13.07.2015 Views

Cristina M. T. Stevens e Tania Navarro Swain - Grupo de Estudos ...

Cristina M. T. Stevens e Tania Navarro Swain - Grupo de Estudos ...

Cristina M. T. Stevens e Tania Navarro Swain - Grupo de Estudos ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Cristina</strong> M. T. <strong>Stevens</strong> e <strong>Tania</strong> <strong>Navarro</strong> <strong>Swain</strong> (orgs.) – A construçãodos corpos: perspectivas feministasFlorianópolis: Editora Mulheres, 2008.Maria Elizabeth Ribeiro CarneiroA quem serve o discurso da diferença sexual? Que po<strong>de</strong>res sociais são<strong>de</strong>senvolvidos, que lugares <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> prestígio, são criados? Quem éo referente que anuncia e consolida a diferença? São perguntas que <strong>de</strong>finemum campo <strong>de</strong> reflexões e lutas <strong>de</strong> teorias e práticas feministas, formuladaspor <strong>Tania</strong> <strong>Navarro</strong> <strong>Swain</strong> que, junto com <strong>Cristina</strong> <strong>Stevens</strong>, organizam essapublicação. O livro apresenta pesquisas realizadas por intelectuais que atuamem diferentes campos disciplinares – economia, sociologia, educação,psicologia, comunicação, história e literatura – e resulta da convergência<strong>de</strong> suas inquietações.Os capítulos abordam tecnologias i<strong>de</strong>ntitárias e exprimem uma crítica dacultura, das artes, das ciências e das humanida<strong>de</strong>s. O conjunto é revelador<strong>de</strong> mecanismos disseminados que acionam a norma social e das perspectivasfeministas que se multiplicam em vertentes <strong>de</strong> luta para <strong>de</strong>sconstruí-los. Otrânsito inquieto <strong>de</strong> corpos que habitam politicamente <strong>de</strong>ntro e fora dosenunciados apresenta-se sob a fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhares que transgri<strong>de</strong>m asfronteiras binárias do pensamento e manifestam-se criticamente no interior<strong>de</strong> sistemas político-culturais – inclusive <strong>de</strong> sexo e gênero. Trata-se <strong>de</strong> perspectivaspreocupadas em iluminar certos discursos, e não em reiterar sentidosunívocos, dicotômicos e dominadores, ou sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, mas emacionar positivida<strong>de</strong>s outras, múltiplas, controversas, que possibilitam pensar,lutar, existir e reconhecer-se no mundo contemporâneo <strong>de</strong> outras formas.Heleieth I. B. Saffioti, referência inegável na trajetória dos estudos feministasno país, retoma conceitos e categorias elementares para salientara importância <strong>de</strong> se percebê-los em sua historicida<strong>de</strong>, no capítulo “A ontogênesedo gênero”. Desfeito <strong>de</strong> sua pretensa neutralida<strong>de</strong>, o conceito <strong>de</strong>patriarcado, por exemplo, é empregado por feministas dos anos 1970 para<strong>de</strong>nunciar a dominação masculina e analisar as relações homem-mulher<strong>de</strong>la resultantes. Ao romper com a noção weberiana que sugere a leituratripartite da socieda<strong>de</strong> – política, econômica e social –, essa abordagem oconcebe para apreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual das estruturas sociais<strong>de</strong> produção, reprodução, socialização e sexualida<strong>de</strong>.


208 ResenhaRepensar o po<strong>de</strong>r, as contradições sociais e a agência <strong>de</strong> sujeitos históricosem outros termos é uma proposta dos feminismos para <strong>de</strong>sconstruir relaçõeshierarquizadas e hierarquizadoras entre seres socialmente <strong>de</strong>siguais. ParaSaffioti, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se consiga a<strong>de</strong>ntrar o “reino da História”, não é preciso<strong>de</strong>sprezar conceitos ou categorias, como as <strong>de</strong> patriarcado ou gênero. Aocontrário, esse seria o caminho que possibilita aos sujeitos plurais ler, compreen<strong>de</strong>rrelações entre homens e mulheres e intervir nas injustiças da or<strong>de</strong>mpolítica androcêntrica.Já Guacira Lopes Louro, em “O estranhamento queer”, aborda umaperspectiva que emerge com os movimentos gays e lésbicos. Inicialmente, aexpressão queer funcionou como xingamento, um enunciado performativoque faz existir a quem nomeia, instituindo a posição marginalizada e execrada<strong>de</strong> “viados”, “bichas” e “sapatões”. Revertendo o jogo, o termo foi assumidoorgulhosa e afirmativamente por um conjunto <strong>de</strong> excluídos da posição sexualdominante para marcar outra posição que, paradoxalmente, não se pretendiafixar: “mais do que uma nova posição <strong>de</strong> sujeito, queer indica um movimento,uma inclinação” (p. 142).Se o movimento avançou na conquista <strong>de</strong> direitos e espaços ocupados porhomens brancos heterossexuais, Louro assinala um paradoxo, porquanto, teóricae politicamente, a expressão <strong>de</strong>senha o espaço <strong>de</strong> uma diferença que nãoquer ser integrada, a posição <strong>de</strong> sujeitos que questionam e se opõem à norma.É exatamente essa disposição antinormalizadora, o potencial subversivo <strong>de</strong>ssaampla crítica aos múltiplos antagonismos da socieda<strong>de</strong>, que ela sublinha, paraenten<strong>de</strong>r o queer, como um modo <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> pensar e conhecer, como umametáfora sem referente fixo (p. 145).Em “Sobre gênero, sexualida<strong>de</strong> e O segredo <strong>de</strong> Brokeback Mountain: umahistória <strong>de</strong> aprisionamentos”, Diva do Couto Gontijo Muniz nos apresentaum exercício criativo <strong>de</strong> análise do filme dirigido pelo cineasta por Ang Lee.Trata-se <strong>de</strong> uma leitura efetuada com as lentes das teorias feministas que explicita,pela condição <strong>de</strong> “sujeito constituído <strong>de</strong>ntro do sistema sexo-gênero etambém fora <strong>de</strong>le, reconhecendo sexo-gênero, indissociáveis, como produtose processos <strong>de</strong> diferentes tecnologias sociais, e o cinema como uma <strong>de</strong>las”.Difundido à boca miúda como o “filme dos cowboys gays”, a película movimentouo mercado do audiovisual, ganhou espaços significativos <strong>de</strong> mídia epolêmicas acirradas na crítica especializada.


Resenha209Evi<strong>de</strong>nciar o modus operandi do sistema sexo-gênero foi escolha <strong>de</strong>ssahistoriadora preocupada em entretecer os fios da cultura, da política e daética. Ao acompanhar o <strong>de</strong>senvolvimento da trama, ela observa que “as potencialida<strong>de</strong>slibertárias subsumidas em tais experiências foram contidas pelo<strong>de</strong>sfecho dado” (p. 132). Como uma “história <strong>de</strong> aprisionamentos” (p. 137),<strong>de</strong> enquadramento <strong>de</strong> personagens e enredo no jogo da lógica binarizante,da qual o diretor não consegue se livrar, a história <strong>de</strong> amor dos cowboys sereapresenta sob essa crítica, que <strong>de</strong>svela tensões políticas nas malhas culturaisda heterossexualida<strong>de</strong> normativa.Margareth Rago e Luana Saturnino Tvardovskas, em “O corpo sensual emMárcia X”, focalizam a obra <strong>de</strong> uma das mais inquietantes artistas dos anos1980. Márcia X (1959-2005) reúne ícones do cotidiano – objetos femininos,infantis, religiosos e <strong>de</strong> sex shops – e os reor<strong>de</strong>na, <strong>de</strong>sloca e reexibe em forma<strong>de</strong> objetos, ou na performance com o próprio corpo, que constrói e movimentainstalações. A artista embaralha signos da sexualida<strong>de</strong> e da religião, do eróticoe do pornográfico, do mito e da banalização, da norma e da perversão, dainfância e da maturida<strong>de</strong>, do sagrado e do profano, do feminino e do masculino.Segundo as historiadoras, em uma existência curta e fecunda, sua obra<strong>de</strong>sfere críticas, inclusive à pornografia e aos feminismos <strong>de</strong>ssexualizantes,propondo formas outras <strong>de</strong> rir e existir fora dos limites da norma.O texto ilumina “intensida<strong>de</strong>s criadoras que po<strong>de</strong>m subverter um contexto<strong>de</strong> homogeneização, como o que vivemos, e as novas potências <strong>de</strong>vida possíveis na era das biopolíticas”. E o capítulo faz reviver a imaginaçãosexualizada, viva e libertina da artista, ao potencializar sua ironia em relaçãoao discurso do po<strong>de</strong>r: a reflexão <strong>de</strong> Margareth e Luana sobre a força criativa<strong>de</strong> Márcia <strong>de</strong>sestabiliza a perspectiva totalizante e soma-se às contribuiçõesda crítica da cultura baseada em <strong>de</strong>slocamentos que inci<strong>de</strong>m no terreno dasartes, linguagens, saberes e po<strong>de</strong>res, esforços que enfocam/<strong>de</strong>sfocam/<strong>de</strong>svelamcorpos, subjetivida<strong>de</strong>s e sexualida<strong>de</strong>s.Em “Relações hiperbólicas da violência da linguagem patriarcal e o corpofeminino”, Marie-France Depêche aborda a importância das palavras naconstrução/reconstrução das coisas para pensar a partilha política que criaseres sexuados. A incitação discursiva, ela infere, atua não só no policiamentoe controle das enunciações, mas na produção da diferença, da sexualida<strong>de</strong> edos corpos que a exercem.


210 ResenhaDepêche <strong>de</strong>svela mecanismos que fazem operar um sistema <strong>de</strong> opressãoe atenta para a prática vocabular que, em diferentes idiomas, exprime umexercício não menos violento do que o representado por agressões físicas. Elamostra a força agressiva <strong>de</strong> expressões clássicas ou corriqueiras no exercíciosocial da comunicação que acionam a operação política da linguagem dopatriarcado. No emaranhado <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res em funcionamento, ela distinguevastas regiões <strong>de</strong> silêncio acerca das experiências femininas: “Talvez sejaa maior violência quando a linguagem dos homens apaga a presença dofeminino na socieda<strong>de</strong>” (p. 214).Ao propor uma reflexão sobre textos e sentidos, no capítulo “Bestiários”,Norma Telles mergulha no universo dos manuscritos que inspirarama literatura e as artes na Europa medieval, com figuras reais ou fantásticascompostas <strong>de</strong> animais, vegetais e minerais. A substituição <strong>de</strong>sses catálogospor enciclopédias impressas é o rastro pelo qual ela acompanha <strong>de</strong>slocamentosocorridos na organização do conhecimento e da vida sob as luzesda racionalida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.Tal mergulho, entretanto, é uma forma <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r a outro, este, naprodução <strong>de</strong> Leonora Carrington e Remédios Varo, artistas inglesa e espanhola,respectivamente. Telles se <strong>de</strong>tém em obras das contemporâneasno movimento surrealista em Paris, que foram varridas da França ocupadapelo nazismo para o México, e observa, nelas, a re-apropriação da figura damulher em relação à natureza, aspecto central na produção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>feminina na cultura oci<strong>de</strong>ntal. Inspiradas pelas tradições herméticas, as artistasse encontram no tempo, espaço e buscam recriar e reanimar seres vivosoutros, ou <strong>de</strong>svendar relações e metamorfoses. Ao criarem figuras híbridas,que aproximam realida<strong>de</strong>s distantes e não as confun<strong>de</strong>m, ou fun<strong>de</strong>m, elasexibem seres inusitados que transcen<strong>de</strong>m fronteiras sociais <strong>de</strong> gênero.Ao encalço da historicida<strong>de</strong> da escrita literária, Ana Liési Thurler parecetomar para si a obstinação da poeta seiscentista Juana Inés <strong>de</strong> la Cruz,“pelo direito <strong>de</strong> conhecer, julgar, pensar por si mesma”, ou pelo “sentido<strong>de</strong> resistência à opressão, <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> se constituir como sujeito” (p. 43).Em “A construção <strong>de</strong> corpos sexuados e a resistência das mulheres: o casoemblemático <strong>de</strong> Juana Inês <strong>de</strong> la Cruz”, Thurler situa o contexto <strong>de</strong> lutasreligiosas e políticas do século XVII, e a Inglaterra, cenário <strong>de</strong> embates sobreos fundamentos da liberda<strong>de</strong>, da proprieda<strong>de</strong> e da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> contrato,


Resenha211on<strong>de</strong> emerge o pensamento <strong>de</strong> John Locke. No outro lado do Atlântico, noMéxico, persegue a trajetória da monja Juana Inês e <strong>de</strong> sua escrita.A monja-poeta admite ter buscado uma vida <strong>de</strong> estudo, ao optar peloclaustro no Convento das Carmelitas Descalças. Os princípios da políticamo<strong>de</strong>rna, que inventa a liberda<strong>de</strong>, a igualda<strong>de</strong> e o consentimento livre damulher à subordinação ao homem pelo contrato <strong>de</strong> casamento, premissas da<strong>de</strong>mocracia liberal nascente, servem para Liési enxergar a marca da transgressãonos vestígios <strong>de</strong>ixados pela poeta. A obra <strong>de</strong> Juana Inés revela-se emsua luta para resistir aos dispositivos da educação feminina e monástica. Suairreverência se renova nas críticas ao jesuíta António Vieira e na polêmicatravada com o Bispo <strong>de</strong> Puebla.<strong>Cristina</strong> <strong>Stevens</strong>, em “O corpo da mãe na literatura: uma ausência presente”,observa como as figuras <strong>de</strong> mãe e <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> são lidas em matrizesfundadoras: no Gênesis, em Aristóteles, São Tomás, Santo Agostinho, nosescaninhos da psicanálise <strong>de</strong> Jung, Freud, Lacan, nas teorias <strong>de</strong> Engels e <strong>de</strong>outros filósofos e escritores. Ao reler as imagens dispersas, ela propõe umaaventura. Desembarca em portos (in)seguros da história da literatura e, aindaque não distinga gêneros literários, movimentos e temporalida<strong>de</strong>s historicamentecultuadas, inva<strong>de</strong> terrenos mais ou menos consagrados, minados, ouainda, contaminados por discursos que procuram não <strong>de</strong>scolar a figura damãe do exercício <strong>de</strong> controle da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina.A travessia <strong>de</strong>sse oceano <strong>de</strong> representações, conceitos e estereótiposperpassa a literatura inglesa oitocentista (C. Dickens, J. Austen, G. Eliot) eculmina em plagas movediças do romance contemporâneo (J. Winterson,M. Roberts, D. M. Thomas). O diálogo com as feministas Jane Gallop, GermaineGreer e Luce Irigaray contribui para <strong>de</strong>svelar matrizes referenciaisda maternida<strong>de</strong> e a emergência <strong>de</strong> estruturas narrativas polifônicas, queencenam experiências femininas dissonantes daquelas.Já a Cláudia Maia interessa reler a construção dos corpos <strong>de</strong> “solteironas”,como um indício <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>sejado <strong>de</strong> “mulher verda<strong>de</strong>ira”.Em “Corpos que escapam: as celibatárias”, ela mostra como estesforam sistematicamente <strong>de</strong>squalificados na prolífica produção da literaturamédica do início do século XX, em discursos que construíram signos, patologiase sintomas, <strong>de</strong>finiram normas e perversões, para classificar e controlaro prazer excessivo, o prazer comedido e o prazer ausente. Este último, visto


212 Resenhacomo algo nocivo ao corpo, à saú<strong>de</strong> física e mental das mulheres, portanto,assim construído para mo<strong>de</strong>lar o corpo celibatário.Associada principalmente à moral sexual masculina, no esforço <strong>de</strong> controleda honra e da virginda<strong>de</strong> feminina, a construção reiterada da imagemda castida<strong>de</strong> assegura, assim, uma representação i<strong>de</strong>alizada que se disseminasob a forma <strong>de</strong> “corpos puros para uso exclusivo do marido a serviço da maternida<strong>de</strong>sadia”, além da reprodução da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> corpo social. Se celibatáriospo<strong>de</strong>m ser lidos como corpos que escapam, o capítulo aborda também comoeles são recapturados pelos “castigos da natureza contrariada”.Silvana Vilodre Goellner abre o capítulo “A cultura fitness e a estéticado comedimento: as mulheres, seus corpos e aparências” com dados impressionantesda Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Cirurgia Plástica, que situam o Brasilem segundo lugar no mundo em número <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mias (atrás apenas dosEUA), em primeiro no consumo <strong>de</strong> drogas inibidoras <strong>de</strong> apetite, e comoum país on<strong>de</strong> se realizam centenas <strong>de</strong> milhares cirurgias plásticas estéticasanualmente. A autorida<strong>de</strong> do “imperativo da beleza” se manifesta <strong>de</strong>ssacultura fitness veiculada em discursos e práticas que se investem nos corpos,incitam nossos <strong>de</strong>sejos, e produzem uma profusão <strong>de</strong> artefatos midiáticos ecientíficos direcionados para o mercado do belo, da saú<strong>de</strong> e do bem-estar.Trata-se <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> instituições performantes que “carregammuito mais que músculos, ossos e aparências. Carregam significados, tornamcarne representações e discursos que operam, no <strong>de</strong>talhe, o controle, a vigilância,o esquadrinhamento, a fixi<strong>de</strong>z” (p. 246). Esses corpos-espetáculosinva<strong>de</strong>m e capturam as mulheres (e também homens), movimentam sonhos,fantasias e <strong>de</strong>sejos, mo<strong>de</strong>lam subjetivida<strong>de</strong>s. Entretanto, ela adverte, ahegemonia <strong>de</strong> uma estética do comedimento, do autocontrole, da automodificaçãose <strong>de</strong>sestabiliza em face da <strong>de</strong>snaturalização das representações dabeleza, do feminino e da felicida<strong>de</strong>. Por isso, ela adverte, é preciso afirmare reafirmar corpos e comportamentos outros, excêntricos, transbordantes,que insistem em não a<strong>de</strong>rir, em reagir aos dispositivos do mundo fitness.O “imperativo da beleza” também é objeto do capítulo <strong>de</strong> TâniaFontenelle-Mourão, “Mutilações e normatizações do corpo feminino:entre a Bela e a Fera”. Ela explora o corpo-texto, agente ou metáfora dacultura, corpo-lugar <strong>de</strong> controle social e <strong>de</strong>svela reações que neles se manifestam.As patologias <strong>de</strong> protesto emergem historicamente sob a forma<strong>de</strong> “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns mentais e alimentares” – neurastenia, histeria, anorexia,


Resenha213bulimia, agorafobia –, as primeiras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segunda meta<strong>de</strong> do século XIXe as últimas mais recentemente. Consi<strong>de</strong>radas manifestações nos corpos,para a autora, elas funcionam paradoxalmente, em conluio com as condiçõesculturais que as produzem, reproduzindo em vez <strong>de</strong> transformar justamenteaquilo que provoca o protesto.Significativamente, manifestam fenômenos, ou discursos, que ganhamforça em períodos históricos <strong>de</strong> reação cultural contra as tentativas <strong>de</strong> reorganizare re<strong>de</strong>finir papéis: masculino e feminino. No caso da histeria, daagorafobia e da anorexia, os corpos aparecem como superfícies nas quais asconstruções funcionais da feminilida<strong>de</strong> são expostas ao exame: falam comoum protesto “inconsciente, incipiente e contraproducente, sem recorrer àlinguagem propriamente dita, à voz ou à política”.No capítulo “Entre a vida e a morte, o sexo”, <strong>Tania</strong> <strong>Navarro</strong> <strong>Swain</strong> reageaos “imperativos da sexualida<strong>de</strong>” e mostra que é possível, como necessárioe urgente, resistir. Ela <strong>de</strong>sencrava construções que <strong>de</strong> forma incessantecontornam e sublinham a norma, forjando a pedagogia que provoca uma“cegueira social”, responsável por velar “as estratégias <strong>de</strong> diferenciação dossexos para melhor instaurar uma ‘natural’ diferença política entre homense mulheres” (p. 289).As imagens insistentes da menstruação como “fracasso mensal” dareprodução, da menopausa como momento <strong>de</strong> crise existencial e da TPMmarcam as mulheres com o sinal da fraqueza e da instabilida<strong>de</strong>, e operamentre inúmeros outros dispositivos que agem cotidianamente sobre corpossexuados, segundo o pertencimento à classe <strong>de</strong> mulheres ou <strong>de</strong> homens. Aolocalizar historicamente a construção da sexualida<strong>de</strong> sob as formas peculiarese exacerbadas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ela invoca Foucault, C. Guillaumin e E.Martin para <strong>de</strong>svelar a produção da diferença política ancorada nos corpos.O texto <strong>de</strong>sfecha o livro e evi<strong>de</strong>ncia pedagogias sociais que se reforçampara movimentar a re<strong>de</strong> política da heterossexualida<strong>de</strong> incontornável produzidacomo norma. Mecanismos e mol<strong>de</strong>s se produzem cotidianamentepara re<strong>de</strong>senhar contornos i<strong>de</strong>ntitários <strong>de</strong> mulher/homem e tornar “quaseimpossível uma relação igualitária nos embates sexuais, atravessados <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”(p. 300). Ela distingue a prostituição, o estupro, a violência domésticaentre os gestos que “povoam o cotidiano das mulheres, con<strong>de</strong>nsam o po<strong>de</strong>rmasculino sobre os corpos femininos”, fazendo reproduzir “a sexualida<strong>de</strong> naviolência, o po<strong>de</strong>r ligado ao sexo” (p. 292).


214 ResenhaNo exercício radical <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> luta e <strong>de</strong> transformação política,em sua prática combativa, nôma<strong>de</strong> e apaixonada, <strong>Navarro</strong> <strong>Swain</strong> convocaleitoras/es para romper com esse “cego assujeitamento”, e sugere a quebra dosgrilhões do natural, e das novas servidões que se anunciam e se imprimemnos corpos. O capítulo exprime um produto e um momento na trajetóriadas práticas e das resistências feministas, mas todo o livro é objeto <strong>de</strong> leituraobrigatória para aquelas/es que se inquietam, que querem transformaro mundo, que lutam para ampliar as fronteiras da crítica política e social, epara isso, procuram a<strong>de</strong>ntrar ou invadir temporalida<strong>de</strong>s e lugares inusitadosdo pensamento e da ação.Michel Laub – O gato diz a<strong>de</strong>usSão Paulo: Companhia das Letras, 2009.Igor Ximenes GracianoA relação da literatura com a vida, queira ou não, sempre foi um problemapara os que se propuseram a analisar a obra literária, ou, melhor dizendo, quese voltaram para sua compreensão no âmbito dos conhecimentos humanos.Não à toa que o texto tido como inaugural dos estudos literários, a Poética <strong>de</strong>Aristóteles, instaurou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então o dualismo crasso: o lado <strong>de</strong> lá e o <strong>de</strong> cáda criação ficcional, ficando no meio o processo <strong>de</strong> mimese, a imitação domundo, dos homens. Não contando o que houve, como a História, a literaturaconta o que po<strong>de</strong> vir a ser, sendo por isso semelhante à vida, comovendoquem porventura se <strong>de</strong>pare com tais “irrealida<strong>de</strong>s”.Daí que representar o mundo, os homens, mais que uma questão <strong>de</strong>técnica narrativa, tornou-se também uma questão ética, pois os indivíduosrepresentados na ficção não raro se confun<strong>de</strong>m com os indivíduos <strong>de</strong> carnee osso e sentimentos que transitam por aí, pelas ruas, coletivos e salas <strong>de</strong>aula... O vulto que surge no espelho da criação literária é quase tão tangívelquanto o corpo, uma vez que durante o acordo tácito da leitura a ficçãonos afeta como um fato da vida, uma história que ouvimos falar e que nosinquieta enquanto possibilida<strong>de</strong>. Afinal, não é a vida também um conjuntoinumerável <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s? De circunstâncias que po<strong>de</strong>riam ter ocorridoou que po<strong>de</strong>m vir a ocorrer? Se no dia a dia o fato se faz evi<strong>de</strong>nte, não seria

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!