vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seudesleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teriaforças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos,inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nasalmas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito maisdepressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio, adespeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte doque o seu ressentimento, por mais justo que este fosse.Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aosassomos da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braçoscruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquelarápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seucharuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o maisindiferente dos hóspedes.Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural esincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de suamulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização daquelacaprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campointeiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandosprojetos sobre a infeliz <strong>Isaura</strong>. Com aquele fingido pouco-caso, conseguiadisfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; ecomo era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, postoque em circunstâncias menos graves, - que contra as cóleras ecaprichos femininos não há arma mais poderosa do que muitosangue-frio e pouco-caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquelaafetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a alma de seu marido.O que era feito porém da nobre e infeliz <strong>Isaura</strong> durante esseslongos dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte docomendador, <strong>Isaura</strong> perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momentoantes Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeuque um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaze desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontravaem sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se epreparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavormortal apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e comoque alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas maisespessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas,passava horas e horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre,que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de garras sangrentas.Quem poderia ampará-la? onde poderia encontrar proteção contra astirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoaspoderiam ter por ela comiseração e interesse; seu pai e Malvina. Seupai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, esó podendo comunicar-se com ela a custo e furtivamente, em pouco ounada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tantabondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosaem que colhera seu marido, dirigindo a <strong>Isaura</strong> palavras enternecidas,começou a olhá-la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeitodo ciúme, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidase benevolentes A senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada
vez menos tratável e benigna para com a escrava, que antes haviatratado com carinho e intimidade quase fraternal.Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocênciade <strong>Isaura</strong>, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga.Depois do desaguisado, de que <strong>Isaura</strong> foi causa inocente, Rosa ficou sendoa mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafavaem presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviame transvazavam do coração.- Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa... - dizia-lhe amaliciosa rapariga. - Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos;há muito tempo que eu estou vendo essa impostora, que diante dasinhá se faz toda simplória, andar-se derretendo diante de sinhô moço.Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmenteinsinuar nos ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairaro espírito de uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foramproduzindo o resultado que desejava a perversa mulatinha.Acabrunhada com aquele novo infortúnio, <strong>Isaura</strong> fez algumastentativas para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lheretirava a afeição e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim depoder manifestar sua inocência. Mas era recebida com tal friezae altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar-se maisfundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempreuma salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava <strong>Isaura</strong> contraas importunações e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosseo respeito, que lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderosoestorvo ao menos contra os atos de violência, que quisesse pôr emprática para conseguir seus execrandos fins. <strong>Isaura</strong> ponderava isso tudo,e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento em queficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-ainteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaroscaprichos daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.De feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da últimacolina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratoulogo de pôr o tempo em proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa emprocura de <strong>Isaura</strong>. Foi enfim dar com ela no escuro recanto de umaalcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em pranto earrancando do peito soluços convulsivos.Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu.Contentemo-nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandose suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era dointeresse e dever dela render-se a seus desejos. Fez as mais esplêndidaspromessas, e os mais solenes protestos; abaixou-se até às mais humildessúplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca nãoouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações; e vendo enfimque eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se cheio de cólera,vomitando as mais tremendas ameaças.Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo diamandou pô-la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítuloantecedente. Dali teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco,
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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e conselhos daquele tão solícito
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desprezo que Leôncio lhe merecia,