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Comunidades Quilombolas, Auto-Atribuição ... - Fabsoft - Cesupa

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O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS COMUNIDADESQUILOMBOLAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA AÇÃO DIRETA DEINCONSTITUCIONALIDADE Nº 3.239 – STF, SOB O ENFOQUEPLURIÉTNICO 1 Liandro Moreira da Cunha Faro 21Felipe Fadul Lima, Renã Margalho Silva,Tiago Fernando Ramos de Oliveira Martins 3Resumo: As comunidades quilombolas no Brasil ganharam, em 1988,constitucionalmente, a garantia de que receberiam a titulação definitiva do território o queocupam através do artigo 68 do ADCT. Contudo, a efetivação de meios para que estepreceito ganhe contornos concretos não é simples e encontra obstáculos em conceitosretrógrados e preconceituosos que ainda permanecem vivos em nossa sociedade.Buscamos demonstrar que o modo estabelecido pelo Decreto 4.887 de 2003, artigo 2º,através da previsão do critério de auto-atribuição, é o que melhor se coaduna com a ideiade pluralismo, democracia e dignidade da pessoa humana preceituados pela ConstituiçãoFederal de 1988.Palavras-chave: <strong>Comunidades</strong> quilombolas. <strong>Auto</strong>-atribuição. Território quilombola.THE DEMOCRATIC STATE LAW AND COMMUNITIES QUILOMBOLA: ACRITICAL ANALYSYS OF DIRECT ACTION OF UNCONSTITUTIONALITYN. 3239 – STF, INFOCUS MULTIETHNICAbstract: The “quilombolas” communities in Brazil won in 1988 constitutionallyguaranteed to receive the definitive titling of the territory which they occupy, through article68 of the ADCT. However, the effect of this rule means to gain contours are not simple andpractical obstacles are backward and prejudiced concepts that remain alive in our society.We seek to demonstrate that the order established by Decree 4.887 of 2003, article 2,through the provision of the criterion of self-attribution is the one that best fits with the ideaof pluralism, democracy and human dignity prescribed by the Constitution of 1988.Key words: Quilombola communities. Self-attribution. Quilombola territory.1 O presente artigo é fruto de trabalho realizado por acadêmicos integrantes de grupo de pesquisa do CentroUniversitário do Estado do Pará (CESUPA), voltado à análise e estudo dos direitos das comunidadesremanescentes de quilombos, tendo como principal escopo a elaboração de amicus curae, a fim de auxiliaro Supremo Tribunal Federal na apreciação da ADI 3239.2 Professor orientador, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do CESUPA.Coordenador da Clínica Jurídica de Estudo, Pesquisa e Análise do Direito Quilombola do CESUPA.3 Graduandos do Curso de Direito pelo CESUPA. Membro da Clínica Jurídica de Estudo, Pesquisa e Análisedo Direito Quilombola do CESUPA.


21 INTRODUÇÃOAo surgir o Estado Democrático de Direito, após a promulgação da ConstituiçãoFederal de 1988, a democracia no Brasil obteve caráter relevante no desenvolvimentoteórico (político, social e econômico) de uma sociedade arrimada em bases de igualdade,de liberdade, de diversidade cultural, de pluralismo jurídico-político, de participação e decidadania. Desta forma, é o nascer de um Estado voltado para a construção da cidadaniae promoção dos direitos fundamentais, baseados no princípio da dignidade da pessoahumana.Em meio a esse transcender democrático brasileiro situam-se as comunidadesremanescentes de quilombo na luta pela defesa de seus interesses, com o intuito de obtermaior inclusão nas relações democráticas e a concretização dos seus direitosfundamentais, como: o reconhecimento da manifestação cultural diferenciada, a defesados recursos naturais existentes nas suas terras, a autodeterminação e o direito à terra esua efetiva proteção.Essas lutas estão balizadas no reconhecimento do pluralismo, que tem porfundamento a valorização das práticas, organizações e estruturas culturalmentediferenciadas, abrindo, igualmente, espaço para o exercício de uma cidadania étnica, semlimitar as opções de participação democrática em uma única forma imposta pelasociedade dominante (WOLKMER, 1994).As comunidades quilombolas, na sociedade contemporânea, são ponto de grandedesconhecimento, então idealizações folclóricas ainda povoam o ideário daqueles quenão conhecem o que de fato vem a ser um quilombo, e das consequências sócio-jurídicasque advêm das relações plurais que envolvem a sociedade brasileira. Todavia, essaignorância é de extrema prejudicialidade para a consecução dos direitos e garantiasdesse povo, mesmo com o advento do Estado Democrático de Direito, inserido pela CartaMagna de 1988.Dentro dessa perspectiva da formação de um Estado Étnico, o qual priorize adefesa e a manutenção das diversas formas sócio-culturais de expressão étnica, aspolíticas públicas, as normas editadas pelo Estado, bem como as ações da sociedade,ainda não refletem o respeito aos diversos grupos étnicos existentes no âmago social.O Estado e a população em geral mantêm um discurso hegemônico em relaçãoaos povos tradicionais, tentando descaracterizar as diferenças, negar as particularidadese tornar a população homogênea, sem as diferenciações étnicas (SANTOS, 2006).


Em que pese esse cenário, a Constituição Federal, através do artigo 68 do ADCT 4 ,traz o preâmbulo de uma proteção aos remanescentes de quilombos ao garantir-lhes odireito ao seu território, sem, contudo, estabelecer diretrizes sobre esta titulação, proteçãoe garantia do referido direito.Com intuito de instrumentalizar o preceito, foi editado o Decreto 4.887 de 2003, quetrouxe grandes benefícios à questão quilombola no Brasil, principalmente por dar plenaefetividade ao disposto no artigo 68 do ADTC. Este decreto contribui para um estadopluriétnico, tendo em vista a forma diferenciada como trata o assunto, principalmente aquestão do reconhecimento dos territórios quilombolas.Esse ato emanado do Poder Executivo, entretanto, é alvo de uma Ação Direta deInconstitucionalidade (ADI) 3239, protocolizada pelo Partido da Frente Liberal (PFL) 5 , emque, dentre outros argumentos 6 , aduz que o critério de auto-atribuição para o titulação doterritório quilombola é inconstitucional, considerando que seus autores entendem que estepoderá ensejar a outorga de títulos definitivos de terras a comunidades que de fato nãoseriam remanescentes de quilombos, podendo abrir precedentes até mesmo para a máfé,sob a afirmação de que bastaria a simples manifestação de vontade para que umacomunidade fosse considerada quilombola, devido à vagueza do conceito, trazendogrande subjetividade à questão.Desta maneira, entendem aqueles que não aprovam o preceito do Decreto4.887/03 que critérios objetivos, com base em estudos genealógicos e laudosantropológicos uniformizados, feitos de formas preconcebidas, seriam os mais adequadospara tratar o tema, sendo este o modelo ideal de critério para que se possa entãoconceder titulação coletiva definitiva a uma comunidade quilombola.Este entendimento que refuta a auto-identificação não homenageia os preceitos doEstado Democrático de Direito elencados na Constituição Cidadã, pois tenta criarmétodos homogêneos para proteger comunidades culturalmente diversificadas em todo oterritório nacional.Este breve trabalho tem condão de desconstituir as afirmações contrárias aocritério da auto-atribuição trazido no corpo do decreto acima referido, buscando arrimo naimprescindibilidade do território para a sobrevivência social, cultural e econômica de umacomunidade quilombola, trazendo à tona a ideia de sentimento de pertencimento, pois4 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.5 Atual Democratas (DEM).6 Também são discutidas por esta ADI questões como o desrespeito à formalidade, por não haver lei formalprecedendo a edição do Decreto 4.887/03, assim como se questiona a violação ao preceito do artigo 5º,XXII, da CF/88, todavia, estas não são objeto de análise do presente estudo.3


com esta base poderemos trilhar um caminho norteado pelo sagrado princípio dadignidade da pessoa humana.42 ANÁLISES INICIAIS SOBRE AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS2.1 ORGANIZAÇÃO QUILOMBOLA E SUAS PECULIARIDADESO Quilombo representa historicamente o marco da resistência negra ao regimeescravocrata, quando ao constituírem comunidade, refugiando-se em lugares remotos,buscavam fugir do sistema indigno que importa uma grande mácula de vergonha paranossa história. Entretanto, ao formarem comunidades – os Quilombos – aqueles queoutrora fugiam e lutavam por liberdade, hoje lutam por reconhecimento e dignidade.Desta forma, da mesma maneira que se perceberam mais fortes e resistentes àsopressões físicas daqueles que se consideravam seus donos, hoje esta união tambémremonta a uma fortificação do grupo, porém não mais fisicamente, e sim política,econômica, social e culturalmente.Este é o conceito que há de se ter em mente ao se buscar discutir a forma deorganização quilombola, ou seja, há de se conhecerem seus alicerces gerais, pois quantoà organização social, econômica e cultural, não há uniformidade entre estas. Comoexaustivamente exposto, é necessário considerar as especificidades que circundam cadacomunidade e estudá-las profundamente para se poder, então, entender sua organização.Temos que concebê-las como distintas, todavia, ligadas pelo elo humano-sentimental, osentimento de pertencimento!Nas palavras de Marques e Malcher, encontramos o alicerce para nossa afirmação:O conhecimento científico sobre as comunidades quilombolas permite chegar auma conclusão de fundamental importância jurídica: os quilombos não seconstituíram de uma única maneira. Deve-se, portanto, ter muita atenção aoinstrumental a ser utilizado para se pensar esse fenômeno, múltiplo na suaorigem, não homogêneo em sua constituição e manifestação histórica. Posturaspassadistas, envelhecidas e estereótipos baseados em modelos preconcebidos egeneralizações de pouca significação não se prestam à analise de um fenômenode tão ricas perspectivas históricas como foram os quilombos (MARQUES;MALCHER, 2009, p. 23).Não pretendemos criar aqui uma uniformidade organizacional que generalize ascomunidades quilombolas, pelo contrário, buscamos apenas deixar claro que existe umponto de partida, este é a auto-atribuição, é o fato de o grupo se considerar quilombolapor haver em sua identidade derivações históricas, sociais e culturais, ou apenas algumas


delas. Desta forma, a auto-atribuição é de onde se dará início à caminhada rumo àconceituação de quilombo.Válida é a ideia proposta por Arruti (2006) que circunda sobre a existência de um“problema de enfrentar a documentação histórica, ou os discursos no campo etnográfico,sob a ilusão de que as mesmas palavras correspondem, sempre e para todos, àsmesmas coisas”.Assim sendo, concluímos esta breve explanação sobre a organização quilombola eseu real conceito com a precisa lição elaborada por Marques e Malcher (2009, p. 23):[...] o trabalho antropológico não se limita a pesquisar o passado de umacomunidade, mas procura compreender a percepção que ela tem de si mesma ede seu presente, como vê o seu passado e quais suas projeções para o seufuturo. É a partir do entendimento que uma comunidade tem desses elementosconstitutivos de seu viver que ela constrói sua identidade como um grupo socialespecífico.52.2 A CULTURA QUILOMBOLA E INFLUÊNCIAS SOCIAISNo fator cultural talvez esteja o ponto de maior uniformidade entre as comunidadesde quilombolas, entretanto, nada que assegure semelhanças decisivas, apenas traçoshistóricos, sociais e religiosos de origem comum.Não podemos descartar a identidade quilombola de uma comunidade pelo fato denão haver fatores culturais ancestrais em predominância dentre os membros, pois o pontochave é a consciência destes sobre o valor de tal fator no presente para a suaidentificação como pessoa.Fenômeno incontrolável é a miscelânea cultural que crescentemente se expande nomundo contemporâneo, desta forma, quanto mais próximo estiver a comunidadequilombola de um grande centro urbano, mais traços culturais desta tal comunidade terá.É inevitável tal fato! Portanto, querer que estes abstenham-se de interagir com os demaismembros do todo social, sob a alegação de manter uma cultura viva, é desumano. Avitaliciedade cultural não está no seu caráter imutável, e sim no total oposto, está nacapacidade daquele grupo em adequar sua cultura com as novas informaçõesprocessadas no seu núcleo social. Neste ponto, os quilombolas têm muito a nos ensinar,pois o sincretismo religioso que mescla santos católicos a divindades do candomblé estáfincado e sedimentado até hoje na cultura nacional.Contudo, ainda verificamos pensamentos retrógados dentre aqueles que ignoram acultura quilombola e desconhecem o seu real conceito e a grande importância para nossahistória, pois muitos ainda mistificam e idealizam os quilombos contemporâneos a umacultura social totalmente diversa dos padrões sociais vigentes, o que de fato não ocorre.


6Novamente ressaltamos, em sede conclusão deste, que o fator primordial é osentimento e o respeito que levam os membros de uma comunidade quilombola avalorizar a sua cultura, mesmo que novos conceitos culturais venham a se sobrepor.3 PREMISSA ESTATAL SOBRE DIREITO QUILOMBOLA: O SURGIMENTO DODECRETO Nº 4.887/03O Decreto 4.887/03 regulamenta o procedimento para identificação,reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas porremanescentes das comunidades de quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT. Taldecreto não foi o primeiro a cuidar da questão dos quilombos; na verdade, foi o primeiro adefinitivamente avançar no tratamento da posse étnica; a partir dele efetivamente sereconheceu o comando constituinte originário da diversidade sócio-cultural eantropológica em seus princípios e normas, pretendendo avançar nas soluções deproblemas históricos constantemente colocados de lado.Neste sentido, o Decreto nº 4.887/03 consolida uma nova ordem legal, cujospropósitos atualizadores exprimem a vontade inscrita na Lei Maior, ou seja, maisprecisamente a proteção às comunidades remanescentes dos quilombos, conferindo aafirmação dos direitos territoriais destes grupos étnicos minoritários.O que se visualiza é a efetivação de garantias esposadas no art. 68 do Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias e nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal,buscando não apenas promover políticas públicas afirmativas mas também preservando acultura tradicional dos grupos formadores da sociedade brasileira, em suas várias formasde expressão e modos de viver. Foi uma vitória diante da regulamentação antecessoraprevista no Decreto nº 3.912/2001 que previa de maneira rigorosa a titulação das terrasde quilombos, retirando da norma toda sua carga de aplicabilidade ao fazer exigênciasimpossíveis e descabidas.O fato é que, se considerado o atual decreto como inconstitucional, teríamos comoaplicável o decreto anterior, que absurdamente criava empecilhos à concretização dosdireitos quilombolas, quando, por exemplo, previa no parágrafo único do seu art. 1º quesomente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que: I – eram ocupadas porquilombos em 1988; II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dequilombos em 5 de outubro de 1988, ou seja, uma clara restrição não prevista


constitucionalmente que acaba impedindo a titulação das terras pertencentes aosremanescentes.Somente com autonomia para se autorreferenciar, e com isso buscar oreconhecimento de seus direitos, é que se pode partir para outros campos do direito queensejam um mínimo de dignidade, pois o que se quer proteger com o Decreto nº 4.887,de 20 de Novembro de 2003, vai muito além de direitos de propriedade. Com o decreto,objetiva-se a proteção e efetivação de direitos tutelados constitucionalmente, com o fim deefetivar elementos para, principalmente, uma vida digna à cultura dos povos quilombolas,esta parte integrante da cultura nacional e tutelada pela Constituição Federal.Resta concluir pela necessidade íntima das comunidades quilombolas à defesade autodeterminação enquanto protetores e defensores de uma cultura que necessita demínimas necessidades físicas, necessidades estas que o Decreto em comento quertutelar.Trata-se de tutelar a imperiosa necessidade de um território para a derradeiraproteção da cultura quilombola entre comunidades que se identificam com a mesma, porinúmeros motivos e questões. Constrói-se uma linha de raciocínio que vai daautodeterminação, passa pela dignidade da pessoa humana, para desembocar emdireitos protegidos constitucionalmente, posto que só poder-se-á discutir a efetividade detais direitos se forem garantidas as possibilidades de autorreferenciamento e identificaçãodas <strong>Comunidades</strong> <strong>Quilombolas</strong>.O art. 2º do referido Decreto reza que:Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para osfins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, compresunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressãohistórica sofrida. §1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dosremanescentes das comunidades dos quilombos será atestada medianteautodefinição da própria comunidade (BRASIL, 2003).A primeira observação a ser feita a respeito da questão da auto-atribuição é que oartigo acima referido dá critérios de identificação da comunidade quilombola, conferindoespécie de orientação geral e o ônus de sua comprovação, que, de acordo com o decretoanterior, era totalmente imputado às comunidades, passa a ser daquele que almeja lhecontestar.Explica-se, há uma presunção de veracidade para o critério de autodefiniçãoutilizado pela comunidade que se considera quilombola, derivada de suas características,tais como ancestralidade comum, trajetória histórica, relações territoriais bem específicasque podem ser elididas através de provas apresentadas por aqueles contrários.7


84 ANÁLISE DO PLEITO DA ADI 3239 SOB O PRISMA DE DIGNIDADE DA PESSOAHUMANANo pleito desta ação direta de inconstitucionalidade são aduzidos alguns pontos,que fazem jus a uma análise cautelosa, apesar de não merecerem prosperar tornando ademanda precedente. Tais pontos controvertidos são levantados a fim de fundamentaruma suposta inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03 em três questões específicas: I)formalidade; II) subjetivismo e autoatribuição; III) violação do preceito do artigo 5º, XXII daConstituição Federal.Dos argumentos levantados no corpo da peça inicial da ADI em tela, o que versasobre a inconstitucionalidade do critério auto-atribuição é o que mais carece de amparolegal, tendo por base o fato de que este busca trazer contornos concretos ao ideal deDignidade de Pessoa Humana. Os propositores da acima citada ação no SupremoTribunal Federal consideram que critérios objetivos representados por estudospreconcebidos seriam os mais adequados ao tema.Há de se frisar, contudo, que estes estudos não se pautam na análise de situaçõesde forma distinta, pois têm como parâmetro apenas padrões gerais que não relevam aspeculiaridades de cada comunidade, desta forma divergindo dos preceitos pluriétnicos daConstituição Federal.A fundamentação que visa à negação do critério trazido pelo artigo 2º do decretoem estudo, permeia sobre o fato de que a inconstitucionalidade do preceito do dispositivosupracitado estaria na relação entre o conceito de autoatribuição e a mera manifestaçãode vontade do interessado em obter a titulação de seu território. Desta forma, de acordocom o raciocínio construído no texto da ADI 3239, bastará se declarar quilombola para,aquele que intentar, obter a titulação definitiva da terra que ocupa. Tal conclusão nãoencontra fundamento, pois é fruto de uma análise superficial do texto regulamentar e quenão conseguiu conceber a grande evolução que traz a ideia de auto-atribuição.A conjectura de que haverá o reconhecimento do direito ao território àqueles queefetivamente não deveriam ser beneficiados, dando margem à má-fé, não pode ensejaruma decisão que refute o conceito de auto-atribuição trazido pelo decreto, sob pena derenegar incontestável homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana.Apenas aquele que pertence a um determinado grupo pode dizer quem realmenteé e porque é membro daquela comunidade; assim acontece com os quilombolas. Jamaisuma análise uniforme e pré-concebida poderá atestar se uma comunidade é ou não


quilombola, pois, além de ser procedimento ineficaz, é incompatível aos padrões doprincípio acima citado.95 DA FORMAÇÃO DO QUILOMBO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOOs quilombos não são a união geográfica e física de negros fugidos, muito menosse mantêm pela luta contra a opressão escravocrata, como se admitia na época doimpério brasileiro.Os quilombos existem até hoje e têm fluxo econômico, cultural e social próprios, ouseja, eles se projetam como partes integrantes da sociedade brasileira atual, como, porexemplo, as comunidades às margens do Rio Trombetas, no Baixo Amazonas, com suaprodução de castanha, ou os povoados dos morros de Santa Joana e Santa Maria, noMaranhão, que permanecem com suas tradições de cânticos (CASTRO; ACEVEDOMARIN, 1998). Cada uma com suas peculiaridades, tendo caráter dicotômico em relaçãoà realidade dominante do país.Esta dicotomia é extremamente relevante para a realidade democrática nacional,pois vivemos em uma época de ascendência do pluralismo, portanto, necessário éprotegê-lo a ponto de sedimentar a garantia de ser respeitado em suas diferenças.No caso em questão, estamos tratando de uma minoria étnica, para a qual seusdireitos não devem ser passíveis de dúvida, já que estão muito bem positivados naConstituição Brasileira, nos artigos 215 e 216.Alguns problemas conceituais são suscitados sobre o tema a partir de certaspontas soltas a serem prendidas diante da dúvida tangente ao porque e como protegerestes direitos fornecidos aos quilombolas. Após derrubarmos estas duas barreiras,poderemos aferir certos erros no pleito da ADI 3239.A primeira barreira que devemos derrubar está fixada sobre a seguinte pergunta: oque é um quilombo?Mesmo que esta pergunta aparente ter uma simples resposta, faz-se necessáriauma breve análise de caráter antropológico para melhor compreender o conceito.


O revogado Decreto 3.912/01, que tratava sobre terras quilombolas, definiuquilombo na ideia de fuga, no estabelecimento de uma quantidade mínima de “fugidos” eno recesso das matas.Ademais, mencionou que só seria reconhecido tal direito se ficasse comprovadoque as terras eram ocupadas por escravos fugidos desde a abolição da escravatura, em1888.Os quilombos surgiram durante o período escravocrata no Brasil, sendo realmente,assim, um foco de resistência de negros fugidos. Porém, com a abolição da escravatura,essa prática – escravidão – tornou-se ilegal no país, contudo, os quilombos continuaramexistindo e a ser fundados, sendo este o fator de maior importância para permaneceremexistindo até hoje. Este fato é senso comum nos dias atuais, pois se realmente o conceitode quilombo fosse visceralmente ligado à ideia de negros fugidos, os quilombos oriundosdesde 1888, desta forma, estariam extintos. Observamos, então, que o conceito dequilombos supracitado é equivocado.Estes são grupos de resistência, não ao escravismo, mas às dificuldadesencontradas dentro de um país que nunca lhes concedeu possibilidades e vida digna.Portanto, válido é mencionar o ensinamento de Gama (2006, p. 4):Não podendo também restringir o direito de propriedade somente aosdescendentes de comunidades que se formaram antes da escravidão, esseevento, como se sabe, pôs termo, formalmente à escravidão. Entretanto, apesardas grandes conquistas adquiridas com a resistência dos quilombos, os negroscontinuaram sofrendo toda sorte de opressão - o que, de certa forma, ocorre nosdias atuais -, tais como: exclusão social, discriminação racial, oportunidadesdesiguais e etc. Os ex-escravos, nesse contexto, não possuindo nenhum recursofinanceiro, nem recebendo assistência ou incentivo do Estado para iniciar umanova vida e não enxergando outra alternativa, uniram-se e, como já ressaltado,formaram novas comunidades mesmo após a abolição. Nessa fase, a resistêncianão era mais contra a escravidão em si, que se tornou ilegal, mas sim ao rançoescravocrata que ainda permanecia impregnado na sociedade. Assim, devemosconcluir como beneficiados também os descendentes das comunidades que seformaram após o advento da abolição.10O conceito de quilombo está intimamente ligado à luta, porém não mais contra oescravizador, mas sim em prol de sua autonomia.A autonomia é o verdadeiro elemento de existência de um quilombo, é o fato queune a comunidade, ou seja, o verdadeiro subjetivismo da essência de quilombo. Seumodo de vida, sua subsistência, sua cultura, sempre foram oprimidos; os quilombosverdadeiramente têm o caráter de resistir às opressões sociais existentes. A autonomiaaqui tratada diz respeito à política, organização social e econômica.O quilombola, por sua vez, se liga ao quilombo pela vontade de resistir. O conceitoantropológico nos fala que um quilombola é assim identificado por sua árvore genealógica


que o remete a sua comunidade, uma questão de descendência/remanescência, sendoentão este o elo que une o quilombola ao quilombo.Mas o conceito de genealogia aqui deve ser analisado com precaução, pois mesmoque pareça ser uma ideia inflexível, na realidade é mais abrangente do que se pode aferirem uma análise superficial:A identidade de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implicacompartilhamento de critérios de avaliação e julgamento. Logo, isso leva àaceitação de que os dois estão fundamentalmente “jogando o mesmo jogo” e istosignifica que existe entre eles um determinado potencial de diversificação e deexpansão de seus relacionamentos sociais que pode recobrir de forma eventualtodos os setores diferentes de atividade. De outro modo, uma dicotomização dosoutros [...] como membros de outro grupo étnico, implica que se reconheçamlimitações na compreensão comum, diferente de critérios de julgamentos, de valore de ação, e uma restrição da interação (D’ADESKY, 2009, p. 39).11O que integra alguém a uma árvore genealógica de uma comunidade? Peloexposto acima, em palavras simples, é a “vontade de pertença”, a vontade de pertencerao grupo por tudo que ele é, ou, mais especificamente, vontade de buscar a suaautonomia.Um quilombo não é um fato histórico, não é passado, é uma questão socialpresente até hoje, isto é, uma questão antropológica. Só um quilombola pode afirmar oque é ser um quilombola, pois a cultura se modifica, mescla e progride. O verdadeiro“ponto chave” é o “sentimento de pertença”, é uma pessoa se sentir quilombola esimplesmente afirmar isso.A identidade particular de alguém, segundo R. Ledrut (D’ADESKY, 2009), é criadaao se olhar para o outro, pois não se pode olhar para si mesmo, pois o olho tudo observa,menos ele mesmo. Esta ideia será chamada aqui de Teoria da Casa dos Espelhos, naqual, para criar-se uma identidade se deve olhar para os outros e assim criar umaidentidade própria, deste modo, as imagens dos demais geram a nossa própria imagem.Com este arrimo, tal teoria originou o conceito mais moderno de interação social atravésda noção de alteridade.A noção de pertencimento não pode ser gerada por laudos ou estudos, pois, nomáximo, teríamos uma especulação sobre a “casa dos espelhos”. Só quem está dentro evendo os espelhos pode afirmar o que realmente está sendo refletido, a simples deduçãodo reflexo nos espelhos não abarca o verdadeiro conceito de alteridade, pois não é capazde realmente dizer se o indivíduo se sente pertencente à comunidade em que vive,afirmando, assim, que seu reflexo foi gerado pela comunidade, sendo a cultura, aeconomia e a política traços intrínsecos de uma comunidade.


Não se pode exigir que alguém prove que é componente de determinado núcleosocial, que age de acordo com os costumes sedimentados em sua cultura, simplesmenteisso faz parte do seu próprio ser. É indigno ter de se provar quem somos e a qual grupopertencemos para que nossos direitos sejam efetivados e sejamos reconhecidos comocidadãos. Neste sentido, é o ensinamento de D’Adesky (2009, p. 41):R. Ludret observa que a identificação social do indivíduo está ligada ao sentimentode pertencimento, que é um fator de identidade coletiva. [...] a identificação socialé um conjunto de processos pelos quais um indivíduo se define socialmente, istoé, se reconhece como membro de um grupo e se reconhece nesse grupo.Este é o conceito contemporâneo de pertencimento, portanto, devido a suaaplicabilidade prática, é o critério usado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)169 7 em seu artigo1º, item 2, para podermos identificar quem pertence às comunidadesindígenas e tribais, no Brasil o Decreto 4.887/03 marcha neste mesmo sentido, por seutilizar do mesmo mecanismo.126 A IMPORTÂNCIA DO TERRITÓRIO OCUPADO PARA O QUILOMBOLA6.1 TERRITÓRIO QUILOMBOLAÉ sedimentado em nosso conhecimento social que a Economia é pressupostopreponderante para a existência de uma comunidade, no que tange à forma de atuaçãoeconômica, trazendo em sua essência fatores culturais – modos e meios de produção,divisão de tarefas e formas de interação com os entes externos, pois isto identifica ediferencia uma comunidade de outra.Há, portanto, a necessidade de buscarmos a pacificidade no entendimento de queo território é o meio onde ocorrerá o desenvolver da economia de uma comunidade; assimsendo, em se tratando de uma comunidade quilombola, segundo os ensinamentos deAcevedo e Castro (1998), teve como característica de ocupação de seu território “definidopela efetiva utilização”.Partindo do pressuposto de economia como arrimo de uma comunidade quilombolaem prol de sua autonomia, percebemos que o desempenhar das funções laborais não temapenas o fim de incremento e desenvolvimento econômico, mas sim a função dedinamizar ainda mais a relação entre os quilombolas, fortificando as ligações humanas, eassim, elevando o sentimento de pertença e a conscientização, dentre estes, danecessidade de perpetuação dos mesmos enquanto comunidade autônoma em relaçãoaos fatores socioculturais e econômicos.7 Artigo 1º: [...] 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critériofundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção [...].


O Historiador Arruti, ao abordar o assunto, diz:As colheitas de arroz e as próprias lagoas sempre representaram, por isso, umdos momentos mais importantes na configuração dos laços de solidariedade entreaquelas famílias, como era também o momento em que muitos interesses sexuaiseram despertados (ARRUTI, 2006, p. 228).Historicamente, o quilombo representa a obtenção da liberdade, a conquista de umbem inestimável ao ser humano, desta forma, o território é o “locus” onde se dará osurgimento de uma nova forma de vida. Padrões próprios serão estabelecidos, formas detrabalho e esforço mútuo serão constituídos e normas de relacionamento comercial comagentes externos da comunidade serão criadas.Mais uma vez nos valendo das lições de Castro e Acevedo Marin, buscandoconstruir uma base sólida para nosso posicionamento, citamos:É necessário compreender que a concepção de territorialidade e de terra comum,como é o caso dos negros do Trombetas, só pode ser percebida no interior dasrelações que estruturam a organização dessas comunidades. Não pode sersubordinada, portanto, à lógica da propriedade privada que preside o direitobrasileiro, por ter natureza distinta. Os negros mantêm, na concepção e na prática,terra comuns, pois institucionalizam um sistema de regras que alimentam oseu modo de produção. (CASTRO; ACEVEDO MARIN, 1998, p. 158, grifo nosso)13Portanto, é inegável a direta ligação entre o território e padrões econômicoselaborados em um núcleo social quilombola, pois o enraizamento em local onde há mútuoesforço em prol da subsistência e a busca pelo aprimoramento da exploração dosrecursos do mesmo em prol do grupo, porém sem perder a noção de distinção entrefamílias, serve de arrimo para que fatores culturais historicamente sedimentados seperpetuem, renovando a cultura e a própria relação humana.6.2 TERRITÓRIO E A MANUTENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO QUILOMBOLAAo se analisar internamente uma comunidade de quilombolas, verificar-se-ãodiversas peculiaridades que irão diferenciá-las umas das outras, certas vezesdemasiadamente, porém, como já exposto, é preciso ter em mente as particularidadesrelacionadas ao habitual modo de vida historicamente concretizado em cada comunidade,considerando fatores regionais e a forma de ocupação territorial.É preponderante para a manutenção destas comunidades, que tanto enriquecemnossa sociedade como um todo, a implementação de políticas que demonstrem avalorização da nação por seus integrantes. Tais políticas são importantíssimas para queseja fortificado ou até mesmo despertado o sentimento de pertença dentre aqueles que sedeterminam como quilombolas, exemplo disto é decreto 4.887/03.Peres (2010, p. 3) expõe:


Depois da instituição do Decreto 4887/2003, os processos que envolviamcomunidades remanescentes de quilombos em áreas de conflito passaram a serdiscutidos de forma ampla. Muitas comunidades quilombolas se organizaram parareivindicar seus direitos enquanto beneficiárias do art. 68 da ADCT da ConstituiçãoFederal a partir da promulgação do Decreto.Portanto, ter uma visão territorial exclusivamente sob olhares predominantementeprivados não se coaduna com a realidade territorial emanada por estas comunidades.Garantir o território não é apenas garantir a posse de um pedaço de terra aosquilombolas, de fato é garantir sua manutenção como quilombolas, como membros deuma comunidade organizada e autônoma!Castro e Acevedo Marin, com clareza nos ensinam:Ao conceber a terra como bem comunal, seguem regras definidas nos cânones dodireito consuetudinário, historicamente fundador de sua territorialidade. Adiscussão sobre as bases dessa territorialidade, portanto, não poderia jamaiscaber no âmbito limitado do direito privado. Ela não pode ser iluminada pelospadrões jurídicos que regulam o estatuto da propriedade privada e suas formas deaquisição. Dessa maneira não encontra lugar, pelas próprias características dogrupo do Trombetas, a noção de propriedade privada da terra, emboraidentifiquem essa condição para as casas, os frutais, os paiais e os instrumentosde trabalho. Essa noção de terra comum seguramente os enfraquece frente àsinstituições da sociedade envolvente, fundada na propriedade privada (CASTRO;ACEVEDO MARIN, 1998, p. 157).Desta forma, concluímos nossa explanação sobre a relevância do território para ascomunidades quilombolas, ficando assim expostos todos os fatores preponderantes parao desempenhar econômico e a manutenção da comunidade, fundados no local onde seencontram enraizados e constituídos socialmente.147 DA IMPROPRIEDADE DA ADI 3239Os argumentos da ADI 3239 padecem por não haver nestes um alicerceconstitucional sólido, sendo assim, seus propositores, ao questionarem o amoldamentodos preceitos do Decreto 4.887/03 aos mandamentos de nossa Carta Magna, nosremetem a uma contradição evidente, pois o que de fato vem a ser inconstitucional é oescopo do pedido da referida ação.O Decreto 4.887/03 é exteriorização clara de uma política que visa alcançar ideaisde igualdade material, afastando assim o ineficaz modelo de igualdade formal, no qualinferiorizações são ainda mais acentuadas. Portanto, o intento da ADI 3239 colide com opreceito do artigo 3º, IV da Constituição Federal onde se busca “promover o bem detodos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação”.Neste sentindo é o ensinamento de Santos (2005 p. 26), expondo seuposicionamento que busca:


[...] salientar a necessidade democrática de garantia do direito à pertença culturale à diversidade, que implica relações étnicas e raciais – raça aqui como umconceito sociológico, inundado de categorias culturais e históricas. A busca pelaigualdade, então, resulta também na busca pela diferença – o direito de ser igualquando a diferença inferioriza e o direito de ser diferente quando a igualdadedescaracteriza e, assim, igualmente leva inferiorização.O não reconhecimento individual ou coletivo de pertencimento a determinadosgrupos nos leva à geração de desigualdades, no caso em questão a intenção da ADI 3239estaria relativizando o reconhecimento do indivíduo e do grupo quilombola a critériosobjetivos, tendo o estado a função de caracterizar a identidade pessoal e grupal de algunse renegando a de outros que não venham a cumprir os requisitos estipulados de formaprévia, sem qualquer análise factual do seio das comunidades distintamente, assimtornando as comunidades quilombolas ainda mais marginalizadas, ignorando a dignidadedestes como seres humanos capazes de se auto-atribuirem como pertencentes ao seugrupo étnico, portanto, detentores de direitos e garantias.O Decreto 4.887/03 apresenta conceitos basilares de uma política inclusiva,fazendo com que injustiças históricas e de difícil extração do tecido social sejam sanadasatravés da atuação do Estado, balizado por padrões democráticos, “por isso, esse avançosocial deve se basear em uma política de respeito por toda diferença; assim, qualqueruniversalização de direitos subjetivos deve vir em conjunto com uma políticacompensatória” (SANTOS, 2005, p. 27).A questão não versa apenas sobre o simples reconhecimento através de um atoadministrativo, pois é algo muito mais amplo e adentra o âmago do conceito democrático,o tema em debate busca dar ao povo quilombola voz e poder decisório, mudando a formade atuação estatal em suas três esferas, fazendo que venha a agir com maisinteratividade e agregando valores pluriétnicos em nossa sociedade.O texto da peça inicial da ADI 3239 ressalta, de forma errônea, que o textoregulamentar do Decreto em debate resume a rara característica de remanescente dascomunidades quilombolas à mera manifestação de vontade de um possível interessadoem obter a titulação definitiva de seu território, contudo, como já exposto neste trabalho, oarrimo desta atuação inclusiva do Estado Brasileiro não é reconhecer o ser quilombolaatravés de sua árvore genealógica, valendo-se de fatores sanguíneos, pois os fatoresrelevantes para esta análise são os fatores culturais e sociais, ou seja, aqueles derivadosdo sentimento de pertencimento ao grupo.Sendo assim, podemos aferir que a propositura da ADI 3239 não se coaduna aoprincípio da dignidade da pessoa humana, portanto, não encontrando um norte15


constitucional, nos levando à afirmação que esta não tem densidade legal suficiente paraque venha prosperar ao ter ser mérito apreciado pelo STF.168 CONCLUSÃOA titulação coletiva e definitiva do território ocupado por comunidades quilombolasnão tem apenas significação patrimonial para estes, pois na verdade a propriedade, emsentido pleno, pouco importa em um contexto geral dentro destas comunidades. Destaforma, ressaltamos o ensinamento de Treccani (2006, p. 14):Nos territórios quilombolas se consagra não uma “propriedade” que garante aosseus detentores o domínio da terra, mas se expressa uma forma peculiar deapossamento e usos dos recursos naturais, caracterizada como “propriedadecoletiva”, fruto de uma identidade coletiva.Não é o intento destes reivindicar questões de propriedade, sua reivindicaçãoprecípua é a sobrevivência do seu legado, visando a preservação cultural através dasrelações humanas de seus descendentes, contudo, para que isto se efetive plenamente énecessário que haja a determinação de um território que aquela comunidade reconheçacomo o local em que seus membros terão a certeza de continuidade de seus padrõessociais, culturais e econômico, local de nascimento e sedimentação do sentimento depertença.A definição do ser quilombola não é passível de análise objetiva, muito menos temcaráter uniforme, portanto, não há como se delegar competência a um terceiro para queeste defina alguém ou uma comunidade como quilombola, ou seja, não poderá órgãoalgum, através de qualquer procedimento antropológico ou genealógico, dispor destaatribuição.É primordial para que uma política inclusiva tenha eficácia que aqueles que seenquadrem em grupos minoritários tenham voz ativa, caso contrário seria uma marcha nosentido oposto ao da democracia o fato de as minorias serem apontadas e definidas porterceiros, sendo estes que teriam a competência legal de outorgar direitos, através decritérios alheios à real essência pessoal daqueles que fazem parte do grupo que éminoria.O Estado brasileiro, como é sabido, tem caráter democrático há pouco tempo. Coma promulgação da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro ganhou umverdadeiro guia democrático, com o qual ainda não está totalmente habituado, ou seja,até hoje a visão democrática enfrenta fortes resistências, grande exemplo é o embate aosideais democráticos da Constituição na questão quilombola, retratado pela ADI 3239.


17Esta ADI nos mostra um exemplo de má interpretação e aplicação do atual conceitode democracia. O Estado brasileiro vem evoluindo sua visão de democracia com o passardo tempo. Desta forma, pleitos como o da ADI supracitada enfraquecem as visõespluralistas que trazem grande progresso, pois nesta é questionada a constitucionalidadedo Decreto 4.887/03, tendo como principal enfoque a alegação de extrema subjetividadedo critério da autoatribuição, refutando o avanço representado por este conceito.O pensamento de revogação do decreto 4.887/03 com base em qualquerfundamento é completamente infundado, sendo assim, um fato odioso como este deveser rechaçado em um País que se orgulha em ter promulgado uma Constituiçãodenominada Cidadã.Na visão constitucional democrata do Estado em que vivemos, bem como pelaevolução do pensamento que permeia o conceito de igualdade hoje no país, não há outraopção senão a de admitir o direito, bem como protegê-lo e tornar efetivo o seucumprimento, neste caso, com a declaração de constitucionalidade do decreto 4.887/03,dando efetividade aos direitos quilombolas consagrados constitucionalmente no ADCT.O Estado é responsável por instituir políticas de incentivo que “dignifiquem” osquilombos, de acordo com a Carta Magna e a Lei 12.288/10, que prevê como objetivo dapolítica nacional a saúde integral por meio de incentivos específicos, com a melhoria nascondições ambientais, de saneamento e de nutrição; garantia de preservação decostumes, crenças e tradições; financiamentos específicos; e a propriedade definitiva,com a finalidade de promover uma igualdade étnica.Conclui-se, então, que é dever legal e moral do Estado implementar políticas quepossam incrementar a dignidade nas comunidades quilombolas e ainda incentivar suaproteção e seu crescimento, sendo, desta forma, função econômica do Estado atenuar aomáximo qualquer desigualdade e observar a função social exercida para a sociedadecomo um todo pelas comunidades quilombolas.REFERÊNCIASARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formaçãoquilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.BRASIL. Decretos e leis. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto daIgualdade Racial; altera as Leis n os 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abrilde 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. DiárioOficial da União. Brasília, 21 jul. 2010. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em: 28 nov. 2010.


D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Pallas,2009.CASTRO, Edna; ACEVEDO MARIN, Rosa. Negros do trombetas: guardiães de matas erios. Belém: CEJUP, 1998.GAMA, Alcides Moreira. Quilombos e o direito de propriedade das terras ocupadaspelos descendentes das comunidades. Disponível em:. Acesso em: 19 nov. 2010.MARQUES, Jane Aparecida; MALCHER, Maria Ataide. Territórios quilombolas. Belém:ITERPA, 2009.PERES, Ângela Domingos. Movimento quilombola e capitalismo no Brasil. Disponívelem: .Acesso em: 28 dez. 2010.SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.São Paulo: Cortez, 2006.SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e igualdade racial: a contribuição dodireito na construção de um Brasil diverso. São Paulo: Loyola, 2005.TRECCANI, Girolamo Domenico. Terras de quilombo: caminhos e entraves do processode titulação. Belém: Secretaria Executiva de Justiça, 2006. Projeto Raízes.WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura nodireito. São Paulo: Alfa Omega, 1994.18

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