito cedo na primavera.Os element<strong>os</strong> que pertencem à paisagem adquirem, neste poema, umasensuali<strong>da</strong>de ou um erotismo conferid<strong>os</strong> pela sua interiori<strong>da</strong>de e apropriaçãopor parte do sujeito («Retive o g<strong>os</strong>to <strong>da</strong>s tâmaras e do fruto do paraíso. /Amei em frente uma cabeleira de trigo errante», «Era uma cabeleiraondulando. Eram velas ondulando»), e até <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> e desej<strong>os</strong> sãop<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong> por um devaneio sensual («Chove por dentro, diluvianamente»,«A ternura escava a sua mora<strong>da</strong> subterrânea», «o meu sonho é / umaobsessão de mastr<strong>os</strong> e linhas de água»).A perseguição <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de pura <strong>da</strong> infância alia-se, na poesia deJ<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista, à redescoberta imagina<strong>da</strong> d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong> longínqu<strong>os</strong>,ao visionarismo d<strong>os</strong> lugares exótic<strong>os</strong> desejad<strong>os</strong>, às imagens constantes demar e ilha, às variantes quase místicas que preenchem o narrar obsessivo <strong>da</strong>solidão do exilado. É esta sensuali<strong>da</strong>de quase cósmica que confere à sua407


poesia a constância do ritmo doce do retorno ao berço, pela musicali<strong>da</strong>deintensa do poema e pela magia encantatória <strong>da</strong> palavra.6. Carl<strong>os</strong> Nogueira FinoA poesia de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino caracteriza-se de forma marcantepela continui<strong>da</strong>de e pela complementari<strong>da</strong>de semântico-formal d<strong>os</strong> seuspoemas, o que, tal como acontecia com a escrita de J<strong>os</strong>é Ag<strong>os</strong>tinho Baptista,n<strong>os</strong> leva a poder ler ca<strong>da</strong> livro como um longo poema, que por sua vez sepode prolongar no livro seguinte, perfazendo a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> uma construçãouna a partir d<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> fragment<strong>os</strong>, ou poemas, que se movem numuniverso estético e poético familiar. Vejam<strong>os</strong> alguns excert<strong>os</strong> de Arco ePromontório: 46 contra o poema o ventree buliç<strong>os</strong>a a terrapropagandoo gérmen do teu r<strong>os</strong>toà lava do silênciode onde as tuas sílabas regressamclarassob <strong>os</strong> ded<strong>os</strong>------------------------------------------------------------penso vertigin<strong>os</strong>amente no teu corpona sôfrega emoção <strong>da</strong> lâminanas veias que a penumbra invade sem que tu46 [1997:15,, 33, 79]408


esistasn<strong>os</strong> flanc<strong>os</strong> ondeantes onde o olharse rompee penso intensamente na metamorf<strong>os</strong>ea acontecer n<strong>os</strong> sign<strong>os</strong> do meu corpoo vértice do chão onde interrompeso curso do meu nomecom a tua pura presença inacaba<strong>da</strong>o fogo no meu pulsocomo um lírioimagina que pairasrente ao solo as sílabas o rumor<strong>da</strong>s pálpebrasas pétalas <strong>da</strong> írise o teu nome desliza pelas folhasaté me perfurar a carnepel<strong>os</strong> ram<strong>os</strong>------------------------------------------------------------o delicado musgo<strong>da</strong> memóriaé a matéria-primado teu r<strong>os</strong>toA continui<strong>da</strong>de semântico-formal que enforma a narrativi<strong>da</strong>de dopoema é-n<strong>os</strong> evidencia<strong>da</strong>, entre outr<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong>, pela concatenação p<strong>os</strong>síveld<strong>os</strong> verb<strong>os</strong>, nas diversas pessoas e temp<strong>os</strong> que assumem e que dimensionama progressão de acções de um narrar. Encontram<strong>os</strong>, assim, n<strong>os</strong> excert<strong>os</strong>transcrit<strong>os</strong>, o seguinte percurso: «propagando», «regressam», «penso»,«resistas», «rompe», «penso», «acontecer», «imaginas», «pairas», «desliza»,«perfurar». A maioria destas formas verbais não veicula, habitualmente,acções concretas e palpáveis, no entanto a sua contextualização n<strong>os</strong> vers<strong>os</strong>409


proporciona uma concretude imagética apoia<strong>da</strong> pela metonímia, pelametamorf<strong>os</strong>e e pela corporização do mundo exterior («[...] a terra /propagando / o gérmen do teu r<strong>os</strong>to», «[...]as tuas sílabas regressam / claras/ sob <strong>os</strong> ded<strong>os</strong>», «o rumor / <strong>da</strong>s pálpebras / as pétalas <strong>da</strong> íris», «flanc<strong>os</strong>ondeantes onde o olhar / se rompe», «o teu nome desliza pelas folhas / atéme perfurar a carne»), o que dimensiona obsessivamente o narrarmetamórfico de uma interiori<strong>da</strong>de como, aliás, é dito no próprio poema: «epenso intensamente na metamorf<strong>os</strong>e / a acontecer n<strong>os</strong> sign<strong>os</strong> do meucorpo».Não deixa de ser relevante o facto de <strong>os</strong> últim<strong>os</strong> verb<strong>os</strong> que surgemneste conjunto de poemas de Arco e Promontório serem: «compreendo»,«[por isso] te conheço», «chegam<strong>os</strong>», «sabem<strong>os</strong>», «havem<strong>os</strong> [de aprender otempo / simultâneo]». É que o suporte <strong>da</strong> enumeração de acções, <strong>da</strong><strong>da</strong> pel<strong>os</strong>verb<strong>os</strong>, constitui o principal apoio <strong>da</strong>s cenas a narrar, <strong>da</strong>s paisagens adescrever, <strong>da</strong>s personagens a configurar, como que a trama ou o suporte doenredo de uma história que podia ser uma história de amor, uma história dopensamento ou uma história do mundo, na qual se manifesta a que<strong>da</strong> de umarco lento e aberto, desde o promontório <strong>da</strong> terra, do amor, do pensamento,<strong>da</strong> memória ou <strong>da</strong> escrita, até uma temporali<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong> no últimovers<strong>os</strong> do último poema: «por isso te revelo estas coisas / lentamente».História de amor, memórias <strong>da</strong> infância ou descrição de uma cenacaseira, a intromissão do surreal metonímico está sempre presente,impregnando <strong>os</strong> poemas, com maior ou menor força, de sonho, deimaginação, mas também de uma corporali<strong>da</strong>de que dialoga tanto com amusicali<strong>da</strong>de lenta e suave como com a liber<strong>da</strong>de formal do poema, o que sepode verificar na série de text<strong>os</strong> que compõe O Deus Familiar, 47 do qualtranscrevem<strong>os</strong> algumas estrofes de um poema:47 [2001:65]410


poema <strong>da</strong>s noites de chuvanão sei o que te diga desta chuvaque bate na janelae faz pulsar cá deste ladoa salvo<strong>os</strong> puls<strong>os</strong> dilatad<strong>os</strong>e respirar a pele um brilho sonolentoas minhas mã<strong>os</strong> no r<strong>os</strong>to são de pedra maciadessa mesmíssima que a águaimpacienteescava desde sempremas desta chuvao que é que p<strong>os</strong>so dizer-tebem vêso que me lembra a chuvaé este som de coisas enxutas para cá d<strong>os</strong> vidr<strong>os</strong>um sussurrar de lã e meias gr<strong>os</strong>sase as pernas enr<strong>os</strong>ca<strong>da</strong>s n<strong>os</strong> sofás-------------------------------------------------------------O universo poético de Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino, quer seja familiar evivencial, quer seja ancestral e mítico, adquire uma dimensão de históriasentimental e sensualmente vivi<strong>da</strong> - uma história surgi<strong>da</strong> de um vago elongínquo passado universal, mas transmiti<strong>da</strong> pela memória palpável de umcorpo que, por vezes, veicula, simultaneamente, sentid<strong>os</strong>, memórias e411


natureza, como podem<strong>os</strong> encontrar na sequência numera<strong>da</strong> d<strong>os</strong> 55 poemasque constituem (pre)meditação, 48 d<strong>os</strong> quais seleccionám<strong>os</strong> <strong>os</strong> seguintes:1não devia falar-v<strong>os</strong> destes grit<strong>os</strong>que me abrem súbit<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong> através <strong>da</strong> carnenem talvez destes braç<strong>os</strong> que se precipitam nas águasmas apenas d<strong>os</strong> mur<strong>os</strong>de pedras e raízes sobre as margens diáfanasque separam as coisasnão devia falar-v<strong>os</strong> d<strong>os</strong> pássar<strong>os</strong>nem do seu modo oblíquo de descer nas palavrasnem <strong>da</strong> nesga de azul a teimar do húmusum último diadema de esperançamas do verde perpétuo <strong>da</strong> floresta imóvelonde crescem as vozese rebentam as chagasolhaio crescimentoo medrar do sono mais que o florir <strong>da</strong>s lâmpa<strong>da</strong>s<strong>os</strong> pássar<strong>os</strong> emb<strong>os</strong>cad<strong>os</strong> na alma <strong>da</strong>s criançasas máquinas a tecer as máquinas o ardoras cicatrizes--------------------------------------------------------------------Logo nestas primeiras estrofes se reconhece uma prop<strong>os</strong>ta de temáticaque se desdobra em civilizacional e natural, avançando <strong>da</strong> quase justificaçãonega<strong>da</strong> do contar («não devia falar-v<strong>os</strong> destes grit<strong>os</strong>») para um apelo ao48 [1992:9, 33, 107]412


olhar («olhai / o crescimento»), sempre «entre <strong>os</strong> ímpet<strong>os</strong> e <strong>os</strong> mur<strong>os</strong>». 49Esta partilha entre a falsa hesitação do contador e o apelo à visão e atençãodo ouvinte mantem-se ao longo de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> poemas e sustenta a dimensãodo inefável e do onírico, <strong>da</strong><strong>da</strong> pelas metamorf<strong>os</strong>es do corpo em natureza ecenário, mesmo quando <strong>da</strong>s emoções, <strong>da</strong> mulher ou do amor se trata:13<strong>os</strong> olh<strong>os</strong>e as pirâmides d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong>plenamente me acolhes sem que um gestoedifique círcul<strong>os</strong> concêntric<strong>os</strong> nas águase aqui te afago na cintilação d<strong>os</strong> peixesa redondez do marsob as árvores obscurase assim fluente como <strong>os</strong> frut<strong>os</strong> te aceitodividi<strong>da</strong>entre <strong>os</strong> ímpet<strong>os</strong> e <strong>os</strong> mur<strong>os</strong>sobre <strong>os</strong> anéis do abrir <strong>da</strong> clari<strong>da</strong>de--------------------------------------------------------A manifesta sensuali<strong>da</strong>de que acompanha, em geral, a escrita deCarl<strong>os</strong> Nogueira Fino, adquire nestas estrofes uma forte aliança de onirismoe sexuali<strong>da</strong>de, que se manifesta regularmente em episódi<strong>os</strong> encaixad<strong>os</strong> aolongo <strong>da</strong> série de poemas, alternando com o apelo constante, e quasemístico, à sensibili<strong>da</strong>de do olhar do leitor para as contradições do mundoque o rodeia, mantendo-se em crescendo até à exortação, no final do texto:49 [1992:33]413


48tomai de mim esta espa<strong>da</strong> e esta árvoree a contracção d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> antes de explodirempaixão e sapiênciae a compreensão d<strong>os</strong> frut<strong>os</strong>perfeit<strong>os</strong> na ampla trajectóriaque <strong>os</strong> dá e que <strong>os</strong> recolhee o meu peito este chãode plasma e nebul<strong>os</strong>atomai de mimesta palavra que se busca a si mesmano espaço onde o solo e <strong>os</strong> astr<strong>os</strong> se equilibramNão encontram<strong>os</strong> nunca, como apoio cénico <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de, arepresentação clássica do sujeito rodeado pela natureza, nem, como noromantismo, o sujeito que representa o objecto e se projecta sentimental ousensualmente na natureza. Encontram<strong>os</strong>, sim, uma bem actual recuperaçãodesses valores, consegui<strong>da</strong> por um efeito muito especial de conotações<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela interpenetração quase sexual do corpo do sujeito e <strong>da</strong> natureza,do corpo do sujeito e do tempo, do corpo do sujeito e <strong>da</strong> escrita. Estassimbi<strong>os</strong>es são veicula<strong>da</strong>s ao leitor por process<strong>os</strong> metonímic<strong>os</strong> emetamórfic<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> quais não é excluído, como se verifica pela última estrofetranscrita, um processo metalinguístico de evidenciação <strong>da</strong> própria escrita.As referências à escrita podem, contudo, encontrar-se com maiorrecorrência em Segundo Livro de Ishtar, 50 devido à forte intertextuali<strong>da</strong>denele existente, visto que nele se nomeiam personagens e se reconhecemepisódi<strong>os</strong> <strong>da</strong> epopeia de Gilgamesh. Conjunto de 36 poemas, ou cant<strong>os</strong>,50 [1994]414


neste Segundo Livro de Ishtar, Carl<strong>os</strong> Nogueira Fino redimensiona ahistória, o mito e a história do mito de Gilgamesh pela abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> figura<strong>da</strong> leviana deusa Ishtar e pelo relevo <strong>da</strong>do a Uruk, nome de rei e ci<strong>da</strong>de quebaptizou a época em que apareceu a escrita. Uma sensibili<strong>da</strong>deamplificadora do fragmentário sobrepõe-se a qualquer dimensão tautológica,e o texto recriado surge como um corpo intimamente ligado ao passado e aopresente, num endomorfismo quase orgânico: 511sobre o amor apetrecho uma certa noiteno furor do poema uma furtiva sombrapela cegueira adentro e penso uruka desmedi<strong>da</strong>mil vezes arrancando o próprio coraçãopel<strong>os</strong> cabel<strong>os</strong>sobre o amor enxerto no teu sexouma haste de sílexantes <strong>da</strong> cólera transbor<strong>da</strong>r do seu arnêsde púrpurae inun<strong>da</strong>r uruka dissipa<strong>da</strong>com o incêndio <strong>da</strong>s suas mil enigmáticas lâmpa<strong>da</strong>sbran<strong>da</strong>menteloucassobre o amor o meu hausto e as concêntricas arqueaçõesd<strong>os</strong> flanc<strong>os</strong>uruk é onde o sal se transfigura na mudez violentad<strong>os</strong> antig<strong>os</strong> nomesirrespirável ar exteriorque sobe até ao sangue51 [1994:7]415


A ci<strong>da</strong>de, a sombra de Ishtar, o amor e o corpo <strong>da</strong> escrita surgem, logoneste primeiro poema, em simultâneo e como que em hibridismo, naintrodução a uma história onde o g<strong>os</strong>to salgado <strong>da</strong> sabedoria do presente «setransfigura na mudez violenta / d<strong>os</strong> antig<strong>os</strong> nomes». Ishtar, deusa e ci<strong>da</strong>de,deusa e mulher, e Uruk, rei e deus no tempo em que começou a era <strong>da</strong>escrita, confundem-se na voz actual do poema. A voz lírica do contador dehistorias não evita, na voz escondi<strong>da</strong> de outro poeta, a palavra antiga deGilgamesh, o herói, unificado o dizer pela desconstrução <strong>da</strong> armadilha dessavoz - a voz de um texto de ontem que rola em declive até àcontemporanei<strong>da</strong>de onírica <strong>da</strong> sua revisitação, mais evidente nas referênciasdirectas a Ishtar: 525ishtara <strong>da</strong>s sete mil lançaspartilha a minha ten<strong>da</strong> e o meu vinhoquando me aceita no seu ventre aplaca as lunações<strong>da</strong> iradesenha-me nas facesas insígnias <strong>da</strong> guerra-----------------------------------------------------------------8------------------------------------------------------------------ishtar era uma rocha transforma<strong>da</strong> em fonteàs vezes usava a minha vara para entontecer as águas àsvezes dilatava as veias sobre um ventre aflitoe assim eu triturava as areias no grande maquinismo do poema-----------------------------------------------------------------------------52 [1994:11, 14]416


Ishtar, feita mulher, mas com atribut<strong>os</strong> de herói e divin<strong>da</strong>de («a <strong>da</strong>ssete mil lanças», «uma rocha transforma<strong>da</strong> em fonte», «abre o seu corpo a<strong>os</strong>múltipl<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>»), contribui para marcar na actuali<strong>da</strong>de do poema opeso <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s do imaginário colectivo. Por isso, na comp<strong>os</strong>ição douniverso lírico e, por vezes, dramático, deste longo poema, encontra-se umentrelaçar do contador e <strong>da</strong> personagem conta<strong>da</strong>, do cenário com o corpo, dopassado com o presente, numa conjugação íntima com o onírico, o que tornadificilmente isoláveis tempo de memória literária e tempo de escrita, aliásreferid<strong>os</strong> no próprio poema: 5328------------------------------------------------------------------e há um espaço comume o espaço interminável do poema----------------------------------------------e escrevo com <strong>os</strong> utensíli<strong>os</strong> de gilgameshesta revelação de caduci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arqueologiaPouco a pouco, ao aproximar-se o fim do texto, contador de histórias,narrador e sujeito lírico tendem para uma unificação, como que numamística, fantástica e metamórfica delineação progressiva <strong>da</strong> natureza, dotempo, <strong>da</strong> escrita, do corpo e <strong>da</strong> len<strong>da</strong>: 5435assisto ao funeral de gilgameshdo meu corpo de pássaro----------------------------------------------53 [1994:34, 36]54 [1994:41]417


e sou já gilgamesh o despojadoo fumo do silêncio ain<strong>da</strong>raso.Tal como <strong>os</strong> adivinh<strong>os</strong> <strong>da</strong> antiga Babilónia, a poesia de Carl<strong>os</strong>Nogueira Fino p<strong>os</strong>sui o raro segredo <strong>da</strong> crença na eterna recriação d<strong>os</strong>corp<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>, <strong>da</strong>s sensações e <strong>da</strong>s emotivi<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>s vivências ed<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>, do passado e do presente, mas sempre redimensiona<strong>da</strong>s edesenha<strong>da</strong>s na sensuali<strong>da</strong>de de um corpo-natureza, sempre presente n<strong>os</strong> seuspoemas, através de uma dimensão narrativa que revivifica a tradicionalrelação lírica: eu, tu, o amor e o mundo. Se tivéssem<strong>os</strong> que limitar-n<strong>os</strong> aexplicar a sua poesia numa só frase, diríam<strong>os</strong>, talvez, que ela conta asensuali<strong>da</strong>de musical do corpo sem tempo <strong>da</strong>s metamorf<strong>os</strong>es.7. J<strong>os</strong>é Tolentino MendonçaTalvez o mais shâmane d<strong>os</strong> poetas por nós escolhid<strong>os</strong>, pela forte emarca<strong>da</strong> espirituali<strong>da</strong>de que acompanha a sua obra, J<strong>os</strong>é TolentinoMendonça escreve uma poesia na qual o sujeito mantém um estatuto deelemento intermédio entre o divino e o mundo, mas quase sempreperspectivado através de uma voz que se eleva numa pergunta, numaprocura. Este questionamento pode ter origem tanto na evocação de umapersonagem ou episódio bíblico como no contar <strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> purezaperdi<strong>da</strong> <strong>da</strong> infância quase imacula<strong>da</strong> como, ain<strong>da</strong>, na interrogação acerca418


d<strong>os</strong> episódi<strong>os</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> quotidiana, o que acontece no poema «Travessa <strong>da</strong>Infância», de Os Dias Contad<strong>os</strong>: 55Quiet<strong>os</strong> fazem<strong>os</strong> as grandes viagenstu sabessó a alma convive com as paragensestranhaslembro-me de uma janelana Travessa <strong>da</strong> Infânciaonde seguindo o rumor d<strong>os</strong> autocarr<strong>os</strong>olhei pela primeira vezo mundonão sei se poderás adivinhara secreta glória que sentipor esses diassó mais tarde descobri queo último apeadeiro de tod<strong>os</strong><strong>os</strong> autocarr<strong>os</strong>era ain<strong>da</strong> antesdo mundomas isso foimuito depoisrepitoA expressão <strong>da</strong> viagem como percurso intimamente ligado àalma, presente na primeira e nas duas últimas estrofes («só a alma convivecom as paragens / estranhas», «o último apeadeiro de tod<strong>os</strong> / <strong>os</strong> autocarr<strong>os</strong> /era ain<strong>da</strong> antes / do mundo»), articula-se através <strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção parentética55 [1990:13]419


<strong>da</strong>s restantes estrofes, as quais remetem para uma lembrança de percursoobserva<strong>da</strong> na infância, tempo no qual a viagem era vista pelo sujeito comoglori<strong>os</strong>a deslocação no espaço <strong>da</strong>s ruas. É, portanto, o contar d<strong>os</strong> dias <strong>da</strong>infância e a descrição de pormenores a eles ligad<strong>os</strong> que veicula, nestepoema, como em tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça, a mediaçãoentre corpo e alma, entre humano e divino.O poema, torna-se, portanto, lugar onde se conta o mundo mastambém lugar de questionamento místico, embebido na devoção <strong>da</strong> crençade uma iluminação divina que, no poema «Abraam», ain<strong>da</strong> de Os DiasContad<strong>os</strong>, 56 parte <strong>da</strong> evocação de cenas bíblicas:A morte não existe repetiu Abraame ain<strong>da</strong> o medo em torno <strong>da</strong> bocasitiava a revelação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deperfeita soube mais tardeAgora tem as mã<strong>os</strong> cheias de sementesde navi<strong>os</strong> <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> fund<strong>os</strong> que encantam Sarae não há mar lagoa sequeré tudo deserto(mas havias-lhe prometido a terrae uma grande descendêncialembras-Te?)Era tarde pois um fogo ardia no colo do anjoE do carvalho arqueado uma gota de orvalhoPermitia a derradeira visão <strong>da</strong>s ten<strong>da</strong>sAbraam saíu de Ur nesse dia.O episódio bíblico é em parte elidido, fragmentado, contado com aparciali<strong>da</strong>de de um narrador que introduz pormenores apt<strong>os</strong> a realçar aefabulação, quer pela aproximação <strong>da</strong>s personagens bíblicas <strong>da</strong>s56 [1990:39]420


experiências intemporais humanas («ain<strong>da</strong> o medo em torno <strong>da</strong> boca», «<strong>os</strong>olh<strong>os</strong> fund<strong>os</strong> que encantam Sara»), quer pela introdução de um desviomístico-maravilh<strong>os</strong>o («tem as mã<strong>os</strong> cheias de sementes / de navi<strong>os</strong>», «umfogo ardia no colo do anjo», «uma gota de orvalho / permitia a derr<strong>da</strong>deiravisão <strong>da</strong>s ten<strong>da</strong>s»). Mas de novo encontram<strong>os</strong> o subterfúgio do parentético,desta vez explícito, manifestando a interferência do Eu poético queinterpela, simultaneamente, Deus, a quem se dirige, e a própria história queconta. Esta é deixa<strong>da</strong> em aberto porque o relevo não é <strong>da</strong>do, afinal, aAbraam ou a Sara mas sim à dúvi<strong>da</strong> e à incompreensão que ficam entre oprometido e o proporcionado, equação desde sempre aberta entre o divino eo humano.Na poesia de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça, <strong>os</strong> paradigmas duais eop<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong> delinead<strong>os</strong> pela recorrência <strong>da</strong> expressão simultânea de crença edúvi<strong>da</strong>, aproximação e afastamento, ou perfeição e imperfeição, encontramse,por vezes, implícit<strong>os</strong> na ambigui<strong>da</strong>de de uma história ou de uma cenaque podem ser duplamente localizad<strong>os</strong> no passado bíblico ou mítico e nopresente, como no poema «A Última Corri<strong>da</strong>», de Longe Não Sabia: 57Era um rapaz que partiupara conhecer o medoo seu coração arranhado pelas chamastropeções de um cego que foge <strong>da</strong> aldeianessa noitequem conseguiria contarde combóio em pensamento seguiu para Brésciaa última corri<strong>da</strong> de aeroplan<strong>os</strong> do séculoan<strong>da</strong>va à ro<strong>da</strong> de trinta mil lirase ele queria muito voar sozinh<strong>os</strong>obre florestas------------------------------------------------------------421


O rapaz fica enfeitiçado quando vê «a sua vi<strong>da</strong> vista <strong>da</strong>queleaeroplano» e acaba por desaparecer misteri<strong>os</strong>amente:Cá em baixo diziam:«o seu voo prolonga-se sobre ca<strong>da</strong> florestae desaparecenós vem<strong>os</strong> as florestasmas não o vem<strong>os</strong> a ele»Este poema não oferece, na sua quase totali<strong>da</strong>de, umadimensão enunciativa <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de que obrigue a um intenso completarpor parte do leitor. O narrador conta <strong>os</strong> fact<strong>os</strong> com clareza, centraliza aacção numa personagem em busca de aventura, refere locais e pormenores<strong>da</strong> acção. No entanto, as dimensões mítica e simbólica entrelaçam-seimperceptivelmente, logo na primeira estrofe («o seu coração arranhadopelas chamas / tropeções de um cego que foge <strong>da</strong> aldeia»). A aventuraparece desenrolar-se adentro de parâmetr<strong>os</strong> de normali<strong>da</strong>de humana, mas denovo o maravilh<strong>os</strong>o interfere quando o rapaz verifica que vê a sua vi<strong>da</strong>quando sobrevoa as florestas. No entanto, na última estrofe, o comentárioem discurso directo plural, de voz colectiva, dimensiona uma relativização,tanto do mítico esboçado como do maravilh<strong>os</strong>o dito, ao estabelecer umparalelismo com o divino, pois a voz colectiva afirma: «nós vem<strong>os</strong> asflorestas / mas não o vem<strong>os</strong> a ele», tal como em relação a Deus.A juventude e a infância surgem, pois, na poesia de J<strong>os</strong>é TolentinoMendonça alia<strong>da</strong>s ao acto de narrar, de contar e de descrever as vivências,<strong>os</strong> dias ou <strong>os</strong> episódi<strong>os</strong>, mas em função de um permanente questionamentodo divino que, por sua vez, subentende uma interrogação acerca do própriocaminho a percorrer pel<strong>os</strong> human<strong>os</strong>. Este questionamento constante provocaa existência de uma certa fusão entre o mundo e o sujeito lírico, mesmo57 [1997:11, 12]422


quando este se distancia como narrador, procedimento que encontram<strong>os</strong> nopoema «Teorema», de Longe Não Sabia: 58Diante do espelho vê r<strong>os</strong>t<strong>os</strong> além do seue a loucura é reconhecê-l<strong>os</strong> entre <strong>os</strong> mortaisesses r<strong>os</strong>t<strong>os</strong> silenci<strong>os</strong><strong>os</strong> e esquiv<strong>os</strong>tão fácil seria chamá-l<strong>os</strong>celestesMas ela era terrena tão por terraconduzia a ondulação d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>não a entendem?Ela deixava quebrar <strong>os</strong> vas<strong>os</strong> só para <strong>os</strong> ouvirporque tudo tem uma voz mesmo as coisas mu<strong>da</strong>se o silêncio é uma ímpia forma de desobediênciaEla marcava um por umumbrais códices colherespara que tudo estivesse unid<strong>os</strong>ob o frio ordenado do visívelDe noite porém afun<strong>da</strong>va-se no lagolá adormecia----------------------------------------------------De noite dizia-se vacilante e perdi<strong>da</strong>Depois vinha o dia e a rasuraa repeti<strong>da</strong> ordenação que <strong>os</strong> acent<strong>os</strong> concedemàs palavrasa quase paixão que jamais tocava <strong>os</strong> seressempre e só a sua representaçãoNeste poema, o contar <strong>da</strong>s acções de uma personagem feminina dita«terrena» parece servir de pretexto para interrogar o divino e o silêncio pelo58 [1997:41, 42]423


qual aquele se manifesta («esses r<strong>os</strong>t<strong>os</strong> silenci<strong>os</strong><strong>os</strong> e esquiv<strong>os</strong> / tão fácilseria chamá-l<strong>os</strong> / celestes», «porque tudo tem uma voz mesmo as coisasmu<strong>da</strong>s / e o silêncio é uma ímpia forma de desobediência»). Por outro lado,o percurso entre dia, noite, e novamente dia, delineia uma op<strong>os</strong>ição queconota a noite com a obscuri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interrogação e a luz com a visibili<strong>da</strong>dedo mundo e <strong>da</strong> clarificação pela escrita. Este processo evidencia-se naúltima estrofe, no entanto men<strong>os</strong> como procura de clarificaçãometalinguística do que como afirmação de veículo de representação doinalcançável.A referência à mulher, presente em dois d<strong>os</strong> poemas citad<strong>os</strong>, éniti<strong>da</strong>mente ambígua, na medi<strong>da</strong> em que se não desenha uma mulherhumana, que ladeia um quotidiano actual. No primeiro caso, a referênciafeminina, no episódio contado, era Sara, uma personagem bíblica; nesteúltimo caso a mulher indefine-se corporalmente, sendo a sua interiori<strong>da</strong>deque coman<strong>da</strong> as acções. A exp<strong>os</strong>ição desta interiori<strong>da</strong>de encontra-se liga<strong>da</strong>ao «celeste», ao «silêncio», e à interrogação desse silêncio, por vozesprovin<strong>da</strong>s do inanimado (a quebra d<strong>os</strong> vas<strong>os</strong> e a escrita), o que faz <strong>da</strong>palavra um elo de ligação ao divino e confere à presença feminina, nestetexto como na poesia de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça, não só uma proximi<strong>da</strong>decom <strong>os</strong> anj<strong>os</strong>, intermediári<strong>os</strong> entre terreno e divino, e símbol<strong>os</strong> de purezainfantil, como também com uma integração em parábola, apenas esboça<strong>da</strong>,mas que liberta o poema de um compromisso de relação directa com ohumano existir.Talvez seja por esta dimensão empresta<strong>da</strong> à mulher, mas tambémconferi<strong>da</strong> a object<strong>os</strong> ou cenas, que a representação, na narrativi<strong>da</strong>de destespoemas, se baseia mais na construção de uma ver<strong>os</strong>imilhança do que naaproximação <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de com o real factual. Pelo mesmo motivo, oconfidenciar de lembranças de infância, tal como o confessar <strong>da</strong>interiori<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>, surgem como que ocult<strong>os</strong> pelo seu constanteredimensionar em função do místico ou do divino, como acontece no poema424


«Uma coisa a men<strong>os</strong> para adorar», de Baldi<strong>os</strong>, do qual transcrevem<strong>os</strong> asduas primeiras estrofes: 59Já vi matar um homemé terrível a desolação que um corpo deixasobre a terrauma coisa a men<strong>os</strong> para adorarquando tudo se apagaas paisagens descobrem-se perdi<strong>da</strong>sirreconciliáveisentendes por isso o meu pâniconessas noites em que volto sem razão nenhumaa correr pelo pontão de madeiraonde um homem foi morto----------------------------------------------------------Mesmo em relação à violência, à injustiça ou ao desespero que <strong>os</strong>cas<strong>os</strong> do quotidiano poderiam suscitar, a interpelação do Eu ao divino -- como se verifica neste poema - não está nunca imbuí<strong>da</strong> de revolta ou deagressão. A presença do sagrado, na poesia de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça,nasce de uma calma e quase murmura<strong>da</strong> aceitação, inquieta mas quasecúmplice («entendes por isso o meu pânico»), mesmo quando interroga, talcomo se exprimisse a pacificação necessária a um difícil mas confiantepercurso de aprendizagem, de procura, de clarificação <strong>da</strong> inquietude pura,selvagem e natural, provoca<strong>da</strong> pelo desconhecido.Esta resignação, que por vezes se exprime como um olhar sensívelmas conformado, que se lança sobre o mundo e sobre o interior de sipróprio, exterioriza-se pela afirmação d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>, <strong>da</strong>s impressões e <strong>da</strong>scenas que se gravam no «coração», como se este f<strong>os</strong>se um nódulo a partir do59 [1999b:27,28]425


qual se pudesse, simultaneamente, compreender e materializar a beleza <strong>da</strong>aliança do humano com o divino. Crem<strong>os</strong> que o mais evidente exemplodesta dimensão se encontra em A que Distância deixaste o Coração, obraque inclui poemas de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça e fotografias de VicenteMoreira Rato. 60 O livro apresenta-n<strong>os</strong> uma sequência de oito fotografias apreto e branco, segui<strong>da</strong>s de dez poemas. Curi<strong>os</strong>amente, é p<strong>os</strong>sível ler umahistória através <strong>da</strong> concatenação <strong>da</strong>s fotografias, tal como o é p<strong>os</strong>sível emrelação a<strong>os</strong> text<strong>os</strong>, estabelecendo p<strong>os</strong>teriormente novo confronto eparalelismo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de conta<strong>da</strong>.Em resumo, as fotografias contam a história do percurso de ummotorista desconhecido, ao volante de um velho carro, e d<strong>os</strong> flashes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>que o rodeia e que ele vai captando ao longo do percurso, como que emcl<strong>os</strong>e-ups fotogramátic<strong>os</strong>, desenhando, pela sua ordem de sequência, umparadigma entre o natural e o que o homem domesticou ou aprisionou. Oselement<strong>os</strong> destes paradigmas são <strong>da</strong>d<strong>os</strong> por fotografias de animais e plantas,livres e aprisionad<strong>os</strong>, terminando na magnífica fotografia de umemaranhado de galh<strong>os</strong> de árvore despid<strong>os</strong>, que tanto podem sugerir uma teiaque aprisiona e castiga como simbolizar uma tela perfura<strong>da</strong> cuj<strong>os</strong>interstíci<strong>os</strong> é necessário atravessar para alcançar o céu que se adivinha paraalém dela. Tal como a tessitura de um poema.Na n<strong>os</strong>sa leitura, <strong>os</strong> poemas que se seguem a este itinerário fotográfic<strong>os</strong>ugerem o narrar de uma viagem paralela, durante a qual se hesita entre onatural e o civilizacional, mas sempre com o objectivo de, no final <strong>da</strong>jorna<strong>da</strong>, alcançar a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de atravessar a simbólica teia de galh<strong>os</strong> deárvore, para além <strong>da</strong> qual estarão o céu, a liber<strong>da</strong>de, o coração e, talvez, odivino. Do início desta viagem fala o primeiro poema, «A casa onde àsvezes regresso»: 6160 [1998]61 [1998:25]426


A casa onde às vezes regresso é tão distante<strong>da</strong> que deixei pela manhãno mundoa água tomou o lugar de tudoreuno baldes, estes vas<strong>os</strong> guar<strong>da</strong>d<strong>os</strong>mas chove sem parar há muit<strong>os</strong> an<strong>os</strong>Durmo no mar, durmo ao lado de meu paiuma viagem se deuentre as mã<strong>os</strong> e o furoruma viagem se deu: a noite abate-se fecha<strong>da</strong>sobre o corpoTivesse ain<strong>da</strong> tempo e entregava-te o coraçãoA viagem, no poema, afirma-se desde o início como circular,simultaneamente diferente e idêntica, por entre dilúvio bíblico e pescadoresde mar. O paralelismo com as fotografias iniciais está, assim, aberto emduas dimensões concorrentes: o início de uma velha e sempre repeti<strong>da</strong>viagem, tanto pelo quotidiano retratado como pelo misticismo. Uma viagemque, quase alegoricamente, diz também um quotidiano em que <strong>os</strong> afect<strong>os</strong> senão perderam no tempo, ou não f<strong>os</strong>sem eles a mais secreta arma que guia arecuperação <strong>da</strong> pureza aprisiona<strong>da</strong> ou perdi<strong>da</strong>, segundo o poema«Murmúri<strong>os</strong> do Mar»: 62«Paga-me um cafée conto-te a minha vi<strong>da</strong>»O inverno avançavanessa tarde em que te ouviassaltado por doreso céu quebrava-se a<strong>os</strong> dispar<strong>os</strong>62 [1988:27, 28]427


de uma criança muito assusta<strong>da</strong>que corriao vento batia-lhe no r<strong>os</strong>to com violênciaa infância inteiradisso me lembroOutra noite cortaste o sono <strong>da</strong> casacom frio e medoapagavas cigarr<strong>os</strong> nas palmas <strong>da</strong>s mã<strong>os</strong>e <strong>os</strong> que te viam choravam----------------------------------------------«Pago-te um café se me contareso teu amor»Poema de circular troca de afect<strong>os</strong> e de viagens no tempo, no qual asimagens violentas <strong>da</strong> infância se desfazem numa calma e melancólicapermuta («Paga-me um café e conto-te / a minha vi<strong>da</strong>», «Pago-te um café seme contares / o teu amor»). Tal como <strong>os</strong> animais aprisionad<strong>os</strong> de duas <strong>da</strong>sfotografias iniciais, não deixa de manifestar-se neste poema a marcaambígua, ain<strong>da</strong> que pontual, do sofrimento ligado a um mito <strong>da</strong>religi<strong>os</strong>i<strong>da</strong>de («apagavas cigarr<strong>os</strong> nas palmas <strong>da</strong>s mã<strong>os</strong>») mas apaziguadopela redenção apaziguadora <strong>da</strong>s lágrimas («e <strong>os</strong> que te viam choravam»).Assim se conta, simultaneamente, a fala do tempo, a fala d<strong>os</strong> afect<strong>os</strong> e a fala<strong>da</strong>s crenças, até à última fotografia, até ao último poema, «A presença maispura»: 63Na<strong>da</strong> no mundo mais próximomas aqueles a quem negam<strong>os</strong> a palavrao amor, certas enfermi<strong>da</strong>des, a presença mais puraouve o que diz a mulher vesti<strong>da</strong> de solquando caminha no cimo <strong>da</strong>s árvores428


«a que distância <strong>da</strong> língua comum deixasteo teu coração?»A altura desespera<strong>da</strong> do azulno teu retrato de adolescente há centenas de an<strong>os</strong>a extinção d<strong>os</strong> líri<strong>os</strong> no jardim municipalo mar desta baía em ruínas ou se quiseres<strong>os</strong> sac<strong>os</strong> de supermercado que se expandem nas gavetasas conversas ain<strong>da</strong> surpreendentemente escolaressoletra<strong>da</strong>s em família-------------------------------------------------------Ouve o que diz a mulher vesti<strong>da</strong> de solquando caminha no cimo <strong>da</strong>s árvores«a que distância deixasteo teu coração?»Neste poema se completa a circulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> viagem e secomplementam temáticas recorrentes como a do silêncio e a <strong>da</strong> palavra; a<strong>da</strong>s memórias de infância e a do quotidiano; a <strong>da</strong> interrogação constante e ado silêncio <strong>da</strong> resp<strong>os</strong>ta divina, reuni<strong>da</strong>s pela proximi<strong>da</strong>de do «coração» e d<strong>os</strong>om <strong>da</strong> palavra etérea <strong>da</strong> mulher que atravessou a teia sombria de galh<strong>os</strong> deárvore <strong>da</strong> última fotografia e surge em aparição de fé no último poema,«vesti<strong>da</strong> de sol / quando caminha no cimo <strong>da</strong>s árvores».Misticismo, alegoria, tempo, infância, quotidiano e calma melancoliaentrecruzam-se na poesia de J<strong>os</strong>é Tolentino Mendonça numa dimensão quetoma a leve tonali<strong>da</strong>de bíblica uniformizadora d<strong>os</strong> pequen<strong>os</strong> crom<strong>os</strong> desant<strong>os</strong> - sant<strong>os</strong> que se guar<strong>da</strong>vam n<strong>os</strong> missais e com <strong>os</strong> quais só as criançasbrincavam, com uma construção imaginária bem inusual n<strong>os</strong> adult<strong>os</strong>, comum valor narrativo diferente, mas com a intensi<strong>da</strong>de de uma forçareferencial que se não prende muito a nex<strong>os</strong> de causali<strong>da</strong>de ou completude,63 [1998:43,44]429


embora p<strong>os</strong>sam estabelecer entre eles uma espécie de m<strong>os</strong>aico narrativo,nunca isento do lirismo que distingue o autor.430


CONCLUSÃOAo longo desta dissertação procurám<strong>os</strong>, primeiramente, interrogar ateoria e a poesia numa atitude de cruzamento entre p<strong>os</strong>ições teóricas sobre apoesia e prática literária <strong>da</strong> poesia, no sentido de verificar até que ponto, nodiscurso teórico e no discurso <strong>da</strong> poesia se detectaria uma mútuaoperacionali<strong>da</strong>de. Avançám<strong>os</strong>, segui<strong>da</strong>mente, e de modo progressivo, parauma tentativa de articulação <strong>da</strong> problemática do cânone e do pósmodernismona sua relação, tanto de aproximação como de afastamento,com parâmetr<strong>os</strong> que observám<strong>os</strong> serem caracterizadores <strong>da</strong> prática <strong>da</strong>poesia portuguesa mais recente, o que n<strong>os</strong> conduziu a uma aproximaçãomais directamente localiza<strong>da</strong> no que respeita à presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>deno poema. Esta detecção, por sua vez, levou-n<strong>os</strong> a abor<strong>da</strong>r relaçõesp<strong>os</strong>síveis entre construções interactivas <strong>da</strong> narrativa e <strong>da</strong> lírica no corpo dopoema - por isso procurám<strong>os</strong> verificar as temáticas e configuraçõesenunciativas pelas quais se manifestava a determinação <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de nalógica de criação ficcional narrativa do poema, e suas interpenetraçõeslíricas. O n<strong>os</strong>so trabalho teve, pois, em mente, durante todo o seu percurso,uma tentativa de reabilitação do convívio entre teoria e poesia e entrepoesia e narrativa, que contemplasse alguns aspect<strong>os</strong> do confronto entremanifestações teóricas e seus correlat<strong>os</strong> presentes na prática literária, e viceversa.Começám<strong>os</strong> por abor<strong>da</strong>r sucintamente várias correntes teóricas d<strong>os</strong>éculo vinte, procurando reter o que nelas permitia uma visão pluralmente431


descritiva <strong>da</strong> poesia. Aproximám<strong>os</strong>, em paralelo e em alternância, o dizerteórico e o dizer <strong>da</strong> poesia pela voz d<strong>os</strong> poemas, por n<strong>os</strong> parecer que an<strong>os</strong>sa primeira interrogação deveria dizer respeito à preocupação crescenteque <strong>os</strong> poetas manifestam n<strong>os</strong> seus poemas em relação ao reivindicar deuma palavra metalinguística acerca do que para eles é a poesia, em term<strong>os</strong>paralel<strong>os</strong> com o discurso teórico. Procurám<strong>os</strong>, portanto, constatar edescrever ocorrências dominantes e não inferir tipologias ou sistematizarquaisquer regras.Verificám<strong>os</strong>, assim, que <strong>os</strong> poetas, mesmo quando utilizampontualmente terminologia liga<strong>da</strong> à teoria, mantêm geralmente umainstância crítica, exploratória, produtiva e descritiva que aceita - ao contráriod<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> - uma abertura e uma flexibili<strong>da</strong>de em relaçãoà importância <strong>da</strong> descrição do literário que lhes confere uma dimensãodescritiva e crítica, mas subjectiva, a qual empresta ao dizer <strong>da</strong> poéticamaiores p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des de acompanhamento de renovações, explorações eliber<strong>da</strong>des concomitantes com o fazer literário. É à literatura ( e neste casoà poesia) que também compete revelar as suas p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>des econfigurações, acompanhando o dizer <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças, <strong>da</strong>s evoluções e <strong>da</strong>sexperiências no mesmo plano temporal e físico <strong>da</strong> sua realização, a par coma teoria e a crítica, domíni<strong>os</strong> que, aliás, tendem a aproximar-se.Assim, para escapar ao impasse de uma teoria que pouco desce àvertente descritiva <strong>da</strong> prática textual, julgám<strong>os</strong> relevante abor<strong>da</strong>r o modocomo <strong>os</strong> poetas falam <strong>da</strong>s suas próprias novas experiências, confrontando-ascom a equivalência desse dizer n<strong>os</strong> p<strong>os</strong>icionament<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong>. Assimprocedem<strong>os</strong> porque, se a teoria se dá conta de mu<strong>da</strong>nças cronológicas (oque implica a diacronia <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de no tempo de dois term<strong>os</strong>comparativ<strong>os</strong>), só <strong>os</strong> poetas se dão conta <strong>da</strong>s transformações (queimplicam moviment<strong>os</strong> adentro de uma sincronia de contigui<strong>da</strong>de).Querem<strong>os</strong> com isto salientar, apoiad<strong>os</strong> no confronto apresentado sobretudon<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> três capítul<strong>os</strong> deste trabalho, que a ver<strong>da</strong>deira transformaçãodo pensar sobre a poesia, hoje, estará na subjectivi<strong>da</strong>de com que a pensam e432


dizem <strong>os</strong> poetas e na permuta de subjectivi<strong>da</strong>des que <strong>da</strong>í poderá advir, demodo mais eficaz, em relação à teoria e à crítica.Os poetas falam <strong>da</strong> poesia com o prazer de quem está consciente departicipar mais numa transformação do que numa mu<strong>da</strong>nça. Um exemplodesta atitude pode ser constatado quando se observa que boa parte <strong>da</strong> poesiade muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> poetas mais recentes se delineia e se movimenta, não porop<strong>os</strong>ição ao pós-modernismo, mas sim «com» e «apesar do já feito» no pós--modernismo. A poesia é, acima de tudo, uma vivência cujas flutuantesdefinições ou indefinições passam, primordialmente, por ser estéticas e,como tal, a sua sempre utópica definição passará, forç<strong>os</strong>amente, pelafluidez subjectiva de um diálogo de recriação activa e descriçãointerpretativa, tanto por parte do poeta como do crítico ou do teórico,funcionando a fala <strong>da</strong> poesia como complemento <strong>da</strong> fala teórico-crítica, evice-versa.Nesses primeir<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong>, através do confronto experimental directoentre a voz <strong>da</strong> teoria e a voz <strong>da</strong> poesia, pretendem<strong>os</strong> demonstrar, por umlado, a valorização de uma perspectiva teórica não modelar e, por outrolado, salientar que uma interacção entre a plurali<strong>da</strong>de teórica (que exprime aimp<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de definição de poesia) e a plurali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz d<strong>os</strong> poemasque falam sobre poesia (e que definem poesia não a definindo), se compõede uma diversa plurali<strong>da</strong>de de vozes interactivas.A voz <strong>da</strong> teoria pronuncia-se, pois, no campo de um utópicoentendimento no qual to<strong>da</strong>s as peças do jogo têm de funcionar; a voz d<strong>os</strong>poetas manifesta n<strong>os</strong> poemas o dizer <strong>da</strong> peça do jogo que sentem queconfiguram. Uma nova relação de complementari<strong>da</strong>de se entrevê entre aaparente ordem teórica e o aparente ca<strong>os</strong> <strong>da</strong> prática literária Crem<strong>os</strong> queessa relação de complementari<strong>da</strong>de se perspectiva no âmbito de um dizersubjectivo, no qual reside o apontar de um caminho conciliador deoperacionali<strong>da</strong>de entre a teoria, a crítica, e a poesia.433


A p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong>de de conciliação d<strong>os</strong> paradigmas de ordem e de ca<strong>os</strong>conduz, quando observa<strong>da</strong>, a um caminho que supera o impasse pelanegação simultânea <strong>da</strong> teórica ordem <strong>da</strong> reflexão sobre a mu<strong>da</strong>nça e <strong>da</strong> novapoética desordem <strong>da</strong> autoconsciência do movimento. Esta mesma p<strong>os</strong>sívelconciliação de paradigmas se observou, já n<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong> seguintes, nadetecção <strong>da</strong> lógica de criação ficcional narrativa no texto com componentelírica, veicula<strong>da</strong> pela abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesiaportuguesa mais recente.Uma inevitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> narrativa é que, n<strong>os</strong> seus mund<strong>os</strong> imaginad<strong>os</strong>,configurad<strong>os</strong> e representad<strong>os</strong>, em geral pouco lugar se abre para integraruma focalização dominante e enfática do Eu e <strong>da</strong> sua confessa<strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de e interiori<strong>da</strong>de. Crem<strong>os</strong> que destes fact<strong>os</strong> resulta a dificul<strong>da</strong>deem estabelecer um elo integrador que alicerce a simultanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença,no mesmo texto, de element<strong>os</strong> configuradores tanto <strong>da</strong> poesia lírica como <strong>da</strong>poesia narrativa, sobretudo quando as manifestações <strong>da</strong> última dominam opoema.A partir d<strong>os</strong> poemas por nós observad<strong>os</strong>, crem<strong>os</strong> poder afirmar que ouso <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poema solicita uma intervenção lírica, pormenor que ela seja, através de element<strong>os</strong> de configuração discursiva outemática, de modo a emprestar à lógica de representação ficcional narrativaa subjectivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dimensão lírica. A n<strong>os</strong>sa observação desta presençaconduziu-n<strong>os</strong> à verificação de alguns procediment<strong>os</strong> de interferência entrelírica e narrativa na poesia portuguesa mais recente. Tais mecanism<strong>os</strong>manifestam-se no poema com diversi<strong>da</strong>de modelar e temática, facto quecomprova um desejo de ir ao encontro <strong>da</strong> transformação e, provavelmente,até, num caminho <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça tanto do fazer <strong>da</strong> poesia lírica como do <strong>da</strong>narrativa..Uma explicação para estes fact<strong>os</strong> poderá residir numa toma<strong>da</strong> deconsciência de que a narração oral está na origem <strong>da</strong> literatura, e continuaráa acompanhá-la, porque cria e recria mund<strong>os</strong> ficcionais à imagem esemelhança <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de com que convive o seu narrador. A escrita de434


narrativas continuará a criar e a recriar mund<strong>os</strong> ficcionais à imagem esemelhança <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de d<strong>os</strong> mund<strong>os</strong> d<strong>os</strong> seus escritores. A narrativi<strong>da</strong>dena poesia actual, contudo, não se dimensiona apenas a partir de umentendimento <strong>da</strong> narrativa tal como era concebi<strong>da</strong>, por exemplo, na épica ouno romance d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong> dezoito e dezanove; no entanto mantém essadimensão de omnipotência. A enunciação que confere narrativi<strong>da</strong>de aopoema, conforme verificám<strong>os</strong>, tem uma construção e uma funcionali<strong>da</strong>debem diversa <strong>da</strong> diegese <strong>da</strong> épica ou do romance. Ela assenta no descontínuo,no fragmentário, nas cenas e descrições pictóricas mais que na continui<strong>da</strong>delógica de uma história, apontando fragment<strong>os</strong> a completar, como se deminúsculas partículas de cristal se tratasse, cuja reverberação na leituraconfigurasse a lógica discursiva de uma oculta ou incompleta, mas p<strong>os</strong>sível,diegese.É por isso que a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesamais recente, por nós observa<strong>da</strong>, vive, simultaneamente de uma muito fortereferenciali<strong>da</strong>de - tão forte que muitas vezes a acompanha, comoverificám<strong>os</strong>, uma dimensão metonímica ou metamórfica que funciona,geralmente, como veículo de equilíbrio lírico na narrativi<strong>da</strong>de do poema.Uma sup<strong>os</strong>ta uni<strong>da</strong>de narrativa só é consegui<strong>da</strong> pelo acto de leitura. Sãoestas algumas <strong>da</strong>s principais características, por nós observa<strong>da</strong>s, quediferenciam o poema narrativo tradicional e <strong>os</strong> poemas n<strong>os</strong> quais seevidencia a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia. Assim, crem<strong>os</strong> poderconcluir que a narrativi<strong>da</strong>de, pontua<strong>da</strong> pelo lirismo, confere ao poemaapenas uma tonali<strong>da</strong>de narrativa.Na reali<strong>da</strong>de, reparám<strong>os</strong> que, no processo ficcional enunciativo <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de no poema, está implicado o cruzamento de múltiplasconvenções literárias: a configuração narrativa não é tradicional, no entantoreordena tradições modelares e temáticas do passado - paradigmas que sediferenciam, por exemplo, <strong>da</strong> destruição <strong>da</strong> ordem representa<strong>da</strong> por um pósmodernismodemasiado obcecado pelo aproveitamento <strong>da</strong>s tradições dopassado para dispor delas como instrumento construtor de liber<strong>da</strong>de de435


escolha. Como pudem<strong>os</strong> observar, tanto n<strong>os</strong> poetas portugueses queabordám<strong>os</strong> como n<strong>os</strong> do movimento <strong>da</strong> Expansive Poetry (capítulo V), amais recente atitude é aquela que utiliza o passado literário como mundoinstrumental à sua disp<strong>os</strong>ição, pois tanto são utiliza<strong>da</strong>s as formastradicionais, como o verso livre, em função <strong>da</strong> coerência temática e d<strong>os</strong>objectiv<strong>os</strong> pragmátic<strong>os</strong> do poema, como instrument<strong>os</strong> que o passado deixouao seu dispor - e não com intuito transformador -, inserindo-<strong>os</strong> como um d<strong>os</strong>procediment<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> que configuram o suporte <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de d<strong>os</strong>seus poemas.Para encontrar um caminho aberto ao futuro há que questionar aordem do passado e a desordem <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de, mas coordenando-<strong>os</strong> epreservando a integri<strong>da</strong>de e coerência <strong>da</strong> antiga ordem e <strong>da</strong> nova desordem(que será, eventualmente, uma nova antiga ordem, no futuro). Assim, anarrativi<strong>da</strong>de no poema permite, como constatám<strong>os</strong>, tanto assumir a novaatitude de contar a actuali<strong>da</strong>de, com o seu mundo banal, vivencial,quotidiano, como, além disso, um novo modo de historiar o passado, com assuas vivências míticas, históricas e culturais, num procedimento paralelocom aquele que permite ao leitor encontrar a ordenação de uma históriaapenas esboça<strong>da</strong> ou <strong>da</strong> qual apenas lhe é ofereci<strong>da</strong> uma cena, a completar.Por vezes, a narrativi<strong>da</strong>de evoca uma efabulação romanesca cuja forçade representação é liricamente sustenta<strong>da</strong> pela musicali<strong>da</strong>de, que por suavez frequentemente se apoia em process<strong>os</strong> enunciativ<strong>os</strong> ou em model<strong>os</strong>tradicionais. Outras vezes, a narrativi<strong>da</strong>de surge acompanha<strong>da</strong> por vozesque proferem as palavras de uma linguagem simples e clara, na qualtambém se pode intrometer um metafórico silêncio que empresta àcomponente narrativa uma maior dimensão de afastamento, na sua conexãoentre a factuali<strong>da</strong>de e a ficcionali<strong>da</strong>de, e que redimensionam o poema pelaconstrução de uma poética metonímica ou de escassez que solicita umaprojecção para além <strong>da</strong> lineari<strong>da</strong>de do contar.436


A narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa mais recente é teci<strong>da</strong>, pois,tanto de clareza e previsibili<strong>da</strong>de como de incompletude e incerteza,mas avança ao encontro do seu leitor com a certeza de que não é essencialuma sua hipotética continui<strong>da</strong>de ou um seu lógico desven<strong>da</strong>mento para quesurja no desenho do poema a evocação de uma história. Tal como umquadro vivo que pode, pelas suas sugestões, narrar o quotidiano individual ecolectivo ou a história do homem, a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de no poemacontém o poder emocional e convocatório d<strong>os</strong> dramas ou d<strong>os</strong> jog<strong>os</strong> <strong>da</strong>infância: o prazer de inventar o que já é conhecido, através <strong>da</strong>fragmentari<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> incompletude de uma narrativa pontua<strong>da</strong> comcompass<strong>os</strong> líric<strong>os</strong>, oferecendo ao leitor o prazer, sempre diferido, semprerenovado, de completar uma história.Em vez de instituir uma falha ou uma quebra na dimensão lírica dopoema, a narrativi<strong>da</strong>de, tal como a usam <strong>os</strong> poetas mais recentes, pode servista como um subterfúgio para prolongar o processo de narrar e, com ele, oprazer de reencontrar no poema, simultaneamente, a clareza <strong>da</strong> narrativa eo sentimento de uma confissão lírica, configurando uma montagemfotogramática de mund<strong>os</strong> e a abertura de uma diversa cumplici<strong>da</strong>de entrepoeta e leitor.A narrativi<strong>da</strong>de, na poesia portuguesa mais recente, empresta aopoema, seja ele breve ou longo, uma rapidez de progressão tal que essamesma progressão acaba por submeter-se à predicação do futuro, pedindouma continui<strong>da</strong>de, deixando lacunas para serem imagina<strong>da</strong>s, moment<strong>os</strong> devi<strong>da</strong> para viver. Contudo, a presença <strong>da</strong> narrativi<strong>da</strong>de na poesia fingesempre o lugar de uma narrativa, e é justamente pela incompletude deste seufingimento, pontual, tradicionalmente op<strong>os</strong>to à objectivi<strong>da</strong>de do homemcomo ser colectivo, que contribuirá, p<strong>os</strong>sivelmente, para abrir caminho àexistência de um diálogo entre subjectivi<strong>da</strong>des, tanto em relação à teoria,como à crítica, como a<strong>os</strong> poetas e seus leitores, sobretudo quando dirigi<strong>da</strong>pragmaticamente ao mundo quotidiano, mas sem deixar de reflectir sobre siprópria, sem deixar de contemplar uma eventual dimensão lírica, essencial437


também à sua sobrevivência. A interrogação do poema não existe para serrespondi<strong>da</strong> apenas no simples confronto de uma leitura, porque determina epede sempre uma aproximação a ser pensa<strong>da</strong>, questiona<strong>da</strong>, senti<strong>da</strong> edescrita, mas com sensibili<strong>da</strong>de, emoção e imaginação, por leitores, porpoetas, por crític<strong>os</strong> e por teóric<strong>os</strong>.Vivem<strong>os</strong> numa socie<strong>da</strong>de que renega a morte e, de certo modo,contar uma história é esconjurar a morte. Crem<strong>os</strong> que a poesia,sobretudo quando portadora simultânea de narrativi<strong>da</strong>de e de lirismo, apontao caminho infinitamente alegórico e vivaz que ultrapassa a ideia de finitude,detendo, também, a aproximação <strong>da</strong> morte. Quanto mais a poesia seaproximar dessa esconjuração <strong>da</strong> morte, pela efabulação na voz d<strong>os</strong>nov<strong>os</strong> shâmanes, mais poderá transmitir, numa quase anulação de distãnciaexterna, a fórmula mágica <strong>da</strong> identificação com o seu leitor, como se foraum manifesto em defesa <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> emoção, <strong>da</strong> imaginação.438


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ANEXO1


1. CONJUNTURA2


OBSERVAÇÃO DE PUBLICAÇÕES DE AUTORENTRE 1990 e 1995A observação de um corpus que se pretendeu bastanteexaustivo, com vista a detectar dominantes temáticas e enunciativasno fazer poético <strong>da</strong>s publicações de poesia de autor, 1 em Portugal, noúltimo decénio do século vinte, centralizou-se n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> noventa anoventa e cinco, temporali<strong>da</strong>de necessária a permitir aliar a estainvestigação um trabalho informático e estatístico.Não pretendem<strong>os</strong> apresentar um estudo que conduzisse a umaredutibili<strong>da</strong>de do texto literário à abstracção numérica de umaperformance matemática, mas antes servir-n<strong>os</strong> de procediment<strong>os</strong>empíric<strong>os</strong> que p<strong>os</strong>sibilitassem a consciencialização de linhas deevolução de dominantes temáticas e enunciativas, projecta<strong>da</strong>s emplan<strong>os</strong> entrecruzad<strong>os</strong> de espaço e tempo. Não foi, pois, n<strong>os</strong>soobjectivo inventariar hipotéticas certezas, mas antes abrir um caminhoà verificação <strong>da</strong>s realizações existentes e à interrogação detendências, perspectivando-as num contínuo temporal, através de umprocedimento de contacto com um número de text<strong>os</strong> cujo tratamentonoa não limitasse à n<strong>os</strong>sa intuição de leitores e permitisse maiorsegurança e pertinência numa p<strong>os</strong>terior interrogação individual dealguns desses text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong>.Ressalvam<strong>os</strong> o carácter auxiliar do estudo do mencionadocorpus na medi<strong>da</strong> em que n<strong>os</strong> serviu não só como meio de contactoíntimo com a produção poética, mas também como instrumento de1 Adoptám<strong>os</strong> o uso <strong>da</strong> expressão «publicações de autor» para designar as primeirasedições assumi<strong>da</strong>s por autor único, deixando de lado as «antologias» e as«reedições».3


orientação para um trabalho que, por ter como objecto de interrogaçãoa poesia, se orienta também por critéri<strong>os</strong> e vivências forç<strong>os</strong>amentesubjectiv<strong>os</strong> e nascid<strong>os</strong> <strong>da</strong> experiência pessoal <strong>da</strong> poesia, o queempresta uma deseja<strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de ao rigor de um estudo cujoobjecto é a poesia.Relevam<strong>os</strong> o facto de o estudo estatístico ter tido comoobjectivo a confirmação <strong>da</strong> intuição de vertentes temáticas eenunciativas do fazer poético através de um procedimento científicomais rigor<strong>os</strong>o que um mero e muito falível saber intuitivo. Nãopretendem<strong>os</strong>, pois, seguir um estudo «matemático-estatístico» - nemtal teria sentido quando se fala de poesia – pretendendo antes partir deum método que n<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sibilitasse, com maior acui<strong>da</strong>de, conhecer eorganizar <strong>da</strong>d<strong>os</strong>, seleccionar dominantes e interesses e partir parainterrogações. Foi, inclusivamente, a partir deste rigor matemáticoque n<strong>os</strong> consciencializám<strong>os</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de reflectir sobre <strong>os</strong> text<strong>os</strong>de poesia sob uma perspectiva men<strong>os</strong> determina<strong>da</strong>, a princípio, pelaemoção de uma aproximação de ca<strong>da</strong> texto mas, ao mesmo tempo,sem dessa emoção p<strong>os</strong>teriormente prescindir.O n<strong>os</strong>so corpus partiu de uma observação comparativa <strong>da</strong>slistagens de publicações de poesia disponibiliza<strong>da</strong>s pela BibliotecaNacional e pela Associação Portuguesa de Editores e Livreir<strong>os</strong>,completa<strong>da</strong>s com o inventário do Depósito Legal <strong>da</strong> DirecçãoRegional d<strong>os</strong> Assunt<strong>os</strong> Culturais <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>. Articula<strong>da</strong>s ecolmata<strong>da</strong>s por nós, dentro d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de que dispúnham<strong>os</strong>, as lacunas<strong>da</strong>s três listagens, e elabora<strong>da</strong> uma listagem única mais completa,procedem<strong>os</strong> à sua observação.Interessou-n<strong>os</strong>, como objectivo principal na observação docorpus, detectar parâmetr<strong>os</strong> relevantes do fazer <strong>da</strong> poesia quepudessem revelar-se como indicadores de homologias relacionáveis4


com a manutenção de model<strong>os</strong> e cânones, antig<strong>os</strong> e hodiern<strong>os</strong>, não sópresentes na escrita de poetas contemplad<strong>os</strong> com a atenção <strong>da</strong> crítica,d<strong>os</strong> académic<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> media ou d<strong>os</strong> grandes centr<strong>os</strong> culturais, mastambém presentes na manifestação subterrânea do fazer literário depoetas considerad<strong>os</strong> menores ou desconhecid<strong>os</strong> e que nem por issodeixam de manifestar na sua escrita o uso e, portanto, a manutenção,d<strong>os</strong> referid<strong>os</strong> model<strong>os</strong> e cânones.Os parâmetr<strong>os</strong> <strong>da</strong> observação foram surgindo a partir <strong>da</strong> leiturad<strong>os</strong> text<strong>os</strong>, requerendo, por isso, inicialmente, ajustament<strong>os</strong> adicionaisvári<strong>os</strong> que se estabilizaram, contudo, na sua ocorrência repetitiva,após as primeiras dezenas de exemplares observad<strong>os</strong> e relid<strong>os</strong>.Crem<strong>os</strong> ain<strong>da</strong> dever relevar que a observação fragmentária <strong>da</strong>ocorrência de parâmetr<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> com a forma, bem como deparâmetr<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong>, se deveu a uma necessi<strong>da</strong>de de sistematizaçãometodológica cuja artificial separação se recupera na p<strong>os</strong>teriorabor<strong>da</strong>gem individual de text<strong>os</strong>.A leitura d<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> observad<strong>os</strong> foi feita, inicialmente,em função d<strong>os</strong> totais absolut<strong>os</strong>, procedendo-se p<strong>os</strong>teriormente a umasua articulação com as regiões de edição e com uma leiturapercentual, a que mais n<strong>os</strong> permitiu articular uma progressãotemporal, de modo a permitir-n<strong>os</strong> <strong>da</strong>r conta de uma evoluçãocomparativa, de modo a revelar e a relevar parâmetr<strong>os</strong> cujaabrangência e dominância de uso, bem como pela progressão <strong>da</strong> suamanutenção temporal, n<strong>os</strong> conduzissem a restringir e seleccionartext<strong>os</strong> que dessem conta dessas dominantes de uso do fazer poético noúltimo decénio do século vinte. Os resultad<strong>os</strong> desta investigaçãocontribuiram, também, para fun<strong>da</strong>mentar a pertinência <strong>da</strong> n<strong>os</strong>saescolha de interrogar, mais particular e minuci<strong>os</strong>amente, a presença <strong>da</strong>narrativi<strong>da</strong>de na poesia portuguesa mais recente.5


2. GRÁFICOS6


ERRATAPor lapso, foram omitid<strong>os</strong> <strong>da</strong> bibliografia <strong>os</strong> seguintes títul<strong>os</strong>:BIBLIOGRAFIA (OBRAS LITERÁRIAS)FINO, Carl<strong>os</strong> Nogueira. Contemplação do Olhar. Ed. Cadern<strong>os</strong> Ilha, Funchal,1992.GUSMÃO, Manuel. Mapas O Assombro A Sombra. Ed. Caminho, Lisboa, 1996.HUGINS, Andrew. Saints and Strangers. Ed. The Overlook Press, Michigan, 1989(1ªed. 1985).MACEDO, Maria Eulália. As mora<strong>da</strong>s terrenas. Ed. Autor, Braga, 1994.MEXIA, Pedro. Eliot e Outras Observações. Ed. Gótica, Lisboa, 2003.BIBLIOGRAFIA (TEORIA E CRÍTICA)BRIK, O. Ritmo e Sintaxe. Ed. PUC, São Paulo, 1978.DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. Ed. Johns Hopkins University Press,Baltimore e Londres, 1997 (1ªed. 1967).EVEN-ZOHAR, Itamar. La funcción de la literatura en la creación de las nacionesde Europa. Ed. Els Marges, Barcelona, 1994.HOLUB, R. C. Reception Theory - a critical introduction. Ed. Methuen, NewYork, 1985.IGLESIAS SANTOS, Montserrat. Teoría de l<strong>os</strong> polissistemas. Ed. Arco, Madrid,1999 (1ªed. 1994).JOHNSON, Barbara. Essays on the Contemporary Rhetoric of Reading. Ed. JohnsHopkins University Press, Baltimore e Londres, 1990.OSTRIKER, Alicia. «Beyond Confession: The Poetics of P<strong>os</strong>tmodern Witness»,in After Confession - poetry as autobiography. Org. KateSontag & David Graham, Ed. Graywolf Press, Saint Paul,Minnesota, 2000.SCHAEFER, Jean-Marie. Qu´est-ce qu´un genre littéraire?. Ed. du Seuil, Paris,1989.SEARLE, John S. Speech Acts. Ed. Cambridge University Press, UK, 1986 (1ªed.1969).SHKLOVSKY, Victor. Art as Technique. Ed. University of Nebrasca Press,Nebrasca, 1965.

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