em terra, se ele não fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vezmais se apertava em torno deles. - Alto lá! nem tanto desembaraço!escrava, ou não, tu não lhe deitarás as mãos imundas.Aniquilada de dor e de vergonha, <strong>Isaura</strong> erguendo enfim o rosto,que até ali tivera sempre debruçado e escondido sobre o seio de seupai, voltou-se para os circunstantes, e ajuntando as mãos convulsas nogesto da mais violenta agitação:- Não é preciso que me toquem, - exclamou com voz angustiada.- Meus senhores, e senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma indignidadeimperdoável!... mas Deus me é testemunha, que uma cruel fatalidade a isso melevou. Senhores, o que esse homem diz, é verdade. Eu sou... uma escrava!...O rosto da cativa cobriu-se de lividez cadavérica, como lírio ceifadopendeu-lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como belaestátua de mármore, que o furacão arranca do pedestal, e teria rojadopela terra, se os braços de Álvaro e de Miguel não tivessem prontamenteacudido para amparar-lhe a queda.Uma escrava!... estas palavras, soluçadas no peito de <strong>Isaura</strong> comoo estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidãoestupefata, ecoaram largo tempo pelos vastos salões, como o rugirsinistro das lufadas da noite pela grenha de fúnebre arvoredo.Este estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que fariaem um acampamento a explosão de um paiol de pólvora; nos primeirosmomentos, susto, pasmo e uma espécie de estertor de angústia; depois,agitação, alarma, movimento e alarido.Álvaro e Miguel conduziram <strong>Isaura</strong> desfalecida ao boudoir dasdamas, e aí, ajudados por algumas senhoras compassivas, prestaram-lheos socorros que o caso reclamava, e não a abandonaram enquanto nãorecobrou completamente os sentidos. Martinho, inquieto e ressabiado,os seguia e espiava o mais de perto que lhe era possível, com receio deque lhe roubassem a presa.É impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação quesublevou todos os espíritos, e as diversas e opostas impressões queproduziu nos ânimos aquela inesperada revelação. Com que cara ficariamtantas belezas de primeira ordem, tantas damas das mais distintasjerarquias sociais, ao saberem que aquela que as havia suplantado a todas,em formosura, donaire, talentos e graças do espírito, não era mais queuma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que façam idéia.Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam depassar não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo,mormente naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências ehomenagens que certos cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviamfrancamente rendido à gentil desconhecida. Estavam humilhadas, mastambém vingadas. Quanto ás que tinham esperanças ou pretensões aoamor de Alvaro, - e não eram poucas, - essas exultaram de júbilo aosaberem do caso, e o nobre mancebo tornou-se o alvo de mil desapiedadosapodos e pilhérias.- O que me diz do escravo da escrava? - diziam elas - comque cara não ficaria o pobre homem!...- Com a mesma. Decerto vai forrá-la e casar-se com ela. Aquilo éum maluco capaz de todas as asneiras.- E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa
cozinheira.Triste consolação! o estigma do cativeiro não podia apagar da belafronte de <strong>Isaura</strong>, antes mais realçava o cunho de superioridade que osopro divino nela havia gravado em caracteres indeléveis.Entre os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bempoucos, deixavam de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte dainfeliz e formosa escrava. Por todos os cantos falava-se e discutia-secom calor a respeito do caso. Alguns, a despeito da evidência dos indíciose da confissão de <strong>Isaura</strong>, ainda duvidavam da verdade que tinham diantedos olhos.- Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, - diziam eles,- aqui há algum mistério, que algum dia se desvendará.- Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma o confessou.Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conservano cativeiro uma tão linda criatura?- Deve ser algum lorpa de alma bem estúpida e sórdida.- Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para oseu serralho.- Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar-lhe aliberdade. Na senzala uma mulher que merecia sentar-se num trono!...- Também só o infame do Martinho, com o seu satânico instintode cobiça, poderia farejar uma escrava na pessoa daquele anjo! queimpudência! se o visse agora aqui, era capaz de estrangulá-lo!Entretanto, Martinho, que se havia previamente munido de ummandado de apreensão, e se fazia acompanhar de um oficial de justiça,exigia terminantemente que se lhe fizesse entrega de <strong>Isaura</strong>. Álvaro, porém,interpondo o valimento e prestígio de que gozava, opôs-se decididamente aessa exigência, e tomando por testemunhas as pessoas que ali se achavam,constituiu-se fiador da escrava, comprometendo-se a entregá-la a seu senhor,ou a quem por ordem dele a reclamasse. Em vão Martinho quis insistir; umamultidão de vozes, que o apupavam e cobriam de injúrias, forçaram-no acalar-se e desistir de sua pretensão.- Ah! malditos! querem-me roubar! - bradava Martinho comoum possesso. - Meus cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vãopela água abaixo.E dizendo isto procurou a escada, e saltando-a aos dois e trêsdegraus, lá se foi bramindo pela porta a fora.Capítulo 15Já é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos queacabamos de narrar. <strong>Isaura</strong> e Miguel, graças à valiosa intervenção deÁlvaro, continuam a habitar a mesma pequena chácara no bairro deSanto Antônio. Já não lhes sendo mais possível pensar em fugir paramais longe nem ocultarem-se, ali se conservam por conselho de seuprotetor, esperando o resultado dos passos que este se comprometera adar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação,como Dâmocles tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por um fio.Álvaro vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos, e ali
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