cafés e teatros mais em voga, e tomara-se um dos mais afamados eelegantes leões dos bulevares. No fim de alguns anos, ora de residênciaem Paris, ora de giros recreativos pelas águas e pelas principais capitaisda Europa, tinha ele tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsapaterna, que o comendador a despeito de toda a sua condescendênciae ternura para com seu único e querido filho, viu-se na necessidade derevocá-lo à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa ruína.Mas, mesmo assim, para não magoá-lo colhendo-lhe súbita e rudementeas rédeas na carreira dos desvarios e dissipações, assentou deatraí-lo suavemente acenando-lhe com a perspectiva de um rico evantajosíssimo casamento.Leôncio pegou na isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil eelegante como ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentose experiência, enorme dose de fatuidade e petulância e um tãoperfeito traquejo da alta sociedade, que o tomaríeis por um príncipe.Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a almacorrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem.Alguns bons e generosos instintos, de que o dotara a natureza,haviam-se apagado em seu coração ao roçar de péssimas doutrinasconfirmadas por exemplos ainda piores.De volta da Europa, Leóncio contava vinte e cinco anos. O paiadvertiu-lhe com palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo deempregar-se em alguma coisa, de abraçar alguma carreira; que já setinha aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para suaeducação, e que era mister ir aprendendo se não a aumentar, ao menosa conservar uma fortuna, à testa da qual teria de achar-se mais tarde oumais cedo. Depois de muita hesitação, Leôncio optou enfim pelacarreira do comércio que lhe pareceu ser a mais independente e segura detodas; mas as suas idéias largas e audaciosas a este respeito aterraram obom do comendador. O comércio de importação e exportação degêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de africanos, lhepareciam especulações degradantes e impróprias de sua alta posiçãoe esmerada educação. O negócio de balcão e a retalho, esse inspirava-lhe ascoe compaixão. Só lhe convinham as altas especulações cambiais,as operações bancárias e transações em que jogasse com avultados capitais.Só assim poderia duplicar em pouco tempo a fortuna patema. Com oque tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças européias,presumia-se com habilitação bastante para dirigir as operações do maisimportante estabelecimento bancário, ou as mais grandiosas empresasindustriais.O pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azaresespeculativos daquele financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provasde grande talento para consumir, em pouco tempo e em puraperda, somas consideráveis. Resolveu portanto a não tocar-lhe maisnaquele assunto, esperando que o mancebo criasse mais algum juízo.Vendo que seu pai esquecia-se completamente dos planos decriar-lhe um pecúlio próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meiosuave e natural de adquirir fortuna, como a única carreira que se lheoferecia para ter dinheiro a esbanjar a seu bel-prazer.Malvina, a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte,amigo do comendador, já estava destinada a Leôncio por comum
acordo e aquiescência dos pais de ambos. A família do comendador foià corte; os moços viram-se, amaram-se e casaram; foi coisa de poucosdias. Pouco tempo depois de seu casamento Leôncio passou pelodesgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa erespeitável senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida íntima comseu marido, que, como homem de coração árido e frio, desconhecia assantas e puras delícias da afeição conjugal, e com suas libertinagens edevassidões dilacerava cotidianamente o coração de sua esposa. Paracúmulo de males linha ela perdido ainda na infância todos os seus filhos,ficando-lhe só Leôncio. Lastimava-se principalmente por não ter-lhedeixado o céu ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia econsolação em sua desolada velhice. Quis entretanto a sorte deparar-lheem sua própria casa uma tal ou qual compensação a seus infortúniosem uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo quesentia em seu bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitárioo lar, em que passava os dias tão monótonos e enfadonhos.Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiupor sua graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boavelha.<strong>Isaura</strong> era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo amucama favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, quecomo homem libidinoso e sem escrúpulos olhava as escravas como umserralho à sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascíviasobre a gentil mucama. Por muito tempo resistiu ela ás suas brutaissolicitações; mas por fim teve de ceder às ameaças e violências. Tãotorpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar ocultoaos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto.Acabrunhado por ela das mais violentas e amargas exprobrações, ocomendador não ousou mais empregar a violência contra a pobreescrava, e nem tampouco conseguiu jamais por outro qualquer meiosuperar a invencível repugnância que lhe inspirava. Enfureceu-se comtanta resistência, e deliberou em seu coração perverso vingar-se damaneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-a de trabalhos e castigos.Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicadosserviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendandobem ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor,porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que nãotinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelosencantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias epresentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz davida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato veio exacerbar aindamais a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu comimpropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tãorudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou notúmulo, antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha.Eis aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz<strong>Isaura</strong>. Todavia, como para indenizá-la de tamanha desventura, uma santamulher, um anjo de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre criançae veio ampará-la à sombra de suas asas caridosas. A mulher do comendadorconsiderou aquela tenra e formosa cria como um mimo, que océu lhe enviava para consolá-la das angústias e dissabores, que
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cozinheira.Triste consolação! o e
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Martinho, e que ninguém mais se le
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nunca o foste, e nunca o serás. Po
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pintavam, era um potentado em sua t
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- Essa agora é bem lembrada! - ret
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o podendo conseguir, combinaram de
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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desprezo que Leôncio lhe merecia,