melhor matar a gente de uma vez...- Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui apouco nós tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezalapanhar café, e o pirai do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Eleo que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.- Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, -observou outra escrava, - se estar na roça trabalhando de enxada, ouaqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas danoite. Quer-me parecer que lã ao menos a gente fica mais àvontade.- Mais à vontade?!.., que esperança! - exclamou uma terceira.- Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre domaldito feitor.- Qual, minha gente! - ponderou a velha crioula - tudo écativeiro. Quem teve a desgraça de nascer cativo de um mau senhor,dê por aqui, dê por acolá, há de penar sempre. Cativeiro é má sina; nãofoi Deus que botou no mundo semelhante coisa, não; foi invenção dodiabo. Não vê o que aconteceu com a pobre Juliana, mãe de <strong>Isaura</strong>?- Por falar nisso, - atalhou uma das fiandeiras, - o que ficafazendo agora a <strong>Isaura</strong>?... enquanto sinhá Malvina estava aí, ela andavade estadão na sala, agora...- Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, - acudiu Rosacom seu sorriso maligno e zombeteiro.- Cala a boca, menina! - bradou com voz severa a velha crioula.- Deixa dessas falas. Coitada da <strong>Isaura</strong>. Deus te livre a você deestar na pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou apobre da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo,Deus te perdoe. Agora com <strong>Isaura</strong> e sinhô Leôncio a coisa vai tomandoo mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cordesta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita...Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.- Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! - continuou acrioula velha. - O ponto foi sinhô velho gostar dela... eu já contei avocês o que é que aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e porisso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel,que anda aí, e que é pai de <strong>Isaura</strong>. Isso é que era feitor bom!... todomundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco,que ai anda agora, cruz nele!... é a pior peste que tem botado os pésnesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito deJuliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrarela. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitorpara fora.Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co'ela na covaem pouco tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se nãofosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deus sabe o que seriadela!... também, coitada!... antes Deus a tivesse levado!...- Por quê, tia Joaquina?...- Porque está-me parecendo, que ela vai ter a mesma sina damãe...- E o que mais merece aquela impostora? - murmurou ainvejosa e malévola Rosa. - Pensa que por estar servindo na sala é
melhor do que as outras, e não faz caso de ninguém. Deu agora emnamorar os moços brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensaque e uma grande enhora. Pobre do senhor Miguel!... não tem onde cairmorto, e há de ter para forrar a filha!- Que má língua é esta Rosa! - murmurou enfadada a velhacrioula, relanceando um olhar de repreensão sobre a mulata. - Quemal te fez a pobre <strong>Isaura</strong>, aquela pomba sem fel, que com ser o que e,bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazerpouco caso de ninguém?... Se você se pilhasse no lugar dela, pachola eatrevida como és, havias de ser mil vezes pior.Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo oatrevimento e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera eatroadora, que, partindo da porta do salão, retumbou por todo ele, veiopôr termo à conversação das fiandeiras.- Silêncio! - bradava aquela voz. - Arre! que tagarelice!... pareceque aqui só se trabalha de língua!...Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, defisionomia dura e repulsiva, apresenta-se à porta do salão, evai entrando. Era o feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto eaperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda defiar. Logo após eles entrou <strong>Isaura</strong>.As escravas todas levantaram-se e tomaram a bênção ao feitor.Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmentepara <strong>Isaura</strong> ficava ao pé de Rosa.- Anda cá, rapariga; - disse o feitor voltando-se para <strong>Isaura</strong>. -De hoje em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuasparceiras que te dêem tarefa para hoje. Bem vejo que te não há deagradar muito a mudança; mas que volta se lhe há de dar?... teu senhorassim o quer. Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressacom a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação,que lhe davam, <strong>Isaura</strong> foi sentar-se junto a roda, e pôs-se a prepará-lapara dar começo ao trabalho. Posto que criada na sala e empregadaquase sempre em trabalhos delicados, todavia era ela hábil em todo ogênero de serviço doméstico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhartão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois colocar-secom toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenasnotava-se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão demelancólica resignação; mas isso era o reflexo das inquietaçõese angústias, que lhe oprimiam o coração, que não desgosto por se verdegradada do posto que ocupara toda sua vida junto de suas senhoras.Cônscia de sua condição, <strong>Isaura</strong> procurava ser humilde como qualqueroutra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seuespirito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nemturvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante porém todaessa modéstia e humildade transiuzia-lhe, mesmo a despeito dela, noolhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo,proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem oquerer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção enobreza dos traços fisionômicos e por certa distinção nos gestose ademanes. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre as
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Martinho, e que ninguém mais se le
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nunca o foste, e nunca o serás. Po
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pintavam, era um potentado em sua t
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educou com tanto esmero essa escrav
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- Essa agora é bem lembrada! - ret
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o podendo conseguir, combinaram de
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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e conselhos daquele tão solícito
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desprezo que Leôncio lhe merecia,