é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu depedir aquilo que de direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata erebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a maisninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhasmãos e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor,- Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade,não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava tambémtem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.- Afetos!... quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?...- Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém podeescravizá-lo, nem o próprio dono.- Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se nãocedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas paraquê? para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos.Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição;para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo demeus negros.- Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu paifez morrer de desgosto e maus-tratos a minha pobre mãe; já vejo queme é destinada a mesma sorte. Mas fique certo de que não me faltarãonem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor edo mundo.- Oh! - exclamou Leôncio com satânico sorriso, - já chegaste atão subido grau de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava nãodeixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a taiscriaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano eler romances. Ainda bem que me preveniste; eu saberei gelar a ebuliçãodesse cérebro escaldado. <strong>Escrava</strong> rebelde e insensata, não terás mãosnem pés para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá, André, - bradouele e apitou com força no cabo do seu chicote.- Senhor! - bradou de longe o pajem, e um instante depois estavaem presença de Leôncio.- André, - disse-lhe este com voz seca e breve - traze-me jáaqui um tronco de pés e algemas com cadeado.- Virgem santa! - murmurou consigo André espantado. - Paraque será tudo isto?... ah! pobre <strong>Isaura</strong>!...- Ah! meu senhor, por piedade! - exclamou <strong>Isaura</strong>, caindo dejoelhos aos pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorçõesde angústia; pelas cinzas ainda quentes de seu pai, há poucos diasfalecido, pela alma de sua mãe, que tanto lhe queria, não martirize asua infeliz escrava. Acabrunhe-me de trabalhos, condene-me ao serviçoo mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem murmurar; maso que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazê-lo, emboradeva morrer.- Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a esteexcesso. Bem vês que me não convém por modo nenhum perder umaescrava como tu és. Talvez ainda um dia me serás grata por ter-teimpedido de matar-te a ti mesma.- Será o mesmo! - bradou <strong>Isaura</strong> levantando-se altiva, e com oacento rouco e trémulo da desesperação, - não me matarei por minhaspróprias mãos, mas morrerei às mãos de um carrasco.
Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, quedeposita sobre um banco, e retira-se imediatamente.Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplícioturvaram-se os olhos a <strong>Isaura</strong>, o coração se lhe enregelou de pavor, aspernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando-se sobre otamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.- Alma de minha sinhá velha! - exclamou com voz entrecortadade soluços, - valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais,como me valíeis cá na Terra.- <strong>Isaura</strong>, - disse Leôncio com voz áspera apontando para osinstrumentos de suplício, - eis ali o que te espera, se persistes em teulouco emperramento. Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, efica-te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amore o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos epoderosos. Adeus!...Quando <strong>Isaura</strong> sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu orosto, e levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainhados anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços do maisíntimo de sua alma:- Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!... vóssabeis se eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-meneste transe aflitivo, porque neste mundo ninguém pode valer-me.Livrai-me das garras de um algoz, que ameaça não só a minha vida,como a minha inocência e honestidade. Iluminai-lhe o espírito einfundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se compadeçade sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimasnos olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas,pelas chagas de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.Quanto <strong>Isaura</strong> era formosa naquela suplicante e angustiosaatitude! oh! muito mais bela do que em seus momentos de serenidade eprazer!... se a visse então, Leôncio talvez sentisse abrandar-se o férreo eobcecado coração. Com os olhos arrasados em lágrimas, que em fio lheescorregavam pelas faces desbotadas, entreaberta a boca melancólica,que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços, atiradasem desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas, voltandopara o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural,ofereceria ao artista inspirado o mais belo e sublime modelo para aefígie da Mãe Dolorosa, a quem nesse momento dirigia suas ardentessúplicas. Os anjos do céu, que por certo naquele instante adejavam emtorno dela agitando as asas de ouro e carmim, não podiam deixar delevar tão férvida e dolorosa prece aos pés do trono da Consoladora dosaflitos.Absorvida em suas mágoas <strong>Isaura</strong> não viu seu pai, que, entrandopelo salão a passos sutis e cautelosos, encaminhava-se para ela.- Oh! felizmente ela ali está, - murmurava o velho, - o algozaqui também andava! oh! pobre <strong>Isaura</strong>!... que será de ti?!...- Meu pai por aqui!... - exclamou a infeliz ao avistar Miguel. -Venha, venha ver a que estado reduzem sua filha.- Que tens, filha?... que nova desgraça te sucede?- Não está vendo, meu pai?... eis ali a sorte, que me espera, -respondeu ela apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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desprezo que Leôncio lhe merecia,