lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se aospés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo eapaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousavaromper os lábios paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam-seao movimento como se estivessem pregados no chão. <strong>Isaura</strong> estavacomo o desgraçado a quem circunstâncias fatais arrastam ao suicídio,mas que ao chegar à borda do precipício medonho em que desejaarrojar-se, recua espavorido.- Fraca e covarde criatura que eu sou! - pensou ela por fimesmorecida: - que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever!não importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da bocade meu pai, o que eu não tenho ânimo de dizer-lhe.Esta idéia luziu-lhe no espírito como uma tábua salvadora; agarrou-sea ela com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo, tratou de pô-laem execução.- Meu pai, - disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs oportão do pequeno jardim, - declaro-lhe que não vou a esse baile; nãoquero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.- Não vais?! - exclamou Miguel atônito. - E por que não dissesteisto há mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora quejá demos nossa palavra...- Para tudo há remédio, meu pai, - atalhou a filha com febrilvivacidade - e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressaà casa desse moço, e diga-lhe o que eu não tive ânimo de dizer-lhe;declare-lhe quem eu sou, e está tudo acabado.Dizendo isto, <strong>Isaura</strong> estava pálida, falava com precipitação, oslábios descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsae estridente, parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração. Era oresultado do extremo esforço que fazia, para levar a efeito tão penívelresolução. O pai olhava para ela com assombro e consternação.- Que estás a dizer, minha filha! - replicou-lhe ele - estás tãopálida e alterada!.. parece-me que tens febre... sofres alguma coisa?- Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O queeu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai váprocurar esse moço e confessar-lhe tudo...- Isso nunca!... estás louca, menina?... queres que eu te vejaencerrada em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província,entregue a teu senhor, e por fim ver-te morrer entre tormentos nas garrasdaquele monstro! oh! <strong>Isaura</strong>, por quem és, não me fales mais nisso,Enquanto o sangue me girar nestas veias, enquanto me restar o maispequenino recurso, hei de lançar mão dele para te salvar...- Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meupai!... retorquiu a moça com exaltação. - Como posso eu, sem cometer a maisvil deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em umasala de baile?... Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas souberem queombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida...- Cala-te, menina! - interrompeu o velho, incomodado com aexaltação da filha. - Não fales assim tão alto... tranqüiliza-te; eles nunca saberãode nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã mesmo,se for possível. Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, paraos Estados Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fora
do alcance de qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as tuasprendas e habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer cantodo mundo.- Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperançade um dia podermos voltar, me oprime o coração.- Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de irparar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.- Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro,nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, edas terríveis circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos edisfarçados pelo mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contraas perseguições...- E quem nos afiança isso?... o mais certo é ele entregar-te aodesprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se,despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar-te àpolícia. No transe em que nos achamos, é de absoluta necessidadeenganar a ele e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o segredo denossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e vamos ao baile,minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que devemos nossujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e sealgum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nosverão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosaem demasia. Se ignoram quem tu és, a tua companhia em nada ospode infamar. Com isso não fazes mal a ninguém; é uma medida desalvação, que todos te perdoariam.- Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-meabsolutamente ao coração dar esse passo.- Mas é preciso dá-lo, minha filha, se não queres para nós ambosa desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos deum dia para outro, como nos é forçoso, então as suspeitas quecomeçamos a despertar tomarão muito maior vulto, e a policia pôr-se-á ànossa pista, e nos perseguirá por toda parte. É um sacrifício na verdade,mas não será ele muito mais suave do que as perseguições da polícia, aprisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar em casa de teusenhor?...<strong>Isaura</strong> não respondeu; seu espírito agitava-se entre as maispungentes e amargas reflexões.As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundodesalento. Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia-se em um marde dúvidas e perplexidades, como frágil barca em meio de um oceanoirritado, sacudida aos boléus por vagalhões desencontrados.O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura esinceridade de seu coração, que não podia acomodar-se com o embustee a mentira, e uma espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre oespírito, a desviavam daquele baile, e por momentos pareciam fixardefinitivamente a sua resolução; e firme neste propósito dizia consigomesma: - não, não irei.Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tãorazoáveis, bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozarpor algumas horas a sua presença, faziam-lhe de novo flutuar oespírito no mar das irresoluções. A lembrança de que em breve, talvez no
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A Escrava Isaura, de Bernardo Guima
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