perturbação da paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em quese colocara de ver desconcertados os seus perversos desígnios sobre agentil escrava.- Maldição! - rugia ele lá consigo. - Aquele maluco é bem capazde desconcertar todos os meus planos. Se sabe alguma coisa, comoparece, não porá dúvida em levar tudo aos ouvidos de Malvina...Leôncio ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio,carrancudo, com o espírito entregue à cruel inquietação que o fustigava.Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em <strong>Isaura</strong>, aqual, desde que Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante,fora sumir-se em um canto da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedadea altercação dos dois moços, como corça mal ferida escutando orugir de dois tigres, que disputaram entre si o direito de devorá-la. Porseu lado também se arrependia do intimo d'alma, e raivava contra simesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo deimpaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência ia sercausa da mais deplorável discórdia no seio daquela família, discórdia,de que por fim de contas ela viria a ser a principal vítima. A desavençaentre os dois mancebos era como o choque de duas nuvens, que se encontrame continuam a pairar tranqüilamente no céu; mas o raio desprendido deseu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da infeliz cativa.Capítulo 4- Ah! estás ainda ai?... fizeste bem, - disse Leôncio mal avistou<strong>Isaura</strong>, que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que seabrigara, e onde fazia mil votos ao céu para que seu senhor não a visse,nem se lembrasse dela naquele momento. - <strong>Isaura</strong>, continuou ele,- pelo que vejo, andas bem adiantada em amores!... estavas a ouvirfinezas daquele rapazola...- Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio.Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seus senhores, mereciaser severamente castigada.- Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, <strong>Isaura</strong>?...- Eu?! - respondeu a escrava perturbando-se; - eu, nada quepossa ofender nem ao senhor nem a ele...- Pesa bem as tuas palavras, <strong>Isaura</strong>; olha, não procuresenganar-me. Nada lhe disseste a meu respeito?- Nada.- Juras?- Juro, - balbuciou <strong>Isaura</strong>.- Ah! <strong>Isaura</strong>, <strong>Isaura</strong>!... tem cuidado. Se até aqui tenho sofridocom paciência as tuas repulsas e desdéns, não estou disposto a suportarque em minha casa, e quase em minha presença, estejas a escutargalanteios de quem quer que seja, e muito menos revelar o que aqui sepassa. Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meuódio.- Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir-me?- Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado adesterrar-te desta casa, e a esconder-te em algum canto, onde não sejastão vista e cobiçada...
- Para quê, senhor...- Basta; não te posso ouvir agora, <strong>Isaura</strong>. Não convém que nosencontrem aqui conversando a sós. Em outra ocasião te escutarei. -preciso estorvar que aquele estonteado vã intrigar-me com Malvina -murmurava Leôncio retirando-se. - Ah! cão! maldita a hora em que tetrouxe à minha casa!- Permita Deus que tal ocasião nunca chegue! - exclamoutristemente dentro da alma a rapariga, vendo seu senhor retirar-se.Ela via com angústia e mortal desassossego as continuas e cada vez maisencarniçadas solicitações de Leôncio, e não atinava com um meio deopor-lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até à morte, lembrava-se dasorte de sua infeliz mãe, cuja triste história bem conhecia, pois a tinhaouvido, segredada a medo e misteriosamente, da boca de alguns velhosescravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado das mais negrase sinistras cores. Revelar tudo a Malvina era o único meio, que se lheapresentava ao espírito, para pôr termo às ousadias do seu marido, e atalharfuturas desgraças. Mas <strong>Isaura</strong> amava muito sua jovem senhora para ousar darsemelhante passo, que iria derramar-lhe no seio um pego de desgostose amarguras, quebrando-lhe para sempre a risonha e doce ilusão emque vivia.Preferia antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéissevícias, do que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra no céu até alitão sereno e bonançoso de sua querida senhora.O pai de <strong>Isaura</strong>, o único ente no mundo, que à exceção de Malvinase interessava por ela, pobre e simples jornaleiro, não se achavaem estado de poder protegê-la contra as perseguições e violências deque se achava ameaçada. Em tão cruel situação <strong>Isaura</strong> não sabia senãochorar em segredo a sua desventura, e implorar ao céu, do qual somentepodia esperar remédio a seus males.Bem se compreende pois agora aquele acento tão dorido, tãorepassado de angústia, com que cantava a sua canção favorita. Malvinaenganava-se atribuindo sua tristeza a alguma paixão amorosa. <strong>Isaura</strong>conservava ainda o coração no mais puro estado de isenção. Comquanto mais dó não a teria lastimado sua boa e sensível senhora, sepudesse adivinhar a verdadeira causa dos pesares que o ralavam.Capítulo 5<strong>Isaura</strong> despertando de suas pungentes e amargas preocupações.tomou seu balainho de costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir-seno mais escondido recanto da casa, ou amoitar-se em algumesconderijo do pomar. Esperava assim esquivar-se à repetição de cenasindecentes e vergonhosas, como essas por que acabava de passar. Apenasdera os primeiros passos foi detida por uma extravagante e grotescafigura, que penetrando no salão veio postar-se diante de seus olhos.Era um monstrengo afetando formas humanas, um homúnculo emtudo mal construído, de cabeça enorme, tronco raquítico, pernas curtase arqueadas para fora, cabeludo como um urso, e feio como um mono.Era como um desses truões disformes, que formavam parte indispensáveldo séquito de um grande rei da Média Idade, para divertimentodele e de seus cortesões. A natureza esquecera de lhe formar o
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Martinho, e que ninguém mais se le
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- Essa agora é bem lembrada! - ret
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o podendo conseguir, combinaram de
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escrever-me, como se entre nós nad
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case com um disforme?... oh! isto
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- Então, Isaura, - disse Malvina c
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não tardarão a chegar por aí o t
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melhores tempos, e espero que o meu
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e conselhos daquele tão solícito
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desprezo que Leôncio lhe merecia,