Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto ecomovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem oumal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada ea mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um cantoesquecida e sossegada. Dir-se-ia que estava debaixo do império de algumterrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicadoempenho, com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçavapor apresentá-la como um protótipo de beleza e de talento aosolhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê-lo, e não desmentir alisonjeira opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhorque lhe fosse possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava maisdo que ao seu próprio.Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos eflexíveis, pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, amoça sentiu-se outra, revelando aos circunstantes maravilhados umnovo e original aspecto de sua formosura. A fisionomia, cuja expressãohabitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luzinsólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu-se altaneiro e majestoso;os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; osseios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüilanoite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, comooceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como odo cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios. Era osopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, atransformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada dasharmonias do céu. Ali sentia-se ela rainha sobre seu trono ideal; aliera Calíope sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundoao som de enlevadoras e inefáveis harmonias. Das próprias inquietaçõese angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer asdificuldades da árdua situação em que se achava empenhada. Banhou oslábios com as lágrimas do coração, e a voz lhe rompeu do peito comtão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras esuaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lágrimaviu-se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres,dos risos, e da frivolidade!Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara ocanto, o salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e pareciaque vinha desabando ao ruído atordoador das palmas e dos vivas!A fada de Álvaro é também uma sereia; - dizia o Dr. Geraldoa um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. - Resume tudoem si... que timbre de voz tão puro e tão suave; julguei-me arrebatadoao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos coros angélicos.- É uma consumada artista... no teatro faria esquecer a Malibran,e conquistaria reputação européia. Álvaro tem razão; uma criatura assimnão pode ser uma mulher ordinária, e muito menos uma aventureira... A músicadando o sinal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nô-la deixaouvir.- D. Elvira, - diz Álvaro dirigindo-se à sua protegida, que já seachava sentada ao pé de seu pai, - lembre-se, que me fez a honra deconceder-me esta quadrilha.Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrível abatimento, que
ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar naquadrilha.Capitulo 12Agora os leitores já sabem, se é que há mais tempo não adivinharam,que a suposta Elvira não é mais do que a escrava <strong>Isaura</strong>, assimcomo Anselmo não passa do feitor Miguel, ambos os quais são jánossos conhecidos antigos. Como também sabem que <strong>Isaura</strong> não só eradotada de espírito superior, como também recebera a mais fina eesmerada educação, não lhe estranharam a distinção das maneiras, aelegância e elevação da linguagem, e outros dotes, que faziam com queessa escrava excepcional pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio damais luzida e aristocrática sociedade.Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha, queinspirou a Miguel o expediente extremo de uma fuga precipitada,exposta a mil azares e perigos. Lembrava-se ele com horror do miserandodestino de que em iguais circunstâncias fora vítima a mãe de <strong>Isaura</strong>, ebem sabia que Leôncio, tão desalmado como o pai, e ainda maiscorrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados ainda maiores.Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podiautilizar-se da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando-a emarrancar a pobre vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.Bem via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seussenhores, e proteger-lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairosoe indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filhaidolatrada, e uma pérola de pureza, prestes a ser poluída ou esmagadapela mão de um senhor verdugo, e esta consideração o justificava aos olhosda própria consciência.Bem se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato àsautoridades, implorando a proteção das leis em favor de sua filha paraque não fosse vitima das violências e sevícias de seu dissoluto ebrutal senhor. Mas todos a quem consultava respondiam-lhe a uma voz:- Não se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que vercom o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa; muito felizserá, se somente tiver de pagar as custas, e não lhe arrumarem porcima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados nacadeia. - Onde se viu o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra oforte?...Miguel entretinha relações ocultas com alguns dos antigos escravosda fazenda de Leôncio, os quais, lembrando-se ainda com saudades dotempo de sua boa administração, conservavam-lhe o mesmo respeito eafeição, e por meio deles tinha exata informação do que se passava nafazenda. Sabendo dos cruéis apuros a que sua filha se achava reduzidadepois da morte do comendador, não hesitou mais um instante, e tratoude tomar todas as providências e medidas de segurança para roubar afilha, e pô-la fora do alcance de seu bárbaro senhor. Na mesma madrugada,que seguiu-se à tarde, em que a raptou, fazia-se de vela com<strong>Isaura</strong> para as províncias do Norte em um navio negreiro, de que era
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desprezo que Leôncio lhe merecia,