companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, pordesenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça-real, alçando ocolo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse ecomiseração, porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhetinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteiradodo motivo desta malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aíalguma coisa de mais positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para quem fora fácilconquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém,inclinou-se a <strong>Isaura</strong>, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.A gentil mulatinha sentiu-se cruelmente ferida em seu coração com essedesdém, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seu senhor,jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival...............................................................................- Um raio que te parta, maldito! - Má lepra te consuma, coisaruim! - Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! - Estas eoutras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra ofeitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestadoentre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios.abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorraguedesapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim queo paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-secontra o algoz, que a executa.Como já dissemos, coube em sorte a <strong>Isaura</strong> sentar-se perto deRosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria deditérios e remoques sarcásticos e irritantes.- Tenho bastante pena de você, <strong>Isaura</strong>. disse Rosa para dar começoàs operações.- Deveras! - respondeu <strong>Isaura</strong>, disposta a opor às provocaçõesde Rosa toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê, Rosa?...- Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofáde damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essaroda? Por que te enxotaram de lá, <strong>Isaura</strong>?- Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvinafoi-se embora em companhia de seu irmão para a casa do pai dela.Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aquitrabalhar com vocês.- E por que é que ela não te levou, você, que era o ai-jesusdela?... Ah! <strong>Isaura</strong>, você cuida que me embaça, mas está muitoenganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, epor isso veio aqui para conhecer o seu lugar- Como és maliciosa! - replicou <strong>Isaura</strong> sorrindo tristemente, massem se alterar; pensas então que eu andava muito contente e cheia demim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... seme não perseguires com a tua má língua, como principias a fazer, creioque hei de ficar mais satisfeita e sossegada aqui.
- Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui,se não acha moços para namorar?- Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me comessas falas?...- Olhe a sinhá, não se zangue!... perdão, dona <strong>Isaura</strong>; eu penseique a senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.- Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na salaou na cozinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Tambémdeves-te lembrar, que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus ondeestarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação. deixemos dessasconversas que não têm graça nenhuma.Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; eram trêspara quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. Asescravas suspendem seus trabalhos e levantam-se; <strong>Isaura</strong> porémnão se move, e continua a fiar.- Então? - diz-lhe Rosa com o seu ar escarninho, - você nãoouve, <strong>Isaura</strong>? são horas; vamos ao feijão.- Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.- Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa comovocê não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mandeum caldinho, um chocolate?...- Cala essa boca, tagarela! - bradou a crioula velha, que pareciaser a priora daquele rancho de fiandeiras. - Forte lingüinha devíbora!... deixa a outra sossegar. Vamos, minha gente.As escravas retiraram-se todas do salão, ficando só <strong>Isaura</strong>,entregue ao seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadorasreflexões. O fio se estendia como que maquinalmente entre seus dedosmimosos, enquanto o pezinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho demarroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automáticoimpulso. A fronte lhe pendia para um lado como açucena esmorecida, eas pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos, queencobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estavadeslumbrante de beleza naquela encantadora e singela atitude.- Ah! meu Deus! - pensava ela; nem aqui posso achar umpouco de sossego!... em toda parte juraram martirizar-me!... Na sala, osbrancos me perseguem e armam mil intrigas e enredos para meatormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem mequerer bem, esperava ficar mais tranqüila, há uma, que por inveja, ouseja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de achincalhar-me.Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não eramelhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil dasnegras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem paraamargurar-me a existência?<strong>Isaura</strong> não teve muito tempo para dar larga expansão às suasangustiosas reflexões. Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viuque alguém se encaminhava para ela.- Ai! meu Deus! - murmurou consigo. - Aí temos novaimportunação! nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que jávimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e
- Page 1: A Escrava Isaura, de Bernardo Guima
- Page 4 and 5: quando está sozinha. Mas com todo
- Page 6 and 7: cafés e teatros mais em voga, e to
- Page 8 and 9: tragava em conseqüência dos torpe
- Page 10 and 11: estranho. Casara-se por especulaç
- Page 12 and 13: mais que uma escrava. Se tivesses n
- Page 14 and 15: perturbação da paz doméstica, o
- Page 16 and 17: pescoço, e a cabeça disforme nasc
- Page 18 and 19: pomo fatal, mas inocente, que devia
- Page 20 and 21: tom cerimonioso com que Malvina o t
- Page 22 and 23: meios de libertar a menina; ela bem
- Page 24 and 25: - Meu pai!... que novidade o traz a
- Page 26 and 27: melhor matar a gente de uma vez...-
- Page 30 and 31: petulante se foi colocar defronte d
- Page 32: Leôncio encerrado em seu quarto a
- Page 35 and 36: vez menos tratável e benigna para
- Page 37 and 38: o meu amor.,- Nunca! - exclamou Isa
- Page 39 and 40: Neste momento chega André trazendo
- Page 41 and 42: Já são passados mais de dois mese
- Page 43 and 44: - Por essa já eu esperava; entreta
- Page 45 and 46: por um grupo de lindas e elegantes
- Page 47 and 48: desconhecida e o seu campeão mil c
- Page 49 and 50: - Desculpe-me, - murmurou Isaura -
- Page 51 and 52: ao deixar o piano de novo se apoder
- Page 53 and 54: indignidade, uma traição infame?
- Page 55 and 56: do alcance de qualquer perseguiçã
- Page 57 and 58: Não pense o leitor que já se acha
- Page 59 and 60: dirigidas para o salão de dança.
- Page 61 and 62: aqui está o papel...- Com efeito!
- Page 63 and 64: arrimando-se em seu peito.- Que tem
- Page 65 and 66: de truão ou palhaço, servia de in
- Page 67 and 68: cozinheira.Triste consolação! o e
- Page 69 and 70: mais humilhante irrisão! faze idé
- Page 71 and 72: Deus me favorecerá em tão justa e
- Page 73 and 74: fortuna de descobrir a escrava que
- Page 75 and 76: em particular, com permissão aqui
- Page 77 and 78: Martinho, e que ninguém mais se le
- Page 79 and 80:
nunca o foste, e nunca o serás. Po
- Page 81 and 82:
pintavam, era um potentado em sua t
- Page 83 and 84:
educou com tanto esmero essa escrav
- Page 85 and 86:
- Essa agora é bem lembrada! - ret
- Page 87 and 88:
o podendo conseguir, combinaram de
- Page 89 and 90:
escrever-me, como se entre nós nad
- Page 91 and 92:
case com um disforme?... oh! isto
- Page 93 and 94:
- Então, Isaura, - disse Malvina c
- Page 95 and 96:
não tardarão a chegar por aí o t
- Page 97 and 98:
melhores tempos, e espero que o meu
- Page 99 and 100:
e conselhos daquele tão solícito
- Page 101 and 102:
desprezo que Leôncio lhe merecia,