capitão um português, antigo e dedicado amigo seu. Este chegando àsalturas de Pernambuco, como daí tinha de singrar para a costa da África,largou-os no Recife, prometendo-lhes que dentro em três ou quatromeses estaria de volta e pronto a conduzi-los para onde quisessem.Miguel que em sua profissão de jardineiro ou de feitor havia passado avida desde a infância dentro de um horizonte acanhado e em círculomui limitado de relaçóes, tinha pouco conhecimento e nenhumaexperiência do mundo, e portanto não podia calcular todas as conseqüênciasda difícil posição em que ia colocar a si e a sua filha. Durante os longosanos que esteve feitorando a fazenda do comendador e de outros, nãose dera senão uma ou outra fuga insignificante de escravos, por algunsdias e para alguma fazenda vizinha, e, portanto, não é para admirar queele quase completamente ignorasse a amplitude dos direitos, que temum senhor sobre o escravo, e os infinitos meios e recursos de que podelançar mão para capturá-los em caso de fuga. Entendeu, pois, que emPernambuco poderia viver com sua filha em plena seguridade, aomenos por três ou quatro meses, uma vez que se afastassem da sociedadeo mais que pudessem, e procurassem esconder sua vida na maiscompleta obscuridade.<strong>Isaura</strong> também, se bem que tivesse o espírito mais atilado eesclarecido, longe do objeto principal de seu terror e aversão, nãodeixava de sentir-se tranqüila, e até certo ponto descuidosa dosperigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou qual tranquilidade só durouaté o dia em que pela primeira vez viu Álvaro. Amou-o com esse amorexaltado das almas elevadas, que amam pela primeira e única vez, e esseamor, como bem se compreende, veio tornar ainda mais crítica e angustiosa asua já tão precária e mísera situação.Alvaro tinha na fisionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, umnão sei quê de nobre, de amável e profundamente simpático, que avassalavatodos os corações. O que não seria ele para aquela que única atéali lhe soubera conquistar o amor? <strong>Isaura</strong> não pôde resistir a tão prestigiosasedução; amou-o com o ardor e entusiasmo de um coração virgem; e com aimprevidência e cegueira de uma alma de artista, embora não visse nesse amormais do que uma nova fonte de lágrimas e torturas para seu coração.Medindo o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que denenhuma esperança podia alimentar-se aquela paixão funesta, quedeveria ficar para sempre sepultada no íntimo do coração, como umcancro a devorá-lo eternamente.No seu cálice de amarguras, já quase a transbordar, tinha dereceber da mão do destino mais aquele travo cruel, que lhe devia queimaros lábios e envenenar-lhe a existência.Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito desua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-seconsigo mesma de impor às poucas pessoas que com ela tratavam deperto, um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Masconsiderando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar àsociedade, conformava-se com sua sorte. Deveria, porém, ela, oupoderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Comseu silêncio, conservando-o na ignorância de sua condição de escrava,deveria deixar alimentar-se, crescer profunda e enérgica paixão, que omoço por ela concebera?... não seria isto um vil embuste, uma
indignidade, uma traição infame? não teria ele o direito, ao saber da verdade,de acabrunhá-la de amargas exprobrações, de desprezá-la, de calcá-laaos pés, de tratá-la enfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?- Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! -exclamava ela no meio do angustioso embate de idéias que se lhe agitavamno espírito. - Não, não devo iludi-lo; isto seria uma infâmia... vou-lhedescobrir tudo; é esse o meu dever, e hei de cumpri-lo. Ficará sabendoque não pode, que não deve amar-me; porém ao menos não ficarácom o direito de desprezar-me.. uma escrava, que procede com lisura elealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo enganá-lo; heide revelar-lhe tudo.Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor elealdade, e os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quandochegava o momento de pô-la em prática fraqueava-lhe o coração. e<strong>Isaura</strong> ia diferindo de dia para dia a execução de seu propósito.Falecia-lhe de todo a coragem para quebrar por suas própriasmãos a doce quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que àsvezes conseguia esquecer por longo tempo sua mísera condição, paralembrar-se somente que amava e era amada.- Deixemos durar mais um dia - refletia consigo. - esta ilusória,mas inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorrapara subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz epoderosa; quando descer, serei de novo sepultada em minha masmorrapara nunca mais sair. Prolonguemos estes instantes; náo será lícito deixarpassar ao menos em sonhos uma hora de felicidade sobre a frontedo infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta frágil cadeiade ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno demeus sofrimentos.Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixãoabafava os ditames da razão e da consciência, passaram-se alguns diasaté àquele, em que Alvaro os induziu por meios quase violentosa aceitarem convite para um baile. Desde então <strong>Isaura</strong> entendeu queseria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar por maistempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que nãohavia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa eprecária situação.Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo!Uma escrava fugida apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seubraço à face da mais brilhante e distinta classe de uma importante capital!...era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços,que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnavaabsolutamente aos escrúpulos da melindrosa consciência de <strong>Isaura</strong>. É verdadeque Miguel, aterrado pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu-se forçadoa anuir ao seu gracioso convite; <strong>Isaura</strong> porém guardara absoluto silêncio,o que ambos tomaram por um sinal de aquiescência.Enganavam-se. <strong>Isaura</strong> recolhida ao silêncio não fazia mais do quetentar esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce, quetanto lhe pesava sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu queencobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por mais,porém, que invocasse toda a sua energia e resolução, no momentodecisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava pelos
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