quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e donaire de grande senhoranem por isso sua grande beleza deixava de ficar algum tantoeclipsada em presença das formas puras e corretas, da nobre singeleza,e dos tão naturais e modestos ademanes da cantora. Todavia Malvinaera linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura ealta posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda anativa bondade de seu coração.Malvina aproximou-se de manso e sem ser pressentida para juntoda cantora, colocando-se por detrás dela esperou que terminasse aúltima copia.- <strong>Isaura</strong>!... disse ela pousando de leve a delicada mãozinha sobreo ombro da cantora.- Ah! é a senhora?! - respondeu <strong>Isaura</strong> voltando-se sobressaltada.- Não sabia que estava aí me escutando.- Pois que tem isso?.., continua a cantar... tens a voz tão bonita!...mas eu antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você gostatanto dessa cantiga tão triste, que você aprendeu não sei onde?...- Gosto dela, porque acho-a bonita e porque... ah! não devo falar...- Fala, <strong>Isaura</strong>. Já não te disse que nada me deves esconder, e nadarecear de mim?...- Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci,coitada!... Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.- Não gosto que a cantes, não, <strong>Isaura</strong>. Hão de pensar que ésmaltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros ecruéis. Entretanto passas aqui uma vida que faria inveja a muita gentelivre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-te uma educação, comonão tiveram muitas ricas e ilustres damas que eu conheço. És formosa,e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma sógota de sangue africano. Bem sabes quanto minha boa sogra antes deexpirar te recomendava a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempreas recomendações daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tuaamiga do que tua senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantigalastimosa, que tanto gostas de cantar. - Não quero, - continuou emtom de branda repreensão, - não quero que a cantes mais, ouviste,<strong>Isaura</strong>?... se não, fecho-te o meu piano.- Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do queuma simples escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, quetanto me gabam, de que me servem?... são trastes de luxo colocados nasenzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: umasenzala.- Queixas-te da tua sorte, <strong>Isaura</strong>?...- Eu não, senhora; não tenho motivo... o que quero dizer comisto é que, apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem,sei conhecer o meu lugar.- Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonitacomo és, não podes deixar de ter algum namorado.- Eu, senhora!... por quem é, não pense nisso.- Tu mesma; pois que tem isso?... não te vexes; pois é algumacoisa do outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é porisso que lamentas não teres nascido livre para poder amar aquele que teagradou, e a quem caíste em graça, não é assim?...
- Perdoe-me, sinhá Malvina; - replicou a escrava com um cândidosorriso. - Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!- Qual longe!... não me enganas, minha rapariguinha!... tu amas,e és mui linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só sefosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo. Umamenina como tu, bem pode conquistar o amor de algum guapo mocetão,e eis aí a causa da choradeira de tua canção. Mas não te aflijas,minha <strong>Isaura</strong>; eu te protesto que amanhã mesmo terás a tua liberdade;deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma rapariga como tu seveja ainda na condição de escrava.- Deixe-se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menosem liberdade; às vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum...- Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de sê-lo.Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros,que chegavam e apeavam-se á porta da fazenda.Malvina e <strong>Isaura</strong> correram à janela a ver quem eram.Capitulo 2Os cavaleiros, que acabavam de apear-se, eram dois belos e elegantesmancebos, que chegavam da vila de Campos. Do modo familiar,por que foram entrando, logo se depreendia que era gente de casa.De feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique,irmão da mesma.Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento maisíntimo com os dois jovens cavaleiros.Leôncio era filho único do rico e magnífico comendador Almeida,proprietário da bela e suntuosa fazenda em que nos achamos. O comendador,já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seu filho,que tivera lugar um ano antes da época em que começa esta história,havia-lhe abandonado a administração e usufruto da fazenda, e vivia nacorte, onde procurava alivio ou distração aos achaques que o atormentavam.Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seuspais amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência.Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou decolégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todosos preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato.Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador o desgostode ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiroano enjoou-se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo,foi-se para Olinda a fim de freqüentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipadonão pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus víciose loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficouentendendo que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência,e saciar a sua sede de saber, em puros e abundantes mananciais. Assimescreveu ao pai, que deu-lhe crédito e o enviou a Paris, donde esperavavê-lo voltar feito um novo Humboldt. Instalado naquele vasto pandemôniodo luxo e dos prazeres, Leóncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouviras eloqüentes preleções dos exímios professores da época, e nem tampoucoera visto nos museus, institutos e bibliotecas. Em compensaçãoera assíduo frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os
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Martinho, e que ninguém mais se le
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pintavam, era um potentado em sua t
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educou com tanto esmero essa escrav
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o podendo conseguir, combinaram de
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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e conselhos daquele tão solícito
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desprezo que Leôncio lhe merecia,