Enfim por um movimento rápido e convulso atirou-se ao seio de seu pai,e inundou-o de uma torrente de lágrimas.Este pranto copioso aliviou-a; ergueu a cabeça, enxugou as lágrimas,e pareceu ter recobrado a tranqüilidade, mas uma tranqüilidade gélida, sinistra,sepulcral. Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência daquele golpeesmagador, e que de <strong>Isaura</strong> só restava o fantasma.- Estou morta, meu pai!... não sou mais que um cadáver... façamde mim o que quiserem...Foram estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumidaproferiu naquele lôbrego recinto.- Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. Não teentregues assim ao desalento; tenho esperança de que hás de viver eser feliz.Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível,mas inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreendertodo o alcance do sacrifício que impunha à sua filha. Encarando afelicidade mais pelo lado dos interesses da vida positiva e material, nãopelos gozos e exigências do coração, ousava conceber sincerasesperanças de mais felizes e tranqüilos dias para sua filha, e não via que,sujeitando-a a semelhante opróbrio, aviltando-lhe a alma, ia esmagar-lhe ocoração. Queria que ela vivesse, e não via que aquele ignominiosoconsórcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era ogolpe de compaixão, que, terminando-lhe a existência, vinha abreviar-lheos sofrimentos.Malvina achava-se no salão, e ali esperava o resultado daconferência que Miguel fora ter com sua filha. Rosa e André, de braçoscruzados junto à porta da entrada, também ali se achavam às suas ordens.Malvina sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar naporta o vulto de <strong>Isaura</strong>, arrimada ao braço de Miguel, lívida e desfiguradacomo enferma em agonia, os cabelos em desalinho, e com passosmal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulcro, naquelesalão, onde não há muito tempo a vira tão radiante de beleza e mocidade,naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos acentos de suavoz suave e melodiosa.Mesmo assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendosobressaírem os contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e asevera energia daquele tipo antigo.Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica eramcomo cirios funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular. Oscabelos entornados em volta do colo, faziam ondular por eles levessombras de maravilhoso efeito, como festões de hera a se debruçarempelo mármore vetusto de estátua empalidecida pelo tempo. Naquelamiseranda situação, <strong>Isaura</strong> oferecia ao escultor um formoso modelo daNíobe antiga.- Aquela é <strong>Isaura</strong>!... oh!... meu Deus! coitada! - murmurouMalvina ao vê-la, e foi-lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesarumedeceram-lhe as pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemênciaa seu esposo em favor da pobrezinha, mas lembrou-se das perversasinclinações e mau comportamento, que Leôncio aleivosamente atribuíraa <strong>Isaura</strong>, e assentou de revestir-se de toda a impassibilidade que lhefosse possível.
- Então, <strong>Isaura</strong>, - disse Malvina com brandura, - já tomaste atua resolução?... estás decidida a casar com o marido que te queremosdar?<strong>Isaura</strong> por única resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos nochão.- Sim, senhora, - respondeu Miguel por ela - <strong>Isaura</strong> está resolvidaa se conformar com a vontade de V. S.a.- Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer por maistempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir enquantoestiver nesta casa. Não foi para esse fim que sua defunta senhoracriou-a com tanto mimo, e deu-lhe tão boa educação. <strong>Isaura</strong>, apesar detua descaída, quero-te bem ainda, e não tolerarei mais semelhanteescândalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e um excelentemarido.- Excelente!... meu Deus! Que escárnio! - refleliu <strong>Isaura</strong>.- Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e trabalhador;creio que hás de dar-te otimamente com ele. Demais para obter aliberdade nenhum sacrifício é grande, não é assim, <strong>Isaura</strong>?- Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-mehumildemente ao meu destino. Arrancam-me da masmorra - (continuou<strong>Isaura</strong> em seu pensamento), - para levarem-me ao suplício.- Muito bem, <strong>Isaura</strong>; mostras que és uma rapariga dócil e de juízo.André, vai chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter ogosto de anunciar-lhe que vai enfim realizar o seu sonho querido detantos anos. Creio que o senhor Miguel também não ficará mal satisfeitocom o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma coisa sair docativeiro e casar-se com um homem branco e livre. Antes assim do quefugir, e andar foragida por esse mundo. <strong>Isaura</strong>, para prova de quantodesejo o teu bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôrtermo a teus sofrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento,que há muito tempo dela andavam arredados.Ditas estas palavras, Malvina abriu um cofre de jóias, que estavasobre uma mesa, e dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar nopescoço de <strong>Isaura</strong>.- Aceita isto, <strong>Isaura</strong>, - disse ela, - é o meu presente de noivado.- Agradecida, minha boa senhora, - disse <strong>Isaura</strong>, e acrescentouem seu coração: - é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço davítima.Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.Eis-me aqui, senhora minha, - diz ele, - o que deseja desteseu menor criado?- Dar-lhe os parabéns, senhor Belchior, - respondeu Malvina.- Parabéns!... mas eu não sei por quê!...- Pois eu lhe digo; fique sabendo que <strong>Isaura</strong> vai ser livre, e...adivinhe o resto.- E vai-se embora decerto... oh!... é uma desgraça!- Já vejo que não é bom adivinhador. <strong>Isaura</strong> está resolvida acasar-se com o senhor.- Que me diz, patroa!... perdão, não posso acreditar. Vossemecêestá zombando comigo.
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Neste momento chega André trazendo
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