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Perspectiva cultural do envelhecimento - Secretaria de ...

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<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong><strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULOJosé SerraGoverna<strong>do</strong>rRita PassosSecretária Estadual <strong>de</strong> Assistência e Desenvolvimento SocialNival<strong>do</strong> Campos CamargoSecretário AdjuntoCarlos Fernan<strong>do</strong> Zuppo FrancoChefe <strong>de</strong> Gabinete


<strong>Secretaria</strong> Estadual <strong>de</strong> Assistência e Desenvolvimento Social – SEADSDepartamento <strong>de</strong> Comunicação Institucional – DCIPaulo José Ferreira MesquitaCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>rCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> Gestão Estratégica – CGECláudio Alexandre LombardiCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>rCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> Ação Social – CASTânia Cristina Messias RochaCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>raCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> Desenvolvimento Social – CDSIsabel Cristina MartinCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>raCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> Administração <strong>de</strong> Fun<strong>do</strong>s e Convênios – CAFCarlos Alberto FacchiniCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>rFundação Padre AnchietaPaulo MarkunPresi<strong>de</strong>nteFernan<strong>do</strong> AlmeidaVice-Presi<strong>de</strong>nteCoor<strong>de</strong>nação Executiva – Núcleo <strong>de</strong> EducaçãoFernan<strong>do</strong> AlmeidaFernan<strong>do</strong> Moraes Fonseca Jr.Mônica Gar<strong>de</strong>li FrancoCoor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Conteú<strong>do</strong> e Qualida<strong>de</strong>Gabriel PriolliCoor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Produção – Núcleo <strong>de</strong> Eventos e PublicaçõesMarilda Furta<strong>do</strong>Tissiana Lorenzi GonçalvesEquipe <strong>de</strong> Produção <strong>do</strong> ProjetoCoor<strong>de</strong>nação geralÁurea Eleotério Soares BarrosoSeadsFernan<strong>do</strong> Moraes Fonseca Jr.Fundação Padre AnchietaDesenvolvimentoSeadsElaine Cristina MouraIvan CerlanJanete LopesMárcio <strong>de</strong> Sá Lima Mace<strong>do</strong>Organização <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s/textosÁurea Eleotério Soares BarrosoColabora<strong>do</strong>resClélia la Laina, Edwiges Lopes Tavares, Izildinha Carneiro,Ligia Rosa <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong> Pimenta, Maria Margareth Carpes,Marilena Rissuto Malvezzi, Paula Ramos Vismona,Renata Carvalho, Rosana Saito, Roseli OliveiraProdução editorialMaria Carolina <strong>de</strong> AraujoCoor<strong>de</strong>nação editorialMarcia MeninCopi<strong>de</strong>sque e preparaçãoPaulo Roberto <strong>de</strong> Moraes SarmentoRevisãoProjeto gráfico, arte, editoração e produção gráficaMare Magnum Artes GráficasIlustraçõesAdriana Alvesuma realização


Direitos <strong>de</strong> cópiaSerão permitidas a cópia e a distribuição <strong>do</strong>s textos integrantes <strong>de</strong>sta obra sob asseguintes condições: <strong>de</strong>vem ser da<strong>do</strong>s créditos à SEADS – <strong>Secretaria</strong> Estadual <strong>de</strong> Assistência eDesenvolvimento Social <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo e aos autores <strong>de</strong> cada texto;esta obra não po<strong>de</strong> ser usada com finalida<strong>de</strong>s comerciais; a obra não po<strong>de</strong> ser alterada,transformada ou utilizada para criar outra obra com base nesta;esta obra está licenciada pela Licença Creative Commons 2.5 BR(informe-se sobre este licenciamento em http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/)As imagens fotográficas e ilustrações não estão incluídas neste licenciamento.<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong><strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Da<strong>do</strong>s Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira <strong>do</strong> Livro, SP, Brasil)Queiroz, Zally P. V.<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong> / Zally P. V. Queiroz,Elisabeth Frohlich Mercadante, Ruth Lopes ; [coor<strong>de</strong>nação geralÁurea Eleotério Soares Barroso]. -- São Paulo : <strong>Secretaria</strong> Estadual<strong>de</strong> Assistência e Desenvolvimento Social : Fundação PadreAnchieta, 2009.Bibliografia.1. Administração pública 2. Cidadania 3. Envelhecimento4. I<strong>do</strong>sos - Cuida<strong>do</strong>s 5. Planejamento social 6. Política social7. Políticas públicas 8. Qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida 9. Serviço social junto ai<strong>do</strong>sos I. Mercadante, Elisabeth Frohlich. II. Lopes, Ruth.III. Barroso, Áurea Eleotério Soares. IV. Título.09-09543 CDD-362.6Índices para catálogo sistemático:1. São Paulo : Esta<strong>do</strong> : I<strong>do</strong>sos : Esta<strong>do</strong> e assistência e<strong>de</strong>senvolvimento social : Bem-estar social 362.62. São Paulo : Esta<strong>do</strong> : Plano Estadual para a Pessoa I<strong>do</strong>sa-Futurida<strong>de</strong> : Bem-estar social 362.6


[...] nós envelheceremos um dia, se tivermos este privilégio.Olhemos, portanto, para as pessoas i<strong>do</strong>sas como nós seremos nofuturo. Reconheçamos que as pessoas i<strong>do</strong>sas são únicas, comnecessida<strong>de</strong>s e talentos e capacida<strong>de</strong>s individuais, e não um grupohomogêneo por causa da ida<strong>de</strong>.Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU.Preza<strong>do</strong>(a) leitor(a),Temos a grata satisfação <strong>de</strong> fazer a apresentação <strong>de</strong>ste material elabora<strong>do</strong> pela<strong>Secretaria</strong> Estadual <strong>de</strong> Assistência e Desenvolvimento Social <strong>de</strong> São Paulo (Seads)e pela Fundação Padre Anchieta – TV Cultura.Um <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong> Plano Estadual para a Pessoa I<strong>do</strong>sa <strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>São Paulo – Futurida<strong>de</strong>, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pela Seads, é propiciar formação permanente<strong>de</strong> profissionais para atuar com a população i<strong>do</strong>sa, notadamente nas DiretoriasRegionais <strong>de</strong> Assistência Social (Drads).No total, esta série contém <strong>de</strong>z livros e um ví<strong>de</strong>o, contemplan<strong>do</strong> os seguintesconteú<strong>do</strong>s: o <strong>envelhecimento</strong> humano em suas múltiplas dimensões: biológica,psicológica, <strong>cultural</strong> e social; legislações <strong>de</strong>stinadas ao público i<strong>do</strong>so; informaçõessobre o cuida<strong>do</strong> com uma pessoa i<strong>do</strong>sa; o <strong>envelhecimento</strong> na perspectiva dacidadania e como projeto educativo na escola; e reflexões sobre maus-tratos eviolência contra i<strong>do</strong>sos.


Com esta publicação, <strong>de</strong>stinada aos profissionais que <strong>de</strong>senvolvem ações comi<strong>do</strong>sos no Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo, o Futurida<strong>de</strong> dá um passo importante aodisponibilizar recursos para uma atuação cada vez mais qualificada e uma práticabaseada em fundamentos éticos e humanos.Muito nos honra estabelecer esta parceria entre a Seads e a FundaçãoPadre Anchieta – TV Cultura, instituição que acumula inúmeros prêmios emsua trajetória, em razão <strong>de</strong> serviços presta<strong>do</strong>s sempre com qualida<strong>de</strong>.Desejo a to<strong>do</strong>s uma boa leitura.Um abraço,Rita PassosSecretária Estadual <strong>de</strong> Assistência e Desenvolvimento SocialSumárioViolência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safioZally P. V. Queiroz.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11Contextualização da violência no tempo histórico e na socieda<strong>de</strong>..................... 13As diferentes formas <strong>de</strong> abuso .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15A violência contra i<strong>do</strong>sos no Brasil. ................................................. 17Fatores <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> violência contra i<strong>do</strong>sos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Perfil da vítima e <strong>do</strong> agressor .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20Violência institucional .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20O papel <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21Avaliação <strong>de</strong> violência .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22Exame físico.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Histórias clínica, social e familiar.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Outros aspectos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Princípios para intervenção.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Prevenção.......................................................................... 25Conclusão.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26Referências bibliográficas. ......................................................... 29Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>Elisabeth Frohlich Mercadante.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. ........................................................................ 33I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e velhice .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35Subjetivida<strong>de</strong> e velhice. ............................................................ 43Consi<strong>de</strong>rações finais................................................................ 46Referências bibliográficas. ........................................................ 47


A família e o i<strong>do</strong>soRuth Lopes.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49Contextualização <strong>do</strong> tema no processo histórico.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51Outros olhares sobre o tema .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54Avós e netos: espaço possível <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> gerações. .......................... 54Ativida<strong>de</strong>s práticas .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61Psicoterapia, grupos <strong>de</strong> apoio, oficinas. .......................................... 61Temas para discussão............................................................ 63Filmes........................................................................... 65Referências bibliográficas. ......................................................... 66Violência contra i<strong>do</strong>sos:um novo <strong>de</strong>safioZally P. V. Queiroz


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safioInicialmente objeto <strong>de</strong> preocupação e estu<strong>do</strong> das áreas da segurançapública e justiça, bem como <strong>de</strong> alguns movimentos sociais, somentena década <strong>de</strong> 1960, nos países mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, a violência começoua ser percebida pelo setor da saú<strong>de</strong> como um emergente problema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública (Minayo e Souza, 1995). Volta<strong>do</strong>s, a princípio,à violência contra as crianças, os estu<strong>do</strong>s dirigiram-se em seguida àsmulheres e, nos anos 80, surgiram as primeiras <strong>de</strong>núncias e levantamentos<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre a violência contra i<strong>do</strong>sos.istockphotoEsse aumento <strong>do</strong> interesse da área da saú<strong>de</strong> pela questão da violência<strong>de</strong>veu-se a <strong>do</strong>is fatores principais: a conscientização cada vez maior<strong>do</strong>s valores da vida e <strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong> cidadania e as mudanças noperfil da morbimortalida<strong>de</strong> em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.As primeiras pesquisas que comprovaram a existência <strong>de</strong> abusos emaus-tratos contra i<strong>do</strong>sos, segun<strong>do</strong> Quinn e Tomita (1990), foramrealizadas nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Canadá, Inglaterra e Austrália, enfrentan<strong>do</strong>dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comprovação, pelos constrangimentos quegeravam, tanto nas residências <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos como nas instituições <strong>de</strong>longa permanência. Nas agências sociais e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, os <strong>de</strong>poimentos<strong>de</strong> profissionais e usuários permitiram obter os primeiros da<strong>do</strong>ssobre o assunto.À medida que os estu<strong>do</strong>s avançavam, os pesquisa<strong>do</strong>res perceberam anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar as informações para, principalmente, <strong>de</strong>finiruma terminologia a<strong>de</strong>quada e uma conceituação para violência nasdiversas formas constatadas.Entre as várias <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> violência, <strong>de</strong>staca-se a a<strong>do</strong>tada, em 2001,pela Organização Mundial da Saú<strong>de</strong> (OMS), apresentada em 1998pela International Net work for the Prevention of El<strong>de</strong>r Abuse(Inpea):Abusos em i<strong>do</strong>sos constituem uma ação única ou repetida, ou ainda aausência <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong>vida, que causa dano, sofrimento ou angústiaem uma relação na qual exista expectativa <strong>de</strong> confiança.As diferentes formas <strong>de</strong> abusoInternacionalmente, o abuso é classifica<strong>do</strong> com base nanatureza das ações: abuso físico, psicológico/emocional,financeiro/material, sexual e negligência.No Brasil, a Política Nacional <strong>de</strong> Redução da Morbimortalida<strong>de</strong>por Aci<strong>de</strong>ntes e Violência, aprovada em 2001 peloMinistério da Saú<strong>de</strong>, assim <strong>de</strong>fine as diferentes formas <strong>de</strong>abuso, também <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a natureza das ações:• Abuso físico e maus-tratos físicos – Uso da força físicapara compelir a vítima a fazer o que não <strong>de</strong>seja, ferin<strong>do</strong>-aou provocan<strong>do</strong>-lhe <strong>do</strong>r, incapacida<strong>de</strong> ou morte.• Abuso psicológico ou maus-tratos psicológicos – Agressões verbaisou gestuais com o objetivo <strong>de</strong> aterrorizar a vítima, humilhá-la,restringir sua liberda<strong>de</strong> ou isolá-la <strong>do</strong> convívio social.Nos anos 80,surgiram asprimeiras<strong>de</strong>núncias elevantamentos<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobrea violênciacontra i<strong>do</strong>sos.1415


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safio16• Abuso sexual – Ato ou jogo sexual, em relação homo ou heterossexual,sem consentimento, que visa a utilizar a vítima para obterexcitação ou práticas eróticas e sexuais por meio <strong>de</strong> aliciamento,violência física ou ameaças.• Aban<strong>do</strong>no – Ausência ou <strong>de</strong>serção <strong>do</strong> responsável governamental,institucional ou familiar <strong>de</strong> prestar socorro a uma pessoa que estejasob sua proteção.• Negligência – Recusa ou omissão, por familiar ou instituição, <strong>do</strong>cuida<strong>do</strong> necessário com a pessoa sob sua responsabilida<strong>de</strong>. A negligênciaé uma das formas <strong>de</strong> abuso contra i<strong>do</strong>sos mais comunsno país. Ela se manifesta frequentemente associada a outros abusosque geram lesões e traumas físicos, emocionais e sociais, sobretu<strong>do</strong>contra os que estão em situação <strong>de</strong> múltipla <strong>de</strong>pendênciaou incapacida<strong>de</strong>.• Abuso financeiro e econômico contra i<strong>do</strong>so – Exploração imprópriaou ilegal ou uso não consenti<strong>do</strong> <strong>de</strong> recursos financeiros e patrimoniais<strong>do</strong> i<strong>do</strong>so. Esse tipo <strong>de</strong> violência ocorre, principalmente, noâmbito familiar.• Autonegligência – Conduta da pessoa i<strong>do</strong>sa que ameaça a própriasaú<strong>de</strong> ou segurança pela recusa <strong>de</strong> prover a si mesma os cuida<strong>do</strong>sque lhe são necessários.Minayo (2005) propõe outra classificação <strong>do</strong>s abusos, levan<strong>do</strong> emconta três níveis <strong>de</strong> ação:• Estrutural – Ações <strong>de</strong>correntes da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, sen<strong>do</strong> naturalizadasnas manifestações <strong>de</strong> pobreza e discriminação.• Interpessoal – Ações perpetuadas em formas constrange<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>comunicação e <strong>de</strong> interação cotidiana, tanto em família comoem comunida<strong>de</strong>.• Institucional – Ações que se manifestam na aplicação ou omissão,na gestão das políticas sociais, pelo Esta<strong>do</strong> e pelas instituições<strong>de</strong> assistência, reproduzin<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<strong>do</strong>mínio.A violência contra i<strong>do</strong>sos no BrasilDe acor<strong>do</strong> com Guimarães (1997), a produção científicabrasileira na área <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong> é ainda muitotímida, e os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mográficos sobre a população i<strong>do</strong>sano país foram praticamente ignora<strong>do</strong>s até a meta<strong>de</strong>da década <strong>de</strong> 1980. Apenas nos últimos anos <strong>do</strong> séculoXX, segun<strong>do</strong> esse autor, a análise da transição <strong>de</strong>mográficada população brasileira passou a ser feita porpesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>s e órgãos <strong>de</strong> pesquisa. Omesmo acontece com a violência, problema social emergenteno final <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>.A violênciacontra i<strong>do</strong>sosainda é muitopouco conhecidae estudada,resultan<strong>do</strong> emprecarieda<strong>de</strong><strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobreo assunto.No Brasil, segun<strong>do</strong> Informe Técnico Institucional da <strong>Secretaria</strong> <strong>de</strong>Políticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (Ministério da Saú<strong>de</strong>, 2000), “os aci<strong>de</strong>ntes e aviolência configuram problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong>e transcendência, com forte impacto na morbida<strong>de</strong> e na mortalida<strong>de</strong>da população”.Segunda causa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> no país, a violência é hoje uma dasgran<strong>de</strong>s preocupações da área da saú<strong>de</strong>, pois atinge to<strong>do</strong>s os gruposetários e todas as classes sociais, e, mesmo quan<strong>do</strong> não leva à morte,provoca lesões e traumas físicos e emocionais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>.A violência contra i<strong>do</strong>sos, no entanto, ainda é muito pouco conhecidae estudada, resultan<strong>do</strong> em precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre o assunto.Mesmo nos órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, os registros são pouco esclarece<strong>do</strong>res,e os profissionais que aten<strong>de</strong>m aos possíveis casos <strong>de</strong>negligência não estão bem prepara<strong>do</strong>s para efetuar sua constatação,registro e encaminhamento.Apesar disso, a questão da violência vem receben<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>do</strong>sanos 1990, crescente atenção <strong>de</strong> vários setores da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>governo. Nesse processo <strong>de</strong> reconhecimento, os movimentos sociaistêm exerci<strong>do</strong> papel fundamental, sobretu<strong>do</strong> as organizações não go-17


Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safio18vernamentais <strong>de</strong> atenção aos maus-tratos, primeiro em crianças ea<strong>do</strong>lescentes, <strong>de</strong>pois em mulheres e mais recentemente em i<strong>do</strong>sos.O acelera<strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong> populacional que o Brasil vivenciou nasúltimas décadas e as consequentes alterações no perfil <strong>de</strong> morbimortalida<strong>de</strong>da população não foram acompanha<strong>do</strong>s pela implantação <strong>de</strong>políticas sociais <strong>de</strong> promoção e atenção à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so, dan<strong>do</strong> origema um contingente significativo <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> avançada fragilizadase <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, vítimas potenciais <strong>de</strong> abusos e maus-tratos.A pequena oferta <strong>de</strong> serviços públicos a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s e a falta <strong>de</strong> suportemédico-social à família dificultam o papel <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>r a ser cumpri<strong>do</strong>,muitas vezes, pelos familiares <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos, principalmente quan<strong>do</strong>estes apresentam perda <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> funcional.Da mesma forma, a escassez <strong>de</strong> propostas alternativas <strong>de</strong> atenção àpessoa i<strong>do</strong>sa, como centros-dia, assistência <strong>do</strong>miciliar, centros <strong>de</strong>convivência e serviços especializa<strong>do</strong>s no atendimento a pacientesA presença <strong>de</strong> alguma <strong>de</strong>pendência é uma característica comum aosi<strong>do</strong>sos vítimas <strong>de</strong> negligência e maus-tratos: fragilida<strong>de</strong> física e menistockphotoporta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência, faz com que a família seja muito poucoassistida no cuida<strong>do</strong> com o i<strong>do</strong>so.Os programas <strong>de</strong> assistência <strong>do</strong>miciliar, que agora começam a seexpandir no país, po<strong>de</strong>rão i<strong>de</strong>ntificar, registrar e encaminhar os casos<strong>de</strong> violência contra i<strong>do</strong>sos, assim como apontar propostas <strong>de</strong> prevenção,por meio da i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s fatores <strong>de</strong> risco presentes em i<strong>do</strong>sose seus cuida<strong>do</strong>res.Com o surgimento <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s direitos humanos, apartir <strong>do</strong>s anos 80, e com a constatação <strong>do</strong> significativo aumento <strong>do</strong>scasos <strong>de</strong> morbimortalida<strong>de</strong> por causas violentas na década <strong>de</strong> 1990,o Ministério da Saú<strong>de</strong> incluiu a prevenção da violência entre as açõesmencionadas na Política Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> I<strong>do</strong>so (1999), orientadaspara to<strong>do</strong>s os segmentos da população, inclusive os mais velhos,com sua especificida<strong>de</strong>.Fatores <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> violência contra i<strong>do</strong>sosEstu<strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ntificaram alguns fatores que tornam maiores o risco e avulnerabilida<strong>de</strong> para negligência, maus-tratos e abuso contra a pessoai<strong>do</strong>sa, entre eles: ciclos recorrentes <strong>de</strong> violência familiar, problemas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> mental e <strong>de</strong>pendência química <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>r, incapacida<strong>de</strong> funcional<strong>do</strong> i<strong>do</strong>so <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, estresse causa<strong>do</strong> pelo ato <strong>de</strong> cuidar, dificulda<strong>de</strong>sfinanceiras, falta <strong>de</strong> suporte à família e isolamento social.Embora não existam pesquisas que abor<strong>de</strong>m especificamente o histórico<strong>de</strong> relações familiares violentas, há evidências, com base em<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>res em situação <strong>de</strong> abuso familiar contra apessoa i<strong>do</strong>sa, <strong>de</strong> que crianças submetidas a maus-tratos por adultosmais velhos po<strong>de</strong>m causar maus-tratos a seus pais e avós.19


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safiodruvo/istockphototal geran<strong>do</strong> problemas <strong>de</strong> incontinência e locomoção, redução <strong>de</strong>visão e/ou audição e mesmo <strong>de</strong>pendência financeira.O estresse como fator <strong>de</strong> risco está relaciona<strong>do</strong> à <strong>de</strong>pendência físicaou mental <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so e à falta <strong>de</strong> preparo <strong>de</strong> familiares ou mesmo <strong>de</strong>cuida<strong>do</strong>res profissionais para o ato <strong>de</strong> cuidar. Segun<strong>do</strong> alguns estu<strong>do</strong>s,os cuida<strong>do</strong>res familiares são na maioria mulheres, em geral <strong>de</strong>meia-ida<strong>de</strong>, que acumulam outras funções no âmbito <strong>de</strong> sua famíliae que tiveram sua rotina <strong>de</strong> vida profundamente alterada com a eclosão<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência em pessoa <strong>do</strong> grupo familiar <strong>de</strong> origem, comfrequência mãe ou sogra.Perfil da vítima e <strong>do</strong> agressorQuinn e Tomita (1990) realizaram um levantamento <strong>do</strong>s principaisestu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sobre abusos contra i<strong>do</strong>sose constataram a existência <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> violência contra eles nointerior da família. Elaboraram também, com base nesse levantamento,um perfil <strong>de</strong> vítima <strong>de</strong> violência familiar: mulher, com 75 anosou mais, viúva, física ou emocionalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, na maioria dasvezes residin<strong>do</strong> com familiares, um <strong>do</strong>s quais é seu agressor. O perfilbásico <strong>de</strong>sse agressor é: adulto <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong>, geralmente filho oufilha, quase sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da vítima, com problemas mentaise/ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> álcool ou outras drogas.Violência institucionalA violência nas instituições <strong>de</strong> longa permanência temsi<strong>do</strong> muito pouco estudada, sobretu<strong>do</strong> pelas dificulda<strong>de</strong>se barreiras existentes para o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> pesquisa nesses locais. Po<strong>de</strong>-se afirmar que elaexiste quan<strong>do</strong> os níveis <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> estão compadrões abaixo <strong>do</strong> espera<strong>do</strong> e <strong>do</strong> <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela legislaçãosobre o assunto: higiene ruim, cuida<strong>do</strong> físico e qua lida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida precários, inexistência <strong>de</strong> qualificação da equipe<strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s, esgotamento <strong>do</strong>s enfermeiros e auxiliares,falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res. Também po<strong>de</strong>mser aponta<strong>do</strong>s fatores organizacionais, como uso <strong>de</strong>drogas que <strong>do</strong>pam os i<strong>do</strong>sos, <strong>de</strong>snutrição, contençãoe até agressões físicas.Deve-se suspeitar <strong>de</strong> maus-tratos em uma instituição <strong>de</strong>longa permanência quan<strong>do</strong> se observa o aumento<strong>do</strong> número <strong>de</strong> óbitos por mês ou quan<strong>do</strong> um i<strong>do</strong>so resi<strong>de</strong>nteem instituição dá entrada em pronto-socorro comsinais <strong>de</strong> maus-tratos. Nesse caso, a suspeita <strong>de</strong> violênciatem <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nunciada à Vigilância Sanitária.O papel <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>É muito importanteo papel <strong>do</strong>profissional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> naprevenção,i<strong>de</strong>ntificação etratamentodas situações<strong>de</strong> negligênciae maus-tratoscontra i<strong>do</strong>sos.Segun<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> e Queiroz (2006), é extremamente importanteo papel <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na prevenção, i<strong>de</strong>ntificação e tratamentodas situações <strong>de</strong> negligência e maus-tratos contra pessoasi<strong>do</strong>sas, pois as principais portas <strong>de</strong> entrada <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos vitima<strong>do</strong>s sãoos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em geral e os ambulatórios e prontos-socorrosem particular.A falta <strong>de</strong> qualificação para o a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> atendimento ao i<strong>do</strong>so e opreconceito socio<strong>cultural</strong> em relação à ida<strong>de</strong> avançada dificultamainda mais a constatação da violência nos pacientes mais velhos.Por isso, muitos profissionais consi<strong>de</strong>ram o <strong>de</strong>clínio funcional e aperda da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida atributos da velhice e alegam falta <strong>de</strong>tempo para uma consulta ambulatorial mais cuida<strong>do</strong>sa, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>,muitas vezes, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar situações <strong>de</strong> abuso e seu a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>encaminhamento.2021


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safioOs profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> também alegam frequentemente não quererse envolver em questões familiares, julgan<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong>,per<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, assim, a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteger o i<strong>do</strong>so e ajudara família a encontrar soluções a<strong>de</strong>quadas para as dificulda<strong>de</strong>s queestão vivencian<strong>do</strong> na ação <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>. Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssa situação,confirma-se a importância <strong>do</strong> trabalho intersetorial e da responsabilida<strong>de</strong>da Assistência Social por intermédio <strong>do</strong>s Centros <strong>de</strong> Referênciae Assistência Social (Cras).Torna-se cada vez mais necessária ampla ação informativa para aprevenção <strong>de</strong> abusos e maus-tratos contra i<strong>do</strong>sos, tanto para profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como para cuida<strong>do</strong>res familiares.Avaliação <strong>de</strong> violênciaConforme Macha<strong>do</strong> e Queiroz (2006), algumas recomendações paraa i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> maus-tratos contra i<strong>do</strong>sos são apontadas por autoresque vêm trabalhan<strong>do</strong> com essa questão.Alexan<strong>de</strong>r Raths/istockphotoExame físicoDeve ser feito um exame cuida<strong>do</strong>so <strong>do</strong> aspecto geral, observan<strong>do</strong>:• Higiene e proprieda<strong>de</strong> das roupas.• Existência <strong>de</strong> lesões cutâneas, hematomas e úlceras <strong>de</strong> pressão napele e membranas mucosas.• Presença <strong>de</strong> hematomas, lacerações e cortes na cabeça, pescoço etronco.• Aparelho geniturinário.• Existência <strong>de</strong> lesões <strong>de</strong> punho e calcanhar, que po<strong>de</strong>m sinalizarcontenção.Histórias clínica, social e familiarAlguns cuida<strong>do</strong>s precisam ser observa<strong>do</strong>s durante a entrevista <strong>de</strong> levantamento<strong>do</strong> histórico <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so:• Entrevistar e examinar a pessoa em situação <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, sem apresença <strong>de</strong> seu cuida<strong>do</strong>r, familiar ou profissional.• Explicar ao cuida<strong>do</strong>r ou acompanhante que ele também será entrevista<strong>do</strong>logo <strong>de</strong>pois, pois essa é a rotina <strong>do</strong> serviço.• Não ter pressa durante a entrevista.• Procurar trabalhar pontos <strong>de</strong> interesse ao longo da entrevista, comtranquilida<strong>de</strong>.• Ouvir antes <strong>de</strong> examinar.• Prestar bastante atenção a traumatismos, queimaduras, aspectos nutricionaise alterações recentes nas condições econômica e social.• Não diagnosticar prematuramente o i<strong>do</strong>so como vítima <strong>de</strong> abusoou negligência, nem adiantar ao cuida<strong>do</strong>r um plano <strong>de</strong> intervençãoaté que to<strong>do</strong>s os fatos estejam esclareci<strong>do</strong>s.• Fazer contatos colaterais, visitan<strong>do</strong> o local <strong>de</strong> moradia e entrevistan<strong>do</strong>vizinhos, amigos e outros familiares, em busca <strong>de</strong> informaçõesadicionais.2223


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safioistockphoto24Outros aspectosAlguns indícios po<strong>de</strong>m também facilitar a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> uma possívelsituação <strong>de</strong> violência:• O i<strong>do</strong>so é trazi<strong>do</strong> ao hospital por outra pessoa que não seu cuida<strong>do</strong>r.• Existe um intervalo prolonga<strong>do</strong> entre o trauma ou <strong>do</strong>ença e a apresentação<strong>do</strong> i<strong>do</strong>so para os cuida<strong>do</strong>s médicos.• A <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> trauma não é compatível com os sinais encontra<strong>do</strong>s.• Os frascos <strong>de</strong> remédios indicam que a medicação não está sen<strong>do</strong>administrada conforme a prescrição feita.• O conhecimento da história pessoal <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> apontar situaçõessociais problemáticas, como <strong>de</strong>semprego, <strong>do</strong>enças, drogasou alcoolismo.Princípios para intervençãoEstu<strong>do</strong>s feitos por Tomita (1990) sugerem alguns princípios paraintervenção, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que confirmada a suspeita <strong>de</strong> violência:• Atuação multidisciplinar, sen<strong>do</strong> fundamental a presença <strong>do</strong> médico(Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> – SUS) e <strong>do</strong> assistente social (Cras).• Tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões compartilhada pela equipe, essencial para apoioaos profissionais.• Procedimentos realiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira cuida<strong>do</strong>sa, para não expor oi<strong>do</strong>so a situações <strong>de</strong> maior risco.• Conhecimento <strong>do</strong>s recursos da comunida<strong>de</strong>, o que po<strong>de</strong> ajudar naproteção à pessoa i<strong>do</strong>sa.• Suporte familiar por meio <strong>de</strong> orientaçãopara as questões relativas à <strong>do</strong>ença <strong>do</strong>i<strong>do</strong>so, para a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, paraa divisão <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>sfamiliares e para a informação sobrea re<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoio comunitário.PrevençãoA prevenção e o combate à violência <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geraltêm si<strong>do</strong> dificulta<strong>do</strong>s por influência <strong>de</strong> fatores relaciona<strong>do</strong>sa problemas macroestruturais, institucionais epolíticos. Segun<strong>do</strong> Minayo (2000), esse contexto socialacarreta forte sentimento <strong>de</strong> insegurança, que ten<strong>de</strong> aexacerbar o individualismo, promoven<strong>do</strong>, assim, a exclusãosocial e dificultan<strong>do</strong> a expressão <strong>do</strong> sentimento<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>.Em relação à violência contra i<strong>do</strong>sos, tais fatores têm<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>:• Poucas políticas públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e assistência socialdirecionadas ao atendimento das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssecrescente segmento populacional.• Aumento <strong>do</strong>s problemas sociais e econômicos queafetam a gran<strong>de</strong> maioria das famílias brasileiras, paraas quais os membros i<strong>do</strong>sos constituem muitas vezesum peso.• Despreparo <strong>do</strong>s profissionais <strong>de</strong> assistência social e saú<strong>de</strong>para lidar com situações <strong>de</strong> abuso e negligência.O contexto socialatual ten<strong>de</strong>a exacerbar oindividualismo,promoven<strong>do</strong> aexclusão sociale dificultan<strong>do</strong> aexpressão<strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong>.Embora <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003 a socieda<strong>de</strong> brasileira disponha <strong>do</strong> Estatuto <strong>do</strong>I<strong>do</strong>so, que <strong>de</strong>termina punições para os casos comprova<strong>do</strong>s <strong>de</strong> violênciacontra i<strong>do</strong>sos, ainda são poucas as <strong>de</strong>núncias das situações<strong>de</strong> abuso e negligência.Macha<strong>do</strong> e Queiroz (2006) sugerem algumas ações preventivas <strong>de</strong>violência contra i<strong>do</strong>sos, que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>senvolvidas por organizaçõesgovernamentais e da socieda<strong>de</strong> civil voltadas aos direitoshumanos:• Informar e conscientizar a socieda<strong>de</strong> sobre os aspectos relaciona<strong>do</strong>sà violência, em particular a que atinge os i<strong>do</strong>sos.Dieter Hawlan/istockphoto25


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safio• Promover treinamentos para profissionais que atuam nas áreas<strong>de</strong> atenção ao i<strong>do</strong>so, para i<strong>de</strong>ntificação, tratamento e prevenção daviolência.• Defen<strong>de</strong>r os i<strong>do</strong>sos vítimas <strong>de</strong> maus-tratos e negligência.• Estimular pesquisas sobre a violência contra i<strong>do</strong>sos, para conhecermelhor sua extensão e natureza.• Criar programas educativos para i<strong>do</strong>sos que <strong>de</strong>senvolvam sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> autocuida<strong>do</strong>, a ajuda mútua, bem como a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>direito <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação.• Estimular políticas públicas <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> violência que contemplemserviços a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s para dar apoio a adultos vulneráveis, promoven<strong>do</strong>a coesão familiar e a solidarieda<strong>de</strong> intergeracional.ConclusãoPara o equacionamento da questão da violência contra i<strong>do</strong>sos noBrasil, torna-se cada vez mais necessária a ação conjunta <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,da socieda<strong>de</strong> civil, das organizações comunitárias e <strong>do</strong>s grupos representativosda população i<strong>do</strong>sa, ten<strong>do</strong> como ponto <strong>de</strong> partida suaconscientização e sensibilização para a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse problema <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> pública.Lisa F. Young/istockphotoAlém <strong>do</strong> estímulo a pesquisas nessa área e da implementação<strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong> prevenção aos abusose maus-tratos, consi<strong>de</strong>ra-se fundamental a promoção<strong>de</strong> programas <strong>de</strong> educação gerontológica para todas asfaixas etárias e em to<strong>do</strong>s os níveis, na família e na comunida<strong>de</strong>,visan<strong>do</strong> a combater o preconceito em relaçãoà velhice, que é a forma <strong>de</strong> violência mais apontadapelos i<strong>do</strong>sos.Como no Brasil a família é percebida como o espaçomais apropria<strong>do</strong> para a moradia e o cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, qualquer que seja sua classe social, é precisoinvestir em programas <strong>de</strong> suporte aos cuida<strong>do</strong>res familiares<strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos, para que o cuida<strong>do</strong> seja a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>,digno e respeitoso, prevenin<strong>do</strong> os maus-tratos, em particulara negligência <strong>do</strong>méstica (Minayo, 2005).É fundamentalcriar programas<strong>de</strong> educaçãogerontológicapara todas asfaixas etárias,na família ena comunida<strong>de</strong>,para combatero preconceitoem relação àvelhice.Uma vez que os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (SUS), assistência social (Cras)e direito (Centro <strong>de</strong> Integração da Cidadania – CIC) são os maisfrequentemente envolvi<strong>do</strong>s na ocorrência <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> violência, éimprescindível sua capacitação para i<strong>de</strong>ntificar, intervir e prevenirtais situações.Recomenda-se também a elaboração <strong>de</strong> um protocolo <strong>de</strong> atendimentoao i<strong>do</strong>so em serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e assistência social que inclua orastreamento <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> violência, para ser segui<strong>do</strong> pelos profissionaisque atuam na área, bem como a criação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apoio aoi<strong>do</strong>so vitima<strong>do</strong> e ampla divulgação <strong>de</strong>sses recursos.2627


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Violência contra i<strong>do</strong>sos: um novo <strong>de</strong>safioDeve-se levar em conta, ainda, como o próprio i<strong>do</strong>so po<strong>de</strong> contribuirpara um relacionamento intergeracional harmonioso, respeitoso esolidário. A participação em programas <strong>de</strong> lazer que ofereçam ativida<strong>de</strong>srecreativas e educativas é importante na atualização das pes soasi<strong>do</strong>sas em relação ao universo a sua volta, propician<strong>do</strong> a necessáriareflexão sobre convivência amistosa, apesar da diferença <strong>de</strong> hábitos evalores. O engajamento da população mais velha em movimentoscomunitários e ações voluntárias também po<strong>de</strong> contribuir para umanova imagem <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so na comunida<strong>de</strong> e no contexto familiar.Só assim será possível construir uma socieda<strong>de</strong> para todas as ida<strong>de</strong>s,que respeite e valorize o cidadão i<strong>do</strong>so.Referências bibliográficasAguas, S. C. (Coord.). Como perciben los adultos mayores el maltrato. RevistaLatino-Americana <strong>de</strong> Gerontología, n. 1, mai. 1996.Daichman, L. Abuso y vejez: victimización <strong>de</strong> los ancianos. Cua<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Gerontología,ano 2, n. 4-6, 1989.Eastman, M.; Slater, P. El<strong>de</strong>r abuse: critical issues in policy and practice. Lon<strong>do</strong>n:Age Concern, 1999.Guimarães, R. M. O processo <strong>de</strong> <strong>envelhecimento</strong> como campo <strong>de</strong> investigação.Gerontologia, v. 5, n. 1, p. 18-22, 1997.International Network for the Prevention of El<strong>de</strong>r Abuse (Inpea).Disponível em: . Acesso em: nov. 2005.Macha<strong>do</strong>, L.; Queiroz, Z. Negligência e maus-tratos. In: Freitas, E. V. et al.Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> geriatria e gerontologia. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan,2006, p. 1.152-1.159.Minayo, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da saú<strong>de</strong> pública. Ca<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública, n. 10, p. 7-18, 1994. Suplemento.. Violência como indica<strong>do</strong>r <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Acta Paulista<strong>de</strong> Enfermagem, v. 13, p. 159-165, 2000. Número especial, parte I.. Violência contra i<strong>do</strong>sos: o avesso <strong>do</strong> respeito à experiência e sabe<strong>do</strong>ria.2. ed. Brasília: <strong>Secretaria</strong> Especial <strong>de</strong> Direitos Humanos, 2005.; Souza, E. R. O impacto da violência social na saú<strong>de</strong> pública noBrasil. In: Minayo, M. C. S. (Org.). Os muitos Brasis: saú<strong>de</strong> e populaçãona década <strong>de</strong> 80. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 87-116.Ministério da Saú<strong>de</strong>. Portaria nº 1.395, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1999. Dispõesobre a Política Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> I<strong>do</strong>so. Brasília, 1999.. <strong>Secretaria</strong> <strong>de</strong> Políticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Política Nacional <strong>de</strong> Redução daMorbimortalida<strong>de</strong> por Aci<strong>de</strong>ntes e Violências. Revista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública, v. 34,n. 4, p. 427-430, 2000.Ogg, J.; Bennett, G. El<strong>de</strong>r abuse in Britain. British Medical Journal, n. 305,p. 998-999, 1992.Pillemer, K.; Finkelhor, D. The prevalence of el<strong>de</strong>r abuse: a ran<strong>do</strong>m samplesurvey. Gerontologist, n. 28, p. 51-57, 1988.2829


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Podnieks, E. (Coord.). National survey on abuse of the el<strong>de</strong>rly in Canada. Toronto:Ryerson Polytechnical Institute, 1989.Queiroz, Z. P. V. Programas <strong>de</strong> assistência <strong>do</strong>miciliar a i<strong>do</strong>sos fragiliza<strong>do</strong>s comoproposta <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> negligência <strong>do</strong>méstica. O Mun<strong>do</strong> da Saú<strong>de</strong>, v. 26,n. 4, p. 472-478, 2002.Quinn, M. J.; Tomita, S. K. El<strong>de</strong>r abuse and neglect: causes, diagnosis and interventionsstrategies. New York: Springer, 1990.Spencer, C. (Org.). Abuse and neglect of ol<strong>de</strong>r adults in community settings:an annotated bibliography. Toronto: Simon Fraser University, 1996.US Senate Special Committee on Aging. El<strong>de</strong>r abuse: an examination ofa hid<strong>de</strong>n problem. Washington, DC: Government Printing Office, 1981.World Health Organization. World report on violence and health. Genève:WHO/Inpea, 2002.Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>e subjetivida<strong>de</strong>Elisabeth Frohlich Mercadante30


Viver não dói. O que dóié o tempo, essa força oníricaem que se criam os mitosque o próprio tempo <strong>de</strong>vora.Emílio Moura, “Canção”.Refletir sobre a velhice implica a utilização <strong>de</strong> conceitos e noçõesque possam fundamentar a compreensão sobre as i<strong>de</strong>ias a elarelacionadas.Este texto apresenta e discute duas noções que sustentam várias explicaçõesteóricas levadas a efeito pelas ciências humanas e sociais nasanálises <strong>de</strong>senvolvidas sobre diversos temas, entre eles a velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>e subjetivida<strong>de</strong>.Elisabeth Frohlich Mercadante é <strong>do</strong>utora em Ciências Sociais (PUC-SP), coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra eprofessora <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Pós-Gradua<strong>do</strong>s em Gerontologia, antropóloga, pesquisa<strong>do</strong>rana área <strong>de</strong> Gerontologia. Participou da pesquisa “Cuidar e incluir: i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> necessida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos <strong>de</strong> baixa renda”, financiada pela Fapesp com as seguintes entida<strong>de</strong>s: <strong>Secretaria</strong>Municipal da Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo; Departamento <strong>de</strong> Medicina Preventiva da Faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> Medicina da USP; Departamento <strong>de</strong> Medicina Social da Santa Casa (MSSC); curso <strong>de</strong> graduaçãoem Gerontologia, Campus Leste-USP; Associação Nacional <strong>de</strong> Gerontologia <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul (ANG-RS); <strong>Secretaria</strong> Municipal <strong>de</strong> Assistência Social e Desenvolvimento (SMADS).I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>A questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> faz com que nosperguntemos “quem somos?”, tanto pessoalcomo socialmente. Assim, a respostae a explicação <strong>do</strong> “quem somos?” remetema uma análise que <strong>de</strong>ve levar em conta uma33


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal”, que nos <strong>de</strong>fina como indivíduos, e uma “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>social”, que nos explique como membros <strong>de</strong> grupos.A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, seja ela pessoal ou grupal, é pensada e construída combase em uma relação social que se estabelece entre o “eu” e o “outro”.A principal característica <strong>de</strong>ssa relação é o fato <strong>de</strong> ela apresentar-sesempre como “contrastiva”, isto é, o “eu” sempre se <strong>de</strong>fine na “alterida<strong>de</strong>”,no contraste com o “outro”. O “eu” é o contrário <strong>do</strong> “outro”.Portanto, não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sem apontar essa relação.Em outras palavras, em seu significa<strong>do</strong> mais próximo, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,tanto individual como social, diz respeito à separação e ao or<strong>de</strong>namento<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> uma população em uma série <strong>de</strong> categorias <strong>de</strong>finidasem termos <strong>de</strong> “nós” e “eles”.De maneira geral, na noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>staque é da<strong>do</strong> àsdiferenças e às qualida<strong>de</strong>s positivas. Os cientistas sociais utilizamMerca<strong>do</strong> Municipal em São Paulo.Marcia Alvesessa noção na análise das diversas minorias étnicas, religiosas e <strong>de</strong>grupos sociais. Esses grupos (i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais) po<strong>de</strong>m ser<strong>de</strong> muitos tipos ou composições: homossexuais, prostitutas, camadassociais (média, por exemplo), grupos ocupacionais (carpinteiros,médicos, advoga<strong>do</strong>s, empregadas <strong>do</strong>mésticas etc.) e tantos outrosque possam ser classifica<strong>do</strong>s pela categoria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A justificativa<strong>do</strong> uso da categoria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>marcar cada um <strong>de</strong>ssesgrupos se apoia no fato <strong>de</strong> eles terem um mínimo <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>temporal e articularem suas experiências comuns em torno <strong>de</strong> certastradições e valores.O que se quer, inicialmente, ressaltar nessa concepção é que a heterogeneida<strong>de</strong>social passa a ser o fundamento, o pressuposto que explicaas próprias socieda<strong>de</strong>s complexas <strong>de</strong> hoje. Desse mo<strong>do</strong>, os váriosgrupos sociais, com suas características singulares, isto é, as diferentesi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais, são vistos como facetas diversas da plural e multifacetadasocieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> como marca fundamental das socieda<strong>de</strong>scomplexas chama a atenção para a participação diferenciada <strong>do</strong>s indivíduose grupos na socieda<strong>de</strong>. Assim, esses indivíduos e gruposfariam leituras diferentes sobre temas comuns e gerais presentes emsuas socieda<strong>de</strong>s.I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e velhiceA velhice é, <strong>de</strong>certo, um fenômeno biológico, mas entendê-la apenas<strong>de</strong>ssa maneira significa reduzir a questão e não analisá-la em sua totalida<strong>de</strong>e complexida<strong>de</strong>, o que implica ignorar os aspectos psicológico,social e, principalmente, <strong>cultural</strong>.Na área geriátrica, os autores <strong>de</strong>finem a velhice como fenômenobiológico <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio físico e mental irreversível em <strong>de</strong>corrência dapassagem <strong>do</strong> tempo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o organismo ter alcança<strong>do</strong> a plena3435


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>maturida<strong>de</strong>. Está presente, nessa literatura, a relação entre o social eo biológico, mas este é toma<strong>do</strong> como principal fator <strong>de</strong> implicaçõessociais na vida <strong>do</strong>s indivíduos que envelhecem. Normalmente, taisimplicações se referem a um fechamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so, que setorna pequeno, restrito e priva<strong>do</strong>, em oposição ao mun<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>quan<strong>do</strong> jovem e adulto, mais amplo e público.Iain Sarjeant/istockphotoA maneira como, em geral, se formula a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho, levan<strong>do</strong>em conta sobretu<strong>do</strong> as características físicas e biológicas, dá a ela umasubstância que assume tal força e presença que passa prioritariamentea <strong>de</strong>finir o indivíduo.A presente reflexão <strong>de</strong>seja mostrar que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho se <strong>de</strong>finenão por possuir apenas uma substância, uma essência, e sim por seruma construção <strong>cultural</strong> elaborada e reelaborada constantemente.A velhice,assim comoa juventu<strong>de</strong>, não éuma concepçãoabsoluta, e simuma forma <strong>de</strong>interpretar opercurso da vida.Assim, se a velhice, não se quer aqui negar, se <strong>de</strong>fine como fenômenobiológico, essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho só se <strong>de</strong>fine parcialmente e, comcerteza, cai-se em uma postura equivocada ao extrapolar essa parteou condição biológica para explicar a totalida<strong>de</strong> (comportamentos,atitu<strong>de</strong>s, pensamentos etc.) <strong>do</strong> indivíduo – ou seja, erra-se ao priorizara condição biológica como a conforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> comportamentopsicossocial <strong>do</strong> indivíduo.A velhice, portanto, se apreendida só como questão biológica,não revela seu la<strong>do</strong> social. Ela, além <strong>de</strong> sua especificida<strong>de</strong>biológica, localiza-se em uma história e insere-seem um sistema <strong>de</strong> relações sociais. Desse mo<strong>do</strong>, as variáveishistórica e socio<strong>cultural</strong>, particulares <strong>de</strong> cada socieda<strong>de</strong>,são as que fundamentam e explicam a variável velhice biológica,que é comum a to<strong>do</strong>s os seres humanos em todasas socieda<strong>de</strong>s. Em outros termos, o <strong>de</strong>stino da velhice, oser velho não é o mesmo em to<strong>do</strong>s os lugares; ele é vivi<strong>do</strong><strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o contexto social.A velhice, assim como a juventu<strong>de</strong>, não é uma concepção absoluta,e sim uma forma <strong>de</strong> interpretar o percurso da vida. Joel Birman (1995,p. 30) afirma:Como interpretações, estas concepções – juventu<strong>de</strong> e velhice – se transformamhistoricamente. Portanto, não existe qualquer substancialida<strong>de</strong>absoluta no ser da velhice e da juventu<strong>de</strong>, pois estes são conceitosconstruí<strong>do</strong>s historicamente e que se inserem então ativamente na dinâmica<strong>do</strong>s valores e das culturas que enunciam algo sobre o seu ser.Com base no que se explicitou até aqui, é preciso, portanto, enten<strong>de</strong>ra velhice em sua totalida<strong>de</strong>; ela não representa apenas um fato biológico,mas também um fato <strong>cultural</strong>.Como já indica<strong>do</strong>, a problemática das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais, comotrabalhada pelas ciências humanas, chama a atenção para as relações<strong>de</strong> contrastivida<strong>de</strong> como elementos fundamentais na construção dasi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Vários autores apontam a existência <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> rela-3637


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>38A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho, tal qual aparece na reflexão <strong>de</strong>Beauvoir, parece-nos estigmatizada e, logo, profundaçõescontrastivas para que seja possível a formulação das diversasi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais. O conjunto das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s compõe um sistemaque gera a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> diferenças. Partin<strong>do</strong><strong>de</strong>ssa concepção, tem-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “eu” é construídapela oposição à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “outro” e vice-versa.Dessa forma, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho constrói-se pela contraposição ài<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jovem; consequentemente, há também a contraposiçãodas qualida<strong>de</strong>s: ativida<strong>de</strong>, produtivida<strong>de</strong>, beleza, força, memória etc.como características típicas <strong>do</strong>s jovens e as qualida<strong>de</strong>s opostas presentesnos i<strong>do</strong>sos.As características atribuídas aos velhos, que vão <strong>de</strong>finir seu perfili<strong>de</strong>ntitário, são estigmatiza<strong>do</strong>ras, fruto <strong>de</strong> produção i<strong>de</strong>ológica dasocieda<strong>de</strong>. Os i<strong>do</strong>sos conhecem e também partilham essa i<strong>de</strong>ologia,que, entretanto, <strong>de</strong>fine o velho em geral, não em particular. Assim,pessoalmente não se sentem incluí<strong>do</strong>s no gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>ológico.Partilhar a i<strong>de</strong>ologia revela o fato lógico <strong>de</strong> que certos indivíduospreenchem os requisitos necessários para serem classifica<strong>do</strong>s comovelhos. Desse mo<strong>do</strong>, se o “velho” não sou “eu”, o velho é o “outro”.As diferenças, as qualida<strong>de</strong>s pessoais são, então, levantadas e apresentadaspara <strong>de</strong>finir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal que se contrapõe à categoriagenérica <strong>de</strong> velho.O ser velho tem sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> claramente <strong>de</strong>finida pela relação queestabelece com o outro, alterida<strong>de</strong> jovem.Simone <strong>de</strong> Beauvoir (1990, p. 353) chama aatenção para essa relação “eu” e “outro”,profun damente chocante, estigmatiza<strong>do</strong>ra,cria<strong>do</strong>ra da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> velho:É normal, uma vez que em nós é ooutro que é velho, que a revelação <strong>de</strong>nossa ida<strong>de</strong> venha <strong>do</strong>s outros. Nãoconsentimos nisso <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>.Mark Papas/istockphotoUma pessoa fica sempre sobressaltada quan<strong>do</strong> a chamam<strong>de</strong> velha pela primeira vez.Sentir-se velho, pelo olhar <strong>do</strong>s outros, po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong>ten<strong>do</strong> em vista o fato <strong>de</strong> que a velhice pertence àcategoria que Sartre <strong>de</strong>nominou “os irrealizáveis”. Sobreeles, explica Beauvoir (1990, p. 357):Seu número é infinito, pois representam o inverso <strong>de</strong>nossa situação. O que somos para outrem é impossívelvivê-lo no mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> para si. O irrealizável é o “meu sera distância que limita todas as minhas escolhas e constituio seu avesso”.E a autora ainda aponta:Em nossa socieda<strong>de</strong>, a pessoa i<strong>do</strong>sa é <strong>de</strong>signada como talpelos costumes, pelos comportamentos <strong>de</strong> outrem, pelopróprio vocabulário: ela tem que assumir essa realida<strong>de</strong>.Há uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong> fazê-lo: nenhumame permitirá coincidir com a realida<strong>de</strong> que assumo. Avelhice é um além <strong>de</strong> minha vida, da qual não posso ternenhuma plena experiência interior. De maneira maisgeral, meu ego é um objeto transcen<strong>de</strong>nte, que não habitaminha consciência, que só po<strong>de</strong> ser visualiza<strong>do</strong> adistância.Essa visualização opera-se através <strong>de</strong> uma imagem:tentamos representar quem somos através da visão queos outros têm <strong>de</strong> nós. A própria imagem não é dada naconsciência: é um feixe <strong>de</strong> intencionalida<strong>de</strong>s dirigidasatravés <strong>de</strong> um analogon em direção a um objeto ausente.Ela é genérica, contraditória e vaga (Beauvoir,1990, p. 357).Simone <strong>de</strong> Beauvoir(1908-1986), filósofa,escritora e feministafrancesa, fun<strong>do</strong>u com ofilósofo Jean-Paul Sartre,seu companheiro <strong>de</strong>toda a vida, o periódicoLes Temps Mo<strong>de</strong>rnes. Em1949, publicou O segun<strong>do</strong>sexo, pioneiro manifesto<strong>do</strong> feminismo, no qualpropôs novas bases parao relacionamento entremulheres e homens.39TopFoto/KEYSTONE


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>Anette Romanenko/istockphotoMais <strong>do</strong> que isso, nessa correlação entra a noção <strong>de</strong>tempo, que se apresenta como “pouco tempo <strong>de</strong> vida”,“<strong>do</strong> tempo que passou”, “<strong>de</strong> que nada mais se <strong>de</strong>veesperar <strong>de</strong> um indivíduo que, com o passar <strong>do</strong> tempo,‘só <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cair’”. Essas i<strong>de</strong>ias relacionan<strong>do</strong> velhice etempo revelam um indivíduo que não investe no presentenem projeta o futuro, que só tem passa<strong>do</strong>, lembrançaspara rememorar e, mais tar<strong>de</strong>, o confrontocom a morte. Elas negam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um futuropara o velho.O corpo por si sónão revela comoatributo a velhice,porém, uma vezque ela, comoestigma, instala-seno corpo, passa ainquietar o i<strong>do</strong>so.mente pejorativa. Essa i<strong>de</strong>ia também está presente na noção <strong>de</strong> estigmaproposta por Goffman (1975, p. 13):O termo “estigma”, portanto, será usa<strong>do</strong> em referência a um atributo<strong>de</strong>preciativo, mas o que é preciso, na realida<strong>de</strong>, é uma linguagem <strong>de</strong>relações e não <strong>de</strong> atributos. Um atributo que estigmatiza alguém po<strong>de</strong>confirmar a normalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outrem; portanto, ele não é, em si mesmo,nem honroso, nem <strong>de</strong>sonroso.Ora, a vivência primeira da velhice se dá no corpo. O corpo por si sónão revela como atributo a velhice, porém, uma vez que ela, comoestigma, instala-se no corpo, passa a inquietar o i<strong>do</strong>so. Certamente, ainquietação <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma avaliação também estigmatizada e, emconsequência, <strong>de</strong> uma abominação <strong>do</strong> indivíduo diante <strong>do</strong> própriocorpo. A visão <strong>de</strong> um corpo imperfeito – “em <strong>de</strong>clínio”, “enfraqueci<strong>do</strong>”,“enruga<strong>do</strong>” etc. – não avalia apenas o corpo, mas sugere imediatamenteampliar-se além <strong>de</strong>le, sobre a personalida<strong>de</strong>, sobre o papel social,econômico e <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so.A esse respeito, afirma Birman (1995, p. 39):O i<strong>do</strong>so é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> alguém que existiu no passa<strong>do</strong>, que realizou o seupercurso psicossocial e que apenas espera o momento fatídico para sairinteiramente da cena <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Ainda sobre a negação <strong>de</strong> um futuro para o velho, Beauvoir (1990,p. 266) a relaciona com a i<strong>de</strong>ia da reciprocida<strong>de</strong>:Quan<strong>do</strong>, nos casos patológicos <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalização,o <strong>do</strong>ente não tem mais ligação com seus próprios fins,então os homens lhe aparecem como os representantes<strong>de</strong> uma espécie estranha. O que se passa no caso darelação <strong>do</strong> adulto com o velho é o inverso. O velho –salvo exceções – não faz mais nada. Ele é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> porum exis, e não por uma práxis. O tempo o conduz aum fim – a morte – que não é o seu fim, quenão foi estabeleci<strong>do</strong> por um projeto. E é porisso que o velho aparece aos indivíduos ativoscomo uma “espécie estranha”, na qual eles nãose reconhecem. Eu disse que a velhice inspirauma repugnância biológica; por uma espécie<strong>de</strong> auto<strong>de</strong>fesa, nós a rejeitamospara longe <strong>de</strong> nós.Sheryl Griffin/istockphoto4041


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>A noção <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nãoexplica o servelho comosujeito pleno<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos.O estabelecimento <strong>de</strong> uma relação não recíproca nãoocorre só no caso <strong>do</strong> adulto perante o velho, mas também<strong>do</strong> adulto para com a criança. Há, no entanto, um investimentoda socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s adultos na educação dacriança, para assegurar o próprio futuro da socieda<strong>de</strong> naqual ela vive. O velho, diferentemente da criança, é umser sem futuro.A negação <strong>do</strong> futuro, a noção <strong>de</strong> um tempo que passa e que, aopassar, implica a <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong> velho colocam-secomo qualida<strong>de</strong>s negativas socialmente imputadas aos i<strong>do</strong>sos, crian<strong>do</strong>,assim, um mo<strong>de</strong>lo, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> genérica <strong>de</strong> velho.A existência <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construída com base em um mo<strong>de</strong>loestigmatiza<strong>do</strong>r <strong>de</strong> velho e a verificação da fuga <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lopelos próprios i<strong>do</strong>sos, que, como indivíduos, como seres singulares,não se sentem nele incluí<strong>do</strong>s, apontam o fundamento próprio daconstrução <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social para<strong>do</strong>xal: o velho não sou“eu”, e sim o “outro”. É por meio <strong>de</strong>sse fundamento, que contrastae realça, que as diferenças pessoais surgem e imediatamente se contrapõemà categoria genérica <strong>de</strong> velho. Assim, se, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, olevantamento das diferenças, das particularida<strong>de</strong>s exibidas individualmenteremete para a negação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo geral, <strong>de</strong> outro, essasmesmas e tantas outras particularida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser trabalhadaspelos indivíduos para a produção <strong>de</strong> um novo sujeito velho. Essenovo sujeito, portanto, não se <strong>de</strong>fine na contraposição a uma “alterida<strong>de</strong>jovem”, mas sim na produção <strong>de</strong> uma “subjetivida<strong>de</strong>” nega<strong>do</strong>rada i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigma.Embora a noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> seja útil para classificar um grupo <strong>de</strong>pessoas – nesse caso, pessoas cronologicamente reconhecidas comoi<strong>do</strong>sas –, ela não explica o ser velho como sujeito pleno <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos e,<strong>de</strong>ssa forma, não apenas porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, mas também,e sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>.Retrato <strong>do</strong> pai <strong>de</strong> Rembrandt, 1631, <strong>de</strong> Rembrandt.Subjetivida<strong>de</strong> e velhiceAutorretrato, 1519, <strong>de</strong> Leonar<strong>do</strong> da Vinci.Os homens, o tempo to<strong>do</strong>, estão geran<strong>do</strong> acontecimentos, produzin<strong>do</strong><strong>de</strong>sejos.Ferrigno (1987, p. 16), a respeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, afirma:Os <strong>de</strong>sejos po<strong>de</strong>m ser o florescimento da vida se levarem a uma políticalibertária, tanto mais intensa e abrangente quanto mais agenciamentosconseguir formar através <strong>de</strong> conexões com <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> outros. Rizoma <strong>de</strong>fluxos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo. Agenciamento coletivo <strong>de</strong> enunciação, sinônimo <strong>de</strong> processo<strong>de</strong> singularização e, portanto, ser <strong>de</strong>generescência da vida, se forencarcera<strong>do</strong>, <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> e territorializa<strong>do</strong> na repetição e no isolamento.O <strong>de</strong>sejo é subterrâneo, é o outro plano da realida<strong>de</strong> das formas e daorganização, que atravessa hierarquias e categorias como raça, sexo,classe social, indivíduo, família, Esta<strong>do</strong>, governo, trabalho, ida<strong>de</strong> etantas outras: o <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> máquina <strong>de</strong>nominada inconscientehumano.4243


walter craveiro<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>O <strong>de</strong>sejo é imanentemente revolucionário. Segun<strong>do</strong> Guattari (1987,p. 46), as invenções originadas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo ocorrem incessantemente,em to<strong>do</strong>s os níveis:intrapessoais (o que está em jogo no sonho, na criação etc.); pessoais (porexemplo, as relações <strong>de</strong> auto<strong>do</strong>minação); e interpessoais (a invenção <strong>de</strong>novas formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> na vida <strong>do</strong>méstica, amorosa, profissional,na relação com a vizinhança, com a escola etc.).O <strong>de</strong>sejo, então, é elemento fundante da subjetivida<strong>de</strong>, e esta po<strong>de</strong>ser produzida por instâncias individuais e institucionais.A problemática da subjetivida<strong>de</strong>, que tem como um <strong>do</strong>s elementosconstitutivos a sociabilida<strong>de</strong>, já foi apontada por Georg Simmel emseus trabalhos “A metrópole e a vida mental” e On individuality andsocial forms. Para ele, a noção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> aparece pelo viés dadiscussão da existência <strong>de</strong> uma cultura objetiva e <strong>de</strong> outra subjetiva.A cultura objetiva é exterior ao sujeito, mas interage o tempo to<strong>do</strong>com ele. A cultura subjetiva pressupõe o <strong>de</strong>senvolvimento da vidapsíquica <strong>do</strong> homem. É preocupação <strong>de</strong> Simmel enten<strong>de</strong>r em qualVelhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>extensão o processo da vida psíquica trabalha os bens e realizações dacultura objetiva, introjetan<strong>do</strong>-os.A cultura subjetiva não po<strong>de</strong> existir sem a objetiva, pois o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>do</strong> sujeito diz respeito à aquisição interna (psíquica) <strong>de</strong> objetoscultiva<strong>do</strong>s. A cultura objetiva, por sua vez, é em parte in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nteda subjetiva. Objetos culturais “cultiva<strong>do</strong>s” po<strong>de</strong>m ter finalida<strong>de</strong>sdistintas daquelas que implicam sua utilização pelos sujeitos.Não há, segun<strong>do</strong> Simmel, uma relação <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> equilibrada,no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que, quanto maior for o <strong>de</strong>senvolvimento da culturaobjetiva, maior também será o <strong>de</strong>senvolvimento da cultura subjetiva.Na verda<strong>de</strong>, afirma ele, é o contrário que ocorre. A relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sproporçãoe <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio é clara entre as duas culturas. ParaSimmel, o <strong>de</strong>senvolvimento da técnica em to<strong>do</strong>s os setores da vidamo<strong>de</strong>rna, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e a insatisfação <strong>do</strong>s sujeitos com esse tipo <strong>de</strong>progresso, <strong>de</strong> outro, evi<strong>de</strong>nciam o fato <strong>de</strong> que as coisas se tornamcada vez mais elaboradas, sofisticadas, e os homens conseguem cadavez menos transpor a perfeição <strong>do</strong>s objetos para o <strong>de</strong>senvolvimentoda vida interna, subjetiva.Essa relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio, <strong>de</strong> não reciprocida<strong>de</strong> entreas duas culturas, faz-nos retornar ao pensamento <strong>de</strong> FélixGuattari, que ressalta o fato <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>senvolvimentotecnológico, por si só, não po<strong>de</strong> ser julga<strong>do</strong> nem positivanem negativamente em sua associação com a subjetivida<strong>de</strong>.Certamente, para Guattari, o <strong>de</strong>sen volvimentoda tecnologia ligada à criação <strong>de</strong> universos referenciais,a novas expe riências sociais, como vimos, po<strong>de</strong> tanto seconstituir em saída <strong>do</strong> “perío<strong>do</strong> opressivo atual”, levan<strong>do</strong>-nosa uma “era pós-mídia”, como mergulhar a socieda<strong>de</strong>e os homens em seu oposto.Segun<strong>do</strong> Simmel, a problemática da subjetivida<strong>de</strong> nãose reduz à discussão da relação entre culturas objetiva eA sociabilida<strong>de</strong>,que possibilitaa constituição dasubjetivida<strong>de</strong>,está presentenos vários tipos<strong>de</strong> associações,promoven<strong>do</strong>a proximida<strong>de</strong>entre os indivíduos.4445


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>Velhice: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong>subjetiva; ela aponta também a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimentopelo exercício da sociabilida<strong>de</strong>. A sociabilida<strong>de</strong> é um elemento quepossibilita a constituição da subjetivida<strong>de</strong>; está presente nos váriostipos <strong>de</strong> associações, existin<strong>do</strong> como um fim em si mesma, geran<strong>do</strong>nos indivíduos a satisfação pelo próprio fato <strong>de</strong> a exercerem, <strong>de</strong> sesentirem associa<strong>do</strong>s e, assim, <strong>de</strong> resolverem a solidão individual pelaunião, pela proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uns com os outros.Consi<strong>de</strong>rações finaisA noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> homogênea <strong>de</strong> velho, que leva em conta arelação com a alterida<strong>de</strong> jovem, implica a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> reprodução, <strong>de</strong>reviver o passa<strong>do</strong>, mesmo que altera<strong>do</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, o presente estásempre repon<strong>do</strong>, repetin<strong>do</strong> algo já vivi<strong>do</strong>, impossibilitan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ssaforma, a criação, a invenção.A heterogeneida<strong>de</strong>, observada na vida diária <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, não é suficientepara anular uma visão homogênea <strong>de</strong> pensar sobre o velho e avelhice. Portanto, uma nova maneira <strong>de</strong> representação simbólica, que<strong>de</strong>staque a noção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, impõe-se como <strong>de</strong> fundamentalimportância para avaliar a produção <strong>de</strong> um novo sujeito – nesse caso,um novo sujeito velho.A noção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> apoia-se nas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> invenção, <strong>de</strong> produção<strong>de</strong> novas situações <strong>de</strong> vida pelo <strong>de</strong>sempenho tanto individualcomo grupal <strong>do</strong>s sujeitos em suas <strong>de</strong>cisões cotidianas. Na perspectivada subjetivida<strong>de</strong>, os indivíduos <strong>de</strong>stacam-se como inventores da vidasocial. Assim, essa noção, que tem como principal alia<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo,estabelece, para os sujeitos, o reconhecimento e a produção <strong>de</strong> novasmodalida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> formas alternativas <strong>de</strong> vida – individual e grupal –que certamente vão se contrapor aos códigos estabeleci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> orientaçõesmais tradicionais, às classificações i<strong>de</strong>ntitárias.Referências bibliográficasBeauvoir, S. A velhice. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1990.Birman, J. Futuro <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s nós: temporalida<strong>de</strong>, memória e terceira ida<strong>de</strong> napsicanálise. In: Terceira ida<strong>de</strong>, um <strong>envelhecimento</strong> digno para o cidadão <strong>do</strong> futuro.São Paulo: Universida<strong>de</strong> Aberta da Terceira Ida<strong>de</strong> (Unati)/RelumeDumará, 1995.Debert, G. G. As representações (estereótipos) <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so na socieda<strong>de</strong>atual. In: I Seminário Internacional “Envelhecimento populacional − umaagenda para o final <strong>do</strong> século”. Anais... Brasília: Ministério da Previdência eAssistência Social/<strong>Secretaria</strong> da Assistência Social, 1996.Ferrigno, J. C. O <strong>de</strong>vir velho. Revista <strong>de</strong> Psicologia Social, n. 8, 1987.Goffman, E. Estigma: notas sobre a manipulação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>teriorada. Rio<strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1975.. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: <strong>Perspectiva</strong>, 1974.Guattari, F. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1993.. Revolução molecular: pulsações políticas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. São Paulo: Brasiliense,1987.Mercadante, E. F. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica e política. In: Série Ca<strong>de</strong>rnos PUC-SP, n. 33:Religião, política e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. São Paulo: Educ, 1988.Selaibe, M. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: um referencial <strong>de</strong> orientação pessoal ou um conteú<strong>do</strong>da consciência imagética. In: Série Ca<strong>de</strong>rnos PUC-SP, n. 33: Religião, políticae i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. São Paulo: Educ, 1988.Simmel, G. A metrópole e a vida mental. In: Velho, G. (Org.). O fenômenourbano. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1967.. On individuality and social formes. Chicago: University of ChicagoPress, 1971.Velho, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da socieda<strong>de</strong>contemporânea. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1987.. Subjetivida<strong>de</strong> e socieda<strong>de</strong>: uma experiência <strong>de</strong> geração. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Jorge Zahar, 1987.4647


A família e o i<strong>do</strong>soRuth Lopes


Essa lembrança... mas <strong>de</strong> on<strong>de</strong>? <strong>de</strong> quem?Essa lembrança talvez nem seja nossa,mas <strong>de</strong> alguém que, pensan<strong>do</strong> em nós, só possamandar um eco <strong>do</strong> seu pensamentonessa mensagem pelos céus perdida...Ai! Tão perdidaque nem se possa saber mais <strong>de</strong> quem!Mario Quintana,“Essa lembrança que nos vem”.Contextualização <strong>do</strong> tema no processo históricoRuth Gelehrter da Costa Lopes é <strong>do</strong>utora em Saú<strong>de</strong> Pública (USP). Vice-coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra e<strong>do</strong>cente <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Pós-Gradua<strong>do</strong>s em Gerontologia da PUC-SP; lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> grupo<strong>de</strong> pesquisa CNPq “Khalaó”, pesquisa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Psicogerontologia (GEP)“Saú<strong>de</strong>, Cultura e Envelhecimento” – CNPq, Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong> e Pesquisa <strong>do</strong> Envelhecimento(Nepe) – CNPq; membro da Re<strong>de</strong> Ibero-Americana <strong>de</strong> Psicogerontologia (Redip) e <strong>do</strong> Centro<strong>de</strong> Pesquisas e Ações em Gerontologia (Ger-Ações). Professora e coor <strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> cursoPsicogerontologia: Fundamentos e <strong>Perspectiva</strong>s (Cogeae-PUC-SP). Psicóloga, supervisora<strong>do</strong> Atendimento em Grupo a I<strong>do</strong>sos – Clínica/PUC-SP e Atendimento a I<strong>do</strong>sos em Grupo naComunida<strong>de</strong> – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Psicologia/PUC-SP (7º e 8º perío<strong>do</strong>s). Autora <strong>do</strong> livro Saú<strong>de</strong>na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso <strong>do</strong> medicamento. São Paulo:Educ, 2000.Apassagem da socieda<strong>de</strong> agrária para a industrializada caracterizou--se por importantes alterações no agrupamento familiar. Nassocieda<strong>de</strong>s baseadas na agricultura, a estrutura da chamada famíliaextensa era compatível com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra paraa lavoura <strong>de</strong> subsistência. Nesse tipo <strong>de</strong> família, conviviam até quatrogerações, <strong>do</strong> bisneto ao bisavô, além <strong>de</strong> parentes laterais e outrosagrega<strong>do</strong>s. Já a família típica da socieda<strong>de</strong> industrial é a nuclear,composta <strong>de</strong> um casal e poucos filhos ou mesmo nenhum. Esse encolhimento<strong>do</strong> grupo familiar tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela necessi da<strong>de</strong><strong>de</strong> ágeis <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra para a indústria e pela exiguida<strong>de</strong><strong>de</strong> espaços nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.As mudanças das últimas décadas não permitem saber exatamente oque é família. Debruça-se sobre a organização familiar contemporânea51


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soarquivo pessoalarquivo pessoal52Família reunida, 1905.para apreen<strong>de</strong>r as relações que perpassam essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> convivência.Apesar <strong>de</strong> a vida familiar continuar ten<strong>do</strong> valor social, os papéis <strong>do</strong>mésticossão conflitivos, uma vez que não há espaço para a dimensãoindividual, atributo hoje supervaloriza<strong>do</strong>. E como compatibilizar aindividualida<strong>de</strong> e a reciprocida<strong>de</strong> familiar? Vive-se uma época repleta<strong>de</strong> alternativas e ao mesmo tempo normativa; os papéis, não estan<strong>do</strong>rigidamente preestabeleci<strong>do</strong>s, são objeto <strong>de</strong> constantes revisões,em busca da construção <strong>de</strong> uma nova lógica nos relacionamentos. Terou po<strong>de</strong>r escolher <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a angústia, expon<strong>do</strong> a individualida<strong>de</strong><strong>do</strong>s sujeitos. Quan<strong>do</strong> se per<strong>de</strong> aquilo em que se investia, é necessárioreorganizar a intimida<strong>de</strong> pessoal, familiar e social. O limite entre oque pertence ao <strong>do</strong>mínio público e o que cabe ao priva<strong>do</strong> fica emsuspenso. Assim, a questão “Quem <strong>de</strong>ve cuidar <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so?” se coloca<strong>de</strong> maneira dramática para os familiares.A reflexão sobre a complexida<strong>de</strong> da família atual e o reconhecimento<strong>de</strong> sua importância no suporte à velhice visam a contribuir para aFamília reunida, 1955.formação <strong>de</strong> profissionais que venham a interferir nas políticas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a colaborar nessa difícil articulação: <strong>de</strong>mandas individuais,organização familiar e suportes institucionais.O <strong>envelhecimento</strong> da população brasileira é hoje um fato significativo,o que impõe a investigação e análise <strong>de</strong> amplos setores da socieda<strong>de</strong>.Acredita-se que isso não <strong>de</strong>ve ser atribuí<strong>do</strong> apenas aos altosíndices <strong>de</strong>mográficos, que apontam o crescimento <strong>de</strong>sse segmentoetário, mas muito mais à sensibilida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> para tal fenômeno.Afinal, o que adianta dar mais anos à vida se não se dá maisvida aos anos?Tratar <strong>de</strong> aspectos que envolvem o <strong>envelhecimento</strong> sinaliza a visibilida<strong>de</strong>que o tema vem conquistan<strong>do</strong>. Teme-se ficar i<strong>do</strong>so. Apesar <strong>de</strong>cada vez mais se apregoar a “boa velhice”, exemplifican<strong>do</strong>-a com figuraspúblicas po<strong>de</strong>rosas e sábias, o “i<strong>do</strong>so <strong>de</strong>negri<strong>do</strong>” faz parte <strong>do</strong>cotidiano e povoa o imaginário das pessoas <strong>de</strong> forma assusta<strong>do</strong>ra.53


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soConhecer oprocesso <strong>de</strong><strong>envelhecimento</strong>po<strong>de</strong> engendraro resgate <strong>de</strong>um discursoe uma práticarealista everda<strong>de</strong>iramenteamorosa.54Conhecer o processo <strong>de</strong> <strong>envelhecimento</strong> po<strong>de</strong> engendraro resgate <strong>de</strong> um discurso e uma prática realista e verda<strong>de</strong>iramenteamorosa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se possa também ampliar anoção <strong>do</strong>s vínculos afetivos, não recain<strong>do</strong> sempre na expectativa<strong>de</strong> que o núcleo familiar esteja apto a apoiarparentes que estão envelhecen<strong>do</strong>.As mudanças na estrutura da família têm contribuí<strong>do</strong> paramaior distanciamento entre as gerações. É expressivo onúmero <strong>de</strong> pessoas i<strong>do</strong>sas que moram sozinhas ou apenascom o cônjuge, assim como das que vivem em instituições<strong>de</strong> longa permanência. Mesmo no caso <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos quecoabitam com filhos e netos, as conversas mais dura<strong>do</strong>urassão raras e até inexistentes (Miranda, 2003).Outros olhares sobre o temaAvós e netos: espaço possível <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> geraçõesO processo <strong>de</strong> <strong>envelhecimento</strong> populacional vem geran<strong>do</strong> <strong>de</strong>safiosque ultrapassam o fator <strong>de</strong>mográfico. Além <strong>do</strong>s aspectos sociais, econômicose políticos, também estão envolvidas questões que repercutemnas relações humanas. É cada vez mais relevante o aumento daspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação entre avós e netos. A convivência maisprolongada entre as gerações mais velhas e as mais novas beneficiato<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s, com a transmissão <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> cultura e o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong> “avosida<strong>de</strong>”.No relacionamento intergeracional, é preciso estar atento à pertinência<strong>do</strong> respeito ao conhecimento preserva<strong>do</strong> pelos i<strong>do</strong>sos e à construção<strong>de</strong> um diálogo com as novas gerações. Os avós têm papel imprescindível,atuam como intermediários entre o passa<strong>do</strong>, o presente e ofuturo. Tanto os pais como os avós necessitam rever velhos conceitosarquivo pessoale procurar compreen<strong>de</strong>r a mudança <strong>do</strong>s valores e a evolução das geraçõesnos “novos tempos”, já que muitas vezes, <strong>de</strong> forma inesperada,veem-se diante <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s que não lhes competem e/oupara as quais não estão prepara<strong>do</strong>s.A nova constituição populacional e outros fatores a ela associa<strong>do</strong>s,como a entrada da mulher no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, propiciaram umaconvivência mais prolongada entre as gerações mais velhas e as maisnovas. Não há uma “receita” para que tal convivência seja benéfica,porém po<strong>de</strong>-se afirmar que nas famílias em que esse contato é cultiva<strong>do</strong>há a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfação <strong>de</strong> ambas as partes. O sentimentoda “avosida<strong>de</strong>”, por não ser dita<strong>do</strong> por regras impostas pela socieda<strong>de</strong>,permite preencher um espaço (muitas vezes vazio) na vida <strong>do</strong>i<strong>do</strong>so e alimenta a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> e perpetuação com as geraçõesmais novas (Erbolato, 2006).Situações em que a responsabilida<strong>de</strong> pela criação da criança é transferida<strong>do</strong>s pais para outro adulto da família (geralmente avó, tia oumadrinha) vêm se tornan<strong>do</strong> comuns. Elas po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>correr da necessida<strong>de</strong>da mãe <strong>de</strong> possuir um emprego, para ajudar na renda familiar,ou ainda <strong>de</strong> morte, migração, falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, financeirasou psicológicas <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s pais ou <strong>de</strong> ambos (Oliveira, 2003).Ao mesmo tempo que se assiste à <strong>de</strong>sintegração <strong>de</strong>um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> família sustenta<strong>do</strong> durante 200anos, observa-se o surgimento <strong>de</strong> outrasformações sociais baseadas, muitas vezes,em laços <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong> e não <strong>de</strong> parentesco(Goldfarb e Lopes, 2006).Po<strong>de</strong>-se falar da invenção social da infânciano século XVIII, quan<strong>do</strong> secriou um estatuto para essa faixaetária, assim como da invenção daa<strong>do</strong>lescência no final <strong>do</strong> XIX,55


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soépoca em que também surgiu a aposenta<strong>do</strong>ria. A crise da meia-ida<strong>de</strong>,ou <strong>do</strong>s 40, 50 anos, veio na esteira da invenção da velhice, emmea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX (Miranda, 2003).Cada vez mais encontram-se exemplos <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos que preservam aalegria, a criativida<strong>de</strong> e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização das mais diferentestarefas (sociais, <strong>de</strong> lazer, <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> e profissionais). Geralmente,são pessoas que não se isolaram e procuraram manter uma convivênciasaudável não apenas com pessoas <strong>de</strong> sua faixa etária, mas comjovens, crianças e adultos mais novos, o que lhes permite experimentari<strong>de</strong>ias e motivações diversas.Nesse contexto <strong>de</strong> prolongamento da vida, verifica-se que a atualgeração <strong>de</strong> netos é a primeira que po<strong>de</strong> esperar conhecer os quatroavós. Tal convivência cria um conjunto <strong>de</strong> laços e <strong>de</strong>safios. Os novoslaços centram-se, essencialmente, na interação entre avós maternos epaternos, que têm <strong>de</strong> construir uma relação entre si, ainda que mediadapelo neto (Goldfarb e Lopes, 2006). Surge, assim, um <strong>de</strong>safiopara avós e netos: os avós precisam interagir, contemplan<strong>do</strong>-se edan<strong>do</strong> carinho e afeto a seus netos comuns; os netos <strong>de</strong>vem apren<strong>de</strong>ra lidar com os quatro avós e a dividir seu tempo entre eles (Souza,2005). Indiscutivelmente, avós e netos representam um encontro <strong>de</strong>gerações que po<strong>de</strong> ser concretiza<strong>do</strong> com base em três eixos temporais:tempo social (história da socieda<strong>de</strong> e da comunida<strong>de</strong>), tempofamiliar (passagem pelas várias fases <strong>do</strong> ciclo <strong>de</strong>vida familiar) e tempo individual (aspectos <strong>do</strong><strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> indivíduo).Segun<strong>do</strong> Neugarten e Weinstein (1968), aassunção <strong>de</strong> diferentes estilos pelos avós (distantes,autoritários, substitutivos, diverti<strong>do</strong>s,formais) associa-se não só com características<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e com a relação que mantêmcom os filhos, mas também com o esta<strong>do</strong>angela men<strong>de</strong>s<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, a distância geográfica e a ida<strong>de</strong>. Em geral, osavós menos saudáveis são os mais formais; os mais saudáveise mais novos, os mais diverti<strong>do</strong>s; os que vivemmais longe ten<strong>de</strong>m a ser distantes.Os avós po<strong>de</strong>m assumir importante papel na vida <strong>do</strong>snetos, mas a relação inversa também se verifica. O envolvimentoemocional na prestação <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s aosnetos, em uma base diária, constitui para muitos avósuma motivação para a vida, até porque é acompanhada<strong>de</strong> menor responsabilida<strong>de</strong> e maior tolerância.Nesse contexto <strong>de</strong>prolongamentoda vida, a atualgeração <strong>de</strong>netos é aprimeira quepo<strong>de</strong> esperarconhecer osquatro avós.De fato, a convivência entre avós e netos po<strong>de</strong> ser benéfica para ambos,sobretu<strong>do</strong> porque sua relação não implica responsabilida<strong>de</strong>s, obrigaçõese conflitos, como a <strong>de</strong> pais e filhos. Para os avós, é, principalmente, arealização <strong>de</strong> um sonho, pois esse laço é senti<strong>do</strong> como a concretização5657


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soKary Nieuwenhuis/istockphoto58<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercer vários papéis ea oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interações significativas que permitem ver os própriosfilhos serem pais. Para os netos, torna-se possível viver uma relaçãoeducativa e afetiva diferente: os avós dispõem <strong>de</strong> mais tempo parabrincar e passear, enquanto os pais têm pouco tempo, trabalham emuitas vezes chegam em casa cansa<strong>do</strong>s e chatea<strong>do</strong>s. Além disso,a maturida<strong>de</strong>, a experiência <strong>de</strong> vida e a disponibilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m representarpara os avós um potencial <strong>de</strong> imaginação e criativida<strong>de</strong>.Redler (1986) afirma que a função <strong>de</strong> avô ou avó está sempre presente,não importan<strong>do</strong> se o indivíduo a aceita ou rejeita, se ela é bemou malsucedida, satisfatória ou conflitiva; tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> comofoi exercida a função paterna ou materna da qual <strong>de</strong>riva. Ter um netoé um novo laço geracional absolutamente inédito e exige umareorgani zação psíquica, uma relocalização <strong>do</strong>s lugares <strong>de</strong> pertencimento,uma verda<strong>de</strong>ira “metamorfose libidinal”, como a <strong>de</strong>nominaa mesma autora.O <strong>envelhecimento</strong> masculino possui algumas particularida<strong>de</strong>s relativasàs transformações que o gênero tem sofri<strong>do</strong> e às representaçõesque a socieda<strong>de</strong> tem <strong>do</strong>s homens. O homem i<strong>do</strong>so precisa enfrentarquestões como aposenta<strong>do</strong>ria e limitações para ter uma vida saudável,saber lidar com o ócio, investir em novos conhecimentos, projetos<strong>de</strong> vida, lazer e convivência com os netos. Entretanto,não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> citar o i<strong>do</strong>soque vive só, para quem a solidão prevalece e,com ela, a rejeição pela socieda<strong>de</strong>. To<strong>do</strong>sesses aspectos <strong>de</strong>vem ser observa<strong>do</strong>s e sermotivo <strong>de</strong> investigação diante <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> <strong>envelhecimento</strong> (Pedrosa, 2006).A maioria <strong>do</strong>s homens que se aposentamnão aceita o fato <strong>de</strong> afastar-se <strong>do</strong> trabalhoe procura outra ocupação (remuneradaarquivo pessoalou voluntária). Esses “i<strong>do</strong>sos socialmente ativos”, usan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>nominação<strong>de</strong> Lopes (1990), ou seja, aqueles que se engajam em algumaativida<strong>de</strong>, participam <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> teatro ama<strong>do</strong>r, investem emprogramas <strong>de</strong> lazer, praticam ativida<strong>de</strong>s esportivas ou qualquer outraque lhes faça senti<strong>do</strong> ou traga reconhecimento social.A “avosida<strong>de</strong>” masculina é um exercício cotidiano, noqual as perspectivas se renovam e o neto e o avô possuemsignificância na vida um <strong>do</strong> outro. Pais que eram rígi<strong>do</strong>s,ao se tornarem avôs, têm a opor tunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proporcionarliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, criativida<strong>de</strong> e brinca<strong>de</strong>iras.Tanto o avô como o neto ocupam lugar significativona relação que se constrói entre os <strong>do</strong>is. As trocas <strong>de</strong>experiência, as brinca<strong>de</strong>iras, as conversas e a cumplicida<strong>de</strong>buscam afeto, acolhimento e reciprocida<strong>de</strong>. Paraos avôs, a velhice e o <strong>envelhecimento</strong> estão relaciona<strong>do</strong>sA “avosida<strong>de</strong>”masculina éum exercíciocotidiano,no qual asperspectivas serenovam e o netoe o avô possuemsignificância navida um <strong>do</strong> outro.59


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>so60a um processo contínuo. A vivência po<strong>de</strong> ser fruto da experiênciaadquirida ou significar perda.O sentimento da “avosida<strong>de</strong>” em mulheres segue a linha <strong>do</strong> queocorre com os homens. A relação das i<strong>do</strong>sas com seus netos po<strong>de</strong> serbastante saudável, constituin<strong>do</strong> a base <strong>de</strong> uma futura formação só lidada geração mais nova e uma maneira <strong>de</strong> assegurar a transmissão <strong>de</strong>valores e experiências pela mais velha.Redler (1986), ao discorrer sobre os sentimentos presentes na “avosida<strong>de</strong>”,revela que estes po<strong>de</strong>m significar uma recompensa por perdas ecarências, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir uma história <strong>de</strong> amor com o neto,em substituição àquelas perdidas no passa<strong>do</strong>. Para as avós, os netosrepresentam uma ligação com o futuro, o que justifica a transmissão<strong>do</strong>s valores da família como forma <strong>de</strong> garantir sua continuida<strong>de</strong>.A dimensão afetiva construída pelas avós, no círculo familiar, éjustificada, ainda, pela visão da socieda<strong>de</strong> sobre o instinto materno.O “ser mãe” e o “querer ser mãe” são percebi<strong>do</strong>s como processosnaturais no universo feminino, e, em consequência, o “tornar-seavó” também o é (Oliveira, 2003).Um aspecto interessante <strong>do</strong> vínculo entre avós enetos é que tanto homens como mulheres ten<strong>de</strong>ma se relacionar mais com os filhos <strong>de</strong>seus filhos favoritos (Goldfarb e Lopes,2006). Essa predileção também po<strong>de</strong>ser expressa pelos netos (Barros,1987), e o fato <strong>de</strong> a escolhapartir das crianças reforçapara os avós a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>que a relação tem fundamentosnão racionais.Tal escolha parecepermea da pelaangela men<strong>de</strong>sespontaneida<strong>de</strong>, ou seja, pela plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentos que a própriarepresentação social <strong>de</strong> seus papéis apoia (Côrte, Merca dante eArcuri, 2006).O que <strong>de</strong>fine um avô não é uma imagem nem umaida<strong>de</strong> cronológica, tampouco um papel social. A “avosida<strong>de</strong>”é uma função intimamente ligada à funçãomaterna ou paterna, das quais se diferencia, mas que,como elas, tem papel <strong>de</strong>terminante na estruturaçãopsíquica <strong>do</strong> sujeito (Goldfarb e Lopes, 2006).Apesar <strong>do</strong>s vários estereótipos sobre o <strong>envelhecimento</strong>,atualmente tem se verifica<strong>do</strong> importantes mudançasna construção social da terceira ida<strong>de</strong>. Nessa perspectiva,os i<strong>do</strong>sos são vistos como seres <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s prazerosas e promotoras<strong>de</strong> realização pessoal (Miranda, 2003). Comisso, constata-se realmente a emergência <strong>de</strong> uma novaimagem da velhice.Ativida<strong>de</strong>s práticasOs diferentes grupos da socieda<strong>de</strong> que se dispuserem a discutir alongevida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus espaços po<strong>de</strong>rão apontar alternativas queassegurem um <strong>envelhecimento</strong> mais digno a seus membros. Apresentam-sea seguir algumas i<strong>de</strong>ias baseadas em práticas profissionais.Psicoterapia, grupos <strong>de</strong> apoio, oficinasA relação dasi<strong>do</strong>sas com seusnetos po<strong>de</strong> serbastante saudável,constituin<strong>do</strong>a base <strong>de</strong>uma futuraformação sólidada geraçãomais nova.Examinam-se, aqui, as possíveis intervenções no núcleo familiar, emface <strong>de</strong> uma convivência tumultuada com um membro em processo<strong>de</strong> <strong>envelhecimento</strong>: atendimento psicoterapêutico familiar, grupos <strong>de</strong>apoio comunitário ou a <strong>do</strong>enças específicas, como a AssociaçãoBrasileira <strong>de</strong> Alzheimer (Abraz).61


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soIntegrantes <strong>de</strong>grupos <strong>de</strong> apoiopassam <strong>de</strong>uma atitu<strong>de</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>manda<strong>de</strong>sesperadaa outra <strong>de</strong> oferta<strong>de</strong> ajuda eficaz.A psicoterapia individual familiar é indicada quan<strong>do</strong> secomprovam conflitos preexistentes à situação <strong>do</strong> sofrimentorelata<strong>do</strong>, impedin<strong>do</strong> o enfrentamento da novarealida<strong>de</strong>. É realizada em sessões sema nais ou quinzenaisdurante um perío<strong>do</strong> que varia <strong>de</strong> 2 a 18 meses, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda e da evolução <strong>do</strong> trabalho.Recomenda-se também a orientação individual ante situaçõeséticas que impossibilitem sua abordagem nosgrupos <strong>de</strong> apoio.Uma vez encaminhadas as possibilida<strong>de</strong>s elaborativas, o objetivo éque os familiares se integrem nos grupos <strong>de</strong> apoio institucionais ese beneficiem <strong>de</strong> experiências coletivas. Nossa preferência por essesgrupos se baseia no efeito terapêutico da i<strong>de</strong>ntificação que se estabeleceentre pessoas que compartilham o mesmo problema. Nesseâmbito, cada integrante <strong>do</strong> grupo passa, em breve espaço <strong>de</strong> tempo,<strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>sesperada a outra <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> ajudaeficaz, estabelecen<strong>do</strong>-se verda<strong>de</strong>iras re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> colaboração solidáriaque atuam <strong>de</strong> forma espontânea e autônoma em relação à instituiçãopromotora. Assim, cada participante <strong>do</strong> grupo se transformaem verda<strong>de</strong>iro agente multiplica<strong>do</strong>r que leva apoio e esclarecimentossobre a <strong>do</strong>ença a âmbitos nos quais sua existência e característicassão frequentemente ignoradas. O resulta<strong>do</strong> direto <strong>de</strong>sse trabalhoé gran<strong>de</strong> melhora na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida não apenas <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente,como também <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>r, favorecen<strong>do</strong> sua interação com o meiofamiliar e social.Na Abraz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992 são realizadas reuniões abertas mensais. Aassistência varia <strong>de</strong> 20 a 80 familiares por reunião, na qual se <strong>de</strong>senvolveuma primeira parte informativa, a cargo <strong>de</strong> um profissionalconvida<strong>do</strong>, seguida por discussões em grupos <strong>de</strong> 10 a 15 participantescada um, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s por familiares (cuida<strong>do</strong>res mais experientes).Os temas das palestras informativas são escolhi<strong>do</strong>s pelos participantesAl<strong>do</strong> Murillo/istockphotoe obe<strong>de</strong>cem a uma programação semestral, comunicada aos associa<strong>do</strong>spor carta e jornal da associação.Oficinas com 10 a 15 integrantes, organizadas em <strong>de</strong>z encontros,cada qual com a duração máxima <strong>de</strong> três horas, estruturadas por meio<strong>de</strong> dinâmicas <strong>de</strong> grupo, dão a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os participantes seinformarem e, principalmente, exporem conteú<strong>do</strong>s emocionais quecercam as <strong>de</strong>licadas relações afetivas nas famílias.Temas para discussão• O padrão <strong>cultural</strong>, impregna<strong>do</strong> da “<strong>de</strong>pendência prolongada dascrias em relação às mães” (Durham, 1983, p. 18), empurra novamentea mulher <strong>do</strong> núcleo familiar para o papel <strong>de</strong> tutora noscasos em que um adulto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte necessita <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s paragarantir a sobrevivência. A naturalização <strong>de</strong>sse fato acaba se tornan<strong>do</strong>um obstáculo para a família organizar e refletir conjunta-6263


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>somente sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novos arranjos para amparar essemembro, dividin<strong>do</strong> o ônus emocional, encargos monetários e atençõesespecíficas.• A dificulda<strong>de</strong> aparece quan<strong>do</strong> tentamos <strong>de</strong>finir o que é família.Em nossa cultura, a família é o espaço natural em que se operamas primeiras i<strong>de</strong>ntificações, lugar <strong>de</strong> emoções fortes e conflitosprofun<strong>do</strong>s. Assim como para outras socieda<strong>de</strong>s o grupo familiarnão está liga<strong>do</strong> a consanguinida<strong>de</strong>, para os adultos <strong>do</strong>entes e/oui<strong>do</strong>sos muitas vezes esse fato se repete. I<strong>de</strong>ntificar o núcleo afetivo<strong>de</strong> referência que substitui o parentesco familiar “natural” é umpasso essencial.• A socieda<strong>de</strong> contemporânea em transformação relega a segun<strong>do</strong>plano o adulto <strong>do</strong>ente, priorizan<strong>do</strong> o investimento na formação danova geração. O historia<strong>do</strong>r Philippe Ariès (1975) <strong>de</strong>screve essecenário: “A família mo<strong>de</strong>rna, ao contrário, separa-se <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> eopõe à socieda<strong>de</strong> o grupo solitário <strong>do</strong>s pais e filhos. Toda a energia<strong>do</strong> grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma emparticular, e sem nenhuma ambição coletiva: as crianças, mais <strong>do</strong>que a família”.Filmes• O bolo. Direção: José Roberto Torero. Brasil, 1995.14 min.O bolo é um <strong>do</strong>s episódios <strong>de</strong> Felicida<strong>de</strong> é..., filmenarra<strong>do</strong> em quatro segmentos, cada um assina<strong>do</strong>por um diretor, e to<strong>do</strong>s discutin<strong>do</strong> o tema “Felicida<strong>de</strong>”.Um casal está fazen<strong>do</strong> bodas <strong>de</strong> ouro. Elaprepara o bolo, ele molda um pedaço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira.Os <strong>do</strong>is se xingam e se ofen<strong>de</strong>m. Felicida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ser apenas você ter alguém a quem humilhar. Felicida<strong>de</strong>po<strong>de</strong> ser apenas você não estar sozinho.• Se tivéssemos tempo. Direção: José Eduar<strong>do</strong> <strong>de</strong>Oliveira. Brasil, 2007. 71 min.O filme mostra a “explosão” <strong>de</strong> sentimentose <strong>de</strong> emoções gerada pelas tristes recordações queLaura, 60 anos, tem <strong>de</strong> seu passa<strong>do</strong> e tambémpela realida<strong>de</strong> que enfrenta, causan<strong>do</strong>-lhe umarevolta <strong>de</strong>smedida. Eugênio, 70 anos, emocionalmentemais equilibra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que a companheira,está <strong>de</strong>bilita<strong>do</strong> e enfrenta as sequelas <strong>de</strong> um<strong>de</strong>rrame que o <strong>de</strong>ixou com dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> visãoe com os movimentos das pernas e <strong>do</strong>s braços comprometi<strong>do</strong>s.O enclausuramento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is i<strong>do</strong>sos na casa on<strong>de</strong> moram é umfato marcante, e os diálogos <strong>do</strong>s personagens, bem como as manifestações<strong>de</strong> repulsa e <strong>de</strong> carinho entre eles, são crescentes na noite<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira.divulgação6465


<strong>Perspectiva</strong> <strong>cultural</strong> <strong>do</strong> <strong>envelhecimento</strong>A família e o i<strong>do</strong>soReferências bibliográficasAriès, Philippe. História social da criança e da família. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,1975.Barros, M. L. <strong>de</strong> B. Autorida<strong>de</strong> e afeto: avós, filhos e netos na família brasileira.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1987.Côrte, Beltrina; Mercadante, Elisabeth F.; Arcuri, Irene G. (Org.). Apresentação.In: Envelhecimento e velhice: um guia para a vida. São Paulo: Vetor, 2006.(Coleção Gerontologia, v. 2.)Durham, Eunice. Família e reprodução humana. In: <strong>Perspectiva</strong>s antropológicasda mulher. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1983.Erbolato, Regina M. P. L. Relações sociais na velhice. In: Freitas, ElizabeteViana <strong>de</strong>; Py, Ligia; Cança<strong>do</strong>, Flávio A. Xavier; Gorzoni, Milton Luiz; Doll,Johannes. Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> geriatria e gerontologia. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: GuanabaraKoogan, 2006.Goldfarb, Délia C.; Lopes, Ruth G. C. Avosida<strong>de</strong>: a família e a transmissãopsíquica entre gerações. In: Freitas, Elizabete Viana <strong>de</strong>; Py, Ligia; Cança<strong>do</strong>,Flávio A. Xavier; Gorzoni, Milton Luiz; Doll, Johannes. Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> geriatriae gerontologia. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan, 2006.Lopes, Ruth G. C. Saú<strong>de</strong> na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso<strong>do</strong> medicamento. São Paulo: Educ, 2000.. Velhos “indignos”: investigação a respeito <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sossocialmente ativos. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Psicologia Social) – PontifíciaUniversida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> São Paulo. São Paulo, 1990.Mead, M. Le fossé <strong>de</strong>s générations. Paris: Denoël-Conthier, 1971.Miranda, Danilo Santos <strong>de</strong>. O encontro <strong>de</strong> gerações no Sesc São Paulo: a história<strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> inclusão social. In: Congresso Internacional Coeducação <strong>de</strong>Gerações. Anais... São Paulo: Sesc, out. 2003.Neugarten, B.; Weinstein, K. The changing American grandparent. In:Neugarten, B. (Ed.). Middle age and aging. Chicago: University of ChicagoPress, 1968.Oliveira, Adriana Paulino. Avós que cuidam <strong>do</strong>s netos por morte da mãe soropositiva.Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Gerontologia) – Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica<strong>de</strong> São Paulo. São Paulo, 2003.Oliveira, P. S. Vidas compartilhadas: cultura e coeducação <strong>de</strong> gerações na vidacotidiana. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.Pedrosa, A. S. Homens i<strong>do</strong>sos avôs: significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s netos para o cotidiano. Dissertação(Mestra<strong>do</strong> em Gerontologia) – Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong>São Paulo. São Paulo, 2006.Readler, P. Abuelidad, mas allá <strong>de</strong> la paternidad. Buenos Aires: Legasa, 1986.Schramm, Gisele Maria <strong>de</strong> T.; Mercadante, Elisabeth F. Avós e seus netos: velhiceao la<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>lescência em conflito com a lei. In: Côrte, Beltrina;Mercadante, Elisabeth F.; Arcuri, Irene G. (Org.). Envelhecimento e velhice:um guia para a vida. São Paulo: Vetor, 2006. (Coleção Gerontologia, v. 2.)Souza, Liliana. Avós e netos: uma relação afectiva, uma relação <strong>de</strong> afectos. Portal<strong>do</strong> Envelhecimento. São Paulo, jun. 2005. Disponível em: . Acessoem: 28 mar. 2007.6667

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