aposento atinente às senzalas, onde <strong>Isaura</strong> sentada sobre um cepo, comum dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à parede,há dois meses se achava encarcerada.Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para darparte à filha do projeto de seu senhor, e exortá-la a aceitar o partidoque lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavamaquelas duas míseras criaturas, pálidas, extenuadas e abatidas peloinfortúnio, encerrados em uma estreita e lôbrega espelunca. Ao seencontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos e desgraçadosque nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais doque um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que abraçadospor largo tempo estiveram entornando no seio um do outro...........................................................- Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, queé desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condiçãoque venho abrir-te as portas desta triste prisão, em que há doismeses vives encerrada. É, sem dúvida, um cruel sacrifício para teucoração; mas é sem comparação mais suportável do que esse duro cativeiro,com que pretendem matar-te.- É verdade, meu pai; o meu carrasco dá-me a escolha entre doisjugos; mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso e insuportável.Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram-meuma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor eda dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosamorder-se de inveja; tenho dotes incomparáveis do corpo e do espírito;e tudo isto para quê, meu Deus!?... para ser dada de mimo a um míseroidiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente escárnio?!...E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu-se dos lábiosdescorados de <strong>Isaura</strong>, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estríduloulular do mocho entre os sepulcros.- Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelossofrimentos. O tempo pode muito, e com paciência e resignação hás dete acostumar a esse novo viver, sem dúvida muito mais suave do queeste inferno de martírios, e poderemos ainda gozar dias se não felizes,ao menos mais tranqüilos e serenos.- Para mim a tranqüilidade não pode existir senão na sepultura,meu pai. Entre os dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo aindaalguma coisa, que me sorri como uma idéia consoladora, um recursoextremo, que Deus reserva para os desgraçados, cujos males são semremédio.- É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minhafilha?... Ah! meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte...- Cala-te, filha!... não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu quero,eu preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundosozinho, velho e entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, oque será de mim nas tristes conjunturas em que me deixas?...- Perdoe-me, meu bom, meu querido pai; só em um casoextremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meupai, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me
case com um disforme?... oh! isto é escárnio e opróbrio demais! Tenham-medebaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham-me na roça de enxada namão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me enfimcomo a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me esteignominioso sacrifício!...- Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempoe o costume te farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês;com a idade ele vai-se endireitando, que é ele ainda muito criança.Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão grosseiro edesagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma ânimo,minha filha; quando saíres deste triste calabouço, o ar da liberdade terestituirá a alegria e a tranqüilidade, e mesmo com o marido que te dãopoderás viver feliz...- Feliz! - exclamou <strong>Isaura</strong> com amargo sorriso: - nao me faleem felicidade, meu pai. Se ao menos eu tivesse o coraçáo livre comooutrora... se não amasse a ninguém. Oh!... não era preciso que ele meamasse, não; bastava que me quisesse para escrava, aquele anjo debondade, que em vão empregou seus generosos esforços paraarrancar-me deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo mulherdesse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim!devo eu pensar mais nele? pode ele, nobre e rico cavalheiro, lembrar-seainda da pobre e infeliz cativa!...- Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tuaidéia esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.- Por que, meu pai?... como poderei ser ingrata a esse moço?...- Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seuamor.- Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?...- Tua humilde condição não permite que olhes com amor paratão alto personagem; um abismo te separa dele. O amor que lhe inspiraste,não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem mepesa dizer-te isto, <strong>Isaura</strong>; mas é a pura verdade.- Ah! meu pai! que está dizendo!... se soubesse que mal me fazemessas terríveis palavras!... deixe-me ao menos a consolação de acreditar que eleme amava, que me ama ainda. Que interesse tinha ele em iludir uma pobreescrava?...- Eu bem quisera poupar-te ainda este desgosto; mas é precisoque saibas tudo. Esse moço... ah! minha filha, prepara teu coração paramais um golpe bem cruel.- Que tem esse moço?... perguntou <strong>Isaura</strong> trêmula e agitada. Fale,meu pai; acaso morreu?...- Não, minha filha, mas... está casado.- Casado!... Álvaro casado!... oh! não; não é possível!... quem lhedisse, meu pai?...- Ele mesmo, <strong>Isaura</strong>; lê esta carta.<strong>Isaura</strong> tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreucom olhos desvairados. Lida a carta, não articulou uma queixa, nãosoltou um soluço, não derramou uma lágrima, e ela, pálida como umcadáver, os olhos estatelados, a boca entreaberta, muda, imóvel, hirta,ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir-se-ia que fora petrificadacomo a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que ardia a cidade maldita.
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tom cerimonioso com que Malvina o t
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petulante se foi colocar defronte d
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Leôncio encerrado em seu quarto a
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