tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso marido.Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma dainfeliz mulata encarregar-se do futuro de <strong>Isaura</strong>. criá-la e educá-la,como se fosse uma filha.Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que amenina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe elamesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tardeprocurou-lhe também mestres de música, de dança, de italiano, defrancês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em dar àmenina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filhaquerida. <strong>Isaura</strong>, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suasgraças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua vivae robusta inteligência, foi muito além das mais exageradas esperançasda excelente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados,cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquela jóia, que ela diziaser a pérola entrançada em seus cabelos brancos. - O céu não quisdar-me uma filha de minhas entranhas, - costumava ela dizer, - masem compensação deu-me uma filha de minha alma.O que porém mais era de admirar na interessante menina, é queaquela predileção e extremosa solicitude de que era objeto, não a tornavaimpertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seusparceiros de cativeiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alteravaa natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e boacom os escravos, dócil e submissa com os senhores.O comendador não gostava nada do singular capricho de suaesposa para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.- Forte loucura! - costumava exclamar com acento de comiseração.- Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lápelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba. As velhas, umas dãopara rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite, outras paralavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhasprincesas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade;mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto se entretém porlá com o seu embeleco, poupa-me uma boa dúzia de impertinentes erabugentos sermões... Lá se avenha!...Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, comtoda a família, inclusive os dois novos desposados, transportou-se denovo para a fazenda de Campos. Foi então que o comendador entregoua seu filho toda a administração e usufruto daquela propriedade,com toda a escravatura e mais acessórios nela existentes, declarando-lheque achando-se já bastante velho, enfermo e cansado, queria passartranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações,para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para sireservava. Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou-se para acorte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho, o que foimuito do gosto e aprovação do marido.Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândidae boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logodesde o principio o mais vivo interesse e terna afeição pela cativa <strong>Isaura</strong>.Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa,que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava
logo ao primeiro encontro a benevolência de todos.<strong>Isaura</strong> tornou-se imediatamente, não direi a mucama favorita, masa fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazerese passatempos da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amávelcompanhia na solidão que ia habitar.- Por que razão não libertam esta menina? - dizia ela um dia àsua sogra. - Uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.- Tem razão, minha filha, - respondeu bondosamente a velha;- mas que quer você?... não tenho ânimo de soltar este passarinhoque o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis aspesadas e compridas horas da velhice.E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre doque eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nemforças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? ese ela transviar-se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não,não, minha filha; enquanto eu for viva, quero tê-la sempre bempertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você há de estardizendo lá consigo - forte egoísmo de velha! - mas também eu jápoucos dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha morteficará livre, e eu terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seutestamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua queridapupila; mas o comendador, auxiliado por seu filho com delongase fúteis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável esanto desejo de sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataquede paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um sómomento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade.Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com ainfeliz escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe haviaprodigalizado. <strong>Isaura</strong> pranteou por muito tempo a morte daquela quehavia sido para ela mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escravanão já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos,devassos e cruéis.Capitulo 3Falta-nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado deLeôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvadoe vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormentequando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico. Nãoobstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade enobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava-se emférias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias em suafazenda.Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde avéspera linha ido ao encontro do cunhado.Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e brevesestadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à extremabeleza e às graças incomparáveis de <strong>Isaura</strong>. Posto que lhe coubesse emsorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia casado por amor,sentimento esse a que seu coração até ali parecia absolutamente
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arrimando-se em seu peito.- Que tem
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cozinheira.Triste consolação! o e
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mais humilhante irrisão! faze idé
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Deus me favorecerá em tão justa e
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em particular, com permissão aqui
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Martinho, e que ninguém mais se le
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nunca o foste, e nunca o serás. Po
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pintavam, era um potentado em sua t
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educou com tanto esmero essa escrav
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- Essa agora é bem lembrada! - ret
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o podendo conseguir, combinaram de
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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e conselhos daquele tão solícito
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desprezo que Leôncio lhe merecia,