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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ... - IESC/UFRJ

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<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DO</strong> <strong>RIO</strong> <strong>DE</strong> <strong>JANEIRO</strong>CENTRO <strong>DE</strong> CIÊNCIAS DA SAÚ<strong>DE</strong>INSTITUTO <strong>DE</strong> ESTU<strong>DO</strong>S <strong>DE</strong> SAÚ<strong>DE</strong> COLETIVAANA PAULA CAR<strong>DO</strong>ZO DA ROSAUMA PEDIATRIA <strong>DO</strong> CUIDA<strong>DO</strong> CURATIVOANÁLISE REFLEXIVA SOBRE A IMPORTÂNCIA <strong>DO</strong>AFETO E <strong>DO</strong> PSIQUISMO NA PRÁTICA DA TERAPIAINTENSIVA PEDIÁTRICA E NEONATALOrientador:PROF. DR. ANDRÉ MARTINSRio de Janeiro2010


<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DO</strong> <strong>RIO</strong> <strong>DE</strong> <strong>JANEIRO</strong>CENTRO <strong>DE</strong> CIÊNCIAS DA SAÚ<strong>DE</strong>INSTITUTO <strong>DE</strong> ESTU<strong>DO</strong>S <strong>DE</strong> SAÚ<strong>DE</strong> COLETIVAUMA PEDIATRIA <strong>DO</strong> CUIDA<strong>DO</strong> CURATIVOANÁLISE REFLEXIVA SOBRE A IMPORTÂNCIA <strong>DO</strong>AFETO E <strong>DO</strong> PSIQUISMO NA PRÁTICA DA TERAPIAINTENSIVA PEDIÁTRICA E NEONATALANA PAULA CAR<strong>DO</strong>ZO DA ROSADissertação de Mestrado em SaúdeColetiva apresentada como requisitoparcial para obtenção do título demestre em Saúde Coletiva.Orientador:PROF. DR. ANDRÉ MARTINSRio de Janeiro2010


UMA PEDIATRIA <strong>DO</strong> CUIDA<strong>DO</strong> CURATIVOANÁLISE REFLEXIVA SOBRE A IMPORTÂNCIA <strong>DO</strong> AFETO E <strong>DO</strong>PSIQUISMO NA PRÁTICA DA TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA ENEONATALDissertação de mestrado em Saúde Coletiva desenvolvida no Instituto de Estudos deSaúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Banca examinadora______________________________________________________________________Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho (DMP- FM/<strong>IESC</strong>/<strong>UFRJ</strong>)______________________________________________________________________Prof. Dr. Nahman Armony (UNESA)______________________________________________________________________Prof. Dr. Antônio José Ledo Alves da Cunha (IPPMG-FM/<strong>UFRJ</strong>)


R788Rosa, Ana Paula Cardozo da.Uma pediatria do cuidado curativo: análise reflexiva sobre aimportância do afeto e do psiquismo na prática da terapiaintensiva pediátrica e neonatal / Ana Paula Cardozo da Rosa.– Rio de Janeiro: <strong>UFRJ</strong>/ Instituto de Estudos em SaúdeColetiva, 2010.110 f.; 30cm.Orientador: André Martins Vilar de Carvalho.Dissertação (Mestrado) - <strong>UFRJ</strong>/Instituto de Estudos emSaúde Coletiva, 2010.Referências: f. 106-110.1. Pediatria. 2. Terapia intensiva neonatal. 3. Terapiaintensiva pediátrica. 4. Afeto. 5. Psiquismo. Cuidado dacriança. I. Carvalho, André Martins Vilar de. II. UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em SaúdeColetiva. III. Título.CDD 615.542


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOSAgradeço primeiramente aos meus pais, Maria do Carmo e Fernando, pela vida,pelos ensinamentos, pela dedicação e pelo apoio em todos os momentos da minha vida.É a eles que devo meus primeiros passos, os primeiros cuidados, todo o carinho eeducação a mim dispensados.À minha irmã Amanda, agradeço pela sua existência, que dá graça e agitação emminha vida...Ao meu avô João (in memoriam), a quem devo muito, muito, muito pelo que souhoje, e ao meu avô Nathanael (in memoriam), pelos risos e graças durante a minhainfância... Às minhas avós, Hélia, Beatriz e Neuza pelo carinho.Agradeço a todos os meus familiares, que fazem parte da minha formação comopessoa, que me apóiam e me incentivam... Aos meus afilhadinhos queridos, Gabriella,Manuela e Igor, pela alegria de viver!Agradeço a todos os meus amigos, sejam aqueles de infância, amigos pessoais,sejam aqueles do mestrado, ou dos muitos plantões da vida... Mônica Britto, CarolinaSousa, Carolina Nascimento, Érica Dias, Luciane Alves, Daniela, Christina, SolangeCouto, Glória Neiva e todos os plantonistas da UTI Neonatal e Pediátrica do HospitalServ Baby; Adriana Souza e Patrícia Oliveira (Hospital dos Servidores do Estado);Karin Cristine, Cátia Guimarães (grandes amigas), Thaaty Burkle, Catarina Resende,Luiz Lessa... Não conseguirei citar todos eles, apenas alguns, mas por todos tenhogrande afeto! Aprendo constantemente com todos!Agradeço aos alunos da fisioterapia, que passaram pela disciplina do Prof. Andréde Metodologia Científica, com quem pude aprender a ensinar e sempre aprenderjunto...Agradeço à Ana Blanche, grande amiga, muito querida!Ao Marcos, pelo companheirismo e compreensão... Esteve ao meu lado emmomentos importantes da minha vida!Agradeço à Ana Monteiro, pessoa especial na minha vida, por quem tenho umgrande carinho e admiração, e que teve um papel importante no desenvolvimento destetrabalho. Sem ela, o trabalho não teria sido este! Através dela conheci meu orientador,Prof. André Martins.Ao Prof. André Martins, com quem partilho o mesmo signo do horóscopo chinês(risos, talvez daí minha grande identificação com ele), por quem também tenho grandeadmiração, pela arte de ensinar... Foi a pessoa que me deu oportunidade e orientaçãopara fazer um trabalho completamente diferente do que já havia feito dentro da minhaárea.Enfim, a todos que mesmo não citados aqui contribuíram para a realização destetrabalho.


RESUMOO presente trabalho teve como objetivo realizar uma reflexão teórica sobre aimportância do afeto e do psiquismo na prática da Terapia Intensiva pediátrica eneonatal, questionando se a conduta médica que usualmente observamos é uma condutapropriamente terapêutica, ao olhar somente para o corpo, o físico, a fisiologia humana,negligenciando o próprio indivíduo e sua experiência psíquica da doença. Tomou-secomo referencial teórico os autores Spinoza, Canguilhem e Winnicott, utilizados porMartins. Tomamos a teoria dos afetos de Spinoza para pensar os afetos de alegria e detristeza suscitados nos médicos de acordo com a melhora ou piora dos pacientes. Écomum o médico viver sentimentos de frustração e perda. Mas a morte faz parte davida. Muitas vezes temos essa compreensão intelectual, mas não uma compreensãoafetiva. Spinoza nos propõe uma razão afetiva, a fim de fazermos uso do conhecimentono sentido de buscar a transformação dos afetos passivos em ativos. Afetar-se diante daprática clínica é inevitável e acreditamos que o cuidar com afeto contribui com aterapêutica, contrariamente ao que o modelo biomédico faz crer, herdeiro docartesianismo ao qual Spinoza se contrapõe. A biomedicina busca trazer ofuncionamento de um organismo doente para o estado fisiológico “normal”. A partir doconceito de normatividade em Canguilhem propomos uma conduta terapêuticaindividualizada, objetivando levar o paciente a um estado normativo, onde mesmoapresentando alterações consideradas doenças aos olhos da biomedicina, ele se sintaativo e saudável. Vimos, com a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, anecessidade de um ambiente facilitador para uma boa integração do self do bebê, e aimportância de se praticar o holding em situações de internação na UTI, onde ocorreuma quebra no vínculo mãe-bebê, tendo o cuidador uma função de auxiliar o bebê a nãosentir tanto os efeitos desta quebra em sua maturação psíquica. Em conclusão,propomos uma clínica do cuidado, não apenas paliativo mas enfatizando suaimportância propriamente terapêutica, tendo o médico a tarefa de considerar em suaprática o afeto e o psiquismo, suficientemente compreendidos, visando não apenas ocombate à doença, mas também o fortalecimento do paciente, não prescindindo de umacompanhamento multidisciplinar que permita uma prática suficientemente boa damedicina. Ao médico não cabe ocupar o lugar de um filósofo ou de um psicanalista naUTI, mas perceber o afeto e o psiquismo como aspectos cruciais no adoecimento, notratamento e no processo de cura do paciente.Palavras-chave: medicina; terapia intensiva pediátrica e neonatal; afeto; cuidado;psiquismo; Canguilhem; Winnicott; Spinoza.


ABSTRACTThis study aimed to make a theoretical reflection about the importance ofaffection and psyche in the practice of pediatric and neonatal intensive care, questioningwhether the medical procedure that usually observed is a conduct properly therapeutics,looking only for the body, the physical, human physiology, neglecting the individualand their experience psychic of the illness. Was taken as the theoretical reference theauthors Spinoza, Canguilhem and Winnicott, used by Martins. We take the theory ofaffects of Spinoza to think about the affects of joy and sorrow raised in physiciansaccording to the improvement or worsening of patients. It is common for the doctor tolive feelings of frustration and loss. But death is part of life. Many times we have thisintellectual understanding, but not an affective understanding. Spinoza proposes anaffective reason, so we make use of knowledge to search the transformation of affectspassives in actives. Affect in the face of clinical practice is inevitable and we believethat the care with affection contributes to the therapy, contrary to biomedical modeldoes believe, inheritor of cartesianism to which Spinoza is opposed. Biomedicine searchto bring the operation of a patient's body to the physiological state "normal". Based onthe concept of normativity in Canguilhem we propose an individualized therapeuticapproach, aiming to take the patient to a normative state, where even with changesrelated to diseases in the eyes of biomedicine, it feels very active and healthy. We saw,on the theory of emotional development of Winnicott, the need for an facilitatorenvironment for successful integration of the self of the baby, and the importance ofpractice the holding in situations in the ICU, where a break occurs in the mother-babyrelationship, having a caregiver a role to help the baby not to feel so much the effects ofthis break in his psychic maturity. In conclusion, we propose a clinical care, not onlypalliative but emphasizing its importance properly therapeutics, having the doctor thetask of considering in their practice the affect and the psychism sufficiently understood,aimed not only to combat the disease, but also the strengthening of patient, notdispensing a multidisciplinary approach that allows a sufficiently good practice ofmedicine. The doctor is not entitled to take the place of a philosopher or apsychoanalyst in the ICU, but to see the affection and psychism as crucial in the illness,treatment and healing process of the patient.Key words: medicine; neonatal and pediatric intensive care; affect; care; psyche;Canguilhem; Winnicott; Spinoza.


SUMÁ<strong>RIO</strong>INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9CAPÍTULO 1 – O OLHAR FILOSÓFICO E A PRÁTICA DA TERAPIA INTENSIVANEONATAL E PEDIÁTRICA ........................................................................................... 251.1 – Aspectos histórico-genealógicos ............................................................................ 261.2 – Afetividade e Unicidade em Spinoza ..................................................................... 321.3 – Normatividade em Canguilhem .............................................................................. 45CAPÍTULO 2 – O OLHAR PSICANALÍTICO NA PRÁTICA DA TERAPIAINTENSIVA PEDIÁTRICA E NEONATAL ..................................................................... 532.1 – Winnicott, o bebê e o ambiente .............................................................................. 54CAPÍTULO 3 – A EXPERIÊNCIA NA PRÁTICA CLÍNICA ......................................... 75CONCLUSÃO ................................................................................................................... 101BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 106


9INTRODUÇÃONos dias atuais, a medicina agrega uma quantidade significativa deconhecimentos tecnológicos, conseguindo salvar muito mais vidas do que conseguia emum passado não muito distante. Dispomos de melhores métodos e técnicas paradiagnosticar e tratar as mais diversas patologias, os quais são progressivamenteaprimorados. Percebemos, ao mesmo tempo, o pensamento da medicina muitoimpregnado de uma mentalidade tecnicista. Na formação médica, notamos uma ênfasemais expressiva dada aos saberes da Anatomia, da Fisiologia, da Bioquímica, daBiofísica, da Histologia, da Patologia, da Farmacologia. Na Medicina Interna,enfatizam-se as doenças, sua etiologia, seus sinais clínicos, exames complementares eterapêutica. A medicina ocidental se limita cada vez mais a diagnosticar doenças –também chamadas de entidades nosológicas, dando um sentido de doença separada doindivíduo, da pessoa – cuja responsabilidade do tratamento encontra-se fragmentada nasespecialidades médicas, perdendo-se a visão do paciente como um todo, e, mais do queisto, do paciente como ser humano. Tal aspecto tem íntima relação com a visãocartesiana. Descartes (2004), filósofo racionalista do início da Idade Moderna (séculoXVII), propunha considerarmos o homem sendo composto de duas substâncias: o corpo,que seria como uma máquina, e a alma, como separada deste. Resumidamente, podemosdizer que Descartes, em consonância com a pesquisa das ciências da natureza de suaépoca, projetou uma visão de mundo mecanicista, na qual a medicina orgânica se baseiaaté os dias atuais. A visão atual da medicina foi, desta forma, produzida, e de tãoamplamente disseminada, foi tomada como verdade, como sendo uma posturaadequada, necessária e não questionável. Neste sentido, podemos perceber que aindahoje as atitudes na prática clínica, nas mais diversas situações, refletem um olharmédico apenas para o sintoma, para a fisiopatologia somente, e uma crença de que ao seresolver o problema/sintoma, estar-se-ia proporcionando saúde.Mas a medicina envolve de fato a visão do paciente como ser humano, como umtodo, como corpo e mente ao mesmo tempo, havendo, na realidade, uma íntima relaçãoentre o psiquismo e a doença. Observa-se, porém, na prática, uma desconsideração da


10participação do psiquismo nos processos de saúde e doença. Na prática clínicapediátrica, em particular, percebemos o quanto são importantes os aspectos psíquicos davida de uma criança, a relevância destes na saúde e no processo deformação/surgimento de uma doença. Muitas vezes, o adoecer é lento, a criança vemsofrendo uma série de acontecimentos, que provocam reações psíquicas, e estas reaçõestêm efeito no corpo, alterando sua fisiologia e culminando com o aparecimento de umadeterminada doença. É comum nos depararmos na experiência clínica com crianças quesão internadas para investigar sintomas como dor abdominal, febre, vômitosincoercíveis, cefaléia, crise convulsiva, entre outros, e não são encontradas causasorgânicas para tais sintomas. Muitas vezes, a medicina classifica como doença deorigem idiopática, sem levar em conta que processos psíquicos possam estar na origemdestes sintomas.O presente trabalho pretende questionar se esse comportamento médico atual,que observamos de uma maneira geral, é uma conduta propriamente terapêutica;utilizamos esta expressão no sentido de se pensar se a conduta médica atual não estáolhando somente para o corpo, o físico, a fisiologia humana, negligenciando o próprioindivíduo, sua experiência psíquica da doença. Afinal, se compreendemos que saúdenão se resume ao bom funcionamento dos órgãos, dos tecidos e dos sistemas, tal comoalerta Canguilhem (1978), fica claro que a terapêutica atual não proporciona saúde,quando desvaloriza, ou mesmo desconsidera a saúde psíquica. Poderíamos aqui pensarcom a filosofia de Spinoza (2007), quando, em oposição à proposta de Descartes,considera o indivíduo como um ser uno, composto de apenas uma substância. A palavraindivíduo aqui teria seu significado preservado, a pessoa seria indivisível, indissociável.Nesse sentido, o desinteresse pela experiência do paciente, por si só, já se refletiria nasaúde psíquica deste, a qual, por sua vez, comprometeria a saúde da pessoa como umtodo, incluindo a saúde física, o que seria expresso na forma de sintomas, comosomatizações, ou mesmo a não resposta ao tratamento.Ao longo da prática, nos deparamos com atitudes de médicos com relação aopaciente que poderíamos até mesmo chamar de anti-éticas. Podemos observar muitofreqüentemente uma postura estereotipada que se manifesta nessas atitudes, como o não


11olhar para o paciente, o não tocar no paciente, a falta de diálogo, pois a cena maiscomum é a de que o médico faz as perguntas, que são bem dirigidas a sintomasespecíficos, e desenvolve uma “audição seletiva”, considerando apenas o que, na visãomecanicista produzida, seria interessante (ou conveniente) para a realização dodiagnóstico e do acompanhamento da resposta dita terapêutica no discurso dessepaciente. E não somente isso: desconsiderando dados, que se acham presentes nahistória de vida daquele paciente, muitas vezes fornecidos por ele mesmo, ou pelosfamiliares, que são cruciais para auxiliar ou mesmo determinar uma melhora clínica dopaciente. E isto pode ser visto em qualquer área da medicina, independentemente atémesmo do paciente ser ou estar capaz de se comunicar verbalmente. Veremos nocapítulo III alguns exemplos da prática clínica que explicitarão melhor estas colocações.Com relação ao bebê recém-nascido, por exemplo, quando internado em umaUTI neonatal, em um ambiente totalmente estranho a ele, com muitos ruídos, muitosprocedimentos invasivos, ao se promover o holding – conceito de Winnicott queveremos com mais detalhamento adiante, mas basicamente significa dar sustentação,apoio, suporte e cuidado – observamos que a resposta clínica do paciente à terapêuticaespecífica se dá de forma muito mais rápida, e melhor. Holding, neste caso, nãosomente promovido pela equipe de saúde, mas, principalmente, pelos pais do bebê, quedesempenhariam um papel fundamental neste processo de recuperação, ao longo dapermanência do bebê na UTI neonatal. Esta última colocação tem uma importânciacrucial, pois podemos perceber que hoje a conduta na grande maioria das UTIsneonatais e pediátricas é a de delimitar o espaço que os pais ocupam na vida daquelebebê, daquela criança, durante o período em que a mesma se encontra internada nohospital. Considerando-se, decerto, que em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatale Pediátrica, são necessários alguns procedimentos, invasivos, que exigem total atençãoda equipe de saúde dirigida àqueles procedimentos, e que seria extremamenteangustiante para os pais assisti-los, entende-se o pedido de afastamento dos pais nestesmomentos. Da mesma forma, se pensarmos que nas UTIs os pacientes são graves, commaior risco de infecção, e que a circulação de um número grande de pessoas poderia tercomo conseqüência o aumento do risco de infecção ou colonização por germes,bactérias, muitas vezes multirresistentes a antibióticos, entendemos também, em parte,


12essa delimitação. Porém, se pensarmos que podemos orientar atenciosamente os paisdas crianças para que façam uma correta e adequada lavagem das mãos, não utilizemanéis ou pulseiras enquanto estiverem na UTI, utilizem os aventais para não carreargermes do ambiente externo para a UTI, que sigam, portanto, algumas recomendaçõesde precaução com relação ao tratamento instituído, considerado necessário naquelemomento específico, isso tornaria plenamente possível a desejável presença dos pais naUTI, colaborando com o tratamento específico, auxiliando a recuperação da criançainternada. Como exemplo, é possível observar que em casos em que pais são maispresentes, que permanecem com o bebê mais tempo na UTI, ocorre uma melhora maisrápida do bebê, ou seja, isso se refletiria na diminuição do tempo de internação do bebê,tal como a prática demonstra.Ao iniciar a pesquisa, procedemos a uma busca em sites da Internet relacionadosa Saúde Pública, Saúde Coletiva e Ciências da Saúde, objetivando encontrar o que jáexiste de produção científica referente ao cuidado de pacientes internados em Unidadesde Terapia Intensiva pediátrica e neonatal. A pesquisa foi iniciada pelo site Scielo/Brasil(www.scielo.br) onde, no item pesquisa de artigos, utilizou-se como palavra-chave'unidade de terapia intensiva', o que retornou 67 artigos. Dentre estes, 60 artigos eramde estudos quantitativos, 5 artigos consistiam em estudos estritamente qualitativos e 2artigos compreendiam estudos quali-quantitativos, todos realizados por profissionais deenfermagem, seja abordando a visão e as necessidades de familiares de pacientescríticos internados, seja abordando a visão do paciente com relação ao ambienteinvasivo que se constitui uma UTI, seja abordando a prática do cuidado de enfermagemem UTI sob diferentes perspectivas e com propostas singulares. Como exemplo, Pereira& Bueno (1997) realizaram um trabalho indicando o lazer como um caminho, comouma proposta, no sentido de diminuir a tensão do ambiente para o profissional quetrabalha na UTI. Silva & Damasceno (2005) publicaram um artigo de reflexão teórica,com base em dados obtidos de uma tese de doutorado sobre o cuidado de enfermagemem terapia intensiva cardiológica, onde foi perguntado aos profissionais de enfermagemsua definição de cuidado e, em um segundo momento, foi procedida a observação destesprofissionais em sua prática, constatando-se profundas ambigüidades entre o discurso ea prática dos mesmos. Constatou-se não somente a importância do aspecto dito


13científico e sistematizado de agir na beira do leito, mas também a importância doaspecto psíquico do paciente; tanto as enfermeiras como os auxiliares de enfermagemdefiniram o cuidado como sendo “tudo que se faz pelo paciente, desde a higiene até oacolhimento diante de manifestações emocionais, tais como o desejo de ser ouvido emsuas angústias e apreensões relacionadas à internação.” (SILVA & DAMASCENO,2005, p.259). Entretanto, na prática observou-se que uma atenção muito maissignificativa é dispensada para os aparelhos de monitorização e suporte hemodinâmico erespiratório, e ainda, para os procedimentos invasivos (punções venosas e arteriais,implantes de marcapassos artificiais, entubação endotraqueal etc.) e de rotina (higiene,alimentação e administração de medicamentos), em detrimento do próprio paciente,como se o cotidiano estivesse aprisionado em uma instância técnica e biológica. Oartigo questiona onde foi perdida “a dimensão humanística no processo de cuidar naenfermagem” e também faz uma consideração a nosso ver muito importante:“mesmo sendo o tecnicismo uma realidade necessária emnossos dias, o cuidado de enfermagem, até quando mediado porprocedimentos advindos desta tecnologia, deve ser guiado pelasubjetividade característica do encontro interpessoal que ocorreno processo de cuidar” (SILVA & DAMASCENO, 2005,p.264).Desta forma, o desafio que se impõe aos profissionais de enfermagem segundo otrabalho de Silva & Damasceno é o de identificar o momento em que devem dar umamaior atenção à questão existencial, humana. Coloca-se, enfim, a importância de, noprocesso de formação de profissionais e de educação continuada, os mesmos adquiriremnão somente competências técnicas, mas atentarem também para a relação interpessoaldo cuidado.Vargas & Ramos (2008) realizaram um ensaio reflexivo sobre as implicações datecnobiomedicina na atuação da enfermagem na terapia intensiva. As autoras atentampara o ambiente da UTI, que atualmente deve conter tecnologia de mais altacomplexidade, com aparelhos cada vez mais elaborados, exigindo profissionais tambémcada vez mais especializados, fazendo com que nos cursos de enfermagem se dê uma


atenção cada vez maior à instrução sobre o manuseio dos equipamentos para quefuncionem adequadamente quando conectados ao paciente (seja criando manuais, oucursos de especialização ainda mais específicos). Daí, mais frequentemente, os sintomasdo paciente são avaliados e somente detectados pelo profissional da enfermagem nainterface da relação do paciente com a máquina; ou seja, o problema apresentado pelopaciente leva a uma alteração na máquina a ele conectada e só daí, então, é detectado.Isto reflete, pensam os autores, o quanto os profissionais de saúde estão se distanciandodo paciente em si, atentando muito mais para o funcionamento e desempenho deaparelhos tecnológicos.De acordo com Vargas & Ramos (2008), esta seria, portanto, a idéia difundida eaceita atualmente sobre a atuação da UTI:14“como uma clínica distinta, uma disciplina científica commetodologia própria, programas de treinamento, fórunseducacionais e desenvolvimento de pesquisas, agregando, ali,profissionais „habilitados‟ para conduzir „o tratamento‟ e „ocuidado‟ do(a) paciente grave, mesmo que esse(a) pacienteesteja com vários órgãos comprometidos.” (VARGAS &RAMOS, 2008, p. 172)Vargas & Ramos (2008) não questionam a importância do desenvolvimento eincorporação de artefatos, equipamentos e procedimentos tecnológicos para uso naprática da terapia intensiva, mas problematizam a questão da valorização da relaçãoprofissional-máquina, em detrimento de uma relação intersubjetiva profissionalpaciente.No site Scielo – Saúde Pública, a busca com as mesmas palavras-chaveutilizadas na primeira pesquisa – „unidade de terapia intensiva‟ – retornou um artigoapenas. Quando foi utilizada a palavra 'cuidado', e surgiram as opções 'cuidado dacriança' e 'cuidados intensivos', a busca retornou, respectivamente, dez e três artigos.Dentre os dez artigos sobre cuidado da criança, nenhum se tratava de estudo qualitativoou teórico. Dentre os três artigos sobre cuidados intensivos, poderíamos destacar apesquisa de Lamego, Deslandes & Moreira (2005). Tal estudo objetivou analisarcuidados ambientais e relações de atendimento em uma Unidade de Terapia Intensiva


15Neonatal Cirúrgica (UTINC), refletindo sobre potencialidades e obstáculos para apromoção de cuidado humanizado. É importante ressaltar aqui que em uma UTINC apresença da dor, de deformidades físicas e cicatrizes são mais freqüentes. O estudoutilizou a metodologia qualitativa de pesquisa, tomando a observação participante comosua principal técnica. As relações entre profissionais e usuários de uma UTINCconstituíram o objeto de observação. A pesquisa deu maior importância às experiênciascotidianas, onde os indivíduos adotam uma “atitude natural”, não questionando asestruturas que condicionam suas ações e executando assim suas atividades habituais,integrando simultaneamente a experiência individual e as orientações da cultura. Foramcriados três roteiros observacionais: da relação profissional-bebê (observação daabordagem das situações de estresse no bebê, das intervenções da equipe voltadas parao suporte do corpo do bebê e estabelecimento de vínculo); da relação profissionalmãe/responsável(analisando quando os pais eram estimulados a tocar ou permanecerjunto de seus bebês ou quando eram desencorajados a fazê-lo); e da relação mãe-bebê(enfatizando-se a iniciativa e autonomia das mães em tocar e estabelecer comunicaçãocom seus bebês). Também foram observados os cuidados ambientais relacionados aosruídos e à iluminação na UTINC. No período de cinco meses foram observadas asrelações em torno da assistência de 28 bebês e seus respectivos familiares. A análise dosdados foi procedida à luz do referencial teórico da Psicomotricidade Relacional, dasteorias do apego e do desenvolvimento emocional do bebê (dentre estas, as teorias deWinnicott) e de estudos realizados em UTIs neonatais, abordando temas comoprematuridade e assistência aos pais. Quanto aos resultados, “observou-se apreocupação da equipe em minimizar os efeitos provocados pelo ruído na estabilidadefisiológica e comportamental dos bebês” (LAMEGO, <strong>DE</strong>SLAN<strong>DE</strong>S & MOREIRA,2005, p.671). Percebeu-se pela observação que a luminosidade artificial da UTINC eraconstante e intensa. Para se reduzir os efeitos da luz, colocavam-se lençóis sobre asincubadoras. Entretanto, nos momentos em que o recém-nascido mostrava maiorinstabilidade clínica, era preconizado uma total visibilidade do bebê a fim de permitiruma melhor monitorização. No contexto relacional, observou-se que o cuidado era maisautomatizado, principalmente quando o profissional encontrava-se submetido a estresse,sobrecarga de trabalho ou urgência de bom desempenho nos procedimentos. Como


16exemplo, no relato de diário de campo dos pesquisadores consta que uma enfermeira,“ao realizar os procedimentos com os bebês, fala com eles automaticamente, como seestivesse cumprindo um protocolo” (LAMEGO, <strong>DE</strong>SLAN<strong>DE</strong>S & MOREIRA, 2005, p.672). A disponibilidade em relação ao bebê e a sensibilidade no cuidado dispensado aorecém-nascido pelos profissionais tinham um caráter individual. Uma aparenteacomodação à rotina e um desgaste devido ao próprio trabalho realizado na UTI semostraram fatores relevantes que interferiam na relação com o bebê. Observaram-sealgumas situações, no entanto, onde uma forte ligação foi estabelecida entre oprofissional e o bebê, as quais ocorreram em casos de maior gravidade e em casos deausência materna. Este vínculo se constituiu elemento fundamental observado para obebê reorganizar-se emocional e fisiologicamente após a realização de intervençõesclínicas inerentes à internação. Com relação ao manuseio da dor após procedimentosinvasivos, era prescrito analgésico de acordo com a necessidade do recém-nascido. Nocontexto da relação mãe-bebê, observou-se uma preocupação da equipe com oacolhimento da mãe, com a facilitação de seu acesso ao ambiente da UTI e com suapermanência no setor. A presença do pai também era incentivada. À medida que os paisse familiarizavam com a situação e que as relações com a equipe se solidificavam, aautonomia em participar dos cuidados do bebê aumentava. Na relação profissionalresponsável,os pais eram estimulados a tocar seus bebês e acalmá-los e tinham suapresença valorizada para a formação do vínculo e inclusão nos cuidados. Porém, emmomentos de agravamento clínico do bebê esse contato dos pais era diminuído, ou nãoestimulado, acarretando medo e insegurança aos pais. Tal pesquisa realizada porLamego, Deslandes e Moreira (2005) se mostra importante para o presente estudo nosentido em que indica que o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê estáintimamente relacionado com o cuidado, com a prática de holding, e ressalta o quanto éimportante adotarmos uma nova postura diante um bebê internado em uma UTI. E, que,apesar de termos conseguido avanços, muito ainda tem de ser mudado. Existem muitasambigüidades na adoção de práticas mais flexíveis na rotina de uma UTI, pois existematitudes (desumanizadoras) historicamente estabelecidas como mais corretas, tornandodifíceis as mudanças efetivas nesse âmbito. Daí considerarmos bem adequada acolocação dos termos „desafios para humanização‟ pelas autoras do trabalho.


17Na pesquisa no site Scielo – Saúde Pública também foi utilizado como palavrachave'Winnicott', um dos autores estudados no trabalho, e a busca retornou 27 artigos.Buscamos artigos relacionados à prática de Terapia Intensiva pediátrica e/ou neonatal.Os artigos encontrados discutiam a teoria winnicottiana relacionada a algum outro temaespecífico de interesse do autor. Um artigo abordava o pensamento winnicottiano noprocesso de ensino e aprendizagem e outro artigo consistia em um relato de caso clínicode um paciente HIV positivo com ênfase nos aspectos psicanalíticos decontratransferência. Os demais artigos tratavam principalmente de temas da psicanálise.Encontramos apenas um artigo relacionado ao cuidado do bebê hospitalizado (REGIS,KAKEHASHI & PINHEIRO, 2005), o qual se tratava de um estudo qualitativodescritivo sobre o holding proporcionado pelas auxiliares e enfermeiras aos bebêsinternados em uma unidade neonatal de médio risco de um hospital-escola em SãoPaulo. Os dados para análise foram obtidos de imagens (gravadas pelos pesquisadoresna unidade hospitalar) do atendimento pela equipe de enfermagem durante apermanência dos pais. Foi possível verificar no estudo que cada profissional procede demaneira diferente no cuidado do bebê, podendo ou não estar atento às necessidadesdeste, de acordo com a capacidade individual de envolvimento com o bebê. Mesmoconsiderando que os períodos observados são “recortes” da realidade, a pesquisapermitiu observar que em muitos momentos as auxiliares de enfermagem cuidavam dobebê de um modo automatizado, sem acolhimento, provocando no bebê reações dechoro e movimentos desorganizados dos membros, refletindo falhas no holding,levando a uma experiência de ansiedade do bebê, que, ocorrendo repetidas vezes,poderia, segundo o referencial teórico de Winnicott, levar à sensação de não existir,interferindo negativamente no desenvolvimento emocional do bebê, no processo deintegração do self. Em outros momentos, entretanto, foi possível observar que algunsprofissionais promoviam um holding satisfatório, acolhendo, aconchegando, olhando econversando com o bebê. Mesmo durante a realização de procedimentos invasivos,constatou-se ser possível uma provisão ambiental suficientemente boa e também suaimportância, como evidencia o trecho a seguir:


18“Em um ambiente hospitalar, por vezes essesprocedimentos invasivos e dolorosos são inevitáveis. Contudo, éa maneira como é abordada a criança, antes, durante e após oprocedimento, que deve ser contemplada pelo cuidador quandopensamos em proporcionar o holding. Desse modo, pautadas narelevância do holding para o desenvolvimento emocional dacriança, as autoras ressaltam que saber manejar o bebê, emtermos de provisão ambiental, antes, durante e após qualquerprocedimento é tão importante para o desempenho do cuidadoquanto a habilidade técnica para realizá-lo.” (REGIS,KAKEHASHI & PINHEIRO, 2005, p.42)O trabalho de Regis, Kakehashi & Pinheiro (2005) conclui ressaltando aimportância de um olhar por parte do profissional de saúde que ultrapasse o olhartécnico e a necessidade de ocorrer uma intervenção na prática assistencial da equipe deenfermagem nesse sentido. Este estudo, por ter sido somente baseado em análise deimagens, não possibilitou, na visão das autoras, a compreensão das percepções dossujeitos da pesquisa, as motivações e as razões das condutas praticadas pelos mesmos.As autoras concluem sugerindo a realização de outros estudos que contemplem a óticados cuidadores e, ainda, ressaltam a importância acadêmica desta questão, visto que oestudo foi realizado em um hospital-escola e a implementação de mudanças (no sentidoda humanização) no cuidado ao bebê hospitalizado serviria como base para a formaçãode novos profissionais de saúde.Objetivando ampliar nossa pesquisa, optamos também, através do próprio site daScielo/Brasil, acessar a BIREME e através deste, recorremos ao LILACS, que consisteem uma base de dados de ciências da saúde em geral. Ao digitarmos no campo depesquisa do LILACS 'uti neonatal', a busca retornou 492 artigos (formulário livre depesquisa). Optamos por refinar a pesquisa e acrescentamos a palavra cuidado, tendo anova busca retornado 418 artigos. Consideramos esse um número significativo ecomeçamos a pesquisar e escolher artigos que apresentassem uma temática que seaproximasse do nosso objeto de pesquisa. Pudemos observar que destes, cerca de 125eram estudos qualitativos. Procuramos artigos que abordassem assuntos relacionados ànossa problematização e dentro desta área de trabalho, ou seja, estudos sobre cuidado,sobre humanização, estudos que investigassem propostas “na contramão” da visão


19cientificista e mecanicista da medicina atual, e que fossem realizados dentro deunidades de terapia intensiva pediátrica ou neonatal. E o que encontramos foi, dentre osestudos qualitativos, estudos realizados principalmente por profissionais de enfermagemutilizando como técnicas de pesquisa a observação participante, entrevistas semiestruturadase grupo focal.Com relação aos pesquisadores, é nítido encontrarmos sobretudo, nos resultadosda pesquisa, estudos qualitativos realizados por profissionais da enfermagem. Osestudos quantitativos, por sua vez, são realizados principalmente por médicos, o quedenota um pensamento bastante diferenciado entre os profissionais de saúde. Este dadotalvez indique na perspectiva da medicina a expressão majoritária de um pensamentocartesiano, mecanicista, positivista, cientificista. Talvez se coadune com o quanto essacultura médica é dominante, o quanto exerce uma forte influência na vida prática doprofissional médico sem sequer ser questionada. Os estudos mostram que os médicosestão preocupados apenas em determinar as incidências, as prevalências, as taxas, sejamde morbidade, mortalidade, o índice de complicações de determinadas doenças; enfim,pacientes viram números, viram porcentagens, apenas estatísticas. Afeto e psiquismonão são pensados dentro do ambiente de uma unidade de terapia intensiva. Pelocontrário, são completamente e voluntariamente desconsiderados.Ao lermos os estudos qualitativos realizados por profissionais de enfermagemdentro desta área, observamos que estes, por sua vez, problematizam na sua maioria aimplementação de atendimento humanizado dentro da UTI, e muitas vezes, expõematravés das entrevistas, da observação participante ou dos grupos focais, as dificuldadespara tal. Explicitam também a visão dos familiares de bebês internados, analisam aeficácia da implementação de grupos de apoio à família, instituídos em alguns hospitais;enfim, se aproximam da visão de um atendimento mais humanizado, mas esbarram emsuas dificuldades de realização. Em nossa opinião, se o pensamento sobre o que seja asaúde, e sobre a importância da saúde psíquica, sofresse uma reformulação, não serianecessário criar regras para um atendimento humanizado (programas de humanização,implementação de grupos de apoio etc.). Se os profissionais da saúde desenvolvessemum olhar diferenciado, percebendo o paciente como ser humano, afirmando seus afetos,


20minimizando defesas psíquicas, e ainda, entendessem que o afeto e o psiquismo sãofatores determinantes no processo de cura, de melhora física do paciente, tais estudos sefariam menos necessários, pois a atitude individual de cada profissional dentro da éticaque estamos propondo já daria conta, em muitos aspectos, daquilo que as normas dehumanização instituídas tentam alcançar.Em livros de terapia intensiva pediátrica e neonatal (PIVA, CELINY et al, 2005;CARVALHO, SOUZA et al, 2004; CLOHERTY, EICHENWALD, STARK et al,2004), por sua vez, não encontramos, mesmo em capítulos sobre aspectos éticos naprática da terapia intensiva pediátrica e neonatal, abordagem sobre a importância doafeto na terapêutica. Quanto ao psiquismo, encontramos, em alguns livros, capítulos emgeral muito breves sobre o surgimento de doenças psíquicas durante a internação dopaciente no ambiente (invasivo) da UTI, ou após a mesma. Isto reforça nossa hipótesede que tais temáticas são pouco valorizadas tanto no processo de adoecimento como noprocesso de tratamento ou cura do paciente.Nossa proposta é a de refletir sobre a prática clínica no ambiente de UTIneonatal e pediátrica, sublinhando o cuidado com o paciente, a partir de uma visãocrítica sobre a prática médica atual, na qual a tendência é a de não se afetar, não seenvolver, não tratar o paciente como se fosse um ser humano, e sim apenas a doença,apenas o físico, seguindo essa lógica cartesiana tão presente e bem sedimentada naprática médica em geral. Essa postura é ensinada e difundida como correta nasfaculdades de medicina. Em nossa experiência pessoal, por diversas vezes, nós médicos,quando alunos da graduação ou mesmo já na residência médica, fomos chamados àatenção por esse motivo: não era correto nos afetarmos com o paciente, isso seriaprejudicial não somente para nossa vivência, como também, diziam, seria prejudicial aopróprio tratamento, como se, ao estarmos nos afetando, nossa capacidade para cuidar,tratar o paciente, também estivesse prejudicada.O que podemos observar na prática diária é exatamente o contrário: é impossívelnão nos afetarmos com os pacientes; estamos diante de seres humanos e ainda, no casoda UTI pediátrica e neonatal, recém-nascidos, crianças e adolescentes, que têmsentimentos, que sofrem por estarem doentes – e cujo sofrimento, ou a maneira como o


21paciente o vive (que em parte depende da atitude da equipe médica) influenciará o restode sua vida. Estamos diante de crianças internadas em um ambiente estranho a elas, quetêm suas famílias, na maioria das vezes cheias de expectativas quanto à recuperação dasmesmas. Nossa hipótese é a de que afetar-se diante disso é, antes de tudo, inevitável, eque o cuidar com afeto não é prejudicial, mas sim, ao contrário, vem a contribuir com aterapêutica, no sentido de que o paciente, seja o adolescente, a criança ou o recémnascido – para o qual o afeto se traduz em cuidados, em segurá-lo, em promoverholding, no sentido somático, tal como observa Winnicott – se sente melhor acolhido,confia nas condutas da equipe que lhe está assistindo e tem uma recuperação em muitoscasos mais rápida, mais efetiva, muitas vezes surpreendendo ao médico e a toda aequipe de saúde.Além disso, atualmente fala-se muito em humanização. A palavra humanizaçãonão seria um bom termo para se defender a idéia de que temos que cuidar do outro,olhar para o paciente e não para a doença, se pensarmos que o cuidar da própriamedicina subentederia um “cuidar humanizado”. Existe, por exemplo, apenas em algunshospitais (no Rio de Janeiro: no Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira,pertencente à <strong>UFRJ</strong>, no Hospital dos Servidores do Estado e no Hospital MunicipalJesus), nos setores de pediatria e terapia intensiva pediátrica, a atuação de um grupoespecífico de atores intitulados “Doutores da Alegria”, onde os mesmos se vestem depalhaços, “doutores besteirologistas”, e realizam visitas às crianças internadas,propondo um novo olhar para elas, no sentido de considerá-las como crianças, e nãoapenas como a pneumonia do leito 3, a insuficiência renal do leito 8 ou a cardiopatia doleito 4. E propõem brincadeiras à criança, mesmo dentro das limitações dela, quepermitem que a própria criança se sinta e se veja capaz de brincar, mesmo estando emum momento de doença, em que sua capacidade normativa (segundo o conceito deCanguilhem) encontra-se diminuída. O livro de MASSETTI (2003) aborda a prática dosDoutores da Alegria nos hospitais e faz uma análise crítica à visão do paciente apenaspor sua doença. Há um trecho deste livro que questiona se a humanização nãofuncionaria como um “verniz” para o capitalismo médico. Poderíamos acrescentar se ahumanização também não funcionaria como um “verniz” para o mecanicismo ecientificismo da medicina. E por estas características serem tão marcantes, o que ocorre


22é uma verdadeira guerra no combate às doenças. No ambiente hospitalar, e maisespecificamente na unidade de terapia intensiva, este cenário bélico fica muito evidente,ou seja, “as capacidades próprias dos doentes estão quase sempre insuficientes efracassadas, a gravidade é grande, o belicismo aceito, a intervenção agressiva, precoce econtroladora é muitas vezes necessária e salvadora.” (TESSER, 2009, p. 10). Podemosainda observar que cada vez mais a medicina amplia seus conhecimentos técnicos,aumentando, por sua vez, o número de especialidades (TESSER, 2009) e, dentro dasespecialidades, as subespecialidades; hoje, o ortopedista, por exemplo, é especialista emalguma parte do corpo: o que cuida de joelhos, não cuida do ombro e não cuida dacoluna vertebral etc. O médico só pergunta e se dirige àquela “parte do corpo” da qualele “trata”. Muitas vezes nem olha para o paciente. Isso pode ser visto facilmente naprática clínica dos hospitais. Independentemente de serem públicos ou privados, talcomportamento médico nesse sentido é comumente observado.Enfim, este trabalho tem como objetivo geral realizar uma reflexão teórica sobrea importância do afeto e do psiquismo na prática da Terapia Intensiva Pediátrica eNeonatal.Os objetivos específicos do presente estudo consistem em:1. refletir sobre as relações entre a concepção cientificista e mecanicista damedicina e a postura médica atual, no que esta desconsidera e desvaloriza oafeto e o psiquismo como aspectos relevantes nos processos de adoecimento, deterapêutica e de cura do paciente;2. investigar as implicações na terapêutica médica da concepção da saúde comoausência de doença;3. questionar se a biotecnologia médica seria, por si só, suficientemente boa para sepromover saúde;4. discutir, à luz de conceitos de autores da filosofia e da psicanálise, a importânciade se desenvolver uma mudança de pensamento e de um olhar diferenciadodaquele voltado apenas para o físico, que privilegia apenas a doença edesconsidera a pessoa, o paciente como ser humano.


23A metodologia empregada no presente estudo foi a proposta por Martins (2004)denominada filosófico-conceitual, onde a partir de conceitos filosóficos com um sentidojá estabelecido, relacionados a temas ou áreas específicas, criados por autores dediferentes épocas, em contextos de vida em muito diferentes dos nossos, podemos isolarhistoricamente alguns conceitos, mantendo seu sentido filosófico atemporal, e utilizáloscomo ferramentas para pensar questões diferentes das abordadas por seus autores,refletir sobre questões da atualidade, levando a novas problematizações, a novaspropostas e até mesmo à criação de novos conceitos. Nesse sentido, Martins (2004)destaca o papel da filosofia na “desconstrução de crenças e naturalizações atuais,problemáticas para nossa contemporaneidade, desmascarando interesses reativos emecanismos defensivos por detrás destes discursos que se propõem verdadeiros ehegemônicos” (MARTINS, 2004, p. 956-957), e, por outro lado, o papel de construção,pela filosofia, de conceitos, formas e valores inovadores de concepção da saúde e, porconseguinte, da própria vivência.No primeiro capítulo, para melhor contextualizar o surgimento do pensamentocientificista e mecanicista na medicina – que não se deu de maneira isolada, havendouma mudança do pensamento e da visão geral de mundo, no sentido de se obter ummaior controle e conhecimento sobre os eventos da Natureza – descreveremosbrevemente as idéias dos pensadores Bacon e Descartes (BRAGA, GUERRA & REIS,2008 e HELFERICH, 2006), no que estes influenciaram fortemente as mudançasresponsáveis pela construção da visão da ciência e da medicina moderna. Abordaremos,ainda neste primeiro capítulo, a importância do afeto na prática da terapia intensivapediátrica e neonatal a partir de conceitos filosóficos de Martins (1999, 2004), que sevale de Spinoza (2007) e Canguilhem (1978), buscando valorizar uma nova concepçãode saúde, levando em consideração a pessoa, o indivíduo, e não apenas o corpo emseparado, a norma, a média, o anatômico-fisiológico. A partir da metodologiafilosófico-conceitual de Martins (2004) utilizaremos principalmente a teoria dos afetos eo conceito de substância única em Spinoza e o conceito de normatividade emCanguilhem pretendendo questionar a visão mecanicista – que consideramos serreducionista – da medicina atual e propor um olhar diferenciado para o paciente, umolhar filosófico na prática da terapia intensiva e, portanto, médica.


24No segundo capítulo, a partir de conceitos da teoria do desenvolvimentoemocional em Winnicott (1975, 1983, 1990, 1999, 2000, 2001, 2005, 2006), que serãoapresentados, discutiremos a importância do psiquismo no processo de saúde-doença e anecessidade de se desenvolver um olhar psicanalítico na prática da terapia intensiva, oqual consideramos imprescindível para uma prática terapêutica suficientemente boa.No terceiro capítulo, tentaremos articular os conceitos abordados e discutidoscom a prática clínica da terapia intensiva pediátrica e neonatal, através deexemplificações de situações específicas vivenciadas, para, enfim, propor um exercíciodo olhar filosófico e psicanalítico na prática médica. Trata-se de propor, portanto, umaclínica do cuidado, que olha cada paciente individualmente, analisa cada situação emparticular, considera as complexidades, as singularidades envolvidas em cada caso. Nãose trata de uma desvalorização do conhecimento médico acumulado, de descartarmos osmétodos utilizados pela medicina até os dias atuais, até porque os métodos da medicinatradicional salvaram e têm salvo muitas vidas. Mas trata-se de perceber que há algo amais que precisa ser levado em conta nos processos de saúde e doença, terapêutica ecura. É este algo a mais, o afeto e o psiquismo, que queremos apontar e reforçar aimportância.


CAPÍTULO 1 – O OLHAR FILOSÓFICO E A PRÁTICA DATERAPIA INTENSIVA NEONATAL E PEDIÁTRICA25“Socorro, não estou sentindo nadaNem medo, nem calor, nem fogo,Não vai dar mais pra chorarNem pra rir.Socorro, alguma alma, mesmoque penada,Me empreste suas penas.Já não sinto amor, nem dor,Já não sinto nada.Socorro, alguem me dê um coração,Que esse já não bate nem apanha.Por favor, uma emoção pequena,Qualquer coisaQualquer coisa que se sinta,Tem tantos sentimentos, deve teralgum que sirva.Socorro, alguma rua que medê sentido,Em qualquer cruzamento,Acostamento,Encruzilhada,Socorro, eu já não sinto nadaSocorro, não estou sentindo nada,Nem medo, nem calor, nem fogo,Nem vontade de chorarNem de rir (...)Por favor, uma emoção pequena,Qualquer coisaQualquer coisa que se sinta,Tem tantos sentimentos, deve teralgum que sirva”Arnaldo Antunes & Alice Ruiz, SocorroNeste primeiro capítulo buscaremos apresentar brevemente a concepçãomecanicista e cientificista da medicina, que se deu de forma não natural, sendoconstruída, fortalecida e sedimentada ao longo dos séculos, tendo sido fundamental naprodução da postura da biomedicina 1 que atualmente observamos, que tende a se1Entendemos por biomedicina o conhecimento voltado para os saberes da Anatomia, daFisiologia, da Bioquímica, da Biofísica, da Histologia, da Patologia, da Farmacologia, ou seja, a medicinaque enfatiza o corpo e os métodos da Ciência Moderna. Tem seu olhar voltado apenas para o físico,desconsiderando a participação do psíquismo na gênese, na duração e na cura de doenças. Apresenta,segundo Camargo Jr. (2003), caráter generalizante, mecanicista e analítico. (CAMARGO JR, 2003,p.107).


26concentrar apenas no acometimento físico do paciente, ignorando o olhar para oindivíduo, para o ser humano, compreendido como muito mais que um corpo físico ouum órgão doente.Para isso, tomamos como embasamento teórico textos de Martins (1999),Spinoza (2007) e Canguilhem (1978), e, através do método filosófico conceitual,tentamos evidenciar um novo olhar sobre a prática da Terapia Intensiva Pediátrica eNeonatal, visando uma concepção diferenciada e individualizada do paciente,privilegiando o cuidado, ao considerar os afetos envolvidos no processo doadoecimento, bem como nos processos de terapêutica e de cura do paciente.Estabelecemos também uma correlação entre as teorias destes autores com aafetação dos médicos na sua prática – de tentativa de afastamento das emoções, dedistanciamento do paciente, de negação do envolvimento com o mesmo; e aconsequente medicalização de suas próprias vidas, por um uso cada vez maior por partedos próprios médicos de ansiolíticos e antidepressivos.1.1 – Aspectos histórico-genealógicosA concepção mecanicista não se deu isoladamente na Medicina, ao contrário, foiatravés de uma mudança gradativa do pensamento e da visão geral de mundo, que seiniciou a partir do século XV, que se estabeleceram, se fortificaram e se assentaram aspretensões de total conhecimento da Natureza, que culminam com o objetivo de totalcontrole dos mecanismos de funcionamento do corpo humano, ou, mais amiúde, de totalconhecimento dos mecanismos anatômicos, fisiológicos, histológicos, bioquímicos,intracelulares de funcionamento dos organismos, que também se traduz num objetivo detotal conhecimento e controle dos processos de saúde e doença, de terapêutica e cura.Tal mudança na visão geral de mundo fica bem caracterizada na obra intitulada “Brevehistória da ciência moderna”, de Braga, Guerra & Reis (2008):


27“A partir do século XV, [...] o intenso convívio com umarealidade repleta de máquinas fez com que começasse a surgiruma nova concepção de natureza. Os moinhos movidos a águaou vento tornaram-se parte imprescindível do dia-a-dia. Aprecisão dos relógios substituiu o movimento diário do Sol,trazendo uma nova forma de se relacionar com o tempo. Osestudos astronômicos se intensificaram, e a mãe Terra, centro deum cosmo fechado, passou a ser considerada apenas mais umplaneta, parte de um Universo infinito que funcionava tal e qualum mecanismo, com um comportamento matematicamentedeterminável e regido por leis inflexíveis. Nesse sentido, nãohavia mais espaço para milagres. No Universo-máquina, tudo jáhavia sido estabelecido no momento da criação, podendo sercompreendido pelo desmonte das engrenagens. O conhecimentodas partes levaria à compreensão do todo.” (BRAGA, GUERRA& REIS, 2008, p. 14-15)Mais adiante no texto, os autores expressam a sua visão, da qualcompartilhamos, de que “contrariando a máxima do século XVII, acreditamos que otodo é sempre mais complexo do que a soma das partes”. (BRAGA, GUERRA & REIS,2008, p. 18).O início da ciência moderna, entretanto, foi marcado por fortes controvérsias, enão se deu de forma fácil ou simples. As mudanças ocorreram gradativamente ao longode três séculos – XV, XVI e XVII – para só então se estabelecerem, pois as visões deNatureza da Idade Média e da Idade Moderna eram extremamente antagônicas.Daremos aqui um enfoque mais direcionado nas mudanças relativas à construção davisão da ciência e da medicina moderna, haja vista que objetivamos refletir como estavisão pode se constituir em uma importante geradora da postura médica na atualidade.Martins (1999), em seu artigo Novos paradigmas e saúde, apresenta uma genealogia dasorigens da ciência moderna, que teve como algumas de suas características umavalorização do pensamento lógico e a enunciação de leis universais que regeriam aNatureza, que ganhariam força principalmente nos séculos XVI e XVII, tendo comoexemplos marcantes a criação das Leis da Física de Newton, a idéia de corpo-máquinade Descartes e a tese do determinismo universal de Laplace 2 . O autor nos mostra que2A qual consistia na redução dos acontecimentos da Natureza a leis gerais que a determinariam, oque possibilitaria o conhecimento absoluto sobre a mesma.


28ocorre uma valorização do método científico, onde há uma necessidade de não apenasse comprovar os fenômenos experimentalmente, mas também de se poder reproduzi-los,obtendo os mesmos resultados, devendo tais experimentos serem realizados dentro das„ditas‟ condições ideais. Portanto, um experimento só pode ser reproduzido se for deleretirado tudo aquilo que possa estar interferindo em seu resultado. Na Natureza, noentanto, a complexidade dos eventos é inquestionável. Apesar disso, paradoxalmente, oque ocorre é uma legitimação progressiva do conhecimento científico, na intenção deque, ao reduzir os eventos, retirando dos experimentos a influência de fatores nãocontroláveis pelo homem, para que estes possam ser reproduzidos, a natureza como umtodo possa ser controlada (TESSER, 2009).Ocorre uma aceitação e uma efetivação do conhecimento dito científico, além decerta submissão a este tipo de conhecimento, que se coloca como detentor de um saberda verdade, mas que encobre suas falhas no reducionismo.Esta visão do conhecimento científico como verdade universal encontrou amplocampo na Medicina para sua solidificação. Estabeleceu-se de tal forma que o métodocientífico de inspiração reducionista e positivista e o conhecimento adquirido atravésdeste são ensinados até os dias atuais nas Universidades de Medicina e não sãoquestionados, sendo aceitos como verdades, devendo o médico desenvolver um olharinvestigativo sobre a doença, desvendar os diagnósticos, enquadrar o conjunto de sinaise sintomas do paciente em uma síndrome, não levando em conta a particularidade decada paciente e a complexidade do ser humano.Tesser (2009) realiza um trabalho de reflexão de cunho genealógico –epistemológico e aborda alguns aspectos do que chama de má medicina, a saber: aarrogância e o autoritarismo presentes na prática da medicina, a beligerância e aobsessão pelo controle para com a Natureza, e a ilusão por parte do médico de umheroísmo inerente à sua prática e uma missão impossível de curar todas as doenças(onipotência). Para este autor, a má medicina não pode ser reduzida somente à máprática, por haver uma série de fatores, históricos, culturais, sociais, políticos epedagógicos atrelados à biomedicina, que levaram a uma solidificação da visão da


29medicina como detentora de um saber fundado na razão, verdadeiro, não passível decontestação.Nas palavras de Martins (1999):“Para a ciência clássica, para sua ideologia, como para abiologia e a correlata medicina atual que se pretende“científica”, os corpos objetivados dizem a verdade dosorganismos reais que adentram o consultório ou o ambulatóriocom queixas, sofrimentos, sentimentos, afecções, afetos,expectativas, alegrias e tristezas. O reducionismo não é maisinstrumento, para tornar-se ideologia, crença de que a ciênciadeve cuidar apenas do que é redutível e objetivável, e de queesta objetivação “científica” corresponde à realidade de seuobjeto real, dos corpos simbólicos-e-biológicos, culturais-enaturais.”(MARTINS, 1999, p. 92)Também na Idade Média, os conhecimentos difundidos acerca da Natureza eramaceitos como verdades inquestionáveis, e assim permaneceram, ao longo de séculos. NaIdade Moderna, esses conhecimentos passam a ser questionados, porém o que seobserva é o pensamento e a pesquisa, caracterizada pelo método experimental, tendotambém como direção, em última análise, a busca pela obtenção de verdadesinquestionáveis e universais. Em síntese, a ciência moderna abandona as idéias antigas,que eram tidas como verdadeiras, voltando seu olhar para uma nova verdade (ou de umaverdade, novamente). É nesta questão que talvez se encontre a maior frustração daciência moderna: o fato de buscar a verdade das coisas, sendo que esta verdade nuncaserá atingida ou encontrada. Isso porque a ciência, e, diga-se, também a medicina, nãoconsideram as particularidades, a complexidade, tanto do funcionamento da Natureza,como do ser humano, do sentimento de ser e de estar no mundo, da vivência, daexperiência do viver. Citando Martins (1999):“A crise da ciência anuncia a falência justamente destavisão segundo a qual a identidade imposta pela razão, pela idéia,ao indivíduo, é mais definidora de si do que sua própriarealidade somatopsíquica” (MARTINS, 1999, p. 89)


30Objetivando melhor caracterizar a transição para o pensamento moderno,faremos ao longo deste capítulo algumas considerações a respeito de filósofos queforam de grande relevância no surgimento deste saber.Francis Bacon, filósofo inglês, defendia a idéia de que o homem deveriadominar a Natureza, rompendo com os métodos antigos de busca do conhecimento, poissomente assim conseguiria compreender efetivamente a Natureza, e postulava ummétodo para alcançar este objetivo, o qual seria a investigação com base emexperiências 3 . Preconizava o uso de um método sistemático de busca, deaperfeiçoamento e de aprofundamento das descobertas. Em tal método, o filósofo secolocava na posição de indagador da Natureza:“Como num tribunal, a natureza seria o réu, e os filósofosnaturais, os promotores; por meio de questionamentos, esteslevariam a natureza a lhes revelar a verdade.” (BRAGA,GUERRA & REIS, 2008, p. 54)Bacon, assim como outros pensadores de sua época, valorizava as práticas dosalquimistas, que através da realização de experiências, buscavam intervir na Natureza.Entretanto, sua crítica à alquimia pautava-se no fato de que seus experimentos nãotinham métodos claros de realização, ou seja, eram realizados sem a preocupação de'inquirir a Natureza', e sem seguir uma ordenação na coleta dos dados.“Em suas críticas, Francis Bacon propagava que overdadeiro conhecimento era aquele que proporcionava aoshomens meios vigorosos e eficazes de conquistar poder sobre anatureza. O estudo da natureza, para ter eficácia, deveria ir alémdas experimentações que mostrassem aplicações diretas. Eranecessário ampliar a análise ao que produz e regula a natureza,procurando compreendê-la em sua integralidade, para ser capazde dominá-la”. (BRAGA, GUERRA & REIS, 2008, p. 56)3É na obra intitulada Novum Organum que Bacon descreve quais os procedimentos a seremrealizados e seguidos para se obter o saber sobre a Natureza.


31Em sua obra intitulada Nova Atlântida Bacon descreve uma sociedade utópica,onde haveria um local de pesquisa que obteria o conhecimento 'nos os limites dopossível' através de métodos de experimentação sistematizados, como os propostos porele no Novum Organum. Nesta obra, Bacon objetivava mostrar que a felicidade adviriado conhecimento e do controle da Natureza, acreditando assim, que “era maisimportante dominar a natureza do que governar os homens” (BRAGA, GUERRA &REIS, 2008, p.58).Sendo assim, Bacon teve sua importância na construção do saber da ciênciamoderna, haja vista ser considerado o primeiro filósofo natural a propor o métodoexperimental como o meio ideal para se obter o conhecimento dos eventos da natureza.Muitos dos que trabalharam em prol da ciência seguiram suas idéias, utilizando ométodo experimental. Entretanto, outros filósofos, embora não se baseassem nas idéiasbaconianas, também romperam com o pensamento da ciência tradicional. A relevânciade atentarmos para as idéias de Bacon consiste no fato de que até os dias atuais épossível observar a ciência e a medicina na busca incessante do conhecimento daverdade sobre os acontecimentos da Natureza.Descartes também merece destaque neste estudo, uma vez que sua filosofia sebaseava em uma objetividade obtida através de medidas, considerando a extensão e omovimento como os únicos princípios importantes para explicar o mundo. A Natureza,para ele – assim como todos os seres vivos, incluindo o homem – foi concebida comouma máquina, reduzindo-se apenas à matéria e o movimento e todas as funções vitais aações mecânicas. Resumidamente, esta seria a idéia do corpo máquina em Descartes, aqual foi apresentada no Discurso do Método. Descartes na quinta Parte deste livrodescreve de forma detalhada a anatomia do coração e dos grandes vasos e ainda apequena e a grande circulação do sangue. E declara o corpo humano “uma máquina que,tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capazde movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas peloshomens.” (<strong>DE</strong>SCARTES, 2004, p.81)


32Descartes propôs uma ciência unificada, capaz de explicar todos os fenômenos,seus efeitos e suas causas verdadeiras. Sua filosofia, através da observação dasinterações, das forças de relação, utilizando o movimento, objetivou desenvolver leisque “apresentassem proporções matemáticas efetivamente reveladoras da essência dascoisas” (BRAGA, GUERRA & REIS, 2008, p. 65)A idéia de Deus para Descartes consistia em uma idéia clara e precisa da mentehumana, e tudo estava atrelado a esta idéia. Deus era quem garantia que a percepção dossentidos eram de fato reais, assim como a vida era real. Entretanto, a idéia da separaçãode corpo e alma é objeto de reflexão na obra intitulada “As paixões da alma”, na qualconcebe o uso da razão no sentido de controlar e afastar o pensamento do que considerapaixões (afetos); ou seja, o homem deveria livrar-se das paixões, visto que eramconsideradas como idéias confusas e obscuras à mente humana.A seguir, refletiremos acerca das concepções de Spinoza, contrapondo-as às deDescartes, fazendo uso também de citações da Ética (2007) e de artigos de Martins(1998, 2000, 2008) a esse respeito, que nos conduzirão na compreensão dos principaisconceitos espinosianos.1.2 – Afetividade e Unicidade em SpinozaEste momento do presente estudo tem como objetivo tecer algumasconsiderações que visam contribuir para a potencialização da relação médico-paciente,para a importância de se desenvolver uma mudança do pensamento com relação aomodelo biomédico e do olhar inerente à prática clínica dentro deste modelo, medianteum embasamento filosófico no pensamento de Spinoza. A escolha por este filósofo sedeu pois suas idéias são muito aplicáveis na contemporaneidade no que diz respeito arelações interpessoais.A partir do relato de minha experiência prática do trabalho em UTI, pretendemosutilizar a teoria dos afetos em Spinoza, que difere substancialmente da teoria cartesiana,no que se refere às paixões. Spinoza fala de afetos ativos e passivos, sendo os ativos


33relacionados ao aumento da nossa potência de agir (e portanto à alegria), e os passivos,relacionados à diminuição da nossa potência de agir (e portanto à tristeza).Spinoza considera o ser humano como um ser uno, indivisível, onde pensamento(res cogitans) e extensão (res extensa) são aspectos ou atributos da mesma substância, epor conseguinte igualmente mente e corpo. Diferentemente da idéia cartesiana, a partirde Spinoza não temos como separar os afetos e o psiquismo do corpo. Se entendemosassim, na medicina, não devemos tratar o paciente com foco apenas no corpo ou nadoença orgânica, pois estaremos negligenciando seus afetos e seu psiquismo. Aotratarmos somente as doenças, a terapêutica estará comprometida, no sentido de que nãoestaremos tratando o paciente, somente combatendo sua doença, sem atentar para osefeitos nocivos deste foco tão limitado.Do mesmo modo, ao nos remetermos ao ambiente de uma unidade de terapiaintensiva pediátrica e neonatal, esta tem um funcionamento muito singular,principalmente pelo fato de o paciente que se encontra internado ser uma criança ou umrecém nascido, o que também justifica o estudo da teoria dos afetos em Spinoza, hajavista que a questão de ser „uma criança‟ já afeta particularmente os profissionais desaúde que ali atuam.Afinal, o paciente em questão pode ser uma criança previamente hígida, queapresentou alguma doença de forma aguda e grave, pode ser uma criança acometida poruma doença crônica que tenha agudizado ou desenvolvido outra doença, que somada àdoença crônica levou à internação na UTI. Pode ser também, no caso da UTI neonatal,um recém nascido (RN) prematuro extremo (abaixo de 1000g), um recém nascido comalguma doença congênita ou malformação, ou ainda um recém nascido a termo comdoenças agudas, sendo, dentre estas, mais comum uma infecção. O que objetivamoschamar a atenção neste sentido, é que em qualquer destes casos, o que temos é oacometimento de uma criança, fato que por si só gera afecções nos profissionais desaúde, muito embora estas sejam vistas pelo olhar cartesiano como prejudiciais aotratamento, como devendo ser evitadas, afastando-se a razão das afecções.Martins coloca que a partir das idéias de Spinoza pode-se ter um novo olharsobre a ética, na qual esta é superior à moral imposta pela sociedade:


34“(...) em vez da divisão oposta entre razão e paixão,Spinoza inaugura uma teoria dos afetos, base de sua éticafundada na compreensão da realidade e contrária à moral,fundamentada no conhecimento de um bem transcendente a serimposto à realidade” (MARTINS, 2006, p. 9).Entretanto, antes de entrar na discussão da teoria dos afetos torna-se necessário,mesmo que sucintamente, fazermos uma incursão acerca das idéias de Spinoza sobre a“nervura que religa o corpo e a mente” e o conceito de “imanência”. Chauí (2005, p. 67)afirma que, para Spinoza, não há separação entre sujeito e objeto, pois “a imanência é anervura que sustenta todas as coisas e faz com que se comuniquem, articulando-se umasàs outras”. Essa afirmação da autora já explicita a existência de um elo entre as coisas.As coisas da natureza não são separadas, elas se articulam; é dessa maneira que elasdevem ser compreendidas.O conceito de imanência, em Spinoza, produz uma ruptura profunda com toda afilosofia escolástica e, principalmente, com a de Descartes. De acordo com Chauí(2005, p.67), o ponto central da diferenciação com a visão tradicional é “(...) a teoria dacausalidade substancial, no mesmo sentido em que é causa de si, a substância é causaeficiente imanente de todas as coisas, e, portanto, tudo o que existe, existe na e pelasubstância, sem ela não podendo ser, nem ser conhecido”.Em Spinoza, não há uma ruptura entre substância e extensão, pois a extensão éum aspecto, um atributo da substância, assim como o pensamento. Essa continuidade,essa articulação perfeita entre todas as coisas da natureza, nos leva a um entendimentode que, na perspectiva deste filósofo, não há qualquer possibilidade de separação entreespírito e extensão; entre mente e corpo; entre sujeito e objeto.Sendo assim, compreende-se que a filosofia de Spinoza se baseia na idéia daexistência de uma única substância, onde a mente e o corpo são indissociáveis, e comodescreve Martins (1998, p.104) “sem hierarquia ou primazia de um sobre o outro”,trata-se “de uma individualização una”. Ainda na concepção de Spinoza, oconhecimento não deve ser somente um conhecimento racional, local, mas sim um


35conhecimento “intuitivo”(terceiro gênero de conhecimento em Spinoza), onde sejamconsiderados os aspectos concernentes aos sentidos, a essência do todo, e não somentedas partes. Para Martins:“o conhecimento libertador configura-se, assim, comoaquele que nos toma por completo, e não somenteintelectualmente; aquele onde teoria e prática não estãodissociadas; um conhecimento que traz consigo a compreensãonão apenas do caso particular ou específico, mas também dogeral, sem que este geral se apresente como um universalabstrato – ao contrário, todo universal somente pode serapreendido e mesmo formulado enquanto conceito a partir desteentendimento intuitivo das coisas” (MARTINS, 1998, p.105).Ao trazermos essa reflexão para a ciência da medicina, ainda mais, se levarmospara a prática da medicina atual, tal como ela se apresenta nas unidades hospitalares,podemos perceber o quanto muitas vezes os profissionais de saúde acabam por oferecerum atendimento aos seus pacientes apenas focados em seus sintomas e sinais,considerando apenas a parte que, aparentemente, se apresenta afetada, esquecendo-seque esse mesmo paciente, enquanto pessoa una, compreende uma mente e um corpo quedevem ser entendidos, ou melhor, compreendidos, como únicos e indissociáveis, ondepsique e corpo-matéria devem ser olhados como sendo um só.No caso, por exemplo, do funcionamento de uma UTI, este olhar e estacompreensão devem se dar de uma forma muito rápida, os acontecimentos se dão deforma acelerada e é exigida uma atuação do médico nesse sentido onde não se deve“deixar passar nada”, deve-se ser muito atento, meticuloso, detalhista, prevenido,pensando-se sempre nas possíveis complicações, tentando-se estabelecer condutas passoa passo. As atribuições do médico dentro da UTI passam não só pelo atendimento àcriança, a assistência ao RN que se encontra internado, fazendo uso do conhecimentomédico existente para cuidar dos pacientes, fazendo uso do aparato tecnológico paramonitorização, suporte e diagnósticos, mas também passa pelo contato familiar,tentando-se sempre esclarecer aos pais o que aquela criança apresenta, da forma maissimples possível, sanando as dúvidas que surgirem, ressaltando a importância da


36participação deles no cuidado com o paciente e atenuando de alguma forma osofrimento da família.Conversamos sempre que possível, pois em alguns momentos a assistência àcriança exige maior atenção, principalmente quando da realização de algunsprocedimentos técnicos mais demorados, que são necessários dentro do tratamento.Além disso, o médico deve registrar todos os dados e todos os procedimentos noprontuário de forma detalhada, refazer a prescrição médica diariamente, recalculando osmedicamentos, o aporte de líquidos e nutrientes, sendo na maioria das vezes necessáriorealizar ajustes ao longo do plantão, conforme a resposta ou a ausência desta pelopaciente. Também compreendem a dinâmica de uma UTI neonatal as discussões sobreos pacientes internados durante o que denominamos de rounds, que consistem emreuniões diárias entre os profissionais de saúde para trocar opiniões no que tange àformulação de diagnósticos, avaliação da necessidade de exames laboratoriaisespecíficos e de imagem, objetivando traçar condutas mais adequadas a cada paciente.Ao pensarmos a prática da terapia intensiva, podemos perceber a dificuldade emlidar com as questões inerentes à mesma. É importante acrescentarmos que todo estecuidado não está relacionado a um só paciente, mas a todos os bebês ou crianças que seencontram internados na UTI naquele momento. Isto faz com que, frequentemente, apostura do médico reflita uma aparente não afetação com a sua prática. Ou ainda,podemos pensar que todas estas atribuições designadas ao médico, enunciadasanteriormente, somadas à visão cartesiana tão arraigada na Medicina Moderna, acabampor induzi-lo a uma tentativa de separar os afetos de sua prática.De acordo com uma das idéias centrais de Descartes, o seu entendimentodualista sobre mente e corpo, a alma pertenceria ao domínio de Deus; por isso seriaobjeto não alcançável pela ciência do homem; já o corpo, ou a extensão como um todo,seriam do domínio da natureza, vinculando-se a suas leis próprias e específicas; este,portanto, seria o objeto por excelência da ciência. Spinoza contraria toda essaconcepção, pois mente e corpo não podem ser concebidos por suas partes, e sim por umtodo inseparável.


37Spinoza modifica radicalmente o dualismo cartesiano entre a mente e o corpo.Na parte II da Ética, na Proposição VII, ele define que “a ordem e a conexão das idéiasé a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (SPINOZA, 2007, p. 75). Por essacolocação, fica evidente para o filósofo que os processos internos ao nível das idéias edas coisas são rigorosamente os mesmos.“Tudo que pode ser concluído por uma inteligênciainfinita, como constituindo a essência da substância, pertence auma substância única, e, por conseqüência, a substânciapensante e a substância extensa são uma e a mesma substância,compreendida ora sob um atributo, ora sob outro” (SPINOZA,2007, p. 75).Fica claro, portanto, que os atributos que Spinoza chama de substância pensantee substância extensa têm, nos seus conteúdos, a mesma essência da substância, que éúnica. O modo do atributo da substância pensante é a mente, e o modo do atributo dasubstância extensa é o corpo e a extensão como um todo. Como os atributos revelam amesma essência substancial, os modos são efeitos da causa imanente, sendo que estacausa imanente é causa de si. Na perspectiva de Spinoza, causa e efeitos não podem serseparados, porque a causa é imanente aos efeitos.Spinoza afirma: “depois de percebermos claramente que sentimos este corpo enenhum outro, daí, digo, concluímos com clareza que a alma está unida ao corpo, (...)ou, por conhecer a essência da alma, sei que ela está unida ao corpo” (SPINOZA, 2007,p. 47). Da mesma forma, por também conhecer a essência do corpo, Spinoza não tinhadúvidas sobre sua natureza e os tipos de relação entre esses dois modos. E, por “sentir”esse corpo, está dada a condição da “percepção espinosana” de conhecer algo. Chauí,concordando com Spinoza, rompe em definitivo com o dualismo cartesiano:“O modo humano é uma coisa singular, e, portanto, umindivíduo, porque é imediatamente união de mente e corpo,união sem mistérios, pois não é uma composição de „facto‟ deduas substâncias independentes de „jure‟, mas a expressãoqualitativamente diferenciada dos atributos diferentes de uma só


e mesma substância causa imanente de corpos e idéias”(CHAUÍ, 2005, p. 87).38A relação da parte com o todo é uma questão central, que vem sendoamplamente debatida na Medicina Científica Moderna. O rompimento da relação com aparte, que se separa do todo em cada divisão do objeto, representa sempre um novoavanço científico: uma nova parcela de conhecimento no campo da ciência epossibilidades assistenciais na criação de novas sub-especialidades médicas. Tudo isso émuito coerente com a divisão fragmentária cartesiana do modelo científico hegemônicoda Ciência Moderna.Por outro lado, há uma reivindicação de que o paciente deva ser visto como umser humano na sua totalidade, postulando-se que cada problema do paciente precisa seranalisado, problematizado, levando-se em consideração o sujeito como um todo, comtodas as suas dimensões: orgânica, psíquica, social, cultural, econômica, etc. Portanto, oobjetivo do médico seria, teoricamente, uma reconstrução holística 4 permanente. Cadaaspecto do paciente, ou cada conhecimento sobre um determinado aspecto dele,somente faria sentido se fosse pensada e integrada na perspectiva de um sujeitohistórico na sua totalidade.No entanto, na realidade vivenciada nas UTIs, os médicos na sua prática clínicapara tratar os problemas orgânicos dos pacientes, acabam por adotar hegemonicamentea mesma Medicina, baseada em evidências, de forma fragmentada. Pretendemosexatamente sublinhar que cada vez mais se faz premente um atendimento integral aospacientes, um olhar para o paciente como uma substância única, onde mente (psique) ecorpo (matéria) são indissociáveis.Uma questão em aberto é saber se há fundamentos filosófico-epistemológicosque dão sustentação à idéia de um ser integral no campo generalista da MedicinaCientífica Moderna. Embora esse questionamento seja legítimo, não é propriamenteessa questão que se pretende responder neste estudo. O desafio é reconhecer a4Etimologicamente holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrar-sena totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria a força para resgatar a totalidade do real,totalidade perdida.


39necessidade exponencial de se cuidar dos pacientes como seres humanos na suaintegralidade, e produzir conhecimentos a partir da prática profissional e acadêmica quedêem sustentação a essa necessidade real e urgente.Para compreender a relação da parte com o todo de acordo com a perspectiva deSpinoza, o conceito fundamental continua sendo o de imanência. Mas esse conceitoadquire neste estudo um profundo sentido epistemológico, pois apresenta instrumentospara capturar as relações de causa e efeito, como cita Chauí:“A imanência da causa no efeito ou da origem nooriginado, nervura do pensamento e da realidade, é a fibra ondese prendem e de onde se irradiam as idéias espinosanas,entrelaçadas numa estrutura dinâmica que desenha a articulaçãoinédita entre o especulativo e o prático, ou entre teoria e práxis”.(CHAUI, 2005, p. 83).Como podemos constatar, a autora identifica a imanência como um fio condutorque coloca em confronto a capacidade intelectual de pensar o objeto e as possibilidadesempírico-experimentais de uma prática científica concreta. Para Spinoza, o homem éum modo singular finito da Substância, isto é, efeito imanente da atividade dos atributossubstanciais, uma individualidade constituída em uma dinâmica intercorpórea (CHAUÍ,2005, p. 51).A união corpo e mente e a comunicação entre eles decorrem direta eindiretamente do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e únicasubstância, cujos atributos se exprimem diferenciadamente numa atividade comum aambos. Corpo e mente estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressosdiferenciadamente, rompendo-se assim a longa tradição que definira a alma comosuperior ao corpo e devendo ter comando sobre ele.A mente é uma atividade pensante que se realiza como imaginação, querer ereflexão. Pensar é ter consciência de alguma coisa e ser consciência de alguma coisa. Éda natureza da mente estar internamente ligada ao seu objeto, porque ela não é senãoatividade de pensá-lo, potência para abrir-se ao objeto e para acolhê-lo. Sendo assim,


40podemos afirmar que Spinoza ressignifica a definição de alma quando afirma que esta éa idéia do corpo.Podemos dizer então que existe uma concomitância entre os acontecimentospsíquicos e os corporais, manifestando a causalidade única da substância. Somos aunidade de um complexo corporal e de um complexo psíquico, entende-se nesse âmbito,as inumeráveis idéias que constituem nossa mente ou nossa alma (CHAUÍ, 2005, p.55-56).Nesse sentido, como pensar uma medicina que não considera a mente comoestando associada ao corpo? Como buscar a cura apenas através das representaçõesfísicas emanadas pelo corpo-matéria? Seria a denegação da existência de um todo quecompõe o „ser‟, o paciente. Desprezando, assim, as sensações, a mente (a psique), quemuitas vezes constitui a causa do efeito patológico, que se expressa também através docorpo matéria, sendo aquele uma forma de externalizar essa psique „doente‟.Nesse sentido, é preciso compreender outra importante concepção de Spinoza,qual seja, o conatus, que significa a essência do homem, uma potência natural deautoconservação, o esforço para perseverar na existência, o poder para vencer osobstáculos exteriores a essa existência, o poder para expandir-se e realizar-seplenamente. (CHAUÍ, 2005).Cada conatus está perpetuamente relacionado com outros e o mundo exteriorsurge como um conjunto de causas que podem aumentar ou diminuir o poder doconatus de cada um. A ação consiste em apropriar-se de todas as causas exteriores queaumentem a potência do conatus. A paixão, em deixar-se vencer por todas aquelas quediminuem sua potência. Assim, na ação, o conatus (mente e corpo) incorpora o exteriorgraças ao seu próprio poder, enquanto nas paixões ele se torna incapaz disso.Spinoza define ação e paixão em termos de causa adequada e de causainadequada. A ação é uma potência positiva, a paixão, um declínio da potência. Ohomem livre não é aquele que faz o que quer, mas aquele que, conhecendo as leis danatureza e as leis de seu corpo, não se deixa vencer pelo exterior, mas sabe utilizá-lo aseu favor.


41Spinoza nos apresenta, então, sua teoria dos afetos, na qual considera que odesejo é a essência do homem. O homem pensa ser livre por ter consciência de suasvolições e desejos, entretanto não reflete acerca das causas que o levam a desejar e porconseqüência a querer, afinal o homem é movido por seus apetites, que são oriundos deafetos. Entretanto, esses afetos podem ocorrer de forma ativa ou passiva. Os afetos sãopassivos quando o homem é movido por causas, valores e verdades externas. E sãoativos quando o homem consegue processar de forma própria, dando um sentidocriativo e pessoal àquilo que chega a ele, ou seja, quando o faz do seu modo.A teoria dos afetos permite o entendimento do homem e de seus afetos, de formaa poder transformar seus afetos passivos em afetos ativos, a partir de sua potência deagir, ou como nos coloca Spinoza, de seu conatus. A essência da teoria dos afetos estáconsubstanciada justamente na capacidade do homem em, ao invés de reagir a estímulosexternos, transformá-los de passivos em ativos (fazendo uso da razão afetiva),contribuindo assim para a realização ou aumento de sua potência de vida.A relação originária da mente com o corpo e de ambos com o mundo é a relaçãoafetiva. Partindo destes conceitos, Spinoza definirá a essência humana pelo desejo. Deacordo com Chauí (1991):“O desejo é a tendência interna do conatus a fazer algoque conserve ou aumente sua força. O desejo do homem livre éo desejo no qual não existe distância entre o ato de desejar e oobjeto desejado. Ser livre é conhecer as leis humanas, deixar-sevencer apenas pelas paixões positivas. As paixões negativaspodem ser vencidas pelas positivas, modificando a direção dodesejo rumo a objetos que destruam a oscilação do conatus eaumentem sua força” (CHAUÍ, 1991, p. 17).Esta mesma autora ainda afirma que:“Nosso corpo é definido pela intensidade maior ou menorda força para existir - no caso do corpo, da força maior oumenor para afetar outros corpos e ser afetado por eles; no casoda alma, da força maior ou menor para pensar. A variação da


42intensidade da potência para existir depende da qualidade denossos apetites e desejos e, portanto, da maneira como nosrelacionamos com as forças externas, sempre muito maisnumerosas e mais poderosas do que a nossa. A força do desejoaumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e aintensidade do desejo aumenta ou diminui conforme ele seja ounão conseguido, havendo ou não satisfação” (CHAUÍ, 2005, p.60).Sendo assim, quando realizamos um desejo, aumenta nossa força para existir epensar. Chama-se alegria, o sentimento que temos quando nossa capacidade de existiraumenta. O desejo frustrado diminui nossa força para existir e pensar. Chama-se tristezao que diminui nossa capacidade para existir. Todos os demais apetites e afetos sãoderivados ou variantes dos três originários: desejo, alegria e tristeza (CHAUÍ, 2005, p.60).Na vida imaginária, as afecções corporais e os afetos são paixões, e estas, sãoefeitos necessários do fato de sermos uma parte finita da Natureza circundada por umnúmero ilimitado de outras partes, que, mais poderosas e mais numerosas do que nós,exercem poder sobre nós. Portanto, nesse sentido, para Spinoza, somos causainadequada de nossos apetites e de nossos desejos, pois somos apenas parcialmentecausa do que sentimos, fazemos e desejamos, pois a causa mais forte e poderosa é aimagem das coisas, dos outros e de nós mesmos.Neste contexto, utilizando a teoria dos afetos de Spinoza no ambiente da UTIneonatal, quando o tratamento instituído ao paciente apresenta uma resposta favorável eo paciente melhora, sem dúvida, toda a equipe de profissionais de saúde sente-sefortalecida. Ficamos literalmente animados com a melhora, com a recuperação dacriança. Já vimos casos em que não acreditávamos que fosse possível uma recuperação,e esta acontecer, surpreendendo toda a equipe. Nestes momentos, falando mesmo deuma experiência pessoal, é possível perceber sutilezas como um respirar mais tranquilo,uma sensação similar ao fim de um grande temporal, ou seja, de alegria mesmo, e deuma vontade de dividir esse sentimento de alegria com a família da criança.


43É extremamente interessante evidenciar a volta do brilho dos olhos, perceberuma melhora da cor da pele e das mucosas, perceber um olhar mais vivo da criança eespecificamente no recém nascido, além destes, perceber a procura pelo seio materno ea vontade de sugar; dizemos que o bebê está mais ativo, mais 'espertinho' 5 . É fácilentender que são esses momentos que fazem com que seja possível continuar naprofissão.É estimulante e emocionante sentir que se ajudou uma criança, um recémnascido a se recuperar, a sair de uma condição grave, voltando a respirar sozinho,reassumindo as funções do seu organismo, acordando de um coma induzido porsedativos, recuperando-se de um traumatismo, voltando aos poucos a falar, a interagircom os pais, enfim, é fortalecedor pensar na atuação da equipe de saúde comofacilitadora da vida. Podemos falar, portanto, que quando temos bons resultados e opaciente se recupera, isto gera em nós paixões alegres, aumentando a nossa potência deagir.A chave da ética encontra-se na posição do conatus que tem como fundamento,primeiro e único, a virtude, palavra que, no olhar spinozista, não tem o sentido moral devalor e modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna. Avirtude do corpo é poder afetar, de inúmeras maneiras simultâneas, outros corpos e serpor eles afetado de inúmeras maneiras simultâneas (CHAUÍ, 2005, p. 63).A virtude da alma é conhecer, é pensar, e sua força interior dependerá, portanto,de sua capacidade para interpretar as imagens de seu corpo e dos corpos exteriores,passando dessas imagens às idéias propriamente ditas. Ela é passiva quando oconhecimento depende de causas exteriores, é passiva na imaginação. Ela é ativaquando o conhecimento depende dela própria, de sua força própria, é ativa na razão. Avirtude é, por um lado, um movimento e um processo de interiorização da causalidade e,por outro lado, a instauração de nova relação com a exterioridade. Assim, apossibilidade da ética encontra-se na possibilidade de fortalecer o conatus para que se5Na pediatria é muito característico o uso de expressões no diminutivo. Acredito que este uso nãoé em nada depreciativo, ao contrário, está associado a sua forma mais carinhosa, mais afetuosa de seexpressar.


44torne causa adequada dos apetites e imagens do corpo e dos desejos e idéias da alma(CHAUÍ, 2005, p. 63-64).Segundo a proposição 18 da Parte IV da Ética, “O desejo que nasce da alegria émais forte do que o desejo que nasce da tristeza”. Spinoza nos faz ver que a alegria e odesejo nascido da alegria e, portanto, o desejo nascido de todos os afetos de alegria,como o amor, a amizade, a generosidade, o contentamento, a misericórdia, abenevolência, a gratidão, a glória são as paixões mais fortes. E, ainda, que a vida éticacomeça, assim, no interior das paixões, pelo fortalecimento das mais fortes eenfraquecimento das mais fracas, isto é, de todas as formas da tristeza e dos desejosnascidos da tristeza. Uma tristeza intensa é uma paixão fraca; uma alegria intensa, umapaixão forte, pois fraco e forte se referem à qualidade do conatus ou da potência de ser eagir, enquanto a intensidade se refere ao grau dessa potência. À medida que as paixõestristes vão sendo afastadas e as alegres vão sendo aproximadas, a força do conatusaumenta, de sorte que a alegria e o desejo dela nascido tendem, pouco a pouco, adiminuir nossa passividade e preparar-nos para a atividade.Afirma Chauí:“O primeiro instante da atividade é sentido como um afetodecisivo: quando, para nossa alma, pensar e conhecer for sentidocomo mais forte dos afetos, o mais forte desejo e a mais fortealegria, um salto qualitativo tem lugar, pois descobrimos aessência de nossa alma e sua virtude no instante mesmo em quea paixão de pensar nos lança para a ação de pensar” (CHAUÍ,2005, p. 65).Assim, encontramos sentido nas quatro primeiras proposições do Livro Ética: aética não é senão o movimento de reflexão, isto é, o movimento de interiorização noqual a alma interpreta seus afetos e as afecções de seu corpo, destruindo as causasexternas imaginárias e descobrindo o seu corpo como causas reais dos apetites edesejos. A possibilidade da ação reflexiva da alma encontra-se, portanto, na estrutura daprópria afetividade: é o desejo de alegria que impulsiona rumo ao conhecimento e àação. Pensamos e agimos não contra os afetos, mas graças a eles.


45Para Spinoza, a essência da alma é o conhecimento e, quanto mais conhece, maisrealiza sua essência ou sua virtude (e fortalece seu conatus). A liberdade consiste emreconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites e imagens, dos desejos e idéias,afastando a miragem ilusória das causas finais externas.Em suma, Spinoza nos traz o conceito de substância (e portanto o de imanência),sendo esta única, contrariando a idéia cartesiana de separação entre corpo e mente, oolhar mecanicista, do corpo-máquina, que, no nosso caso, tenta desvendar o diagnósticoa fim de descobrir no paciente onde está o 'defeito'. Com a concepção de Spinoza deunicidade, não só o corpo é um todo complexo, como não há separação entre corpo emente, não há como separar os afetos e o psiquismo do corpo, e não há outra forma dese relacionar com o mundo que não seja mediada pelos afetos. Spinoza nos acrescentano sentido de propor o uso do conhecimento (razão afetiva) para poder transformar osafetos. Transpondo para a prática da UTI, evidencia-se que os profissionais que aliatuam estão expostos às mais diversas situações geradoras de afecções, dentre elas ocontato com bebês doentes, prematuros extremos, crianças com quadros graves,irreversíveis e morte. Poderíamos dizer que a UTI é uma' 'montanha-russa' de afetos,pois lida-se com extremos: de alegria, pela recuperação de uma criança que apresentavaum quadro extremamente grave, e de tristeza, como por exemplo, pela irreversibilidadede alguns quadros. Tais situações – sobretudo na medida em que o pensamento évoltado para um total controle sobre a Natureza, para uma busca incessante do defeitodo corpo máquina e para uma resolução deste, objetivando trazer o organismo para operfeito funcionamento fisiológico – são geradoras de afetos passivos, enfraquecendo oconatus e diminuindo a nossa potência de agir. A teoria dos afetos em Spinoza tem autilidade de proporcionar através do conhecimento intuitivo-afetivo uma transformaçãodos afetos, fortalecendo nosso conatus.1.3 – Normatividade em CanguilhemA concepção de doença para as pessoas está intimamente ligada à idéia deausência de saúde. Em geral, quando se pergunta a uma pessoa, seja ela da área da


46saúde ou não, o que ela entende por doença, a grande maioria concorda com esta idéia.Esta concepção existe desde o século XIX, quando Claude Bernard afirmava que osfenômenos patológicos seriam apenas variações de ordem quantitativa dos fenômenosnormais. Dessa forma, a doença consistiria em uma infração à norma, à saúde, e,portanto, a doença seria uma a-normalidade, uma ausência de norma.Camargo Jr. (2003), ao refletir sobre o pensamento biomédico constata estavisão da saúde como ausência de doença: “A busca da causa última das doenças ébasilar na medicina: a essência da doença reside em sua causa, logo, remova-se a causae cessa a doença.”A partir da idéia de normalidade, Camargo Jr. (2003) identifica uma divisãobásica de lesões (doenças) presente caracteristicamente no modelo de pensamentobiomédico. As lesões, ou doenças, poderiam se dividir em quatro tipos, a saber:anomalias, quando evidencia-se a presença de sinais clínicos que não deveriam estarpresentes (como por exemplo, o autor coloca a palpação de massas no abdome, outambém poderíamos acrescentar a presença de malformações congênitas); distorções,quando evidencia-se alteração em algum resultado de exame, ou quando se desenvolveuma deformidade por consequência de alguma doença específica; supressões, quandoocorre a abolição de sinais clínicos, como por exemplo ausência de reflexos ou ausênciade ruídos peristálticos; e variações quantitativas, quando se observa alterações nossinais vitais (frequência cardíaca, frequência respiratória, temperatura, pressão arterial),ou exames complementares que expressam quantidade. Cabe aqui ressaltar que estaclassificação só é possível a partir do pressuposto de uma normalidade ideal, conceitodiscutido e relativizado por Canguilhem.Canguilhem (1978), em sua obra intitulada O normal e o patológico propõe umareflexão filosófica sobre o normal como variação não quantitativa, mas sim qualitativado patológico. Sendo, portanto este entendido não como ausência de norma biológica,mas sim como uma norma diferente da anterior. Ou seja, um indivíduo pode apresentaruma doença física, a qual poderá até mesmo limitar algumas de suas capacidades,entretanto, na sua experiência individual no lidar com a doença, esta nãonecessariamente o torna incapacitado de sentir bem estar, de se sentir potente, ativo,


47alegre, ou com potência de vida. Este indivíduo, portanto, nos termos de Canguilhem,seria considerado um indivíduo normativo e saudável em diversos aspectos.Canguilhem faz, assim, um uso diferente do termo normativo, e o define:“Em filosofia entende-se por normativo qualquerjulgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a umanorma, mas essa forma de julgamento está subordinada, nofundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido dapalavra, normativo é o que institui as normas. E é nesse sentidoque propomos falar sobre uma normatividade biológica.”(CANGUILHEM, 1978, p. 96)Consideramos os conceitos de normativo e de normatividade em relação aoobjeto deste estudo, no contexto do ambiente de uma UTI, onde os pacientes internadosestão em uma situação de limitação por „norma inferior‟, portanto doentes,necessitando, por exemplo, de suporte ventilatório, para manter a respiração;hemodinâmico, para manter o coração funcionando de forma a fornecer oxigenaçãoadequada dos órgãos e tecidos; hídrico, com o intuito de dar ao paciente a quantidade delíquidos necessária; nutricional, para manter um aporte de calorias adequado;metabólico, no caso de doenças do metabolismo – os denominados erros inatos dometabolismo – onde o paciente requer a reposição de determinadas substâncias(lipídios, glicídios, proteínas); hematológico, no sentido de repor componentes dosangue que estariam deficientes, como por exemplo, plasma e plaquetas nos casos desangramentos graves, concentrado de hemácias nos casos de anemias graves;imunológico, no caso de administração de imunoglobulinas em doenças específicas, ouainda no sentido de ajudar o sistema imunológico do paciente a combater uma infecçãoadministrando antibióticos.O conceito de norma utilizado pela medicina, fundamentado na idéia de médianormal, direciona sua atuação no sentido de buscar trazer o funcionamento de umorganismo doente para o estado fisiológico “normal”, para o considerado"funcionamento perfeito dos órgãos e sistemas". Queremos propor, a partir deCanguilhem, uma conduta terapêutica na terapia intensiva (pediátrica) de uma forma


48individualizada, considerando cada paciente separadamente e tomando medidas nosentido de trazê-lo para o seu normal ou melhor, para um estado normativo, ondemesmo apresentando algo que seria, pelo olhar mecanicista da medicina, consideradocomo doença, ele se sinta bem, ativo, saudável. Conforme coloca Canguilhem (1978,p.65): “os sintomas mórbidos subjetivos e os sintomas objetivos raramente coincidemum com o outro”. E ainda:“Se existem normas biológicas, é porque a vida, sendonão apenas submissão ao meio, mas também instituição de seumeio próprio, estabelece, por isso mesmo, valores, não apenasno meio, mas também no próprio organismo. É o que chamamosde normatividade biológica. Não é absurdo considerar o estadopatológico como normal, na medida em que exprime umarelação com a normatividade da vida.” (CANGUILHEM, 1978,p. 187)A internação de uma criança na UTI, em um ambiente estranho a ela, com arealização de uma série de intervenções diagnósticas e terapêuticas, gera umconsiderável sofrimento à criança, e muitas vezes esse sofrimento não é percebido peloprofissional de saúde. Existem casos em que a recuperação da criança é visivelmentecomprometida não por questões fisiológicas, mas pelo próprio estado de depressão(sofrimento psíquico) advindo da internação e do tratamento. Há também casos em quea criança se recupera totalmente do problema físico, da disfunção orgânica que levou àinternação, entretanto não se torna saudável, recebendo alta da UTI com sintomas dedepressão, ou com um medo extremo do ambiente hospitalar, ou ainda com reações deagressividade em relação à equipe de profissionais de saúde, e em alguns casos, atémesmo aos próprios pais. Neste caso, a criança recuperou-se da doença física, mas nãono seu aspecto psíquico, não se encontrando, portanto, saudável.O contrário, também é verdadeiro. Em muitos casos, a criança não apresentarecuperação plena de suas funções orgânicas, mas esta, entretanto, encontra-se ativa,brincando, feliz e sentindo-se apta para a vida, mesmo apresentando alguma condiçãode disfunção orgânica, que exija o uso de alguns medicamentos cronicamente, ou ainda,


49que venha a fazer algum tipo de acompanhamento médico regular, ou que necessite douso de alguma órtese ou prótese, enfim, qualquer condição que, do ponto de vistaestritamente fisiológico, já condenaria previamente a criança a uma condiçãopatológica. Poderíamos referenciar tais colocações com as palavras de Canguilhem(1978):“O que é um sintoma, sem contexto, ou um pano defundo? O que é uma complicação, separada daquilo que elacomplica? Quando classificamos como patológico um sintomaou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquiloque os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidadeindivisível de um comportamento individual. De tal modo que aanálise fisiológica de funções separadas só sabe que está diantede fatos patológicos devido a uma informação clínica prévia;pois a clínica coloca o médico em contato com indivíduoscompletos e concretos e não com seus órgãos ou suas funções.”(CANGUILHEM, 1978, p. 65)Canguilhem neste trecho estava se referindo especificamente apenas aoorganismo, não considerando o psiquismo, pois um dos exemplos dados em seu texto éo de que o diabetes não seria uma doença do rim pela glicosúria, nem especificamentedo pâncreas pela baixa produção de insulina, mas sim que a doença seria de todo oorganismo, onde todas as funções estariam sendo modificadas, sofrendo. Mas podemosclaramente trazer esse pensamento de Canguilhem ao considerarmos também opsiquismo, ou seja, o indivíduo como um todo, e não apenas o organismo.O que queremos ressaltar aqui é que o indivíduo só pode ser considerado doentena medida em que deixa de ser normativo, atuante, com disposição para a vida, eencontra-se incapaz de instituir normas novas, diferentes, à sua vida. Na medicina atual,de uma maneira geral, costuma-se classificar indivíduos como doentes apenas tendo emvista o desempenho fisiológico de determinados órgãos ou sistemas. Além disso, umasituação ainda bastante comum na medicina é a referência ao paciente pela sua doença,ou seja, o paciente não é só classificado como doente, mas também é confundido com


esta classificação; já em 1943, quando da elaboração de sua tese, Canguilhem elaboravacríticas relevantes a essa postura:50“Em resumo, a distinção entre a fisiologia e a patologiasó tem e só pode ter um valor clínico. É por essa razão queachamos, contrariamente a todos os hábitos médicos atuais, queé medicamente incorreto falar em órgãos doentes, tecidosdoentes, células doentes.” (CANGUILHEM, 1978, p. 182)Cabe ressaltar que ainda hoje tal crítica de Canguilhem faz muito sentido, poispodemos observar estes mesmos hábitos médicos aos quais ele se refere na nossa práticaclínica diária.No ambiente da UTI, é relevante pensarmos como a atitude médica se dá nosentido de se tentar ao máximo restabelecer a fisiologia, de manter o corpo “máquina”funcionando, muitas vezes às custas de procedimentos bastante invasivos para opaciente, e por longos períodos, gerando sofrimento ao próprio paciente e à sua família,que também deve ser considerada.Em alguns casos, têm-se resultados positivos, porém há casos em que não seconsegue um bom restabelecimento do paciente, e este pode vir a apresentar seqüelasimportantes, que vêm a comprometer definitivamente sua capacidade normativa.Dispomos cada vez mais de recursos tecnológicos para manter a “máquina”funcionando; de aparelhos de ventilação mecânica, para manter o paciente respirandoartificialmente; de drogas inotrópicas e vasoativas, que permitem fazer com que,durante a ação destas drogas, o coração restabeleça sua capacidade de contratilidadepara manter um bombeamento adequado de sangue aos tecidos, assim como manter otônus adequado dos vasos sangüíneos, para manter a pressão arterial; de sedativos eanalgésicos potentes para diminuir o nível de consciência do paciente e fazer com queeste não sinta dor ou, se sentir, que esta seja minimizada, pois algumas destasmedicações têm um efeito de amnésia anterógrada, ou seja, fazem com que o pacientenão se recorde de nada que sofreu; de antibióticos potentes, capazes de controlarinfecções por germes multirresistentes, presentes no ambiente hospitalar; de dietas


51especiais para pacientes graves, aplicadas por cateter naso ou orogástrico, ou cateternasoenteral, contendo o aporte calórico considerado necessário, permitindo a nutriçãodeste paciente mesmo em uma condição em que ele não consiga se alimentar por viaoral; e de nutrição parenteral, que é um tipo de nutrição contendo aminoácidos, lipídeos,eletrólitos (íons), oligoelementos e vitaminas, a qual é administrada via intravenosa,utilizada nos casos em que o paciente não pode receber alimentação por via oral,gástrica ou enteral.Dessa forma, mediante os exemplos citados, podemos ter uma noção do quantose adquiriu em tecnologia ultimamente, permitindo manter „vivo‟ aquele paciente quehá algumas décadas atrás não sobreviveria. Tal tecnologia é utilizada acompanhada deuma tentativa de controle rigoroso de todas as funções, de todas as minúcias dofuncionamento dos órgãos e sistemas do organismo deste paciente. Dizemos tentativade controle, pois sempre há algo que escapa; a medicina nunca foi, não é, e nem nuncaserá uma ciência exata, por mais estudos que se façam, por mais informações detalhadasque se tenham, conhecimentos científicos, e mais tecnologias à disposição.Mas o ponto onde pretendemos chegar refere-se ao fato de que podemos edevemos utilizar da tecnologia e do conhecimento adquirido para permitir e auxiliar namelhora ou na cura do paciente, no sentido de que este recupere a sua capacidadenormativa; nos casos em que isso não é possível, seja pelo fato de a doença serincapacitante e/ou não apresentar possibilidade de cura ou melhora, o que propomos étentarmos ao máximo oferecer uma terapêutica de suporte, com o mínimo deinvasividade, com a maior individualidade possível, ou seja, de forma personalizada,avaliando possibilidades de se instituir uma melhora na qualidade de vida destespacientes, juntamente com o apoio e participação da família do mesmo. De acordo comCanguilhem:“Ora, a clínica não é uma ciência e jamais o será, mesmoque utilize meios cuja eficácia seja cada vez mais garantidacientificamente. A clínica é inseparável da terapêutica, e aterapêutica é uma técnica de instauração ou de restauração nonormal, cujo fim escapa à jurisdição do saber objetivo, pois é a


52satisfação subjetiva de saber que uma norma está instaurada.Não se ditam normas à vida, cientificamente. Mas a vida é essaatividade polarizada de conflito com o meio, e que se sente ounão normal, conforme se sinta ou não em posição normativa. Omédico optou pela vida. A ciência lhe é útil no cumprimento dosdeveres decorrentes dessa escolha.” (CANGUILHEM, 1978, p.185)Ressaltamos, portanto, aqui a importância da tese de Canguilhem pararepensarmos os conceitos de normal e patológico, dos processos de saúde e doença, e ouso que fazemos destes mesmos conceitos na prática clínica diária, inseridos em umambiente hospitalar, à mercê de um leito de UTI, tomando cada pacienteindividualmente, sem prévias classificações, e utilizando do conhecimento adquirido emprol da recuperação do paciente, do estabelecimento de sua cura, que, também a partirdo pensamento de Canguilhem, advém do surgimento de novas normas de vida.


CAPÍTULO 2 – O OLHAR PSICANALÍTICO NA PRÁTICA DATERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA E NEONATAL53“O pulso ainda pulsaO pulso ainda pulsaPeste bubônica, câncer, pneumoniaRaiva, rubéola, tuberculose, anemiaRancor, cisticercose, caxumba, difteriaEncefalite, faringite, gripe, leucemiaO pulso ainda pulsa (pulsa)O pulso ainda pulsa (pulsa)Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisiaToxoplasmose, sarampo, esquizofreniaÚlcera, trombose, coqueluche, hipocondriaSífilis, ciúmes, asma, cleptomaniaE o corpo ainda é poucoE o corpo ainda é poucoReumatismo, raquitismo, cistite, disritmiaHérnia, pediculose, tétano, hipocrisiaBrucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopiaCatapora, culpa, cárie, câimbra, lepra, afasiaO pulso ainda pulsaO corpo ainda é poucoAinda pulsa.”Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, O pulsoNo presente capítulo, apresentaremos alguns conceitos de Winnicott (1975,1983, 1990, 1999, 2000, 2001, 2005, 2006), relativos ao desenvolvimento emocional dobebê. Discutiremos a importância do psiquismo nos processos de saúde-doença eproporemos o desenvolvimento de um olhar psicanalítico na prática da terapia intensiva,necessário para uma prática terapêutica suficientemente boa.


542.1 – Winnicott, o bebê e o ambientePara Winnicott, o ambiente é de natureza fundamental para o desenvolvimentodo ser humano, criando e fornecendo as condições para sua boa conclusão. Winnicott(1975) faz uma clara distinção entre ambientes possíveis, nomeando de facilitador, ousuficientemente bom, aquele que fornece as condições suficientes para odesenvolvimento saudável do indivíduo. Um ambiente facilitador é o que atende demodo suficiente às necessidades do indivíduo, e tais necessidades se modificam deacordo com o momento no qual este se encontra no processo de amadurecimento. Aocontrário, um ambiente não suficiente é aquele que não atende às necessidadesmaturacionais do indivíduo, de modo que este não consiga se organizar de maneirasaudável, desenvolvendo distúrbios de ordem emocional.Por ambiente, Winnicott entende aquilo que sustenta o indivíduo no tempo e noespaço. De início é o corpo da mãe, depois os braços da mãe, o lar proporcionado pelospais e assim por diante. Ou seja, é o mundo, mas não o mundo como o conhecemosquando adultos e, sim, o mundo que é a mãe e que é apresentado pela mãe em pequenosfragmentos que vão se ampliando a cada nova experiência (WINNICOTT, 1975).No começo, logo após o nascimento, as necessidades do bebê em relação aoambiente dizem respeito à técnica do cuidar normalmente praticada pela mãe, a qual oalimenta, segura, balança, mantém aquecido e confortável, dá banho e chama pelonome. O cuidado do início deve ser incessante para possibilitar a continuidade docrescimento emocional. Nesse momento, o ambiente adequado propicia ao bebê aexperiência de ilusão que vai permitir o contato entre psique e ambiente (WINNICOTT,1983, p.311). Neste contexto, a necessidade de internação do bebê em uma UTI poderiainfluenciar substancialmente esta fase inicial, pois instaura uma quebra na livreinteração da mãe com o bebê.Winnicott em O ambiente e os processos de maturação desenvolveu o conceitode holding, que definiu como “o estado real do relacionamento materno-infantil noinício, quando o lactente não separou o self do cuidado materno em que existe adependência absoluta em seu sentido psicológico”. Neste estágio o lactente necessita de


55uma 'provisão ambiental' suficientemente boa, o que proporcionaria a integração do self– importante conceito a ser melhor explicitado adiante. Este cuidado do qual falamoscompreende o holding, o qual pode ser assim definido:“[...] Inclui a rotina completa do cuidado de dia e noite.[...] Deve-se notar que mães que têm em si prover cuidadosuficientemente bom podem ser habilitadas a fazer melhorcuidando de si mesma, de um modo que reconhecem a naturezaessencial de sua tarefa. As mães que não têm essa tendência deprover cuidado suficientemente bom não podem ser tomadascomo suficientemente boas pela simples instrução. [...] Inclui o"holding" físico do lactente, que é uma forma de amar. Épossivelmente a única forma em que uma mãe pode demonstrarao lactente seu amor” (WINNICOTT, 1983, p.48).Assim, a mãe ao segurar seu bebê e se deter sem pressa e com atenção em todosos detalhes que ele apresenta está possibilitando a este criar e habitar um „nicho‟ que éfeito de tempo e de concentração, no interior do qual alguma coisa, que pertence ao aquie agora, pode ser experimentado (DIAS, 2003, p.205).Com base em Winnicott, o holding deve ser entendido da seguinte forma:“A mãe deve estar disponível para sustentar a situação notempo. Não basta que ela esteja fisicamente disponível: épreciso que ela esteja pessoalmente bem, a ponto de manter umaatitude consistente durante um período de tempo, e ser capaz desobreviver ao dia e aos conjuntos de dias chamados semanas emeses [...]” (WINNICOTT, 1990, p.176).Para Winnicott, o contato do bebê com o corpo da mãe, a maneira como ela lidacom a sua rotina reconhecendo quando o seu filho precisa ser amamentado, ou mesmoquando está satisfeito, fazendo os ajustes de acordo com as necessidades dele, e nãosimplesmente de acordo com uma rotina severa, favorece o estabelecimento dasegurança no pequeno mundo do bebê e este amadurece e fica exultante por encontrar amãe por trás do seio ou mamadeira, e descobrir o quarto por trás da mãe, e o mundopara além do quarto (WINNICOTT, 1983).


56Assim sendo, diante do exposto acima se infere que a mãe que é capaz deprovidenciar o holding é aquela que se encontra no estado de preocupação maternaprimária e através dos cuidados maternos possibilita ao bebê se entregar ao mundosubjetivo e ficar protegido de intrusões vindas do mundo externo. Também é capaz depropiciar ao bebê a ilusão de onipotência.“Um bebê é segurado, satisfatoriamente manejado e, issoaceito, é-lhe apresentado um objeto de tal modo, que suaexperiência legítima de onipotência não seja violada. Oresultado pode ser que o bebê seja capaz de usar o objeto esentir-se como se esse objeto fosse um objeto subjetivo, criadopor ele. Tudo isso é próprio do início, e de tudo isso provém asimensas complexidades que abrangem o desenvolvimentoemocional e mental do bebê e da criança” (WINNICOTT 1975,p. 154).O termo holding inclui tudo aquilo que a mãe faz para o seu bebê; o manejo é amaneira como ela o faz. O segurar inclui o deixar, no momento, na forma e no tempocertos, conforme a necessidade do bebê. Nesse estado temporário de extremaidentificação com o bebê, a mãe mais ou menos sabe, sem precisar pensar, o que o bebênecessita. Ela faz isso, na saúde, sem perder sua própria identidade. O toque é parte doholding.A pele, obviamente, dá contorno ao corpo e separa o que é interior e exterior; éela que vai ser a moldura de um corpo que, por ter contorno, pode abrigar umpsiquismo. E só por meio de cuidados suficientemente bons é que a localização dapsique no corpo pode acontecer. No início, corpo e psique não estão integrados, e essaintegração deverá ser alcançada (personalização).Em uma UTI neonatal, é de suma importância que se estabeleçam estescuidados, este holding, com a equipe de profissionais de saúde não apenas tratando dapatologia em si, que o recém nascido apresenta, mas também oferecendo estes cuidados,auxiliando a mãe, dentro desta situação específica, a realizar os cuidados maternos.


57A tarefa de todos nós é ir integrando aspectos, constituindo-os como unidade,com um self individual, com um eu discriminado de outro. O trabalho de integração épara toda a vida; as sensações corporais, tanto as internas, dos órgãos, como as externas,do outro, se darão durante toda a existência. No início, há um estado original de nãointegração. Não ocorre ligação entre corpo e psique, e não há lugar para uma realidadenão-eu (WINNICOTT, 1999).As primeiras necessidades do bebê são corporais; da elaboração imaginativadessas sensações corporais, um psiquismo passa a se organizar, e gradualmente elas setransformam em necessidades do ego. O bebê começa a integrar as sensações somáticascom as imagens que surgem das sensações.O ego se organiza a partir de ameaças de aniquilamento que não chegam a sedar, e das quais o bebê se recupera – a mãe suficientemente boa comete falhas e o bebêapresenta uma certa capacidade para suportá-las. Essas experiências vão dando a eleconfiança na recuperação, e propiciando gradativamente a capacidade do ego de tolerarfrustrações.A psique existe desde o começo da vida, é a capacidade imaginativainicialmente não simbólica, não representacional. Já no útero, o bebê está apto a usar aimaginação, que é esquematizante do corpo. A mente, como função, é a integração docorpo e da psique. “A palavra psique significa elaboração imaginativa dos elementos,sentimentos e funções somáticos, ou seja, da vitalidade física”. A psique depende daexistência de um cérebro saudável; o existir é psicossomático. Quando não é possíveloperar essa integração, o indivíduo fica privado de viver sua própria existência eadoece, em uma nova tentativa de fazer essa integração (WINNICOTT, 1975, p. 332).Penso: como o desenvolvimento emocional do bebê se dá durante umainternação na UTI neonatal? O holding seria a ferramenta mais importante para sepromovê-lo de forma saudável durante uma internação na UTI (no caso de bebêsprematuros, por exemplo).Junqueira (2003) realizou um trabalho de observação e reflexão acerca dovínculo entre mãe e filho hospitalizado através do Programa Saúde e Brincar. A autora


58observou que o fato de a criança brincar demonstrava um dado de saúde, o que tornavaa mãe menos ansiosa e angustiada, aumentando a confiança de ambos (mãe e filho) narelação; observou também uma mudança no olhar materno para a criança, fazendo comque aquela perceba esta aceita e respeitada como qualquer outra criança, podendo serestabelecido um contato diferenciado, não baseado na perspectiva da doença. O brincar,portanto, fortalecia o vínculo mãe-filho e facilitava o holding por parte da mãe,constituindo-se em uma excelente proposta a ser implementada por outros serviços.Winnicott (1973, p. 223) postula uma não integração primária, já que aintegração começaria somente após o início da vida pós-nascimento. Assim que acriança nasce, e talvez antes, no útero e durante o nascimento, por meio dos cuidadosrecebidos, seu corpo vai sendo afetado por outro. O bebê é banhado por sensaçõesprovindas do corpo do outro, cheiro, calor, pulsação, e vai elaborando essas sensações,ou seja, vai integrando-as em sensações próprias. Nascem o psiquismo e o camposubjetivo.Teoricamente, o estado de não integração é o estado original; mas, na prática, oque apenas se observa é um bebê sendo cuidado, ou seja, sendo amado, fisicamenteamado. A adaptação às suas necessidades pode e deve ser praticamente total(WINNICOTT, 1990, p. 131). Na UTI neonatal devemos tentar reproduzir ao máximoessa adaptação às necessidades do recém nascido.No começo não há caos, e sim um estado de não integração, que não é caótico.A desintegração, sim, é caótica. A idéia de caos pressupõe ordem, como a escuridãopresume luz. Bem no início, antes que cada ser individual e singular crie o mundo denovo, a seu modo, há simplesmente um estado de ser, e uma incipiente consciência dacontinuidade de ser e da continuidade da existência no tempo.O caos primeiro é a quebra da linha de ser, e a recuperação dessa quebra ocorrepela reaquisição da continuidade. O caos aparece quando, devido a uma falha doambiente (como principal exemplo, pensar em uma internação em uma UTI neonatal),uma reação a essa falha interrompe a continuidade de ser, principalmente se ainterrupção for demorada. Se ela estiver além da tolerância possível, certa quantidade decaos passará a fazer parte da constituição.


59Existe, sem dúvida uma tendência biológica em direção à integração. Não é combase na desintegração que se pode entender a integração; é preciso postular um estadode não integração, a partir do qual a integração tomaria lugar. O bebê que nósconhecemos como uma unidade, protegido no útero, ainda não é uma unidade emtermos de um desenvolvimento emocional. Se olharmos do ponto de vista do bebê, osestados de não integração acompanham um estado de não consciência (WINNICOTT,1990, p. 116).Fora dos estados não integrados, a integração ocorre por breves períodos, e sógradualmente um estado geral de integração se torna um fato. Fatores internos, como asurgências instintivas e a expressão da agressividade, conduzem à integração, cada umdesses fatores precedido por uma aglutinação do self como um todo. Nesses momentos,a consciência é possível; já há um self para tomar consciência. A integração é tambémpromovida pelo cuidado ambiental.Assim, uma das tarefas da mãe – e dos cuidadores, se pensarmos na prática deuma unidade intensiva neonatal – nesse início, é possibilitar que o bebê atinja umaintegração. Essa integração iria se operando por breves momentos e, aos poucos, setransformando em fato. O bebê, apto a integrar as sensações corporais e as diversasfunções de cuidado, que nesse momento são da mãe, iria constituindo um ego.Antes de ter um ego constituído, o bebê ainda não é uma pessoa inteira eseparada das outras; é importante para ele, portanto, poder contar com o ego auxiliar damãe – e, no caso da UTI neonatal, o cuidador também funciona como um ego auxiliar,como ambiente – permitindo-se assim que o bebê se relacione com seus objetossubjetivos, aqueles que ele criou. As vivências instintivas ainda não são captadas comoexperiências; o bebê ainda não é uma entidade que possa ter experiências, não há ego.Winnicott chama de vivências tudo aquilo que é sentido antes que um ego próprio estejaconstituído. Só então as vivências passam a ser sentidas como experiências. E aindapropõe a seguinte reflexão: “Não há um ego desde a saída [nascimento]?”. E ele noslembra que o começo é uma soma de começos. (WINNICOTT, 1990, p. 56).Vilar, Borges e Coser (2007) realizaram um estudo reflexivo sobre crianças quenascem com anomalias e necessitam ser internadas em uma UTI neonatal cirúrgica.


60Através do relato do atendimento a uma mãe, cujo filho havia nascido com uma máformação abdominal, as autoras fazem uso da teoria winnicottiana para entender eacolher esta mãe, e intervir no sentido de fortalecer seu vínculo com o bebê. A mãe,fragilizada com o quadro do filho, não consegue promover holding a seu bebê e nestecaso, foi necessária a presença do psicanalista na UTI, propiciando acolhimento à mãe eao bebê, desfazendo projeções e idealizações (quanto a uma expectativa de normalidadeda criança), para que esta possa assim exercer sua maternidade. É necessário ressaltarque tão ou mais importante do que os resultados da cirurgia (para tentar corrigir oproblema), foi a aceitação e a receptividade dos pais para com a criança com anomalia,oferecendo-lhe um cuidado suficientemente bom de modo a propiciar-lhe a suaintegração.Winnicott usa a palavra “start”, diferentemente de “beginning” (começo), quepossui o sentido de atividade, início de uma jornada. Pensa-se assim que se trata de umapartida para a vida, da vitalidade que se produz quando se conta com um ego ativo evigoroso. Pode-se dizer que o bebê se sentirá em pedaços se não estiver em umambiente que o mantenha inteiro; daí a importância dos cuidados físicos. E ainda: daí aimportância do profissional de saúde que está ali assistindo um recém nascido, terconhecimento destes conceitos, ou noções suficientes, para sua aplicação na prática,realizando estes cuidados, objetivando um bom desenvolvimento emocional deste bebê.O holding e a integração no tempo e no espaço, na concepção de Winnicott,agregam a si aquela que é considerada a mais básica e fundamental das tarefas doamadurecimento, para que um bebê possa constituir uma identidade, residir em seucorpo, criar um mundo subjetivo, ter o sentido de realidade, relacionar-se com objetos,ter memória de si, das coisas e do mundo, ele não poderá fazê-lo fora do tempo e doespaço e sem a ajuda da mãe (WINNICOTT, 1990, p. 48).“O primeiro sentido do tempo, no mundo subjetivo, é o dacontinuidade da presença, que se instaura pela experiênciarepetida da presença da mãe, da sua permanência, dacontinuidade dos cuidados que lhe apresentam continuamente omundo. O bebê não sabe da existência permanente da mãe, mas


sente os efeitos da presença e, vagarosamente, criando umamemória dessa presença, conta com isso” (DIAS, 2003, p.197).61De acordo com o proposto por Winnicott pode-se avançar algumas reflexões, talcomo o fato de que algumas intervenções são importantes não pelo conteúdo trazido àconsciência, mas pela atitude do médico. Neste estudo, estas „intervençõesinterpretações‟ serão denominadas de holding, compreendendo que sua principalimportância está em encontrar no médico um ambiente favorável ao acolhimento dasansiedades vividas, à integração dos elementos trazidos à consciência, à sustentação doverdadeiro self e ao desenvolvimento emocional.“Um analista está trabalhando, e o paciente estáverbalizando, e o analista interpretando. Não é bem uma questãode interpretação verbal. O analista sente que no material que lheé apresentado pelo paciente há uma tendência que pedeverbalização. Muita coisa depende da maneira como o analistausa as palavras, e, portanto, da atitude que se oculta por trás dainterpretação (WINNICOTT, 1975, p. 85).Pode-se a partir desta citação de Winnicott considerar a atitude do médico nestemesmo sentido. Muita coisa depende da maneira como o médico usa sua forma deconstruir sua assistência, sua conduta, bem como sua interpretação diante das palavrasdo paciente, ou de seu cuidador, ou no caso dos bebês, de seus pais. Ou ainda, não sódas palavras, mas também das atitudes, do comportamento dos próprios bebês, que sãoos pacientes dentro das unidades de terapia intensiva neonatal.Uma das formas que se pode citar de interpretação como holding se refere àinterpretação que sinaliza ao paciente, ou aos pais do bebê, que a compreensão domédico é limitada, o que acontece quando a interpretação é errônea ou não vai ao centroda questão: “eu retenho certa qualidade externa, por não acertar sempre no alvo oumesmo estar errado” (WINNICOTT, 1975, p. 153). Nesse caso, o paciente, ou ainda ospais do bebê, se dão conta de que o médico não compreende tudo, protegendo-se de umsentimento persecutório que poderia surgir se imaginassem o médico com uma


62compreensão total a respeito do paciente. Além disso, a partir da capacidade limitada domédico, o paciente – nitidamente no caso de crianças maiores, ou de adolescentes –pode melhorar a expressão do que experimenta e pode também chegar por si próprio aoinsight necessário. Nesse contexto, o trabalho se resume a tornar o paciente capaz deabranger e aceitar o que reconhece em si. Segundo Winnicott (1975):“Acho que interpreto principalmente para deixar opaciente conhecer os limites da minha interpretação. O princípioé que é o paciente, e somente ele quem tem as respostas. Nóspodemos ou não capacitá-lo a abranger o que é conhecido outornar-se ciente disso com aceitação” (WINNICOTT, 1975, p.171).Ao mesmo tempo, em outro tipo de situação, torna-se importante não perder devista que uma interpretação no momento oportuno é fundamental para que o pacientesinta que deseja ser compreendido pelo médico. Em tais casos, é preferível umainterpretação errônea do que não interpretar. Ou seja, mais uma vez o que está emquestão não é exatamente a eficácia da interpretação, mas a criação de um ambienteonde o paciente sente ser assistido por um médico que procura compreender e acolher:“O fato de o paciente haver produzido o materialespecificamente para interpretação concede ao terapeuta aconfiança de que a interpretação é necessária e que é maisperigoso não interpretar do que interpretar. O perigo é que opaciente sinta-se confirmado na crença de que ninguém querentender. (...) Uma menina de dez anos me disse: „Não importaque algumas das coisas que o senhor diz estejam erradas, porqueeu sei quais são as certas e quais as erradas‟” (WINNICOTT,1975, p. 248).Winnicott diz ainda:“O que importa ao paciente não é a acuidade dainterpretação, mas sim o desejo do analista de auxiliar, a


63capacidade do analista de se identificar com o paciente e assimacreditar no que é necessário e satisfazer as necessidades logoque estas sejam indicadas verbalmente ou em linguagem nãoverbalou pré-verbal” (WINNICOTT, 1975, p. 112). 6Outro ponto importante com relação à interpretação como holding está nocuidado de não sobrecarregar o paciente com muitas interpretações – informações,poderíamos dizer, no caso da relação do médico com o paciente que está internado emuma UTI pediátrica. Winnicott esclarece que se deve cuidar para que o paciente façacontato com uma coisa a cada vez, priorizando uma comunicação principal em umasessão – o que corresponderia a um primeiro momento durante a internação – eobservando o que foi estritamente trazido pelo paciente, em vez de interpretar tudo (nocaso do psicanalista) ou informar tudo (no caso do médico) que seria possívelcompreender no material apresentado:“Um dos princípios mais importantes da técnicapsicanalítica é o de que o contexto é fornecido a fim de que opaciente possa lidar com uma coisa de cada vez. Nada é maisimportante em nosso trabalho do que a tentativa de perceberqual é a coisa específica que o paciente traz para ser interpretadaou revivida a cada sessão. Um bom analista limita suasinterpretações e seus atos ao elemento exato trazido pelopaciente. Não é boa a prática de interpretar tudo aquilo que seacredita haver compreendido, agindo a partir das própriasnecessidades, e desse modo jogar fora a tentativa do paciente desair-se bem, lidando com uma coisa de cada vez”(WINNICOTT, 1975, p. 275).O que caracteriza uma interpretação como holding é o fato de esta criar umambiente suficientemente bom que colabora para que o paciente possa abandonar asorganizações defensivas e se experimentar como si próprio. Na verdade, não se trataexatamente de uma interpretação porque não proporciona insight, porém, estáestreitamente atrelada à ação interpretativa do médico.6Esta é a função que acredito que o médico tenha que ter também na sua prática clínica.


64Nesse modo de intervenção, a atitude do médico conta mais que a acuidade dainterpretação, pois inaugura a cada vez o ambiente protegido. Dessa forma, o pacientepoderá experimentar um local seguro e confiável, sustentado por um médico queconhece ou está empenhado em conhecer suas necessidades, bem como seus maiorestemores. O que for dito por esse médico trará ao paciente a compreensão de que seráprotegido do que o ameaça, atendido em suas necessidades e esperado naquilo que temde mais pessoal: seu verdadeiro self.Winnicott propõe que o desenvolvimento emocional saudável do bebê ocorre secondições suficientemente boas lhe são dadas.“As forças no sentido da vida, da integração dapersonalidade e da independência são tremendamente fortes, ecom condições suficientemente boas a criança progride; quandoas condições não são suficientemente boas essas forças ficamcontidas dentro da criança e de uma forma ou de outra tendem adestruí-la.” (WINNICOTT, 1990, p. 63)Há, aqui, então, mais uma vez, uma relação com a medicina: se a relação entre omédico e seu paciente não for suficientemente boa, 'as forças no sentido da vida' não sedão; o lidar com a doença e o processo de cura – quando esta é possível – se tornammuito mais difíceis.Sobre o conceito de mãe suficientemente boa, Winnicott estabelece uma íntimarelação com o surgimento do verdadeiro e do falso self no bebê. Destaca-se um trechodo livro O ambiente e os processos de maturação em que ele faz esta relação:“A mãe suficientemente boa alimenta a onipotência dolactente e até certo ponto vê sentido nisso. E o fazrepetidamente. Um self verdadeiro começa a ter vida, através daforça dada ao fraco ego do lactente pela complementação pelamãe das expressões de onipotência do lactente. A mãe que não ésuficientemente boa não é capaz de complementar a onipotênciado lactente, e assim falha repetidamente em satisfazer o gesto dolactente; ao invés, ela o substitui por seu próprio gesto, que deve


65ser validado pela submissão do lactente. Essa submissão porparte do lactente é o estágio inicial do falso self, e resulta dainabilidade da mãe de sentir as necessidades do lactente.”(WINNICOTT, 1990, p. 133)A relação suficientemente boa leva o paciente à possibilidade de participarativamente do seu processo de cura, ou de melhora, ou de melhor lidar com sua doença.Desta forma, o paciente estará lidando com seu verdadeiro self. Assim, ele poderá lidarrealmente com sua doença, sem tentar fugir ou negar a própria doença; poderíamospensar aqui o falso self como uma fuga da doença, negação, ou mesmo submissão dopaciente a causas externas, ao médico, ou ao tratamento.Winnicott deixa claro que não possui qualquer intenção de ensinar às mães agrande importância do que elas fazem pelos seus bebês. Na sua concepção, toda mãededica-se à tarefa que tem pela frente, isto é, cuidar de um bebê. Isso é o que geralmenteacontece. A partir de Winnicott, surge a idéia da “mãe dedicada comum”. Esse títulorecebeu muitas críticas, por ser considerado um tanto sentimental em relação às mães, enão se referir à figura do pai ou da mãe que não se dedica tanto ao seu bebê. Outroponto que também foi bastante discutido diz respeito à afirmação de que a etiologia doautismo está no fracasso da mãe dedicada comum (WINNICOTT, 1990, p.1).Quanto à palavra dedicada, Winnicott registra que a traduz simplesmente e tãosomente por dedicada, nada além disso. E a mãe que consegue dedicar-se inteiramenteaos cuidados para com o seu bebê é uma mulher de “sorte”. Para entender melhor suacolocação, ilustra três tipos de situações problemáticas que intervêm na dedicação damãe ao bebê. A primeira refere-se a uma possibilidade de a mãe adoecer e vir a falecer,abandonando, então, o seu bebê completamente. Em outra situação, ela engravidanovamente antes do tempo que considerava propício. Em uma terceira situação, a mãepoderia entrar em depressão e não ter condições de, sozinha, modificar o seu estado deespírito (WINNICOTT, 1975). Poderíamos acrescentar uma quarta situação, que seria ainternação do próprio bebê na unidade intensiva neonatal.Winnicott pretende com essas colocações alertar para o fato de que precisa-selevar em conta a etiologia dos problemas e ser capaz, se necessário, de dizer que


66algumas das falhas de desenvolvimento com as quais nos deparamos decorrem de umafalha do fator “mãe dedicada comum” em determinado momento ou ao longo de umperíodo. Frente a isso, é preciso reconhecer o valor positivo da “mãe dedicada comum”e a necessidade que cada bebê tem de ter alguém que facilite os seus estágios iniciais doprocesso de amadurecimento. Esse alguém, no caso de um bebê prematuro, internado naUTI neonatal, é também o profissional de saúde, principalmente os profissionais deenfermagem, que são aqueles que promovem os cuidados de higiene, alimentação,medicações etc. É importante relatar aqui, que, na rotina das UTIs neonatais, a mãe nãose encontra presente 24 horas. Especificamente no hospital em que trabalho, a mãepermanece no período das 9h às 22h, podendo realizar os cuidados ao recém nascidojunto à enfermagem e amamentar, ambas as situações quando possível.A mãe sente o que o bebê precisa e o atende segundo as suas necessidades: seele precisa ficar em seus braços, ficar aconchegado no berço, mudar o seu corpinho deposição, ficar em silêncio, entre outras coisas. Essas experiências segundo Winnicott éque dão a ele a oportunidade ímpar de ser.Enquanto a mãe desempenha o cuidado materno, tem a oportunidade de:"pressentir as expectativas e necessidades mais precocesde seu bebê, e a torna pessoalmente satisfeita sentir o lactente àvontade. É por causa desta identificação com o bebê que elasabe como protegê-lo, de modo que ele comece por existir e nãopor reagir" (WINNICOTT, 1975, p.135).Segundo Winnicott, "essas coisas vitais como ser segurado ao colo, mudado delado, deitado e levantado, ser acariciado; e naturalmente, alimentado de um modosensato envolve mais do que a satisfação de um instinto", são movimentos esperados deuma mãe que reconhece o seu bebê, isto é, uma mãe que se entrega à maternidade(WINNICOTT, 1975, p.67).Alguns estudiosos da relação mãe-bebê posicionam-se e ensinam que, nosprimeiros seis meses de vida do bebê, a mãe não interessa, o que mais conta é a “técnicamaterna”. No entanto, para Winnicott uma técnica tanto pode ser fornecida em casa


como numa clínica, por pessoas especializadas. Porém a posição de Winnicott revelanosque:67“[...] os cuidados maternos com o próprio bebê sãointeiramente pessoais, uma tarefa que ninguém mais poderealizar tão bem quanto a própria mãe. Enquanto cientistas dãovoltas ao problema, procurando provas como lhes compete fazerantes de acreditar em qualquer coisa, as mães farão bem eminsistir em que elas próprias são necessárias desde o princípio.Esta opinião não se baseia, devo também acrescentar, não sebaseia em ouvir as mães falarem, em palpites ou na intuiçãopura; é conclusão que fui obrigado a estabelecer após longaspesquisas” (WINNICOTT, 1975, p.98).Sobre essa questão o autor ainda acrescenta que:“A mãe aceita todo o trabalho porque sente (e acho corretoque ela sinta) que, se o bebê tiver que se desenvolver bem e comabundância de princípios, é preciso que haja uma assistênciamaterna pessoal desde o começo, se possível pela própria pessoaque concebe e gera o bebê, aquela pessoa que tem um interesseprofundamente arraigado em aceitar o ponto de vista do bebê eadora consentir em ser o mundo todo para ele” (WINNICOTT,1975, p.98).O bebê, inicialmente, não conhece a mãe tão bem como aos seis meses de idadeou um ano de vida. Mas, nos primeiros dias, o que conta na relação mãe-bebê é aqualidade do contato e a forma de cuidado materno que o bebê recebe, assim como apercepção de detalhes do corpo como o cheiro e o calor materno. Dessa forma, o bebêtem inicialmente uma vivência da totalidade da mãe, em determinados momentos, poissomente como uma pessoa inteira e madura pode ela possuir o amor e o caráternecessários para a tarefa da maternidade.Segundo esse pensamento de Winnicott torna-se possível entender que a mãetem de ser evidenciada na relação com o seu bebê. E se, porventura, ela for afastada do


68contato com ele, a continuidade do elo entre ambos será quebrada, como algo que seperde e que não pode ser recuperado. Denota-se completa falta de compreensão dopapel da mãe, quando afastam dela o seu bebê por alguns dias, semanas ou meses edepois, ao devolvê-lo a ela, espera-se que a relação entre ambos continue exatamentecomo era no momento que foi afastada. Todas estas colocações apontam para arelevância de se promover no ambiente da UTI o contato da mãe com o bebê o maisestreito possível, bem como a necessidade da atuação dos profissionais de saúde nosentido de promover holding, não só ao bebê mas também aos pais.Para reforçar esse pensamento, Winnicott (1990, p.101) enumera algumasmaneiras em que a mãe é necessária: “(i) a mãe é necessária como pessoa viva; (ii) amãe é necessária para apresentar o mundo ao bebê; e (iii) a mãe é necessária na tarefamaterna de desilusionamento”.Dessa forma, primeiro o bebê precisa sentir a presença da mãe, sentir o calor dasua pele, da sua respiração, ou seja, nem a melhor técnica de cuidado materno servirápara substituir o contato com o corpo vivo da mãe. Daí a importância da vivacidade damãe e sua presença física para fornecer um ambiente psicológico e emocional essencialpara os primeiros tempos da evolução emocional do seu bebê.Segundo, para Winnicott, a pessoa que assiste o bebê proporciona-lhe aapresentação da realidade externa, o mundo em seu redor. No começo, o bebê dependede alguém para ser introduzido na existência humana. Como no caso de um bebê quenunca tivesse sido amamentado e sente a fome surgir, a mãe, nesse momento, coloca oseio onde o bebê está pronto para esperar e ele mama à vontade, até saciar-se. Na UTI,seria o correspondente à dieta por sonda, naqueles bebês prematuros que ainda nãoconseguem sugar, ou por mamadeira, quando estão ainda aprendendo a coordenarsucção e respiração, ou quando a produção de leite materno está ainda insuficiente, pelotempo que o bebê ficou sem sugar o seio materno devido à doença específica queapresentou. A partir dessa experiência, o bebê “cria” justamente o que existe paraencontrar, ou seja, forma a ilusão de que esse seio real é exatamente a coisa que foicriada por ele pela necessidade. A partir desse momento desenvolve-se uma convicçãode que o mundo pode conter o que é querido e preciso, resultando na esperança que


69existe uma relação viva entre a realidade interior e realidade exterior, entre a capacidadecriadora, e inata e primária, e o mundo em geral que é compartilhado por todos.Portanto, cabe à mãe apenas permitir a possibilidade de criação da ilusão, isto é, o bebêé levado a criar e recriar quantas vezes forem necessárias o seio da mãe (WINNICOTT,2006).Terceiro, após a mãe ter dado ao seu bebê a ilusão de que o mundo pode sercriado a partir da necessidade e da imaginação, irá gradual e espontaneamente levá-lo aodesilusionamento, que constitui um aspecto mais extenso do desmame. Verifica-se,pois, que aos poucos a mãe ajuda a criança a aceitar que, embora o mundo possafornecer algo parecido com o que é preciso e procurado e que pode, portanto, ser criado,não o fará automaticamente nem no momento exato em que a disposição surge ou odesejo é sentido. Isto implica que lentamente a mãe deixa de ser conduzida pelosmovimentos da criança, mas isso somente será bem sucedido se, primeiro, a mãe tiversido tudo para a criança (WINNICOTT, 2006).No capítulo anterior, falávamos de afetos ativos e passivos em Spinoza e da suarelação com a prática da medicina – mais especificamente, com a prática da terapiaintensiva pediátrica e neonatal. Colocamos que quando o paciente respondefavoravelmente à terapêutica instituída, temos afetos ativos. Vale acrescentar aqui que omédico, ao dispor de diversas terapêuticas e tecnologias, e conseguir muitas vezesreverter quadros de extrema gravidade, acaba se colocando em uma posição de semideus,de onipotência em sua prática clínica. Tal sensação de onipotência do médicopode ser considerada um afeto passivo, por encontrar-se reativo a causas externas. ComWinnicott, por sua vez, percebemos que estabelece-se uma situação denominada defesamaníaca (que é um tipo de defesa psíquica).Para Winnicott:“a defesa maníaca é uma das defesas que podem serempregadas contra a depressão durante a fase da posiçãodepressiva. O termo defesa maníaca deve englobar a capacidadede uma pessoa de negar a ansiedade depressiva, que é inerenteao desenvolvimento emocional, uma ansiedade que pertence à


70capacidade do indivíduo de se sentir culpado e também deadmitir a responsabilidade pelas experiências pulsionais e pelaagressão que as acompanha na fantasia. (WINNICOTT, 2006,p.45)”O médico em sua prática cotidiana é visto e colocado na posição de salvador dopaciente. Por mais que tenhamos conhecimento intelectual sobre este dado, e quesaibamos que não temos controle sobre tudo, que não podemos ir contra a natureza – eque devemos ir sim a favor dela, agindo como facilitadores da vida – cair nessaarmadilha de que temos o controle é extremamente comum, fácil e corriqueiro.É como se essa postura estivesse tão enraizada, tão arraigada dentro da práticamédica que pensar diferentemente não se colocando na posição de onipotente, daqueleque tem que conseguir salvar, vencer a morte, combater a doença, causa de fato umestranhamento muito grande inicialmente.Seria como atravessar um portal para outra dimensão, ou como sair da caverna(como no mito). Ao perceber que é a posição, o lugar em que nos colocamos que dáessa idéia de poder sobre a natureza, que por sua vez, instala sobre o médico o lugar daonipotência, investe o médico de sua autoridade, poder de combater a doença e vencer amorte, muitas vezes a custo de investir de forma extrema, chegando a cometer o que édenominado distanásia.Ao nos colocarmos na posição de cuidadores, de entendedores deste processovida – saúde – doença faz parte da vida, acaba a luta, acaba o confronto entre medicinae a natureza. É uma mudança tênue, muito sutil, porém radical de pensamento. Pois sepensamos que somos cuidadores, nos colocamos à disposição do paciente, para instituiruma terapêutica suficientemente boa que lhe permita convalescer, minimizando seusofrimento, aliviando a sua dor, atuando em parceria com ele no tratamento, estaremosagindo a favor da natureza, a favor da vida.que:Acerca da onipotência versus impotência, Martins cita em seu artigo Biopolítica


71"(...) onipotência não se opõe à impotência. Onipotência édefesa contra a ameaça de impotência, mas, reativa, mantémesta da qual se quer livrar. Ambas, portanto, impotência e suamáscara a onipotência, se opõem à potência. É somente nestaque é possível reconhecer o outro em sua diferença, semconsiderá-lo inferior ou superior, sendo somente então possívelreconhecer-lhe o direito inalienável de sua autonomia.(MARTINS, 2004, p.26)Neste momento atual, portanto, o medo, talvez, de viver os óbitos faz com queprolonguemos a "vida" (artificialmente), levando a um exagero da terapêutica, chegandoa provocar o que chamamos de distanásia. É possível observar que, nos períodos deepidemia, por exemplo, não somente a afetação por parte dos médicos se evidencia, mastambém um sentimento de impotência do médico, o qual é deflagrado a partir de umfracasso da experiência de onipotência. O que ocorre a partir daí, é um movimento, umacorrida no sentido de uma retomada da onipotência. Começa-se a busca de tratamentosinovadores, através de pesquisas, há todo um investimento não só de profissionais,como também da indústria ligada à saúde, no sentido da descoberta do remédio que irácombater a doença.Com isso, por sua vez, esquecemos do holding, do cuidado com o paciente, e aatuação do médico se reduz ao combate à doença, muitas vezes indo contra o doente,levando, como consequência, o paciente a disfunções múltiplas de órgãos e sistemas(DMOS), prolongando seu sofrimento, sem que isso impeça o desfecho do quadro, oóbito (o qual já se sabia ser, na maioria das vezes, inevitável).Às vezes, negamos para nós mesmos e para os outros, neste caso a família, porexemplo, o que não estamos querendo enxergar, o que é difícil de enfrentar, o que estáse mostrando um curso inexorável da doença, que vai culminar com o óbito da criança.A partir de uma denegação nossa, podemos criar expectativas na família, e também emnós mesmos, levando a intervenções às vezes desnecessárias ao paciente, atitudes quenão ajudarão o paciente a se recuperar, mas manterão órgãos e sistemas funcionandomecanicamente por um período que não se pode prever, não mensurável. Umenvolvimento além das fronteiras administráveis pelos intensivistas por vezes não podeser evitado.


72Podemos então enfatizar a importância do envolvimento da mãe e dosprofissionais, não somente no que se refere aos aspectos negativos da prática em UTIneonatal (principalmente), queremos concluir com o reforço da presença da mãe noambiente da UTI neonatal e dizer que apesar da necessidade de muitos recém nascidos –principalmente os prematuros – de ficarem internados por longos períodos, percebemosque, com o acompanhamento posterior de alguns pacientes, o desenvolvimentoemocional destes bebês se processa satisfatoriamente no sentido de umdesenvolvimento saudável. Isso ocorre não somente pelo estímulo à presença dos paisna UTI, mas também pela provisão ambiental proporcionada pela equipe deprofissionais que atuam na unidade intensiva.Acompanhar o crescimento e o ganho de peso de um bebê prematuro, quenasceu com muito baixo peso (abaixo de 1000g) e precisa chegar aos dois quilos parater alta hospitalar com segurança é uma experiência ímpar. Quando o bebê chega aaproximadamente 1800g, iniciamos com a mãe a sucção no seio materno. Antes disso, obebê não consegue ainda sugar. Geralmente solicitamos a ajuda da fonoaudióloga naUTI, que desempenha um papel importante no aprendizado destes bebês a sugar. Atéentão, a nutrição do RN se dá por uma sonda orogástrica, através da qual administramoso leite materno ou uma fórmula láctea especial para prematuros por gavagem 7 . Quandoo bebê consegue então atingir peso adequado (2kg), sugando e apresentando ganhoponderal, temos segurança em dar alta da UTI para a casa diretamente com a condiçãode fazer um acompanhamento ambulatorial inicial com a nossa equipe da UTI queconsiste no follow up.No acompanhamento do recém nascido prematuro (de baixo peso) ainda dentroda UTI neonatal, é importante salientarmos o Método Mãe Canguru, o qual consiste emum tipo de assistência que implica em contato pele a pele precoce entre a mãe e orecém-nascido de baixo-peso. Porém é muito mais do que a posição vertical em que o7Gavagem significa administrar a dieta (leite) por uma sonda orogástrica ou nasogástrica com adescida do alimento por gravidade. Existe também outra forma de administração da dieta que seria porbomba infusora, onde é programado um determinado volume para correr em um tempo tambémdeterminado – geralmente 1 a 2 horas. Esta última é utilizada geralmente em prematuros de muito baixopeso ou em bebês que, pelo quadro clínico específico apresentado, não estão tolerando infusões maisrápidas da dieta.


73bebê prematuro permanece junto ao corpo da mãe. É um tipo de humanização, quepromove o contato entre mãe e bebê pelo tempo que quiserem. É importante salientarque não só a mãe, mas também o pai pode e deve participar. Esta técnica aumenta ovínculo entre pais e bebê, deixando o bebê mais seguro e proporcionando maisconfiança aos pais no manuseio do seu filho, sendo portanto uma forma de holding. Talprocedimento está baseado em critérios de elegibilidade clínicos e emocionais, tanto dorecém-nascido, quanto da mãe e da família. Para isso deve haver um suporte por partede uma equipe de profissionais de saúde treinada e consciente da importância doatendimento preconizado nesta metodologia. É um método que contribui sobremaneirapara o desenvolvimento completo do bebê que nasceu prematuro. Para a realização datécnica é necessário implementar no hospital um programa de treinamento teóricopráticosobre Atenção Humanizada ao Recém-nascido de Baixo-Peso e cabe aquirelatarmos que nem todos os hospitais que têm UTI neonatal adotam este método, sendomais comumente implementado em hospitais da rede pública.A experiência do acompanhamento do bebê após a alta é também muitoenriquecedora. Podemos revê-lo, ter um retorno de como o bebê se encontra. É comumneste momento que a família traga algumas dúvidas, sendo possível então esclarecê-las.É este momento, este vínculo, é este holding que queremos sublinhar e valorizar comoconduta.Enfim, neste capítulo, abordamos conceitos da teoria do desenvolvimentoemocional em Winnicott, sobre o ambiente necessário a uma boa integração do self dobebê, sobre o holding e a importância de se praticá-lo em situações de internação naUTI, onde ocorre uma quebra no vínculo mãe-bebê, tendo o cuidador uma função deauxiliar o bebê a não sentir tanto os efeitos desta quebra em sua maturação psíquica.Enfatizamos a importância do profissional de saúde ter conhecimentos básicos da teoriawinnicottiana, para que haja uma valorização da presença da mãe na UTI, umapreocupação em reforçar o vínculo entre mãe e filho, em alimentar a sensação inicial deonipotência do bebê e recriar a ilusão do seio materno. Também discutimos conceitosda psicanálise de transferência e de interpretação, tentando fazer uma aproximação coma relação médico-paciente e o que consideramos uma prática clínica suficientemente


74boa. Além disso, a partir de breves considerações a respeito da onipotência do médico,apresentamos o conceito de defesa maníaca de Winnicott. Por fim, abordamos oacompanhamento do prematuro na UTI neonatal e salientamos o Método Mãe Cangurucomo exemplo importante de holding a ser adotado de forma sistemática em unidadesde terapia intensiva neonatal.


75CAPÍTULO 3 – A EXPERIÊNCIA NA PRÁTICA CLÍNICA“O pensar/ viver a inquietude a reduz de sombra indesejada paracompanheira estimulante e amena”. (ARMONY, 1998, p. 4)No presente capítulo tentaremos articular os conceitos de Afetividade eUnicidade em Spinoza, Normatividade em Canguilhem e a Teoria do DesenvolvimentoEmocional em Winnicott, discutidos nos capítulos anteriores, com situações vivenciadasna prática clínica, através do relato de algumas experiências vividas no cotidiano. Farei,aqui, neste capítulo, uso de diálogos, relatos de experiências vivenciadas ao longodestes sete anos que tenho de formação. Farei uso aqui das palavras de Armony (1998)sobre a forma, que me auxiliaram sobremaneira na escrita deste capítulo:“A preocupação com a forma e com a formalização podegerar uma dicotomia radical, onde palavra e experiência vividase separam, criando um vazio afetivo, uma relação problemáticacom a criatividade e com a vida”. (ARMONY, 1998, p. 16)Entendemos que a visão cientificista e mecanicista do profissional de saúde geraconsequências deletérias significativas para o paciente. No ambiente da Unidade deTerapia Intensiva Pediátrica e Neonatal, essas consequências se tornam mais evidentes,pois a especialidade da pediatria não compreende somente uma parte do corpo, mas sima criança como um todo, um período da vida, que vai desde o nascimento até o final daadolescência. Daí, fica mais evidente o quanto uma terapêutica voltada apenas para ocombate da doença e não para o cuidado do paciente acarreta danos à vida deste, namedida em que a criança (paciente) está em desenvolvimento, passando pelos processosde maturação da seu psiquismo, da constituição de seu self.Cabe aqui registrar que poderíamos neste trabalho inverter a ordem doscapítulos, começando pela experiência, pois foi esta que nos levou aos questionamentos,à busca por teorias e conceitos que nos levassem a uma melhor compreensão do queocorria na prática. Foi a experimentação que nos levou aos filósofos e psicanalistas,


76cujas idéias nos servirão aqui de base, de suporte para propôr uma prática médicadiferenciada, que leva em conta a pessoa, que leva em conta a complexidade doadoecimento e do processo de cura. Porém, optamos por discutir primeiramente osconceitos, associadamente a uma visão mais geral da prática clínica da UTI, para agora,então, utilizá-los neste capítulo, referenciando aos mesmos ao longo do texto.Observamos na prática clínica algumas situações onde o médico, ao ter seu olharfocado no combate à doença, fica satisfeito com o resultado da terapêutica, mas nãoleva em conta a experiência da doença pelo paciente, e mesmo situações onde aterapêutica leva a danos, sequelas irreversíveis (exemplos: prematuridade e a ocorrênciade danos no sistema nervoso central; meningite e meningococcemia com surgimento desequelas; câncer e quimioterapia, com os efeitos colaterais desta acarretando diversosdanos ao paciente etc.). Por outro lado, alguns exemplos abordados adiante nos mostramna prática que, quando se leva em conta o psiquismo, a terapêutica tem um resultadomais efetivo para o paciente, sendo-lhe mais benéfica.Observamos que a prática clínica ocidental está baseada apenas nas doenças,com a crescente desvalorização da escuta. Esse é um dos motivos pelos quais asociedade vem exigindo o retorno do "médico de família" e mesmo o direito a serviçosmédicos não alopáticos. A superespecialização, acompanhando o progresso datecnologia e o crescente fenômeno da medicalização da sociedade, faz com que opaciente se sinta pressionado a visitar diversos profissionais para o acompanhamento dedeterminado transtorno. E o paciente torna-se cada vez mais carente.A quase exigência de uma receita médica ou pedido de exame cada vez que umpaciente (falando da medicina de adultos, ou mesmo da pediátrica, onde a solicitação éfeita pelos pais) consulta um médico é uma prova disso. A questão da "eficiência erapidez" no tratamento já está tão difundida entre os sujeitos que demandam o cuidado,que o profissional pouco se dedica às outras questões relevantes no estabelecimento daenfermidade em questão: os fatores sociais, ambientais, hereditários, psicológicos,culturais, religiosos e políticos (PERESTRELLO, 2006).Ainda, no âmbito da relação médico-paciente, os aspectos psicodinâmicos darelação médico-paciente devem ser percebidos pelo médico a fim de que ele possa


77compreender que tais fenômenos interferem no cerne desta relação (PERESTRELLO,2006).Deve-se dar a importância devida aos fenômenos contidos em toda relaçãomédico-paciente, tais como os de transferência, contratransferência e mecanismos dedefesa (negação, projeção, racionalização, repressão). Nesse sentido, determinadosmodelos de relação médico-paciente infelizmente permitem que as iatrogeniasaconteçam com mais facilidade. Um bom exemplo é o da medicina de urgência (UTI),onde por vezes o paciente está tão debilitado, que a relação é por si só assimétrica. Estepaciente pouco participa da relação (paciente passivo, submisso), e o profissionalassume uma posição de superioridade, sem consultar o paciente para qualquerprocedimento. Quando o paciente "desperta" para a situação, mesmo sabendo quedeterminados procedimentos eram cruciais naquele momento, pois visavam suasobrevivência, pode ser difícil admiti-la.Perestrello (2006) constrói um modelo de medicina antropológica efetivamenteoperativa ao oferecer mais que uma posição filosófica. Até então os postulados daMedicina Antropológica não eram repensados na prática médica. Perestrello adotou omodelo teórico da Psicanálise, e em sua visão, ocorreria um influxo terapêutico atravésda relação médico-paciente. Assim, a partir do pensamento de Perestrello, pode-serefletir que mesmo o prognóstico da enfermidade depende dessa estruturação médicopacientee que se pode pensar em técnicas psicoterápicas após avaliada a importância dabiografia do paciente. Perestrello denomina essa relação médico-paciente “relaçãotranspessoal”, com isso afirmando que médico e paciente, ao estabelecerem o vínculoterapêutico, constroem um terceiro personagem, produto da interação de ambos. É essenovo personagem, construto de uma relação de objeto, que recebe a atenção médica nosseus aspectos voltados para a historicidade do paciente.Segundo Perestrello, “a relação transpessoal é uma relação viva”. Todo o atomédico é consequentemente, um ato vivo, por mais que se lhe queira emprestar caráterexclusivamente técnico. Não existe ato puramente diagnóstico. Todas as atitudes domédico repercutem sobre a pessoa doente e terão significado terapêutico ouantiterapêutico segundo as vivências que despertarão no paciente e nele, médico,também. Perestrello faz referencia a um trabalho denominado de “psicoterapia implícita


78as atitudes do clínico no seu relacionamento com o doente”, dirigidas a um fimterapêutico, independentemente da natureza das medidas de ordem material que fossemrecomendados. Aliás, o pensamento de que todo médico, consciente ouinconscientemente, faz psicoterapia, velha frase já proferida por Freud em 1905, nãoquer dizer outra coisa; nos últimos tempos, porém, com o que hoje já se sabe, asimplicações são muitíssimo mais numerosas. Através do que diz e do que não diz, doque faz e do que não faz, do que expressa ou não expressa em sua fisionomia, o médicoestá fazendo psicoterapia, boa ou má, mas estará praticando-a, melhor dizendo: atravésdisso tudo, estará encaixando-se ao doente, ou permitindo que este se encaixe a ele, “deforma benéfica ou maléfica” (PERESTRELLO, 2006, p. 121).Nesse sentido, faz-se necessário refletir um pouco sobre as concepções quefundamentam o modelo biomédico. A filosofia cartesiana, que inspirou a condutamédica ocidental, estabelece a dicotomia „psique/soma‟ que, corroborada por outradíade, „doente/doença‟, contribui para o estabelecimento de uma visão fragmentada dopaciente. O médico perde, assim, a sensibilidade de enxergar esse paciente como umtodo biopsicossocial, o sujeito na sua integralidade, tratando apenas dos sintomasaparentes, como se o paciente fosse uma máquina que necessitasse de ajustes, umquebra-cabeça (PERESTRELLO, 2006). A doença é interpretada pela concepçãobiomédica como um desvio de variáveis biológicas em relação à norma. Este modelo,fundamentado em uma perspectiva mecanicista, considera os fenômenos complexoscomo constituídos por princípios simples: relação de causa-efeito, distinção cartesianaentre mente e corpo, análise do corpo como máquina, minimizando os aspectos sociais,psicológicos e comportamentais.Se, por um lado, baseados nestes princípios, foram conquistadas importantestransformações, a partir do século XIX, como o nascimento da clínica, a teoria dosgermes de Pasteur e até os recentes sucessos nos estudos de genética, imunologia,biotecnologia; por outro, têm sido desprezadas as dimensões humana, vivencial,psicológica e cultural da doença.Balint (2007) realizou um trabalho que envolveu grupos de discussão de casosclínicos, com o objetivo principal de se estudar mais a fundo o que ocorre na relaçãomédico – paciente. O campo principal de investigação foi o papel desempenhado pelo


79médico. O autor abordou, através do relato de casos clínicos, as reações do médico aossintomas apresentados por seus pacientes, sendo um aspecto importante desta respostado médico o que chamou de “processo de eliminação mediante exames físicosapropriados”, destacando a necessidade do médico em agrupar, organizar os sinais esintomas em diagnósticos (doenças). Balint também analisou o que denominou “funçãoapostólica do médico”, que significava, basicamente, que “todo médico tem uma vagamas quase inabalável idéia sobre o modo como deve se comportar o paciente quandoestá doente” (BALINT, 2007, p. 161).“Era como se cada médico possuísse o conhecimentorevelado do que os pacientes deviam e não deviam esperar esuportar, e além disso, como se tivesse o sagrado dever deconverter à sua fé todos os incrédulos e ignorantes entre seuspacientes.” (BALINT, 2007, p. 162)Daí, então, o nome “função apostólica”. Além disso, à função apostólicacompreenderia a necessidade do médico de provar a todos, inclusive a si mesmo, que éum bom médico, digno de confiança e plenamente capacitado para ajudar seuspacientes, o que constitui sobremaneira uma imagem idealizada da figura do médico.Cabe aqui lembrarmos que o conhecimento biomédico não é absoluto, perfeito; não dáconta de todas as questões, de todas as complexidades, até porque, sempre existirão oscasos incuráveis. E ainda, devemos lembrar também que um investimento a qualquercusto no sentido de aliviar o sofrimento de um paciente pode levar a iatrogenias, oumesmo até à morte deste paciente – por exemplo, fazer uso de analgésicos potentes paraalívio de sintomas álgicos pode levar à interrupção da respiração do paciente; outambém, o alívio da dor pode mascarar as manifestações clínicas de determinadadoença, fazendo com que a mesma não seja detectada, levando a sérias consequênciaspara este paciente.Balint ressalta a importância do treinamento em psicoterapia e sua utilização porparte dos médicos, e destaca que a aquisição da habilidade psicoterápica requer nãosomente aprender algo novo, mas sim uma certa transformação da personalidade domédico, tornando-o capaz de, entre outras coisas,


80“visualizar de certa distância seus próprios métodos e suasreações frente ao paciente, reconhecer os aspectos de sua própriamaneira de lidar com o paciente que fossem úteis e suscetíveisde compreensão e desenvolvimento e os que não fossem tãoúteis, e que uma vez compreendido seu sentido dinâmico,necessitassem ser modificados ou abandonados.” (BALINT,2007, p.222)Desta forma, Balint valoriza um olhar psicanalítico para a prática médica ereforça a necessidade de se promover modificações na formação médica e na suaeducação continuada, tendo em mente que se faz necessário que o médico reflita acercade suas condutas, leve em consideração a subjetividade do paciente.No presente capítulo, relatamos situações que mostram que o afeto é inerente àprática clínica – julgamos ser impossível não se afetar diante do sofrimento do paciente;falamos das defesas psíquicas do médico, e como essas defesas também acabam porgerar efeitos na vida do profissional de saúde, pois é possível constatarmos através desimples observação na prática clínica, que vêm ocorrendo um aumento do número deprofissionais da área da saúde que sofrem de depressão, ou que fazem uso de algum tipode medicação ansiolítica e antidepressiva. Ou ainda, fazem uso do álcool para amenizarsintomas de sofrimento psíquico relacionados à profissão. Tal fato não é de sesurpreender, se considerarmos que a negação da afecção gera sintomas (e consequentemedicalização). Pitta (1991) realizou um trabalho investigando relações entre ambientese condições de trabalho no ambiente hospitalar e a ocorrência de sintomas e sinaispsíquicos e orgânicos – que, a nosso ver, estão intrinsecamente ligados. Destacamos aspalavras de Pitta (1991):“Na literatura científica cresce o número de comunicaçõesreferentes a agravos psíquicos, medicalização, suicídios demédicos, enfermeiros, porteiros de hospitais etc. Aqui, (…) aincômoda e dolorosa presença de alunos do curso médico que sesuicidam ao tomar contato com doentes e doenças tem sido umadesconcertante experiência nos últimos doze anos e deve terinfluenciado sobremodo a escolha deste objeto de inquietação”.(PITTA, 1991, p. 18).


81Nesta pesquisa de Pitta observou-se que as áreas onde se desenvolvem trabalhostécnicos de atenção a pacientes apresentam medidas de prevalência de sintomas bastanteexpressivas. A área do hospital com porcentagem maior de profissionais de saúde comsuspeita de sofrimento psíquico foi o setor de Nefrologia (hemodiálise), com índice de45,5%. Não surpreendentemente, o segundo setor com maior porcentagem deprofissionais de saúde acometidos por sintomas psíquicos foi o da UTI pediátrica, comíndice de 32,1%. A autora, na interpretação dos dados, nos coloca que o serviço dehemodiálise é o que atende os pacientes renais crônicos com prognósticos sombrios; etambém, nesta unidade, há o atendimento de crianças também portadoras deinsuficiência renal crônica, muitas vezes aguardando a descoberta pela medicina demedicações inovadoras, que permitam que 'se livrem' das idas regulares ao setor paradepuração de toxinas não eliminadas devido à disfunção ou não funcionamento total deseus rins.Com relação aos sintomas, Pitta (1991) observou que 52,2% dos profissionaispesquisados apresentavam nervosismo, preocupação ou tensão. Um dado interessante éque 4,5% dos pesquisados consideraram que deveriam diminuir a ingestão de bebidasalcoólicas. Pitta (1991), em sua análise de resultados, acredita que este número deve sermaior na realidade, considerando que na pesquisa foi utilizado um questionário autoaplicado,no ambiente de trabalho, onde este tipo de informação poderia acarretar algumprejuízo para o profissional pesquisado. Este trabalho corrobora com o nossopensamento de que as afecções no ambiente de trabalho ocorrem, e geramconcomitantemente efeitos em nossa saúde.O dia a dia da UTI neonatal e pediátrica é muito acelerado, muitas vezesconfuso, é um ambiente de trabalho que exige muito do profissional de saúde. Muitasvezes não atentamos para o fato de que ali, no leito, encontra-se uma pessoa, umacriança, que se encontra em uma situação de fragilidade, que está em um ambienteestranho, sofrendo procedimentos invasivos. Neste momento, portanto, faz-senecessário interagir com o paciente, conversar com a criança que está na UTI, sejaaquela que se encontra mais acordada, seja aquela que se encontra sedada; é importante


82avisá-la quando da necessidade de realizar algum procedimento como examinar, oucolher sangue, afinal não se sabe o quanto, mesmo sedada, aquela criança estáinteragindo com o meio, com o que está à sua volta. Inúmeras vezes obtemos respostadas crianças, seja por um gesto de 'ok', seja por um piscar de olhos, seja por abrir osolhos, responder com a cabeça sim ou não etc. Um dado muito importante que em geralsó se aprende na prática é o de sempre falar a verdade. O pediatra deve explicar que vaiexaminar, onde vai apertar, onde vai auscultar, que colher sangue vai doer, quaisprocedimentos doem e quais não, e, mais importante, com a preocupação de dizer deuma maneira que a criança entenda o que vai acontecer com ela, mas ao mesmo temposem desesperá-la, sem assustá-la. Esta é, sem dúvida, uma tarefa muito difícil.Entretanto, quando se fala a verdade para a criança, é possível perceber que ela passaentão a confiar mais na equipe e essa confiança (parte da transferência, nos termos dapsicanálise, do acolhimento e do holding) interfere de forma determinante para otratamento dela.É comum vermos casos de crianças que são internadas para investigar sintomascomo dor abdominal, febre, vômitos incoercíveis, cefaléia, crise convulsiva, entreoutros, e não ser encontrada nenhuma causa orgânica para tal sintoma. Muitas vezes, abiomedicina classifica tais casos como doença de origem idiopática, sem levar em contaque processos psíquicos podem estar, ou certamente estão, causando tais sintomas.Junqueira (2000), em seu artigo Atendimento em hospital pediátrico –Psicanálise e Racionalidade médica, faz um relato de um caso clínico de um menino dequatro anos que apresentava um quadro de obstrução intestinal, tendo necessitado deintervenção cirúrgica, embora sua causa fosse desconhecida pelos médicos. Estepaciente apresentou diversas complicações, dentre elas o acometimento pulmonarhavendo necessidade de traqueostomizá-lo e interná-lo algumas vezes na UTI. Tornouseum paciente crônico cuja doença não se descobria a causa, nem a associação com osoutros quadros, constituindo-se um enigma e um desafio para a biomedicina. Alémdisso, o comportamento da criança durante a internação demonstrava uma tentativa decontrole do que acontecia ao seu redor, como por exemplo, a administração de soros emedicações, o uso de aparelhos, o momento para realização dos procedimentos e qual


83profissional iria executá-los. O menino ao ser contrariado mobilizava todos a sua volta,apresentando crises de cianose, sudorese intensa e outros sintomas físicos quedesapareciam como mágica após serem atendidas suas vontades. Não brincava, e nãosorria, senão durante alguns procedimentos dolorosos, como punção venosa ou coleta desangue. Apresentava, segundo relato da autora, uma aparente vontade de morrer. Haviaalguns dados de sua história social importantes: era o quinto filho de uma família semmuitos recursos, morava com a mãe, assistiu a diversas brigas no ambiente domiciliar,seus pais estavam separados, o início de sua doença coincidiu com a última gravidez desua mãe. Sua doença tinha, concluiu a autora, um forte componente psíquico e umamulticausalidade. Em seu relato, a autora destaca o incômodo que a criança e seu'diagnóstico a ser desvendado' causava aos médicos que o assistiam. A partir daí, éabordada a racionalidade médica, com seu olhar mecanicista, reducionista,generalizante, que busca sempre uma relação direta de causa e efeito no surgimento dedoenças. A autora discute também a questão da valorização da racionalidade biomédicaem detrimento de outras racionalidades:“O próprio fato das dimensões psicopatológica epsicossomática não serem possuidoras da mesma relevância queos dispositivos clínico-laboratoriais, sinaliza tanto o domínio porparte de uma abordagem positivista, quanto a importância de serepensar tal situação. Por estarem imbricadas à noção desubjetividade e (…) não possuírem o mesmo grau deconfiabilidade e precisão diagnóstica, essas dimensões não sãovalorizadas.” (JUNQUEIRA, 2000, p. 42).O caso clínico apresentado por Junqueira (2000) em seu artigo envolvia, assim,uma trama de fatores que fugiam à racionalidade médica, e a partir de algumas reflexõesacerca do caso, a autora defende a importância de se repensar a visão biomédica, namedida em que esta, restrita a seu modelo de causa e efeito, não dá conta de explicarquestões que envolvem a complexidade do ser humano.Além disso, a autora, ao apresentar o caso, fala das dificuldades deestabelecimento de uma boa relação de transferência no setting (termo da psicanáliseque basicamente significa o ambiente onde a relação analista – analisando se


84estabelece), pois o atendimento psicológico era realizado na enfermaria, e, dentro darotina da prática médico-hospitalar, o acompanhamento psicanalítico era uma atividadeestranha àquele cotidiano, o que, por vezes, dificultava a atuação da psicóloga. Maisuma vez, isso demonstra a impregnação do pensamento biomédico e sua evidentedificuldade na articulação com a multidisciplinaridade.O exemplo relatado a seguir nos mostra uma criança de sete anos queapresentava um sintoma, relatado pelos pais, que foi exaustivamente investigado, com arealização de diversos procedimentos invasivos. Ao conversar com a própria criança, opediatra se deparou com o fato de que o sintoma apresentado não tinha origem orgânica,e sim psíquica. Tratava-se de uma paciente que foi internada com quadro de vômitosincoercíveis, tendo evoluído para desidratação. Esta paciente foi vista por váriospediatras, realizou os mais diversos tipos de exames complementares, e até então, haviauma grande preocupação por parte dos pais por não haver ainda um diagnóstico do caso.Quando foi internada, tivemos contato com ela e a família pela primeira vez. Percebiasede imediato que os pais estavam bastante apreensivos, preocupados com a criança eesta, por sua vez, parecia não se importar muito com tudo aquilo que estavaacontecendo. Ela não falava, só respondia com a cabeça que sim ou não quando erasolicitada. Já vinha apresentando os episódios de vômitos há vários dias, alimentava-semuito pouco, e tudo que ingeria, rejeitava logo após. Alguns colegas médicosrecomendavam, logo de início, a instalação de uma sonda enteral para promoveralimentação. Um dos médicos conversou com os pais a respeito e a menina nestemomento esboçou uma reação de choro. Ao longo da internação, tentamos estabeleceruma relação de confiança com ela e os pais; explicitamos que já havíamos realizadomuitos exames e que nenhum havia detectado qualquer alteração. A partir daí é quecomeçou-se a acreditar que o sintoma tivesse uma causa psíquica e não orgânica, e aospoucos fomos conseguindo conversar com a menina, e conseguimos que ela falasse. Elacontou que não sabia porque estava doente. Dissemos a ela que achávamos que elaestava triste, e que talvez sua tristeza pudesse estar por trás de sua doença. Elaconcordou que estava triste, relutou muito em dizer os motivos, mas em umdeterminado momento contou que estava com problemas na escola. Ela havia semudado recentemente, e consequentemente, também havia mudado de escola. Lá,


85algumas crianças a haviam maltratado, fazendo com que ela se sentisse isolada. Daí, aoconseguirmos conversar com ela, foram surgindo dados importantes que contribuírampara o esclarecimento do sintoma. No início da internação ela não verbalizava quasenada, demorou um tempo significativo para voltar a se alimentar; apresentou de fato umquadro depressivo, associado à anorexia. Foi um caso de difícil tratamento, a criançaperdeu muito peso, as discussões clínicas a respeito da conduta terapêutica eram muitocontroversas: alguns médicos recomendavam a prescrição de nutrição enteral, oumesmo parenteral, outros acreditavam em uma conduta menos invasiva, insistindo nastentativas de alimentação por via oral. Não foi possível o acompanhamento pelopsicólogo durante a internação, o que dificultou ainda mais a recuperação desta criança,e após muita discussão, optou-se pelo uso de medicação antidepressiva. Os pais foramorientados a procurar um acompanhamento ambulatorial com o psicólogo. Elaapresentou melhora sendo suspensa a medicação em um intervalo de tempo não muitolongo (menor que um mês).Este caso ilustra algumas questões importantes. Vemos aqui a necessidade que amedicina atual tem de fazer um diagnóstico. Também vemos a importância dopsiquismo na saúde e percebemos que quando algo nos acontece e nos afeta, isso podegerar sofrimento psíquico, que por sua vez, é concomitante a uma reação no corpo,levando ao sintoma e à doença. Vemos também, neste caso, a importância de sedesenvolver um olhar por parte da equipe de saúde que não seja voltado apenas para adoença/sintoma, e sim para o paciente. Além disso, é preciso estabelecer uma relação detransferência com a criança e com os pais, porque estes também têm participaçãofundamental no tratamento e na recuperação do paciente.Um outro caso a ser relatado é o de um menino de dois anos que cuidei na UTIpediátrica. Em um primeiro contato que tivemos, olhei para ele e disse: “Posso teexaminar?” Ele respondeu com a cabeça que não. Então perguntei: “Mas você sabe oque é examinar?” Ele não disse nenhuma palavra, mas respondeu novamente com acabeça que não. Sorri e expliquei: “Olha só, examinar é o seguinte: eu vou pegar esseaparelhinho – mostrando para ele o estetoscópio - e vou encostar ele aqui no seu peito'pra' escutar o seu coração e o seu pulmão... Você deixa eu te examinar agora?” Então


86ele respondeu com a cabeça que sim. Realizei o exame físico com ele sem o menorproblema, ele sendo muito cooperativo 8 comigo. Ele estava apresentando um quadro depneumonia e piorou, complicando com um derrame pleural, tendo que colocar um drenono tórax à direita. O procedimento em si não é doloroso porque o paciente recebeanestesia; mas posteriormente a permanência do dreno durante a antibioticoterapiaincomoda bastante. Daí, é perfeitamente compreensível que muitas vezes a criança nãoqueira conversar, interagir, tomar banho, ser examinada, fazer o curativo do dreno, sersubmetida a uma série de procedimentos de uma rotina de UTI.É possível dentro da unidade fazer os procedimentos necessários respeitando avontade do paciente. Neste caso, especificamente, ele nem sabia o que era serexaminado e quando lhe foi explicado, ele entendeu e concordou. Assim, em qualquercaso, é sempre importante tentar ao máximo respeitar a vontade do paciente. É claro queàs vezes não conseguimos, até porque em determinados momentos o procedimento deveser feito com mais urgência e não se pode esperar muito tempo.Em outro contato que tive com este paciente, ele sempre se mostrou muitoreceptivo a mim. Perguntava a ele coisas como: “Você tá melhor?” e ele respondia“Tô!” “Você tá papando tudo?”, e ele respondia com uma voz rouca “Tudo!” Aoconversar com ele, percebia que ele interagia cada vez mais, e também confiava maisem mim. Cabe aqui dizer que este paciente não falava quase nada, não conversava comas enfermeiras e técnicas de plantão que cuidavam dele. Houve um momento dainternação em que ele apresentou piora do desconforto respiratório e precisava fazeruma série de medicações e colher novas amostras de sangue. E ele, mesmodesconfortável, mais cansado para respirar, prestava atenção em tudo o que eu dizia e oque mais me surpreendia é que ele tinha apenas dois anos. Conversei com ele sobre anecessidade de colher seu sangue - ele já sabia bem o que era - expliquei que eu mesmairia colher, perguntei se ele permitiria e ele respondeu chorando que sim. Expliquei a eleque era importante não 'puxar' o braço quando eu introduzisse a agulha para que eu nãoo machucasse, nem errasse o procedimento, para não ter a necessidade de repeti-lo. Ele8Este também é um jargão médico comum utilizado; dizemos que um paciente é colaborativo oucooperativo quando este se deixa tranquilamente ser examinado, colher ou realizar exames etc. Ou seja,quando o paciente é literalmente paciente, no sentido de uma passividade às condutas do médico.


87olhou para o outro lado, onde estava a mãe dele e eu falei para que ele se concentrasse eficasse tranquilo porque seria rápido. A coleta foi muito rápida, ele não moveu o braço enão chorou. Quando eu terminei de colher o sangue, joguei um beijo para ele e disseque eu o achava um menino lindo e muito forte. Ele respondeu com um beijo à distânciatambém. Expliquei a ele que ele iria fazer uma série de nebulizações para melhorar maisrápido. Quando eu estava saindo do quarto dele ele começou a chorar e pediu que euficasse com ele mais um pouco. Naquele momento posso dizer que fiquei com ocoração apertado, tenho realmente dificuldade para expressar o que se passou comigoneste momento. Achei a atitude dele de uma confiança incrível. Eu já havia coletado seusangue, ainda disse que teria que fazer uma série de medicações e ele ainda era capaz demandar beijo e pedir para eu ficar mais tempo ali com ele. A família dele teve tambémum contato muito bom comigo, me fazendo crer que isso ajudou na minha relação comele.Em um outro momento, também na UTI, ele não podia se alimentar pela boca,tal era o desconforto respiratório que ele apresentava. Daí fomos obrigados a colocaruma sonda nasoenteral, por onde se alimentava. É possível imaginar o desconfortocausado por uma sonda no nariz de uma criança de dois anos, que está com umapneumonia e um dreno de tórax. Daí ele arrancava a sonda, sempre que deixávamos asmãos dele livres. Para não termos que deixá-lo em dieta zero, e para evitar de ter quepassar a sonda a toda hora – o que é um procedimento bastante invasivo e estressante,tanto para a enfermeira, quanto para o paciente, provoca vômitos etc - colocamos umas'luvinhas' nas mãos dele de uma forma que as luvas ficassem confortáveis e fossemdifíceis dele retirar. Só que ele adora carrinhos e, eu brincando com ele na UTI, acabeifazendo com que lembrasse dos carrinhos. Ele começou a chorar porque queria seguraro carrinho, mas estava com as luvas. Pedi a ele que não ficasse triste, que eu iriaresolver o problema. Ele me olhou e eu expliquei que ele só estava com as luvas porqueele havia arrancado aquele “macarrão” do nariz dele várias vezes, e que eu sabia que eraruim, mas ele precisava ficar com aquilo. Falei que eu iria liberar uma das mãos delepara que ele segurasse o carrinho com a condição de que ele não arrancasse mais o“macarrão” do nariz dele. Ele ficou quieto, eu entendi que a resposta era sim, falei queeu iria também deixar a mãe dele tomando conta daquela mão. Se aquela mão saísse do


88carrinho e fosse parar no “macarrão”, era para ela me avisar, porque eu havia feito umtrato com ele. Aí, retirei uma das luvas e de imediato ele pegou o carrinho e ficousegurando. Lembro-me que até o final do meu plantão a gente se distraiu, a mãetambém, mas ele não soltou o carrinho e nem puxou mais a sonda. Daí, olhei para a mãedele e falei: “Achei incrível! Ele está segurando o carrinho desde aquela hora e nãomexeu em nenhum momento na sonda...” A mãe concordou e também ficou feliz comtudo aquilo. A experiência com ele foi mesmo de interação, de identificação, detransferência com ele e com a família. Enfim, considero esta uma experiênciaenriquecedora.A observação na prática clínica mostra que a maioria dos profissionais de saúdeexecuta seu trabalho diariamente sem sequer olhar a criança como uma criança, umapessoa que está ali sofrendo – muitas vezes um bebê, que ainda não completou seudesenvolvimento emocional, não tem ainda uma integração do self – tendo de sersubmetida a diversos procedimentos, recebendo uma 'terapêutica' por imposição. Nãoestamos dizendo aqui que os procedimentos médicos e de enfermagem invasivos sãodesnecessários; não estamos retirando a importância do tratamento clínico instituídodentro da Unidade de Terapia Intensiva, pois sem tais procedimentos médicos e deenfermagem muitas crianças não estariam hoje bem, em suas casas, vivas, convivendonovamente com suas famílias. O que está em questão aqui é que a permanência de umacriança dentro de uma UTI pode e deve ser o menos traumática possível, respeitando-seas individualidades, as particularidades, a complexidade de cada caso, evitando-se tantoquanto possível, por meio de um respeito e abertura à pessoa do bebê e da criança,qualquer iatrogenia tanto física – quando o combate à doença e à morte a todo custotermina por agravar o estado do paciente – quanto psíquica – quando a falta de cuidado,interesse e conhecimento básico do amadurecimento e funcionamento psíquico do bebêe da criança permitem procedimentos psiquicamente agressivos, traumáticos.A biomedicina proporciona resultados eficazes no combate às doenças, maspodemos perceber claramente que o cuidado ao paciente se perdeu em algum momento,reduzindo-se o cuidar do paciente ao cuidar da doença. O tratamento da doença nãosignifica o tratamento do doente. A opinião da maioria dos usuários dos serviços de


89saúde é de insatisfação com o atendimento que lhe é prestado, e isto reflete uma posturamédica bastante defensiva, por vezes arrogante, ou ao menos despreparada, que sedistancia cada vez mais do paciente e foca no problema físico. O cuidado encontra-secada vez mais fragmentado e especializado (Tesser, 2009). Os especialistas, na suamaioria só atentam para o que diz respeito a sua especialidade. Sobre o especialista,Ortega y Gasset, filósofo espanhol, tem uma colocação interessante, que cabe aquidestacarmos:“O especialista sabe muito bem seu mínimo recanto douniverso; mas ignora radicalmente o restante. (...) Antigamentepodia-se dividir os homens em sábios e ignorantes. (...) Mas oespecialista não pode ser incluído em nenhuma dessas duascategorias. Não é um sábio, pois ignora formalmente o que nãofaz parte de sua especialidade; mas também não é um ignoranteporque é um „homem de ciência‟ e conhece muito bem suapequena porção do universo. Teríamos de chamá-lo sábioignorante,coisa extremamente perigosa, pois significaria que éum sujeito que se comporta em todas as questões que ignora,não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem noseu âmbito especial é sábio.” (ORTEGA & GASSET apudGEBARA, 2009, p.17)Algo que gostaria de acrescentar aqui seria uma frase de CREMA 9 que mechamou muita atenção, que dizia:“Eis o absurdo óbvio: depois de décadas de bancosescolares e universitários: o erudito doutor segue sendo umanalfabeto emocional, um bárbaro da vida anímica,desconhecedor de si, enfim, um ignorante existencial”.(CREMA, 2010).Cabe aqui comentarmos que esta é uma frase que generaliza, pois nem todos osprofissionais de saúde atuam desta maneira, sem levar em conta os afetos. Entretanto,9Roberto Crema é psicólogo e antropólogo do Colégio Internacional dos Terapeutas – CIT, consultorem abordagem transdisciplinar holística e ecologia do Ser. É autor de diversos livros, que abordam avisão holística na área da saúde e da educação.


90ainda é um assunto muito intrigante no meio médico, um assunto ainda evitado, poucodiscutido. É uma frase que podemos dizer que ainda se coloca como parte da atualidade.Entretanto, queremos propor novas formas de cuidar, formas que valorizem o afeto, opsiquismo.Podemos perceber que a biomedicina atual valoriza os números e as medidas, osdados ditos objetivos, ou seja, os dados dos exames, dos monitores, das máquinas, comoviés condutor das terapêuticas, muito mais do que o olhar para o paciente. E ainda,impondo essas condutas como um saber dominante, imperativo; desconsiderandomuitas vezes a vontade do próprio paciente. Como exemplo, podemos citar o tratamentodo câncer com o uso da quimioterapia. O princípio básico da quimioterapia consiste emmatar as células cancerosas com drogas potentes, que na sua maioria agem na replicaçãodas células; ora, nosso organismo está sempre em contínua renovação, e portanto, comdivisão de suas células, de modo que a quimioterapia acaba por gerar efeitos deletériosimportantes mesmo às células saudáveis do organismo. Nesse sentido, observa-se naprática clínica o tratamento quimioterápico não só matar as células cancerosas, mastambém chegar ao ponto de quase matar o paciente. Não se trata de fazer uma duracrítica ao tratamento do câncer, mas sim de aliar o conhecimento já produzido comnovas formas de cuidar, modificando nosso olhar, levando em consideração o paciente,o que já refletiria uma melhora na terapêutica, no processo de cura, na adesão aotratamento, ou seja, na afecção do paciente durante o tratamento, no sentido destesentir-se mais ativo durante o processo de tratamento, mais participativo, com maiorcapacidade normativa (Canguilhem, 1978), interagindo no seu próprio processo de cura,tomando posse dele. E não como algo imposto, onde o paciente se submete aotratamento, apresentando afetos passivos (Spinoza, 2007), reagindo a causas externas,reagindo ao invés de ser (Winnicott, 1983).A paciente do caso clínico a ser relatado a seguir tinha três anos de idade enecessitou ser internada por apresentar um quadro de pneumonia aguda bilateral, comacometimento de todo o pulmão esquerdo. Na sua história poderíamos ressaltar que ospais já haviam procurado vários atendimentos médicos antes da sua internação, mas emnenhum atendimento foi realizado, segundo os mesmos, um exame mais minucioso da


91paciente, ou mesmo solicitado algum exame complementar, seja laboratorial ouradiológico. O fato é que quando esta paciente chegou ao hospital, encontrava-se emangústia respiratória e não conseguiria manter-se viva sem a ajuda de aparelhos. Foientão sedada e instituída ventilação mecânica, além de uma terapêutica específica(antibioticoterapia) e de suporte da paciente. Desde o início da internação, um'problema' constante referido nos plantões era a dificuldade que todos nós, plantonistas,tínhamos em sedar a paciente. De forma que, para que a criança ficasse mais confortávele se permitisse ventilar, era necessário uma quantidade de analgésicos e sedativosimportante. Uma das preocupações da equipe era com o fato de a paciente apresentaruma consequente dependência de sedativos e taquifilaxia 10 . Além disso, a pacienteevoluiu com derrame pleural 11 , com necessidade de drenagem torácica, sendo este maisum procedimento invasivo. No decorrer de alguns dias, conseguimos obter algumcontrole da infecção, a paciente estava apresentando melhora da sua aparência clínica, jánão apresentava mais febre e os exames já demonstravam resposta ao tratamento.Porém, do ponto de vista estritamente biomédico da doença, não se podia aindaconceber a retirada do suporte ventilatório. A radiografia de tórax desta paciente aindamostrava uma extensa área de hipotransparência no hemitórax esquerdo,correspondendo a imagem de pneumonia, de ocupação (condensação) alveolar. Aoassumir o plantão noturno neste dia e ver a radiografia de tórax desta paciente, tambémhavia pensado ser necessário mais alguns dias de sedação e ventilação mecânica.Conversei com os pais a respeito. Estes, sempre se mostraram muito atenciosos àcriança, muito presentes neste período de internação da criança na UTI (holding) etambém confiantes no tratamento que estava sendo instituído (transferência).10Taquifilaxia, no jargão médico, consiste no fato de o paciente desenvolver uma tolerância cadavez mais rápida e progressiva às medicações analgésicas potentes e sedativas.11Derrame pleural – acúmulo de líquido no espaço pleural, que pode ser purulento, sanguinolento,apenas seroso etc. A pleura reveste o pulmão e compreende duas camadas: a pleura parietal, que fica emcontato com a parede torácica e a pleura visceral, que fica em contato com o pulmão. Entre as pleurasexiste um espaço, onde fisiologicamente há uma ínfima quantidade de líquido para que não haja atritoentre as mesmas. Se ocorre uma pneumonia importante pode haver reação inflamatória por contiguidade elevar ao acúmulo de secreção purulenta neste espaço pleural. Da mesma forma, um trauma torácicopenetrante ou uma contusão pulmonar pode provocar sangramento e acúmulo de sangue neste espaço. Aocorrência do derrame pleural requer sua drenagem, de acordo com a magnitude do problema. Aodiagnosticarmos um derrame pleural volumoso, faz-se necessário a colocação de um dreno de tórax paraaliviar a pressão intratorácica e permitir uma melhor expansão dos pulmões.


92Ao examinar a criança, entretanto, pude perceber que ela estava acordada, abriaos olhos e me olhava fixamente, mesmo com a infusão de doses altas de sedativos emcurso. A criança apresentava respirações espontâneas, e 'brigava' com o respirador. Estacriança quer respirar sozinha, pensei. Entrei em contato com a médica chefe da UTIpara discutir o caso desta paciente, contando o que havia observado e pedindo paratentar realizar a retirada da ventilação mecânica. Em geral só retiramos um paciente daventilação mecânica quando o paciente apresenta melhora clínica e dos examescomplementares também. Além disso, a retirada do suporte ventilatório dificilmenteocorre no plantão noturno, pois exige um acompanhamento mais rigoroso da equipe deplantão; no período diurno, existem mais profissionais presentes além dos plantonistas,existem os médicos de rotina, que fazem um acompanhamento diário dos pacientesinternados, mais enfermeiros presentes e temos também os profissionais da fisioterapia.Durante a discussão do caso, a médica chefe concordou em tentarmos a extubação,embora houvesse a possibilidade da paciente não tolerar ainda respirarespontaneamente. Não saberia bem como explicar, mas algo me dizia que era possívelconseguir retirá-la do respirador. Sabia que seria difícil, pois teria primeiramente quereduzir os parâmetros ventilatórios e a sedação progressivamente até sua suspensão.Tive receio que a criança pudesse apresentar uma síndrome de abstinência 12 ao reduzir eretirar rapidamente as drogas sedativas. Porém a paciente reagiu muito bem à retiradados medicamentos, não ocorrendo qualquer tipo de reação adversa. Conformereduzimos a sedação e os parâmetros de pressão, frequência do respirador econcentração de oxigênio, sua resposta era cada vez melhor. Fato é que naquelamadrugada, a paciente conseguiu sair da ventilação mecânica e voltar a respirarespontaneamente. O conforto que proporcionamos à criança é indescritível. Após todo oprocedimento de extubação, realizamos uma radiografia de controle para observar sehouve alguma piora na imagem radiológica, o que não ocorreu. A paciente conseguiudormir confortavelmente após todo o manuseio. Poucos dias (dois a três dias) após a12Síndrome de abstinência – reação provocada durante ou após a retirada dos medicamentossedativos e analgésicos potentes, geralmente caracterizada pro tremores, movimentos anormais, nãocoordenados, agitação psicomotora, alucinações etc. No caso da paciente em questão, ela recebeu estasmedicações em concentrações altas durante aproximadamente uma semana.


93extubação, foi retirado o dreno de tórax e a paciente estava recebendo alta da UTI para oquarto, para terminar o tratamento antibiótico.Ao relatar este caso, queremos ressaltar a importância do olhar para o paciente, aimportância de se perceber a singularidade de cada caso e de cada momento, ter apercepção de que é possível conduzir a terapêutica do paciente juntamente com ele, enão apenas uma relação de submissão do paciente a um tratamento imposto pelomédico. Posso dizer que, neste caso em particular, não saberia detalhar o queexatamente me fez perceber que a paciente queria e seria perfeitamente capaz derespirar espontaneamente, mas foi possível conseguirmos juntos retirá-la de umprocedimento terapêutico tão invasivo, incômodo como a ventilação mecânica,reduzindo ainda o tempo de internação desta paciente na UTI. Este caso vem a reforçara idéia de que cada caso é singular e os pacientes não necessariamente apresentarão umaevolução pré-determinada, prevista pelos relatos nos livros e artigos, ou mesmo emdados estatísticos. Como diz Camargo Jr. (2003), os dados objetivos de exameslaboratoriais (e aparelhos de monitorização, acrescento) estarão sempre submetidos auma interpretação subjetiva do médico, o que implica em recorrer à sua experiênciaclínica. (CAMARGO, 2003, p.81).Ainda com relação a este caso, a interação com a paciente e a decisão de ajudálaa sair da ventilação mecânica nos pareceu ser uma atitude, uma postura da ordem deum conhecimento afetivo-intuitivo (Terceiro gênero de conhecimento em Spinoza, oqual só faz sentido na experiência vivida). Não tínhamos dados concretos dentro davisão estritamente médica – ou biomédica – que a paciente toleraria respirarespontaneamente; ao contrário, o exame de radiografia de tórax ainda mostrava umaextensa área de pneumonia à esquerda, mas pudemos perceber, na prática, que erapossível retirar o respirador, e que essa era a melhor atitude a ser tomada naquelemomento, não apenas para o conforto da paciente como para sua melhora. Queremosressaltar enfim, neste caso, que as rotinas médicas existem, que os protocolos existem, etêm, sem sombra de dúvida, a sua importância; mas, cada paciente é um paciente, ouseja, é único, é um modo singular da substância (de Spinoza). E portanto, assim deve servisto e tratado, preservando-se a sua singularidade.


94O caso clínico relatado a seguir trata da dificuldade que ocorre na prática clínicano que concerne ao investimento em medicações e suporte tecnológico. O paciente emquestão, de dois anos, havia sido internado na UTI pediátrica devido a suspeita demeningococcemia 13 . Encontrava-se em grave estado geral, sendo necessário sedá-lo einstituir ventilação mecânica. Este paciente apresentou piora progressiva do quadroclínico, com disfunção cardíaca, sendo necessário uso de aminas vasoativas em doseselevadas; surgiram lesões necróticas em alguns dedos dos pés e das mãos, lesõesespalhadas em superfícies extensoras dos membros, e algumas lesões em tronco,também necróticas. Os exames laboratoriais deste paciente não confirmaram nossahipótese diagnóstica inicial de meningococcemia; este paciente apresentou um quadroclínico de difícil diagnóstico, envolvendo diversas especialidades pediátricas –Neurologia, Nefrologia, Hematologia e Cardiologia pediátricas, além da nossa equipeda Terapia Intensiva Pediátrica – e, após a realização de diversos examescomplementares, chegamos a um diagnóstico denominado púrpura trombocitopênicatrombótica 14 . Este paciente involuiu, com necrose completa de extremidades (mãos epés), disfunção múltipla de órgãos e sistemas (DMOS), levando-o ao óbito no décimodia de internação na UTI pediátrica. Porém, este paciente só chegou ao décimo dia deinternação devido a um exaustivo investimento em medicações e suporte tecnológico,para uma tentativa de manutenção de suas funções vitais, que, após um olharretrospectivo, nos faz pensar, a toda equipe, que este investimento só tenha prolongadoseu sofrimento.Mas quero ressaltar também aqui não propriamente sua doença, mas oenvolvimento dos profissionais de saúde que o assistiram naqueles 10 dias deinternação. Uma criança previamente hígida, sem nenhuma internação prévia, chegouna UTI ainda interagindo com a equipe, com fáscies de dor, mas rapidamenteapresentou deterioração do sensório, necessitando de sedação e analgesia, intubação13Meningococcemia consiste na infecção da corrente sanguínea causada pela bactéria Neisseriameningitidis, que também é causa comum de meningite. A apresentação da doença geralmente é muitograve, necessitando internação na UTI.14A púrpura trombocitopênica trombótica é uma doença rara em pacientes críticos; é caracterizadapor anemia hemolítica microangiopática e plaquetopenia graves, alterações neurológicas e renais, além defebre. É característico da doença o achado na lâmina de sangue periférico a presença de célulasdenominadas esquizócitos.


95orotraqueal e ventilação mecânica. Tudo isso afetou (de alguma forma) os profissionaisde saúde que estavam ali envolvidos, acompanhando esta criança. É interessanteobservar que alguns profissionais se envolvem mais, demonstrando sua sensibilidade,seu sofrimento, no lidar com o paciente e com sua família; outros, entretanto, preferemse distanciar, negar o sofrimento, passar uma postura de aparente não afetação com acriança, enfim, adotam uma postura de defesa psíquica, conceito winnicottianodiscutido no segundo capítulo.É importante relatarmos aqui uma observação de que alguns plantonistasinvestem mais, em termos de medicações, chegando às vezes a limites críticos de dosesde medicações, ou parâmetros elevadíssimos de ventilação mecânica etc. E outrosmédicos menos, adotando uma postura um pouco mais conservadora, ou melhor, menosinvasiva para o paciente. Alguns médicos agem de forma mais invasiva declaradamentepor medo de 'perder' o paciente, ou por não 'querer perdê-lo' – sendo perder aquidefinido como o óbito do paciente. Outros profissionais agem de maneira mais invasivapela justificativa de que não há consenso ainda do quanto investir, até que pontopodemos investir, alegando que não há respaldo legal para isso. Mas talvez utilizando atecnologia como um álibi para o não engajamento, para a não assunção de seu papelprofissional técnico na avaliação de cada caso. De fato, os limites de investimento aindasão imprecisos. Mas talvez sempre serão, justamente porque demandam a sensibilidadee o engajamento do médico em cada caso singular.Nos dias de hoje, a morte tornou-se um evento hospitalar. Até o século XVIII,como nos apontou Foucault (2006), o hospital consistia em uma instituição deassistência a grupos marginalizados apenas. Após o século XVIII, com o surgimento daracionalidade anátomo-clínica como base da medicina, a instituição hospitalarconsolida-se, e, por sua vez, torna-se uma referência central no que se refere aotratamento de doenças e do cuidar da morte. E com relação ao lidar com a morte, estapassou a significar para o médico algo como um fracasso. Somando-se os eventos, naatualidade temos: a morte como evento hospitalar, o médico no lidar com a morte, o nãoquerer 'fracassar' por parte dos médicos, o uso da tecnologia disponível atualmente paraprolongar a vida e a indefinição dos limites de utilização destas tecnologias (a falta de


96respaldo legal). Daí a dificuldade do médico que está ali, presente, assistindo àquelepaciente em reconhecer em que momento as suas condutas estão deixando de serpropriamente terapêuticas e passando a ser iatrogênicas. Sobre isto, Menezes (2004)acrescenta:"As possibilidades de reanimação, alimentação erespiração artificiais contribuem para a expansão das fronteirasda vida. A oferta do aumento do tempo de vida leva àpossibilidades de resoluções diversas, provocando umadiscussão ética relativa ao período que precede a morte e à suaprópria determinação temporal. São construídos o conceito e odiagnóstico de morte cerebral, em função do transplante deórgãos. A morte de partes distintas do corpo tornou-se as mortessucessivas do mesmo indivíduo mediante a tecnologia médica.A medicina revela sua incapacidade de administrar os casoslimites, engendrados por seus saberes e técnicas." (MENEZES,2004, p. 22)Uma questão que podemos colocar aqui é que a biomedicina se preocupouapenas em desenvolver métodos de prolongamento da vida e de substituições artificiaisde funções orgânicas vitais, mas não sabe ainda o que fazer exatamente com elas,quando a situação que se coloca é o prolongamento do sofrimento do paciente. Este éum assunto muito polêmico, que vem gerando muitas discussões, mas que, a meu ver,ainda está longe de ser solucionado, ou mesmo bem elaborado.Durante a redação deste trabalho, o mundo assistiu ao surgimento de uma novaepidemia causada por um vírus, o H1N1, da influenza A, que ficou comumenteconhecida como Gripe Suína. O fato é que estamos falando de uma doençadesconhecida, apesar de sabermos que trata-se de um vírus que causa sintomassemelhantes aos da gripe, que porém apresentou evolução fatal em muitos casos, e sedisseminou rapidamente.Particularmente falando, não acreditava que fosse ver uma epidemia levandotantas crianças a óbito em um período de tempo tão rápido. Demorei para acreditar quea gripe suína estava ali diante dos meus olhos, vitimando inúmeras pessoas. Na UTI


97pediátrica pude vivenciar a morte de pacientes, de algumas crianças, e ao ter contatocom colegas médicos de outros setores, pude perceber que o clima era o mesmo, detensão, de preocupação, de angústia, de não saber como lidar com o desconhecido.Tivemos um caso específico que me marcou bastante, que foi o de uma gestantede vinte e dois anos que apresentou quadro de gripe suína e teve sua gestaçãointerrompida, gerando um recém nascido prematuro limítrofe. Ela ficou gravíssima e foiinternada na UTI. O RN por sua vez foi para a UTI neonatal para permanecer emobservação. Não sabíamos com o que estávamos lidando, não sabíamos o que esperar daevolução desse bebê. Esperávamos o pior. O bebê nasceu bem, evoluiu bem,permaneceu em ar ambiente, não necessitou de suporte ventilatório, fizemos umainvestigação cuidadosa para descartar infecção e esta foi negativa, embora a mãe tivesseseu quadro agravado. Como não sabíamos, até aquele momento, se era possível havertransmissão vertical do vírus H1N1, já que não haviam casos descritos na literatura,ficamos observando o bebê por alguns dias tendo este permanecido em precauções decontato e respiratórias 15 .Dois dias antes de o RN estar de alta hospitalar, veio a notícia da UTI adulto deque a sua mãe havia morrido. A reação da equipe de uma maneira geral foi a mesma, detristeza, de uma certa impotência com relação à epidemia. Os comentários eram bemparecidos com “não sabemos se vamos conseguir conter essa epidemia”. A impressãogeral era a de que havíamos perdido o chão, se tornava nítido que a sensação de controlejá não mais existia. Racionalmente, sabemos que não temos o controle de tudo, masquando ocorrem situações como estas, fica muito evidente a sensação de impotência,gerada por uma frustração da sensação de onipotência da equipe, ou seja, surgimento deafetos passivos, além de evidente defesa psíquica.Já em uma outra situação, em uma madrugada, as plantonistas da UTI foramchamadas para um atendimento na emergência, pois uma criança havia chegado aohospital em parada cardiorrespiratória (PCR). Tratava-se de um menino de um ano esete meses, que, segundo o relato da mãe, encontrava-se bem poucas horas antes, e15Devido a transmissibilidade da doença, é necessário a utilização de máscaras cirúrgicas(precauções respiratórias) e também de capotes e luvas (precauções de contato) para examinar e realizaros procedimentos que se fazem necessários ao paciente.


98repentinamente, apresentou queda do nível de consciência. Não respondia mais àssolicitações verbais, desmaiando logo em seguida. A mãe negava uso de qualquermedicamento, negava sintomas prévios, negava quedas ou qualquer outro tipo detraumatismo. Ao contrário, a mãe relatava estar com o filho no momento em que esteapresentou rebaixamento do nível de consciência. A criança sempre morou com a mãe emorava com o padrasto há aproximadamente seis meses. A equipe conseguiu reverter naemergência o quadro de parada cardiorrespiratória, realizando manobras de reanimaçãocardiopulmonar. O paciente foi então prontamente levado para a UTI. Imediatamenteapós uma parada cardíaca é esperado que o paciente apresente-se irresponsivo, emcoma, evoluindo posteriormente com melhora do quadro neurológico e hemodinâmico,dependendo do grau de lesão neurológica pós PCR. Necessitou de ventilação mecânica,monitorização e suporte clínico. Porém, horas após o quadro, observamos que opaciente encontrava-se em coma grave, sem reflexos de tronco cerebral (o centro darespiração), pupilas midriáticas, não fotorreagentes. Clinicamente, o pacienteapresentava sinais de morte encefálica. Foi realizada uma tomografia computadorizadade crânio, a qual revelou fratura craniana, em dois pontos, na região parietal direita,com sinais de hemorragia subaracnóidea, além de hematoma subgaleal na mesmalocalização da fratura. Para confirmação da suspeita clínica de morte encefálica,solicitamos a avaliação da Neurologia e da Neurocirurgia. Realizados os pareceres,realizou-se um eletroencefalograma que evidenciou traçado isoelétrico, confirmando aausência de atividade elétrica cerebral. A mãe negava que em qualquer momento tivessese afastado do filho, e negava terminantemente que a criança tivesse caído ou batido acabeça. A criança foi a óbito em menos de vinte e quatro horas de internação. Em casosde trauma em crianças, faz-se necessário a notificação ao conselho tutelar. E, por tratarsede uma morte de causa desconhecida, solicitamos então que o atestado de óbito fossedado pelo IML, após necropsia. Este tipo de informação a ser dada aos pais nos levasempre a um momento de extrema dificuldade da parte médica, no sentido de explicarque a causa do óbito fora desconhecida e que a criança necessitará passar por umanecrópsia. Dificilmente damos este tipo de informação aos pais sozinhos.Habitualmente, vamos em dois ou três médicos (e quando possível, o psicólogo) paraconversar com a família. Entretanto, observamos (eu e colegas de plantão) que ao dar a


99notícia do óbito à mãe e ao padrasto, a reação foi de aceitação, sem muitosquestionamentos, sentimentos de revolta, diferentemente de como observamos no dia adia. Posteriormente, ficamos sabendo que não se tratava de uma fratura craniana emapenas dois pontos, mas sim em quatro pontos. O resultado da necrópsia foi pior do queesperávamos. Entretanto, nunca saberemos o que de fato aconteceu a esta criança. O quepude perceber, não somente comigo, mas também em toda a equipe, é que „bate‟ umsentimento de impotência em relação à reversão do quadro daquela criança, e tambémum grande sentimento de revolta em relação aos pais. Era extremamente notável naexpressão facial dos profissionais de saúde que assistiram àquela criança um sentimentode indignação perante àquela família. Estamos aqui falando de mais uma situação ondesomos acometidos por afetos passivos, que diminuem a nossa potência de agir.Entretanto, podemos e devemos, na minha visão pessoal, fazer uso da razão afetivaproposta por Spinoza, não para abolir estes afetos, mas para diminuí-los.Com relação aos casos considerados incuráveis, os chamados dentro dabiomedicina FPT (Fora de possibilidades terapêuticas), existe a proposta da Medicinade Cuidados Paliativos, que objetiva minimizar o sofrimento do paciente, e ainda,naturalizar a morte e 'humanizá-la', tentando um resgate da “boa morte” e da “mortenatural”. Nas palavras de Menezes (2004):"O exercício prático da medicina é constituído por umadupla dimensão – 'saber/ sentir', 'tecnologia/ humanismo','competência/ cuidado', 'objetividade/ subjetividade','racionalidade/ experiência', entre outras denominações. Umavez que estes pólos se encontram em tensão e são estruturantesda prática médica, na conjugação da competência técnica com ocuidar competente, os Cuidados Paliativos propõem um novomodo de resolução da tensão entre as polaridades. Na formaçãoprofissional e no exercício prático da medicina curativa, há umahierarquia entre os dois pólos: os valores do saber e daobjetividade são superiores aos do sentir e da subjetividade.Assim, a assistência paliativa, seus pressupostos teóricos e suaprática determinam uma nova hierarquia." (MENEZES, 2004, p.215).


100Somos levados à idéia de que a Medicina de Cuidados Paliativos não deve seopor à Medicina Curativa – ou sobretudo esta àquela – pois que pode ser importantefator complementar, por vezes decisivo para a própria cura.Enfim, para finalizarmos, faz-se necessário admitirmos que o sofrimento e aangústia se farão sempre presentes no hospital, principalmente em um ambiente deTerapia Intensiva Pediátrica e Neonatal. Cabe aqui colocarmos que, embora haja umaaparente indiferença na atitude de alguns profissionais de saúde, principalmente nafigura do médico, acreditamos que“a escolha de uma carreira médica (ou voltada para aassistência em saúde) não testemunha insensibilidade àsquestões suscitadas pela morte, mas revelam, ao contrário, umaangústia inconsciente particularmente viva face ao evento.”(HERZLICH, 1993, apud MENEZES, 2004, p. 35).


101CONCLUSÃOCom relação ao que abordamos em Spinoza, na sua teoria dos afetos,classificados em ativos e passivos, podemos dizer que é impossível não se afetar (umasó substância, isto é, somos sempre afetados). E, resumidamente, que quando temosbons resultados e o paciente se recupera, isto gera em nós afetos ativos, aumentando anossa potência de agir. Inversamente, quando a terapêutica instituída não é bemsucedida, quando não obtemos nenhuma resposta e o paciente vai a óbito, o sentimentoé de perda, tristeza e frustração. Estas sensações são as mais difíceis de se lidar, pois sãonestes momentos em que percebemos a finitude da vida, por nem sempre obtermosêxito. A morte faz parte da vida e isso faz parte de uma compreensão intelectual, masmuitas vezes não faz parte de uma compreensão afetiva.Afetos passivos em uma profissão como a terapia intensiva neonatal e pediátricaestarão sempre ocorrendo; reatividades, negações, defesas psíquicas, tudo isso estaráocorrendo todo o tempo, o que considero inevitável. Mas só pelo fato de termosconsciência disto, de que nossos afetos passivos estarão sempre aparecendo, já faz comque, através do uso da razão afetiva, busquemos nos afetar melhor, ativamente. Aoconhecermos melhor o problema e também o nosso funcionamento afetivo e psíquico,reconheceremos mais rapidamente quando formos tomados por afetos passivos, etambém mais rapidamente e mais eficazmente conseguiremos transformar este afetopassivo – ou em um afeto ativo, ou em um afeto menos passivo. Ambas as situaçõesgerariam aumento de nossa potência de agir.É importante que constatemos que a medicina com todos os seus recursosdiagnósticos, tecnológicos, de conhecimento adquirido, farmacológicos, terapêuticos,não é capaz de vencer a natureza, como vem se propondo nos dias atuais. Vemos amedicina hoje tentando ir contra a natureza, tentando vencer a morte, o envelhecimento,o adoecimento, que fazem parte da vida, ao invés de potencializá-la.Nossa proposta consiste em lançar mão da razão afetiva (fazer uso doconhecimento) no sentido de buscar se afetar o melhor possível. A razão afetiva ajudará


102na diminuição da freqüência, da intensidade e da duração dos afetos passivos 16 . Comodisse Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, em uma carta escrita a umamigo – Franz Overbeck, em 1881 – Spinoza faz do conhecimento o mais potente dosafetos (MARTINS, 2009).Quisemos propor então, neste trabalho, uma clínica do cuidado, onde não se visaapenas o combate à doença, e sim o fortalecimento do paciente (no caso um bebê ouuma criança), e um acompanhamento multidisciplinar, que permita uma práticasuficientemente boa da medicina. E sempre levar em conta a complexidade do queocorre, pois a tendência é reduzirmos os acontecimentos a relações diretas decausalidade, generalizando os eventos (dizer que isso sempre ocorre por causa daquilo,esta é uma prática corrente em medicina). É importante avaliar individualmente cadasituação e cada paciente; isso nos levará a uma melhor prática. Estamos esquecendo dohumano; tratamos as doenças, combatemos as patologias, muitas vezes sem levar emconsideração a pessoa que ali está, como paciente.A medicina do cuidado que estamos propondo pode ter como importante apoio anormatividade em Canguilhem; em Winnicott, a criatividade, a transferência (queWinnicott traz da psicanálise freudiana), o holding e o conceito de integração psíquica.Especificamente, uma questão importante é que no caso dos recém nascidos internadosem uma UTI neonatal, estes não têm ainda a sua integração psíquica. O que estes bebêsapresentam é uma tendência a uma continuidade de existência. A idéia importante entãoé que o holding auxilie na integração do self de forma saudável (provisão ambientalsuficientemente boa), durante o período de internação deste bebê, fato que já lhe éinvasivo naturalmente, e portanto adverso.Por isso, acredita-se ser fundamental disciplinas na graduação e na pósgraduação (residência médica de terapia intensiva neonatal e pediátrica) que abordemestas questões; que estimulem o pensar criativo, que abordem a complexidade dasdoenças e de cada paciente, analisando cada situação individualmente. É claro que asrotinas e os protocolos têm a sua importância, mas cada paciente é um ser uno,individual e tem necessidades diferentes (singulares). Na graduação médica é16Esta é uma colocação importante sempre feita em aula pelo Prof. André Martins.


103importante destacar a importância de se discutir e pensar o contato com a anatomia, porexemplo; no meio da graduação, quando se dá o início do contato com a clínica, com ospacientes, seria importante abordar estes temas para fazer o aluno pensar sobre umaprática que leve todos estes fatores abordados em conta; e no final da graduação,destacar a importância de uma disciplina que aborde a preparação deste aluno para aprofissão, para a prática médica, incluindo a questão do lidar com a morte, com aslimitações da terapêutica, e com a própria transferência.Concluímos que se faz extremamente relevante levar em conta exatamente acomplexidade, a necessidade de cada vez mais termos uma equipe multidisciplinaratuando no atendimento dos pacientes de UTI pediátrica e neonatal. E isto pode serextrapolado para o atendimento a qualquer paciente, qualquer área da medicina.O médico, ao fazer diagnósticos, deve levar em consideração o afeto e opsiquismo. É importante lembrar que muitos fatores estão em jogo nos processos desaúde-doença. Fatores sociais, políticos, econômicos etc. Mas este trabalho buscou aterse– ou se propôs – a abordar o afeto e o psiquismo. E cabe ainda ressaltar que todosestes fatores externos produzem afetos. A forma como eu me relaciono com o mundo,com as pessoas, com a sociedade, com tudo aquilo que me cerca, me afeta. Por sua vez,as afecções geram efeitos no psiquismo e concomitantemente efeitos no corpo, visto queo ser humano é indissociável (indivíduo, ser uno, como visto no capítulo 2).Bebês, recém nascidos, prematuros, crianças, são vistos dentro da UTIorganismos com características fisiológicas prejudicadas (o corpo-máquina deDescartes), e ficamos tentando o tempo todo 'trazer' estes organismos para condiçõesótimas de funcionamento. A forma da terapia intensiva pediátrica de agir fica muitoimpregnada no profissional de saúde. Modificar o olhar, modificar o pensamento é algoque só acontece lentamente, não é um processo trivial. É um processo de contínuoaprendizado, de contínua experiência. E é só na experiência que é possível apreender osentido de todas estas colocações.Propor uma clínica do cuidado não apenas paliativo, mas também curativo, éalgo muito difícil. É um desafio. Levar em conta a complexidade do surgimento dadoença, da forma de apresentação da doença pelo paciente, da forma de comportamento


104da mesma, da resposta do paciente, da melhora e da cura, da relação do médico(especificamente, vale dizer que este trabalho é voltado para os médicos) com opaciente, com a família 17 e com a própria criança é também algo complexo.Não daremos conta neste trabalho, obviamente, de um esgotamento do tema,nem de longe nos propomos a isto. Mas que seja um trabalho que venha a acrescentarnas discussões já existentes, aos trabalhos que, citados aqui ou não, já vêm há algumtempo questionando a visão biomédica e a postura relacionada à esta. Que seja umtrabalho que venha a chamar a atenção para esta complexidade, que fica esquecida,posta de lado, em função de uma busca incessante pelo controle total de variáveispresentes no adoecimento, no tratamento e no processo de cura do paciente.Não estamos propondo, de maneira alguma, que o médico passe também aexercer a função de um filósofo dentro da UTI, nem o papel do psicanalista, mas queleve em conta o afeto e o psiquismo como aspectos cruciais no adoecimento, notratamento e no processo de cura do paciente.Não se quer desqualificar o conhecimento médico obtido com a visãobiomédica, com o modelo de aquisição do conhecimento (dito científico). Oconhecimento adquirido tem a sua importância, tem sua utilidade, tem sua eficácia, masnão é somente isso que está envolvido nos processos de saúde-doença, terapêutica-cura.Um conhecimento não exclui o outro, eles não precisam competir. Ao contrário, sãocomplementares, se a visão não é mais mecanicista, se a ideologia não é maiscientificista.A medicina de cuidados paliativos, o trabalho dos Doutores da Alegria (citadona Introdução), a presença em algumas unidades de terapia intensiva de um psicanalista,medidas como a implementação de grupos de apoio, a realização de reuniões com ospais para discussões de temas etc. (trabalhos citados na Introdução), enfim, todas estaspropostas constituem-se de extrema importância na inclusão do afeto e do psiquismonos processos de saúde e doença, e terapêutica e cura. Entretanto, isto demanda tempo,vontade e estímulo.17A família aqui tem um papel fundamental, pois no nosso caso o paciente é um recém nascido,um lactente, uma criança, que se encontra ali, no lugar de paciente.


105Podemos perceber que cada vez mais os intensivistas estão preocupados emapenas erradicar sintomas, combater doenças; vejo a cada dia mais profissionaisinsatisfeitos com a profissão; podemos perceber que o número de profissionais que sededicam à terapia intensiva pediátrica e neonatal é menor a cada dia; querer fazer umamedicina com qualidade e com comprometimento implica em fazer parte de umaminoria, comparada à visão que privilegia a erradicação de sintomas e orestabelecimento do funcionamento ótimo do 'corpo-máquina'.Portanto, este trabalho quis valer-se da reflexão teórica com suporte em autoresda filosofia e da psicanálise para pensar questões consideradas de relevância na práticada terapia intensiva pediátrica e neonatal. Ressaltamos aqui a importância da reflexão decunho filosófico para discussões de temas relacionados à área da saúde. Nas palavras deMartins:“O que há em comum e está sempre em questão é a idéiade que nossos pensamentos influenciam nosso humor, nossocorpo, nossa vida e, portanto, nossa saúde. Seja individualmente,seja no âmbito do saber. Nossa saúde e a saúde como campo desaber só tem a ganhar abrindo-se à prática reflexiva,investigativa e questionadora da filosofia. Esta, por sua vez,ganha em concretude e em vigor, ao entender que a filosofiaconcerne a uma realidade presente e viva, e não a abstraçõesdistantes da vida sensível. Trata-se de uma relação que vai nosentido contrário da idéia ainda familiar de que 'a filosofia nãoserve para nada'. Serve sim, inclusive para contribuir a nostornarmos mais saudáveis.” (MARTINS, 2004, p. 953)Acreditamos, enfim, na importância do uso da filosofia para modificar o nossoolhar, e por conseguinte o nosso agir, modificando assim a nossa realidade, tendendo,em nosso caso, para uma prática clínica não somente com foco no cuidado do paciente,mas também mais saudável e fortalecedora para o próprio profissional de saúde.


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