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Edição integral - Adusp

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APRESENTAÇÃOHá um século, um cidadão comum levava um ano para consumir omesmo volume de informações que atualmente é publicada emuma única edição de domingo dos grandes jornais brasileiros. AInternet encurta distâncias e a informação em tempo real temmantido a economia mundial constantemente alerta. Variações na bolsa deTóquio abalam estruturas econômicas na Europa e Estados Unidos, o mesmoacontecendo na América Latina com as variações nas bolsas do México e daArgentina. A globalização, palavra chave do mundo atual, coloca seustentáculos em todas as áreas e tem sido usada para explicar os principaisfenômenos do mundo moderno. A Revista <strong>Adusp</strong>, com o propósito de analisaresse tema, entrevistou professores da USP. O resultado indica que a globalizaçãoesconde importantes facetas. Ao mesmo tempo que ela é apresentada comosinônimo de modernidade, esta edição apresenta o raio X das condições deatendimento e ensino nos principais hospitais universitários do país. Pautada eproduzida pela Agência Andes de Notícia, esta matéria mostra que a realidadenos HUs não difere do que é comumente encontrado na rede pública de saúdedos Estados e municípios. Salvo algumas exceções, a maioria dos hospitaisuniversitários encontra-se à beira da falência, funcionando de forma precária.Em alguns casos, numa demonstração de resistência ao desestímulo impostopelos governos federal e estaduais, professores, residentes e funcionários chegama se cotizar para comprar luvas, esparadrapo, álcool e outros materiais básicos.Sobre a urgente necessidade de o Brasil entrar para a modernidade, o expresidenteItamar Franco chegou a declarar certa vez: “Como falar emmodernidade no Brasil, se não conseguimos resolver os principais problemassociais”. Aliados ao descaso com a área de saúde, outros dois graves problemasno país são a tortura e a indiferença com os direitos do cidadão. O deputadofederal Hélio Bicudo (PT-SP), entrevistado desta edição, afirma que o PlanoNacional de Direitos Humanos anunciado pelo presidente Fernando HenriqueCardoso não atende às reais necessidades da sociedade brasileira. Ele analisa,ainda, os casos de torturas que acontecem constantemente nas delegaciasbrasileiras e diz que a imprensa não é autônoma. “Ela está presa ao poder doEstado. Os grandes jornais são dúbios quando tratam da questão dademocracia e da questão da atuação dos órgãos governamentais”.A Revista <strong>Adusp</strong> traz, também, artigos dos professores Francisco Miraglia(Instituto de Matemática da USP e ex-presidente da <strong>Adusp</strong>), sobre auniversidade, a greve e a luta política; Osvaldo Coggiola (Departamento deHistória da USP), sobre o tráfico internacional de drogas, e do ex-presidente doDiap, Ruy Brito, sobre o drama da Previdência brasileira.


DIRETORIAMarco A. Brinati, Osvaldo Coggiola, Jair Borin, Heloísa D. Borsari, Valéria De Marco,Primavera Borelli, José Nivaldo Garcia, Antonio César Fagundes,José Marcelino Rezende Pinto, Ozíride Manzolli Neto.Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,Francisco Gorgônio da Nóbrega, Jair Borin, Khaled Goubar,Lígia M. Marcondes Machado, Nelson Achcar, Nilza Nunes da Silva,Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi.Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditoração eletrônica: Luís Ricardo Câmara e Maria Cristina WaligoraCapa: Doriana Madeira (Dmag)Fotos da capa: Ronaldo de Oliveira/Correio Braziliense e Daniel Ruiz GarciaIlustrações: MaringoniProjeto Gráfico: Dmag - Artes GráficasRevisão: Francisco José Mendonça CoutoSecretaria: Alexandra Moretti Carillo e Rogério YamamotoDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosFotolitos: Bureau BandeiranteGráfica: BandeiranteTiragem: 6.000 exemplares<strong>Adusp</strong> - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374Cidade Universitária - São Paulo - SPCEP 05508-900Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715A Revista <strong>Adusp</strong> é uma publicação da Associação dos Docentes da Universidade de SãoPaulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos inéditos sejam entregues emdisquete e tenham no mínimo dez mil e no máximo vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.


ÍNDICE6HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOSAGONIZAM POR FALTA DE RECURSOSWashington Sidney e Ana Sanches18UNIVERSIDADES PÚBLICAS E PRIVADASNO BRASIL E ESTADOS UNIDOSMaria Ligia Coelho Prado21EDUCAÇÃO EM TEMPO DE REFORMAF. C. de Sá e Benevides24UNIVERSIDADE, GREVE E LUTA POLÍTICAFrancisco Miraglia31ENTREVISTAHélio Bicudo38GLOBALIZAÇÃO ESCONDE REALIDADEHamilton de Souza44O TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGASE A INFLUÊNCIA DO CAPITALISMOOsvaldo Coggiola52O DRAMA DA PREVIDÊNCIA:AJUSTAR PARA GANHAR TEMPO E PRIVATIZARRuy Brito57UM OUTRO OLHAR SOBRE O PROÁLCOOLFernando Ferro60A FAVOR DE MAIS ÉDIPOSMarcos A. da Silva


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOSAGONIZAM POR FALTA DE RECURSOSWashington Sidney (Agência Andes/DF) e Ana Sanches (SP)Daniel GarciaOs hospitais universitários (HUs), que além do ensino prático de medicina cumprem a importantetarefa de dar assistência gratuita à população de baixa renda, poderiam tornar-se grandes aliados dasociedade na luta pela universalização do atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Poderiam,se houvesse efetiva vontade política dos governos federal e estaduais. Salvo raras e honrosas exceções, amaioria encontra-se hoje em estado quase terminal, funcionando de forma precária –em alguns casos àbeira do fechamento–, conseqüência do sucateamento da saúde pública e dos baixos investimentos noensino de nível superior. O diagnóstico é quase sempre o mesmo: os HUs não conseguem sobrevivercom as verbas irrisórias repassadas pelo Ministério da Educação, pelos governos estaduais e com asAutorizações de Internações Hospitalares (AIHs) pagas pelo SUS. As conseqüências são a supressãode leitos, degradação dos equipamentos, quase sempre já obsoletos, perda de profissionais qualificadospor causa dos baixos salários e queda da qualidade do ensino.6


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Daniel GarciaSaguão de atendimento do Pronto-Socorro do Hospital Universitário/USP.Superintendente do HospitalUniversitário (HU)desde 1988, o professorErasmo MagalhãesCastro de Tolosa considerabastante razoáveisas instalações e as condições defuncionamento da instituição, queé um órgão complementar da Universidadede São Paulo e realizaquase 40.000 consultas por mês.Professor titular de cirurgia e coordenadordo curso de cirurgia, eleexplica que o HU é um hospital demédio porte, com 308 leitos, e umadas maiores maternidades de SãoPaulo, com média de 300 partosrealizados por mês. “De maneirageral, nossos pacientes estão satisfeitos”,diz ele. “O hospital temuma discreta demanda no atendimentoclínico e, no cirúrgico, de nomáximo 10 ou 15 dias para uma cirurgiasem urgência, prazo equivalenteao dos hospitais particulares.”Criado há 15 anos com o propósitode abrigar o curso experimentalde medicina (em Pinheiros ficaria ocurso tradicional), os objetivos aque se destina o Hospital Universitárioforam alterados, a partir de1987, uma vez que o curso experimentalacabou sendo abolido antesde ele ficar pronto. A partir dessadata ficou estabelecido, então, queo HU deveria contemplar o ensino,a assistência médica e a pesquisa,atendendo os servidores da USP(docentes, funcionários e alunos) eoferecendo à comunidade do Butantãum programa de assistênciamédica em nível secundário, excluídoo trauma. Tolosa explica que oatendimento primário é o de prontosocorro, o secundário o de cirurgiase exames mais comuns e o terciárioo que envolve cirurgias e procedimentosmais sofisticados, comocirurgias cardíacas, neurocirurgias,exames de ressonância magnéticaetc. Quando a população do Butantãnecessita de um atendimento dotipo terciário, o HU encaminha paraos centros de referência do SUS.Se o paciente é da USP, o HU pagaos exames, a internação e as cirurgiasnecessárias.Estabeleceu-se também, nessaocasião, o que ensinar: apenas agraduação de medicina, odontologia,enfermagem, saúde pública epsicologia. “Aqui, quem ensina sãoos profissionais do hospital, quetambém trabalham na assistência ena pesquisa. Achamos que um corposeparado de profissionais, unspara ensinar, outros para trabalharno hospital, daria confusão, e queríamosharmonia. Também não temosresidentes, porque isso atrapalhariaa formação dos alunos degraduação”, diz ele.Outra medida tomada para harmonizara prática com os objetivospropostos foi a padronização deequipamentos. “Não há laboratóriosindividualizados de professores”, dizTolosa, “mas laboratórios que atendemcoletivamente as quatro áreas:clínica médica, cirúrgica, pediátricae obstétrica.” Além disso, o superintendedo HU conta que houve umenxugamento do organograma e aadoção de medidas que imprimiramrapidez de fluxo dentro do hospital.“Havia inchaço, como em todos oshospitais. Eliminamos 146 funçõesgratificadas. E informatizamos ohospital, privilegiando a área médicae não a administrativa”.A partir de 1989, segundo o superintendente,o HU passou a funcionarcom eficiência. “Em trêsturnos, rigorosamente controladoscom sistema eletrônico e cartão7


Agosto 1996magnético e horas de trabalho registradas”,informa ele.Preocupado apenas com os recursos,cada vez mais escassos, Tolosaexplica que, enquanto haviainflação, o que o HU recebia doSUS representava 60% do seu custeio,cabendo à USP arcar com osoutros 40%. Hoje a situação é totalmenteinversa. A USP arca com86% e o SUS com apenas 14%.“Esse dinheiro vem do ICMS quea USP recebe”, diz Tolosa, “gastandocom a saúde da população,que não seria responsabilidade dela.”Assim, embora o hospital funcionecom material padronizado,de alta qualidade, seus gastos eminovações não estão consolidados.“A falta de recursos compromete aexpansão, o investimento, o quefaz temer pelo futuro. Temos renovadosó o equipamento essencial.”O HU atende também 5 campida USP no interior do Estado. Tolosainforma que há, em cada campus,um ambulatório de triagem eauditoria. Outros tipos de atendimentosão feitos pela Unimed, ondehá convênios em São Carlos eBauru, e pelas Santas Casas, em Pirassununga,Piracicaba e RibeirãoPreto. “O custeio disso é pago comreceita própria”, diz Tolosa. “Precisode 14 recebimentos do SUS parapagar um convênio em São Carlos.”Mesmo com essas dificuldades, osuperintendente do HU diz que ossalários (mais acréscimos de plantão)estão todos em dia e que ohospital não tem nenhuma dívida.Tragédia de OsascoRevista <strong>Adusp</strong>Além da questão dos recursos financeiros,informa Tolosa, sua outrapreocupação é com profissionaisde imprensa “que publicam notíciassem verificá-las, e podem causaruma anulação de todo o esforçoque é feito aqui pelos doentes.” Elese refere ao episódio da explosãono Osasco Plaza Shopping, ocorridaem 11 de junho, ocasião em que oHU foi acusado de se recusar aatender as vítimas da tragédia. Emconseqüência da explosão morreram40 pessoas, 6 tiveram membrosamputados e outras 500 sofreramalgum tipo de ferimento.“No dia da tragédia”, conta ele,“a Defesa Civil nos telefonou, solicitandopessoal e recursos, quemandamos para o Hospital das Damas,em Osasco. Sabemos que, dosatendidos na região, sobraram 60feridos graves, 45 dos quais foramabsorvidos pelos hospitais locais.Dos 15 removidos para São Paulo,REFLEXÕES SOBRE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO QUE DEVERIA SER ESCOLAPrimavera BorelliNão discutiremos aqui as questões sindicais comocondições de trabalho, salários etc, que envolvem a reitoriada USP, a superintendência do HU e o seu corpo defuncionários. Gostaríamos de fazer algumas reflexões sobreo HU do ponto de vista do professor, responsável pelaaquisição, formação e transmissão do conhecimento ede usuário.Frente à maioria dos HUs do país, o HU da USP podeser considerado aquele que apresenta infra-estrutura física,equipamentos e recursos humanos, de um modo geral,bem qualificado. Bem, mais isso é o mínimo que se poderiaesperar de um Hospital Universitário ligado a uma dasmaiores universidades do país e que, por sua vez, localizaseno Estado mais desenvolvido economicamente.Mas nós queremos mais. Precisamos ir além do que éfeito atualmente. Precisamos, por exemplo, ter atuação semelhanteà desenvolvida pelo HU da UFRJ, na área detransplantes de medula óssea. Existem recursos financeirose humanos para tanto. O que nos falta, então? No nossoentender, uma opção clara e concreta da reitoria e dasuperintendência no sentido de o HU ser um local privilegiadopara o ensino de graduação, especialização e pesquisa.Não só um prestador de assistência médica.Sabemos que o atendimento de saúde no Brasil é precárioe que há uma tendência de que os HUs passem a cobriressa deficiência, alterando as finalidades para que foramcriados. É urgente que se reverta essa situação, e oHU/USP pode e deve fazê-lo. Vejamos o que acontece, nomomento, quanto ao ensino, pesquisa e extensão.O HU foi idealizado como um hospital-escola emque, justamente por não atender uma grande demanda,seria possível implantar parceladamente um serviço quecontemplaria e ligaria intimamente a extensão, o ensinoe a pesquisa. Adicionalmente, o esquema de gestão propostona ocasião permitiria a integração multidisciplinardos alunos e funcionários das diversas áreas da saúde(medicina, enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia,assistência social, psicologia), de modo a integrar os conhecimento,trocar experiências, respeitar as particularidadesde cada meio de atuação. Essa filosofia a nosso vertranscendia (e transcende) a existência do curso experimentalde medicina.8


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 19968 foram para o Hospital das Clínicas,6 para o Jabaquara e apenasum veio para cá, e foi internado.Outros 6 foram atendidos e dispensados,pois não necessitavam internação.Não houve recusa do HUem atender ou internar ninguém.”Tolosa explica também que oHU normalmente não atende acidentados.“A organização de umhospital de traumas é diferente danossa”, diz ele. “Nosso alunos têmque ver doenças comuns. Só atendemostraumas ocorridos com opessoal da USP.”Dinizete Aparecida Xavier, diretorado Sindicato dos Trabalhadoresda USP (Sintusp), informaque, segundo relato feito atravésde carta ao sindicato, os funcionáriosdo HU revoltaram-se com aatitude tomada pela direção dohospital no episódio do atendimentoàs vítimas do shopping deOsasco. Segundo esse relato, aoserem informados da tragédia pelaDefesa Civil, eles se prepararam,como é de praxe nos hospitais, paraatender às vítimas. Havia setesalas do centro cirúrgico desocupadase 14 macas disponíveis. Mas otempo passava e as vítimas nãochegavam. Nenhuma das ambulânciasque as transportavam se dirigiramao HU.Na carta dirigida ao Sintusp osfuncionários dizem que, enquantoos hospitais particulares abriramleitos e mandaram helicópteros, asambulâncias do HU ficaram nasgaragens. Que a equipe de voluntáriosdo HU foi solidária por contaprópria. E que o HU internouum único paciente, levado pela famíliae depois de muita insistênciadesta, apenas para parecer solidárioàs vítimas de Osasco.No dia 19 de julho, o promotorde justiça Gilberto Martins Lopes,da Primeira Vara Criminal do fororegional de Pinheiros, em São Paulo,requisitou ao delegado da 93ªDP a instalação de inquérito policialpara apurar omissão de socorropor parte do Superintendentedo HU/USP, Erasmo Tolosa, duranteo resgate das vítimas da explosãodo Osasco Plaza Shopping.Omissão de socorro é crime previstono Código Penal, cuja pena é deaté seis meses de detenção.Com uma fratura exposta de tíbia,Josué Gonçalves Pádua, vítimada explosão do shopping de Osasco,foi levado por familiares para oHU/USP logo no começo da tardedo dia 11 de junho. Sua cunhada,Maria de Lurdes Santos, que oacompanhou durante todo o tem-Recordo-me das visitas ao HU durante a sua construção.Asexpectativas eram grandes frente às possibilidadesque se propunham: espaço, infra-estrutura física,quantidade de equipamentos e oportunidade de trabalhomultidisciplinar.O que temos atualmente? Um hospital praticamente convencional,no qual a opção foi e continua sendo pela prestaçãode serviços. Para torná-lo mais “ágil” e “harmônico” optou-sepor um corpo de funcionários independente da estruturade ensino. Assim, os alunos em nível de graduação, namaioria dos cursos afins, não passam pelo hospital. E a pesquisa?Nas áreas em que trabalhamos é muito pouca, não éinovadora e parece ser esse o panorama geral. O que aconteceao nível do ensino e da pesquisa depende praticamente dafilosofia do chefe do serviço e dos funcionários interessados.Não é uma política incentivada (embora não seja, explicitamente,impedida) pela superintendência. Sonhamos e queremosum hospital escola produzindo conhecimento, desenvolvendonovas tecnologias e procedimentos que tragam efetivodesenvolvimento e autonomia científica ao país. Isto é utopiapara o HU/USP? No nosso entender há recursos financeiros,espaço físico e profissionais interessados e dispostos a isso;basta que a reitoria e a superintendência revejam a opçãoadotada que, no momento, não nos leva a lugar algum.Os HUs não podem e não devem ser substitutos da redehospitalar. Explicitamente o HU/USP não deve e nãoprecisa sê-lo. O governo de São Paulo, se quiser, tem recursospara investir na área de saúde. Estamos sob o riscode ter um local no qual o ensino e a pesquisa sejam sufocadospela necessidade do atendimento aos pacientes,que, logicamente, não devem ser relegados. O risco, aliás,já é real no HU/USP. Novamente, se formos compará-locom outros hospitais, as condições são melhores. Mas porque são melhores, se há falta de pessoal, especialmentenas áreas médicas e paramédicas? Se existem aparelhos eequipamentos sobrecarregados por serem em número reduzido?Se existem aparelhos e equipamentos subutilizadospor não existirem técnicos para operá-lo? As condiçõessão melhores porque o corpo de funcionários, de todasas categorias, se supera.É urgente, portanto, que se repense a filosofia de ensino,de pesquisa e de atendimento à comunidade propostapara o HU. Caso contrário, ele até poderá estarbem financeiramente, porém o ensino e a pesquisa nãosairão da UTI.Professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidadede São Paulo e diretora da <strong>Adusp</strong>.9


Agosto 1996po, diz que ele foi atendido bem erapidamente no Pronto Atendimento,onde uma pequena cirurgiafoi feita em sua perna. E como seuferimento era grande e estava muitoinfectado, os médicos disseramque ele precisaria ser internado.No entanto, segundo a assistentesocial que o atendeu, ele não poderiaser internado no HU, porquenão era morador da região. Em funçãodisso, a assistente passou a fazercontato com hospitais do SUS quepudessem recebê-lo. Até a noite,não havia conseguido vaga. Começouentão uma pressão da famíliade Josué para que o HU o internasse.Sua alegação era a de que os outroshospitais estavam superlotados,por causa da tragédia, o que demandavaa solidariedade de todos.Finalmente, às 9h00 do dia seguinte,o HU internou Josué Pádua.“Ele ficou 8 dias e foi muitobem tratado por médicos e funcionários”,diz Maria de Lurdes.“Mas foi muito triste ver os médicostodos aguardando, ansiosos, achegada das vítimas, que atravésdo Resgate nunca chegaram. Foimuito triste ver que um hospitaltão bom e com tanta estrutura nãose dispôs a ajudar ninguém”.da escada. Rihl havia chegado aohospital cerca de uma hora antes e,nesse período, havia preenchidouma ficha com os dados da moça.Ela fora atendida por um médico,que fizera um diagnóstico rápido ea encaminhara para a ortopedia,onde fora submetida a radiografias.Aconselhado por funcionários, eleresolveu empurrar a maca com apaciente e as radiografias de voltapara o médico, pois “assim é maisrápido”. Pelo que observou nas salasde radiografia, nem todas emfuncionamento, Rubens Rihl concluique o Hospital Universitárioda USP carece de equipamentos eRevista <strong>Adusp</strong>de pessoal. Residente no Butantã,é a primeira vez que procura o hospitale, segundo sua opinião, oatendimento do HU parece superiorao dos demais hospitais públicos.“Como contribuinte, no entanto,não estou satisfeito, pois achoque poderia ser ainda melhor”, ésua conclusão.Duas outras pacientes, queaguardavam ser recebidas pelosmédicos, têm opinião mais favorável.Mercedez Aparecida Domingues,de 56 anos, residente no Butantã,usa o HU há 10 anos. Diabética,já fez ali a amputação de doisdedos do pé e sempre considerou oContribuinte InsatisfeitoNo momento em que a reportagemvisitava o setor de recepção etriagem do HU, o juiz de direitoRubens Rihl passava pelo corredor,empurrando pessoalmenteuma maca onde uma moça estavadeitada. Tratava-se da empregadadoméstica que trabalha em sua casae que havia sofrido uma queda10


Revista <strong>Adusp</strong>atendimento ótimo. Nesse dia,chegou ao hospital às l5h00. Preencheraficha, fora atendida pelo médico,que pediu uma drenagem nopé, e às l6h40 estava sendo chamadapara fazer a drenagem.Rosana Reis Bonoldi, que aacompanhava, também residentedo Butantã, diz que toda a sua famíliausa o hospital para consultas,exames e cirurgias e está satisfeitacom o atendimento. “Espera-se sóum pouquinho”, observa.Walter José Fernandes, assistentetécnico de direção da superintendênciado HU, admite quehá algumas vagas de recepção nãopreenchidas, por não terem aindasido liberadas pela USP. E que algunsequipamentos funcionamapenas durante o dia, pois não háfuncionários em número suficientepara monitorá-los em tempo <strong>integral</strong>.Mas não considera que aquestão seja grave e afete o funcionamentodo hospital.Opinião dos funcionáriosDiretora do Sindicato dos Trabalhadoresda USP, Dinizete AparecidaXavier não concorda com aopinião de Walter Fernandes. Dizela: “De maio de 1995 a junho deDaniel GarciaAgosto 199696, o HU demitiu cerca de 200 funcionários.Nesse período, houveampliação de leitos. Os funcionáriosreclamam que não estão dandoconta do trabalho, que têm de sedividir para atender suas unidadesmais as outras que foram abertasou ampliadas”.Segundo ela, quando um funcionáriodo HU pede demissão é logosubstituído, mas quando é demitido,a reposição demora. “Há falta defuncionários na enfermagem, na clínicamédica, na clínica cirúrgica ena UTI de clínica médica”, garante.E faz duas denúncias: o HUnão tem manutenção preventivaadequada nem fornece aos funcionáriosda manutenção equipamentosde proteção. No ano passado,por falta de manutenção, houveum incêndio na lavanderia do hospital.Neste, por falta de equipamentosde proteção, um funcionárioqueimou um braço e o rosto aotestar uma caixa de luz. Processosrelativos aos dois acidentes estãocorrendo na Secretaria das Relaçõesdo Trabalho.CearáSímbolo da crise que há mais de20 anos atinge os hospitais universitáriosde todo o país, o Walter Cantídio,no Ceará, vive há algum temposob constante ameaça de fechamentoem função de um déficit financeiroacumulado com os fornecedoresque já atingiu a casa deR$ 1,5 milhão. Vários setores deatendimento ao público foram desativadosno início deste ano e muitasoperações deixaram de ser procedidaspor falta de anestésico, lu-11


Agosto 1996vas e outros materiais básicos. Aemergência do hospital está até hojedesativada por falta de recursos.Com 239 leitos, 120 consultóriose 5 salas de cirurgia, o Hospital dasClínicas Walter Cantídio atendeu,somente em julho do ano passado,180 mil pacientes, muitos deles deoutros estados do Nordeste, procedendoa 500 internações, 1.099 cirurgias,15.634 consultas médicas,29 mil atendimentos de patologiaclínica, 651 sessões de hemodiálise,163de quimioterapia e 1.547 defisioterapia, além de 1.940 examesdos mais variados tipos.Principal formador de recursoshumanos em medicina, enfermagem,odontologia e farmácia, emnível técnico, de graduação e depós-graduação, e com atendimentoem todas as especialidades nasáreas clínica e cirúrgica, o hospitalenfrenta uma crise cíclica, segundoa médica Terezinha Braga, do Sindicatodos Médicos do Ceará.“É importante ressaltar que acrise do Walter Cantídio é uma criseantiga, que vem se arrastando há algunsanos, com períodos de extravasamentoem que toda a comunidadeuniversitária se manifesta unitariamenteem defesa do hospital exatamentepela função social que elecumpre, não só do ponto de vista doaprendizado mas principalmente doatendimento à população”, afirma.Saúde financeiraRevista <strong>Adusp</strong>“A coisa mais grave que já aconteceué que, como o Ceará não tinharede estatal própria, recorriasea serviços da rede privada. Como baixo pagamento do SUS, a redeprivada, embora não tenha se descredenciado,evita atender os pacientespobres. E eles vão para oWalter Cantídio, um dos poucosque ainda conseguem funcionar,embora precariamente”, diz o professorLuiz Porto, do Departamentode Cirurgias do hospital.Por causa disso, afirma, o WalterCantídio acaba tendo de prestaratendimento aos casos maisgraves, mais onerosos, mais difíceise que precisam de mais assistência,o que acaba agravando ainda maisa saúde financeira da instituição.“A hematologia consome quase30% do custo total do hospital,mas ali é o único local no Cearáem que os pacientes hematológicospodem ser atendidos. Então,em hipótese alguma pode-se pensarem desativá-lo. Pelo contrário,mereceria mais investimentos”,observa Luiz Porto.O próprio SUS, segundo o professor,contribui para asfixiar financeiramenteo Walter Cantídiocom algumas distorções. “Há procedimentosimplantados lá que poderiamcustar menos em termos detratamento, mas que acabam saindobem mais caros. É o caso, porexemplo, da colestectomia laparoscópica(retirada de vesícula por ummétodo mais moderno), em que opaciente pode ir para casa no mes-RECURSOS DO SUS ALIMENTAM AS FRAUDES NOS HOSPITAIS PRIVADOS(Washington Sidney-Agência Andes) Além de gastarpouco em saúde pública –duas vezes menos que Uruguai eArgentina e cinco vezes menos que a Costa Rica–, o governodo presidente Fernando Henrique Cardoso aplicamuito mal os recursos destinados ao setor.Somente no ano passado os hospitais particulares consumiramentre 10% e 30% dos recursos do Sistema Únicode Saúde (SUS) com as mais diferentes modalidades defraudes, como cobrança de consultas não realizadas, serviçossuperfaturados e exames complementares em excesso.A estimativa consta de um relatório de 156 páginas produzido,sob encomenda do Banco Mundial, pelos economistasCláudio André Czapski e André Cezar Medici, este últimona condição de consultor do banco para a área de saúde.Eles chegaram a essa conclusão a partir de um trabalho demapeamento das principais fraudes praticadas hoje no SistemaÚnico de Saúde (SUS).No documento, intitulado Evolução e Perspectivas dosGastos Públicos com Saúde no Brasil, o diagnóstico doseconomistas é preocupante: as fraudes acontecem e se multiplicamporque “falta aos responsáveis pela área de saúdeforça política para estabelecer as prioridades orçamentárias,que não são definidas em função dos interesses sociais,mas dos interesses de grupos particulares organizados”.Eles afirmam, no documento, que uma aliança entreadministradores de hospitais oportunistas e uma máquinaadministrativa imobilista tem impedido que o governo federaladote procedimentos que poderiam reduzir significativamenteas fraudes no setor. Isso significa que as fraudessão o resultado da combinação de dois problemas: afalta de um sistema adequado de fiscalização e controle ea defasagem dos valores pagos aos prestadores do SUS.Até hoje, segundo técnicos do Instituto de PesquisasEconômicas Aplicadas (Ipea), órgão ligado ao Ministério12


Revista <strong>Adusp</strong>mo dia. Mas o SUS só paga se opaciente passar no mínimo cincodias no hospital”, afirma.Segundo ele, o diretor da unidadetem dito aos médicos e funcionáriosque as despesas estãosendo equilibradas, mas a Johnson& Johnson se recusa a fornecernovos materiais mesmo no casode pagamento à vista. Só retomaráo fornecimento quando ohospital quitar a dívida que mantémcom a empresa.“O que acontece, em funçãodesse atraso de pagamento, é queo hospital muitas vezes se vê obrigadoa comprar materiais a preçosextorsivos. Isso porque as empresasque estão com dinheiro por recebernão fornecem, e a solução écomprar no mercado pelo preçoque for oferecido”, acusa.No fim do ano passado, estudantese médicos residentes doWalter Cantídio fizeram uma grevede protesto contra o descaso dogoverno com o hospital. Tiveramaudiência com o ministro da Saúde,Adib Jatene, durante visita queeste fez ao Ceará. Na ocasião, Jateneteria dito que o problema nãoera de seu ministério.Ao ouvir dos grevistas que o hospitalcobria um déficit de atendimentono setor de saúde pública doCeará e de outros estados do Nordeste,o ministro se limitou a dizerque isso era uma coisa contingenciale que, com a regulamentação doICMS, a rede privada assumiria oatendimento dos pacientes maisgraves, desafogando o hospital.BrasíliaUm paciente chegou infartado hátrês meses na emergência do HospitalUniversitário de Brasília (HUB)e não conseguiu internamento porfalta de leito. Deu sorte de esbarrarcom a funcionária Lúcia de FátimaFarias, que, na ausência de uma ambulância,transferiu-o no própriocarro para o Hospital de Base.Agosto 1996A sorte do paciente, na verdade,foi bem maior. Se tivesse conseguidoo internamento no HUBpoderia ter morrido de calor e faltade ar, pois as salas de reanimaçãoe cirurgia são fechadas, escurase sem ventilação e os respiradoresmecânicos estão quebrados.Se desse o azar de encontraruma das duas ambulâncias disponíveispara a transferência naquelemomento –situação pouco prováveldiante do aumento crescentede demanda da população da regiãodo entorno do Distrito Federal–,só respiraria o vento que entrassepelas janelas do carro. Osveículos não estão equipados comaparelhos de oxigênio.Aliás, por causa da falta de umrespirador mecânico na emergênciado HUB (existem dois quebrados),recentemente um médico tevede fazer respiração boca-a-bocanum paciente que chegou passandomal ao hospital.Asfixiados, na verdade, estãodo Planejamento, não foi feito nenhum levantamento capazde registrar números confiáveis sobre o volume globaldas fraudes.Mas se for considerada a estimativa dos economistas, odesperdício na saúde (investimento sem retorno) no anopassado ficaria em torno de R$ 2 a R$ 6 bilhões, dinheirosuficiente para reequipar e tirar da crise financeira os hospitaisuniversitários federais. Ao todo, foram investidos nasaúde, no ano passado, R$ 20 bilhões.Para se ter uma idéia das fraudes que se avolumam enquantoo ministro da Saúde, Adib Jatene, empreende umavia crucis no Congresso para aprovar a Contribuição Provisóriasobre Movimentação Financeira (CPMF), só no Riode Janeiro a Polícia Federal abriu, em abril deste ano, 267inquéritos contra hospitais conveniados, dando início àmaior investigação já realizada na gestão do SUS no estado.Os inquéritos, abertos com base em auditoria feita pelaProcuradoria Geral da República em 290 hospitais, estãosob a responsabilidade do delegado Matheus Casado Martins.Os responsáveis pelas fraudes causaram, só no anopassado, um desvio de R$ 90 milhões nas verbas destinadaspelo Ministério da Saúde ao estado.As fraudes na cobrança de Autorizações de InternaçãoHospitalar envolvem praticamente todos os hospitais degrande porte do Rio, entre eles o Sousa Aguiar, no Centro,e o Miguel Couto, na Gávea. A Polícia Federal haviaaberto um único inquérito para apurar todas as fraudes,mas acabou por desmembrá-lo para evitar que um provávelenvolvimento de políticos leve todo o processo para fórunsespeciais de julgamento.No Maranhão, investigação promovida por 13 auditorestambém constatou que fraudes como superfaturamento, excessode internações, consultas e manipulações de prontuáriosse tornaram rotina em quase todos os hospitais particularesconveniados ao SUS. A auditoria foi entregue ao ministroAdib Jatene e ao procurador-geral da República, GeraldoBrindeiro. Se for instaurado, o processo administrativopode resultar no descredenciamento de seis hospitais.13


Agosto 1996todos: o hospital por falta de recursos,os pacientes pela precarizaçãodo atendimento, os estudantespela queda da qualidade do ensinoprático, a Universidade de Brasília,que administra o hospital e nãotem verba nem para pagar serviçosbásicos como limpeza, e os médicos,enfermeiros e funcionáriostécnico-administrativos pela sádicacombinação de excesso de trabalhoe baixos salários.Do lado de fora do hospital oquadro não é diferente. Por causada insuficiência de médicos especialistas,quase sempre se podetestemunhar, no início da manhã,pacientes dormindo na fila à esperade atendimento. Ou então,nos casos mais graves, deitadosem macas aguardando a desocupaçãode leitos.Em novembro do ano passadohouve um dia em que, por causada greve dos médicos em Brasília,cerca de 3 mil pessoas fizeram filana porta do hospital para a marcaçãode consultas e atendimento deemergência. Nesse mesmo dia,por não suportar mais a pressão,uma médica pediu as contas. “-Não vim aqui para ver as pessoasmorrerem por falta de atendimento”,teria desabafado, segundo osfuncionários.Pronto-atendimento14Revista <strong>Adusp</strong>O caso da médica que se demitiunão é isolado. Com salários baixíssimos–em torno de R$ 600,00–e enfrentando uma jornada de trabalhode 18 horas semanais, queacaba sempre extrapolada por causado acúmulo de pacientes, os médicosda emergência estão deixandoo hospital. Os funcionários calculamque 10% deles já saíram delá desde o início do ano.“Isto aqui é uma verdadeira cobertade pobre. O ambulatórionão dá vazão à demanda, o que levaas pessoas a lotarem a emergência.O resultado disso é que aemergência, sem condições defuncionar como tal, está virandouma espécie de pronto-atendimento”,afirma a funcionária Lúciade Fátima Farias, o anjo-daguardado paciente infartadotransferido para o HBB.Eleita recentemente para a direçãodo Sindicato dos Trabalhadoresem Saúde e Previdência Socialdo DF (Sindprev), Fátima afirmaque a emergência do hospitalnão dispõe no momento de neurologistae ortopedista e há poucoscardiologistas, o que acaba causandofalhas na escala e comprometendoo atendimento.Planejado e construído paraproceder a 200 internações e 2 milconsultas por mês, o HUB setransformou, ao longo dos últimosanos, num depósito de pacientes.A demanda cresceu assustadoramenteem função da migração provocadapela política de assentamentosdo ex-governador JoaquimRoriz, e o hospital mantém a mesmaestrutura da década de 60,quando foi fundado. Em marçodeste ano, registrou 1.050 internaçõese 3 mil consultas.“A verdade é que o hospitalveio assumindo novas atribuiçõescom o mesmo tamanho. Cresceramas internações e não houveampliação de sua capacidade operacional.Os recursos humanos e afalta de definição de investimentossão, hoje, os maiores problemas.Para se ter uma idéia da gravidadeda situação, em 1990 havia1.482 servidores trabalhando aqui,quadro reduzido hoje para 745”,afirma o diretor do HUB, EliasTavares de Araújo.Lotados no Instituto Nacionalde Seguridade Social (INSS), essesservidores, por sinal, deverão representar,em futuro próximo, maisum complicador no difícil históricodo hospital. A previsão do diretorElias Tavares é de que a maioriadeles venha a entrar na Justiça reivindicandodireitos trabalhistas.O mais dramático é que, doponto de vista desse pessoal, oHUB ficou na seguinte situação:ruim com eles, pior sem eles, pois oMinistério da Administração e daReforma do Estado (MARE), emboraconhecendo a grande reduçãodo quadro de funcionários, não autorizacontratações. “Nem adiantafazer concurso”, diz o diretor.Tendo como única fonte de arrecadaçãoas Autorizações de InternaçõesHospitalares (AIHs) pagaspelo SUS, que correspondemem média a R$ 640 mil por mês, ohospital só consegue acumular,além de demanda de pacientes, déficitsfinanceiros.“No ano passado tivemos umadefasagem de R$ 1,1 milhão entreo faturado e o repassado pelo Ministérioda Saúde. Isso aconteceuporque o atendimento ultrapassouo teto financeiro. Mas não podemosdeixar de atender as pessoaspor causa da falta de dinheiro”,desabafa o diretor.


Revista <strong>Adusp</strong>Pacientes na enfermaria do Hospital Universitário da UnB.Segundo ele, o SUS está repassandoao hospital, atualmente,R$ 2,04 por consulta, R$ 3,47por ecografia de gravidez eR$ 3,40 por internação. “Comose pode manter internada umapessoa com R$ 3,40 dando seisalimentações ao dia, medicamentos,material médico-hospitalar eainda pagar honorários médicos?”,questiona.Ronaldo de Oliveira/Correio BrazilienseConstruído pelo antigo Institutode Aposentadoria e Pensão dosServidores do Estado (Ipase), noinício da década de 60, o HospitalUniversitário de Brasília (HUB)tem uma história cíclica de acumulaçãode demanda por atendimentoe de redução do quadro deservidores. Não é à toa, portanto,que se tornou um velho depósitode pacientes.Agosto 1996O primeiro incremento de demandaaconteceu pouco depoisque o hospital foi inaugurado,quando se transformou em Hospitaldos Servidores da União (-HSU) e, através de acordo com oDASP, se viu obrigado a prestaratendimento a todos os funcionáriospúblicos da Administração Diretae Indireta de Brasília.Extinto o Ipase, em 1978, ohospital começou a ser gerido peloInamps, que passou a utilizá-lono atendimento a toda a clientelade segurados da Previdência Social.Foi o segundo incremento dedemanda, sem que o HUB recebessequalquer investimento paraampliação da estrutura física e dematerial humano.Em 1980, o Ministério da PrevidênciaSocial firmou contrato decomodato com a Universidade deBrasília (UnB). Cursos como Nutrição,Enfermagem, Educação Físicae até Arquitetura e Agronomiapassaram a ser apoiados pelohospital. Chegava-se assim ao terceiroaumento de demanda, poisalém do atendimento à saúde dossegurados da Previdência o hospitalainda apoiava as ações de ensinoe pesquisa da UnB.O fim do regime de comodatoacabou em 1990. Através de umcontrato de cessão de uso, a UnBpassou finalmente a gerir o hospital.Só que sem dinheiro para tanto.Nessa época, o HUB tinha1.482 servidores dos quadros do ex-Inamps, que mantinha ainda contratosde terceirização com 490prestadores de serviço.Segundo o atual diretor doHUB, como a universidade não ti-15


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>nha recursos, rescindiu todosesses contratos e passoua contratar pessoas físicassem concurso público, o queacabou resultando na quedada qualidade do serviço. Porconta da saída em massa deservidores do antigo Inampsdo hospital, o Ministério daAdministração e da Reformado Estado (MARE) tevede alocar para lá, no anopassado, 689 funcionáriosde outros órgãos.O quarto e último aumentode demanda aconteceua partir de 1988, com oatendimento de toda aclientela do SUS associadoà explosão demográfica doDistrito Federal.“É um quadro difícil. O governotem feito promessas de investirdinheiro no hospital e ampliar oquadro de funcionários, mas de1994 para cá nenhuma se concretizou.O resultado disso é a constanteevasão de quadros, o sucateamentodos equipamentos e o crescenteendividamento”, afirma o diretordo Hospital da Universidadede Brasília.Ele admitiu que são freqüentesa formação de filas de atendimentona porta do hospital e a existênciade pessoas deitadas em maca esperandoa desocupação de leitos. Ajustificativa é a mesma de médicose funcionários: falta de investimentos.“Hoje temos 280 leitos quandopoderíamos ter 400. Temos um andarcompletamente vazio porque osleitos não foram ativados. Há umprojeto para a reforma desse andar,mas infelizmente faltam recursos.”16Centenas de pessoas na fila do HU/UnB para marcar consultas.SoluçõesSalve-se quem puder. Esse é odesafio que vêm enfrentando nosúltimos tempos os hospitais universitários,último baluarte do SistemaÚnico de Saúde (SUS). Parasobreviver aos déficit financeirosacumulados ao longo dos anos e àdependência de financiamento estatal,eles estão recorrendo a tudo,desde os lobbies junto às bancadasfederais de seus estados paraa inclusão de emendas ao orçamentoda União até a formaçãode convênios com prefeituras eempresas privadas.Comprimidos pelas pressõesacadêmicas por uma prática de ensinode qualidade, pelas pressõessociais (excesso de demanda) e pelafalta de interlocutores, os hospitaisuniversitários começam a colocarem prática duas novas estratégiasde sobrevivência: a busca deRonaldo de Oliveira/Correio Braziliensesoluções imediatas para os problemasestruturais no nível regional ea formação de movimentos deconscientização para a manutençãoda universidade pública e seusfinanciamentos.A nova estratégia foi definidanos dias 16 e 17 de maio desteano, durante reunião dos diretoresde hospitais universitários emBrasília. O evento contou com aparticipação de dirigentes dos diversossegmentos da área acadêmica,dos ministérios da Saúde eda Educação e do Conselho Nacionalde Saúde.“O hospital universitário temuma grande missão social e precisaser protegido porque senão aprópria sociedade o mata por excessode demanda. E com isso matatambém a qualidade da assistênciae a qualidade da formaçãode recursos humanos”, alerta omédico Carlos César Silva de Al-


Revista <strong>Adusp</strong>buquerque, presidente da AssociaçãoBrasileira de HospitaisUniversitários e de Ensino.Segundo ele, duas coisas ficaramclaras no encontro: falta aosreitores uma preocupação especialcom os HUs, um dos setores quemelhor cumprem o papel da universidademoderna de servir à sociedade,e uma definição mais clarada relação dos três níveis de governocom o SUS.“Não podemos mais ficar só nadependência de uma solução federal.Temos de procurar o diálogolocal, pelo menos como ação imediata,até que se consiga definirmelhor quem é responsável peloquê dentro de um hospital nestasua inter-relação com Ministérioda Educação, Ministério da Saúde,estados, municípios e sociedade”,afirma Albuquerque.Ele considera que a última reuniãoda associação representou umgrande avanço do ponto de vistada mudança de mentalidade dosdiretores de hospitais. Antes, afirma,eles só se reuniam para sequeixar da falta de financiamento,do sucateamento dos equipamentos,dos baixos salários e do excessode demanda. No último encontro,foram discutir soluções eidéias para reverter o quadro.“Outra coisa que acho importanteé que também se discutiu osistema nacional de saúde. Já nãoé mais de um lado o SUS e de outroas empresas, os municípios eos estados. E a tendência dos diretoresde hospitais é que essadiscussão não se restrinja mais aoSUS, não se limite mais ao sistemaestatal, mas que se estenda aoEM BH, CONVÊNIO COM A PREFEITURA(Washington Sidney-Agência Andes)Há oito anos sem receber qualquertipo de investimento e com orepasse de verba do SUS atrasadodesde dezembro, o Hospital das Clínicasda Universidade Federal deMinas Gerais encontrou na prefeiturapetista de Patrus Ananias o aliadocerto para superar as dificuldadesacumuladas há anos e ampliar suacapacidade de atendimento.Convênio assinado este ano com aprefeitura garantirá ao hospital umaverba de R$ 3 milhões, dinheiro queserá aplicado na instalação de 150 leitos,ampliação do CTI de sete para 25leitos e construção de cinco salas decirurgia, informou o diretor JuarezOliveira Castro.“O Hospital das Clínicas, a exemplodos demais hospitais universitários,passou por uma crise financeiramuito grande e esteve em vias de fecharno ano passado. Não tinha dinheirosequer para comprar coisas básicas,como esparadrapo e medicamentos.Diante dessa crise, a prefeiturapropôs esse convênio para a aberturade um serviço de emergência,que até então o hospital não tinha”,afirma Fabiano Gonçalves Nery, presidenteda Associação Mineira dosMédicos Residentes (Amimer).Na avaliação dele, o convênio éAgosto 1996uma tábua de salvação para o Hospitaldas Clínicas, diante da crise generalizadados hospitais universitários.“Uns estão fechando, outrostendo de fazer campanhas de doações.Essa foi uma boa alternativa,pois, além de sair da crise, o hospitalterá sua capacidade de atendimentoampliada”, comemora.SergipeCom um déficit mensal em tornode R$ 15 mil –gasta R$ 100 mil comatendimento e recebe cerca de R$ 75mil do SUS– o Hospital Universitáriode Sergipe também conseguiu umbom aliado para superar o quadro dedificuldades: a bancada federal sergipanana Câmara.Graças a uma emenda apresentadaao orçamento da União, comapoio do deputado Marcelo Déda(PT-SE), o hospital receberá R$ 1milhão este ano dinheiro que, segundoo diretor Osman Calixto Silva, deveráser utilizado na construção deum centro de formações que incluibiblioteca e auditório, de um laboratóriode técnica operatória, e na Unidadede Terapia Intensiva. A emendaprevia R$ 3,2 milhões, mas foi reduzidaem função dos cortes feitos pelabancada governista.sistema nacional de saúde, o quenão quer dizer privatização”, afirmaAlbuquerque.Ele admite que alguns hospitaisuniversitários estão recorrendo aosgrandes grupos de medicina privadapara manter alguns setores emfuncionamento e alerta que a situaçãodessas unidades tende a seagravar se medidas concretas nãoforem tomadas a curto prazo paratirá-los da crise financeira.“Sem a CPMF, sem uma reformulaçãoglobal da política de saúde,sem uma definição mais clarade quem é quem no sistema e comquem se negocia, a tendência doshospitais universitários é muitocomplicada. Temos de atender tudo,desde a dor de barriga até aAids. Os outros, bem ou mal, estãotentando se ajeitar, mas nósnão podemos fechar porque somospúblicos. Nem recusar pacientes.Talvez essas soluções locaispossam contemporizar umpouco enquanto se busca a luz nofim do túnel”, diz. RA17


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>UNIVERSIDADES PÚBLICAS E PRIVADASNO BRASIL E ESTADOS UNIDOSMaria Ligia Coelho PradoAquestão do ensino superior pago ougratuito, ao lado do papel do Estadona educação, tem suscitado debatescandentes, relacionados com os problemasde modernização, de racionalizaçãodos recursos e de eficiênciado funcionamento das universidades, em especialdas universidades públicas. Muitas das soluções paraesses impasses apontam o ensino pago e o crescenteafastamento do Estado de suas responsabilidades sobreo ensino superior como a única salvação. Nesteponto das discussões, comumente, os Estados Uni-18


Revista <strong>Adusp</strong>dos são invocados como exemplo a ser seguido. Enfatiza-sea excelência de suas universidades, mostrandosutilmente que tal nível deve-se, basicamente,a seu sistema de escolas privadas. Em torno dessestemas criaram-se diversas falácias. Este artigo ésobre algumas delas.Para começar, é preciso entender alguns aspectosdo funcionamento do ensino de terceiro grau nos EstadosUnidos. De maneira geral, está diretamente relacionadoàs especificidades da sociedade americana,responde às necessidades do mercado de trabalho,oferecendo escolas com diversos graus de qualidade eexigência, desde os community colleges (escolas dedois anos de duração, em áreas pobres) até as universidadesmais conceituadas. O controle estatal se apresentaradicalmente descentralizado e a competitividadeentre as escolas é intensa. Todos os alunos pagam,cursem estabelecimentos públicos ou particulares.Entretanto, as instituições privadas não são entendidascomo empresas que visam reproduzir seu capital,e correr em busca de lucros, como qualquer negócio.Analisemos, por exemplo, o orçamento da Universidadede Stanford, uma das maiores, mais importantese mais caras universidades privadas norteamericanas.O orçamento consolidado para o anoescolar de 1991/1992 foi de US$ 1 bilhão em númerosredondos. Os custos diretos e indiretos com pesquisaestavam estimados em US$ 349 milhões, maisUS$ 138 milhões para sustentar o acelerador linear.Os fundos do governo federal pagavam mais de 90%desses custos, significando 43% da receita total. Asanuidades dos alunos somavam US$ 175 milhões, istoé, aproximadamente 17% do total. Para cobrir osdemais gastos, as fontes eram doações de particulares,rendas do patrimônio, propriedades e patentes.A primeira conclusão a ser extraída da análisedesse orçamento é a importância central dos recursosfederais para a pesquisa. No Brasil, existe umafalsa idéia de que, nos Estados Unidos, a pesquisa éfinanciada pelas empresas, que mantêm uma ligaçãoumbilical com as universidades. Sem dúvida, há empresasque financiam pesquisas em determinadoscampos específicos de seu interesse, mas a pesquisabásica, em ciências e humanidades, se desenvolvenas universidades, com o apoio insubstituível do Estado.No paraíso do neoliberalismo, o Estado continua“intervindo”, proporcionando condições financeiraspara a sustentação da pesquisa acadêmica.Sem esse apoio não há pesquisa e não há universidadeséria em qualquer país do mundo.O outro ponto interessante diz respeito ao pagamentode anuidades; como vimos, elas não atingemnem 20% (esta é a regra geral para qualquer universidadepaga), da receita arrecadada, portanto, uma parteminguada do total. Com o agravante de que asanuidades de uma grande universidade –Yale, Stanford,Harvard, Columbia– são altíssimas, mesmo paraos padrões norte-americanos, pois estão na casa dosUS$ 20 mil. Numa universidade estadual pública, oaluno paga entre US$ 6 e 8, isto sem contar os gastoscom alojamento, alimentação e livros. Daí os programasde empregos nas universidades, e as bolsas e empréstimos,garantidos pelo governo federal, tanto aosalunos das escolas públicas, quanto das particulares.Para se avaliar a extensão do programa americanode bolsas, vamos a alguns dados. Em 1993, 5 milhõesde estudantes tinham empréstimos do governofederal, o que significava quase 40% do total de alunos.Os números completos a respeito dos empréstimosrealizados são difíceis de pesquisar, mas podeseavaliar sua importância tomando um dado recentesobre as dificuldades que os formandos vêm encontrandopara pagar suas dívidas. No ano fiscal norteamericanode 1992, ex-alunos que contrataram empréstimosdurante seus anos de estudos deixaram depagar quase US$ 3 bilhões aos cofres públicos. (NewYork Times, 7 de fevereiro de 1993.)BrasilAgosto 1996Passando ao Brasil, o ensino superior possui característicasbem diversas das norte-americanas, quepodem ser assim resumidas: controle estatal centralizado,padrões homogêneos na estruturação de cursose reformas do ensino pensadas de maneira uniformepara todo o território nacional. A competitividadeentre as escolas superiores brasileiras é bastanterestrita, pois todo o sistema está organizado demaneira a não alimentá-la.Outra radical diferença diz respeito às escolas de19


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>ensino privado. Com exceção dos estabelecimentosconfessionais, como as PUCs, elas se organizam comoempresas, com fins lucrativos imediatos. Nos EstadosUnidos, não se negam outros interesses em jogo,como prestígio, status ou influência política. Masnunca prevalece a visão estreita que, no Brasil, pretendetransformar um “dono” de universidade numempresário de sucesso.As críticas constantes às universidades públicasbrasileiras insistem na necessidade do afastamentoparcial ou completo do Estado de suas funções tradicionais.Porém, nos Estados Unidos, como vimos,o Estado se constitui no suporte mais sólido de sustentaçãoda pesquisa e da qualidade de ensino.Quanto à implantação do ensino pago como o “-deus ex machina” da educação superior brasileira,vale relembrar que a porcentagem das anuidades noorçamento global de uma universidade norte-americanaé bastante pequena e que existe um enormeaparato de ajuda aos estudantes mais pobres atravésde empréstimos e bolsas do governo federal. NoBrasil, mesmo aqueles que advogam o ensino pagonas universidades públicas, admitem ser fundamentala criação de um sistema de bolsas, o que implicaria,obviamente, a organização de uma burocraciapara atender seu funcionamento. Para montá-lo, seriamnecessários investimentos públicos significativos,o que diminuiria bastante –provavelmente em10%– a receita advinda do pagamento das mensalidadesdos alunos. Em suma, toda a pretendida salvaçãoatravés do ensino pago estaria reduzida a unsmíseros 7% do total do orçamento.No entanto, é possível afirmar que, mesmo nãoresolvendo os problemas, esta pequena parcela ajudariaa manter o ensino público de terceiro grau. Pararesponder a esse argumento, é necessário pensara universidade dentro do contexto mais amplo da sociedadee da cultura brasileiras. O Brasil é um paíspobre e sua população vem sofrendo, nas últimas décadas,um rebaixamento ainda mais forte de seu poderaquisitivo. Em segundo lugar, o número de alunosem estabelecimentos pagos é já superior –60%contra 40%– ao daqueles que não pagam. Estou certade que o ensino pago transformará a universidadebrasileira, que, no presente, já se destina a uma minoriada população, em uma instituição ainda maisfechada e menos democrática. No Brasil, 11,3% dapopulação entre 20 e 24 anos está matriculada emescolas de terceiro grau, enquanto na Argentina estaporcentagem sobe para 36,4%, no Uruguai para35,8%, e na Venezuela para 26,4%, para tomarmosexemplos latino-americanos, segundo dados levantadospor Simon Schwartzman.Os alunos da USP são o exemplo sempre invocadocomo a “prova” mais evidente de que o ensinodeve ser pago nas universidades públicas, pois todosos estudantes teriam condições materiais para tanto.Em primeiro lugar, na USP, há alunos de todas asclasses sociais, inclusive um número elevado de estudantescom baixíssimo poder aquisitivo. Basta umavisita aos muitos cursos da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas para que se comprovetal afirmativa. Além disso, não se pode reduzir o debateaos alunos de uma única universidade brasileira.A USP não representa o Estado de São Paulo e,muito menos, o Brasil.Para concluir, ao analisar os problemas do ensinosuperior brasileiro, é fundamental levar-se emconta a história de suas instituições e a dinâmica dasociedade da qual fazem parte. Estabelecer comparaçõesexige muitos cuidados, entre eles o de nãorestringir tal exame a escolhas arbitrárias de um queoutro elemento que compõe sistemas complexos,para aplicá-lo ao Brasil. O ensino pago, nos EstadosUnidos, se enquadra dentro de um sistema muitodiferente do brasileiro, e, entre outras especificidades,conta com mecanismos que garantem minimamenteo acesso –mantido pelos recursos do Estado–de parte significativa da população à educação superior.No Brasil, a adoção do ensino pago nas universidadespúblicas ampliará as dificuldades que osjovens brasileiros encontram, já no presente, paracursar escolas de terceiro grau. A retirada do Estado,ainda que parcial, do campo do ensino superior,conduzirá, com toda a certeza, a um rebaixamentogeral da qualidade de ensino, à destruição da pesquisae à ruína de um patrimônio público tão sofridamenteconstruído.Maria Ligia Coelho Prado é professora do Departamentode História da Universidade de São Paulo.20


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996EDUCAÇÃO EM TEMPO DE REFORMAF. C. de Sá e BenevidesTalvez nunca antes tenhamsido publicadostantos artigostratando da educaçãocomo nos últimosmeses, abordandoos mais diversos temas. Todavia,neles não temos visto preocupaçõescom categorias estruturais. Apreferência se debruça sobre o conjuntural,que, sendo de importânciasem dúvida, não oferece perspectivasde soluções orgânicas. E isso sedeve à falta de visão estratégica doensino para um projeto nacional dedesenvolvimento. Por tal razão, ficaseno domínio do óbvio: sem educaçãonão temos desenvolvimento.Estamos, passados sessenta anos,praticamente na mesma situação,ou talvez pior, que aquela expostapor Anísio Teixeira, em Educaçãopara a Democracia: “A escola queveio para solucionar problemas tornou-se,ela própria, um problema”.Isso nos leva a admitir, inclusive noexame das matérias publicadas, quehá um certo pudor de se mergulharno fundamental: a análise críticados comportamentos individuais einstitucionalizados, que nos forçariaa rastrear tais comportamentos atéos recônditos do inconsciente coletivoe aí apreender os arquétipos culturais,que resistem à ligação entreo pensar (propósitos) e o agir (realizar),caracterizando um processo defuga ao reconhecimento de responsabilidades.Fuga que leva a racio-21


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>nalizações dissimuladas na tendênciade adoção de modelos forâneos,os quais levam à sensação de participarmosde um mundo visualizadocomo sendo superior.Tais comportamentos, que passamdo indivíduo para as instituições,têm como resultante o malaproveitamento e desperdício derecursos materiais já escassos e acorrosão dos recursos humanosdisponíveis, lesando a eficácia dosesforços desprendidos. Daí, o paradoxo:pensamos numa educaçãoavançando na direção do desenvolvimentocom a construção dacidadania, mas, prisioneiros dosarquétipos culturais dedependência e parasitismocoloniais, nos debatemosem soluções peloconvencional, que obstaculizamaquele avanço.Paradoxo que desviada percepção da causa,que não está na escolaem si, como estruturaorganizacional materializada,e sim na cultura, na mentalidadeconservantista, próprias deuma sociedade estamental comsuas prebendas oligárquicas.Portanto, qualquer proposiçãoque ameace esse status quo e possasolucionar o paradoxo é ostensivaou dissimuladamente rejeitada.Neste último caso, em meio a umdiscurso erudito, a começar pelanegativa em admitir que a administração(pública ou privada) é umacategoria cultural, no que esta temde hábitos, costumes e visão societária,antes de ser uma categoriatécnica, que é parte da cultura.Nisso se inclui o convencionalismo22federalista, para determinar que istoé competência da União, issodos estados e aquilo dos municípios,sem o que não prospera o caciquismoe o compadrio, fundamentosdas conciliações de bastidorese das barganhas do poder,que nos amarram aos citados parasitismoe dependência coloniais,que nos afastam do essencial: umaeducação sistêmica, capaz de darorganicidade à ação, garantindolhea continuidade de execução.Nesse cenário, sem espaço paraa educação como categoria estratégica,do ponto de vista geopolítico,têm-se projetado, por isso mesmo,Pensamos numa educação avançandona direção do desenvolvimento com aconstrução da cidadania, mas,prisioneiros dos arquétipos culturais dedependência e parasitismo coloniais.equívocos e inadequações de mensagensde soluções, como as de naturezaregionais e até municipalizantes,que alargam a brecha dadesintegração nacional e ampliamos espaços para as forças do conservantismoretrógrado, que convêmaos poderes externos, porquefacilitados ficam os processos condicionadoresde nosso desenvolvimentoà feição desses poderes. Issoporque se deixa sem conclusão apolítica da unidade nacional, iniciadano Império, e se cavam oscanais da alienação pelos meios decomunicação de massa, instrumentosdos referidos poderes. Alienaçãoestimulada, por outro lado, pelaradicalização do individualismomais grosseiro da ética pragmática.Coincidindo com a temática daregionalização e da municipalização(há montada verdadeira indústriade criação de municípios), sugere-se“uma educação sem tutela”.Um modelo ambíguo além deirracional, que revela desconhecimentodo que seja administraçãode tutela, necessária à formulaçãodescentralizadora, para desempenharpapel de intermediação entrea administração superior e a administraçãode linha ou executiva, afim de liberar aquelas funções deprogramação, planejamento,normatização eanálise de resultadospara correções de desvios,e a segunda inteiramentevoltada aoatendimento direto eimediato das clientelasexternas em relação aosobjetivos fixados. Portanto,a administraçãode tutela ou intermediária se dedicaà missão de apoio às atividadesde linha em âmbito regional, demodo a manter integrada e interatuantea clientela interna da instituição.Logo, o equívoco do comentaristaresulta da colocação dosistema administrativo em termosideológicos de poder político doEstado em termos partidários.Um outro especialista escreveusobre a participação dos alunosem eleições para cargo de reitorcomo sendo expressão mais altade democracia e cidadania. Assimsendo, deveria ter incluído todo opessoal administrativo. A propos-


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Uma coisa é a escola, principalmente a de nível superior e técnica industrialde grau médio, ser uma unidade de produção material e de serviços,e outra coisa é fazê-la entrar no jogo concorrencial disputando mercado,ou pondo-se a serviço de empresas privadas financiadoras de projetos.ta pode ser simpática, mas deixade considerar a qualidade comovariável independente da funçãode reitor, dado que deve ele serum administrador, que difere dotécnico, a começar pela capacidadede assumir riscos, não exigívelneste. De outra parte, o administradordeve ter visão generalista,produto da cultura, que é mais doque conhecimento ou erudição.Liautey dizia que o administradorera o técnico de idéias gerais, oque sugere sabedoria; isto é, intuiçãoe capacidade de discernimentopara ligar o particular ao universale reciprocamente. Os pensadoresorientais, entre eles LaoTseu, faziam bem a diferença entreconhecer e saber.Outro articulista levantou aquestão da competitividade comometa a ser perseguida pela universidade,padrão de Primeiro Mundo,mas deixou de lado o fato de que osresultados até agora não indicamque a crise da cultura lá foi superada.Ao contrário, se aprofundou. Istodemonstra a inadequação de setrasladar para o ensino conceitos demercado, sobretudo na economiade computadores, como classificouo professor Doyle, de Harvard, referindo-seao jogo desenfreado docapital volátil, perfilando uma economiasem lugar para o homem navoragem do lucro e da vantagem.Uma coisa é a escola, principalmentea de nível superior e técnicaindustrial de grau médio, ser umaunidade de produção material e deserviços, e outra coisa é fazê-la entrarno jogo concorrencial disputandomercado, ou pondo-se a serviçode empresas privadas financiadorasde projetos. A esse respeitoo sociólogo Wright Mill, emImaginação sociológica, referindoseàs aproximações das empresasprivadas com as universidades norte-americanas,para execução deprojetos específicos de interesseempresarial, deixou claro que issoresultava em ingerências suspeitas,próximas do suborno.Foi dito em outro artigo que, levando-seem consideração a composiçãode nossa estrutura social eos determinantes da mobilidadesocial e da renda, a par de melhoriado ensino de segundo grau, dever-se-iafacilitar o ingresso nasuniversidades. O autor propôs que89% obedecesse ao critério de examevestibular e 20% ao critério deavaliação de desempenho. Isto, paraque se mantivesse ascendente ofluxo de estudantes para o ensinode nível superior, certamente porqueé do consenso que sem ciênciae técnica não temos condições deacompanhar a modernidade. O autorcondenava, aliás com razão, aênfase que se está dando ao ensinofundamental, para minimizar a importânciado ensino superior, sem,entretanto, atentar pra a questãoestratégica antes levantada e relaçõesde poder.Se o que se quer é um sistemaeducacional que contemple a sociedadecomo um todo, não háque se colocar a questão em termosde preferências, mas sim demaneira orgânica e totalizante emsuas seqüências possíveis, semperder de vista que o ensino superioré fundamentalmente um ensinode formação de elites. Nãoconfundir isso com elitismo, comoestá ocorrendo. E nessa perspectivanão se pode, com vistas à qualidade,simplesmente tomar medidasde facilitação de ingresso nauniversidade, sem, concomitantemente,se possibilitar sua freqüênciasem preconceitos sociais, a fimde permitir ao trabalhador que estudatirar os proveitos advindosdos cursos superiores.Parece que o que ficou dito ésuficiente para se entender a necessidadede fazer um corte verticalno ensino, para, exibindo-lhe as entranhas,adequá-lo às necessidadesdo desenvolvimento nacional comobase de um projeto nacional: quedefina o que queremos ser e porque meios ser o que pretendemos.F. C. de Sá Benevides é articulista doJornal do Commércio (RJ).23


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>UNIVERSIDADE, GREVE E LUTA POLÍTICADaniel GarciaNos últimos nove anos, a USPesteve em greve em quatro ocasiões:em 88, em 91, em 94 e em 96.A questão mais freqüente em todacampanha salarial está relacionadaà conveniência de se fazer aparalisação. O professor doInstituto de Matemática eex-presidente da <strong>Adusp</strong>,Francisco Miraglia, analisa,neste artigo, a questão da grevecomo instrumento de luta em defesada Universidade e das condições devida e trabalho de professores efuncionários. Ele analisa, ainda, agreve no setor público. Segundo ele,está claro que o movimentoparedista neste setor pode ter umpapel importante em um paíscomo o Brasil. “O essencial é travara luta política, pois são decisõespolíticas que determinam saláriosaviltantes e destruição dos serviçospúblicos essenciais”, afirmaFrancisco Miraglia. Para ele, lutandocontra salários aviltantes, contra adestruição de serviços essenciaisà população, contra a sonegaçãode impostos e a falta dedemocracia nas relações entreEstado e Sociedade, representamosum importante pólo de luta.24


Agosto 1996procedimento, um para o exercício do poder e o outro,mais recente, para pautar a conduta individual.O modelo para o exercício do poder é uma formatipicamente autoritária e tecnocrática de exercer a hegemoniasocial. Só empresários bem-sucedidos e seusrepresentantes políticos sabem, fruto de uma “escolhapelo destino”, o que é bom para todos. Aos anseios demais democracia, responde-se com o mesmo discursofeito pela velha nobreza fundiária às vésperas das revoluções,especialmente a francesa, que conduziram aburguesia ao poder na sociedade: o que será de nós sea massa ignara puder opinar? Como para os antigosdonos do poder, nós, os meros mortais, devemos permanecerfora da discussão de políticas e metas, sendoconsiderados apenas como mão-de-obra em potenciale jamais como cidadãos de pleno direito.Este modelo recomenda ainda que toda base dapirâmide de poder seja submetida à humilhaçãoconstante. A população brasileira é humilhada cotidianamente,por falta de comida, educação, saúde,transporte, emprego e dos direitos sociais mais elementares.Todos sabemos qual é a atitude de governosem relação aos servidores públicos. Na Universidadenão é diferente. Em vez de prestigiar seus docentese funcionários, assistimos a processos de avaliaçãooriginários de uma concepção produtivista dotrabalho intelectual, que dá pouco ou nenhum valorao ensino e à extensão de serviços à comunidade.Ninguém esqueceu a famigerada “lista de improdutivos”,ataque vil ao corpo docente da USP, perpetradopor Goldemberg e Cia. O objetivo desta tática éóbvio: desqualificar toda oposição, desestruturar acapacidade de reação de quem não exerce o poder.A sensação de impotência que sobrevém a muitos denós é uma conseqüência desta articulação de procedimentosagressivos e totalitários.O novo mito de procedimento pessoal é um individualismoexacerbado, que nega valor a qualquerforma de articulação social que não seja com aquelesconsiderados da mesma “tribo”. Esta forma de individualismoestá estreitamente associada a duas concepções,que são instrumentos da alienação, da dominaçãoe da exploração do trabalho. A primeira éque só o mercado tem significado social e histórico,não a luta pela garantia de vida digna para todos.Revista <strong>Adusp</strong>Transforma-se “o outro” em “o concorrente”. Nãohá responsabilidade social pela dignidade humana,apenas a incompetência ou inadequação do “outro”a “novas formas produtivas”. A segunda é a desqualificaçãoda noção de solidariedade, instrumento históricode construção da liberdade social, que é necessariamentecoletiva. Pretende-se, isto sim, garantir a liberdadede alguns à custa de todos.Na presença desta forma de individualismo e daconseqüente falta de organização coletiva permanente,o padrão imperial, autoritário e arrogante de exercíciode poder que vemos em todos os níveis dobra-sesó momentaneamente ao que foi ganho em árdua lutapor sindicatos e organizações populares. Um exemplocontundente é a Constituição de 1988. Os mais de 100artigos que envolvem direitos sociais jamais foram regulamentados,significando, na prática, a sua cassação.Arquitetava-se o momento propício para rasgar aCarta de 88, para desmontar o projeto de construçãode cidadania para todos que poderia ser disparadopela regulamentação da Constituição de 1988.Passeata de professores e funcionários das três estaduais26


Revista <strong>Adusp</strong>Está pior que no tempo do PFL explícito!Na realidade a truculência dos governos federal eestaduais aumentou consideravelmente com o tempo.Temos hoje perseguição de funcionários, desrespeitoao direito legítimo de greve e ameaças de todo tipo.Basta lembrar o tratamento dispensado pelo governoFHC à greve dos petroleiros, aos trabalhadores semterrae à greve dos servidores federais. A indisposiçãopara a negociação e o diálogo aumentaram muito. Otratamento típico é o que foi dispensado a professorese funcionários das universidades federais, indignadoscom a proposta de reajuste zero (!) na data-base: descaso,agressão e cassação de direitos. Bem pior do quea triste memória que tínhamos do tempo de MarcoMaciel como ministro da Educação e Everardo Macielcomo secretário do Ensino Superior. Há coisas no entantoque permanecem as mesmas: o carinho no tratode banqueiros e da frente ruralista; o descaso com asaúde, a educação e a justiça; a conivência com a sonegaçãoe a evasão fiscal. Continua também a promoçãoDaniel Garciapaulistas na Unicamp, durante a campanha salarial de 96.da desinformação: os servidores públicos e os aposentadossão os responsáveis pelas mazelas do país e nãoa ditadura e o PFL; o dinheiro dado aos bancos, viaProer, é dos próprios bancos, quando na realidade édinheiro de depósito da população, guardado no BancoCentral para segurar a taxa de juros.Será que na Universidade é diferente?Agosto 1996Se há diferença entre o padrão de exercício de poderna sociedade e na Universidade, é para pior. Oreitor da USP, por exemplo, age como imperador, faltandoa compromissos assumidos publicamente e descumprindodeliberações do seu Conselho Universitário.Registre-se que o Estatuto da USP não prevê a figurado impeachment. O reitor da Unicamp patrocinaa perseguição e a punição de funcionários, desrespeitandoo direito de greve.Os reitores das universidades estaduais recusam-sea publicar balancetes mensais de receitas e despesasno Diário Oficial do Estado, regra mínima de transparênciana gestão de entidades públicas. Por iniciativadas entidades representativas de docentes e funcionáriosda USP, Unesp e Unicamp, em diversos anos foiapresentada emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias(LDO) no sentido de obrigá-los a esta providênciaelementar. Nunca uma destas emendas foi aprovadapela Assembléia Legislativa.Está claro para quem vive o cotidiano da Universidadequanto o individualismo de mercado é incentivadopelas administrações centrais. A luta estratégicaem defesa do patrimônio que é a Universidadepública fica sem importância, é tachada de ineficaz.Torna-se chique privatizar o patrimônio público. Estabelece-sea urgência de, utilizando o prestígio socialque esta instituição ainda confere, apropriar omaior pedaço possível do Produto Interno Bruto brasileiropara a respectiva “tribo”.Assim, enfrentamos nas universidades estaduais osmesmos inimigos da democracia e das políticas públicasque na sociedade em geral. Enfrentamos a mesmaconjuntura adversa à ação coletiva em defesa de condiçõesdignas de vida e trabalho. Temos as mesma dificuldadespara conseguir manter nossas conquistas.Portanto, a análise geral feita acima é adequada para27


Agosto 1996dar conta dos instrumentos de luta que temos à nossadisposição na Universidade. Um exemplo concretopoderá ilustrar o caso geral.Uma análise da greve de 94Já presenciei muitas avaliações negativas da grevedas universidades estaduais de 1994. Em particularsão comuns declarações no sentido de que não ganhamosnada de concreto com aquele movimento. Lembrandoque aquela foi uma campanha de data-base,seria importante entender por que esta é a impressãode muitos, já que uma análise fria dos fatos mostraganhos claros, tanto políticos quanto salariais.Em meio àquela campanha foi realizado debate naFolha de S. Paulo, entre o Fórum das Seis e as reitorias.Os reitores, embora no auditório, foram representadospor membros da administração universitária, consideradospor eles como técnicos em assunto de ICMS e salários.Só aí já se caracteriza a tentativa de tratar umaquestão política como se fosse técnica. Além disso, osreitores tentavam preservar a sua imagem pública: sabemque não podem discutir estes assuntos em pé deigualdade com as entidades representativas. Assim, sealguma bobagem aparecer do lado das reitorias, podemsempre responsabilizar os seus representantes. O debatecaracterizou-se pela insistência das entidades de queas reitorias não podiam aceitar estimativas grosseiramenteerradas da Secretaria da Fazenda para a evoluçãodo ICMS, comprometendo o funcionamento dasUniversidades e os salários de professores e funcionários.As entidades declararam publicamente qual suaestimativa para o mês de junho/94,cerca de 25% maior quea defendida pelas reitorias. Osfatos comprovaram que estávamoscertos. A diferença foi pagaa todos os professores e funcionáriosda USP, Unesp e Unicampno mês de julho/94, comoabono de 18% sobre o salário dejunho do mesmo ano.Os reitores aprenderam coma experiência: durante um anonão houve reunião do CruespRevista <strong>Adusp</strong>com o Fórum das Seis. Jamais responderam a insistentespedidos de reunião, nem à proposta do Fórumpara resolver o impasse sobre a maneira de calcular osalário real na passagem para o real (lembram-se dapolêmica sobre 6,95% ou 30,75% em junho/94?).Paralelamente, professores e funcionários tiveram,no período de maio/94 até maio/95, particularmentea partir novembro/94, o maior salário real dosúltimos tempos. Além disso, mesmo depois do PlanoReal, continuávamos com reajustes freqüentes, muitoembora não fossem mais mensais como antes. A tabelaabaixo fornece exemplos de reajustes e salárioreal de um professor doutor (MS3) neste período,medido pelo ICV-Dieese.Para manter este ganho e não perder a possibilidadede reajustes periódicos, o Fórum das Seis convocou docentese funcionários para a campanha de data-base demaio/95, ponderando que a falta de mobilização iriapermitir aos reitores voltar atrás na política de reajustesperiódicos e promover o arrocho salarial. Não houvemobilização massiva e todos sabemos o que aconteceu:um ano sem reajuste e a proposta irrisória de 7,63% emmaio/96. No rastro da nossa desmobilização, os reitorescancelaram, sem satisfações e de forma arbitrária, oreajuste mensal conquistado em 88. Em dezembro/94,as reitorias foram tão longe quanto mudar o método deconfecção das planilhas sobre as quais discutíamos, passandoa utilizar o critério de “fluxo de caixa”, no lugardo de “regime de competência”, que eram usuais. Comeste truque, sumiram da receita de 94 cerca de 13 milhõesde reais, correspondentes a dinheiro que deveriaser pago em 94, mas que as universidades receberam28


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Após passeata, manifestantes ocupam o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, em defesa da escola pública.em janeiro/95. Só assim, ou seja, mudando as regras nomeio do jogo, o Cruesp conseguiu “mostrar” que tinhagasto 85% da sua receita fiscal acumulada com saláriosem 94. Na realidade foi menos, e estavam nos devendo,por compromisso público veiculado inclusive em jornaisde grande circulação, cerca de 14% de reajuste salarialem dezembro/94. O Fórum das Seis insistiu, cobrou,mandou ofício. Sem mobilização de massa, os reitoresse permitiram ouvidos de mercador e faltaram com palavraempenhada publicamente.A luta pela democracia é essencial!Fica evidente que não podemos continuar com dirigentesque são, na melhor das hipóteses, representantesdo governo na Universidade. É imperioso que os dirigentesuniversitários tenham compromisso com a defesadas condições de vida e trabalho do corpo da Universidade.Não é mais possível a continuidade desta atitudeimperial, que desrespeita a todos e a ninguém devesatisfação. É necessário democratizar o exercício do poderna Universidade, para evitar aberrações como asque temos assistido nos últimos anos. Pelo menos acordose palavra públicos precisam ser respeitados. As entidadesvêm há muito lutando pela democratização daestrutura de poder na Universidade. Nunca esta luta foitão atual. Na USP o problema é particularmente grave,já que seu Estatuto é consideravelmente mais autoritárioe retrógrado que o das outras estaduais. Sem democracia,a autonomia da Universidade é simplesmente aautonomia da administração de plantão de fazer o quebem entende. Não lutamos anos a fio para que oligar-29


Agosto 1996quias controlem aUniversidade públicaao seu bel-prazer,nem vamos sustentareste tipo de autoritarismoe irresponsabilidade.Na campanhade data-base de96 tivemos que assistira mais um episódiode falta com apalavra do Cruesp.Durante toda a grevediziam que conversariamapós a votaçãoda LDO naAssembléia Legislativa,propondo o dia10 de julho/96 comodata adequada paraa negociação salarial. O Fórum dirigiu-se à sede doCruesp, na Secretaria de Ciência e Tecnologia, no dia ehora combinados. Não havia lá reitor algum, apenas osegundo escalão da administração das três universidades,sem proposta alguma, sem nenhuma autoridadepara negociação salarial. Seria ótimo se cada docente efuncionário da USP, Unesp e Unicamp considerasse estasatitudes como uma afronta!Numa sociedade como a nossa é essencial valorizaros espaços públicos de discussão e deliberação política.Sempre considerei a atividade sindical central emmeus afazeres, pois era um dos poucos — senão o único— espaços democráticos de debate das questõesgerais e específicas da Universidade. Nunca considereia ação institucional como superior àquela construídafora do aparelho burocrático, pois a arquitetura do sistemainstitucional brasileiro tem as características autoritáriasanalisadas acima. Ao priorizar o institucionalsobre a ação do movimento social organizado, estariacometendo o equívoco de castrar a minha contribuiçãopara onde está, de fato, a energia transformadorana nossa sociedade. É inegável que seria importantetermos capacidade e organização para sustentarpressão permanente sobre o poder institucional. Aparticipação ativa na vida política e sindical seria umRevista <strong>Adusp</strong>Daniel Garciapasso importante nesta direção. Se, por exemplo, tivéssemosassembléias gerais massivas com regularidade,poderíamos evitar que nos fossem tomados salárioe condições dignas de trabalho, ganhos na luta de docentese funcionários. Um pouco de envolvimento decada um no trabalho político cotidiano pode significarmuito para evitar que direitos sejam perdidos e paragarantir que prospere a construção da democracia socialno Brasil. Além disso, se travássemos a luta deforma organizada e constante no tempo, talvez não tivéssemosque recorrer a greves tão longas, quandonão fosse necessário. Embora reconhecendo a importânciade criar mecanismos estáveis de pressão e reivindicação,é forçoso reconhecer também que a nossaatmosfera social dificulta enormemente a construçãodestes instrumentos. Mesmo com estas dificuldades,não podemos jamais desistir de aumentar a nossa capacidadeinstalada de mobilização, de trabalhar paravê-la crescer. Enquanto esta capacidade não se tornafato político, a greve, fruto de indignação socialmentelegítima, permanece o único instrumento efetivo deluta coletiva, tanto em defesa das nossas condições devida e trabalho quanto dos serviços públicos essenciais,sem os quais não há possibilidade de exercício dacidadania para a maioria dos brasileiros. RA30


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996EntrevistaHélio Bicudopor Jair BorinDIREITOS HUMANOSFotos: Ronaldo EntlerAos 74 anos, o deputado federal Hélio Bicudo (PT/SP) demonstra, na Câmara Federal,a mesma vitalidade na defesa dos direitos humanos que tinha na década de 70,quando, como promotor de justiça, denunciava o Esquadrão da Morte. Para ele, oPlano Nacional de Direitos Humanos (PNHD), anunciado pelo governo FernandoHenrique, não atende às reais necessidades da sociedade brasileira. “O Plano é positivo,mas precisa de medidas concretas e adequadas à nossa realidade”, diz o deputado.Nesta entrevista, Hélio Bicudo analisa os casos de tortura que acontecemconstantemente nas delegacias brasileiras, defende a não legalização do abortoe critica a imprensa pelo seu papel meramente mercantilista.31


Agosto 1996<strong>Adusp</strong> - Recentemente, foramdescobertas no Araguaia algumasossadas de guerrilheiros que estãosendo identificadas. O exame dessesdespojos revela a prática detortura pelos militares que combaterama guerrilha. O senhor, quesempre se destacou no combate àtortura no país como promotor ecomo deputado federal, acreditaque a prática da tortura é uma coisado passado, no Brasil, ou aindaexiste hoje nas delegacias em relaçãoao preso comum?Hélio Bicudo - Acho que a práticade tortura contra o preso comumnão é de hoje, é de muitosanos. Dentro da rotina policial, sejada Polícia Militar ou da Civil, atortura ocupa um espaço muitogrande. Tanto para se obter informaçõesquanto para a incriminaçãodos acusados ela é usada emníveis elevados. Eu me lembroque, quando era promotor público,em 1956/57, fui designado para trabalharnum inquérito policial emSão Paulo, a propósito de um delinqüenteque se notabilizava pelaviolência com que praticava seusassaltos. Na minha presença, e nado delegado de polícia, em umadas delegacias do Deic, o prisioneiroassumiu a responsabilidade porvários delitos e parecia que o estavafazendo espontaneamente. Nomomento em que o delegado saiuda sala, o acusado disse para mim:“O sr. quer ver as minhas costas?”,e tirou a camisa. Tinha marcas recentesde inúmeras queimadurasfeitas com ponta de cigarro, o queindicava a prática bárbara de tortura.Tomei providências imediatascomo o pedido de exame de corpo32Essa questão da torturacomeçou a vir à tonaquando nós, da classemédia, começamos asentir na nossa pele aviolência dessa prática.Isto aconteceu durantea repressão política,promovida peladitadura militar. A partirdaí, nós descobrimosque havia tortura.de delito, invalidando todas as declaraçõesque ele havia prestadoperante a autoridade policial, queestava querendo obter uma confissãoe não fornecer provas e as circunstânciasdos delitos. Agora, vejabem, isto foi na década de 50.Hoje, decorridos quase quarentaanos, esta é, ainda, uma prática rotineirapor parte da polícia. Essaquestão da tortura começou a vir àtona quando nós, da classe média,começamos a sentir na nossa pelea violência dessa prática. Istoaconteceu durante a repressão política,promovida pela ditadura militar.A partir daí, nós descobrimosque havia tortura. Quando eu falonós, quero dizer a sociedade emgeral. A tortura se multiplicou e seestendeu com muita força durantea repressão pela complacência dasociedade. Em decorrência dessasituação, que o regime militartrouxe a lume, nós aprendemosque existe tortura no Brasil e queela não foi só utilizada para a repressãopolítica, mas ainda é empregadana apuração de crimes comuns.Condenar esta prática éRevista <strong>Adusp</strong>uma atitude nova da sociedade, eacho que ela preenche uma dasmetas dos direitos humanos noque diz respeito à dignidade daspessoas, ainda que delinqüentes.<strong>Adusp</strong> - O senhor acha que estatortura também é praticada pelaPolícia Militar?Hélio Bicudo - Sim. Eu me lembroque, na ocasião em que fizemosas investigações do esquadrãoda morte, eram apontados inúmeroscasos praticados primeiro pelaPolícia Civil e depois pela própriaPolícia Militar. Eram torturas quemuitas vezes estravazavam para aeliminação de pessoas que a políciajulgava que tinham responsabilidadecriminal.<strong>Adusp</strong> - Com a mudança da legislação,remetendo para a justiçacomum o julgamento de delitospraticados por integrantes da PolíciaMilitar, o senhor acha que estaspráticas poderão ser inibidas?Hélio Bicudo - Acho que poderãoser inibidas à medida que nósdeslocarmos esta competência doprocesso e do julgamento para ajustiça comum, porque, na verdade,há uma tendência em camuflaresta substituição de competênciapara que ela seja tão ou quase inócuacomo a manutenção da competênciada Justiça Militar e dasPMs para o processo de julgamentonesses casos. Se olharmos comatenção os projetos que se apresentarame a maneira pela qual oSenado apreciou o texto original,verificamos que, muito mais doque se fazer alguma coisa nestesentido, prevaleceu a intenção de


Revista <strong>Adusp</strong>se camuflar uma idéia. Isto paraque pareça à sociedade que se estáfazendo algo, enquanto, na verdade,não se está fazendo nada. Damaneira pela qual este projeto veiodo Senado, é muito difícil revertêlopara a idéia originária, que era oenquadramento na Justiça Comumde todos os crimes praticados pelaPM. Nas suas atividades de policiamento,eles vão permanecer quasetodos. De maneira que se aprovouum projeto tecnicamente malfeito,mas que pode ter algum alcance,embora limitado.<strong>Adusp</strong> - Gostaria de retornar àquestão do projeto que ficou descaracterizadoentre a proposta original,que acabou sendo arquivadano Senado, e aquela que está sendoaprovada agora. Osenhor acredita que,para recuperar a disposiçãoanterior, derealmente enquadrar aPM na Justiça Comum,só seria possívelcom um novo projeto?Hélio Bicudo - Semdúvida nenhuma. O Senadodeu um nó regimental,de forma quenão pudemos recuperaro projeto aprovado pelaCâmara em janeiro desteano. Não há possibilidadeporque com essamanobra regimentalaquele projeto acabousendo arquivado. Agora,só nos resta aprovaro projeto Genebaldo(do deputado GenebaldoCorrea), que não ésatisfatório, tem falhas grandes doponto de vista técnico e legislativo,mas pelo menos permite que o julgamentodos casos do Carandiru,de Corumbiara, de Eldorado dosCarajás e outros passem para a justiçacomum. Quer dizer, é um passopequeno, mas no momento é o quese pode fazer. Para o futuro, temosque ter o compromisso do governoem apoiar um projeto mais eficaz,para que não fiquem de fora o espancamento,lesões corporais, prisãoilegal, tortura, extorsão e estupropraticados por PMs, pois ficamtodos ainda sob a responsabilidadeda Justiça Militar. E, mais ainda, tirarda Justiça Militar a investigaçãodestes casos, porque é uma justiçacorporativa. Como é a investigaçãoque dá o tom ao processo, se elesAgosto 1996prosseguirem com as investigações,evidentemente que não vamos chegara nada.<strong>Adusp</strong> - E as denúncias de práticasde arbitrariedades praticadaspela segurança do CongressoNacional? Elas serão apuradas?Hélio Bicudo - Esta idéia começoua aflorar numa denúncia feitapelo deputado Ivan Valente. Elenos mandou um dossiê e, evidentemente,vamos ouvir as pessoas, masnão temos poder decisório. Nós podemosouvir, tirar as nossas conclusõese encaminhá-las ao presidenteda Câmara e à própria Polícia Federal.Com um fato desta naturezadentro da Câmara, acho que o presidenteda Casa será o primeiro atomar uma posição muito clara, nosentido de penalizar os responsáveis.Do ponto de vista administrativoele não pode fazer mais do queisso. Depois, deve encaminhar estasquestões para o Ministério Público,para que o processo penal tenhainício. Nós não temos ainda tipificadoo crime de tortura, pois oprojeto com este objetivo já passoupela Câmara dos Deputados, masprecisa ser aprovado no Senado paraseguir à sanção presidencial. Sóa partir daí teremos tipificado umcrime de tortura. Antes disso, sópodemos punir alguém, administrativamente,conhecendo que houveuma prática de infração funcionale, também, punir os resultados dessainfração, como lesões corporaisleves ou graves. Hoje, entretanto,não temos os instrumentos que vamoster daqui a alguns dias para apunição do crime típico de tortura(torturar alguém).33


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong><strong>Adusp</strong> - Insistindo um poucomais na questão da tortura. Nadadaquilo que foi praticado até agorapoderá ser enquadrado na novalei. Casos como o de Corumbiara,em que ficou bem tipificada a torturatanto da PM como de jagunços,que bateram em mulheres, espancaramcrianças, obrigaramum dos acampados a comer osmiolos de outro assassinado, ficarãoimpunes?Hélio Bicudo - Não, eu não acreditoque eles continuem impunes,mas haverá umagrande dificuldade para apunição, porque estas investigaçõescomeçaram a serfeitas pela própria PM. Eume lembro das dificuldadesque os próprios legistas indicadospelo Ministério daJustiça tiveram para chegara algumas conclusões importantesna aferição da responsabilidadeda PM. Agora,com relação ao crime detortura, evidentemente queeles não poderão ser incriminadospor este crime típico, porque existeo princípio da irretroatividade dalei penal; de maneira que só depoisde sancionada a lei que qualifica edescreve o crime de tortura é quepoderemos começar a punir os torturadores.Tem uma coisa que euacho importante frisar: o governofederal parece que está abandonandoeste ponto de vista, tanto queenviou a respeito um projeto deemenda constitucional. É a possibilidadede você federalizar determinadoscrimes contra a humanidade.Existe um órgão que funciona dentrodo Ministério da Justiça, que é o34Conselho Nacional dos Direitos daPessoa Humana, e as suas funções eatribuições estão sendo remodeladasnum projeto que está sendo discutidoagora na Comissão de Constituiçãoe Justiça. Pretende-se queesse Conselho seja o foro para oqual o Ministério Público ou a Ordemdos Advogados possam recorrerpara a federalização de determinadoscrimes que então começarãoa ser investigados e julgados pelaprópria Justiça Federal.Acho que as reformasconstitucionais pretendidas pelopresidente da República sãoabsolutamente dispensáveis. Anossa Constituição é realmentedemocrática. Ela pode seraperfeiçoada num ponto ou emoutro, mas tomar as reformasconstitucionais como dogma para areforma da sociedade e do Estadopenso que não tem o menor sentido.<strong>Adusp</strong> - Com relação a crimescometidos pelo Exército durante aguerrilha do Araguaia. Pelo queconsta, ali foram praticados váriosatos contra a pessoa humana,sejam contra guerrilheiros, sejamcontra camponeses e civis. Emuma das ossadas descobertas agora,há sinais evidentes de tortura?Hélio Bicudo - Evidentementeque houve tortura. Entretanto, comoa tipificação do crime de torturadepende do projeto de lei que estásendo discutido agora no Senado,como já expliquei, os possíveis autoresdesses atos não poderão ser punidospor esse crime. Mas se eles foremidentificados, poderão ser punidos,não mais pelos crimes de lesõescorporais, que estão prescritos, mesmoporque a prescrição só ocorre apartir da hipótese de que você sabeque houve um crime e sabe quemfoi o seu autor. Então, nestas condições,se você descobrir a autoriadessas lesões e deste homicídio, vocêpode incriminar os seus autores.Aí, no caso, não há anistia.<strong>Adusp</strong> - O senhor discute muitoa questão do crime conexo,argumento utilizadopelos militares para anistiaros torturadores. Háconexão entre a guerrilhae a tortura?Hélio Bicudo - É lógicoque não há. A conexidadesão crimes da mesma espéciee praticados pelas mesmaspessoas. Não se podebotar pessoas que são adversáriasno mesmo barco.Um crime não elimina ooutro. São coisas diferentes.Não existe esta conexidade. A conexidadeexiste quando você praticauma lesão corporal e em seguidaelimina esta mesma vítima.Mas, se há pessoas diferentes nãoexiste conexidade.<strong>Adusp</strong> - Em relação ao governoFHC, como o senhor vê as propostasque estão sendo encaminhadasna área da questão dos direitoshumanos?Hélio Bicudo - Veja bem, euacho que as reformas constitucionaispretendidas pelo presidenteda República são absolutamentedispensáveis. A nossa Constituição


Revista <strong>Adusp</strong>é realmente democrática. Ela podeser aperfeiçoada num ponto ou emoutro, mas tomar as reformasconstitucionais como dogma paraa reforma da sociedade e do Estadopenso que não tem o menorsentido. E o fato de que não tem omenor sentido é que até hoje nósnão naufragamos, como se dizia seessas reformas não fossem feitas.Acho que uma remodelação dasfunções do Estado, não para oatendimento dos grupos financeiros,como está acontecendo agora,mas para o atendimento da sociedadecomo um todo, é prioritário.Sobre este aspecto, o governoFHC não disse a que veio e baixouum Plano Nacional de DireitosHumanos que eu acho positivo,mas que precisa de medidas concretase adequadas à nossa realidade.Elas, entretanto, não vão serencontradas nas reformas constitucionaisque o governo está propondo.Muito pelo contrário,quando se fala na reforma administrativa,na reforma da previdência,você está atemorizando as camadasmais pobres da população,em benefício da elites brasileiraspura e simplesmente.<strong>Adusp</strong> - Qual o papel dos partidosde oposição no Congresso?Hélio Bicudo - Quando se inicioua atual legislatura, eu disse,após um exame até superficial dasforças existentes hoje no Congresso,que esta seria a legislatura maistranqüila, porque a oposição iriaser acuada de uma maneira tal,que muito pouco do que ela pretendessepoderia ser feito. A oposiçãoao atual governo soma nãoDemocracia não éapenas o governo damaioria, então, se tornaditadura da maioria.(...) Qualquer sistemademocrático precisapraticar dentro doCongresso o diálogoentre a oposição e asituação. Este diálogoestá cada vez maisminimizado, inclusiveatravés desta reformarecente do regimentointerno, que nãopermite que asoposições se expressemenquanto oposições.Agosto 1996mais do que 110 deputados numhorizonte de 514. É praticamentenada e assim mesmo o governobusca novos instrumentos, comopor exemplo a supressão dos DVS–destaques para votação em separado–,que é um instrumento deatuação das oposições. O governoconseguiu minimizar este instrumento,tirando das oposições aoportunidade de se oporem. Democracianão é apenas o governoda maioria, então, se torna ditadurada maioria. Não se trata de umregime democrático, se trata deum regime de imposição daquiloque a maioria entende que é verdade,e nem sempre a verdade estácom a maioria. Qualquer sistemademocrático precisa praticar dentrodo Congresso o diálogo entre aoposição e a situação. Este diálogoestá cada vez mais minimizado, inclusiveatravés desta reforma recentedo regimento interno, quenão permite que as oposições seexpressem enquanto oposições.<strong>Adusp</strong> - Entre a oposição já sefala da inutilidade de se estar hojeno Congresso. O senhor participadessa idéia?Hélio Bicudo - Não chegaria aeste extremo porque uma migalhaou outra a gente consegue. Mas, naverdade, levando ao extremo, aoposição praticamente inexiste,porque ela não é sequer respeitadapela situação. E esta última questãofoi realmente um desrespeito muitomais à Nação e à democracia doque às oposições. O governo nãoquer o diálogo, ele quer a imposição.E isto não podemos concebernum regime democrático. O governoimpõe a sua vontade através dasmedidas provisórias, muitas delasinconstitucionais, com a conivênciado Supremo Tribunal Federal. Éatravés desse rolo compressor queo governo impõe o que quer.<strong>Adusp</strong> - O senhor vê algumadiferença entre o governo federal35


Agosto 1996e o chamado Centrão, na época doministro Roberto Cardoso Alves,que praticava o conhecido “é dandoque se recebe”?Hélio Bicudo - Não, eu não vejomuitas diferenças. Penso que o governonão deveria adotar esta políticaporque quanto mais se dá, menosse recebe. O governo podia encararuma participação das oposições,porque muitas vezes aconteceque você tem uma participação dedeputados da oposição, mas nãoenquanto oposição. Por exemplo,neste projeto sobre a tipificação docrime de tortura. É muito mais umprojeto das oposições do que do governo.Na hora da votação desteprojeto, a direita, que faz parte dabase parlamentar do governo, se rebelouporque não queria aprová-lo.<strong>Adusp</strong> - No inquérito do massacrede Eldorado dos Carajás estãosendo enquadrados 150 PM’s demaneira bem genérica, sem tipificarautores e disparos. O corporativismoe a conivência entre osmandantes da chacina e os autoresdos crimes estão cada vez mais clarosna investigação do caso. Nem oo governador nem o secretário deSegurança foram indiciados. Estecaso pode acabar em “pizza”?Hélio Bicudo - Acho, assim comoo Carandiru e Corumbiara. Essescrimes são hediondos, mas nãoexiste vontade política para apurálos.Denunciar 154 réus sem a tipificaçãodo que cada um cometeu,num embróglio só, é a mesma coisaque não denunciar ninguém.Depois, estão excluindo os responsáveis,ainda que por omissão. Elestinham conhecimento de que36aqueles eventos poderiam acontecere deixaram pura e simplesmenteque acontecessem.Revista <strong>Adusp</strong><strong>Adusp</strong> - Mudando de assunto,gostaria de falar sobre a questãodo aborto. O senhor tem um pontode vista muito particular, enquantoo movimento feminista eoutras correntes da sociedade defendemuma posição bastanteoposta à sua. Num caso de estupro,por exemplo, não seria lógicoa mulher poder abortar, caso venhaa ficar grávida?Hélio Bicudo - Partir de umaquestão excepcional para se resolverum problema geral, acho quenão é muito realista. Na questãodo estupro, se você estabelece, comoconsta na Constituição brasileira,que a vida é um direito a partirda concepção, mesmo que tenhasido gerada a partir de um ato deviolência, não deixa de ser uma vida.Então, se você corta este processoem qualquer momento, vocêcomete um crime contra a vida. Oser que foi gerado não é responsávelpela violência que o gerou.Nós, então, estamos punindo umser que não tem defesas contrauma violência que ele não praticou.O mais razoável e racional serádar a estas pessoas que foramviolentadas um tratamento psicológicoadequado, para que elasaceitem a gestação e depois resolvamo que querem fazer com oproduto da gestação, se querem ounão ficar com ele. O Estado é o coresponsável,evidentemente, numaviolação, porque se a violação existeé porque o Estado por omissãoou por ação permitiu que ela ocorresse.O Estado deve ser responsávelpor esta criança, colocando-anum lar substituto ou tratando delaenquanto Estado. Você vai dizerque isto no Brasil é uma bagunça.Você não pode, com base na desorganizaçãodo Estado, resolverum problema de vida. Nestes casospode acontecer que a mulher pratiqueo aborto, embora ele seja incriminadopor uma lei. Às vezes éporque o marido não queria filhos,o que iria onerar a vida do casal,embora o filho possa ser dele.A pressão que a mulher sofre podelevá-la ao aborto. Eu acho que sedeve dar ao juiz o arbítrio paraque, examinando cada caso, decidase deve punir ou não a mulher.Nos casos extremos, por exemplo,o juiz poderá não punir. Ele vai dizer:“Cometeste um crime, mas euposso, diante da lei, tirar a responsabilidadedeste crime da tua pessoa”.Mas o crime existe.<strong>Adusp</strong> - Supondo que o juizadote esta prática, ponderando nofinal que a ele, juiz, cabe decidir enão punir a mulher, embora elatransgrida uma lei, isto não estimulariaa prática de abortos clandestinose toda esta indústria queexiste hoje no Brasil, desde curiososaté médicos ?Hélio Bicudo - Acho que é aocontrário.Você pode instituir oaborto, legalizar o aborto, e oaborto clandestino vai continuarexistindo, exatamente porque namaioria das vezes as mulheres nãoquerem que isto transpareça, porquese elas forem a um médico autorizado,num hospital, para fazero aborto, elas estão admitindo que


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Nós não temos no Brasil umaimprensa autônoma. Ela estápresa ao poder do Estado. Osgrandes jornais são dúbiosquando tratam da questão dademocracia e da questão daatuação dos órgãosgovernamentais.contou com a conivência do médicopara encobrir o fato, alegandoque estava sendo tratada de umacoisa qualquer. Não é legalizandoque nós vamos diminuir o mal. Aocontrário, se você legalizar, vocêabre as portas. Essa questão doaborto também tem que ser examinadado ponto de vista do que chamamosde bioética populacional.Ela enfoca a necessidade de se fazerum planejamento familiar paraque os casais possam ter os filhossegundo suas condições de proporcionar-lhescondições mínimas deconforto. Nesse sentido, hoje sepropõem três coisas: o uso de anticonceptivos,o uso de esterilizaçãoe do aborto. Nas populações doTerceiro Mundo, onde não há umacultura nesse sentido, você não vaiconseguir que as mulheres não engravidem,seja por métodos naturais,químicos ou mecânicos. Então,o que passar daí vai para oaborto e o que passar daí vai paraa esterilização. Isto não é uma políticapara nós, isto é uma políticaque vem dos Estados Unidos, e elaadvém ainda da ideologia da segurançanacional dos países ricos.Por isso, outro dia falei que os paísesricos é que estão interessadosnessa questão da anticoncepção,do aborto e da esterilização. Parodiandoum velho refrão: trabalhadoresde todo o mundo uni-vos, ericos de todo o mundo uni-voscontra os povos.cometeram uma relação sexual quepode até não ter sido violenta. Masse ela se apresentar em uma delegaciade polícia e disser que foi estupradae requerer a atuação domédico do Estado, então acho quese você vai pelo menos continuarcom o mesmo número de abortosclandestinos. É como o jogo do bicho.Se você legalizar, vai continuarexistindo o ilegal e todo mundovai jogar o ilegal, porque nãopaga imposto. Da mesma maneira,se legalizar o aborto, vai existir oilegal. Muitas pessoas não queremque a sociedade tenha conhecimentodesse fato, inclusive a própriamulher. Zamiti Mamana, médicocientista, que estudou a questãodo aborto, relata o caso deuma mulher cujo marido viajou.Durante sua ausência ela teve umarelação extramatrimonial e aproveitoua viagem do marido para fazero aborto. Acontece que o maridoantecipou o seu retorno e a encontrouno hospital. Então, ela<strong>Adusp</strong> - Para encerrar, como osr. vê hoje a imprensa brasileira?Hélio Bicudo - É uma imprensaempresarial. Você se lembra que oEstadão, submetido à censura,substituiu artigos censurados porpoesias de Camões ou por receitasculinárias. Ele, porém, não estavadefendendo o regime democrático;estava defendendo a sua própriarazão de ser. Ele apoiou o regimede força, mas apenas quando esteregime tocou a imprensa é que elereagiu desta maneira. Nós não temosno Brasil uma imprensa autônoma.Ela está presa ao poder doEstado. Os grandes jornais são dúbiosquando tratam da questão dademocracia e da questão da atuaçãodos órgãos governamentais.Eles são muito mais do lado de ládo que do lado de cá. Outro dia,por exemplo, eu vi um editorial naFolha de S. Paulo que é um despautério,dizendo que a reforma agráriadeveria ser feita através da cobrançado Imposto Territorial Rural(ITR). Isto é pura piada. Ou vocêfaz reforma agrária atendendoàs necessidades reais da populaçãoque está aí solta no espaço, ou vocênão faz e engana com o ITR. RA37


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>GLOBALIZAÇÃOESCONDE REALIDADETexto: Hamilton de SouzaIlustração: Maringoni38


Revista <strong>Adusp</strong>Exaltado, glorificado e até mesmo transformadona última panacéia da vida nacional,o processo de globalização – daeconomia, das comunicações e da cultura– comporta os mais variados entendimentos,desde a sua negação comoalgo novo na face da terra até sua afirmação comoalgo inédito, irreversível e incontrolável.A análise sobre o que está acontecendo despertainterpretações polarizadas, enfocadas sob prismasdiferentes e, muitas vezes, recheadas de aspectospolêmicos. Mas é exatamente no clima do debateque essa questão começa a ser estudada e aprofundada,muito além dos discursos oficiais e da superficialidadeda mídia.Na última reunião da SBPC, em julho, naPUC/SP, duas mesas-redondas sobre o tema bateramrecordes de público, especialmente estudantes. Acuriosidade pelo conhecimento está no ar. Afinal, achamada globalização tem sido associada à aberturadas fronteiras comerciais, à privatização do Estado,aos investimentos estrangeiros, à elevação dos padrõesde qualidade e eficiência, ao competitivismo,ao consumo ampliado de bens e serviços, ao acessotecnológico e até ao cenário de uma nova era naeducação e na cultura.Da mesma forma, estão sendo associadas à globalizaçãoa quebra de bancos, o aumento das concordatase falências, a desestruturação e a desnacionalizaçãode setores produtivos, o crescente desemprego, obombardeio aos direitos trabalhistas e sociais, a migraçãoda mão-de-obra, o refluxo sindical, a devastaçãocultural e o aumento das disparidades sociais.O relatório da ONU sobre o Índice de DesenvolvimentoHumano (IDH), divulgado dia 15 de julho,constata que as disparidades econômicas entre ospaíses industrializados e o mundo em desenvolvimentose acentuaram ainda mais nos últimos l5 anos,período em que se verifica a intensificação da globalização.Classificado em 58º lugar no IDH, o Brasilapresenta um desempenho inferior à média mundial,mesmo porque continua sendo o campeão de concentraçãoda renda.Além de analisar aspectos econômicos e sociais de174 países, e de apontar inúmeros desvios no desenvolvimentohumano, o relatório da ONU trata tambémdo “crescimento desenraizado”, alertando para ofato de que, no atual processo de globalização, muitasdas 10 milhões de culturas existentes no mundo corremo risco de marginalização ou desaparecimento.RealidadeAgosto 1996Professor de Filosofia Contemporânea na USP,Paulo Arantes diz que a primeira coisa a ser feita, aotratar desse assunto, “é parar de falar em globalizaçãoe modificar a conceituação sobre o que está ocorrendoatualmente”. Para ele, “globalização é um conceitomuito ambíguo, ideológico, apologético e fala de umacoisa que não existe”.Globalização, segundo Arantes, significa uma sociedadesem fronteiras, interdependência, paridade, fluxoem todos os sentidos, um conjunto de oportunidades eriscos para todos. “Isso é um mito”, diz ele, “não existe,é uma brincadeira, é um discurso, e as pessoas que estãofalando em globalização estão sonhando”.Depois de lembrar que a denominação surgiu nosanos 70, quando alguns professores universitáriosnorte-americanos passaram a falar em global tradepara orientar as políticas internacionais de suas empresas,Arantes afirma que a insistência em se dizer,hoje, que “nós estamos entrando numa nova era,porque a sociedade é global, o mercado é mundial,esconde alguma coisa”.Para ele, uma expressão mais adequada é mundializaçãodo capital. E, neste caso, o fenômeno nãoé novo, pois “o capital é mundial desde que existe,desde o século XIV”. Se é para falar em termos deabertura econômica, das empresas e dos mercados,diz Arantes, “a economia mundial já foi mais abertado que é hoje, no apogeu da hegemonia inglesa, entre1870 e 1914”.Outra coisa que descaracteriza a globalização é ofato de que pouquíssimas empresas são transnacionais.Segundo o professor Arantes, “a maior partedessas empresas ditas globais são, na verdade, corporaçõesmultinacionais baseadas nacionalmente”. Ouseja, todas elas preservam uma base nacional, umamatriz, um centro de controle cuja localização geográficanão é acidental.39


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>40Com relação ao fluxo do capital financeiro e dosinvestimentos diretos, que seria outro componentenum processo de globalização, diz Arantes, ele aconteceno interior da tríade Estados Unidos-Europa-Japão(sudeste asiático), onde estão baseadas 80% dascorporações mundiais. “Portanto, o fluxo se dá lá emcima, com algumas adjacências periféricas, mas o restoestá fora, o Brasil está fora”. O que está “globalizado”,segundo ele, é o capital especulativo, estimadoem 1 trilhão de dólares, que gira o mundo em 24horas, opera nas bolsas de vários países e que tambémestá concentrado nasmãos de poucos investidoresinternacionais.Paulo Arantes atribui àcrise de hegemonia do capitalnorte-americano “essasalterações de padrõescostumeiros”. Segundoele, “o fato é que os EstadosUnidos são o maiormercado, a maior potênciamilitar do mundo, asmaiores corporações estãolá, mas a economianorte-americana não crescehá 25 anos, e uma potênciasó é hegemônica setem condições de organizare gerir, capacidadeque os Estados Unidos perderam”.Então, o que acontece “é um interregno entre apassagem da hegemonia norte-americana e uma outrahegemonia que nós não sabemos ainda qual é, talvezseja a do sudeste asiático”. Para ele, nesse períodode crise de hegemonia ocorre o deslocamento docapital financeiro, que torna possível algumas coisas,entre elas a estabilização monetária em países periféricos.“Sem esse capital”, diz, “não há estabilizaçãomonetária no Brasil nunca.”Ao entrar em crise, a hegemonia norte-americana– que durante anos fortaleceu movimentos naperiferia – obrigou a classe dominante brasileira abuscar saídas para o seu modelo desenvolvimentista.A saída encontrada, segundo Arantes, “foi internacionalizarde outra maneira a mesma coalizão declasse”. Ele conclui que essa alteração é simplesmentede padrão desenvolvimentista, já que “o mesmopacto de dominação, a mesma coalizão de classeque vem dos anos 30, continua sem rachadura, semqualquer alteração”.Arantes diz que o Estado brasileiro, que “nuncafoi público nem popular, mas privado”, sempre atuoue continua atuando para, “através de uma políticamonetária de subsídios, de financiamentos e até depilhagem pura e simples, remunerar, igualmente, ossetores produtivos e improdutivos,os mais dinâmicose os mais atrasados,pois eles querem exatamentea mesma coisa”.Para o professor, a brigada classe dominantepor financiamento, a suainternacionalização,acrescenta “nada” para amaioria da sociedade brasileira.Ele considera ilusãodo presidente FernandoHenrique Cardosoachar que, no final do seugoverno, possa contar 20Paulo Arantes milhões de pessoas vivendoem padrões do chamadoprimeiro mundo. Aocontrário, a tendência é de aumentar a “relegação social”e de ampliar a “dessolidarização da classe dominante”,que terá o eixo dos seus negócios no exterior.O fato é que os Estados Unidos sãoo maior mercado, a maior potênciamilitar do mundo, as maiorescorporações estão lá, mas aeconomia norte-americana nãocresce há 25 anos, e uma potênciasó é hegemônica se tem condições deorganizar e gerir, capacidade que osEstados Unidos perderam.ControleEmbalado no discurso modernizante da globalização,o sociólogo e presidente Fernando Henrique admite,no texto incluído no relatório da ONU, que “assoluções para os problemas sociais não são apenas nacionais”,pois “a globalização limita as ações do Estadoe tem conseqüências ambivalentes para o desenvolvimentoda sociedade”.Mais adiante, no mesmo texto, ele diz: “Na décadade 60, os países do Terceiro Mundo buscaram uma no-


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996va ordem econômica internacional para corrigir as raízesda desigualdade internacional com sucesso limitado.Hoje em dia, as negociações globais Norte-Sul perderama sua força exatamente no momento em que aeconomia está sendo globalizada, e está surgindo umasuperestrutura homogeneizante mais preocupada coma liberdade de fluxos do que com a diminuição das desigualdades”.Se essa análise é para valer, o presidente reforça nãoapenas o caráter incontrolável do processo de globalização,inclusive para a formulação de políticas próprias dedesenvolvimento, comotambém revela um ambientede capitulação frente aocrescimento das desigualdadessociais, interno e externo.Ou seja, segue a cartilhaoficial ditada pelos interessesda internacionalizaçãodo capital, apesar doscustos constatados.Em artigo publicado noEstado de S. Paulo (6/7/96),o sociólogo Herbert deSouza, o Betinho, chamoua atenção exatamente paraessa onda de que “tudoacontece por causa da globalizaçãoe tudo se resolvepor meio da globalização”.Para ele, a “globalização não é somente o novo dogmados economistas, mas é principalmente a nova racionalidadedas instituições internacionais e multilateraise dos Estados nacionais; tudo acontece ou deve acontecerde uma determinada forma em função e comoconseqüência inexorável da globalização”.Para a professora de História da América LatinaContemporânea (USP), Zilda Iokoi, o problema deuma globalização ampla é justamente estabelecercontroles no planejamento e na execução. Ela consideraque o mercado e os recursos financeiros estejamem processo de globalização, mas “o resto não”. Oque está acontecendo, diz ela, é que “o centro do capitalismoestá tentando estabelecer gerenciamentossupranacionais, mas aí existe um descompasso entre oExemplo de resistência aos controlesmodernizantes são as comunidadesremanescentes dos quilombos,estimadas em mais de mil, que seapossaram de terras para fugir daescravidão e que até hoje vivemisoladas, com nenhum ou poucocontato com novas tecnologias e semqualquer vínculo com a globalização.planejamento centralizado e a execução”.Iokoi lembra que, historicamente “o Brasil é marcadopelo individualismo do modo de produção, herdadodo colonialismo”, e que essa fragmentação“acaba sendo fator de resistência à globalização”.Existe, segundo ela, todo um processo que “faz opaís se concentrar em torno do poder local; e omaior exemplo disso é o coronelismo no nordeste,onde o coronel tem o poder da territorialidade (seapropria da terra) e exerce esse poder com a práticada violência e o paternalismo”.Outro exemplo de resistênciaaos controlesmodernizantes são as comunidadesremanescentesdos quilombos, estimadasem mais de mil espalhadaspelo país, que se apossaramde terras para fugirda escravidão e que atéhoje vivem isoladas, comnenhum ou pouco contatocom novas tecnologias esem nenhum vínculo coma globalização.Iokoi enfatiza tambéma capacidade de transformaçãodas populações in-Zilda Iokoiterioranas para revertersituações, se adaptar, alterarmodo de vida, sem perder o rumo de sua trajetóriacultural. É o caso das comunidades rurais expulsasdas terras para a construção de barragens deusinas hidrelétricas, chamadas de “afogados”, que seorganizaram no Movimento Sem-Terra e lutaram duranteanos – no caso da Encruzilhada do Natalino,Rio Grande do Sul – até conseguirem constituir umanova comunidade agropecuária.Para a professora da USP, muitas dessas comunidades“modificaram enormemente o seu modo de produção”,foram influenciadas pela tecnologia e pelo mercado,mas “mantêm o sentido da propriedade individuale familiar”. Outro exemplo de adaptação é o dospovos da floresta, que passaram a valorizar a extraçãoe as lavouras comerciais, inclusive para exportação,41


Agosto 1996mas “com forte sentido de preservação da floresta”.“O que acontece”, diz ela, “é que muitos povos seapropriam de tecnologias difundidas na globalizaçãoe as adaptam conforme seus interesses, mantendoseus vínculos culturais.” A parte mais importante,nessas situações todas, “é do saber fazer”, na medidaem que essas populações têm sob o seu controle o seumodo de produção e seu modo de vida.No Brasil urbano, no entanto, onde, segundo Iokoi,as populações perderam boa parte de suas tradições,o processo acelerado de globalização econômicaprovoca alterações significativas no modo de vida,especialmente em função das relações de trabalho.Ela lembra que, nos últimos anos, esse processo matou60% da possibilidade de empregos na área industrial,no ABC paulista. “Setores inteiros estão se esvaziando,se desintegrando, com o fechamento demuitos postos de trabalho.”“Com isso”, afirma, “a alteração cultural é enorme”,na medida em que muitos trabalhadores são obrigados aentrar num processo de terceirização ou viver de subemprego,trabalhando como camelôs, submetidos à instabilidadee à desestruturação familiar e social. “Em váriossetores”, diz ela, “o conjunto da força de trabalho retornaà situação do século XIX, na questão dos direitos trabalhistase sociais.” O desdobramento imediato disso éa grande “dessindicalização existente, em função do desemprego,que atinge a região do ABC, onde está o sindicalismomais organizado e mais combativo do país”.Segundo Iokoi, “o processo de globalização excluia maior parte da população, cria novas massas de miseráveis”,que acabam buscando novas formas de inserçãosocial e cultural. Para ela, “essa volta da religiosidade,que avança em muitos lugares, é um apego aoque existe lá atrás”, uma tentativa de “reconstruir elosda experiência cultural, na lógica da re-humanização”.Ela acredita, no entanto, que “a onda neoliberalvai se esgotar em pouco tempo e surgirá uma necessidadede afirmação nacional, baseada na retomadados padrões de desenvolvimento regionais, com acriação de novas formas de gestão e de produção”.Segundo Iokoi, “a questão, no momento, é saber comoabrir caminho na mídia, já que o discurso dominantecorre solto, tratando como se fosse natural entrarno mundo globalizado”.ContradiçãoRevista <strong>Adusp</strong>Professor de Política Cultural na ECA-USP, JoséTeixeira Coelho Neto afirma que “a globalizaçãocultural é um processo complexo, fragmentário,contraditório e dinâmico”, sobre o qual “não dá paradizer que é uma coisa só e produz um único tipode efeito”. Segundo ele, “não é um fenômeno embloco, maciço, mas tem múltiplos aspectos com efeitoscontraditórios.”Teixeira Coelho diz que é possível notar “via comunicaçãode massa uma tendência de pasteurizar,que seria o movimento de uniformização; mas hátambém o movimento contrário de localismo, que sãofontes, grupos, que cultivam certos impulsos locais efazem questão de cultivar esses impulsos.” Então sãodois fenômenos que existem ao mesmo tempo.No sentido mais amplo da globalização cultural,relacionado ao comportamento e ao modo de vida,existe – para ele – uma uniformização maior. “É ocaso do uso do tênis pelo jovem norte-americano,pelo brasileiro, pelo japonês ou pelo cubano, quetambém quer usar.”Ele lembra, no entanto, que os estudos sobre localismoestão aparecendo justamente neste momentoem que se fala tanto de globalização. São estudosque tratam daquilo que está mais próximo, mais imediato:“Seria o provincial em contraposição ao nacional,ou, em muitos casos, o nacional é o localismo emrelação ao internacional”.No localismo, o que se observa, diz o professor, é aocorrência de “esforços até violentos para se manterdeterminados padrões culturais”. Na segunda metadedos anos 80, por exemplo, “o sentimento regional ficoumuito exarcebado aqui no Brasil, quando se vianos carros o adesivo ‘o sul é o meu país’; e isso nãoera da boca para fora, pois esse sentimento separatistasempre existiu e continua latente na região sul.”Teixeira Coelho diz que, no estudo da cultura, existe“uma certa tendência a valorar negativamente aglobalização, que é tratada como uma avalancha quevai passar por cima de tudo”. É freqüente encontrar,segundo ele, em estudos passados, registros de previsõescatastróficas sobre determinadas situações culturais,mas que não se realizaram.42


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Além do mais, afirma, “muitos movimentos utópicoscomo o marxismo e a religião católica sempre foramuniformizantes, globalizantes, e sempre apostarammuito na transformação da humanidade numa enormefraternidade”. O que acontece é que “a humanidadesempre perseguiu, de certa forma, uma meta unificadora,mas quando essa meta está chegando perto ela vêque tem problemas”. Assim, diz ele, “a humanidadesempre fica numa encruzilhada entre o pensamentounitário, que pode ser totalitário, e o pensamento divergente,que é responsável por todas essas diferenças,incluindo o racismo, o ceticismo, a luta, a agressão.”Para Teixeira Coelho, éinegável que “o Brasil estámais exposto a essa açãoniveladora, homogeneizadora,porque os nossos valoresnunca se firmaram enós não temos uma políticacultural de afirmação dessesvalores”. Ele aponta comoexemplo inverso a situaçãoda França, que alémde ter uma sólida históriacultural, “tem política culturalpara defender seusvalores e para preservarsua identidade tradicional.”Essa ação globalizantena cultura, segundo ele,“está entrando muito fortepelos meios de comunicação, pelo cinema e principalmentepelo comportamento das pessoas”. E TeixeiraCoelho não considera isso negativo, ao contrário:“Acho que a inundação de informação que estáacontecendo hoje em dia faz com que as pessoaspensem duas vezes”. Ele lembra, como exemplo negativo,a atitude do governo do Irã, que mandou arrancartodas as antenas parabólicas das casas paraque ninguém veja os canais de televisão de outrospaíses. “Lá, o movimento religioso fundamentalistatem uma política declarada contra a modernidade.”Em pesquisa recente, relatada no livro Globalizaçãoe identidade cultural na América Latina, a professoraMaria Nazareth Ferreira, da ECA/USP, registraExiste uma certa tendência avalorar negativamente aglobalização, que é tratada comouma avalancha que vai passarpor cima de tudo. É freqüenteencontrar em estudos passadosregistros de previsõescatastróficas sobre determinadassituações culturais, mas que nãose realizaram.inúmeras observações sobre os danos – econômicos,sociais e culturais – provocados pelo crescente processode globalização.Segundo ela, “os países do Terceiro Mundo, especificamentesuas classes subalternas, obrigadas a seguiras determinações do processo econômico globalpara garantir sua sobrevivência, estão alterando ostraços mais significativos de sua identidade; e muitosdos problemas relacionados com esta transformaçãoestão ligados ao ritmo intenso das mudanças, que impedeuma assimilação das novas reservas simbólicas edo novo modo de vida”.Nazareth Ferreira observaque “esse processo de modernizaçãotem por objeto a inserçãoformal destas populaçõesno mercado de consumode bens materiais e simbólicos”,e que “não é de interessedas elites que comandam aglobalização a participaçãoefetiva das classes despossuídasna tomada de decisão sobreo rumo que esta situaçãovenha a seguir, nem as suasconseqüências”.Ainda de acordo com aprofessora, “as mudanças emandamento na globalização,propostas pela nova fase deacumulação monopolista docapital internacional, trouxeram conseqüências gravespara a questão cultural, na medida em que esta sofreum processo de transnacionalização sem precedentesna história da humanidade: a expansão das indústriasculturais, a concentração e privatização dos media, aexpansão e homogeneização das redes de informação,o debilitamento do Estado e do sentido do que é públicoe privado, são as condições necessárias para garantira eficiência e racionalidade dos mercados”.Assim, a questão da globalização, mitificada ounão, panacéia ou não, sugere um amplo caminho deestudos e debates, e, especialmente, muita polêmica –não apenas nos seus aspectos econômicos e sociais,mas também nos seus aspectos culturais. RATeixeira Coelho43


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>O TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGASE A INFLUÊNCIA DO CAPITALISMOMoreira Mariz/Abril ImagensA partir dos anos 80, o mundo passou a acompanhar o boom do tráficointernacional de drogas e o conseqüente consumo. Esse crescimento estáintimamente relacionado à crise econômica mundial, e o narcotráfico chega adeterminar padrões econômicos nos países produtores de coca, cujos principaisprodutos de exportação têm sofrido sucessivas quedas em seus preços. Professor doDepartamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUSP, Osvaldo Coggiola mostra que o tráfico internacional movimenta uma cifraanual superior a US$ 500 bilhões, valor superior ao que gira em torno do comérciode petróleo. O montante de dinheiro envolvido com o narcotráfico é superadoapenas pelo tráfico de armamento no mundo, segundo dados do professor da USP.44


Revista <strong>Adusp</strong>Otráfico internacionalde drogas cresceuespetacularmentedurante osanos 80, até atingir,atualmente,uma cifra anual superior a US$ 500bilhões. Esta cifra supera os proventosdo comércio internacionalde petróleo; o narcotráfico é o segundoitem do comércio mundial,só sendo superado pelo tráfico dearmamento. Estes são índices objetivosda decomposição das relaçõesde produção imperantes: o mercadomundial, expressão mais elevadada produção capitalista, está dominado,primeiro, por um comércioda destruição e, segundo, por umtráfico declaradamente ilegal.Na base do fenômeno encontrasea explosão do consumo e a popularizaçãoda droga, especialmentenos países capitalistas desenvolvidos,que é outro sintoma da decomposição.O tráfico de drogasfoi sempre um negócio capitalista,por ser organizado como uma empresaestimulada pelo lucro. Namedida em que a sua mercadoria éa autodestruição da pessoa, o consumoexpressa a desmoralizaçãode setores inteiros da sociedade.Os setores mais afetados são precisamenteos mais golpeados pelafalta de perspectivas: a juventudecondenada ao desemprego crônicoe à falta de esperanças e, no outroexemplo, os filhos das classes abastadasque sentem a decomposiçãosocial e moral. O primeiro episódiode consumo maciço de drogasaconteceu durante a mais impopulardas guerras protagonizada pela“sociedade opulenta”: a Guerra doVietnã. Durante o período dosconflitos, 40% dos soldados norteamericanosconsumiam heroína e80% maconha. Apenas 8% delescontinuaram a consumir drogasuma vez de volta “em casa”.Para se ter uma idéia da pressãoque o narcotráfico exerce sobreas economias dos países atrasados,um exemplo basta. A 28 desetembro de 1989, foi feita em LosAngeles a maior apreensão de cocaínajá realizada: 21,4 toneladas,cujo preço de venda ao públicoatingiria US$ 6 bilhões, uma cifrasuperior ao PNB de 100 (cem) Estadossoberanos. A grande transformaçãodas economias monoprodutorasem narcoprodutoras (eo grande salto do consumo nosEUA e na Europa) se produziu duranteos anos 80, quando os preçosdas matérias-primas despencaramno mercado mundial: açúcar (64%),café (-30%), algodão (-32%), trigo(-17%). A crise econômica mundialexerceu uma pressão formidávelem favor da narco-reciclagemdas economias agrárias, o que redundounum aumento excepcionalda oferta de narcóticos nos paísesindustriais e no mundo todo. Apenasnos últimos anos o tráficomundial cresceu 400%. As apreensõesde carregamentos se multiplicarampor noventa nos últimosquinze anos, ainda assim afetandoapenas entre 10 e 20% do comérciomundial.HistóricoO tráfico internacional de drogas,em alta escala, começou a desenvolver-sea partir de meados daAgosto 1996década de 70, tendo tido o seuboom na década de 80. Esse desenvolvimentoestá estreitamente ligadoà crise econômica mundial. Onarcotráfico determina as economiasdos países produtores de coca,cujos principais produtos de exportaçãotêm sofrido sucessivasquedas em seus preços (ainda quea maior parte dos lucros não fiquenesses países) e, ao mesmo tempo,favorece principalmente o sistemafinanceiro mundial. “O dinheiro dadroga corresponde muito bem à lógicado sistema financeiro, que éeminentemente especulativo. A finançaestá cada vez mais desvinculadada economia, em nenhumpaís corresponde ao desenvolvimentoeconômico real nem tãopouco à produção (...) O sistemafinanceiro necessita cada vez maisde capital fresco para girar, e osnarcodólares são como um capitalmágico que se acumula muito rápidoe se move velozmente”.Atualmente, o narcotráfico éum dos negócios mais lucrativos domundo. Sua rentabilidade se aproximados 3.000%. Os custos deprodução somam 0,5% e os detransporte gastos com a distribuição(incluindo subornos) 3% emrelação ao preço final de venda.De acordo com dados recentes, oquilo de cocaína custa US$ 2.000na Colômbia, US$ 25.000 nosEUA e US$ 40.000 na Europa.A América Latina participa donarcotráfico na qualidade de maiorprodutora mundial de cocaína, eum de seus países, a Colômbia, detémo controle da maior parte dotráfico internacional (a pequenaparte restante é dividida entre a45


Agosto 199646Máfia siciliana e a Yakuzá japonesa).A cocaína gera “dependência”não apenas em indivíduos, mastambém em grupos econômicos eaté mesmo nas economias de algunspaíses, como por exemplo nosbancos da Flórida, em algumasilhas do Caribe ou nos principaispaíses produtores –Peru, Bolívia eColômbia, para citar apenas os casosde maior destaque. Com relaçãoaos três últimos, os dados sãoimpressionantes. Na Bolívia, os lucroscom o narcotráfico chegam aUS$ 1,5 bilhão contra US$ 2,5 bilhõesdas exportações legais. NaColômbia, o narcotráfico gera deUS$ 2 a 4 bilhões, enquanto as exportaçõesoficiais geram US$ 5,25bilhões. Nesses países, a corrupçãoé generalizada. Os narcotraficantescontrolam o governo, as forças armadas,o corpo diplomático e atéas unidades encarregadas do combateao tráfico. Não há setor da sociedadeque não tenha ligaçõescom os traficantes, e até mesmo aIgreja recebe contribuições destes.No Peru e na Bolívia, parte daprodução de coca é legal e destina-seao consumo tradicional(mastigação das folhas para combateros efeitos da altitude), à indústria(chás e medicamentos) e àexportação (o Peru exporta 700 toneladasde folhas de coca por anopara a Coca-Cola).O Peru é o maior produtormundial de coca. Segundo a OrganizaçãoMundial da Saúde, 100 milcamponeses peruanos cultivam 300mil hectares de coca. Apenas 5%dessa produção é utilizada parafins legais. Com o resto, o tráficoabastece 60% do mercado mundial.Esses camponeses são massacrados,alternadamente, pela guerrilha,pela máfia e pelas tropas derepressão ao tráfico.Dependência econômicaNa Bolívia, a dependência emrelação ao narcotráfico chega aoextremo. Os traficantes detêm ocontrole das principais empresas, acorrupção atinge níveis inacreditáveise, de acordo com a CEPAL, apopulação desempregada passoude 19% da população ativa em1985 para 35% no ano seguinte.De cada três bolivianos, um lucracom os derivados do narcotráfico.Há estimativas, que coincidemcom os dados da CEPAL, segundoas quais 65% da economia do paíspertencem ao setor informal.A Colômbia especializou-se emtransformar a pasta-base produzidapor Peru e Bolívia em cocaína e exportá-lapara o resto do mundo.Dois grandes cartéis (Cali e Medellín)controlam a maior parte do narcotráficono país. Entretanto, existemcentenas de pequenos traficantes,muitos dos quais roubam a drogados grandes cartéis. O país estápor completo nas mãos dos narcotraficantes.O Congresso e a polícianacionais disputam o primeiro lugarem grau de corrupção, a até mesmoas campanhas presidenciais são patrocinadascom dinheiro da droga.Cada novo governo colombiano seesforça para repatriar os lucros obtidoscom o trafico internacional decocaína. Dos cerca de US$ 16 bilhõesanuais obtidos pelos narcotraficantes,apenas entre US$ 2 e 4 bilhõesvoltam ao país.Revista <strong>Adusp</strong>A expansão dessa atividade naAmérica Latina significou a degradaçãode países inteiros ao simplespapel de apêndices do narcotráfico.A coca já representa 75% do PIBboliviano, e 23% de outras nações.Semelhantes porcentagens tornamridícula a denominação “economiainformal”. Os grupos principais dasburguesias nacionais realizaram suareconversão pela “economia do crime”,dominando os recursos dosEstados e monopolizando um acúmulode riquezas que permitiu aosmafiosos colombianos situarem-seno ranking dos multimilionários domundo. A transformação do mineiroboliviano em cultivador de coca ea substituição das melhores áreasagrícolas por cultivos do insumo básicoda droga são determinantes dopavoroso estancamento da economiadesse país, que alguns experts deHarvard elogiam cinicamente porsua “estabilidade monetária”. Que acoca represente a única saída de sobrevivênciapara os peruanos desempregadosdas cidades ou migrantesda desertificação rural é outraevidência do mesmo processo deregressão econômica. Em meio aosassassinatos cotidianos, a Colômbiaé uma vitrina por onde se vê o esbanjamentode um grupo de cartéisque, seguindo a tradição das oligarquiaslatino-americanas, gastam emimportações suntuosas um volumede dinheiro que permitiria saldar adívida externa deste país. Comoocorreu no passado com a borracha,o guano e o açúcar, a monoexportaçãode coca é mais um episódio dadevastação agrária, do empobrecimentocampesino e do desperdíciorentístico da região.


Revista <strong>Adusp</strong>A “narcoeconomia” não é umâmbito delituoso socialmente homogêneocomo apresenta a destorcidapropaganda policial-imperialista.O grosso dos camponeses eoperários “pisadores” que se vêemforçados a cultivar e processar a cocanão só mantêm sua condição desuperexplorados como sofrem a renovadapressão do aparato do Estadoe dos cartéis, associados em“esquadrões da morte” e em bandosde pistoleiros do latifúndio. Osmesmos beneficiários do tráficocriaram o fantasma do “narcoterrorismo”e da narcoguerrilha” paraencobrir sua ação criminal.Mercado consumidorJá foi largamente demonstradoque a oferta de coca latino-americanaé simplesmente a resposta àdemanda dos 40 milhões de consumidoresdas drogas legais. Se sesoma a esta cifra os diversos tiposde psicofármacos aceitos, emborasejam igualmente danosos para asaúde, salta à vista que a “narcoeconomia”satisfaz um mercado incomensuravelmentemaior que oalcoolismo e o tabagismo tradicional.A América Latina se degradaao ver-se obrigada a integrar-se comoabastecedora da importantepopulação dos países desenvolvidosque recorre aos excitantes ecalmantes artificiais para evadir-seda alienação laboral, da falta dehorizontes sociais, ou da destrutivacompetição hiperindividualista impostapelo mercado. O consumode drogas, que o capitalismo universalizoue massificou em cadaAgosto 1996época em grupos sociais e nacionaisdiferentes, esteve, na décadade 80, diretamente associado à extensãoda marginalidade, da pobrezae da desocupação. O capitalismosó pode oferecer crack, cocaínae heroína aos jovens que nãoemprega, aos emigrantes que expulsa,às minorias que discriminaou aos trabalhadores que destrói.Na América Latina só reingressamentre 2 e 4% dos US$ 100 bilhõesque produzem anualmente asvendas de cocaína nos Estados Unidos.A parte mais lucrativa do negócioé incorporada pelos bancoslavadores e, em menor medida, pelospróprios cartéis, que internacionalizarama distribuição de seus lucros,seguindo o padrão de fuga decapitais que desenvolveram as burguesiaslatino-americanas na últimaJorge Rosenberg/Abril Imagens47


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>década. O preço dacoca na plantaçãoboliviana é 250 vezesmenor que nosEUA. A mesmamercadoria no portocolombiano é cotada40 vezes menos quenas cidades norteamericanas.Essaimpressionante diferençaé uma manifestaçãotípica do intercâmbiodesigualque governa os preçosde todas as matérias-primas latino-americanas.Combate americanoPara o principal país consumidor,os EUA, o narcotráfico é, àprimeira vista, um grande problema.Bilhões de dólares têm sidogastos na guerra aos traficantes, eigual quantia tem sido perdida emconseqüência do vício dos cidadãosnorte-americanos (gastos com reabilitação,perdas na produção, aumentoda criminalidade etc).Por outro lado, o narcotráfico éde grande utilidade para os EUA,chegando a gerar lucros: “A economianorte-americana vende parteimportante dos componentes químicos,recebe cerca de US$ 240 bilhões,uma parte dos quais se destinaa repor capital no mesmo ramode produção da droga e outra é investidaem outros setores da economiaou vai para os bancos”. Os bancosda Flórida são especializadosem “lavar” o dinheiro dos narcotraficantese neles circula mais dinheiroefetivamente do que nos bancos48Plantação de maconha na Bahia.de todos os demais estados juntos.Os EUA recorrem ao protecionismopara resguardar seus “narcoprodutores”da competição externa.Utiliza desfolhantes contra o cultivode marijuana no México, parafavorecer seu desenvolvimento naCalifórnia; destrói laboratórios dedrogas proibidas no Peru e na Bolíviapara reforçar o envenenamentolegalizado que realizam os monopóliosfarmacêuticos com estupefacientessubstitutivos; luta contra asdrogas naturais e processadas emdefesa das sintéticas, patenteadas ecomercializadas pelos grandes laboratórios;guerreia contra os cultivadoreslatino-americanos auxiliandoseus velhos sócios do sudeste asiático.A repressão extra-econômica aotráfico é a forma de regular os preçosde um mercado potencialmenteestável pelo caráter viciante do produto.Com a “guerra ao narcotráfico”,os EUA tratam de salvaguardarsuas companhias químicas provedorasde insumos para o processamento,propiciando, em geral,uma “substituição de importações”no grande negócio de destruir aGildo Lima/Abril Imagenssaúde e a integridadede uma parteda população.A “narcoeconomia”está afetadapelos mesmosciclos de superproduçãoquequalquer outrosetor e, por isso, oimperialismo apelaaos instrumentosclássicos deguerra comercial,buscando barateara produção local e encarecer acompetição latino-americana. Éevidente que a militarização recente,com o pretexto de “lutar contrao flagelo da droga”, é um aspectoda recolonização comercial e dachantagem financeira sobre aAmérica Latina. A nova leva detropas da marinha enviada à regiãoestá muito mais relacionada com aIniciativa das Américas e o PlanoBrady do que com o narcotráfico.É inaceitável supor que a invasãodo Panamá, o bloqueio naval à Colômbia,a instalação de bases naBolívia e no Peru, a militarizaçãoda fronteira mexicana, a introduçãode uma jurisprudência avassaladorada legislação latino-americanaestejam motivadas na erradicaçãodo narcotráfico. Busca-se asubstituição da “ameaça do comunismo”por um perigo equivalente.O domínio do comércio de narcóticosfoi, desde o século passado,um campo de rivalidades interimperialistase, por isso, a atitude dosgovernos estadunidense frente aoproblema nunca se baseou em consideraçõessanitárias, mas nas al-


Revista <strong>Adusp</strong>ternantes necessidades políticas.Isso explica o oscilante predomíniode períodos de tolerância e repressão,permissividade e perseguição,e o tratamento do consumidor comodelinqüente ou enfermo.Na prática, os EUA aumentamsua intervenção na América Latinaem defesa de um clã contra outro,ou para arbitrar as sangrentas lutasentre eles. A “narcoeconomia”,longe de ser um submundo alheioà norma capitalista, está rigorosamenteorganizado de acordo comos parâmetros da “economia demercado”. Os objetivos das máfias–captura de mercados, monopóliode preços e domínio sobre os segmentosmais lucrativos– são metastipicamente capitalistas. As economias“subterrâneas” e legalizadasmantêm infinitos vínculos entre si,e a existência de crise num setor setransmite ao outro.Envolvimento dos bancosO papel central da “narcoeconomia”no capitalismo contemporâneose detecta no peso alcançadopela “lavagem do dinheiro” no sistemafinanceiro. Todos os bancosde envergadura, desde o Bostonaté o Crédit Suisse, participam nestaoperação. Pelas somas envolvidas,a “lavagem” seria impossívelsem a cumplicidade dos banqueirosque intermediam a legalização dodinheiro sujo e a sua conversão emativos, empresas ou imóveis. Nosúltimos anos os bancos criaram paraísosfiscais nos quais se lava, diariamentee à vista de todos, entreUS$ 160 e 400 milhões. Essa associaçãoentre mafiosos e banqueirosse apóia, em última instância, no sigilobancário –um princípio intocávelpara o capitalismo– por ser umpilar da propriedade privada, naconfidencialidade dos negócios ena livre disponibilidade do capital.As denúncias de lavagem, acampanha antidroga e as controvérsiassobre a legalização de certosnarcóticos expressam a enorme rivalidadeinterbancária que existe nonegócio da “lavagem”, especialmenteentre o tradicional centrosuíço e seus competidores do Caribe,Panamá e Uruguai.Os lucros produzidos pelo narcotráficode maneira nenhuma enriquecemos países produtores. NosEUA, calcula-se em 20 milhões onúmero de consumidores regularesde drogas, que em 1988 gastaramUS$ 150 bilhões. Desse total, entreUS$ 5 e US$ 10 bilhões foram oslucros dos cartéis produtores naColômbia. Mas apenas US$ 1 bilhãofoi investido na economia oficialdo país. E o restante? Calculaseque 90% dos lucros do narcotráficosejam recebidos pelos grandesbancos, por depósitos dos produtorese dos intermediários, e por comissõespela “lavagem” do dinheiro.As medidas tomadas pelas autoridadesdos EUA contra as operaçõesbancárias de cumplicidadecom os traficantes são risíveis: entreos bancos que sofreram sançõespor não terem declarado transaçõesfigura o First National Bankof Boston, que expediu para o exteriorUS$ 1,2 bilhão em notas pequenas.A comissão de 3% pagapelos traficantes (US$ 36 milhões)torna irrisória a multa de US$ 500mil imposta ao banco. O que seAgosto 1996multa, no caso, é a ilegalidade daoperação, não a origem criminosado dinheiro protegido pelo sacrossanto“sigilo bancário”.Eis porque a política dos EUA,que ataca apenas os traficantes diretos,não consegue impedir o crescimentodo narcotráfico e dos seuslucros. Ao reduzir parcialmente aoferta, deixando intocado o aparatofinanceiro, só se consegue “um aumentodos lucros, recapitalizandoconstantemente as redes de produçãoe distribuição, a ampliação geográficada produção e a fixação deum piso mínimo para a cocaína”. Arepressão da oferta só conseguiuelevar o preço da cocaína pura nosEUA, e pôr em circulação um produtosuperdegradado para consumo“popular”: o mortal crack.O capital financeiro internacionalfica com a parte do leão, o quenão impede que os grandes produtoresse tornem um fator decisivona economia de seus países. NaColômbia, as exportações de cocaínaatingem US$ 50 bilhões,três vezes o PNB. Os narcoempresáriosinvestem 45% em propriedadesurbanas e rurais, 20% emgado, 15% em comércio e 10% naconstrução e no lazer. Mas não seconformaram com a riqueza, quiseramtambém poder. Em 1989foram reveladas as negociaçõesentre representantes do governo eo Cartel de Medellín. A semilegalidadeconcedida aos narcotraficantes,a sua aliança com a burguesiae o governo, visam os objetivosmais reacionários: “Os narcotraficantescolombianos aliaram-seaos fazendeiros e às forçasde segurança de modo a proteger49


Agosto 1996seus interesses comuns contra osgrupos guerrilheiros e contra ascrescentes demandas de reformapolítica e econômica dos setoresmais carentes”. O resultado dessaaliança foi a complementação daação da polícia com a dos “esquadrõesda morte”, que, em númerode 140, submetem a uma verdadeiratutela terrorista a vida políticae social do país.Na Colômbia, os traficantes estãoentrelaçados com a oligarquiatradicional, mediante a compra deterras ou a substituição das culturasagrícolas, o que deu uma saídaaos proprietários arruinados pelabaixa do preço internacional docafé. A desintegração do capitalismocolombiano, golpeado pelacrise mundial, faz os traficantesflorescerem.Na Bolívia, a reciclagem narcóticada economia foi diretamenteimpulsionada pelo Estado militarimposto a partir do final de 1971.O velho narcotráfico boliviano,marginal até então, à diferença dopassado, quando seu crescimentodependia da sua capacidade de gerarexcedentes, desenvolveu-segraças a dois novos fatores: generososcréditos da banca estatal eprivada (milhões de dólares), subsídiose impunidade pelo seu entrosamentocom os organismos derepressão ou pelo apadrinhamentooficial. Em 1976, Kissinger viajousecretamente à Bolívia, oferecendocréditos de US$ 45 milhões paraimpedir o progresso da cultura decoca. Mas os lucros do tráfico falarammais alto: os “narcos” chegarama tomar o poder através do generalGarcía Meza.50Guerra do ÓpioRevista <strong>Adusp</strong>O comércio de drogas estevevinculado à expansão internacionaldo capitalismo e também à sua expansãocolonial-militar, como testemunhaa Guerra do Ópio (1840-1860), resultante da postura da Inglaterracomo promotora do tráficode ópio na China do séculoXIX, bem como das plantaçõesdesse mesmo narcótico em territórioindiano. A Inglaterra, como ésabido, mas pouco divulgado, auferialucros exorbitantes da ordemde £ 11 milhões com o tráfico deópio para a cidade chinesa de Lintim.Ao passo que o volume de comérciode outros produtos não ultrapassavaa cifra de £ 6 milhões.Em Cantão, o comércio estrangeirooficial não chegava a US$ 7 milhões,mas o comércio paralelo emLintim atingia a quantia de US$ 17milhões. Com este comércio ilegal,empresas inglesas, como foi o casoda Jardine & Matheson, contribuírampara proporcionar uma balançacomercial superavitária para aInglaterra, mesmo que, para tal,fosse necessário o uso de naviosarmados a fim de manter o contrabandolitorâneo. Tudo isso aconteciacom a aprovação declarada, edocumentalmente registrada, doParlamento inglês, que por inúmerasvezes manifestou os inconvenientesda interrupção de um negóciotão rentável.A extraordinária difusão doconsumo do ópio na Inglaterra doséculo XIX, ilustrada literariamentena popular figura do detetivecocainômano Sherlock Holmes, foium sintoma da crise do colonialismoinglês. Nas palavras de KarlMarx (O capital) a idiotice opiáceade boa parte da população inglesaera uma vingança da Índia contrao colonizador inglês. Foi o que levoua própria Inglaterra a promover,em 1909, uma conferência internacional,em Xangai, com a participaçãode treze países (a OpiumCommission). O resultado foi aConvenção Internacional do Ópio,assinada em Haia em 1912, visandoo controle da produção de drogasnarcóticas. Em 1914, os EUAadotaram o Harrison Narcotic Act,proibindo o uso da cocaína e heroínafora de controle médico. Severaspenas contra o consumo foramadotadas em convenções internacionaisdas décadas de 20 e30. Desde o início, a repressão privilegiouo consumidor.Com a nova explosão de consumo,uma nova mudança se opera,e, em abril de 1986, o presidenteReagan assina uma Diretiva de SegurançaNacional, definindo onarcotráfico como “ameaça para asegurança nacional”, autorizandoas forças armadas dos EUA a participaremda “guerra contra asdrogas”. Em 1989, o presidenteBush, numa nova diretiva, amplioua anterior, com “novas regras departicipação” que autorizavam asforças especiais a “acompanhar asforças locais de países hospedeirosno patrulhamento antinarcóticos”.No mesmo ano, cursos “para combaterguerrilheiros e narcotraficantes”tiveram início na Escoladas Américas de Fort Benning, antigamentesediada no Panamá,vestibular de todos os ditadores latino-americanos.


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Articulação americanaO aspecto mais importante, emenos comentado, da articulaçãoEUA/governos constitucionais latino-americanosversus tráfico dedrogas, é a criação de uma inéditajurisprudência avassaladora da soberanianacional da América Latina.O tratado de extradição com aColômbia se enquadra nessa categoria,assim como a decisão de fevereirode 1990, da Suprema Cortedos EUA (perseguição e capturade estrangeiros pelas forçasdos EUA, dentro e fora dopaís, não estão sujeitas àQuarta Emenda da Constituiçãodos EUA), que abriuas portas a intervenções ilimitadas,como a da políciaantidroga dos EUA (DEA),seqüestrando o presumidotraficante Álvarez Machain,no México, ou oexército capturando Noriega,no Panamá. Os EUA estabeleceramunilateralmente nadamenos do que a sua superioridadejurídica perante os países latinoamericanose do mundo inteiro.Que esta jurisprudência nadamais é do que a ante-sala da intervençãomilitar direta fica provadopelos exemplos anteriormente citadose também pela crescente militarizaçãoda fronteira dos EUA com oMéxico. A droga é o pretexto paraesse objetivo: “Se os EUA tivessemvontade política de combater o narcotráficopoderiam exercer um severocontrole das exportações de produtosquímicos para fabricação daPBC (Pasta de Base da Cocaína),que provém da Shell e da Mobil Oil,como constatou a própria DEA(The Miami Herald, edição de 8 defevereiro de 1990); agir contra osbancos norte-americanos que lavamos narcodólares; e estender um cordãode radares e barcos para impedira entrada da droga, em vez de fazerisso nos países da América doSul”. Ou, como se perguntam doisexperts norte-americanos: “Por quenão se faz a guerra também contraos países produtores de ópio e heroína,que consomem nos EUA 50%dos gastos totais em drogas? Por queEstamos diante de uma vastaoperação política que visa, sobpretexto de repressão ao tráfico dedrogas, acabar com aindependência nacional dos paísesatrasados e reforçar a direitizaçãodo Estado capitalista nos EUA.não fazê-la contra os produtores californianosde maconha, que, depoisde substituir a Colômbia no primeirolugar do fornecimento dessa droga,colocaram os EUA entre os trêsprimeiros produtores mundiais? Estatísticasoficiais mostram que a produçãode maconha nos EUA dobrounos últimos dois anos, expandindose38% só em 1988”.O enfoque apontado tambémprevalece nos documentos oficiaisdos EUA no que diz respeito aosproblemas internos: “A lei dos EUAtem que ser reforçada, reduzindo osbenefícios para os traficantes e aumentandoos riscos para os consumidores.Os EUA podem criar ummodelo tanto para a redução da demandaquanto para o reforço do sistemajudicial”. Mas o enfoque baseadona repressão do consumo eda oferta é inútil por definição: ospaíses latino-americanos produziramentre 162 mil e 211,4 mil toneladasde cocaína em 1987. Isso é cincovezes o necessário para abastecero mercado dos EUA, que só conseguiuapreender entre 10 e 15% dacocaína enviada. Esse enfoque serveapenas para reforçar o controle dapopulação pelo Estado, e para manipulaçõescom objetivos políticosreacionários, cujo alcancea remoção do prefeito negrode Washington, MarionBarry, só exemplificou.Estamos, portanto, diantede uma vasta operaçãopolítica que visa, sob pretextode repressão ao tráficode drogas, acabar com aindependência nacional dospaíses atrasados e reforçara direitização do Estado capitalistanos EUA.Incapaz de cortar a “oferta”, oque exigiria atacar a fundo o direitode propriedade (sigilo bancário), ocapitalismo em decomposição émais impotente ainda para enfrentara demanda, já que é absolutamenteincapaz de abrir uma via progressivapara o desenvolvimento social.O fim da droga é insolúveldiante do capitalismo. Somente aexpropriação do capital, a liquidaçãodo Estado burguês e a aberturade perspectivas libertadoras eprogressistas para a humanidade,vale dizer, somente com a revoluçãosocialista, o flagelo da drogapoderá ser extirpado pela raiz. RA51


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>O DRAMA DA PREVIDÊNCIAAJUSTAR PARA GANHAR TEMPO E PRIVATIZARRuy BritoAproposta governamental com o alegadopropósito de reformar o RegimeGeral de Previdência Social (RGPS) eos Regimes Especiais dos servidorespúblicos, civis e militares, persegue,na realidade, apenas dois objetivos–um deles não assumido oficialmente: é como “oamor que não ousa confessar seu nome”.O primeiro consiste em um ajuste fiscal com duasfaces. Em uma, o aumento das taxas de contribuição ea imposição de novos tributos. Na outra, a extinção dealguns e a restrição a outros benefícios pelos quais, noRGPS, os aposentados e os segurados ativos já pagaram,estão pagando e vão continuar a pagar. Seus efeitospara o equilíbrio da previdência serão de curta duração,a exemplo dos ajustes anteriores. Como reforma,será mais um fracasso, previsto com antecedência.O segundo, não assumido, antes negado, é o decriar as condições políticas, favorecidas pelo fracassodo primeiro, para a privatização de todos os Regimes,transformando-os em um negócio lucrativo como pretendem,há muitos anos, bancos, seguradoras e empresasque exploram a previdência complementar eos planos de saúde. Entre as medidas com essa finalidade(de privatizar), as mais evidentes são:- a permanência do regime de repartição na previdênciapública, mantendo-a instável financeiramente,portanto, incapaz de conservar estáveis as taxas decontribuição impostas aos segurados e de contribuirpara a formação da poupança interna, o que só é possívelno regime de capitalização, preservado apenasna previdência complementar, onde se pretende privilegiaros fundos mantidos por empresas privadas e osadministrados comercialmente pelas empresas insta-52


Revista <strong>Adusp</strong>ladas na previdência. Sob o enfoque da gestão financeira(salvo motivação política não confessada) nãohá nenhuma justificativa que explique a adoção de regimestão diferentes para a previdência básica públicae para a complementar privada, pois, a longo prazo,os encargos de ambas são idênticos: uma é complementarda outra;- as restrições unilaterais impostas aos fundos depensões dos entes estatais, como se os mantidos porempresas privadas, muito mais generosos, não fossemfinanciados pelos contribuintes, através do TesouroNacional;- a supressão do § 7º do artigo 201 da Constituição,que autoriza a previdência pública a instituir segurocoletivo, de caráter complementar e facultativo; e- o envio recente ao Congresso do projeto que instituio Fundo de Aposentadoria Programada Individual(FAPI) e o Plano de Incentivo a AposentadoriaProgramada Individual, como investimento de risco,administrado por bancos e seguradoras, cópia incompletado modelo mercantilista do Chile. Fato que confirmarevelações feitas a empresários por autoridadesda área econômica. Uma do ministro da Fazenda, PedroMalan, em Santiago do Chile: “O governo brasileirotem a intenção de privatizar o sistema elétrico, aindústria petroquímica, a previdência....” (in: Gazetado Povo, de Curitiba, 11.05.95); a outra, do ex-ministrodo Planejamento, José Serra, no seminário “Brasil2000” , promovido em São Paulo pela Revista Exame,considerando “necessário existir uma possibilidadeconstitucional de privatizar a Previdência e que o projetode reforma enviado pelo governo ao Congressoprevia isso”. (in: Gazeta do Povo, de 31.05.96.)Apenas isso. Não é reforma. É um engodo.De outro lado, o substitutivo aprovado em primeiradiscussão na Câmara Federal, além de ser inoperantecomo solução porque acolhe, sem mudançassubstantivas, a concepção e os objetivos da propostagovernamental, ainda devolve às seguradoras privadaso seguro de acidentes do trabalho, como se ignorasseque a incorporação desse seguro à previdência,nos anos 60, não fosse o resultado das fraudes e irregularidadescometidas costumeiramente pelas seguradoras.As quais, à época, em vez de serem punidasexemplarmente, foram recompensadas com a criaçãodo seguro obrigatório de danos pessoais causados poracidentes de trânsito.Com essa concepção, não solucionará nenhum dosgraves problemas daqueles Regimes, especialmenteos dos servidores públicos, cuja situação é dramática.Regime GeralAgosto 1996É consensual a constatação de que o desequilíbriocrescente entre a receita e os encargos do RGPS se situaem especial a) no não recolhimento das contribuiçõesdevidas pela União, Estados, municípios e poruma minoria empresarial (que não recolhe suas contribuições,e se apropria das descontadas de seus empregados);b) na demagógica criação de benefíciossem cobertura financeira; c) na dilapidação das reservastécnicas formadas na vigência do regime financeirode capitalização; d) na sonegação, que reduz emmais de 40% a receita contributiva; e) no “arrocho salarial”da redução deliberada dos salários reais quereduziu, na mesma proporção, a receita contributiva;f) nas costumeiras anistias aos empresários faltosos,estimulando a inadimplência e a prática dos crimes desonegação e de apropriação indébita; e g) na aplicaçãoindevida e no desvio de fabulosas quantias da receitacontributiva para pagamento dos encargos previdenciáriosda União-EPU.No mesmo passo, a progressiva inviabilização doRGPS tem como causas bastante conhecidas 1) agestão estatal, caracterizada pela descontinuidadeadministrativa, pela incompetência gerencial, peloautoritarismo, pela centralização incompatível coma descentralização do Estado federativo; pela corrupçãogeneralizada, pelo empreguismo, pelo tráficode influência, pela manipulação político-partidáriae pela submissão aos grupos privados infiltradosno aparelho do Estado, em uma relação promíscuaentre a administração da res publica e a promoçãodos interesses empresariais que exploram, sem riscos,com fins lucrativos, planos de previdência complementar;e 2) a desastrosa unificação dos IAP’s (oerro intencional do século) que criou um órgão gigantesco,incontrolável e inadministrável, vulnerável,por isso mesmo, a todas as formas conhecidas eimagináveis de fraudes.53


Agosto 1996Na raiz da crise generalizada está a desestruturaçãoda administração pública ocasionada pela utilizaçãodo Poder Público para aumentar a fatia de rendados grupos dominantes, incapacitando o Estado parao cumprimento de suas funções de atendimento dasnecessidades básicas dos demais segmentos sociaisnas áreas de seguridade, educação, saneamento, segurançaetc. Nesse contexto, parcelas elevadas dos limitadosrecursos públicos disponíveis são aplicadas soba forma de subsídios e incentivos fiscais às empresas,inclusive às estatais estrangeiras; pagamento dos serviçosdas dívidas interna (ciranda financeira) e externa,de composição nebulosa e suspeita; e de transferênciapara o tesouro nacional dos gastos patronaiscom os planos de previdência complementar, de assistênciamédico-hospitalar e de seguros, que beneficiamtambém dirigentes empresariais (vide Lei9.249/95), agravando o que já é a mais iníqua concentraçãode renda do mundo.Como se vê, não fracassou o Plano de Benefícios,fracassou a gestão financeira e a gestão estatal centralizadae autoritária; prostituiu-se, como era previsível,o deformado sistema que tem, em uma ponta, o Estadoarrecadando contribuições e, na outra, grupos privadosmercantis como destinatários privilegiados dosrecursos compulsoriamente arrecadados.Mas, em vez de medidas para arrecadar a receitaprevista no plano de custeio, o aumento das taxas decontribuição e a criação de novos tributos; em vez dedemocratizar e descentralizar a gestão, a supressão ea restrição de benefícios; em vez de uma reforma saneadora,uma manobra sub-reptícia para privatizar,mercantilizando a previdência pública.Dessa forma, pode-se mudar tudo o que se quisermudar e todos os sacrifícios serão em vão. A previdênciapública estará inviabilizada em pouco tempo.Regimes especiaisConstitucionalmente não integram a PrevidênciaSocial. Situam-se no Título da Organização do Estado,nos Capítulos da Administração Pública, do Judiciárioe do Ministério Público. Diferem, ainda, doRGPS, em relação aos planos de benefícios.Na União existem dois regimes especiais: o dosRevista <strong>Adusp</strong>servidores civis, com dispositivos especiais para osmembros do Judiciário e do Ministério Público; e odos servidores militares. Nos Estados e municípios, osregimes especiais são definidos nas respectivas Constituiçõese disciplinados por leis diferentes, com basenos diferentes regimes jurídicos e planos de carreira,do que resultam diferentes formas de contribuições eplanos de benefícios.Seus segurados só passaram a contribuir para obenefício da aposentadoria a partir da Constituiçãode 1988, sendo que em alguns Estados ainda nãocontribuem.Para os servidores federais a contribuição foi fixadaentre 9 e 12%, sem teto, mas o governo pretende lhesimpor um teto para o valor dos benefícios, o que éuma contradição. Pois, se não há teto para a contribuição,não pode haver teto para o valor dos benefícios.A crise de tais regimes, dependentes financeiramentedo erário, está relacionada com a desestruturaçãoda administração pública e a situação pré-falimentardas finanças estaduais e municipais. Só poderáser solucionada (sem violação da Constituição edas leis) no longo prazo, quando cessarem os efeitosdo descompasso entre receita e despesa, desde que asdistorções sejam corrigidas de imediato.Em uma reforma, a unificação das diferentes legislações(da União, Estados e municípios) seria précondiçãoinsubstituível para a sua posterior unificaçãocom o RGPS e a instituição de um regime únicode Previdência para o setor público e o privado, comuma só legislação de Previdência complementar, postoque “reforma não pode significar apenas a supressãodos direitos de alguns e a preservação dos privilégiosde outros”.Sem essas medidas não haverá reforma (comonão há). E a promessa de unificar para acabar comos privilégios não passará de uma falácia, como aproposta governamental, que não unifica, pois mantémo RGPS e os regimes especiais, com diferentesplanos de benefícios, enquanto o governo desloca paraa legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas(Lei 9.249, sancionada em 26.12.95) os privilégiosda Previdência complementar dos grandes empresáriospara que não sejam questionados nos debatesda Previdência.54


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996Reforma sem base técnicaPela primeira vez na história da Previdência umprojeto de sua reforma chegou ao Congresso sem nenhumestudo técnico de viabilidade das propostasapresentadas. O que, se não é uma farsa, é a ingênuapretensão de reformar o desconhecido. Ouça-se, apropósito, a explicação do ministro da Previdência: “-Não sei qual é o impacto das medidas. Só sei que dojeito que está não pode ficar. Confio na minha intuição”.(in: Veja, de 21.2.96.)Só em virtude de pedido de informações da SubcomissãoEspecial para Assuntos de Previdência Social,da Câmara dos Deputados, o MPAS encomendou estudosde projeções financeiro-atuariais (o que é insuficiente),apenas para o RGPS, conforme revela a introduçãodo respectivo relatório:“O Ministério daPrevidência e AssistênciaSocial – MPAS, tendo emvista a necessidade desubsidiar o processo dediscussão sobre a propostade reforma já enviadaao Congresso, realizouprojeções financeiroatuariais...” “O sistemaprevidenciário brasileiroabrange diferentes regimesde Previdência tais como o dos servidores públicosfederais, estaduais e municipais, dos magistrados,dos parlamentares, etc., além do Regime Geral dePrevidência Social (RGPS), administrado pelo InstitutoNacional do Seguro Social (INSS). A presente pesquisaabrange apenas as projeções financeiro-atuariaisreferentes a este último”. Suas projeções “devem serentendidas como prováveis cenários e não como previsõesde comportamento futuro da situação econômico-financeirado Regime Geral de Previdência Social”.Leia-se a seguinte revelação da revista Veja, ed. cit.“Uma explicação para a falta de dados está numdocumento reservado do Ministério da Previdência aque Veja teve acesso. A Previdência não sabe quemsão os seus segurados, não sabe quem são os seus beneficiários,não sabe quem são os seus contribuintes,Pela primeira vez na história daPrevidência um projeto de sua reformachegou ao Congresso sem nenhumestudo técnico de viabilidade daspropostas apresentadas. O que, se nãoé uma farsa, é a ingênua pretensão dereformar o desconhecido.não sabe se o que recebeu deveria de fato receber,não sabe se o que entrou no caixa é o que foi pagoefetivamente pelos contribuintes, não sabe se o quepagou é o que deveria de fato ter pago”.Cobiça pelos bilhõesNos países capitalistas civilizados, o seguro socialbásico é público, coordenado e fiscalizado pelo Estado,mas administrado de forma descentralizadapor entidades representativas dos beneficiários. Arazão de ser assim é ética. Fundamenta-se no princípiode que a cobertura dos riscos sociais (que afetammais os mais pobres) não deve ser exploradacom fins lucrativos, e por ser de natureza contributivadeve ser administrada pelos que pagam.A experiência brasileiraconfirma esse fundamentoético. Veja-se oque aconteceu com os sóciosdo Montepio Nacionaldos Bancários e doMontepio da Família Militar,após a falência dessasinstituições; veja-se oque vem acontecendo,após o desmanche da assistênciamédico-hospitalarpública, com a assistênciamédica das empresas de medicina privada, quefazem o que querem, desde a propaganda enganosaao reajuste arbitrário das mensalidades, passando poruma assistência não raro como a da Clínica Santa Genoveva,do Rio de Janeiro, e a da Clínica de Hemodiálisede Caruaru, ambas com fins lucrativos; veja-seo apodrecimento da Previdência administrada de formaautoritária, sem a participação dos segurados contribuintes.Como sempre, deve haver exceções queconfirmem a regra.Apesar de tão notória experiência, a conivente faltade memória histórica dos governantes facilita aação dos poderosos interessados em transformar aprevidência em um balcão de negócios.O interesse das seguradoras pela aprovação daproposta governamental foi revelado em artigo de co-55


Agosto 1996nhecido consultor de seguros e diretor do Centro deComércio do Estado de São Paulo (in: O Estado de S.Paulo, de 27.3.95. Ei-lo:“Com o recente envio pelo Governo Federal de suaproposta de reforma da Previdência Social para o Congresso,iniciou-se o processo responsável pela criaçãoda maior fonte de financiamento de longo prazo já vistano Brasil. A reforma da Previdência pode significar paraa atividade seguradora nacional e para a nação comoum todo, já que seguradoras eficientes e capitalizadassão uma das ferramentas mais efetivas que existem paraa distribuição de renda e geração de emprego. Projetoscomo a quebra do monopólio do resseguro do Institutode Resseguros do Brasil, a implantação de controles dasmargens de solvência das seguradoras e a abertura domercado segurador brasileiro para as companhias estrangeirasnão podem ser interrompidos e precisam estarperfeitamente definidos antes que o Congresso Nacionalaprove as mudanças que criarão poupanças compulsóriasdestinadas a injetar algo próximo de US$ 30bilhões para financiar as atividades produtivas do país”.Leia-se, a propósito, esta notícia publicada no Estadode S. Paulo, de 27.11.94:“Grupo liderado pelo Banco Icatu, incluindo o Bradescoe o Bamerindus, do senador José Eduardo AndradeVieira, encaminhou a Cardoso a proposta queadota o modelo chileno e deixa as aposentadorias comas seguradoras privadas, sem interferência do poder público.O lobby em torno da previdência explica-se pelovalor das cifras envolvidas. Se bem administrado, o negóciopode render milhões às instituições financeiras.Origem da proposta governamentalO deputado federal Reinhold Stephanes, atual titulardo MPAS, apresentou, na legislatura passada,quando da primeira tentativa de revisão constitucional,os projetos nºs PRE 1979-1, 1974-2, 8690-9, 1976-0, 1977-3, 1988-1, 8929-2 e 11412-8, restringindo direitosconstitucionais de natureza previdenciária, extinguindoa preferência das entidades filantrópicas edas sem fins lucrativos na participação complementardo sistema único de saúde e suprimindo a proibiçãode subvenção do Poder Público a entidades de saúdeprivada com fins lucrativos.Revista <strong>Adusp</strong>Pois bem. A proposta governamental é origináriadaqueles projetos, à época não aprovados. Da qual,além de algumas modificações formais, foram retiradosos dispositivos que pretendiam mais ostensivamentebeneficiar as empresas de saúde.Mais: são conhecidas as ligações do ministro daPrevidência com os grupos privados que operam planosde saúde com fins lucrativos. Ao prestar conta dosfinanciamentos recebidos em sua campanha de reeleiçãoà Câmara dos Deputados, S. Exa. possibilitou aidentificação de alguns de seus patrocinadores, dentreos quais bancos e empresas que operam planos de medicinaprivada. Ei-los: Paraná Banco; Real Banco S/A;Cia. Real de Investimento; SL S/A Assistência Médico-Hospitalar;Seisa Serviços Integrados de SaúdeLtda; São Camilo Assistência Médica S/A; SAMP -Assistência Médica S/A; Oswaldo Cruz AssistênciaMédica; Interclínica Assistência Médica; Banco ItaúS/A; Intermédica Assistência de Saúde Ltda; ClinihauerLtda.; e Banco Araucária S/A.Essa origem esclarece por que a fonte de inspiraçãoda proposta governamental é de natureza fiscal,exclusivamente econômica e de promoção dos interessesempresariais; por que não considera em primeirolugar os superiores interesses dos segurados eda sociedade; por que condiciona o bem-estar doscontribuintes ao lucro dos bancos, seguradoras e empresasde medicina privada.O que é de extrema gravidade em um país como oBrasil, onde o Estado está privatizado e não criou instituiçõesindependentes contra os abusos do podereconômico; a sociedade não está suficientemente organizadae a consciência dos direitos de cidadanianão está amadurecida.Tais são os motivos que nos levam a reafirmar oque temos dito em outras oportunidades. Como está,a proposta governamental deve ser firmemente combatidapelos trabalhadores por ser nociva ao interesseda sociedade. Como está, ela não serve ao Brasil dehoje nem ao de amanhã e, se aprovada, levará a PrevidênciaSocial a um impasse de conseqüências imprevisíveisem um futuro não muito distante.Ruy Brito foi presidente do Departamento Intersindicalde Assessoria Parlamentar e é membro do Comitê Confederalda CMT.56


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996UM OUTRO OLHAR SOBRE O PROÁLCOOLFernando FerroCláudio Rossi/Abril Imagens57


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>OPrograma Nacionaldo Álcool,Proálcool, um investimentoqueconsumiu R$ 11bilhões, bem quepoderia ser incluído na lista das “-obras inacabadas” deste país. Ocerto é que esta iniciativa apresentaum quadro de difícil sustentação–nos moldes como se mantém hojeo Proálcool é indefensável.Implantado em 1975, o Proálcoolnunca chegou a ser um projetoeconômico. Não é de estranharque tenha acumuladouma dívida de R$ 9 bilhões.O Programa deve R$ 4 bilhõesao setor financeiro eR$ 5 bilhões à Petrobrás(Conta Álcool).Esta atividade industrialé responsável atualmentepela geração de 1milhão de empregos nocorte da cana e nas instalaçõesdas usinas. A produçãoanual –12 bilhões de litrosde álcool– não atende,porém, a demanda interna do país;ainda temos que importar 2 bilhõesde litros/ano de álcool e metanol.O álcool movimenta hojeuma frota de 4,5 milhões de veículos.O combustível tem uma poderosavirtude ambiental: é menospoluente que a gasolina.Todos esses fatores –o conjuntode virtudes e defeitos do Programa–exigem uma reflexão criteriosae responsável sobre sua continuidadeou não.No debate sobre o Programageralmente são relegados os trabalhadoresdo setor sucro-alcooleiro.58Exclusão injustificável uma vezque são eles os responsáveis pelosprocessos de produção que geramo lucro das empresas.Além disso, os mais tristes evergonhosos indicadores sociais dopaís se encontram entre os trabalhadoresdas usinas e destilarias. Ataxa de analfabetismo é de 74,8%para os homens e 77,6% para asmulheres; a taxa de mortalidadeinfantil é de 124 por mil nascidosvivos; expectativa de vida é dasmais baixas do país.Crianças são condenadas aotrabalho nas lavouras de cana.São crianças sem futuro, porquevivem nos canaviais, cortandocana, sem possibilidade demelhores dias. Ali elas perdem agraça, os sonhos e a vida.O quadro é nacional, mas é noNordeste que ele se torna mais degradante.A família média do trabalhadorda cana-de-açúcar é compostade até sete pessoas, a rendamédia familiar é de R$ 165,00. Emdiversas propriedades ainda vigoramrelações feudais entre empresárioe trabalhador: não se assinacarteira de trabalho; não se respeitamleis trabalhistas; permanecefirme o “barracão” da usina, quesecretamente aprisiona o trabalhador,responsável pela permuta doseu salário miserável por dívidasque nunca se pagam.Trabalho infantilAlém dessa violência ocorreuma outra, um genocídio: criançassão condenadas ao trabalho nas lavourasde cana. São crianças semfuturo, porque vivem nos canaviais,cortando cana, sem possibilidadede melhores dias. Ali elasperdem a graça, os sonhos e a vida.No estado de São Paulo, conformeo IBGE, eram 57 mil criançasem 1990 trabalhando na atividadeconsiderada pelos médicoscomo a mais penosa daspraticadas na lavoura. Deacordo com a Federaçãodos Trabalhadores da Agriculturade Alagoas (Fetag-AL), 50 mil crianças, entre6 e 13 anos, trabalham nocorte de cana no estado.Segundo pesquisa recenterealizada pelo Centro Josuéde Castro, do Recife,26% da mão-de-obra trabalhadorade cana na zona damata são crianças e adolescentes.Nas escolas destepaís deveria ser dito: criança, nãoverás país como este, onde se humilhame se trucidam jovens para fazero açúcar do brigadeiro, do bolode chocolate, dos refrigerantes, dasfestas que estes nunca conhecerão.A maior parte das crianças éencaminhada para esse moinho degente pequena pelos próprios pais.Estes usam-nas para complementaros miseráveis salários que recebemda usina e destilaria. Do totalde crianças em atividade, cerca de40% trabalham sem remuneração,pois “ajudam” pais ou parentes;59% não têm acesso à escola em


Revista <strong>Adusp</strong>Agosto 1996virtude da jornada de trabalho. Asque conseguem chegar à sala deaula apresentam grande dificuldadede aprendizagem resultante docansaço e má alimentação.Debater o Proálcool significa,principalmente, buscar transformaresta realidade. Paralelamente, nãoser conivente com as políticas de saquesaos cofres públicos que secularmentetêm sustentado usineiros inadimplentes,um bando de espertalhõesque entendem as finanças públicascomo uma extensão dos cofresparticulares. É importantealertar para o discurso oportunista,hipócrita e cínicodessas elites, que chantageiama sociedade usando oquadro social e a ameaça deuma explosão popular paraconseguir mais recursos doTesouro. Não lhes basta oque já conseguiram no passado.Para cobrir seus débitosjunto aos bancos, nãotêm vergonha de utilizar asvítimas de sua ganância–usando em benefício próprioaqueles que sempre foram exploradoscomo trabalhadores.Renda mínimaAo reconhecer a importância estratégicae ambiental do Proálcool ecrer na sua viabilidade social, atravésde Projeto de Lei, estamos propondoa criação de um programa quegaranta a renda mínima para o trabalhadorda cana-de-açúcar. Poderemosconstruir uma fonte de financiamentopara o projeto a partir dochamado imposto ou taxa ambiental,cobrado do preço da gasolina, desdeque adotemos, concomitantementecom esta iniciativa, um Programa deRenda Mínima (PRM). Este seriadirecionado para complementar arenda familiar do trabalhador do setor.Para ter direito ao salário previstono PRM ele teria que matriculare manter seus filhos na escola. OPrograma seria custeado por contribuiçõesdo imposto ambiental comos recursos arrecadados do Programade Assistência Social (PAS), previstopela Lei 4.870/65, artigos 36 e37, para atender o trabalhador daSe tecnologicamente o Proálcool seconstitui referência internacional,fazendo com que Nações do PrimeiroMundo estejam nos procurando paraconhecer nossa experiência, épreciso, também, que sejamosmodelo na questão trabalhista.cana-de-açúcar. Ainda com estasfontes seria criado um fundo público,desvinculado da Petrobrás e dos usineiros,para subsidiar a pesquisa deenergias alternativas e novas fontes.A lei estabelece que os produtoressão obrigados a depositar noPAS, em benefício dos trabalhadoresindustriais e agrícolas das usinas,destilarias e fornecedores, 1% sobreo saco de açúcar, 1% sobre a toneladade cana, 2% sobre o litro de álcool.O fundo criado com esses recursosdeve ser aplicado em assistênciamédica, hospitalar, farmacêuticae social. Levantamento feito pelaAssociação das Indústrias de Açúcare do Álcool de São Paulo (IAA) revelaque só no período 1992/96 oBrasil produziu 912,1 milhões de toneladasde cana; no mesmo períodoproduziu 48,4 milhões de metros cúbicosde álcool. Isto mostra que sócom açúcar e álcool o PAS deve tercapitalizado mais de R$ 4,6 bilhões–aproximadamente o que o governodeu para salvar o Banco Nacional.Quanto rende por ano o PAS? Sóem 1995 o PAS deve ter recebido, daprodução de álcool e cana, R$ 890,4milhões.Além dessa iniciativa,propomos que parte dasterras dos usineiros que semostram inadequadas parao cultivo da cana sejamdestinadas à ReformaAgrária. Igualmente, com omesmo fim, propomos umanegociação das dívidas dosusineiros e proprietários deterras com as instituiçõesfinanceiras do governo.Fora destas bases não hácomo defender um programapara o álcool brasileiro. Se tecnologicamenteo Proálcool constituireferência internacional, fazendocom que nações do Primeiro Mundoestejam nos procurando para conhecernossa experiência, é preciso,também, que sejamos modelo naquestão trabalhista. Ou adotamosmudanças radicais nesse programa,eliminando a vergonhosa situaçãode moinho de crianças, ou não temsentido mantê-lo, exibindo esse passadotão sujo quanto o vinhoto quealgumas usinas ainda jogam nos rios.Fernando Ferro é Deputado Federalpelo PT de Pernambuco.59


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>A FAVOR DE MAIS ÉDIPOSMarcos A. da SilvaAapresentação simultânea de dois Édipo-Rei em São Paulo, em diferentes salasdo Centro Cultural Vergueiro, entre janeiroe abril de 1996, foi boa oportunidadepara se pensar pluralmente sobreo grande texto de Sófocles e algumasde suas possíveis leituras cênicas contemporâneas.Aparentemente, as montagens seguiram caminhosdíspares: Paulo de Moraes e a Armazém Companhiade Teatro assumiram os signos mais visíveis de umaencenação de tragédia clássica, dos figurinos à inclusãode canto em grego, sem esquecer a preservaçãodo título mais conhecido no Ocidente –que perde ooriginal tirano; Renato Borghi e o Grupo de TeatroPromíscuo anunciaram muito claramente a liberdadena montagem de seu Édipo de Tabas, que chegou a sugerirtotal separação do ponto de partida grego ao enfatizarmais que explícitas articulações com referenciaisbrasileiros de hoje –índios desculturados, corrupção,miséria, figuras da política e da cultura demassas, como Collor de Melo, pastores e fiéis da IgrejaUniversal do Reino de Deus etc.Comentar as duas montagens é reafirmar a legitimidadedesses e de outros caminhos: nada mais danosopara uma encenação de texto clássico que a submissãofantasmagórica à “autoridade original”, auto-aniquilamentoda leitura atual. Os clássicos sobrevivem atravésde interpretações –e a tradução, com inevitáveis mudançasde ritmos, rimas e outras sonoridades e significações,não é a menor delas. Dos romanos aos elisabetanos,passando pelos franceses do século XVIII e pelosdiferentes modernos do século XX, evocar o trágicoé também pensar sobre o hoje de cada intérprete,sem renunciar à força inicial de seus inventores.60


Revista <strong>Adusp</strong>As oposições entre escolhas de direção de Borghie Moraes foram menos absolutas que o anunciado.Muito visivelmente, suas montagens já se aproximaramatravés de articulações com a leitura da tragédiapor Sêneca, incluindo coincidentes interpretações doautor romano como representativo de suposto “naturalismo”em suas descrições de peste ou no desfechoda narrativa.Por que essa busca do “naturalista”? Uma respostapode estar na onipresença de entranhas descarnadase membros decepados nos engraçadíssimos filmes deficção científica, horror e policiais recentes, mescladaà força da propaganda televisiva ou em out-doors,com seus detalhes fotográficos, mais um pouco deboutiques pornô e sua parafernália material de filmes,revistas e objetos –pense-se no furor uterino da Jocastadirigida por Moraes e interpretada pela talentosaPatrícia Selonk, expresso em contorções pélvicas, esgaresda máscara facial e gemidos. Outra explicaçãopara o fenômeno pode residir na pretensão de escapardo mito antigo através da “verdade das coisas”,esse outro mito cientificista muito moderno e forte,ao menos desde o século XIX.Qualquer que seja o motivo, é preciso reafirmar odireito e a inevitabilidade da interpretação no ato decolocar um clássico em cena.A montagem de Moraes se apoiou em tradução deMaurício A. Mendonça, a partir de versões para váriaslínguas (português, espanhol, francês e italiano). O resultadogeral soa interessante, embora não fique clarasua superioridade em relação a outras traduções disponíveisem português. Borghi assume o caráter híbridodo texto (traduzido por Christiane Esteves) que lhe serviude base. Muito claramente, extensos trechos da traduçãode Geir Campos para a escrita de Sófocles foramutilizados por Esteves, sem citação dessa fonte.Moraes optou por um espetáculo em palco italiano,com cenário parcialmente móvel –grande estruturacom rodas, que se desloca na profundidade do palcopara, no desfecho, mudando de eixo, se transformarnum labirinto por onde Édipo e Jocasta desfilamseu sofrer. O encontro entre mitos (Édipo, labirinto)é uma bonita idéia, pouco explorada no conjunto damontagem, ficando aquém da igualmente bela referênciaao grupo de Lacoonte no duelo verbal entreAgosto 1996Édipo e Tirésias. O interessante painel que serviu defundo para o cenário foi pouco realçado, apesar desua capacidade sugestiva quanto a sangue e útero.Já Borghi desenvolveu intensa homenagem aoTeatro Oficina, onde atuou por muitos anos, e a JoséCelso Martinez Corrêa, diretor e sustentáculo daquelegrupo. Édipo de Tabas faz referências explícitas a ORei da Vela (bandeira do Brasil em trajes e adereços,paródia) e a Gracias, Señor (perambulação com o público,clima ritualístico –apesar do naturalismo procuradoem Sêneca), além do mais recente Hamlet (o entrelaçamentoclássico/atualidade brasileira, sob o signoda paródia –Collor também servira de referênciapara essa montagem da Uzyna Uzona, atual designaçãodo Oficina), incluindo o trabalho com os elementoságua, fogo, terra. Certamente, a capacidade deCorrêa para construir climas poéticos muito fortes emmeio àquelas tensões não foi continuada por Borghi,o que é lamentável enquanto perda de sutilezas e caminhos.Nessa perspectiva, Édipo de Tabas trabalhou commúltiplos espaços cênicos, donde ser difícil falar num“cenário” em sentido convencional: há referências aetapas narrativas do texto –escadaria e aposentos dopalácio real–, ao mesmo tempo em que se explorava oimediato (corredores do Centro Cultural Vergueiro,trânsito da Avenida 23 de Maio, feira e camelódromo).Através do cortejo inicial, a peça adotou o comoverem sentido literal –mover-se junto.Anunciou-se, reiteradamente, a intenção interativada montagem, com insistência sobre a possibilidadedo público interferir em seu desfecho, parodiando-se,ao mesmo tempo, chavões da indústria cultural.Oportunidades de interação, todavia, foram perdidasou mal-aproveitadas pelo grupo: na perambulaçãoque serve de prólogo à montagem, Borghi começou acantar Não tenho lágrimas, de Max Bulhões e MíltonOliveira, e conseguiu boa adesão dos presentes, interrompendoa canção para que a etapa seguinte do trabalhofosse cumprida; o convite à participação de espectadoresem cenas, como na invocação dos deuses,findou reduzido a constrangedor aspecto de retóricafiguração televisiva (Gugu Liberato, Faustão, Jô Soares),sem verdadeira ação dos que receberam a personade uma ou outra divindade.61


Agosto 1996Revista <strong>Adusp</strong>As imagens do Brasil, sob o signo de paródia, enfatizaramexcessivamente certos chavões: São Jorge,Nossa Senhora Aparecida, batucada, índios, capacetede Fórmula 1, bola de futebol... Sem pretender diminuiro peso dessas referências, vale lembrar outros brasismenos visíveis, que capacetes de trabalhadores ecalçados baratos introduziram no Édipo de Tabas.Os diferentes caminhos de montagem implicaram,naturalmente, estilos de interpretação diversificados.Moraes investiu especialmente no desempenho e nacaracterização dos dois protagonistas, o que se observadesde o visual (o saiote de Édipo bem articulado a umacamisa sem mangas, que realça realeza e virilidade; odecote de Jocasta, permitindo a visão dos madurosseios), passando pelo ensaio de uma poética dos péspelo ator Marcos Martins, que incluiu significativostropeços e giros sobre o próprio corpo, e pela intensa(talvez excessiva) presença em cena de Selonk - no últimocaso, falas do coro foram desviadas para Jocasta,com resultados duvidosos, como se observa no debatecom Tirésias, quando a rainha, incoerentemente, parecevitoriosa! Acrescente-se a isso a maior eficácia dotrabalho vocal de Selonk quando feito em surdina: osrepetidos urros da atriz diminuíam a dramaticidade,descambando mesmo para gargarejos banais.Uma contrapartida desse trabalho interpretativocom os protagonistas foi reservar para o restante doelenco quase exclusivamente tarefas de canto e dança.No caso dos coros cantados, a afinação das vozesesteve excelente, com especial destaque para SimoneMazzer. É uma pena que os bons resultados textuaisalcançados no primeiro coro (jogo de palavrascom Marte/Amor/ Morte) não tenham sido preservadosnos demais, que tenderam a descrições palavrosas.As coreografias também evidenciam bomacabamento, embora fossem menos criativas que osmomentos vocais.Os limites dessa exclusividade em canto e dança serevelaram quando os membros do coro assumirampapéis individuais, cuja dimensão menor, se comparadaa Édipo e Jocasta, não pode ser entendida comodesimportância narrativa. Paulo Augusto Neto, comoCreonte, Simone Vianna, representando o Mensageiro,e Ivana Debértolis, na pele do Pastor, permanecerammuito inexpressivos oral e gestualmente, estranhamenteinertes em momentos cruciais, como a discussãoentre Édipo e Tirésias, sugerindo desleixo dedireção e comprometendo o conjunto do trabalho.Como Arauto, a boa cantora Mazzer conseguiu, aomenos, desempenho correto.O trabalho de Borghi obteve efeitos simetricamenteinversos a esses: as cenas de coro foram eficazes,seus membros convenceram como Mensageiro e outrasfiguras individuais, Ary França construiu um excelenteCreonte e o próprio Borghi esteve muito bemcomo Tirésias; Élcio Nogueira e Cida Moreno, nospapéis principais, foram menos satisfatórios, malgradoboa caracterização física de ambos e alguns momentosde conjunto (a primeira entrada de Jocasta, asfalas finais de Édipo) apreciáveis.Nogueira manteve uma curiosa imagem malandrade Édipo, contrapartida política à freqüente vitimizaçãoquase cristã do seu correspondente porMartins –cartaz e programa da montagem de Moraesusaram um Cristo de Bosch como ilustração.Numa comparação entre os dois atores - guardadasas proporções entre projetos diferenciados–, observou-seuma tendência monocórdica de Nogueira,especialmente no plano da fala, enquanto Martinsalcançou muito maior diversidade de nuances emseu personagem, tanto vocal como corporalmente.Inseridos em suas respectivas montagens, a monotoniaoral de Nogueira foi diluída no trabalho grupal,enquanto Martins entrou freqüentemente em choquecom a inexpressividade cênica de muitos deseus companheiros.Os desequilíbrios presentes nas duas montagenssão comuns a qualquer encenação e jamais anulam aousadia de ambas ao oferecerem para o público brasileiroa oportunidade de uma reflexão conjunta sobreSófocles e o amplo espectro de sua leitura. Apesarde ocasionais referências psicologistas ainda rondaremessas duas interpretações –o velho Freud parecemenos morto do que se imagina...–, fica claro,em cada uma delas, que o universo de referências pararever Édipo continua infinito, em aberto paraquantos aceitarem desafiar esse enigma de enigmas.Que venham outros Édipos!Marcos A. da Silva é Professor do Departamento de Históriada FFLCH/USP.62

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