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Prosa - Academia Brasileira de Letras

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<strong>Prosa</strong>Machado ea educaçãoArnaldo NiskierJoaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis nasceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro em21<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1839, ano em que também nasceram Casimiro<strong>de</strong> Abreu e Tobias Barreto. Começou a versejar aos 15 anos e, antesdos 18 anos, publicou o seu primeiro conto (gênero em que foi mestreindiscutível): “Três tesouros perdidos”.Machado era mestiço, filho <strong>de</strong> um pardo forro (Francisco José <strong>de</strong>Assis) e <strong>de</strong> mãe negra (Maria Leopoldina Machado <strong>de</strong> Assis). Eramagregados <strong>de</strong> uma quinta, o pai pintor <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s. Ficou órfão <strong>de</strong>mãe muito cedo (usou o seu nome artístico) e encontrou na madrasta,a lava<strong>de</strong>ira Maria Inês, o gran<strong>de</strong> arrimo da sua infância, especialmenteapós a morte do pai, em 1851.Machado foi contista, poeta, cronista, crítico e autor teatral (oseu Lição <strong>de</strong> Botânica, nascido <strong>de</strong> um conto, é simplesmente genial).Era um autodidata, que freqüentou apenas a escola primária. Morreuno Rio, no dia 29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1908, com 69 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.Junto com Lúcio <strong>de</strong> Mendonça, foi um dos fundadores da Aca<strong>de</strong>-Ocupante daCa<strong>de</strong>ira 18na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.13


Machado e a educação“Meu propósito era ser mestre <strong>de</strong> meninos, ensinar alguma cousa pouca doque soubesse, dar a primeira forma ao espírito do cidadão. Calou-se o mestrealguns minutos, repetindo consigo essa última frase, que lhe pareceu engenhosae galante...”Trazer Machado <strong>de</strong> Assis para o campo da pedagogia, que não foi sua priorida<strong>de</strong>,é uma forma também <strong>de</strong> homenageá-lo, mostrando que a sua genialida<strong>de</strong>não conheceu limites – e por isso mesmo jamais po<strong>de</strong>ria ser insensível aoque representa a nossa educação para o futuro das novas gerações.17


Mascara mortuária<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.


<strong>Prosa</strong>Tudo sãomistériosLêdo IvoAsolidão estética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis se <strong>de</strong>sfaz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que oseqüestremos <strong>de</strong> sua moldura nativa e nos disponhamos aavaliá-lo no largo estuário que, em nosso tempo, acolhe as contribuições<strong>de</strong>stinadas a mudar a face e o <strong>de</strong>stino do romance realista e naturalistado século XIX.Esta perspectiva atualiza as ocorrências históricas e permite reinventaro passado na medida em que se busca interrogá-lo criticamente.Colocado nele, o autor <strong>de</strong> Dom Casmurro exibe, naquela mãoinvejável que narrou o amor <strong>de</strong>svairado <strong>de</strong> Quincas Borba e <strong>de</strong>screveuo corpo <strong>de</strong> Sofia “emergindo as ca<strong>de</strong>iras amplas, como umagran<strong>de</strong> braçada <strong>de</strong> folhas que sai <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do vaso”, a carta <strong>de</strong> baralhoque lhe dá o direito <strong>de</strong> figurar não apenas na nossa literaturacomo um protagonista seminal, mas ainda na mesa faustosa dos querevolucionaram o romance oci<strong>de</strong>ntal.Após a afirmação épica e florida <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar, com as suasficções estuantes <strong>de</strong> luzes e paisagens, cores e rumores, e aplicadas naOcupante daCa<strong>de</strong>ira 10na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.19


Lêdo Ivopossessão terrestre e na abrangência, Machado <strong>de</strong> Assis abriu, em nossa literatura,um caminho <strong>de</strong> dissidência que ainda hoje avança. A forma <strong>de</strong> romanceque ele cultivou colidia com uma consolidada tradição <strong>de</strong> inteireza e totalida<strong>de</strong>– e essa colisão prossegue, tornando-o contemporâneo da inquietação estéticados nossos dias. Os seus mo<strong>de</strong>los literários favoritos não foram WalterScott ou Balzac, Dickens ou Zola. Administrador sábio <strong>de</strong> seus dons genuínos,e dotado <strong>de</strong> uma certeira visão crítica <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s pessoais a que nãofaltava uma nota compulsiva, ele se utilizou <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> narração e composiçãodo século XVIII. Recuou para avançar. Na noite romanesca já finda, buscouas luzes <strong>de</strong> sua alvorada.À efusão, à grandiosida<strong>de</strong> e ao transbordamento da ficção romântica <strong>de</strong>Balzac, Victor Hugo e George Sand, preferiu o conto filosófico <strong>de</strong> Voltaire eDi<strong>de</strong>rot e a ambígua e digressiva prosa ficcional da Xavier <strong>de</strong> Maistre. Essa inclinaçãonatural <strong>de</strong> seu espírito <strong>de</strong> narrador breve e parco, que prefere a intensida<strong>de</strong>à fluência generosa ou <strong>de</strong>sabrida, completa-se com uma eleição fundamental:a <strong>de</strong> Sterne, lido em francês, nos dois volumes <strong>de</strong> Tristram Shandy e LeVoyage Sentimental (edição Garnier), que ora tenho diante <strong>de</strong> mim.Desses cultores <strong>de</strong> romance anterior aos mo<strong>de</strong>los majestosos consagradospelo século XIX Machado <strong>de</strong> Assis apren<strong>de</strong>u a lição suprema da alusão e dafragmentarieda<strong>de</strong>, da ironia sucessiva e da <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> psicológica, da fulguraçãoanedótica e da tensão lingüística pronta a reclamar do leitor a pausareverente. E, na medida em que os mo<strong>de</strong>los por ele escolhidos oferecem a discussãoda própria genuinida<strong>de</strong> do gênero, Machado <strong>de</strong> Assis engasta em suaobra, no iluminado espaço precursor dos seus contos e romances, a propostada discussão crítica da forma adotada. Mas se impõe não esquecer que a suaposição heterodoxa e até soberbamente marginal <strong>de</strong> escritor que se abeberouem fontes privilegiadas <strong>de</strong> experimentação romanesca extrapola sua condição<strong>de</strong> ficcionista. Ela o abarca inteiro, conferindo-lhe a coerência <strong>de</strong>finitiva.A<strong>de</strong>pto <strong>de</strong> uma criação literária e poética que seja uma construção e nãouma efusão – ou melhor, que seja a construção <strong>de</strong> uma efusão, incumbindo-seo autor <strong>de</strong> compor e organizar a emoção a ser experimentada pelo leitor –,20


Tudo são mistériosMachado <strong>de</strong> Assis respira a sua diferença numa comparsaria intelectual sensívelao prestígio dos mo<strong>de</strong>los triunfantes que não foram os seus. Embora a nostalgiaromântica o persiga a vida inteira, como o comprova a sua sincera admiraçãopor José <strong>de</strong> Alencar e pelos poetas românticos portadores dos dons quelhe faltavam, ele se irá <strong>de</strong>stacando, ano por ano e obra por obra, pelo contrastecom o seu ambiente. A curiosida<strong>de</strong> intelectual que o caracterizou e tanto contribuiupara projetar a sua criação pessoal como uma obra <strong>de</strong> cultura, crescentementeregida pelo imperativo parnasiano do fino lavor e da energia estilística,dá uma boa medida <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>ssemelhança.Machado <strong>de</strong> Assis transitou num universo livresco que inclui o teatro <strong>de</strong>Shakespeare, Racine e Molière, os trágicos gregos, a Bíblia,aDivina Comédia, OsLusíadas, os velhos clássicos portugueses que lhe incutiram o gosto da vernaculida<strong>de</strong>(aliás temperada em sua obra por uma admirável profusão <strong>de</strong> brasileirismose até <strong>de</strong> africanismos), os contistas filosóficos do século XVIII, Heine eMusset, Dostoiévski e Renan e até Charles Nodier e Maupassant. Mas porémnão nos esqueçamos jamais <strong>de</strong> que esse mundo <strong>de</strong> leituras estaria incompletose nele não figurassem os gran<strong>de</strong>s moralistas, como Montaigne, Pascal, LaBruyère e La Rochefoucould, os quais fortaleceram a sua visão pessoal <strong>de</strong> queo homem não é flor que se cheire – e o romancista que não se renda a essa evidênciapalmar jamais será literariamente bem-sucedido.Bebendo em tantas fontes, proclamando-as com um entusiasmo que às vezesfrisava pela veneração ou escon<strong>de</strong>ndo-as nas dobras <strong>de</strong> sua fina prosa como mesmo cuidado com que ocultava a sua origem familiar, Machado <strong>de</strong> Assisrepresenta, entre nós, o exemplo mais fulgente <strong>de</strong> que a criação poética é umasolitária aventura lingüística: um problema <strong>de</strong> linguagem. Só a Literatura temo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mudar a Literatura. E a mesa <strong>de</strong> um escritor, com os seus livros epapéis, e sua <strong>de</strong>sarrumação afortunada, compara-se a um porto aberto a navegaçõesmisteriosas e aparelhado para permitir ao viajante manifestar le blanc souci<strong>de</strong> notre toile mallarmeano.A uma produção literária e poética assinalada pelo uso incompleto e atépredatório dos meios, e à disposição generosa do talento pessoal, Machado <strong>de</strong>21


Lêdo IvoAssis opõe a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma disciplina que favoreça a utilização fecunda daquiloque um escritor ou poeta traz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, ou rouba dos outros, nas operaçõesespirituais que levam cada um <strong>de</strong> nós a <strong>de</strong>scobrir a nossa água nas fontesalheias. (Na verda<strong>de</strong>, não nos conformamos com a impertinência daquelesque, antes <strong>de</strong> nós, ousaram apropriar-se <strong>de</strong> nossos pensamentos e sonharam osnossos sonhos.)Numa literatura sempre visitada pela exuberância regional e pela pressãogeográfica que incita o criador a <strong>de</strong>ter-se na expressão cosmética, sonegando-lheo caminho da análise que, situada além do pitoresco, o habilitaria aperquirir o coração humano e os móveis das condutas individuais e coletivas,Machado <strong>de</strong> Assis, não obstante o teor regional e até topográfico <strong>de</strong> sua obra,que convida o pe<strong>de</strong>stre a atravessar ruas e logradouros já <strong>de</strong>saparecidos, propalaa sua convicção <strong>de</strong> que o instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> não se resume à paisagemexpansiva e aos procedimentos epidérmicos. Ele chega mesmo a invocar oexemplo <strong>de</strong> Shakespeare e Racine na sustentação da doutrina <strong>de</strong> que a afirmação<strong>de</strong> uma nacionalida<strong>de</strong> pessoal e artística prescin<strong>de</strong> dos condimentosregionais e geográficos. Nesse sentido, a sua brasilida<strong>de</strong> é evi<strong>de</strong>nte e atétransbordante nas linhas e entrelinhas <strong>de</strong> sua obra escancaradamente carioca.Aliás, o instinto da nacionalida<strong>de</strong> que palpita na criação e na teoria literária<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis nos faz lembrar Jorge Luís Borges. É um curioso caso<strong>de</strong> antecessão, levando-nos à conclusão feliz <strong>de</strong> que tivemos o nosso Borgesem pleno século XIX e a i<strong>de</strong>ntificar no autor <strong>de</strong> El Hacedor um Machado <strong>de</strong>Assis portenho e sensacionalista.Note-se a cópia <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>s e coincidências que caracterizam essas duasfiguras consulares da literatura: a predileção pelo fragmento, o cultivo magistraldo conto, da fábula e da paródia; a digressão, a <strong>de</strong>slinearida<strong>de</strong> e anão-confiabilida<strong>de</strong> que conferem uma sinuosa sedução à sua prosa; o ostensivoapelo ao papel da cultura e do aprendizado permanente na individualida<strong>de</strong>intelectual; a obsessão pela poesia, sempre citada e praticada por ambos,embora eles tenham sido mais importantes como prosadores; a preocupaçãometafísica que os leva, ateus, a uma invocação continuada <strong>de</strong> Deus e dos <strong>de</strong>u-22


Tudo são mistériosses; a sobrieda<strong>de</strong> lingüística que lhes assegura as galas <strong>de</strong> terem mo<strong>de</strong>rnizadoseus idiomas, expugindo-os <strong>de</strong> excrescências e atavios; o antibarroquismo <strong>de</strong>ambos, embora figurantes eméritos <strong>de</strong> uma cena continental in<strong>de</strong>levelmentemarcada pela predominância estilística e existencial do Barroco; a afeição àmetáfora e à parábola, a autorida<strong>de</strong> intelectual que lhes propiciou conduzir odócil ou indócil rebanho literário, o qual neles reverenciava a superiorida<strong>de</strong>;e tantas outras qualida<strong>de</strong>s... e <strong>de</strong>feitos.Assim, não é <strong>de</strong> estranhar-se que, nos balcões e estantes das livrarias <strong>de</strong>Londres e Paris, Amsterdam e Nova York, Berlim e Roma, um encaramujadoescritor brasileiro do século XIX e início <strong>de</strong>ste, e um tagarela escritor argentinodo século XX apareçam juntos, unidos por um certo ar <strong>de</strong> família ou cumplicida<strong>de</strong>.Ambos representam a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> cultural da América Latina. E,ainda, encarnam o nosso instinto e vocação <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong>.As traduções <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis para as línguas consagradoras, que, maisque línguas, são verda<strong>de</strong>iras portas planetárias para o prosador e o poeta vindos<strong>de</strong> longe – <strong>de</strong>sta América tornada neste século a pátria e a mátria do romance e<strong>de</strong> outras paragens também obscuras e alternativas –, possibilita a aferição crítica<strong>de</strong> que a sua projeção <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong>corre da antecipadora postura estética. Ele foi,entre nós, um caso separado, um exemplo límpido <strong>de</strong> divergência e natação contraa corrente. Todavia, esse insulamento se esgota na fronteira natal. Inquiridaem outras terras e outros ares, a solidão estética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis se converteem comunhão com outros solitários insignes, como Nathaniel Hawthorne, oHerman Melville <strong>de</strong> Bartleby, Conrad e Henry James. Ajunta-os um ar <strong>de</strong> família– a família literária que operou a gran<strong>de</strong> mudança ficcional <strong>de</strong> que resultou oaparecimento <strong>de</strong> Joyce e Proust, Virginia Woolf e Faulkner. Em todos estes nomesinvocados, que são as culminações <strong>de</strong> uma misteriosa e complexa revoluçãoartística, o meandro substitui a linearida<strong>de</strong> romanesca, o pormenor se dilata, aspersonagens sibilinas e inacabadas <strong>de</strong>sacreditam a unida<strong>de</strong> psicológica dos títeresconvencionais; a reflexão interior e a emergência do inconsciente danificamos muros que costumam separar figurantes e cenários; o imaginário permeia odocumental, realçando os po<strong>de</strong>res da mentira e da patranha.23


Lêdo IvoPor último, impõe-se que sublinhemos, <strong>de</strong> modo sobranceiro, a não-confiabilida<strong>de</strong>do narrador, um dos processos capitais <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis que tantoo aproxima dos expedientes <strong>de</strong> narração <strong>de</strong> Henry James. Pelo seu teor <strong>de</strong>ambigüida<strong>de</strong>, os romances e contos do nosso clássico aten<strong>de</strong>m plenamente aorequisito <strong>de</strong> obra aberta que tanto seduz o leitor contemporâneo e ajuda a matara fome e a engordar as apostilas dos pedagogos.Inserido em tão prestigiosa comparsaria literária, Machado <strong>de</strong> Assis emergee eleva-se em sua verda<strong>de</strong>ira e legítima condição: a <strong>de</strong> um clássico da literaturaoci<strong>de</strong>ntal. Um minor classic, como costumam asseverar, <strong>de</strong> um modo respeitosoe até reverente, os interlocutores com que mais <strong>de</strong> um <strong>de</strong> nós se terá <strong>de</strong>frontadonas universida<strong>de</strong>s estrangeiras e nos bulhentos encontros literários tramadospara dirimir ignorâncias. De qualquer modo, um clássico. Eles, os interlocutores,nos interrogam: como um país como o Brasil, marginal e periférico,exuberante e bagunçado, estri<strong>de</strong>nte e tropical, pô<strong>de</strong> produzir esse dissimuladoe irônico Machado <strong>de</strong> Assis que, sendo um mulato – e, além <strong>de</strong> mulato, gago,epilético e <strong>de</strong> baixíssima extração social –, parece um inglês?Cabe-nos respon<strong>de</strong>r com as palavras do próprio autor <strong>de</strong> Memórias Póstumas<strong>de</strong> Brás Cubas: “Tudo são mistérios”.24


<strong>Prosa</strong>Machado: atual,imortal e eternoMurilo Melo FilhoPor um homem chamado Joaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis,bem cedo começou a minha vida. Lembro-me bem dos meustempos <strong>de</strong> infância, lá em Natal, quando, certo dia, ouvi do meuprofessor <strong>de</strong> português a seguinte opinião:– Meu filho, se você preten<strong>de</strong> algum dia ser um jornalista ou umescritor, aceite <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já um conselho meu: leia e releia Machado <strong>de</strong>Assis.Na Biblioteca Municipal da minha cida<strong>de</strong>, eu tinha o direito <strong>de</strong>retirar um livro <strong>de</strong> cada vez, assinar um recibo e assumir o compromisso<strong>de</strong> <strong>de</strong>volvê-lo em sete dias, num inteligente sistema <strong>de</strong> rodízio,que me permitiu ler e reler todos os nove romances <strong>de</strong> Machado,lá existentes: Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia, MemóriasPóstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacóe Memorial <strong>de</strong> Aires.Ocupante daCa<strong>de</strong>ira 20na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.25


Murilo Melo Filho Provocante indagaçãoÀ medida que eu ia me aprofundando na obra e na vida machadianas, com aleitura dos seus romances, me acudia uma instigante indagação: como é queuma pessoa <strong>de</strong> origem tão humil<strong>de</strong>, bisneto <strong>de</strong> escravos, filho <strong>de</strong> FranciscoJosé, um operário mulato pintor <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s, e <strong>de</strong> Maria Leopoldina, uma lava<strong>de</strong>iranegra e neta <strong>de</strong> escravos, criado no Morro do Livramento, bairro daGamboa, atrás do túnel da Central do Brasil, coroinha na igreja da Lampadosae ajudante dos serviços litúrgicos, órfão <strong>de</strong> mãe muito cedo, sem dinheiro parapagar os estudos ou para comprar um par <strong>de</strong> sapatos, aprendiz <strong>de</strong> tipógrafo naImprensa Nacional, mo<strong>de</strong>sto funcionário da Secretaria <strong>de</strong> Agricultura e doMinistério da Viação, mestiço, gago, epiléptico e feio, introspectivo, doente,franzino e calado, como é que uma pessoa em condições tão adversas, repito,conseguiu ser ao mesmo tempo um poeta, um contista, um crítico, um cronista,um tradutor, um teatrólogo, um jornalista, mas sobretudo um maravilhosoromancista e o maior escritor brasileiro <strong>de</strong> todos os tempos? E que foi tambémum dos fundadores e o primeiro presi<strong>de</strong>nte, durante <strong>de</strong>z anos, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>?Já agora, outra pergunta me ocorre: numa época em que não existia a máquinadatilográfica, nem o computador, como é que Machado teve tempo para manuscrevertantas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> livros – cada um melhor do que o outro –, compô-losletra por letra e imprimi-los em precárias máquinas <strong>de</strong> tipografia? Se hoje emdia, dispondo dos mais mo<strong>de</strong>rnos recursos <strong>de</strong> diagramação e <strong>de</strong> computação,já nos é bem difícil a tarefa <strong>de</strong> escritor, imagine-se então como elas eram difíceisnaquele tempo, há mais <strong>de</strong> 100 anos. Existem, atualmente, uma explicaçãoe uma interpretação não muito aceitas para o fenômeno: as <strong>de</strong> que, antes <strong>de</strong> serum inigualável escritor, era também um competente tipógrafo...Pouco se sabe hoje <strong>de</strong> sua infância, dos seus amiguinhos, dos seus brinquedose até mesmo do verda<strong>de</strong>iro en<strong>de</strong>reço do seu nascimento, que alguns biógrafoslocalizam na fazenda do Cônego Felipe, perto da praia <strong>de</strong> São Cristóvão,à qual Machado voltaria, anos <strong>de</strong>pois, em visitas saudosistas.26


Machado: atual, imortal e eternoAos seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>u a única irmã, Maria, <strong>de</strong> quatro anos, e per<strong>de</strong>utambém a madrinha Maria José, ambas vítimas da epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> sarampo.Não tinha ainda <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> quando morreu sua mãe, Maria Leopoldina,tuberculosa, substituída nos afazeres domésticos pela madrasta, MariaInês, uma doceira, também mulata.Como coroinha da igreja e sacristão das missas, familiarizou-se com o latim,que seria tão importante nas suas leituras posteriores com o francês, lecionadopor um pa<strong>de</strong>iro vizinho, além do alemão e do grego, que apren<strong>de</strong>ria<strong>de</strong>pois.Tinha apenas doze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e já vendia balas e doces fabricados porsua madrasta. Lampiões iluminavam suas noites, para que ele <strong>de</strong>vorasse todosos livros ao seu alcance, cedidos por amigos do seu pai ou tomados <strong>de</strong> empréstimonas bibliotecas públicas.Rondando as livrarias <strong>de</strong> então, confessaria <strong>de</strong>pois que tinha muita invejaao ver clientes com dinheiro para comprar livros <strong>de</strong> suas preferências.Tinha apenas 15 anos quando publicou seu primeiro poema na revistaMarmota Fluminense, <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Paula Brito, irmão <strong>de</strong> Carolina, sua futuramulher. O primeiro empregoJá então, era um fascinado pelos romances O Guarani, Iracema, As Minas <strong>de</strong>Prata, Ubirajara, A Pata da Gazela, O Tronco do Ipê e Lucíola, <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar, quecitava sempre e que terminou escolhendo em 1897, quando a ABL foi fundada,para patrono <strong>de</strong> sua Ca<strong>de</strong>ira 23.Foi imensa a influência da técnica ficcionista <strong>de</strong> Alencar sobre a primeirafase, romântica, da obra <strong>de</strong> Machado, que vai até 1880, quando ele encerra oseu romantismo e, com Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas servindo como divisor<strong>de</strong> águas, começa a etapa do seu naturalismo realista. E se explica quando,numa crônica, diz que “mamou leite romântico e po<strong>de</strong> meter o <strong>de</strong>nte no bifenaturalista”.27


Murilo Melo FilhoColaborou <strong>de</strong>pois, seguidamente, nas revistas O Espelho, A Semana Ilustrada,O Cruzeiro, A Estação, O Futuro, Revista <strong>Brasileira</strong> e nos jornais Correio Mercantil, OGlobo, Jornal das Famílias e Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Seu primeiro emprego, na Tipografia Nacional, lhe rendia uma pataca diária,com a qual se alimentava.Passou em seguida a trabalhar como tipógrafo na Imprensa Nacional, cujodiretor era Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, que então estava publicando em folhetinso seu Memórias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong> Milícias. Maneco, certo dia, recebeu umaqueixa contra Machado, que estaria relaxando muito nas suas tarefas, semprecom um livro nas mãos e lendo-o.Chamou-o à sua presença, fingiu que o recriminava na frente <strong>de</strong> outros funcionários,mas, quando eles saíram, abraçou o jovem e muito o estimulou aprosseguir nas suas leituras, mesmo durante o expediente.Nasceu aí um gran<strong>de</strong> carinho entre os dois, que levou Machado, anos <strong>de</strong>pois,quando a ABL se fundou, a indicar o nome <strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida,então morto, para patrono da Ca<strong>de</strong>ira 28.Tinha 24 anos e já revelava o seu espírito associativo, juntando-se a intelectuaiscontemporâneos, como Araújo Porto-Alegre, Gonçalves Dias, Lúcio <strong>de</strong>Mendonça, Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, TavaresBastos, Francisco Otaviano, Quintino Bocaiúva, Evaristo da Veiga, RaimundoCorreia e participando <strong>de</strong> tertúlias literárias na Patológica, <strong>de</strong> Paula Brito, eno Clube Literário Fluminense. Tinha aí duas distrações: a música erudita e ojogo <strong>de</strong> xadrez.Machado já estava também atraído por duas fascinações: a primeira era a davida teatral, da qual foi um crítico participante, um autor <strong>de</strong>stacado, e, durantealgum tempo, fã <strong>de</strong> artistas bonitas e famosas; a segunda era a <strong>de</strong> uma jovemportuguesa dos Açores, chamada Carolina Augusta, com a qual se casou no dia12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1869. Tinha trinta anos, e sua futura mulher, 34, a qual,para casar-se com ele, enfrentou uma tenaz resistência <strong>de</strong> sua família lusitana,um tanto racista. Ela seria uma gran<strong>de</strong> companheira, participante e revisora <strong>de</strong>seus textos.28


Machado: atual, imortal e eternoForam felizes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, quando Carolina, durante uma viagem a Petrópolis,assistiu, surpresa e perplexa, ao primeiro ataque epiléptico do marido.Des<strong>de</strong> então, apren<strong>de</strong>u um macete: passou a ter sempre uma borracha à mão euma solução líquida para que, nas suas crises, o marido não mor<strong>de</strong>sse os lábiosou a língua.Ainda hoje, <strong>de</strong> Machado não se conhece uma só manifestação <strong>de</strong> inconformismoou <strong>de</strong> revolta contra a doença que o atormentou sempre. Aceitou-acomo uma fatalida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino, sujeitando-se a, pacificamente, convivercom ela. A saú<strong>de</strong> afetadaA intensa ativida<strong>de</strong> literária e as muitas responsabilida<strong>de</strong>s como chefe <strong>de</strong> seçãoda Secretaria <strong>de</strong> Agricultura começam a afetar-lhe a saú<strong>de</strong>, com a reincidênciada epilepsia e o enfraquecimento <strong>de</strong> sua visão, que o levam às suas primeirasférias, gozadas na cida<strong>de</strong> serrana <strong>de</strong> Nova Friburgo.Aí começam a alterar-se os seus sonhos <strong>de</strong> autor poético que, em quatro romances,completara o seu ciclo positivo e o seu viés romântico, substituídospor um enfoque <strong>de</strong> realismo pessimista.Tinha 42 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> quando terminou <strong>de</strong> ditar para Carolina o seu MemóriasPóstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, uma <strong>de</strong>núncia contra a or<strong>de</strong>m social <strong>de</strong> então,através do negro Prudêncio. Aí explodiu todo o seu talento <strong>de</strong> ficcionista,meio <strong>de</strong>siludido da vida, com ironia céptica – um pouco no mol<strong>de</strong> e no estilobritânicos –, perplexo em face da presença e da <strong>de</strong>stinação do homem, introduzindoa excitante <strong>de</strong> capítulos breves, ao lado <strong>de</strong> uma inteligente tessitura dosseus atores e protagonistas. Revelou-se aí um captador das fraquezas humanase um senhor do vernáculo, no pleno domínio dos seus muitos segredos.Confessou, então: “Com os anos, adquiri a firmeza e busquei a perfeição.Não <strong>de</strong>testei nem idolatrei o passado. Sempre vi no estudo o mais rigorosodos mestres e no trabalho o mais exigente dos métodos. Aconselho os jovens aaplicarem seu talento num estudo continuado e severo, sendo ao mesmo tem-29


Murilo Melo Filhopo o mais austero crítico <strong>de</strong> si mesmos. O melhor meio <strong>de</strong> progredir é andarpara frente. Os novos senões evitam-se com a perseverança e o trabalho”.Já era aí um romancista consagrado, que o velho amigo Quintino Bocaiúvaprocurava, <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>, conquistar para a campanha republicana. Embora tendonela companheiros leais, como Rui, Pardal Mallet e Salvador <strong>de</strong> Mendonça,Machado nunca se fascinara pelos assuntos políticos.Seus vencimentos como chefe <strong>de</strong> seção na Secretaria <strong>de</strong> Agricultura e ospequenos cachês <strong>de</strong> suas colaborações em revistas e jornais, acrescidos dosdireitos autorais <strong>de</strong> seus livros, contratados com a Livraria Garnier, e aliadosà vida discreta e econômica que levava na companhia apenas <strong>de</strong> sua mulher,lhe possibilitaram uma transferência <strong>de</strong> moradia: passou a residir numsobrado da Rua Cosme Velho, n. o 18, bairro das Laranjeiras, on<strong>de</strong> viveriaaté o resto dos seus anos numa vida reclusa e quase monástica, que lhe valeriao título <strong>de</strong> “bruxo”.Sem ser um radical, não escondia sua simpatia pela causa abolicionista, atémesmo por uma questão <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> com seus irmãos <strong>de</strong> cor, quando, porexemplo, nas Memórias Póstumas, <strong>de</strong>snuda o personagem encarnado pelo Sr. Cotrim,um <strong>de</strong>salmado contrabandista <strong>de</strong> escravos.E numa crônica para a Gazeta <strong>de</strong> Notícias, assim saudou a Abolição da Escravatura,no dia 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1888: “Era um domingo <strong>de</strong> sol quente e abrasador.Todos saímos à rua. Eu também saí, eu, o mais encolhido dos caramujos,entrei no préstito, em carruagem aberta, e todos nós, em <strong>de</strong>lírio, respirávamosfelicida<strong>de</strong>”.Políticos republicanos chegaram a <strong>de</strong>nunciá-lo como monarquista, inimigoda nova or<strong>de</strong>m reinante. Rui e Lúcio <strong>de</strong> Mendonça saíram em sua <strong>de</strong>fesa, manifestandouma enorme revolta contra esse patrulhamento político, que tentavaatingir um dos maiores escritores brasileiros. Machado manteve-se sempredistante e indiferente ao radicalismo <strong>de</strong>ssa paixão. Estava aí inteiramente <strong>de</strong>dicadoà sua carreira literária e à produção da sua obra.30


Machado: atual, imortal e eterno Fundação da ABLJá tinha, então, <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se também à fundação <strong>de</strong> um novo órgão literário,<strong>de</strong>sta vez importante e <strong>de</strong>finitivo, a julgar pelos nomes que, em torno <strong>de</strong>le,estavam envolvidos no projeto: Lúcio <strong>de</strong> Mendonça, Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque,Inglês <strong>de</strong> Sousa, Rodrigo Octavio, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio,Domício da Gama, Carlos <strong>de</strong> Laet, Afonso Celso, Olavo Bilac, Araripe Júnior,Clóvis Beviláqua, José Veríssimo, Alberto <strong>de</strong> Oiveira, Coelho Neto, AluísioAzevedo, Oliveira Lima, Graça Aranha e Silva Ramos.Fundava-se, i<strong>de</strong>alizada por Lúcio <strong>de</strong> Mendonça, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>, com Machado aclamado no dia 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1896 para presidira sua primeira reunião preparatória, realizada no escritório <strong>de</strong> advocacia <strong>de</strong>Rodrigo Octavio, na Rua da Quitanda n. o 47, e que se instalaria solenemente a20 <strong>de</strong> julho do ano seguinte.Adotou-se aí o mo<strong>de</strong>lo da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa, fundada dois séculos antes,pelo Car<strong>de</strong>al Richelieu, com o número limitado <strong>de</strong> quarenta membros. O primeiroproblema que surgiu foi o da escolha dos quarenta patronos. A fim <strong>de</strong>evitar queixas e rivalida<strong>de</strong>s, escolheram-se nomes <strong>de</strong> intelectuais já mortos e alguns,moços, tinham morrido com bem poucos anos <strong>de</strong> vida: Álvares <strong>de</strong> Azevedoe Casimiro <strong>de</strong> Abreu, com 21anos; Junqueira Freire, com 23; CastroAlves, com apenas 24; A<strong>de</strong>lino Fontoura, 25; Pardal Mallet e Manuel Antônio<strong>de</strong> Almeida, 30; Teófilo Dias e Raul Pompéia, 32; Martins Pena, 33; Fagun<strong>de</strong>sVarela, 34; Tavares Bastos, 35; Laurindo Rabelo, 38 e GonçalvesDias, com 41anos, quase todos vítimas da tuberculose, uma doença fatal, sobretudopara os românticos, numa época em que ainda não havia antibióticos.Era a própria mocida<strong>de</strong> paraninfando a imortalida<strong>de</strong>. E era também uma<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> que nascia jovem. Quando a instalou, o seu primeiro presi<strong>de</strong>nte,Machado <strong>de</strong> Assis, que hoje nos parece um ancião, tinha 58 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.A segunda questão surgida foi a da or<strong>de</strong>m e numeração das ca<strong>de</strong>iras. Adotou-seentão a solução alfabética: a Ca<strong>de</strong>ira 1tinha como Patrono A<strong>de</strong>linoFontoura, e a Ca<strong>de</strong>ira 40 o Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco.31


Murilo Melo Filho A se<strong>de</strong> própriaO terceiro problema, que levaria mais tempo para ser solucionado, era o dase<strong>de</strong> própria, que no começo simplesmente não existia.A sessão inaugural, no dia 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1897, foi realizada numa sala doPedagogium, na Rua do Passeio. Machado, em seu discurso inaugural, sinteticamente,como sempre o fazia, <strong>de</strong>finiu o objetivo da nova <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> com estafrase quase bíblica: “Conservar, no meio da fe<strong>de</strong>ração política, a unida<strong>de</strong> literária,como guardiã das mais sagradas relíquias da inteligência e da sabedoria”.Empossou-se a primeira diretoria, tendo Machado como presi<strong>de</strong>nte; JoaquimNabuco, secretário-geral; Rodrigo Octavio, 1. o secretário; Silva Ramos,2. o secretário e Inglês <strong>de</strong> Sousa, tesoureiro.Aprovaram-se o Regimento e os Estatutos, assinados por eles cinco, comcláusulas pétreas até hoje.A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> era, então, muito pobre e andou peregrinando por várias se<strong>de</strong>s:o escritório da advocacia <strong>de</strong> Rodrigo Octavio, a Revista <strong>Brasileira</strong>, o Ginásio Nacional,os salões nobres do ministério da Justiça e do Liceu Literário.Por uma <strong>de</strong>cisão, em 1904, do Ministro do Interior, José Joaquim Seabra, aABL foi alojada na ala esquerda do novo edifício do Silogeu Brasileiro, situadoentre a Rua da Lapa e o Passeio Público.Machado ainda era o seu presi<strong>de</strong>nte, e o foi até 1908, muito lutando paramobiliar a nova se<strong>de</strong>. Durante todo esse tempo, com mo<strong>de</strong>ração e sensatez, presidiua <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, fazendo com que coabitassem e coexistissem pacificamenteacadêmicos monarquistas e republicanos. Sem autoritarismo ou imposições, impediuchoques e atritos, muito comuns numa associação <strong>de</strong> intelectuais.Aí no Silogeu, a ABL permaneceu até 1923, quando já haviam terminado ascomemorações do Centenário da In<strong>de</strong>pendência. A França, para nelas estarpresente, tinha construído um bonito pavilhão, o Petit Trianon, concebidopor Gabriel, o gran<strong>de</strong> arquiteto francês, numa réplica clássica do Palácio <strong>de</strong>Versalhes, a residência <strong>de</strong> Maria Antonieta.32


Machado: atual, imortal e eternoOs franceses não podiam evi<strong>de</strong>ntemente levá-lo <strong>de</strong> volta para a França. Oprimeiro-ministro Raymond Poincaré o doou ao governo brasileiro, e este,por sua vez, o transferiu à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, que nele está até hoje,sem nenhuma alteração no projeto original. Um pintor <strong>de</strong> almasDiz o professor baiano Gildásio Tavares que Machado foi um escrutinador<strong>de</strong> almas, no qual o exterior só interessa quando confrontado com o interior,com uma dialética que preten<strong>de</strong> iluminar a sombra <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e a luz <strong>de</strong> fora:“Foi também um pintor <strong>de</strong> almas e não <strong>de</strong> corpos, muito além do romantismoe do realismo naturalista, mais para a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> psicológica <strong>de</strong> um HenryJames do que para a paixão glandular <strong>de</strong> um Zola. Manipulou todo um arsenalretórico, em que se <strong>de</strong>stacavam o florete da ironia e o chicote da sátira”.Cometeu o pecado, imperdoável no Brasil, da sobrieda<strong>de</strong>, da classe, do requintee da discreta elegância. Podia dar-se ao luxo <strong>de</strong> ser o que quisesse, poispossuía o mais fértil talento literário.Dir-se-ia até que ele era a introspecção em pessoa, vivendo mais para <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> si mesmo do que para as coisas externas da vida.Muitas passagens da vida <strong>de</strong> Machado são, ainda hoje, um <strong>de</strong>nso mistério:qual era o nome do pa<strong>de</strong>iro vizinho que lhe ensinou francês, para que ele pu<strong>de</strong>sse,no original, traduzir Victor Hugo e ler Stendhal, Mallarmé, Balzac,Chateaubriand e Dumas? Com quem apren<strong>de</strong>u inglês, para ter acesso a Shakespeare,Poe, Dickens e Joyce? Com quem, aos 43 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, começou aestudar alemão, para compreen<strong>de</strong>r Nietzsche, Heine e Goethe?Foi um filósofo, algo pessimista e céptico, um tanto agnóstico, um dialéticomaterialista, embora tenha chegado a escrever o poema “Fé”.Na cultura lusitana, tinha particular admiração por Camões, Camilo e Garret,fazendo sérias restrições a Eça.33


Murilo Melo Filho Duas históriasSobre Machado, o nosso Josué Montello narra duas histórias maravilhosas:Um amigo seu havia sido agraciado pelo Imperador Pedro II com o título<strong>de</strong> barão. Machado estava dando a notícia a Ferreira <strong>de</strong> Araújo, mas,gago, atrapalhava-se no polissílabo:– Barão <strong>de</strong> Panapi... Paranapi... Paranapi...Ferreira <strong>de</strong> Araújo, impaciente, interrompeu-o:– Acaba, homem.E Machado, sorrindo:– É isto mesmo... acaba ... Paranapiacaba. Barão <strong>de</strong> Paranapiacaba.Noutra vez, durante o carnaval, Machado estava na Livraria Garnier e se viuassediado por um folião mascarado <strong>de</strong> dominó:– O senhor conhece-me?E Machado:– Conheço, conheço, é o português Rafael Bordalo Pinheiro. Estou conhecendopelo sotaque e pela colocação do pronome. Choque com Sílvio RomeroNo mesmo ano <strong>de</strong> 1897, em que foi eleito para a presidência da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,Machado teve um grave aborrecimento com os violentos ataques <strong>de</strong> SílvioRomero, justamente o fundador e o primeiro ocupante da Ca<strong>de</strong>ira 17,que lançou um livro com o título <strong>de</strong> Sílvio Romero contra Machado <strong>de</strong> Assis,<strong>de</strong>350páginas.Romero tenta <strong>de</strong>struir Machado como poeta, dizendo que “a sua poesia<strong>de</strong> nada vale”. E é cru<strong>de</strong>líssimo ao afirmar que o mal da gagueira <strong>de</strong> Machadose transmitiu a todos os seus escritos, especialmente à poesia, acres-34


Machado: atual, imortal e eternocentando que a sua índole era inteiramente contrária à poesia verda<strong>de</strong>ira:“Não era um lírico, nem um épico, sem a força das emoções e das paixões,requisitos básicos <strong>de</strong> um poeta, faltando-lhe imaginação e sobrando-lhe<strong>de</strong>samor pela paisagem”.Machado não se revolta nem tem uma só palavra <strong>de</strong> indignação contra o seuacusador. Apenas reage em cartas a vários amigos, lamentando a injustiça quecontra ele se praticava e reconhecendo mo<strong>de</strong>stamente que essa injustiça tinha ocondão <strong>de</strong> ensinar-lhe a ser humil<strong>de</strong>.Uma <strong>de</strong>ssas cartas é en<strong>de</strong>reçada a Magalhães <strong>de</strong> Azeredo, na qual ele diz oseguinte: “Pessoas que me merecem fé informam-me que o senhor doutor SílvioRomero me espanca”. Uma obra globalA obra machadiana abrangeu todos os gêneros literários.Foi o crítico <strong>de</strong> Crítica, Crítica literária e Crítica teatral.Foi o contista <strong>de</strong> Contos Fluminenses, Contos Esparsos, Contos Avulsos, ContosEsquecidos, Contos Recolhidos, Contos sem Data, Histórias da Meia-noite, Histórias sem Data,Várias Histórias, Papéis Avulsos, Páginas Escolhidas, Páginas Recolhidas, Diário e Reflexões<strong>de</strong> um Relojoeiro e Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha.Foi o teatrólogo <strong>de</strong> Desencantos, Tu, Só Tu, Puro Amor, Quase Ministro, O Caminhoda Porta, Deus <strong>de</strong> Casaca, O Protocolo e Teatro Completo.Foi o cronista <strong>de</strong> Crônicas (quatro volumes), Crônicas <strong>de</strong> Lélio e Bons Dias.Foi tradutor do romance Os Trabalhadores do Mar, <strong>de</strong> Victor Hugo, e da peçateatral Queda que as Mulheres Têm pelos Tolos.Foi o romancista <strong>de</strong> Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia,Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacóe Memorial <strong>de</strong> Aires.35


Murilo Melo FilhoFoi o poeta romântico <strong>de</strong> Crisálidas e Falenas, no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Álvares <strong>de</strong> Azevedo,Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães e Castro Alves. Foi o indianista <strong>de</strong> Americanas, àmoda <strong>de</strong> Gonçalves Dias e José <strong>de</strong> Alencar. E foi o parnasiano <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntais, nomol<strong>de</strong> <strong>de</strong> Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto <strong>de</strong> Oliveira, com um total<strong>de</strong> 278 poemas e <strong>de</strong> 21 mil versos.Costuma-se afirmar, com certa levianda<strong>de</strong>, que geralmente um gran<strong>de</strong> prosadornunca é um bom poeta. Não foi este evi<strong>de</strong>ntemente o caso <strong>de</strong> Machado,um polígrafo e um homem <strong>de</strong> letras na sua globalida<strong>de</strong>: cronista, crítico, romancista,tradutor, jornalista, teatrólogo, ensaísta e poeta. Nele, é humanamenteimpossível diferençar e dissociar um do outro.Embora reconhecendo a existência <strong>de</strong> um preconceito contra o poeta que se<strong>de</strong>dica à ficção e ao mesmo tempo contra o ficcionista voltado para a poesia,Mario Chamie sustenta que um gênio da palavra, como Machado <strong>de</strong> Assis, nosensina que a literatura <strong>de</strong> um autor é uma unida<strong>de</strong> escrita e unida. Não se po<strong>de</strong>ver nele o cronista longe do romancista; o crítico distanciado do ensaísta; e opoeta separado do teatrólogo.Lúcia Miguel Pereira diz que, como ninguém, Machado se prestou a ser estereotipado.Ficou conhecido como “o homem da porta da Garnier”, conversadorsóbrio e malicioso, hábil em pequenas frases-fórmula, logo recolhidascom sorrisos cheios <strong>de</strong> finura por ouvintes obrigatoriamente boquiabertos; ficousendo “o homem da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>”, formalista, conservador, queprocurou oficializar a literatura e transportá-la dos cafés para os salões fechados;ficou sendo “o humorista sutil”, êmulo indígena dos mestres ingleses,para gáudio dos nacionalistas com pruridos literários; ficou sendo “o burocrataperfeito”, aferrado aos regulamentos, às horas certas; “o marido i<strong>de</strong>al”, obom burguês caseiro e indulgente; “o absenteísta”, que jamais quis se preocuparcom política e que, sem maior interesse, acompanhou as batalhas da Aboliçãoe da República.36


Machado: atual, imortal e eterno Dom CasmurroDois anos <strong>de</strong>pois da fundação da ABL, em 1899, já no fim do século XIX,Machado lança Páginas Recolhidas, on<strong>de</strong> reúne ensaios, contos e peças teatrais, epublica também Dom Casmurro, que seria o seu sétimo romance, emblemático e<strong>de</strong> maior sucesso popular, escrito em pouco mais <strong>de</strong> duas mil palavras, com asquais produziu um verda<strong>de</strong>iro clássico.Nele, além <strong>de</strong> analisar psicologicamente o adultério em conotações metafísicas,ele construiu uma gran<strong>de</strong> indagação e um in<strong>de</strong>vassável enigma, que subsistemainda agora, um século <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua publicação: Capitu, com aquelesolhos <strong>de</strong> ressaca, traiu ou não traiu Bentinho? Capitu, abreviativo <strong>de</strong> Capitolina,iludiu ou não iludiu o seu marido?Julgamentos e júris simulados, em Nova York e em São Paulo, com juiz,advogados, promotores e jurados têm trazido a heroína machadiana ao bancodos réus. E lá do seu túmulo o autor <strong>de</strong>ve estar sorrindo com sua fleuma, mordaze irônica, diante da esfinge e do segredo que <strong>de</strong>ixou e que até hoje estão aípara ser <strong>de</strong>cifrados e <strong>de</strong>scobertos.Desconfia-se inclusive que Machado i<strong>de</strong>alizou mesmo esse misterioso<strong>de</strong>sfecho para o seu romance, quando <strong>de</strong>ixa claro que o filho <strong>de</strong> Capitu é naverda<strong>de</strong> uma cópia perfeita (ou um clone?) <strong>de</strong> Escobar, o colega seminarista<strong>de</strong> Bentinho. Morte <strong>de</strong> CarolinaNovamente, ele vai a Friburgo – numa das poucas viagens que faz para forado Rio – em busca <strong>de</strong> melhores ares e condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, não mais para si esim para Carolina, com a qual viveu harmoniosamente durante 34 anos. Nãotiveram filhos, mas nutriram uma imensa e recíproca paixão. Na intimida<strong>de</strong>,chamavam-se <strong>de</strong> “Quincas” e <strong>de</strong> “Cora”. Ela era quatro anos mais velha doque ele: uma açoriana <strong>de</strong>dicada e atenta, não muito bonita, mas simpática, cativantee culta, uma <strong>de</strong>svelada enfermeira, com acentuado sotaque lusitano, quelevou Machado a escrever-lhe cartas intensamente amorosas, guardadas em ri-37


Murilo Melo Filhogoroso sigilo até a sua morte, e que só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la foram queimadas. Consagrou-atambém num poema cheio <strong>de</strong> graça e <strong>de</strong> beleza:Quando ela falaQuando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emu<strong>de</strong>ceQuando ela fala.Meu coração doloridoAs suas mágoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.Pu<strong>de</strong>sse eu eternamente,Ao lado <strong>de</strong>la, escutá-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.Minh’alma, já semimorta,Conseguira ao céu alçá-la,Porque o céu abre uma portaQuando ela fala.Carolina chegou a ler Esaú e Jacó, seu oitavo romance, mas viria a falecerno dia 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1904. Tinha 69 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e há 35 estava casadacom Machado, que lhe <strong>de</strong>dica o mais bonito e o mais conhecido dosseus sonetos:38


Machado: atual, imortal e eternoA CarolinaQuerida, ao pé do leito <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iroEm que <strong>de</strong>scansas <strong>de</strong>ssa longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,Trazer-te o coração do companheiro.Pulsa-lhe aquele afeto <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iroQue, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda a humana lida,Fez a nossa existência apetecidaE num recanto pôs um mundo inteiro.Trago-te flores – restos arrancadosDa terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos <strong>de</strong>ixa e separados.Que eu, se tenho nos olhos malferidosPensamentos <strong>de</strong> vida formulados,São pensamentos idos e vividos.Após a morte <strong>de</strong> Carolina, Machado começa também a morrer, porque noseu lar ele foi muito querido e muito amado. Do contrário, dificilmente teriapaz e tranqüilida<strong>de</strong> para produzir uma obra tão maravilhosa.Ainda chegou a escrever mais dois livros: um, em 1906, Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha,com críticas, ensaios e peças <strong>de</strong> teatro; e outro, em 1908, Memorial <strong>de</strong> Aires,com recordações <strong>de</strong> sua mulher e da felicida<strong>de</strong> com ela. A “Santíssima Trinda<strong>de</strong>”Juntamente com Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, Joaquim Maria Machado<strong>de</strong> Assis compôs o trio que Graça Aranha chamou <strong>de</strong> a “Santíssima Trinda<strong>de</strong>da inteligência brasileira”.39


Machado: atual, imortal e eternoComunista Brasileiro e um gran<strong>de</strong> analista da obra <strong>de</strong> Machado, que sobre eleescreveria:“Embora não tenha sido propriamente um nacionalista, a temática <strong>de</strong>Machado é intrinsecamente nacional, porque aborda os usos e costumes <strong>de</strong>sua cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sua região, <strong>de</strong> seu Estado, <strong>de</strong> seu tempo, <strong>de</strong> seu País e <strong>de</strong> seupovo. Encaramujado, solitário e pessimista, foi o mais brasileiro <strong>de</strong> todos osnossos escritores”. Enfim, a morteJoaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis morreu no dia 29 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1908,cujo centenário foi este ano homenageado. O corpo saiu do Silogeu Brasileiro,então se<strong>de</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, carregado pelos Acadêmicos Graça Aranha, OlavoBilac, Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, Afonso Celso, Rodrigo Octavio, Raimundo Correiae Coelho Neto.Rui, em nome da ABL, pronuncia, à beira do caixão, o discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida,que ficou famoso como o “A<strong>de</strong>us a Machado <strong>de</strong> Assis”:“Chegou a hora do gran<strong>de</strong> a<strong>de</strong>us, que não se pronuncia sem ter o coraçãopesado da dor mais funda e sem remédio.Mestre e companheiro. Disse eu que nos íamos <strong>de</strong>spedir. Mas dissemal. Porque a morte não extingue, transforma; não aniquila, renova; nãodivorcia, aproxima. Para os eleitos do mundo das idéias, a miséria está na<strong>de</strong>cadência e não na morte. A nobreza <strong>de</strong> uma nos preserva das ruínas daoutra.O que venho louvar-te não é o clássico da língua; não é o mestre da frase;não é o árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico doconto; não é o joalheiro do verso, mas sim o que soube ser intensamente daarte, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser bom”.41


Murilo Melo FilhoMachado <strong>de</strong>ixou-nos uma lição e um exemplo <strong>de</strong> vida, construída com esforçopróprio, que sobreviveu às <strong>de</strong>svantagens da sua cor e da sua origem, provandoque elas po<strong>de</strong>m ser vencidas pela cultura. E legou-nos uma herança <strong>de</strong>livros que hoje são, cada vez mais, atuais, imortais e eternos.42


<strong>Prosa</strong>“Uns braços”:nenhum abraçoIvan JunqueiraJá se disse – e não sem alguma razão, embora <strong>de</strong>la eu não partilhe –que Machado <strong>de</strong> Assis foi maior contista do que romancista. Eaqui esclareço logo que não foi este o motivo que me levou a escolher océlebre conto “Uns braços” como tema <strong>de</strong>ste breve estudo <strong>de</strong> interpretaçãocrítica. A razão é bem outra, ou seja, a <strong>de</strong> tentar aqui avaliar emque medida a trama ficcional <strong>de</strong> alguns dos contos do autor antecipa ouse <strong>de</strong>senvolve paralelamente à dos romances que escreveu. Posto isso,<strong>de</strong>cidi aventurar-me à análise <strong>de</strong>sse conto exemplar que se intitula “Unsbraços”, cujo tema, aliás, aflora ainda em outra página machadiana antológica<strong>de</strong>sse difícil e traiçoeiro gênero literário: “Missa do galo”. Enão só nesses contos nos fala <strong>de</strong> uns braços o “bruxo” do Cosme Velho,pois vamos reencontrar o mesmo tema nas Memórias Póstumas <strong>de</strong> BrásCubas, on<strong>de</strong> aparece como alusão apenas discreta, em Quincas Borba, on<strong>de</strong>ressurge mais claro e mais cantante, e com mais ênfase ainda em DomCasmurro, on<strong>de</strong> merece do mestre um capítulo inteiro em que Bentinhonos fala dos braços <strong>de</strong> Capitu. Lê-se ali:Ocupante daCa<strong>de</strong>ira 37na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.43


Ivan Junqueira“Eram belos, e na primeira noite em que os levou nus a um baile, não creioque os houvesse iguais na cida<strong>de</strong>, nem os seus, leitora, que eram então <strong>de</strong>menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore,don<strong>de</strong> vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite,a ponto <strong>de</strong> me encherem <strong>de</strong> <strong>de</strong>svanecimento. Conversava mal com as outraspessoas só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacasalheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homensnão se furtavam <strong>de</strong> olhar para eles, <strong>de</strong> os buscar, quase <strong>de</strong> os pedir, e que roçavampor eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido.”Há em Machado <strong>de</strong> Assis algo que já se chamou <strong>de</strong> reticência, <strong>de</strong> vagueza,<strong>de</strong> vaivém <strong>de</strong> um espírito sempre à beira da dúvida e da insatisfação. Daí a duplicida<strong>de</strong>comportamental, ou mesmo a polissemia psicológica, <strong>de</strong> suas personagens.E daí, também, seus mecanismos <strong>de</strong> recalque sexual, tal qual os vemosem Rubião, em Sofia, em Virgília, em Brás Cubas e, sobretudo, naquela Flora<strong>de</strong> Esaú e Jacó, que hesita entre os namorados gêmeos e não escolhe nenhum dosdois. Flora hesita como o próprio pensamento <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e, comoobserva Augusto Meyer em seu astucioso Machado <strong>de</strong> Assis (1958), sua “razão <strong>de</strong>ser é a dúvida que vem <strong>de</strong> uma neutralização por excesso <strong>de</strong> clarividência”.Flora encarna, como já se disse, o mito da hesitação e, para ela, “a plenitu<strong>de</strong>vive num centro i<strong>de</strong>al como fantasma inatingível”. E esse mito reaparece emcontos como “Trio em lá menor”, “Dona Benedita”, “Um homem célebre”“Missa do galo” e, particularmente, “Uns braços”, ou seja, os da severa e ambíguaD. Severina.É curioso observar nesse passo que, embora a verda<strong>de</strong>ira sensualida<strong>de</strong> machadianaseja a das idéias, há no escritor um sensualismo tão profundo e enraizadoque chega mesmo a atingir, quase sempre através do recalque, as raias damorbi<strong>de</strong>z. Vê-se isso, por exemplo, no capítulo 144 <strong>de</strong> Quincas Barba, on<strong>de</strong> Palhaesquadrinha a perna machucada <strong>de</strong> Sofia para avaliar os danos que lhe causarauma pequena queda. Vê-se o mesmo, também, nos capítulos “O penteado”,“A mão <strong>de</strong> Sancha” e o já citado “Os braços”, <strong>de</strong> Dom Casmurro. E outra44


“Uns braços”: nenhum abraçovez em Quincas Borba, on<strong>de</strong> se lê, a propósito <strong>de</strong> Sofia, que seus “braços nus,cheios, com uns tons <strong>de</strong> ouro claro, ajustavam-se às espáduas e aos seios, tãoacostumados ao gás <strong>de</strong> salão”. Po<strong>de</strong>-se dizer que a sensualida<strong>de</strong> machadianaobe<strong>de</strong>ce às leis <strong>de</strong> um rio profundo e insondável que parece muito manso, masque carrega em suas águas segredos <strong>de</strong> correnteza e caprichos <strong>de</strong> longo e aci<strong>de</strong>ntadocurso. Há mesmo, nesses poucos trechos a que recorri – e eles sãomuitíssimos –, uma certa obsessão táctil e visual matizada <strong>de</strong> inequívoco fetichismo,como é o caso <strong>de</strong>ssa voluptuosa alusão aos braços.E prova disso são os contos “Missa do galo” e “Uns braços”, que cristalizama finíssima essência da arte machadiana. Observe-se que, no primeiro <strong>de</strong>les,D. Conceição <strong>de</strong>svela apenas um tímido trecho <strong>de</strong> seus braços, amostra suficiente,contudo, para que pareçam mais nus do que a inteira nu<strong>de</strong>z. Pelo menosassim os viu o Sr. Nogueira enquanto esperava pela missa do galo, entretidona leitura <strong>de</strong> Os Três Mosqueteiros. Viu-os com tão cúpidos olhos que chegoua observar <strong>de</strong> si para si: “Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente,e eu vi-lhe meta<strong>de</strong> dos braços, muito claros, e menos magros do que sepo<strong>de</strong>ria supor”. E logo adiante, mais <strong>de</strong>talhístico ainda: “As veias eram tãoazuis que, apesar da pouca clarida<strong>de</strong>, podia contá-las <strong>de</strong> meu lugar. A presença<strong>de</strong> Conceição espertara-me ainda mais que o livro.” Na verda<strong>de</strong>, convémacrescentar, espertara-o a tal ponto que foi capaz <strong>de</strong> dizer consigo mesmo que,embora magra, tinha ela “não sei que balanço no andar, como quem lhe custalevar o corpo”, ou seja, como quem custa levar o <strong>de</strong>sejo que lhe pulsa na carne,ou como assim o imaginou que fosse o Nogueira. Mas aqui, como <strong>de</strong> resto em“Uns braços”, não se registra um único abraço, pois ambos os contos pertencemàquela já lembrada vertente da hesitação, essa hesitação que, como já dissemos,irá culminar em Esaú e Jacó, on<strong>de</strong> Flora, personagem que po<strong>de</strong> ser entendidacomo o próprio pensamento <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, é uma virgem estérilque, como sublinha Augusto Meyer, “renuncia à escolha e não aceita o sacrifícioindispensável à renovação da vida”.Pois bem. Tanto a vertente da hesitação quanto a dos <strong>de</strong>sejos recalcados estãoexemplarmente à mostra em “Uns braços”. E vale aqui, ainda uma vez, re-45


Ivan Junqueiracordar a percuciente análise que esse mesmo Augusto Meyer nos oferece sobreo papel da mulher na ficção machadiana. Diz ele:“Em quase todos os seus tipos femininos, o momento culminante em que apersonalida<strong>de</strong> se revela é o da transformação da mulher em fêmea, quandovem à tona o animal astuto e lascivo, em plena posse da técnica <strong>de</strong> seduzir.A dissimulação em todas elas é um encanto a mais. Ameaça velada, surdinado instinto, sob as sedas, as rendas e as atitu<strong>de</strong>s ajustadas ao figurino social,sentimos que é profunda a sombra do sexo.”Uma sombra, diríamos nós, que às vezes se esbate e se esvai em <strong>de</strong>corrênciada in<strong>de</strong>cisão moral, como acontece em “Uns braços”, esses braços que levamInácio ao êxtase, pois jamais pôs ele “os olhos nos braços <strong>de</strong> D. Severina quenão se esquecesse <strong>de</strong> si e <strong>de</strong> tudo”.Bem se vê que Inácio não assume <strong>de</strong> todo a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cupi<strong>de</strong>ze, com a ajuda do narrador, transfere parte da culpa por esse fascínio fetichistaà própria dona daqueles braços tão <strong>de</strong>snudos e lascivos. Assim é que se lêquando o tormento toma conta <strong>de</strong> sua consciência:“Também a culpa era antes <strong>de</strong> D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente.Usava mangas curtas em todos os vestidos <strong>de</strong> casa, meio palmoabaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verda<strong>de</strong>eram belos e cheios, em harmonia com a dona que era antes grossa quefina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicarque ela não os trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos osvestidos <strong>de</strong> mangas compridas.”E por que, ora essa, não comprara outros? – pergunto-me aqui diante <strong>de</strong>ssaesfarrapada <strong>de</strong>sculpa do moralismo do escritor. Na verda<strong>de</strong>, sempre que osbraços sobem à cena na ficção machadiana, não são apenas eles que estão nus,mas sim todo o corpo <strong>de</strong> suas personagens femininas.46


“Uns braços”: nenhum abraçoE vai assim o nosso Inácio aos poucos <strong>de</strong>sesperando, sobretudo quandopercebe que a única solução para aquele impasse será fugir da casa <strong>de</strong> D. Severina,on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> e <strong>de</strong> cujo marido é empregado. Mas não o consegue, hipnotizadoque está por aqueles braços que, todavia, não o abraçam:“Não foi; sentia-se agarrado e acorrentado pelos braços <strong>de</strong> D. Severina.Nunca vira outros tão bonitos e frescos. A educação que tivera não lhe permitiaencará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava osolhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outrasmangas, e assim os foi <strong>de</strong>scobrindo, mirando e amando.”E tanto os mirou e amou que D. Severina começou a <strong>de</strong>sconfiar. E a gostar,pelo visto, pois escreve o narrador:“Tudo parecia dizer à dama que era verda<strong>de</strong>; mas essa verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sfeita aimpressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral, que ela só conheceupelos efeitos, não achando meio <strong>de</strong> discernir o que era.”Paralelamente, Inácio continua a sofrer e a cogitar <strong>de</strong> sua fuga, o que <strong>de</strong>fato acontece no final do conto, coroando assim todo o tortuoso processoda interdição moral. Não se dá, pois, o tão <strong>de</strong>sejado abraço, embora durantetodo esse tempo os braços <strong>de</strong> D. Severina lhe fechem um parêntese naimaginação. Mas o fato é que, antes da fuga, algo acontece, algo que Machado<strong>de</strong> Assis, mercê <strong>de</strong> sua inexcedível habilida<strong>de</strong> ficcional, empurrapara uma região fronteira entre o sonho e a realida<strong>de</strong>, pois somente aí caberiaalguma forma <strong>de</strong> ação, e essa ação, como sempre, é iniciativa da mulher,<strong>de</strong>ssa mulher que, na ficção machadiana, parece ignorar a existência <strong>de</strong> quaisquerinterrogações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, jamais cogitando <strong>de</strong> outra forma <strong>de</strong> remorsoalém das inevitáveis interdições impostas por seu <strong>de</strong>coro. Lembre-se,a propósito, a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Capitu, na qual subsiste um vertiginososubstrato <strong>de</strong> amoralida<strong>de</strong> que tangencia as raias da inocência animal e47


Ivan Junqueiraque, impregnada <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong> volúpia, <strong>de</strong>sconhece por completo o queseja o senso da culpa ou do pecado.Vejamos agora, na trama <strong>de</strong> “Uns braços”, como as coisas surdamente seencaminham, embora, como já antecipamos, esses braços <strong>de</strong> D. Severina jamaisse fechem em torno <strong>de</strong> Inácio. Mas quem sabe um beijo, um beijo dadoem quem dorme e não sabe que está sendo beijado? E eis aqui como Machado<strong>de</strong> Assis engendra aquela situação em que o sonho tangencia a realida<strong>de</strong>. Aoperceber que Inácio não lhe tira os olhos, D. Severina, já convicta <strong>de</strong> que algopecaminoso está em marcha, começa também a perturbar-se, e um dia, ao procuraro rapaz em seu quarto por algum motivo doméstico, encontra-o dormindona re<strong>de</strong> e põe-se a imaginar que ele possa estar sonhando com ela. Bate-lheentão mais forte o coração, já que, na noite anterior, fora ela que sonhara comele. Na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a madrugada a figura do rapaz lhe andava diante dosolhos como uma tentação diabólica. Dormindo, Inácio lhe parecia até maisbelo. “Uma criança”, como ela mesma se diz. O alvoroço toma conta <strong>de</strong> D. Severina,cuja severida<strong>de</strong> aos poucos se esvai. A rigor, ela passa a ver-se na imaginaçãodo rapaz e, como escreve Machado <strong>de</strong> Assis, “ter-se-ia visto diante dare<strong>de</strong>, risonha e parada; <strong>de</strong>pois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, cruzando ali osbraços, os famosos braços”. E Inácio sempre a dormir e talvez a sonhar, como<strong>de</strong>vaneia Hamlet em seu imortal solilóquio.Nesse ponto é bem <strong>de</strong> ver que D. Severina já flutuava também nas águas dosonho e <strong>de</strong> uma imaginação sem peias, supondo que Inácio, enamorado <strong>de</strong>seus braços, “ainda assim ouvia as palavras <strong>de</strong>la, que eram lindas, cálidas, principalmentenovas – ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele nãoconhecia, posto que o enten<strong>de</strong>sse”. O crescendo urdido pelo gênio machadianoatinge agora o seu clímax. E assim nos <strong>de</strong>screve o mestre a pulsação sensual quetoma conta <strong>de</strong> uma personagem que <strong>de</strong> severa nada mais tem:“Duas, três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vinda domar ou <strong>de</strong> outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor, comtoda a graça robusta <strong>de</strong> que era capaz. E tornando, inclinava-se, pega-48


“Uns braços”: nenhum abraçova-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que, inclinando-seainda mais, muito mais, abrochou os lábios e <strong>de</strong>ixou-lhe um beijona boca.”Aqui, todavia, como adverte Machado <strong>de</strong> Assis, o sonho coinci<strong>de</strong> com a realida<strong>de</strong>,e as mesmas bocas se unem na imaginação e fora <strong>de</strong>la. Aturdida com oque fizera, D. Severina recua e vê-se engolfada pelo vexame. Beijara-o, beijaraaquela criança adormecida. E conclui Machado <strong>de</strong> Assis: “Fosse como fosse,estava confusa, irritada, aborrecida, mal consigo e mal com ele. O medo <strong>de</strong> queele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e <strong>de</strong>u-lhe um calefrio.”Inácio afinal <strong>de</strong>ixa a casa do patrão e, ao <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> D. Severina, estranha-lhea frieza e o azedume. Mas leva consigo o sabor <strong>de</strong> um sonho, daquelesonho em que se imaginou beijado por alguém que, sem que ele soubesse,o beijara em sonho e na realida<strong>de</strong>, ou, mais precisamente, nesse territórioambíguo e fugidio em que ambos se tangenciam, nesse cenário <strong>de</strong> penumbrapsicológica em que amiú<strong>de</strong> se movem as personagens machadianas.A sutileza da urdidura ficcional e a fina psicologia <strong>de</strong> “Uns braços” fazem<strong>de</strong>sse conto uma obra-prima do gênero. Há nele muito da maturida<strong>de</strong> espiritualdo autor não só como filósofo pessimista, não raro niilista, mas tambémcomo estilista, o consumado estilista que foi e que nos assombra até hoje. Muitoda sua ânsia <strong>de</strong> perfeição artística e do impasse em que sempre se <strong>de</strong>bateu a suaalma diante da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar uma escolha estão também aí presentes,pois Machado <strong>de</strong> Assis, se trazia em si a matriz seminal <strong>de</strong> Rubião, <strong>de</strong>Bentinho ou <strong>de</strong> Brás Cubas, trazia sobretudo a <strong>de</strong> Flora, puro espírito que seconsome na contemplação. O “bruxo” do Cosme Velho foi antes <strong>de</strong> tudo umcético, um homem que, queiram ou não seus admiradores, nutriu pela vida umódio entranhado, ou seja, o ódio daquele “homem subterrâneo” <strong>de</strong> que nosfala Dostoievski e que em tudo confirma este comentário <strong>de</strong> Brás Cubas: “Ovoluptuoso e esquisito é insular-se o homem no meio <strong>de</strong> um mar <strong>de</strong> gestos e <strong>de</strong>palavras, <strong>de</strong> nervos e paixões, <strong>de</strong>cretar-se alheado, inacessível. Ausente...”.Como ensina Augusto Meyer – e se aqui outra vez nele me amparo é porque o49


Ivan Junqueiraconsi<strong>de</strong>ro nosso mais astucioso intérprete da obra machadiana –, o mal, nocaso <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, “começa com a consciência aguda, pois o excesso<strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z mata as ilusões indispensáveis à subsistência da vida, que só po<strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver-se num clima <strong>de</strong> inconsciência, a inconsciência da ação”. E tudo,rigorosamente tudo em Machado <strong>de</strong> Assis obe<strong>de</strong>ce às leis da introversão.Já se observou, a propósito, que nos romances e contos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong>Assis não há nenhuma espécie <strong>de</strong> ação, mas apenas movimentos concêntricos<strong>de</strong> introversão. Nesse ponto, ele se aproxima vertiginosamente <strong>de</strong> um Proust,<strong>de</strong> uma Katherine Mansfield ou <strong>de</strong> uma Virginia Woolf. Para tais escritores, odrama da “consciência doentia” não se resume apenas no absurdo vital da introversão,e sim no fato <strong>de</strong> que essa mesma introversão principia com o amorda consciência por si própria, com a obsessão da análise pela própria análise, edaí é que emerge o “homem subterrâneo”. Alguns críticos vêem nisso carência<strong>de</strong> pujança, <strong>de</strong> força ou <strong>de</strong> movimento profundo. Sobrar-lhe-iam graça, humore harmonia <strong>de</strong> estilo, mas faltar-lhe-iam ímpeto e po<strong>de</strong>rio ficcionais. É o quepensa, por exemplo, Mário Matos, quando sustenta que Machado <strong>de</strong> Assis“filia-se entre os prosadores cuidosos da forma e do gracioso dos pensamentos.Falta-lhe patos. Não tem flama”. Parece-me que esse crítico não enten<strong>de</strong>uque em Machado <strong>de</strong> Assis, como sublinha Augusto Meyer, havia um “amor viciosoque caracteriza o monstro cerebral, a volúpia da análise pela análise, mashavia também” – e nisso vê o ensaísta o seu maior drama – “a consciência damiséria moral a que estava con<strong>de</strong>nado por isso mesmo, a esterilida<strong>de</strong> quase <strong>de</strong>sumanacom que o puro analista paga o privilégio <strong>de</strong> tudo criticar e <strong>de</strong>struir”.Mas é justamente a partir <strong>de</strong>sse substrato <strong>de</strong> ironia, <strong>de</strong> ceticismo e <strong>de</strong> profundopessimismo que se esgalham o seu gênio e o seu estilo inimitável, sobreos quais muito já se escreveu entre nós, e não seria esse o momento <strong>de</strong> nosacrescentarmos à ciclópica bibliografia já existente sobre o autor do Memorial <strong>de</strong>Aires. Prefiro, muito ao contrário, recorrer às palavras <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses intérpretes,mais precisamente um dos menos lembrados nos dias <strong>de</strong> hoje, o jornalista, políticoe também acadêmico Alcindo Guanabara, quando, por ocasião da mortedo mestre, proferiu um notável discurso propondo à Câmara dos Deputados50


“Uns braços”: nenhum abraçoque se fizesse representar no enterro. A certa altura nele se diz, com palavrasmuito simples e concisas, que Machado <strong>de</strong> Assis tinha“um estilo seu, próprio, singular, único na nossa e quiçá alheias línguas.Não sei se direi <strong>de</strong>mais dizendo que tinha, ou que fizera, uma língua nova,que novo, ou pelo menos inconfundível, era o português que tratava. Eraum irônico, <strong>de</strong> uma ironia que não era, nem se parecia, com l’esprit dos francesesnem o humour dos ingleses; uma ironia que superava a <strong>de</strong> Sterne ou <strong>de</strong>Xavier <strong>de</strong> Maistre e dir-se-ia filha da <strong>de</strong> Anatole France, se não a houveraprecedido. Original e único, era um filósofo, um comentador, um crítico,um analista – analista das coisas e dos homens, das almas e dos costumes,dos indivíduos e do meio, das paixões gran<strong>de</strong>s e dos pequenos vícios. Nãotinha o sarcasmo dissolvente, mas um doce e benévolo ceticismo.”E são estas, além <strong>de</strong> algumas e concebidas outras, as virtu<strong>de</strong>s que encontramosem seus romances e contos, como nesse admirável “Uns braços”, que aquitentamos brevemente analisar do ponto <strong>de</strong> vista da sensualida<strong>de</strong> recalcada e dahesitação moral, características que emergem, como já dissemos, em muitasdas personagens machadianas. No que toca a essa sensualida<strong>de</strong>, entretanto,conviria aqui repetir que, em Machado <strong>de</strong> Assis, ela floresce antes no âmbitodas idéias do que propriamente no dos sentidos. Caso contrário, seria difícilcompreen<strong>de</strong>r o que diz a Brás Cubas, em seu <strong>de</strong>lírio, aquela perversa Pandoratravestida <strong>de</strong> mãe Natureza: “Eu não sou somente a vida; sou também a morte,e tu estás prestes a <strong>de</strong>volver-me o que te emprestei. Gran<strong>de</strong> lascivo, espera-te avoluptuosida<strong>de</strong> do nada”.51


Carolina Augusta Xavier <strong>de</strong>Novaes Machado <strong>de</strong> Assis


<strong>Prosa</strong>Machado <strong>de</strong> Assis:cartas a CarolinaDomício Proença FilhoSó restam duas. Do tempo <strong>de</strong> noivado. Datadas <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> março<strong>de</strong> 1869. De Machado para Carolina, então resi<strong>de</strong>nte em Petrópolis,cujo acesso exigia um trecho <strong>de</strong> viagem <strong>de</strong> barca. As <strong>de</strong>maisforam queimadas, a pedido do missivista, cioso da intimida<strong>de</strong> doamor que os unia. Mas constituem textos que nos permitem rememorar,na palavra, instâncias “daquele afeto verda<strong>de</strong>iro / que, a <strong>de</strong>speito<strong>de</strong> toda a humana lida”, fez-lhes “a existência apetecida / enum recanto pôs um mundo inteiro”.Ocupante daCa<strong>de</strong>ira 28na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>. A moça que veio <strong>de</strong> longeCarolina Augusta Xavier <strong>de</strong> Novais nasce em Portugal, na cida<strong>de</strong>do Porto, em 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1835. Quatro anos e quatromeses, portanto, mais velha do que o futuro marido, cujo nascimentodata <strong>de</strong> 21<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1839. Filha <strong>de</strong> Custódia EmíliaXavier <strong>de</strong> Novais e do relojoeiro e joalheiro Antonio Luís <strong>de</strong> No-53


Domício Proença Filhovais. Irmãos: cinco: Emília, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, Miguel, Henrique e Faustino, amigo<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.Falecidos os pais, por volta <strong>de</strong> 1867, vem para o Brasil a pedido <strong>de</strong> Faustino,que passara a sofrer <strong>de</strong> distúrbios mentais intermitentes. E <strong>de</strong>sembarca em18 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1868. Movida também por outra razão: perto dos 34 anos,solteira e sem recursos e traumatizada por um misterioso drama íntimo <strong>de</strong> família,sua vida tornara-se difícil. Do fato, sem revelar-lhe a natureza, dá notícia,em suas memórias, o pintor Artur Napoleão, amigo da família e <strong>de</strong> Machado,que a acompanhara em sua viagem no Estremadure, navio francês que atrouxe ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Nas palavras do artista, transcritas por Jean-MichelMassa, em A Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis:“Elimino um capítulo que julgo não <strong>de</strong>ver dar à publicida<strong>de</strong>. Íntimo dramada família, em que escapou <strong>de</strong> ser vítima Carolina Novais.Testemunha da cena pungente e amigo <strong>de</strong>dicado da família, eu, a pedidoda mesma, fui solicitado para acompanhar Carolina ao Rio <strong>de</strong> Janeiroe levá-la para junto <strong>de</strong> seu irmão Faustino, pedido a que acedi da melhorvonta<strong>de</strong>.” 1Difícil i<strong>de</strong>ntificar o momento do seu encontro com o jovem Machadinho,então na plenitu<strong>de</strong> dos seus trinta anos.Sabe-se que o mútuo compromisso se dá no relampejar <strong>de</strong> um minuto. Machadovisita Faustino. De repente, a sós com Carolina, senta-se a seu lado, toma-lhedas mãos e ousa perguntar-lhe se quer casar com ele. A resposta, afirmativa,é firme e <strong>de</strong>cidida. O que restou da correspondência entre ambos, aindaque reduzido às duas missivas, dá a medida da natureza e da intensida<strong>de</strong> dossentimentos que os unem.1 MASSA, Jean-Michel. A Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civ. <strong>Brasileira</strong>, 1971, p. 582.54


Machado <strong>de</strong> Assis: cartas a Carolina Cartas apaixonadasUm trecho da primeira é iluminador:“Minha querida C.Recebi ontem duas cartas tuas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dous dias <strong>de</strong> espera. Calcula oprazer que tive, como as li, reli e beijei! A mª tristeza converteu-se em súbitaalegria. Eu estava tão aflito por ter notícias tuas que saí do Diário à 1horapara ir a casa, e com efeito encontrei as duas cartas, uma das quais <strong>de</strong>vera tervindo antes, mas que, sem dúvida, por causa do correio foi <strong>de</strong>morada. Tambémontem <strong>de</strong>ves ter recebido duas cartas minhas; uma <strong>de</strong>las, a que foi escritano sábado, levei-a no domingo às 8 horas ao correio, sem lembrar-me(perdoa-me!) que ao domingo a barca sai às 6 horas da manhã. Às quatrohoras levei a outra carta e ambas <strong>de</strong>vem ter seguido ontem na barca das duashoras da tar<strong>de</strong>. Deste modo, não fui eu só quem sofreu com a <strong>de</strong>mora dascartas. Calculo a tua aflição pela minha, e estou que será a última.”Seguem-se preocupações materiais, reveladoras da relação com os futuroscunhados Faustino (F.) e Miguel (M.). A referência tranqüila a este últimopõe em xeque a opinião <strong>de</strong> que, por preconceito racial, acirrava a oposição aocasamento. O texto revela também a posição <strong>de</strong> Machado em relação à vidafamiliar:“Eu já tinha ouvido cá que o M. alugara a casa das Laranjeiras, mas o quenão sabia era que se projetava essa viagem a Juiz <strong>de</strong> Fora. Creio, como tu,que os ares não fazem nada bem ao F.; mas compreendo também que não épossível dar simplesmente essa razão. No entanto, lembras perfeitamenteque a mudança para outra casa cá no Rio seria excelente para todos nós. OF. falou-me nisso uma vez, é quanto basta para que se trate disto. A casa há<strong>de</strong> encontrar-se, porque empenha-se nisto o meu coração. Creio, porém,que é melhor conversar outra vez com o F. no sábado e ser autorizado positivamentepor ele.”55


Domício Proença FilhoVoltam consi<strong>de</strong>rações sobre o relacionamento do casal:“Ainda assim, temos tempo <strong>de</strong> sobra: 23 dias: é quanto basta para que oamor faça um milagre, quanto mais que não é milagre nenhum. / Vais dizernaturalmente que eu con<strong>de</strong>scendo sempre contigo. Por que não? Sofrestetanto que até per<strong>de</strong>ste a consciência do teu império; estás pronta a obe<strong>de</strong>cer;admiras-te <strong>de</strong> seres obe<strong>de</strong>cida. Não te admires, a cousa é muito natural;és tão dócil com eu; a razão fala em nós ambos. Pe<strong>de</strong>s-me cousas tão justas,que eu nem teria pretexto <strong>de</strong> te recusar se quisesse recusar-te alguma cousa,e não quero. /A mudança <strong>de</strong> Petrópolis para cá é uma necessida<strong>de</strong>; os aresnão fazem bem ao F., a casa aí é um verda<strong>de</strong>iro perigo para quem lá mora. Seestivesses cá, não terias tanto medo dos trovões, tu que ainda não estás bembrasileira, mas que o hás <strong>de</strong> ser, espero em Deus.” 2Observe-se que o noivo tinha conhecimento da intensida<strong>de</strong> do problemavivido por Carolina antes da vinda para o Brasil. Curiosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> noivaEsta mesma carta <strong>de</strong>screve, na seqüência do texto, uma Carolina <strong>de</strong>sconfiadae curiosa. Talvez por sofrida. Por força do mistério não revelado em tornodo problema familiar em que esteve envolvida. E <strong>de</strong> que, seguramente, Machadotem conhecimento. Ela <strong>de</strong>seja saber do passado do noivo. Mais precisamente<strong>de</strong> amores <strong>de</strong>sses tempos. O esclarecimento abre-se à plena sincerida<strong>de</strong>,num belo exemplo <strong>de</strong> discurso <strong>de</strong> sedução:“Acusas-me <strong>de</strong> pouco confiante em ti? Tens e não tens razão; confiantesou; mas se não te contei nada é porque não valia a pena contar. A minha2 Textos da carta in: Machado <strong>de</strong> Assis. Obra Completa. V. III Epistolário. Org. Afrânio Coutinho. Rio <strong>de</strong>Janeiro: J. Aguilar, 196, p. 1.044.56


Machado <strong>de</strong> Assis: cartas a Carolinahistória passada no coração resume-se em dous capítulos: um amor, nãocorrespondido; outro, correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer;do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não me acusespor isso; há situações que se não prolongam sem sofrimento. Umasenhora <strong>de</strong> minha amiza<strong>de</strong> obrigou-me, com os seus conselhos, a rasgara página <strong>de</strong>sse romance sombrio; fi-lo com dor, mas sem remorso. Eistudo. A tua pergunta natural é esta: qual <strong>de</strong>stes dous capítulos era o <strong>de</strong>Corina? Curiosa! Era o primeiro. O que te afirmo é que dos dois o maisamado foi o segundo. Mas nem o primeiro nem o segundo se parecemcom o terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Stäel que os primeirosamores não são os mais fortes, porque nascem simplesmente danecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar. Assim é comigo; mas, além <strong>de</strong>ssa, há uma razão capital,e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenhoconhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tãoboa e tão elevada, sensibilida<strong>de</strong> tão melindrosa, razão tão reta não sãobens que a natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu pertencesao pequeno número <strong>de</strong> mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar.Como te não amaria eu? Além disso, tens para mim um dote que realçaos mais: sofreste.” 3O texto <strong>de</strong>ixa perceber uma ponta <strong>de</strong> ciúme em torno dos “Versos à Corina”,publicados em Crisálidas. Musa <strong>de</strong>sse amor não retribuído: Gabriela Augustada Cunha, famosa atriz portuguesa. A outra paixão, correspondida:mais uma figura marcante da ribalta: Augusta Candiani. Dezoito anos maisvelha do que ele. Referência constante em suas obras. Ambas sombras, memórias.O lugar, no coração e na poesia, agora é <strong>de</strong>la, Carolina, a amada. Queinspirará poemas publicados em Falenas, como, entre outros, “Quando elafala ” e “Livros e flores”:3 Id. Ib.57


Domício Proença FilhoQuando ela falaQuando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emu<strong>de</strong>ceQuando ela fala.Meu coração doloridoAs suas mágoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.Pu<strong>de</strong>sse eu eternamente,Ao lado <strong>de</strong>la, escutá-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.Minh’ alma, já semimorta,Conseguira ao céu alçá-la,Porque o céu abre uma portaQuando ela fala. 4Livros e floresTeus olhos são meus livros.Que livro há aí melhorEm que melhor se leiaA página do amor?4 MACHADO DE ASSIS. Falenas. In:___. Poesias Completas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Braisleira;Brasília: INL, 1977, p. 220.58


Machado <strong>de</strong> Assis: cartas a CarolinaFlores me são teus lábios.On<strong>de</strong> há mais bela flor,Em que melhor se bebaO bálsamo do amor? 5Deixa ver também o que, a esse tempo, o criador <strong>de</strong> Virgília, Sofia e Capitupensa das mulheres.A segunda missiva segue reveladora da intensida<strong>de</strong> da paixão mútua, <strong>de</strong> carinhose cuidados. Depois <strong>de</strong> explicar a falta <strong>de</strong> carta no domingo, <strong>de</strong> dizer <strong>de</strong>seu dia e <strong>de</strong> suas sauda<strong>de</strong>s, alterna inseguranças e certezas:“Minha Carola.(....) Para imaginares a minha aflição, basta ver que cheguei a suspeitarda oposição do F. como te referi numa <strong>de</strong> minhas últimas cartas. Era maisdo que uma injustiça, era uma tolice. Vê lá: justamente quando eu estava acriar castelos no ar, o bom F. conversava a meu respeito com a A. e pareciaaprovar as minhas intenções (perdão, as nossas intenções). Não era <strong>de</strong> esperaroutra cousa do F.; sempre foi amigo meu, amigo verda<strong>de</strong>iro, dospoucos que, no meu coração, têm sobrevivido às circunstâncias e ao tempo.Deus lhe conserve os dias e lhe restitua a saú<strong>de</strong> para assistir à minha e àtua felicida<strong>de</strong>.(....) Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras,e que eu te apareço em tudo e em toda parte? É então certo que euocupo o teu pensamento e a tua vida? Já mo disseste tanta vez, e eu sempre aperguntar-te a mesma cousa, tamanha me parece esta felicida<strong>de</strong>. Pois, olha:eu queria que lesses um livro que eu acabei <strong>de</strong> ler há dias; intitula-se A Família.Hei <strong>de</strong> comprar um exemplar para lermos em nossa casa como uma espécie<strong>de</strong> Bíblia Sagrada. É um livro sério, elevado e profundo; a simples leitura<strong>de</strong>le dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar. Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás5 Id. Ib. p. 23959


Domício Proença Filholá a melhor carta que eu te po<strong>de</strong>rei mandar, que é a minha própria pessoa, eao mesmo tempo lerei o melhor [...]” 6 Enfim, casadosA paixão consolida-se com o casamento, a 12 <strong>de</strong> novembro, 1869. O lar:Rua do Fogo, 119, <strong>de</strong>pois Rua dos Andradas. Perto do morro do Livramento.Mo<strong>de</strong>stamente mobilhado. Tropeços financeiros. Antigos.No registro do citado Jean-Michel Massa:“A julgar pelas inúmeras cartas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis a Ramos Paz, os jovenscasados tiveram algumas dificulda<strong>de</strong>s materiais no começo do casamento.Alguns dias <strong>de</strong>pois da cerimônia, o escritor solicitava ao seu amigo que lheemprestasse algum dinheiro: ‘De ordinário ésempre <strong>de</strong> rosas o período que antece<strong>de</strong> o noivado;para mim, foi <strong>de</strong> espinhos. Felizmente o meu esforço esteve na altura <strong>de</strong> minha responsabilida<strong>de</strong>,e eu pu<strong>de</strong> obter por outros meios os recursos necessários na ocasião. Ainda assim não pu<strong>de</strong>ir além disso; <strong>de</strong> maneira que, agora mesmo estou trabalhando para as necessida<strong>de</strong>s do dia, vistoque só do começo do mês em diante po<strong>de</strong>rei regularizar a minha vida’”.Carolina, discreta, compreensiva. Como na relação <strong>de</strong> D. Carmo e Aguiar,no Memorial <strong>de</strong> Aires: “A pobreza foi o lote dos primeiros dias <strong>de</strong> casados”.“Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos a escassezdos vencimentos”. Assim Machado.Aos poucos, porém, a vida do casal estabiliza-se. Em 1872, o marido <strong>de</strong>D. Carolina já é poeta, teatrólogo e jornalista <strong>de</strong> sucesso, funcionário público.Em 1877, Chefe <strong>de</strong> Seção no Ministério da Agricultura, escritor reconhecido,rico <strong>de</strong> amigos. A relação solidificada pelo sentimento amadurecido.Posto a prova diante das doenças <strong>de</strong> Machado: as crises <strong>de</strong> epilepsia,a “tísica mesentérica” que o acometeu, curada em Friburgo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>zem-6 In: MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. VIII. Epistolário. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Aguilar, p. 1045.60


Machado <strong>de</strong> Assis: cartas a Carolinabro <strong>de</strong> 1878 a março <strong>de</strong> 1879. Ela a seu lado, terna, compreensiva e sutilenfermeira. Sem o <strong>de</strong>sespero que avassala o marido. Depois, a retinite grave.Carolina é seus olhos e a mão que escreve o que dita. Machado testemunha,mais tar<strong>de</strong>, em carta ao amigo <strong>de</strong> fé, Magalhães <strong>de</strong> Azeredo, datada <strong>de</strong>2 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1895:“Meu querido amº e poeta:Prometa-me que só lerá esta carta, <strong>de</strong>pois que eu me houver absolvido domeu longo silêncio. Terá razão se for inflexível; mas eu conto com a sua afeição,e daí a esperança <strong>de</strong> que a leitura se fará sem ressentimento. Eu é quenão escreverei sem remorsos. Com efeito, mediou tanto tempo entre a suacarta <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> março (ontem recebida) e a anterior, que a suposição <strong>de</strong> queesta se houvesse extraviado era natural, e a sua queixa <strong>de</strong> esquecimento justa.Nem uma nem outra cousa. Todo o mal veio dos adiamentos; mas não falemosmais nisto. Verá daqui em diante que, salvo casos <strong>de</strong> moléstia, estouemendado. A segunda carta dá-me notícia da moléstia que teve, ou antes daagravação que lhe trouxe o excesso <strong>de</strong> trabalho à sua dispepsia nervosa, e assimtambém dos trabalhos da cura. Eu não sei se teria agora tanta paciência;e contudo já fui doente exemplar, quando pa<strong>de</strong>ci <strong>de</strong> uma conjuntivite, e meproibiram <strong>de</strong> ler. Estive assim longas semanas. Era minha mulher que me liatudo. Para o fim serviu-me <strong>de</strong> secretária.”Entre o que ela escreveu estava um certo romance: “As Memórias Póstumas <strong>de</strong>Brás Cubas foram começadas por esse tempo; ditei-lhe creio que meia-dúzia <strong>de</strong>capítulos.” 7Carolina, <strong>de</strong>certo o mo<strong>de</strong>lo referencial <strong>de</strong> D. Carmo:7 VIRGILLO, Carmelo, org. Correspondência <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis com Magalhães <strong>de</strong> Azeredo. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Instituto Nacional do Livro, 1969. pp. 40-41.61


Domício Proença Filho“Ora, a alma <strong>de</strong>le era <strong>de</strong> pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimentoe a cal que as uniram naqueles dias <strong>de</strong> crise. (...) Cal e cimento valeram-lhelogo em todos os casos <strong>de</strong> pedras <strong>de</strong>sconjuntadas. Ele via as cousas pelosseus próprios olhos, mas, se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remédioao mal físico ou moral era ela.” 8 Num recanto, o mundo inteiroA contrapartida, no convívio do lar. Na nova casa da Rua do Catete, 206.Depois, a partir <strong>de</strong> meados <strong>de</strong> 1883, o Cosme Velho, chalé nº 18. Dois andares,jardim, árvores, um regato. Embaixo, sala <strong>de</strong> visitas, sala <strong>de</strong> jantar, a pequenavaranda <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong>. Em cima, os dormitórios, três janelas abertas paraa rua, o gabinete <strong>de</strong> trabalho.No interior, o cuidado, com os tapetes que ela mesma tece, com os bordadosque adornam o mobiliário. Na companhia, a ca<strong>de</strong>linha, a quem Machadoregala com biscoitos, na volta do trabalho.É vê-la, no testemunho-recordação da escritora Francisca Basto Cor<strong>de</strong>iro:“<strong>de</strong> preto, com uma pequena gravata <strong>de</strong> renda branca presa ao vestido porum broche <strong>de</strong> ouro. (...) Alta, clara, magra, nada bonita, rígida, severa, lábiosfinos, cabelos lisos, que mistura a uns caracóis do marido num penteadooriginal, não ri nunca, e raramente sorri. Depois das refeições, marido e mulherse sentam na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> balanço dupla, mãos dadas, gozando o silênciopartilhado <strong>de</strong> que se enten<strong>de</strong>m. Perto dos dois, sesteia Graziela, a cachorrinhabranca e felpuda, já cega.” 9De ordinário, o passeio com o “Seu” Machado, no repouso do trabalhofuncional e das ativida<strong>de</strong>s na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, fundada em 1896.8 MACHADO DE ASSIS. Memorial <strong>de</strong> Aires. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civ. <strong>Brasileira</strong>; Brasília: INL. 1977, p. 81.9 In: VIANA FILHO, Luís. pp. 144-45.62


Machado <strong>de</strong> Assis: cartas a CarolinaUm <strong>de</strong>sejo, acalentado e não realizado, com tranqüilida<strong>de</strong>: voltar à Europa, reversua terra antiga.E assim a vida flui, até a fatalida<strong>de</strong> inexorável do dia 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong>1904: exatamente ao meio-dia, perdia Machado <strong>de</strong> Assis a sua companheira<strong>de</strong> 35 anos <strong>de</strong> amor cultivado e amadurecido. Como se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r dotrecho <strong>de</strong> mais uma carta, dirigida ao amigo Joaquim Nabuco:“Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Noteque a minha solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é ummodo <strong>de</strong> viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira<strong>de</strong> 35 anos <strong>de</strong> casados tinha comigo; mas não há imaginação que nãoacor<strong>de</strong>, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eucontava morrer antes <strong>de</strong>la, o que seria um gran<strong>de</strong> favor; primeiro, porquenão acharia ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela<strong>de</strong>ixa alguns parentes que a consolariam das sauda<strong>de</strong>s, e eu não tenho nenhum.Os meus são os amigos, e verda<strong>de</strong>iramente são os melhores; mas avida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreiraque a cada um cabe. Aqui fico, por ora, na mesma casa, no mesmo aposento,com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina.Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo emrecordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.” 10 6310 In: MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Aguilar, V.III, p. 1.094.


Caricatura <strong>de</strong>Rafael Bordalo Pinheiro.


<strong>Prosa</strong>A crítica <strong>de</strong>Machado <strong>de</strong> AssisFábio LucasAcrítica é fruto <strong>de</strong> uma disposição do espírito que se encontraem todas as pessoas, mas que algumas <strong>de</strong>senvolvemacentuadamente.Tem-se dito que Machado <strong>de</strong> Assis foi um céptico. E como sechega a céptico sem um indiscreto olho crítico?O gran<strong>de</strong> escritor brasileiro formulou juízos sobre as obrasalheias durante parte consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> sua vida: <strong>de</strong> 1858 a 1879. Dos19 aos 40 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, portanto.Po<strong>de</strong>mos dizer que exerceu a crítica precisamente no período <strong>de</strong>sua formação, pois é justamente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa fase que dará o saltoqualitativo que o aguardava na curva da História, em 1880.Depois das Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas é que Machado concebeu asua ficção mais <strong>de</strong>nsa, mais liberta <strong>de</strong> influências, menos caudatária daatmosfera intelectual da época. Portanto, mais peculiar <strong>de</strong> seu estilo.O espírito crítico instalou-se no interior do artista, e ele, então,cessou a avaliação das obras alheias, para contentar-se com a au-Doutor emEconomia Políticae História dasDoutrinasEconômicas,especializou-se emTeoria daLiteratura. Autor<strong>de</strong> 40 obras <strong>de</strong>Crítica Literária eCiências Sociais,entre os quais Razãoe Emoção Literária(1982), Vanguarda,História e I<strong>de</strong>ologia daLiteratura (1985),Do Barroco aoMo<strong>de</strong>rno (1989),Luzes e Trevas MinasGerais no SéculoXVIII (1999),Murilo Men<strong>de</strong>s, Poeta e<strong>Prosa</strong>dor (2001).Ocupa a Ca<strong>de</strong>ira27 na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>Paulista <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.65


Fábio Lucasto-reflexão, ao mesmo tempo em que externava sua radical inconformida<strong>de</strong>com o ser humano <strong>de</strong> modo geral, sua <strong>de</strong>scrença <strong>de</strong> todos estampada na atitu<strong>de</strong>ora céptica, ora cáustica. Às vezes, humorista. Passou a julgar a espécie, <strong>de</strong>ixando<strong>de</strong> lado os exemplos.Como se comportou a crítica machadiana?Sua militância literária po<strong>de</strong> resumir-se nos comentários a espetáculos teatraise a trabalhos <strong>de</strong> poesia e ficção que se ofereciam a seu julgamento. De vezem quando <strong>de</strong>tinha-se na análise <strong>de</strong> correntes, tendências, aspectos teóricos.O marco inicial <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> crítica ocorre com a publicação do ensaio“O passado, o presente e o futuro da literatura” em 1858.Mesmo na obra <strong>de</strong> criação, especialmente a narrativa, costumava infiltrarbreves informações ou conceitos a título <strong>de</strong> motivos livres, que importavamavaliação <strong>de</strong> idéias e noções literárias correntes.O teatro, como se sabe, constituía um dos entretenimentos mais cultivadospela elite, durante o período imperial. Jornais e revistas davam amplo espaçopara as representações, acolhiam e divulgavam as críticas.Machado <strong>de</strong> Assis manifestava predileção pelo teatro. Era um espectadorexigente, tendo mesmo, em certa ocasião, integrado o órgão <strong>de</strong> censura teatral.Com efeito, esteve a serviço do Conservatório Dramático entre 1862 e1864, órgão oficial encarregado da censura das peças teatrais propostas paraencenação.Suas exigências <strong>de</strong> censor coexistiam com a sua concepção <strong>de</strong> arte, pois proclamavaa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias elevadas como suporte do conteúdo da obra. Edistinguia nitidamente o aspecto moral do aspecto intelectual na avaliação dapeça: “Julgar o valor literário <strong>de</strong> uma composição é exercer uma função civilizadora,ao mesmo tempo que praticar um direito do espírito: é tomar um carátermenos vassalo, e <strong>de</strong> mais iniciativa e <strong>de</strong>liberação”, escreveu na série <strong>de</strong> artigos“Idéias sobre o teatro”, quando abordou “O Conservatório Dramático” a25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1859, em O Espelho.Isso não quer dizer um moralismo estreito, doutrinário, ao tratar das conveniênciaspúblicas <strong>de</strong> uma encenação. Nada disto. A peça teatral e a obra narra-66


A crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assistiva, para Machado, <strong>de</strong>veriam conter uma idéia geral, a articulação <strong>de</strong> uma tesecoerente, baseada na verda<strong>de</strong>.Que verda<strong>de</strong> seria essa? Evi<strong>de</strong>ntemente não seria algo pre<strong>de</strong>terminado, masa arregimentação <strong>de</strong> quadros e <strong>de</strong> imagens narrativas que compusessem umtodo coeso, <strong>de</strong> acordo com a verossimilhança e com as leis literárias.Assim, quando escreveu sobre a obra Verso e Reverso, <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar,(“O teatro <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar”, “Semana literária”, Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro,6,13 e 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1866), autor que admirava, viu nela vantagens que diziamrespeito ao “pensamento capital da peça” (a “idéia geral” <strong>de</strong> que falamos),ao “<strong>de</strong>senho feliz <strong>de</strong> alguns caracteres” (a criação <strong>de</strong> personagens autênticasrepresenta a segunda condição <strong>de</strong> valor) e às “excelentes qualida<strong>de</strong>sdo diálogo” (a solução formal mais importante do teatro, gerador <strong>de</strong>tensões dramáticas).Quando critica o teatro <strong>de</strong> J. M. <strong>de</strong> Macedo, Machado é incisivo neste ponto:“Estando convencido <strong>de</strong> que o teatro corrige os costumes, enten<strong>de</strong> o autor,e não se acha isolado neste conceito, que a correção <strong>de</strong>ve operar-se pelos meiosoratórios e não pelos meios dramáticos ou cômicos. A moral no teatro, mesmoadmitindo a teoria da correção dos costumes, não é isso: os <strong>de</strong>veres e as paixõesna poesia dramática não se traduzem por <strong>de</strong>monstração, mas por impressões.”(“Semana literária”, Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1866).Vê-se, aos olhos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, a tênue relação estabelecida entre amoral e a qualida<strong>de</strong> da obra. Mas, quanto aos recursos dramáticos e formais,torna-se veemente: “A reunião <strong>de</strong> algumas palavras enérgicas e sonoras, em períodosmais ou menos cheios, não supõe um estudo das paixões humanas. Oruído não é a eloqüência.” Adiante, ao tratar da face humorística <strong>de</strong> J.M. <strong>de</strong>Macedo, dirá: “Para fazer rir não precisa empregar o burlesco; o burlesco é oelemento menos culto do riso.”A propósito, a cena dramática para Machado tinha que conter principalmenteo choque <strong>de</strong> forças contrárias do espírito, <strong>de</strong> tal modo que a intensida<strong>de</strong>da ação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse menos da exibição do sofrimento físico do que da dor moral:“Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> dor física; e, não67


Fábio Lucasobstante, é máxima corrente em arte que semelhante espetáculo, no teatro, nãocomove ninguém; ali vale somente a dor moral.”É o que explica no texto <strong>de</strong>dicado a O Primo Basílio, <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós. Portanto,o conflito <strong>de</strong> apetites ou a frustração <strong>de</strong> esperanças constituem o foco<strong>de</strong> expectativas que a peça <strong>de</strong> teatro <strong>de</strong>ve explorar.Além do pensamento elevado, recomendava Machado que o escritor se preocupassecom o apuro formal e o respeito às leis políticas. A forma correta seria,a seu ver, a conseqüência <strong>de</strong> um conhecimento da Literatura, da observaçãodos bons autores e da comparação.Ao lado da crítica teatral, vamos encontrar em Machado importantes manifestaçõesacerca das obras <strong>de</strong> ficção e <strong>de</strong> poesia. Para ele, a crítica era o estímulonecessário da literatura: “Com largos intervalos aparecem as boas obras!Como são raras as publicações seladas por um talento verda<strong>de</strong>iro!... Quereismudar essa situação aflitiva? Estabelecei a crítica (...)”. É o que consta do seu“O i<strong>de</strong>al do crítico”, publicado no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro a 8 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong>1965.Assistiu ao esplendor e ao <strong>de</strong>clínio da onda romântica. E quando o Realismocomeçou a inquietar a juventu<strong>de</strong> e a arrebatar os epígonos e críticos, Machadorecebeu-o com reservas.É o que temos no célebre estudo sobre O Primo Basílio, <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós,em que muitas vezes a capacida<strong>de</strong> crítica <strong>de</strong> Machado chega a seu paroxismo:“... a realida<strong>de</strong> é boa, o realismo é que não presta para nada.”Mas o principal é o senso estético do crítico, apoiado sobretudo na técnicada comparação.No caso <strong>de</strong> O Primo Basílio, Machado não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> correlacionar o esquemanarrativo da obra do escritor português ao <strong>de</strong> Eugénie Gran<strong>de</strong>t, <strong>de</strong> Balzac.E, na busca da razão íntima da obra, da “idéia geral”, não escon<strong>de</strong> o ladomordaz <strong>de</strong> seu juízo crítico: “Se o autor, visto que o Realismo também inculcavocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamentoou <strong>de</strong>monstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, amenos <strong>de</strong> supor que a tese ou ensinamento seja isto: a boa escolha dos fâmulos68


A crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assisé uma condição <strong>de</strong> paz no adultério.” (“Eça <strong>de</strong> Queirós – OPrimo Basílio”, emO Cruzeiro, abril <strong>de</strong> 1878).No repertório do bom gosto <strong>de</strong> Machado estava implícito o “esprit <strong>de</strong> finesse”pascaliano. Daí lembrar, invocando o próprio Zola, mestre do novo “realismo”cru e bruto <strong>de</strong> tantos discípulos exaltados, que o traço grosso não é o traço exato.O lado ético da crítica machadiana levava-o a bater-se pela sincerida<strong>de</strong> temperadapela imparcialida<strong>de</strong>, num terreno em que as paixões opiniáticas conduziam aspessoas aos insultos e à difamação. Era indulgente com os iniciantes, mostrava-secompreensivo e receptivo em relação às obras recém-publicadas, que comentavasem azedume. No “I<strong>de</strong>al do crítico” prescrevia a tolerância, a mo<strong>de</strong>ração e a urbanida<strong>de</strong>.E em “Instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>” leva a sua investigação até os limites <strong>de</strong>um inquérito sobre as condições sociais do Brasil em 1873.O seu impressionismo crítico era combinado com a vigilância quanto à correçãoe justeza do texto. José Veríssimo, seu admirador, enquadrou sua críticacomo impressionista: “Como crítico, Machado <strong>de</strong> Assis foi sobretudo impressionista.Mas um impressionista que, além da cultura e do bom gosto literárioinato e <strong>de</strong>senvolvido por ela, tinha peregrinos dons <strong>de</strong> psicólogo e rara sensibilida<strong>de</strong>estética.” (História da Literatura <strong>Brasileira</strong>, cap. 19, “Machado <strong>de</strong> Assis”,Brasília, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 1981, p. 288).Combatia a vulgarida<strong>de</strong> e a obscenida<strong>de</strong>, o fortuito, o acessório e o efêmero.Punha-se a favor da parte substantiva da obra formalmente bem realizada.Qual o seu método? Intuitivamente Machado <strong>de</strong> Assis se punha adiante <strong>de</strong>muitos dos seus contemporâneos.A primeira impressão da obra narrativa, por exemplo, era colhida <strong>de</strong> umaleitura atenta, revelada nos resumos que apresentava ao leitor.A seguir, prontificava-se a propor emendas, correções técnicas e sugestõesque militassem em favor da credibilida<strong>de</strong> da obra, sua verossimilhança.Fazia, portanto, uma critica orientadora, quase pedagógica.Adiante, fazia questão <strong>de</strong> estabelecer o que hoje chamamos intertextualida<strong>de</strong>,pondo a obra a dialogar com as <strong>de</strong>mais com que pu<strong>de</strong>sse manter algumaafinida<strong>de</strong> formal ou conteudística.69


Fábio LucasAssim, conseguia colocar a obra analisada em conexão com os cabedais daLiteratura <strong>de</strong> modo geral e com o clima <strong>de</strong> opinião dominante na época.A comparação servia-lhe, portanto, para contextualizar a obra analisada, inseri-lano campo da tradição e conferir-lhe historicida<strong>de</strong>.Por isto, escreveu no célebre artigo <strong>de</strong>dicado a O Primo Basílio: “Não bastaler, é preciso comparar, <strong>de</strong>duzir, aferir a verda<strong>de</strong> do autor.”Importante conclusão: a leitura da obra, portanto, procura mantê-la em relaçãocom as <strong>de</strong>mais, sem <strong>de</strong>scuidar-se da investigação do que vem a ser a “verda<strong>de</strong>do autor”.Aí se contém o ponto <strong>de</strong> equilíbrio entre o geral e o particular, entre o influxodos gran<strong>de</strong>s textos e a autonomia e originalida<strong>de</strong> da obra.Numa <strong>de</strong> suas primeiras reflexões sobre a crítica,"I<strong>de</strong>al do crítico", conclamaa crítica a “ver (enfim) até que ponto a imaginação e a verda<strong>de</strong> conferenciampara aquela produção.”Imaginação e verda<strong>de</strong>! Aí estão os estímulos para a verda<strong>de</strong>ira criação literária,feita <strong>de</strong> fantasia brotada do solo do real. Além da imaginação, verda<strong>de</strong>. E averda<strong>de</strong> do escritor, sabemos, resi<strong>de</strong> na verossimilhança que transmite.Resta-nos dizer da proposta <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis para concretizar o melhorjuízo crítico: ser sincero, imparcial, convincente. No mesmo estudo “I<strong>de</strong>aldo crítico” encontramos a fórmula sinteticamente apresentada: “Não compreendoo crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condiçõesprincipais para exercer a crítica.”Ora, temos aí a chave para qualquer crítica bem realizada: a conciliação <strong>de</strong>ciência e consciência.A ciência do crítico, para Machado, haveria <strong>de</strong> provir em gran<strong>de</strong> parte daintimida<strong>de</strong> com os gran<strong>de</strong>s textos do passado, dos exemplos conservados pelatradição.E a consciência haveria <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da <strong>de</strong>cisão avaliadora do crítico, sua liberda<strong>de</strong>,autonomia, finura e correção moral.A crítica literária <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis foi primeiramente selecionada e reunidaem volume pelo seu amigo e protegido Mário <strong>de</strong> Alencar. Em prefácio <strong>de</strong>70


A crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1910, o organizador da crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis adiantaimpressões preciosas sobre esta faceta do nosso gran<strong>de</strong> escritor. (cf. Crítica porMachado <strong>de</strong> Assis – Coleção feita por Mário <strong>de</strong> Alencar, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier,s/d.).Antes <strong>de</strong> mais nada, consi<strong>de</strong>ra a crítica “a feição principal do seu engenho”,admitindo que as outras faculda<strong>de</strong>s do mestre “lhe estavam subordinadas.”Reconhece que a crítica machadiana só não foi superior <strong>de</strong>vido ao “atrasodo meio social” em que ele atuou, quando o gênero trazia “menos glória quedissabores”.E reproduz trecho <strong>de</strong> carta <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis a José <strong>de</strong> Alencar, quandoeste apresentou-lhe Castro Alves: “Confesso francamente que encetando osmeus ensaios <strong>de</strong> crítica, fui movido pela idéia <strong>de</strong> contribuir com alguma cousapara a reforma do gosto que se ia per<strong>de</strong>ndo e efetivamente se per<strong>de</strong>.”Mário <strong>de</strong> Alencar assinala, com proprieda<strong>de</strong>, o fato <strong>de</strong> que, ao cessar Machado<strong>de</strong> produzir crítica, “per<strong>de</strong>u-se é certo um gran<strong>de</strong> analisador <strong>de</strong> obrasalheias, e porventura um notável generalizador <strong>de</strong> doutrinas literárias”. Emborainforme que “em tudo ele ficou sendo o crítico dos outros e <strong>de</strong> si próprio”.Menciona três dos mais famosos estudos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis: “A nova geração”,“Literatura brasileira” e “O Primo Basílio”.E Tristão <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, no prefácio à crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis constante daObra Completa organizada por Afrânio Coutinho para a Editora Aguilar, dá ênfaseao aspecto <strong>de</strong> magistrado das letras do nosso gran<strong>de</strong> escritor:“O crítico para ele era um magistrado. Era um dos po<strong>de</strong>res da Repúblicadas <strong>Letras</strong>. Para Machado o Po<strong>de</strong>r Legislativo, nessa República, era representadopelos clássicos, pela Tradição, pelas ‘leis poéticas’, pela Gramática.O Po<strong>de</strong>r Executivo eram os autores, em prosa ou verso. E o Po<strong>de</strong>r Judiciário,os críticos. Da harmonia <strong>de</strong>sses três po<strong>de</strong>res, não explícitos mas implícitosna estética do Mestre, <strong>de</strong>rivavam a paz e o progresso das letras.”71


Fábio LucasPassados os 40 anos, veio-lhe o período da maturida<strong>de</strong> intelectual. Interiorizousua capacida<strong>de</strong> crítica e a reservou para si, em vez <strong>de</strong> adotá-la para osoutros.Vivia a fase do “tédio à controvérsia”, característica do seu espírito enfatizadapor Mário Casasanta, que se utilizou <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas expressões lapidares,aplicada ao Conselheiro Aires, para <strong>de</strong>signar, em pequeno estudo, o <strong>de</strong>sencantocom que o mestre passou a encarar o <strong>de</strong>bate público <strong>de</strong> idéias (cf. Machado <strong>de</strong>Assis e o tédio à controvérsia, Belo Horizonte, Os Amigos do Livro, 1934).Depois <strong>de</strong> 1880, em Machado <strong>de</strong> Assis conservou-se a crítica, mas dispensou-seo crítico, na acepção em que o temos, <strong>de</strong> avaliador público das obrasalheias.À crítica propriamente dita, praticada por Machado <strong>de</strong> Assis, suce<strong>de</strong> a críticaexarada pelo espírito crítico, que se foi consolidando durante a prática literária.Superada a fase <strong>de</strong> confronto direto com as obras e os espetáculos, <strong>de</strong>umaior elasticida<strong>de</strong> à visão do mundo e efetivou, sem <strong>de</strong>sfalecimento, a açãocorrosiva contra idéias-feitas herdadas da tradição conservadora, esteadas naobrigatória e exclusiva pedagogia católica do período monarquista.Entregou-se, pois, à crítica implícita, sem visar diretamente às obras ou seusrespectivos autores. Punia conceitos mal concebidos, vícios <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong>estilo.Atacava a empáfia humana, as contradições e injustiças dos po<strong>de</strong>rosos e <strong>de</strong>seus miseráveis admiradores. Comprazia-se <strong>de</strong> modo especial em ridicularizara grandiosida<strong>de</strong> e as pompas dos rituais da convivência urbana. É que adotaraum olhar satírico, quando não parodístico, para <strong>de</strong>struir a presunção dos dominadores.Acutilava os pseudocientistas na era do apogeu do cientificismo.Com a engenhosa narrativa “O alienista”, <strong>de</strong> Papéis Avulsos (1882), esboçouuma sátira cruel ao experimentalismo psicológico.Com certa freqüência, Machado <strong>de</strong> Assis se servia dos contos, das crônicas,dos romances e, até, da poesia, para zombar das consciências ingênuas. Exemplovivo disso foi “Um homem célebre”, do qual <strong>de</strong>stacamos o comentário seguinte:“Se acaso uma idéia aparecia, <strong>de</strong>finida e bela, era eco apenas <strong>de</strong> alguma72


A crítica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assispeça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar!” (cf. Várias Histórias:Rio/Belo Horizonte, Garnier, texto apurado pela 3. a edição, <strong>de</strong> 1904, enotas <strong>de</strong> Adriano da Gama Kury, 1989, p. 45).Não raro surpreen<strong>de</strong>mos o narrador, ou o poeta, a gracejar com as palavrasou o estilo alheios, dotando-os <strong>de</strong> um sabor grotesco e ridículo.É da natureza da paródia simular o código e os valores do texto parodiado.Mas é um texto <strong>de</strong> duplo sentido, a paródia. Contém na informação que transmitea dose <strong>de</strong> veneno para matá-la ou, pelo menos, afrontá-la. Ou, ainda, paraexpô-la ao escárnio, ultrajá-la. Essa é a graça da transgressão: fingir acreditar naserieda<strong>de</strong> do texto parodiado, exagerando seus atributos.Ao mesmo tempo, os conceitos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, homem educado nalei da Igreja (com “I” maiúsculo), se apresentam <strong>de</strong> modo herético. Ele retira atranscendência dos textos dogmáticos e os <strong>de</strong>ssacraliza. Desmistifica igualmenteo aparato litúrgico das encenações religiosas.A Ética social é comumente repelida nos seus relatos. O conto “A igreja dodiabo” percorre o espaço crítico <strong>de</strong> que estamos falando. O mesmo se dirá docapítulo XIII (“É tempo”) do romance Dom Casmurro (1899), em que se troçado cantor Marcolini que, por sua vez, narra a história da Criação num diálogoentre Deus e Satanás. Uma sátira ao Gênese.As anotações estéticas <strong>de</strong> “Teoria do medalhão”, <strong>de</strong> Papéis Avulsos (1882),como também <strong>de</strong> “O cônego ou metafísica do estilo”, <strong>de</strong> Várias Histórias(1896), igualmente se retemperam no caldo satírico. Tudo isso, enfim, reforçao princípio crítico da prosa machadiana, mesmo aquela concebida <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> oautor haver abandonado a avaliação <strong>de</strong> obras literárias nos seus escritos para aimprensa periódica. Para encerrar, pequena observação final do cronista Machado<strong>de</strong> Assis, a 16 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1885, em comentário sobre impostos “inconstitucionais”<strong>de</strong> Pernambuco, personificados no texto: “Os adjetivos passame os substantivos ficam.”73


<strong>Prosa</strong>Aires, autor apócrifodo ca<strong>de</strong>rno ÚltimoMarta SpagnuoloTradução: Hernán GómezMartaSpagnuolonasceu emColón, BuenosAires(Argentina).Formada em<strong>Letras</strong> pelaFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Filosofia e <strong>Letras</strong>da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Buenos Airese pós-graduaçãoem LiteraturaArgentina.IO chamado “enigma do narrador” <strong>de</strong> Esaú e Jacó converteu-se emum clássico da crítica. A partir da “Advertência”, é costume perguntar-nospor que, se o narrador é Aires, ele se refere a si mesmo em terceirapessoa, e em tal caso por que se elogia mais <strong>de</strong> uma vez. Perguntasque parecem um tanto ociosas. Nem nas mais inocentes oficinas <strong>de</strong>escritura literária ou jornalística falta a or<strong>de</strong>m, dada ao aprendiz, <strong>de</strong>escrever um conto, poema, etc. autobiográfico, em terceira pessoa, incluindo-seno escrito com seu próprio nome, a qual não é <strong>de</strong>vida, porcerto, à inventivida<strong>de</strong> dos coor<strong>de</strong>nadores. Des<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> abundamobras <strong>de</strong> variados temas e gêneros em que o protagonista, tratando-secomo um “ele”, conta a si mesmo e aos seus feitos sem poupar-seauto-elogios. Qualquer dos mo<strong>de</strong>los clássicos po<strong>de</strong>ria haverservido a Machado <strong>de</strong> Assis (caso ele necessitasse) <strong>de</strong> algum. Não só aAnábase <strong>de</strong> Xenofonte, como alguém chegou a dizer, por causa transitivaque em um capítulo Aires não lê a Anábase mas a Ciropedia. Se74


<strong>Prosa</strong>Aires, autor apócrifo<strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno ÚltimoMarta SpagnuoloIEl llamado “enigma <strong>de</strong>l narrador” <strong>de</strong> Esaú e Jacó se ha convertidoen un clásico <strong>de</strong> la crítica. A partir <strong>de</strong> la “Advertência”, es costumbrepreguntarnos por que, si el narrador es Aires, se trata a sí mismo entercera persona, y en tal caso por que se alaba más <strong>de</strong> una vez. Preguntasque parecen un tanto ociosas. Ni en los más inocentes talleres<strong>de</strong> escritura literaria o periodística falta la consigna dada al aprendiz<strong>de</strong> escribir un cuento, poema, etc. autobiográfico, en tercera persona,incluyéndose en el escrito con su propio nombre, no <strong>de</strong>bida, por cierto,a la inventiva <strong>de</strong> los coordinadores. De antiguo abundan obras<strong>de</strong> variados temas y géneros en que el protagonista, tratándose comoa un “el”, “se cuenta” a sí mismo y a sus hechos sin ahorrarse autoelogios.Cualquiera <strong>de</strong> los mo<strong>de</strong>los clásicos podría haber servido aMachado <strong>de</strong> Assis en caso <strong>de</strong> necesitar uno. No sólo la Anábasis <strong>de</strong>Jenofonte, como alguien llegó a <strong>de</strong>cir por causa transitiva <strong>de</strong> que enun capítulo Aires no lee la Anábasis sino la Ciropedia. Si Machado que-MartaSpagnuolonasció en Colón,Buenos Aires(Argentina). EsProfessora en<strong>Letras</strong> por laFacultad <strong>de</strong>Filosofia y <strong>Letras</strong><strong>de</strong> la UBA.Tiene unaespecialización<strong>de</strong> posgrado enLiteraturaArgentina.75


Marta SpagnuoloMachado queria eleger um mo<strong>de</strong>lo entre tantos, bastava-lhe o Pentateuco.Impossível recordar sem rir a passagem <strong>de</strong> Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas em queBrás se compara com Moisés, que até contou sua própria morte.Não obstante, as perguntas têm sua utilida<strong>de</strong>, pois é inegável que o tom doprefácio é enigmático. Servem para chamar a atenção sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comotema ontológico e como assunto literário. Isto é, não só sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> donarrador, que é a ponta por on<strong>de</strong> Machado começa a incitar-nos. Sobre estaúltima, as hipóteses até agora expostas são: a) Aires é, ao mesmo tempo, narradore personagem. Recorreria à terceira pessoa para mascarar-se, duplicar-se,distanciar-se do narrado. b) Um segundo narrador – o autor – reescreve à suamaneira a matéria do ca<strong>de</strong>rno Último, escrito pelo narrador fictício Aires.O caso é que, tal como o previu Machado, a questão tornou-se para nós maravilhosamenteárdua. Porque, <strong>de</strong>slumbrando-nos, faz mais obscuro o mistério<strong>de</strong>sse Aires que aparece em seu penúltimo romance, retorna no último e continua sendoinapreensível para nós <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um século. Ou seja, porque nos <strong>de</strong>témsendo uma questão falsa: o narrador fictício não existe. Creio que se compreen<strong>de</strong>o que digo: não existe, não porque seja um personagem <strong>de</strong> ficção; não existecomo autor fictício <strong>de</strong> Esaú e Jacó. Essa é a hipótese <strong>de</strong>ste trabalho. Sua brevida<strong>de</strong>não permitirá ir muito mais longe, até aon<strong>de</strong> apenas tentarei uma aproximação.Mas, se conseguir tirar esse entrave, talvez sirva para seguir adiante.IINada se ganha recordando que Machado, com sua própria assinatura, <strong>de</strong>clarou-seautor <strong>de</strong> Esaú e Jacó na “Advertência” a Memorial <strong>de</strong> Aires: “Quem me leuEsaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio: ‘Nos lazeres do ofício escreviao Memorial...’ [...] Referia-me ao Conselheiro Aires.” Pois isso não eliminaa idéia já instalada <strong>de</strong> que, se não é uma transcrição, é uma reelaboração <strong>de</strong> ummanuscrito <strong>de</strong> Aires, que é a que me proponho remover.Parto da convicção <strong>de</strong> que, embora já saibamos quase <strong>de</strong> memória a“Advertência” a Esaú e Jacó 1 , ela ainda permite outra leitura, se nos colocamos76


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimoría elegir un mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> entre tantos, le bastaba con el Pentateuco. Imposiblerecordar sin risa el pasaje <strong>de</strong> Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, en el que Brás secompara con Moisés, que hasta contó su propia muerte.No obstante, las preguntas tienen su utilidad, pues es innegable que el tono<strong>de</strong>l prefacio es enigmático. Sirven para llamar la atención sobre la i<strong>de</strong>ntidadcomo tema ontológico y como asunto literario. Esto es, no sólo sobre la i<strong>de</strong>ntidad<strong>de</strong>l narrador, que es la punta por don<strong>de</strong> Machado empieza a azuzarnos.Sobre esta última, las hipótesis hasta ahora expuestas son: a) Aires es, a la vez,narrador y personaje. Recurriría a la tercera persona para disfrazarse, duplicarse,distanciarse <strong>de</strong> lo narrado. b) Un segundo narrador – el autor– reescribe asu manera la materia <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Último, escrito por el narrador ficticio Aires.El caso es que, tal como lo previó Machado, la cuestión se nos ha vuelto maravillosamenteardua. Porque, encandilándonos, nos hace más oscuro el misterio<strong>de</strong> esse Aires que aparece en su penúltima novela, retorna en la última y nos siguesiendo inasible <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> más <strong>de</strong> un siglo. O sea, porque nos <strong>de</strong>tiene siendouna cuestión falsa: el narrador ficticio no existe. Creo que se compren<strong>de</strong> lo quedigo: no existe, no porque sea un personaje <strong>de</strong> ficción; no existe como autorficticio <strong>de</strong> Esaú e Jacó. Esa es la hipótesis <strong>de</strong> este trabajo. Su brevedad no permitiráir mucho más allá, hacia don<strong>de</strong> apenas intentaré una aproximación. Pero sialcanza a quitar ese escollo, tal vez sirva para seguir a<strong>de</strong>lante.IINada se gana recordando que Machado, con su propia firma, se <strong>de</strong>claró autor<strong>de</strong> Esaú e Jacó en la “Advertência” a Memorial <strong>de</strong> Aires: “Quem me leu Esaú e Jacótalvez reconheça estas palavras do prefácio: ‘Nos lazeres do ofício escrevia oMemorial...’ [...] Referia-me ao Conselheiro Aires.” Pues ello no elimina la i<strong>de</strong>a yainstalada <strong>de</strong> que, si no una transcripción, es una reelaboración <strong>de</strong> un manuscrito<strong>de</strong> Aires, que es la que me propongo remover.Parto <strong>de</strong> la convicción <strong>de</strong> que, aunque ya sabemos casi <strong>de</strong> memoria la“Advertencia” a Esaú e Jacó, 1 aún permite otra lectura, si nos planteamos una77


Marta Spagnuolouma pergunta diferente: on<strong>de</strong> está a afirmação <strong>de</strong> que o sétimo ca<strong>de</strong>rno foi escritopor Aires?Observe-se que:1. Há dois verbos ativos, cujo sujeito é Aires, que o confirmam como autor<strong>de</strong> “os seis [ca<strong>de</strong>rnos], em que tratava <strong>de</strong> si”: “... o Memorial, diário <strong>de</strong>lembranças que o conselheiro escrevia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muitos anos e era a matériados seis. [...] “Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial...” Mas nenhum,nem em voz ativa nem em passiva, que assevere que Aires escreveu o sétimo.Dessa “outra história” só se diz que “não fazia parte do Memorial”ese <strong>de</strong>screvem suas particularida<strong>de</strong>s.2. “Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete ca<strong>de</strong>rnosmanuscritos”, o que faz imaginar que escreveu os sete. Mas o textonão especifica que “acharam-se na sua secretária”. É notório que Machadoforça a sintaxe para evitar dizer em que secretária acharam-se.3. Os sete são manuscritos, mas não se assegura que todos foram manuscritos“por Aires”. Machado resguarda-se <strong>de</strong> dizer que a caligrafia <strong>de</strong> todosfosse a mesma.4. Os sete estavam “rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeirosseis tinha o seu número <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, por algarismos romanos, I, II, III,IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.”Mas não se informa quem os enca<strong>de</strong>rnou, quem escreveu o número <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m que tinha cada um dos seis primeiros nem quem pôs o título quetrazia o sétimo. Nada autoriza, em verda<strong>de</strong>, afirmar que foi Aires.5. A hipótese <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sejo do finado fosse imprimir este ca<strong>de</strong>rno em seguida aos outros,para obrigar sua leitura antes que lhe conhecessem esta outra história, édistrativa. Também é sua contra-réplica imediata. Qualquer pessoaque tivesse vaida<strong>de</strong>, sentimento que não fazia parte dos <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> Aires,po<strong>de</strong>ria haver <strong>de</strong>sejado que “lhe conhecessem” uma história, real oufictícia, em que cumpre o papel do protagonista, e, para isso, imprimi-la,sem que isso garanta que a escreveu. Com efeito, esta outra his-78


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimopregunta diferente: ¿dón<strong>de</strong> está la afirmación <strong>de</strong> que el séptimo cua<strong>de</strong>rno lo escribióAires?Obsérvese que:1. Hay dos verbos activos, cuyo sujeto es Aires, que lo confirman como autor<strong>de</strong> “os seis, [ ca<strong>de</strong>rnos] em que tratava <strong>de</strong> si” : “... o Memorial, diário <strong>de</strong>lembranças que o conselheiro escrevia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muitos anos e era a matériados seis. [...] “Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial...” Pero ninguno,ni en voz activa ni en pasiva, que asevere que Aires escribió el séptimo.De esa “otra historia” sólo se dice que “não fazia parte do Memorial”yse<strong>de</strong>scriben sus particularida<strong>de</strong>s.2. “Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete ca<strong>de</strong>rnosmanuscritos”, lo que hace imaginar que escribió los siete. Pero eltexto no especifica que “hacharam-se na sua secretária”. Es notorio queMachado fuerza la sintaxis para evitar <strong>de</strong>cir en qué escritorio se hallaron.3. Los siete son manuscritos, pero no se asegura que todos fueron manuscritos“por Aires”. Machado se cuida <strong>de</strong> <strong>de</strong>cir que la caligrafía <strong>de</strong> todos fuesela misma.4. Los siete estaban “rijamente encapados em papelão. Cada um dosprimeiros seis tinha o seu número <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, por algarismos romanos,I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título:Último.” Pero no se informa quién los encua<strong>de</strong>rnó, quién escribióel número <strong>de</strong> or<strong>de</strong>n que tinha cada uno <strong>de</strong> los seis primeros, niquién puso el título que trazia el séptimo. Nada autoriza, en verdad, aafirmar que fue Aires.5. A hipótese <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sejo do finado fosse imprimir este ca<strong>de</strong>rno em seguida aos outros,para obligar a su lectura antes que lhe conhecessem esta outra história es distractiva.También su contrarréplica inmediata. Cualquiera que tuviese la vanidad,que não fazia parte <strong>de</strong> los <strong>de</strong>fectos <strong>de</strong> Aires, podría haber <strong>de</strong>seado que“le conocieran” una historia, real o ficticia, en que cumple papel protagónico,y para eso, imprimirla, sin que ello garantice que la escribió. En79


Marta Spagnuolotória está escrita, mas ao particípio falta o complemento agente. Nãose especifica que esteja “escrita por ele”.6. Ao falar da escolha do título, Machado continua evitando a primeira pessoamediante um verbo na voz passiva, <strong>de</strong> novo sem agente (foram lembradosvários) e uma metonímia (venceu a idéia), que contribuem para escamotear oautor da história e para que o leitor siga atribuindo a autoria a Aires.7. Que o sujeito in<strong>de</strong>terminado opte pelos nomes Esaú e Jacó, que o próprio Airescitou uma vez, não implica que a citação <strong>de</strong> Aires seja <strong>de</strong> um escrito; po<strong>de</strong> seroral. Quem escreveu o romance “falou” muitas vezes com Aires.8. Na “Advertência” a Memorial <strong>de</strong> Aires, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> atribuir-se, em primeirapessoa, a autoria <strong>de</strong> Esaú e Jacó, ao referir-se ao Memorial, Machado voltaao discurso impessoal e recorre à melhor ambigüida<strong>de</strong> semântica: “Nãohouve pachorra <strong>de</strong> a redigir à maneira daquela outra – nem pachorra, nem habilida<strong>de</strong>.”Usando “redigir” em vez <strong>de</strong> “escrever” e esclarecendo que não romanceouo diário, reforça a idéia <strong>de</strong> que, pelo contrário, “aquela outra” históriafoi uma hábil reelaboração do conteúdo do ca<strong>de</strong>rno Último, que, emborajamais tenha dito que tivesse sido escrito por Aires, sabe queéosupostopelo leitor.9. Sobre a “Advertência” a Esaú e Jacó, naquilo que Machado diz do títuloÚltimo – a razão <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>signação especial não se compreen<strong>de</strong>u então nem <strong>de</strong>pois – nãose po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> perceber o <strong>de</strong>safio tácito naquilo que não diz: que nãose compreen<strong>de</strong>ria nunca. Este se concretiza na pergunta: “Último porquê?” Minha proposta é, enfim, que se po<strong>de</strong> chegar a compreen<strong>de</strong>r, umavez compreendido que nessas linhas não há uma só afirmação <strong>de</strong> que Airesescreveu esta “outra história”.IIISem preten<strong>de</strong>r que seja a única possível, ensaio minha resposta: Último significaque Esaú e Jacó foi o último livro escrito por Machado <strong>de</strong> Assis. O seguinte,cuja possível publicação anuncia, o escreveu Aires, nos seis ca<strong>de</strong>rnos numera-80


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimoefecto, esta otra historia está escrita, pero al participio le falta el complementoagente. No se puntualiza que esté “escrita por el”.6. Al hablar <strong>de</strong> la elección <strong>de</strong>l título, Machado sigue eludiendo la primerapersona mediante un verbo en pasiva, <strong>de</strong> nuevo sin agente (foram lembradosvários) y una metonimia (venceu a idéia), que contribuyen a escamotear alautor <strong>de</strong> la historia y a que el lector siga atribuyéndole la autoría a Aires.7. Que el sujeto in<strong>de</strong>finido opte por los nombres Esaú e Jacó, que o próprio Airescitou uma vez, no implica que la cita <strong>de</strong> Aires sea <strong>de</strong> un escrito; pue<strong>de</strong> seroral. Quien escribe la novela “ha hablado” muchas veces con Aires.8. En la Advertência a Memorial <strong>de</strong> Aires, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> adjudicarse, en primerapersona, la autoría <strong>de</strong> Esaú e Jacó, al referirse al Memorial Machado vuelveal discurso impersonal y recurre a la mejor ambigüedad semántica:Não houve pachorra <strong>de</strong> a redigir à maneira daquela outra – nem pachorra, nem habilida<strong>de</strong>.”Usando “redactar” en vez <strong>de</strong> “escribir” y aclarando que no novelóel diario, refuerza la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> que, por el contrario, “aquella otra” historiafue una hábil reelaboración <strong>de</strong>l contenido <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Último,que, aunque jamás dijo que fuera escrito por Aires, sabe que es lo supuestopor el lector.9. Acerca <strong>de</strong> la “Advertência” a Esaú e Jacó, en lo que Machado dice <strong>de</strong>l títuloÚltimo –a razão <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>signação especial não se compreen<strong>de</strong>u então nem <strong>de</strong>pois – nopue<strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> percibirse el <strong>de</strong>safío tácito en lo que no dice: que no secompren<strong>de</strong>ría nunca. Este se concreta en la pregunta: “Último por quê?”Mi propuesta es, en fin, que pue<strong>de</strong> llegar a compren<strong>de</strong>rse, una vez comprendidoque en esas líneas no hay una sola afirmación <strong>de</strong> que Aires escribióesta “outra história”.IIISin preten<strong>de</strong>r que sea la única posible, ensayo mi respuesta: Último significaque Esaú e Jacó fue el último libro escrito por Machado <strong>de</strong> Assis. El siguiente,cuya posible publicación anuncia, lo escribió Aires, en los seis cua<strong>de</strong>rnos nu-81


Marta Spagnuolodos. O único que fará Machado é o que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>clara haver feito, na “Advertência”ao Memorial: selecionar uma parte relativa a dois anos, podá-la, <strong>de</strong>sbastá-la,fazê-la concisa, conservando “só o que liga o mesmo assunto”. Em suma,Machado está jogando com o tema do duplo.Claro que não adianta repetir que Aires é o alter ego <strong>de</strong> Machado ou que Machadoé Aires. A crítica o disse sempre, e, segundo é corrente, também o próprioMachado. Ainda assim, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma metáfora inspirada nas referênciasautobiográficas que permitem ver ambos os romances, tema que nãoconsi<strong>de</strong>ro esgotado nem neles nem em toda a sua obra, na qual se po<strong>de</strong> ler umaconstante que prefigura Aires. Mas aqui só esboçarei em linhas gerais comoMachado constrói o seu duplo. Esse Aires é um ar que vai e vem <strong>de</strong>ntro da cabeçacriadora <strong>de</strong> Machado, uma alterida<strong>de</strong> que chega a corporizar-se e até se sentapara escrever na sua própria secretária (na <strong>de</strong> Machado) tratando <strong>de</strong> substituí-lo.Na secretária on<strong>de</strong> se lhe acharam sete ca<strong>de</strong>rnos manuscritos que lhe pertencem,pois ainda que o último tenha sido escrito por ele, leva o carimbo <strong>de</strong>seu ponto <strong>de</strong> vista, que conseguiu impor em alto grau a seu próprio criador.Assim, Último, aplicado a Esaú e Jacó, significaria mais ainda: a última reclusão <strong>de</strong>um autor para escrever um romance, “narrativa ou história escrita com umpensamento interior e único”, que, ainda sendo em parte o <strong>de</strong> seu duplo, pô<strong>de</strong>controlar graças a seu ofício <strong>de</strong> tramador <strong>de</strong> histórias. Pois a obra seguinte seriaapenas um “diário <strong>de</strong> lembranças” tão íntimas do duplo, que o próprio M.<strong>de</strong> A. não podia modificar dando-lhe uma forma literária “genérica”, mas sóencurtar. Isso indicaria que, quando o Conselheiro Aires faleceu, <strong>de</strong>ixou Machadosem sua meta<strong>de</strong>, incompleto, sem recursos para “inventar” nada. O queé uma forma <strong>de</strong> matar, similar à dos duplos românticos, que, ao morrer, matama sua outra entida<strong>de</strong>. Ainda que aqui valha por uma morte amável e consentida<strong>de</strong> bom grado. Mais do que morte, uma transubstanciação. Como seMachado, acarinhado com Aires, assumisse seu lado mais sensível e a ele seabandonasse no Memorial.Mas em Esaú e Jacó, se Aires é mais belo, mais sociável, mais simpático que “ooutro”, nem por isso é menos diabólico. Soterrada está a luta entre o bem e o82


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimomerados. Lo único que hará Machado es lo que <strong>de</strong>spués <strong>de</strong>clara haber hecho,en la “Advertência” al Memorial: seleccionar una parte relativa a dos años, podarla,<strong>de</strong>sbastarla, hacerla concisa, conservando “só o que liga o mesmo asunto”.En suma, Machado está jugando con el tema <strong>de</strong>l doble.Claro que no se a<strong>de</strong>lanta con repetir que Aires es el álter ego <strong>de</strong> Machadoo que Machado es Aires. La crítica lo dijo siempre, y, según es fama, tambiénel propio Machado. Aun así, no <strong>de</strong>ja <strong>de</strong> ser una metáfora inspirada en las referenciasautobiográficas que permiten ver ambas novelas, tema que no consi<strong>de</strong>roagotado ni en ellas ni en toda su obra, en la que pue<strong>de</strong> leerse una constanteque prefigura a Aires. Pero aquí sólo esbozaré en gruesos trazos cómoconstruye Machado a su doble. Esse Aires es un aire que va y viene <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>cabeza creadora <strong>de</strong> Machado, una alteridad que llega a corporizarse y hastase le sienta a escribir en su propio escritorio (na secretária, en la <strong>de</strong> Machado)tratando <strong>de</strong> <strong>de</strong>splazarlo. En el escritorio don<strong>de</strong> se le hallaron siete cua<strong>de</strong>rnosmanuscritos que le pertenecen, pues aunque el último no haya sido escritopor el, lleva el sello <strong>de</strong> su punto <strong>de</strong> vista, que ha logrado imponer en alto gradoa su propio creador. Así, Último, aplicado a Esaú e Jacó, significaría más todavía:el último arresto <strong>de</strong> un autor para escribir un romance, “narrativa o historiaescrita con un pensamiento interior y único”, que, aun siendo en parteel <strong>de</strong> su doble, pudo controlar gracias a su oficio <strong>de</strong> tramador <strong>de</strong> historias.Pues la siguiente obra sería apenas un “diário <strong>de</strong> lembranças” tan íntimas <strong>de</strong>ldoble, que el propio M. <strong>de</strong> A. no podía modificar dándole una forma literaria“genérica”, sino sólo acortar. Ello indicaría que cuando el consejero Airesfalleció, lo <strong>de</strong>jó a Machado sin su mitad, incompleto, sin recursos para “inventar”nada. Lo cual es una forma <strong>de</strong> matar, similar a la <strong>de</strong> los dobles románticos,que, al morir, matan a su otra entidad. Aunque aquí valga por unamuerte amable y consentida <strong>de</strong> buen grado. Más que muerte, una transustanciación.Como si Machado, encariñado con Aires, asumiera su costado mássensible yaelseabandonara en el Memorial.Pero en Esaú e Jacó, si bien Aires es más bello, más sociable, más simpáticoque “el otro”, no por ello es menos diabólico. Soterrada está la lucha entre el83


Marta Spagnuolomal que o duplo representa. Aires é “cordato, não por inclinação à harmonia,senão por tédio à controvérsia.” (37) É o perfeito tartufo social <strong>de</strong> um mundinhono qual o que se aprecia já não é a pieda<strong>de</strong> religiosa, mas a complacênciaante os valores dissolutos, e no qual o lucro por mostrá-la é a comodida<strong>de</strong>... jáque não há outro. À hipocrisia <strong>de</strong> Aires se soma o cinismo como elemento <strong>de</strong>comicida<strong>de</strong>:“Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, <strong>de</strong>scompõemo rosto à gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar à sua umaspecto abominável. Se lucrasse alguma coisa, vá; mas não lucrando nada,preferia ficar em paz com Deus e os homens.” (149)Este “conselheiro diplomático”, ambíguo, com seu “jeito <strong>de</strong> dois sexos”,que não aconselha ninguém para não comprometer seu bem-estar e, ainda assim,consegue reputação <strong>de</strong> bom conselheiro <strong>de</strong> almas, produz uma escrituraigual a si mesmo. Uma escritura que ganha em eficácia crítica quanto mais leve,mais ligeira, mais movediça se faz pelo toque <strong>de</strong>sse Aires que a agita, capaz <strong>de</strong>“dar volta” a qualquer princípio num átimo, como a tabuleta <strong>de</strong> Custódio. Daíque em Esaú e Jacó pareça <strong>de</strong>sconcertante a tolerância <strong>de</strong> Aires para com seus interlocutores,em comparação com as ferozes ridicularizações dos casais Santose Batista. D. Cláudia convencendo o marido: “Batista, você nunca foi conservador!”,é uma das páginas mais <strong>de</strong>sopilantes escritas por Machado.Quando Aires, aposentado, se fixa no Rio <strong>de</strong> Janeiro por escolha, não se duvida<strong>de</strong> que tem “particular amor à sua terra”. Mas “não atribuía a esta tantascalamida<strong>de</strong>s” (na aparência, o contrário do anterior M. <strong>de</strong> A., que lhe atribuíatantas). Entretanto, talvez Machado nunca tenha sido mais ladino para mostrara imoralida<strong>de</strong> pública como o foi quando apresentou Aires mentindo aomundo exterior sobre o que ocorria no Brasil:“A febre amarela, por exemplo, à força <strong>de</strong> a <strong>de</strong>smentir lá fora, per<strong>de</strong>u-lhea fé, e cá <strong>de</strong>ntro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido84


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimobien, y el mal que el doble representa. Aires es cordato, “não por inclinação áharmonia, senão por tédio a controvérsia.” (37) Es el perfecto tartufo social <strong>de</strong>un mundillo en el que lo que se aprecia ya no es la piedad religiosa sino la complacenciaante los valores disueltos, y en el que la ganancia por mostrarla es lacomodidad... ya que no hay otra. A la hipocresía <strong>de</strong> Aires se suma el cinismocomo elemento <strong>de</strong> comicidad:“Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, <strong>de</strong>scompõem orosto à gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspectoabominável. Se lucrasse alguma coisa, vá; mas não lucrando nada, preferiaficar em paz com Deus e os homens.” (149)Este “conselheiro diplomático”, ambiguo, con su “jeito <strong>de</strong> dos sexos”, queno aconseja a nadie por no comprometer su bienestar y, aun así, logra reputación<strong>de</strong> buen consejero <strong>de</strong> almas, produce una escritura igual a sí mismo. Unaescritura que gana en eficacia crítica mientras más liviana, más ligera, más tornadizase hace por el toque <strong>de</strong> esse Aires que la agita, capaz <strong>de</strong> “dar vuelta” a cualquierprincipio en un santiamén, como a la tabuleta <strong>de</strong> Custodio. De ahí queen Esaú e Jacó aparezca <strong>de</strong>sconcertante la tolerancia <strong>de</strong> Aires para con sus interlocutores,en comparación con las feroces ridiculizaciones <strong>de</strong> los matrimoniosSantos y Batista. D. Claudia convenciendo al marido: “Batista, você nunca foiconservador!”, es una <strong>de</strong> las páginas más <strong>de</strong>sopilantes escritas por Machado.Cuando Aires, jubilado, se afinca en Río <strong>de</strong> Janeiro por elección, no se duda<strong>de</strong> que tiene “particular amor à sua terra”. Pero “nao atribuía a esta tantas calamida<strong>de</strong>s”(en apariencia, al contrario <strong>de</strong>l anterior M. <strong>de</strong> A., que le atribuía tantas).Sin embargo, quizá nunca Machado fue más ladino para mostrar la inmoralidadpública, como lo fue cuando presentó a Aires mintiendo al mundo exteriorsobre lo que ocurría en el Brasil:“A febre amarela, por exemplo, á força <strong>de</strong> a <strong>de</strong>smentir lá fora, per<strong>de</strong>u-lhe afé, e cá <strong>de</strong>ntro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido85


Marta Spagnuolopor aquele credo que atribui todas as moléstias a uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> nomes.Talvez porque era homem sadio.” (64)IVEm Esaú e Jacó, a ação abarca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1870 até 1895 ou 1896, aproximadamente.O Memorial começa em 9 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1888 e termina “sem data”,como uma espécie <strong>de</strong> epílogo intemporal; mas os fatos que constituem o“argumento” encerram-se em 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1889. De modo que há doisanos, 1888 e 1889, em que a ação <strong>de</strong> ambos textos se superpõe. Portanto,ambos <strong>de</strong>veriam coincidir em alguns dos fatos <strong>de</strong> Aires. Contudo, aindaque os dois romances registrem o acontecimento histórico da abolição daescravatura, em Esaú e Jacó só há algumas circunstâncias relativas a Aires – alocalização <strong>de</strong> sua casa no Catete, a relação com sua irmã Rita – que se repetemno Memorial.Segundo Esaú e Jacó, em 1888 Aires está em contato estreito com os Santos,observando o conflito entre os gêmeoseo<strong>de</strong>Flora. Segundo o Memorial<strong>de</strong> Aires, o conflito que o absorveéodocasal Aguiar. Isso po<strong>de</strong>ria explicar-seporque cada um dos “autores” está escrevendo o seu próprio romance: M. <strong>de</strong>A. sobre Aires e sob sua influência, mas inserindo-o em Esaú e Jacó segundoconvenha ao assunto e à trama do romance que inventa, e Aires sobre si mesmo.Mas há outras incoerências referentes ao aspecto, ao estado <strong>de</strong> ânimo e<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, a dados pessoais <strong>de</strong> Aires que não admitem essa interpretação, jáque Machado “conhece” bem o seu duplo. Por exemplo, as atitu<strong>de</strong>s do Aires“cordato” <strong>de</strong> Esaú e Jacó são explicadas por Aires em seu Memorial <strong>de</strong> maneiramuito distinta. Cada vez que “mor<strong>de</strong> a própria língua” ou lhe dá “sete voltas”,é por uma “virtu<strong>de</strong>”: a discrição.E que ida<strong>de</strong> tem Aires em 1888? Segundo Esaú e Jacó, 56 ou 58 anos. 2 Segundoele mesmo anota no Memorial em 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1888, tem 62. SegundoRita, não os aparenta: tem o “frescor dos trinta”. Uma das sete criaturasque encontra pela rua no dia 9 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1888, uma menina, ao vê-lo rir,86


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimopor aquele credo que atribui todas as moléstias a uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> nome.Talvez porque era homem sadio.” (64)IVEn Esaú e Jacó, la acción abarca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1870 hasta 1895 o 1896, aproximadamente.El Memorial comienza el 9 <strong>de</strong> enero <strong>de</strong> 1888 y termina “sin fecha”, conuna especie <strong>de</strong> epílogo intemporal; pero los hechos que constituyen el “argumento”se cierran el 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1889. De modo que hay dos años, 1888 y1889, en que la acción <strong>de</strong> ambos textos se superpone. Por lo tanto, ambos <strong>de</strong>beríancoincidir en algunos <strong>de</strong> los hechos <strong>de</strong> Aires. Sin embargo, aunque lasdos novelas registran el acontecimiento histórico <strong>de</strong> la abolición <strong>de</strong> la esclavitud,en Esaú e Jacó sólo hay algunas circunstancias relativas a Aires –la ubicación<strong>de</strong> su casa en el Catete, la relación con su hermana Rita– que se repiten en elMemorial.Según Esaú e Jacó, en 1888 Aires está en estrecho trato con los Santos, observandoel conflicto entre los gemelos y el <strong>de</strong> Flora. Según Memorial <strong>de</strong> Aires,el conflicto que lo absorbe es el <strong>de</strong>l matrimonio Aguiar. Lo cual podría explicarseporque cada uno <strong>de</strong> los “autores” está escribiendo lo suyo: M. <strong>de</strong> A.sobre Aires y bajo su influencia, pero insertándolo en Esaú e Jacó según convengaal asuntoyalatrama <strong>de</strong> la novela que inventa, y Aires sobre sí mismo.Pero hay otras incoherencias referidas al aspecto, al estado <strong>de</strong> ánimo y <strong>de</strong> salud,a datos personales <strong>de</strong> Aires que no admiten esa interpretación, ya queMachado “conoce bien” a su doble. Por ejemplo, las actitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l Aires“cordato” <strong>de</strong> Esaú e Jacó son explicadas por Aires en su Memorial <strong>de</strong> maneramuy distinta. Cada vez que “se muer<strong>de</strong> la lengua” o se la ata siete veces, espor una “virtud”: la discreción.¿Y que edad tiene Aires en 1888? Según Esaú e Jacó, 56 o 58 años. 2 Según élmismo anota en el Memorial el 10 <strong>de</strong> enero <strong>de</strong> 1888, tiene 62. Según Rita, nolos aparenta: tiene el “frescor <strong>de</strong> los treinta”. Una <strong>de</strong> las siete criaturas queencuentra por la calle el 9 <strong>de</strong> septiembre <strong>de</strong> 1888, una niña, al verlo reír, les87


Marta Spagnuolodiz a suas companheiras: “– Olha aquele moço que está rindo para nós.” Airesreflete:“Esta palavra me mostrou o que são olhos <strong>de</strong> crianças. A mim, com estesbigo<strong>de</strong>s brancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmentedão este nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.”Logo em seguida, como em um passe <strong>de</strong> mágica, as sete criaturas alegres<strong>de</strong>saparecem, e vêm outras, sozinhas ou <strong>de</strong> duas a duas, “que carregavamtrouxas ou cestas, que lhes pesavam à cabeça ou às costas, começando a trabalhar,ao tempo em que outras não acabavam ainda <strong>de</strong> rir”. Aires se pergunta:“Dar-se-á que a não ter carregado nada na meninice <strong>de</strong>vo eu o aspecto <strong>de</strong>‘moço’ que as primeiras me acharam agora?” E, como temendo a direção doraciocínio, muda o rumo:“Não, não foi isso. A ida<strong>de</strong> dá o mesmo aspecto às coisas; a infânciavê naturalmente ver<strong>de</strong>. Também estas, se eu risse, achariam que “aquelemoço ria para elas”, mas eu ia sério, pensando, acaso doendo-me <strong>de</strong> assentir cansadas; elas, não vendo que os meus cabelos brancos <strong>de</strong>viamter-lhes o aspecto <strong>de</strong> pretos, não diziam coisa nenhuma, foram andandoe eu também.”Mas logo se comprova que os meninos infortunados não po<strong>de</strong>m ver “naturalmentever<strong>de</strong>” ainda que se sorria a eles. O verdor absoluto da infância sóocorre em sonhos. Já em sua casa, Aires se <strong>de</strong>ita um instante antes <strong>de</strong> comer:“Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todasas crianças <strong>de</strong>ste mundo, com carga ou sem ela, faziam um gran<strong>de</strong> círculoem volta <strong>de</strong> mim, e dançavam uma dança tão alegre que quase estourei <strong>de</strong>riso. Todas falavam “<strong>de</strong>ste moço que ria tanto’.”88


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimodice a sus compañeras: “– Olha aquele moço que está rindo para nós.” Airesreflexiona:“Esta palavra me mostrou o que são olhos <strong>de</strong> crianças. A mim, com estes bigo<strong>de</strong>sbrancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente dãoeste nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.”Luego, como en un pase <strong>de</strong> magia, las siete criaturas alegres <strong>de</strong>saparecen, yvienen otras, solas o en grupos <strong>de</strong> a dos, “que carregavam trouxas ou cestas,que lhes pesavam à cabeça ou às costas, começando a trabalhar, ao tempo emque as outras não acabavam ainda <strong>de</strong> rir.” Aires se pregunta: “Dar-se-á que anão ter carregado nada na meninice <strong>de</strong>vo eu o aspecto <strong>de</strong> ‘moço’ que as primeirasme acharam agora?” Y, como temiendo la dirección <strong>de</strong>l raciocinio, cambiael rumbo:“Não, não foi isso. A ida<strong>de</strong> dá o mesmo aspecto às coisas; a infância vênaturalmente ver<strong>de</strong>. Também estas, se eu risse, achariam que “aquelemoço ria para elas”, mas eu ia sério, pensando, acaso doendo-me <strong>de</strong> assentir cansadas; elas, não vendo que os meus cabelos brancos <strong>de</strong>viamter-lhes o aspecto <strong>de</strong> pretos, não diziam coisa nenhuma, foram andandoe eu também.”Pero pronto se comprueba que los niños <strong>de</strong>sgraciados no pue<strong>de</strong>n ver “naturalmentever<strong>de</strong>” aunque se les sonría. El verdor absoluto <strong>de</strong> la niñez sólo ocurreen sueños. Ya en su casa, Aires se acuesta un rato antes <strong>de</strong> comer:“Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todasas crianças <strong>de</strong>ste mundo, com carga ou sem ela, faziam um gran<strong>de</strong> círculoem volta <strong>de</strong> mim, e dançavam uma dança tão alegre que quase estourei <strong>de</strong>riso. Todas falavam ‘<strong>de</strong>ste moço que ria tanto’.”89


Marta SpagnuoloEntão, qual é a verda<strong>de</strong>ira ida<strong>de</strong> e o verda<strong>de</strong>iro aspecto <strong>de</strong> Aires? São aresditosos ou infortunados os que se respiram e <strong>de</strong>terminam a visão <strong>de</strong> Aires?Quem ou o que é Aires? É realmente uma “pessoa”?Uma pessoa não po<strong>de</strong> ser ubíqua. Em Esaú e Jacó, em 21<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1888, àsduas da tar<strong>de</strong>, Nativida<strong>de</strong> sobe em um bon<strong>de</strong>. “No Catete, alguém entrou <strong>de</strong> salto,sem fazer parar o veículo” (71-72). Quem “voa” com tão pasmosa agilida<strong>de</strong>é o mesmo Aires que no Memorial se queixa <strong>de</strong> um joelho doente <strong>de</strong> reumatismo.Ali, ela lhe pe<strong>de</strong> ajuda para temperar a rivalida<strong>de</strong> entre os gêmeos. Em sucessivoscapítulos, ao <strong>de</strong>scer do bon<strong>de</strong>, Aires segue pela Rua da Carioca e presencia o episódiodo “gatuno”. Ao <strong>de</strong>scer pela Rua 7 <strong>de</strong> Setembro, lembra-se <strong>de</strong> Carmem, asevilhana que amou em Caracas. Distrai-o o episódio do cocheiro que bate noburro para que se mova e <strong>de</strong>ixe passar um carro. Um dia bastante ameno.Segundo o Memorial, nesse mesmo dia 21<strong>de</strong> maio Aires estava encerrado emsua casa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia 17,“...não para <strong>de</strong>scansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvirninguém, a não ser o meu criado José. [...] Já acho mais quem me aborreçado que quem me agra<strong>de</strong>, e creio que esta proporção não é obra dos outros, esó minha exclusivamente. Velhice esfalfa.”No dia anterior Rita lhe pediu dados sobre o leiloeiro Fernan<strong>de</strong>s. Para espantaro mal-estar, Aires escreveu a Rita anunciando-lhe a falsa morte do leiloeiro. Na manhãdo dia 21<strong>de</strong> maio lê os diários e vê que o homem morreu <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Rita, sejapela carta, seja pela notícia “<strong>de</strong> hoje”, corre para ver o irmão. Conversam, comemjuntos e vêem passar o enterro <strong>de</strong> Fernan<strong>de</strong>s. Um dia <strong>de</strong> ânimo e fatos lúgubres.VOs exemplos são mais numerosos, mas estes bastam para observar que Airesé um espírito que aparece e <strong>de</strong>saparece quando Machado quer; uma espécie <strong>de</strong>90


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno ÚltimoEntonces, ¿cuál es la verda<strong>de</strong>ra edad y el verda<strong>de</strong>ro aspecto <strong>de</strong> Aires? ¿Sonlos aires dichosos o infortunados que se respiran los que <strong>de</strong>terminan la visión<strong>de</strong> Aires? ¿Quién y o qué es Aires? ¿Es realmente una “persona”?Una persona no pue<strong>de</strong> ser ubicua. En Esaú e Jacó, el 21<strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1888, a lasdos <strong>de</strong> la tar<strong>de</strong>, Nativida<strong>de</strong> sube a un tranvía. “No Catete, alguém entrou <strong>de</strong> salto,sem fazer parar o veículo” (71-72). Quien “vuela” con tan pasmosa agilidad es elmismo Aires que en el Memorial se queja <strong>de</strong> una rodilla enferma <strong>de</strong> reumatismo.Allí, ella le pi<strong>de</strong> ayuda para atemperar la rivalidad <strong>de</strong> los gemelos. En sucesivos capítulos,al bajarse <strong>de</strong>l tranvía, Aires sigue por la Rua da Carioca y presencia el episodio<strong>de</strong>l “gatuno”. Al <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r por la Rua 7 <strong>de</strong> Septembro, recuerda a Carmen,la sevillana que amó en Caracas. Lo distrae el episodio <strong>de</strong>l cochero que le pega alburro para que se mueva y <strong>de</strong>je pasar un carro. Un día bastante ameno.Según el Memorial, ese mismo 21<strong>de</strong> mayo Aires estaba encerrado en su casa<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el 17,“...não para <strong>de</strong>scansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvirninguém, a não ser o meu criado José. [...] Já acho mais quem me aborreçado que quem me agra<strong>de</strong>, e creio que esta proporção não é obra dos outros, esó minha exclusivamente. Velhice esfalfa.”El día anterior Rita le pidió datos sobre el rematador Fernan<strong>de</strong>s. Para sacudirsela molestia, Aires le escribió a Rita anunciándole la falsa muerte <strong>de</strong>l rematador.En la mañana <strong>de</strong>l 21<strong>de</strong> mayo lee los diarios y ve que el hombre hamuerto <strong>de</strong> verdad. Rita, sea por la carta, sea por la noticia “<strong>de</strong> hoy”, corre a veral hermano. Conversan, comen juntos y ven pasar el entierro <strong>de</strong> Fernan<strong>de</strong>s. Undía <strong>de</strong> ánimo y hechos lúgubres.VLos ejemplos son más, pero estos bastan para observar que Aires es un espírituque aparece y <strong>de</strong>saparece cuando Machado lo quiere; una especie <strong>de</strong> Ariel a91


Marta SpagnuoloAriel a seu serviço, intemporal como a flor eterna que leva na botoeira. Pois ascontradições não são, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, “distrações” <strong>de</strong> Machado. É sua forma calculada<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir a ilusão <strong>de</strong> “realida<strong>de</strong>” do duplo. Como se vê, uma volta noparafuso <strong>de</strong> incrível audácia, tanto em relação ao tema do duplo como em relaçãoà tradição do relato enquadrado sob a forma <strong>de</strong> um escrito “achado”. Essemétodo construtivo serviu sempre para dar maior verossimilhança ao narrado.Que faz Machado com essa tradição? Dá falsos indícios <strong>de</strong> havê-la usado emEsaú e Jacó e a usa no Memorial <strong>de</strong> Aires. Mas a <strong>de</strong>strói nos dois romances lidoscomo um todo. Ou seja, em lugar <strong>de</strong> acentuar a verossimilhança, acentua o caráterfictício da obra literária. E, com total consciência <strong>de</strong> sua superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>bruxo, nos lança na cara o seu po<strong>de</strong>r: eu sou o que soprou a vida a esta criatura<strong>de</strong> ar, na qual vocês acreditaram. José da Costa Marcon<strong>de</strong>s Aires, esse Aires,jamais“narrou” nada, nem Esaú e Jacó nem o Memorial <strong>de</strong> Aires. Eu, o Con<strong>de</strong> daCosta, sou o Próspero que governa o Mar e os Ares <strong>de</strong>sta baía tão amada e <strong>de</strong>testada.Eu, Joaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis.Notas1. Os sublinhados das citações <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis são meus, salvo aquelescomo Último e Memorial na “Advertência” a Esaú e Jacó e as expressões que, notexto do romance, foram sublinhadas pelo autor. Quanto às referências ao número<strong>de</strong> página, darei as da edição impressa <strong>de</strong> Esaú e Jacó, já que do Memorial <strong>de</strong>Aires só tenho acesso a edições digitais. Dessas, cotejei duas, a da BibliotecaVirtual do Estudante Brasileiro e a <strong>de</strong> Cypedia. Cito pela segunda, pois a primeiranão inclui a “Advertência”.2. Quando Nativida<strong>de</strong> consulta a cabocla do Castelo, lhe diz que os gêmeos“nasceram há pouco mais <strong>de</strong> um ano”. (I, 17). Nasceram em 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong>1870. (VIII, 29). De modo que a consulta se realizou pouco <strong>de</strong>pois do dia 7<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1871. No mesmo dia em que visitou a cabocla, Nativida<strong>de</strong> o confessaa Santos (X, 34). “No primeiro domingo” Santos vai consultar Plácido;na reunião está Aires (XIV, 39). Num dia in<strong>de</strong>terminado, mas antes <strong>de</strong>ssa reu-92


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimosu servicio, intemporal como la flor eterna que lleva en el ojal. Pues las contradiccionesno son, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego, “distracciones” <strong>de</strong> Machado. Es su forma calculada<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir la ilusión <strong>de</strong> “realidad” <strong>de</strong>l doble. Como se ve, una vuelta <strong>de</strong>tuerca <strong>de</strong> increíble audacia, tanto al tema <strong>de</strong>l doble como a la tradición <strong>de</strong>l relatoenmarcado bajo la forma <strong>de</strong> un escrito “hallado”. Ese método constructivoha servido siempre para dar mayor verosimilitud a lo narrado. ¿Qué haceMachado con esa tradición? Da falsos indicios <strong>de</strong> haberla usado en Esaú e Jacó yla usa en Memorial <strong>de</strong> Aires. Pero la <strong>de</strong>struye en las dos novelas leídas como untodo. O sea, en lugar <strong>de</strong> acentuar la verosimilitud, acentúa el carácter ficticio<strong>de</strong> la obra literaria. Y, con total conciencia <strong>de</strong> su superioridad <strong>de</strong> brujo, nos arrojaa la cara su po<strong>de</strong>r: yo soy el que sopló la vida a esta criatura <strong>de</strong> aire, en laque uste<strong>de</strong>s creyeron. José da Costa Marcon<strong>de</strong>s Aires, esse Aires, jamás “narró”nada, ni Esaú e Jacó ni el Memorial <strong>de</strong> Aires. Yo, el Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Costa, soy el Prósperoque gobierna el Mar y los Aires <strong>de</strong> esta bahía tan amada y <strong>de</strong>testada. Yo,Joaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis.Notas1. Los subrayados <strong>de</strong> las citas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis son míos, salvo aquelloscomo Último y Memorial en la “Advertência” a Esaú e Jacó y las expresiones que,en el texto <strong>de</strong> la novela, fueron subrayadas por el autor. En cuanto a las referenciasal número <strong>de</strong> página, daré las <strong>de</strong> la edición impresa <strong>de</strong> Esaú e Jacó, ya que <strong>de</strong>Memorial <strong>de</strong> Aires sólo tengo acceso a ediciones digitales. De ellas cotejé dos, la<strong>de</strong> A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro y la <strong>de</strong> Cypedia. Cito por la segunda,pues la primera no incluye la “Advertência”.2. Cuando Nativida<strong>de</strong> consulta a la cabocla do Castelo, le dice que los gemelos“nasceram há pouco mais <strong>de</strong> um ano” (I, 17). Nacieron el 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong>1870 (VIII, 29). De modo que la consulta se realizó poco <strong>de</strong>spués <strong>de</strong>l 7 <strong>de</strong>abril <strong>de</strong> 1871. El mismo día que visitó a la cabocla, Nativida<strong>de</strong> se lo confiesa aSantos (X, 34). “No primeiro domingo” Santos va a consultar a Plácido; en lareunión está Aires (XIV, 39). En un día in<strong>de</strong>terminado, pero antes <strong>de</strong> esa reu-93


Marta Spagnuolonião, esse Aires aparece em casa dos Santos. Nesse momento – abril ou maio –tem “quarenta anos, ou quarenta e dois” (XII, 36). Portanto, no começo <strong>de</strong>1888 terá 56 ou 58, já que a data <strong>de</strong> seu aniversário, segundo o Memorial, é dia17 <strong>de</strong> outubro.ReferênciasMachado <strong>de</strong> Assis. Esaú e Jacó. Editora Ática. Série Bom Livro. São Paulo: 2005.____. Memorial <strong>de</strong> Aires. Cipedya. Biblioteca Digital Aberta.http:// www.cipedya.com/doc/10184194


Aires, autor apócrifo <strong>de</strong>l cua<strong>de</strong>rno Últimonión, esse Aires aparece en casa <strong>de</strong> los Santos. En ese momento –abril o mayo– tiene“quarentaanos, o quarenta e dois” (XII, 36). Por lo tanto, a principios <strong>de</strong>1888 tendrá 56 ou 58, ya que la fecha <strong>de</strong> su cumpleaños, según el Memorial, esel 17 <strong>de</strong> ocubre.ReferenciasMachado <strong>de</strong> Assis. Esaú e Jacó. Editora Ática. Série Bom Livro. São Paulo: 2005____. Memorial <strong>de</strong> Aires. Cipedya. Biblioteca Digital Aberta.http:// www.cipedya.com/doc/10184195


<strong>Prosa</strong>Esaú e Jacó: estruturaexemplar <strong>de</strong> MachadoAffonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna“O leitor atento, verda<strong>de</strong>iramente ruminante, tem quatro estômagosno cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, atéque <strong>de</strong>duz a verda<strong>de</strong>, que estava, ou parecia estar escondida.” IntroduçãoMACHADO DE ASSISA análise estrutural tem uma contribuição a dar para o entendimentoe uma melhor visualização das estruturas da obra <strong>de</strong> Machado.Muita tolice se disse sobre este método <strong>de</strong> análise e outras tantastolices foram praticadas em seu nome nos anos 60 e 70. No entanto,quando praticada pertinentemente, ela converte os <strong>de</strong>vaneiosda leitura, as confusas impressões e o indizível encantamento inconscienteque a obra provoca em algo concreto que presentificaos mecanismos em movimento <strong>de</strong>ntro do texto. No livro AnáliseEstrutural <strong>de</strong> Romances Brasileiros (Vozes/Ática), analisei alguns dosAffonsoRomano <strong>de</strong>Sant’Anna (BeloHorizonte MG,1937) formou-sebacharel em<strong>Letras</strong>Neolatinas naFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Filosofia daUFMG, em1962. Em 1964,tornou-se doutorem Literatura<strong>Brasileira</strong> pelaUFMG.É escritor, críticoliterário, poeta,professoruniversitário.97


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annaromances fundamentais da literatura brasileira, mostrando como eles ganhamoutro fascínio através <strong>de</strong>sse método <strong>de</strong> leitura. Lá <strong>de</strong>senvolvia a teoria<strong>de</strong> “narrativas <strong>de</strong> estrutura simples” e “narrativas <strong>de</strong> estrutura complexa”,indo <strong>de</strong> O Guarani <strong>de</strong> Alencar à Clarice Lispector.Nesse texto crítico que aqui retomo <strong>de</strong>monstro <strong>de</strong> que maneira a estrutura<strong>de</strong> Esaú e Jacó (l904) exemplifica um mecanismo existente no resto da obra <strong>de</strong>Machado. É como se tomássemos um microcosmo para mostrar o que estápresente também no macrocosmo. Através <strong>de</strong>sta análise se perceberá mais claramenteo sistema machadiano presente tanto nos seus contos quanto emqualquer dos seus romances.Este trabalho se <strong>de</strong>sdobrará a partir das seguintes observações:a) Esaú e Jacó apresenta características <strong>de</strong> narrativa <strong>de</strong> estrutura complexa ecomo tal sua compreensão só se dá <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> isolarmos os suportes míticose históricos que se cruzam na estória. Machado se afasta do mito eda História (no caso, a História do Brasil), para centrar-se na problemáticada escrita. Este livro, assim como Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas(1881), converte-se na narrativa <strong>de</strong> como o livro está sendo escrito.b) É fundamental o enfoque do método <strong>de</strong> composição utilizado pelo narradore que aparece referenciado <strong>de</strong> modo implícito e explícito. Essaanálise visa a confrontar o enunciado e a enunciação, mostrando que ométodo machadiano afasta-se da simplicida<strong>de</strong>, que opõe conjuntos simétricos,para se exercitar na complexida<strong>de</strong>, que implica uma visãotransformacional dos elementos em jogo. A problemática do lúdico eadonada se imbricam na problemática da escrita.c) Essa análise torna-se mais evi<strong>de</strong>nte quando compreen<strong>de</strong>mos os três níveis<strong>de</strong> transcorrência da narrativa: narração, personagens, língua (gem). Atravessamessas três camadas alguns mo<strong>de</strong>los que são repetidamente operacionalizados.O caráter transformacional <strong>de</strong>sses mo<strong>de</strong>los e sua crescentecomplexida<strong>de</strong> ilustram-se através dos personagens Pedro/Paulo, Flora,Conselheiro Aires. Didaticamente esses mo<strong>de</strong>los aparecem sob os no-98


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadomes <strong>de</strong> duplicida<strong>de</strong> (A X B), alternância (A ou B) e integração (A e B). O estudoencaminha-se para uma compreensão da obra além da língua edoestilo,mas como uma manifestação <strong>de</strong> língua(gem),Isto posto, façamos a análise transcorrer pelos três níveis que divisamospara facilitar a apreensão da estrutura da narrativa. Nível da narraçãoEnquanto numa narrativa <strong>de</strong> estrutura simples como O Guarani, <strong>de</strong> José <strong>de</strong>Alencar, a análise nos mostra que a estrutura ten<strong>de</strong> a repousar sobre o mítico eo i<strong>de</strong>ológico numa reduplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los muito comuns no romance-folhetim,em Esaú e Jacó parece ocorrer um <strong>de</strong>scentramento daqueles apoiosem favor <strong>de</strong> uma composição baseada sobre a própria escrita. Isto equivale adizer que os referentes <strong>de</strong>sse romance não <strong>de</strong>vem ser buscados exteriormente,mas localizados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua própria textura. O suporte mítico-i<strong>de</strong>ológicoque aí existe é apenas aspectual, sem subir nunca à estrutura do livro.Examinemos inicialmente o suporte mítico. Teríamos aí duas fontes mitológicas:uma <strong>de</strong> inspiração bíblico-cristã e outra clássico-pagã. Na primeira(bíblico-cristã) encontramos o título do livro referenciando a estória dos filhos<strong>de</strong> Isaac. A construção da estória bíblica, no entanto, é bem diversa da estóriamachadiana. Enquanto na Bíblia os irmãos se separam <strong>de</strong>pois que Jacóusurpa o direito <strong>de</strong> progenitura <strong>de</strong> Esaú, e entre eles se <strong>de</strong>senvolve uma rivalida<strong>de</strong>por vários anos, ao final resolvida com uma reconciliação (Gênesis, cap.27 a 33), no romance <strong>de</strong> Machado a rivalida<strong>de</strong> entre os gêmeos Pedro e Paulojamais é sanada. Há pausas, mas nunca o término do conflito. E é em abertoque a estória termina, cada um seguindo sua linha numa <strong>de</strong>scrição paralela dotrajeto <strong>de</strong>sses elementos.Quanto à segunda matriz (clássico-pagã), o confronto po<strong>de</strong>ria ser estabelecidotalvez entre Pedro e Paulo e Castor e Pólux, referidos no último capítulodo livro. No entanto, ainda aí suce<strong>de</strong> uma divergência. O mito <strong>de</strong> Castor e Pó-99


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annalux (filhos <strong>de</strong> Júpiter e Leda) também difere da estória <strong>de</strong> Pedro e Paulo, poisna lenda pagã, fraternalmente, Pólux reparte com Castor a imortalida<strong>de</strong> concedidapor Júpiter, enquanto em Machado os dois irmãos seguem em sua oposiçãosistemática.É mais acertado convir que em Machado aqueles mitos exercem função aspectual.O mito <strong>de</strong> Esaú e Jacó, por exemplo, serve para introduzir a estória, aoenfatizar que a rivalida<strong>de</strong> entre Pedro e Paulo havia, como na narrativa bíblica,se iniciado no ventre da mãe. Já Castor e Pólux apenas ilustram o último capítulodo livro. Colocados os dois mitos, um no princípio e outro no fim, nãobastam, contudo, para <strong>de</strong>cidir a estrutura do livro.Como esses dois mitos, outros também são citados aqui e acolá. Há uma série<strong>de</strong> referências a figuras mitológicas bíblicas clássicas. Mas ainda que, aparecendosempre aos pares, como possíveis informadoras <strong>de</strong> uma estrutura antitética,essas figuras não po<strong>de</strong>m ser tomadas como os pilares da armação da narrativa.Por exemplo, Sibylla, compõe com David uma das dualida<strong>de</strong>s, repetindoos pólos mitológicos clássicos e bíblicos. O capítulo quinze se intitula“Teste David cum Sibylla”, aproveitando um verso do Dies irae medieval cantadonas missas dos mortos. David simboliza aí o profeta bíblico na linhagempré-cristã, e Sibylla a profetiza da antiga Roma. Na estória <strong>de</strong> Machado, oconfronto entre David e Sibylla, i<strong>de</strong>ntifica-se com a oposição Plácido/Caboclado Castelo. Quer o narrador dizer que tanto o oráculo bíblico quanto o pagão,tanto a cartomante quanto o espírita <strong>de</strong> classe média confluem através damesma profecia, no caso, o futuro dos gêmeos.Não se organizando no nível mítico, po<strong>de</strong>ria essa estória encontrar seus mo<strong>de</strong>losna i<strong>de</strong>ologia ou, mais precisamente, na História do Brasil, anotada insistentementeem contrapontos <strong>de</strong>ntro do livro? Há uma certa tentaçãopara se comprovar o paralelo entre a estória <strong>de</strong> Pedro e Paulo e a Históriareferida através do conflito República versus Monarquia. Se esse fosse o caminhoescolhido, o analista, inicialmente, sentiria uma inclinação para aceitarcomo índice a mania <strong>de</strong> D. Cláudia em marcar a vida através <strong>de</strong> referênciasa datas políticas (cap. 31). Assim po<strong>de</strong>ria se conseguir um paralelo en-100


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadotre a maneira <strong>de</strong> a personagem marcar a sua vida ea<strong>de</strong>oautor construir oseu romance.Com efeito, o pai dos gêmeos vem para o Rio por ocasião da “febre dasações” (1855): os gêmeos nascem a 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1870 – aniversário da queda<strong>de</strong> Pedro I e/ou subida <strong>de</strong> Pedro II; o marido <strong>de</strong> Perpétua morre na Guerra doParaguai (1864-1870); Santos encontra-se com a mulher (Perpétua) pensandona Lei Rio Branco (28/9/1871); Flora nasceu em agosto <strong>de</strong> 1871 duranteo Ministério Rio Branco e no Ministério Sinimby (1878) já sabia ler e escrevercorretamente; os gêmeos se i<strong>de</strong>ntificam com as correntes políticas do sistema– o liberalismo e o conservadorismo –, chegando a ser eleitos <strong>de</strong>putados; opróprio marido <strong>de</strong> D. Cláudia, Batista, se interessava por política a ponto <strong>de</strong> onarrador assinalar que “nele a política era menos uma opinião do que uma sarna”(cap. 78); no capítulo 36 discute-se a abolição da escravatura marcando-sea posição antitética dos gêmeos; capítulos inteiros são reservados a discussõesentre conservadores e liberais, republicanos e monarquistas (cap. 47); o próprioepisódio da tabuleta, que começa no capítulo 49, continua no 63, e seuaparente interesse é contar a passagem da Monarquia à República através <strong>de</strong>um inci<strong>de</strong>nte particularizador da História; a véspera da Proclamação da Repúblicaé referida como a “Noite <strong>de</strong> 14”, e <strong>de</strong>screve-se o célebre baile da Ilha Fiscal– último baile da corte <strong>de</strong> Pedro II; ainda outra vez a figura <strong>de</strong> Flora é aproximadasimbolicamente da situação política do país no capítulo “Três Constituições”,sugerindo-se que ela era uma espécie <strong>de</strong> terceiro estatuto entre oImpério (Pedro) e a República (Paulo).À primeira vista parece haver elementos suficientes que nos conduzem a paralelizarestória & História. No entanto, por mais que se levantem dados quantitativamentesugestivos, essa hipótese parece não se sustentar. O capítulo 107,por exemplo, marca a diferença entre uma e outra, advertindo contra a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> se aproximar o sentido da morte <strong>de</strong> Flora da morte (temporária) daRepública <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Sítio assinado pelo Marechal Floriano:“Ao cabo <strong>de</strong> 72 horas, todas as liberda<strong>de</strong>s seriam restauradas, menos a<strong>de</strong> reviver. Quem morreu morreu. Era o caso <strong>de</strong> Flora”. É evi<strong>de</strong>nte aí a insinua-101


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annação <strong>de</strong> que a figura <strong>de</strong> Flora não se <strong>de</strong>ixa explicar apenas pelos fatos políticos ejornalísticos. No capítulo 79 é o próprio narrador que adverte, à margem daestória, que o caráter <strong>de</strong> Flora não podia ter sua explicação somente “na variaçãopolítica da mãe <strong>de</strong> Flora”, e no capítulo 90 Aires pon<strong>de</strong>ra que “a moça nãoera como a República, que um podia <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e outro atacar; cumpria ganhá-laou perdê-la <strong>de</strong> vez”.Duas maneiras ainda existem <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que a insistência nos dados políticosnão alcança a estrutura do livro. Primeiro, é a operacionalização <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>losque pela sua formalização expressem mais objetivamente o mecanismosustentador da obra. Tais mo<strong>de</strong>los serão <strong>de</strong>senvolvidos mais adiante.Em segundo lugar, uma <strong>de</strong>monstração mais acurada do caráter não homólogoentre História & estória viria do estudo <strong>de</strong> algumas variantes na obra geral dopróprio Machado. É comum aí o fato <strong>de</strong> que a História, embora presente, importa-lhesobretudo por aquilo que não é superficial. Sua narrativa cava maisfundo. Ele não conta uma estória para ilustrar <strong>de</strong> novo um mito já existente,como era usual no Romantismo. Nem se interessa em compor uma obra realistaenquanto o Realismo se <strong>de</strong>fine como <strong>de</strong>scrição e fotografia <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> sociale histórica. É exatamente na medida em que se afasta <strong>de</strong> tal “realismo” externopara montar a coerência interna do texto que ele se aproxima mais <strong>de</strong> um caráteralegórico, contando uma parábola individualizadora e originalmente formulada.Se fosse narrativa mítica e i<strong>de</strong>ológica, ela se <strong>de</strong>ixaria centrar em referentesexternos, seria ilustração <strong>de</strong> uma fábula já narrada. Tome-se aquilo que seconvencionou chamar <strong>de</strong> romance histórico, seja As Minas <strong>de</strong> Prata, <strong>de</strong> Alencar,seja Ivanhoé, <strong>de</strong> Walter Scott. O caráter sobre<strong>de</strong>terminante dos referentes i<strong>de</strong>ológicosexplicita a simplicida<strong>de</strong> simétrica daquelas narrativas. Elas reduplicam umamensagem e cumprem um roteiro estabelecido fora <strong>de</strong>las.Em Machado o texto concebido é um texto fictício e não o texto da realida<strong>de</strong>i<strong>de</strong>ológica codificada pela História. Daí se po<strong>de</strong>r dizer que o mítico (aindaque escasso) e o histórico (ainda que insistente) em Esaú e Jacó se pren<strong>de</strong>m àárea do significado, do esteio exterior apenas aspectual, e que a compreensãoda obra <strong>de</strong>ve ser mais fundamente buscada no significante, naquilo que o in-102


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadoconsciente foi largando aqui e ali em seu alargamento e na expansão do imaginário.Aí o significado (História, Psicologia, Metafísica, Geografia e todas as<strong>de</strong>mais matérias do currículo) é elemento necessário, mas apenas conjuntural enão estrutural. Aqueles referentes existem, mas não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m a narrativa, que se<strong>de</strong>svia <strong>de</strong>les sem se <strong>de</strong>ixar enredar. Eles fazem parte do universo <strong>de</strong> composiçãoda obra, mas não exaurem sua compreensão. Há que convir, com o próprioMachado, que “todo oráculo tem o falar dobrado”. Ou seja: toda narrativa carecedo significado e do significante para se estabelecer como signo. O significado,no entanto, ten<strong>de</strong> sempre a ser aquilo que está in praesentia, aquilo quecorre na superfície da narrativa, enquanto o significante se articula in absentia.Fazer emergir a ausência da presença inicial é a tarefa do analista. Claro que taltarefa não é impune. O analista corre o risco <strong>de</strong> expor os coelhos e baralhosque trazia escondidos na casaca antes do espetáculo e aí ele po<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r entreo brilho do mágico e do prestidigitador.A questão da estrutura <strong>de</strong>ssa obra e <strong>de</strong> seus mo<strong>de</strong>los básicos se confun<strong>de</strong>com dois problemas que po<strong>de</strong>m ser anotados aqui introdutoriamente: a problemáticada verossimilhança e o método <strong>de</strong> composição do livro. Quanto àverossimilhança seria aconselhável rever essa bibliografia mais recente que retomaa problemática da mímesis e da verossimilhança <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Aristóteles e Platãoaté os estruturalistas da École <strong>de</strong> Hautes Étu<strong>de</strong>s em Paris. 1 Feita aquela leitura,seria mais fácil enten<strong>de</strong>r que há em Esaú e Jacó, e <strong>de</strong> uma maneira geral nosoutros textos machadianos, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um conceito <strong>de</strong> verossimilhançaque se <strong>de</strong>spreocupa <strong>de</strong> conferir os personagens com a realida<strong>de</strong> exterior.A verossimilhança aí parece ser buscada nos elementos internos da obra, reafirmandoque, se algum realismo existe em Machado, ele é sistêmico e não referencial2 , e <strong>de</strong>ve ser compreendido a partir do problema da constituição da escritacomo centro <strong>de</strong> si mesma.1 Ver a seleção Literatura e Semiologia, Petrópolis, Vozes, 1971, reunindo artigos extraídos da revistaCommunications.2 Ver artigo “Realismo referencial e realismo sistêmico”, <strong>de</strong> Luiz Costa Lima, em Ca<strong>de</strong>rnos da PUC,n. o 6, 1971.103


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaQuer dizer: a explicação ou compreensão do mecanismo <strong>de</strong> construçãodo livro <strong>de</strong>ve ser buscado no próprio livro, nos índices que o autor fornece,porque ele está criando uma realida<strong>de</strong> que, sendo em muitos pontos autônoma,chega até a se <strong>de</strong>sinteressar da lógica e dos preceitos comumente utilizadospelas narrativas <strong>de</strong> estrutura simples, que procuram conferir o quese narra com o que está narrado no mito e na i<strong>de</strong>ologia, seus referentes-base.Disso tratamos em outras passagens <strong>de</strong>sta análise, ao recordarmoso papel sobre<strong>de</strong>terminante da enunciação ao focalizarmos a construção lúdicado romance.O problema da verossimilhança interna está vinculado à explícita questãoda técnica <strong>de</strong> construção do livro. A escrita que se procura a si mesma, tematizandosua própria feitura, exemplifica-se já na “Advertência” que o narradorcoloca na abertura da estória. Já aí sabemos que estamos diante <strong>de</strong> dois narradores.Machado consi<strong>de</strong>ra que o texto apresentado é uma utilização do últimodos manuscritos <strong>de</strong>ixados pelo Conselheiro Aires. O efeito <strong>de</strong> imaginar umaescrita sobre a qual se comporia o romance não é uma novida<strong>de</strong> nem mesmoem Machado. No entanto, reforça a série <strong>de</strong> efeitos que ele obtém. Estamos diante<strong>de</strong> um romance que se preten<strong>de</strong> a leitura fingida <strong>de</strong> um manuscrito.Como, no entanto, sabemos que o manuscrito é imaginado por Machado, melhortalvez fosse dizer que temos não apenas dois narradores, mas duas escritassuperpostas. A constituição do narrador 1e do narrador 2 tem por objetivoproce<strong>de</strong>r a um distanciamento na própria matéria narrada. Instauram-se, pelomenos, dois planos narrativos: na escrita fingida (Conselheiro Aires) flui a estóriados gêmeos, suas relações familiares e sentimentais, os envolvimentos políticos;na escrita real (Machado) articulam-se a montagem da estória, as anotaçõescríticas sobre o imaginado texto <strong>de</strong> Aires, o aprofundamento <strong>de</strong> algumasobservações e até discordâncias em relação ao manuscrito. Repete-se omesmo jogo <strong>de</strong> relações que <strong>de</strong> um lado tem o enunciado (estória) e <strong>de</strong> outro aenunciação (articulação da estória), a tal ponto que se po<strong>de</strong>ria, <strong>de</strong> uma maneirasimplificada, tentar a seguinte proporção.104


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machado Aires: Machado: enunciado: enunciaçãoEvi<strong>de</strong>ntemente a figura <strong>de</strong> Aires não se <strong>de</strong>scola da <strong>de</strong> Machado, a não serpara efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> análise, do mesmo modo que nenhuma enunciaçãosubsiste sem o enunciado. A duplicida<strong>de</strong> entre esses pares <strong>de</strong> elementosé <strong>de</strong> aspecto complementar. Este contraponto entre o narrador 1e o narrador2, difícil <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar às vezes, vem <strong>de</strong>nunciado pelo próprio autor ao <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>ra figura <strong>de</strong> Aires em trechos como esse:“tal foi a conclusão <strong>de</strong> Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor,se gosta <strong>de</strong> concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho <strong>de</strong> Aires:não o obriguei a achar por si o que <strong>de</strong> outras vezes é obrigado a fazer”(cap. 55).E a seguir, continuando esse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolagem entre o enunciado e aenunciação, refere-se aos possíveis níveis <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> sua obra:“O leitor atento, verda<strong>de</strong>iramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro,e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que <strong>de</strong>duz a verda<strong>de</strong>,que estava, ou parecia estar escondida” (cap. 55).Essa figura do “leitor ruminante” coloca-se do lado do analista e do narrador2, do lado da enunciação. É o leitor crítico, e a função da escrita 2 é eminentementecrítica. Ela serve como “um par <strong>de</strong> lunetas para que o leitor do livropenetre o que for menos claro ou totalmente escuro” (cap. 13). Crítico <strong>de</strong>sua própria estória, interessado em construir e visualizar uma espécie <strong>de</strong> metalinguagemdubiamente séria e irônica, Machado em outros livros 3 brincariacom a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma outra linguagem crítica imposta aos seus livros peloscríticos oficiais.3 Ver o capítulo “A um crítico” (cap. 137) em Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas.105


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaA consciência da composição e a feitura da obra convertidas em tema retornamem outros pontos. Tomem-se os capítulos 12 e 27. No primeiro <strong>de</strong>les,introduz o paralelo entre a narrativa e o jogo <strong>de</strong> xadrez, pon<strong>de</strong>rando sobre aludicida<strong>de</strong> da composição. Todo o capítulo “A epígrafe” é <strong>de</strong>dicado a esse aspecto,e por aí já se vai <strong>de</strong>finindo a narrativa como a arte <strong>de</strong> jogar criticamenteo próprio jogo da escrita. Com efeito, a idéia <strong>de</strong> jogo, que no nível do enunciadoparece ser o jogo <strong>de</strong> damas ou <strong>de</strong> xadrez, mas que no nível da enunciação<strong>de</strong>scobre-se ser o jogo da escrita do romance, atravessa todas as camadas daobra. O lúdico é um eixo em torno do qual se articulam as mil e uma anedotasdo livro, aparentemente sem função. Mas a pouco e pouco vai-se percebendo acorrelação entre os dados antes tidos como aleatórios e começa-se a perceber aretomada daquele tópico já presente em Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas: a discussãosobre o método utilizado pelo narrador. Naquele romance ele acentuaque, a <strong>de</strong>speito da aparente confusão, é possível perceber-se o seu sistema. Aludicida<strong>de</strong> aí atinge seus extremos. Não só o autor se compraz nisto (“E vejamosagora com que <strong>de</strong>streza, com que arte faço eu a maior transição <strong>de</strong>ste livro”– cap. 9), mas clarifica ainda mais sua arte <strong>de</strong> composição:“De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem arigi<strong>de</strong>z do método (...). Que isto <strong>de</strong> método, sendo, como é, uma coisa indispensável,todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensório, mas umpouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nemdo inspetor <strong>de</strong> quarteirão” (i<strong>de</strong>m, cap. 9).Em Esaú e Jacó, advertindo ironicamente contra as interferências do leitor emsua obra (cap. 27), afirma que seu “livro está sendo escrito com método”, lembrandoo que já havia posto na “Advertência”, que sua estória está sendo “escritacom um pensamento interior e único, através <strong>de</strong> páginas diversas”.Essa questão do método, referida insistentemente em outros livros, encaminhaa análise para o seu ponto central. Ou seja: como, vencendo a rigi<strong>de</strong>z dométodo, nunca prescindindo <strong>de</strong>le, opera o narrador <strong>de</strong> tal forma que ele apare-106


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadoça apenas quando solicitado, através <strong>de</strong> uma análise interessada em transparecera estrutura da obra. É por aí que se enten<strong>de</strong>rá um jogo já <strong>de</strong>nunciado napresença <strong>de</strong> dois narradores e reafirmado mais ricamente ao <strong>de</strong>stacarmos oenunciado da enunciação, ao separarmos o mito e a i<strong>de</strong>ologia da problemáticada escrita propriamente dita.O que estivemos fazendo até agora nesta análise foi afastar aquilo que éapenas conjuntural para nos aproximarmos dos mo<strong>de</strong>los interpretativos daestrutura. A análise daqui para frente se concentrará em <strong>de</strong>monstrar a persistência<strong>de</strong> três mo<strong>de</strong>los encontradiços tanto no nível da narração quanto dospersonagens e da língua. Esses mo<strong>de</strong>los conceitualmente po<strong>de</strong>riam ser assimintroduzidos:a) A narrativa machadiana <strong>de</strong>senvolve-se sistematicamente explorando aduplicida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> oposições.b) Os elementos, apesar <strong>de</strong> opostos, não surgem <strong>de</strong> forma simétrica, secomplementando. Têm características ambíguas e bivalentes, sem quese possa prescindir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les ou se consiga separar um do outro comprecisão, pois formam um composto <strong>de</strong> elementos solidários e inseparáveis.c) À duplicida<strong>de</strong> e à ambigüida<strong>de</strong> soma-se um terceiro estágio que dá sentidoaos anteriores na medida em que conjuga e integra os elementos dosistema <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma idéia <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong>. As oposições e ambigüida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser sistemáticas para se tornarem sistêmicas.De uma maneira mais formalizante, isto equivale a dizer que três movimentoscongeminados po<strong>de</strong>m ser localizados não só nas partes mas no todo danarrativa:a) Duplicida<strong>de</strong> (A x B)b) Alternância (A ou B)c) Integração (A e B)107


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaLembrando que estamos ainda trabalhando no nível da narração, ou seja,dos gran<strong>de</strong>s planos <strong>de</strong> composição do livro, vejamos como se exemplifica a vigênciadaqueles mo<strong>de</strong>los indicadores não só da complexida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> umcomportamento especificamente machadiano. O suporte mitológico e o históricoVimos introdutoriamente que as duplas Cabocla/Plácido, David/Sibylla,Castor/Pólux não bastavam para resumir, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> suas estórias, aestrutura do livro. O que aqueles mitos contam são enredos diferentes, não obstantetenham uma montagem dual que é justamente a que aqui nos interessa ressaltar.Porque se aqueles mitos não informam a estrutura <strong>de</strong>ste romane no nível<strong>de</strong> suas estórias (conteúdo), eles reforçam, em sua diversida<strong>de</strong>, a estrutura mesmado romance, que <strong>de</strong>les se serve explorando estruturalmente a formalização <strong>de</strong>suas oposições. A dualida<strong>de</strong> persiste neles por mais diversa que seja a parelha, eeste é seu único ponto <strong>de</strong> contato com a narração machadiana, que preserva umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> puramente formal entre eles e seu texto. Mais vale dizer que põe omito a serviço <strong>de</strong> sua narrativa, ao invés <strong>de</strong> colocar a narrativa a serviço do mito,como se dá na narrativa <strong>de</strong> estrutura simples (O Guarani, por exemplo). Dos mitosele utiliza o que não é o mítico, mas aquilo que se registra no inconsciente <strong>de</strong>toda a narrativa, seus pares opositivos. O suporte que o mito dá é puramenteformal, e ele lhes extrai a dualida<strong>de</strong> que, presente em qualquer mito, transcen<strong>de</strong> omito e é possível <strong>de</strong> ser localizada em outros suportes da narrativa.Nesse mecanismo ele usa a duplicida<strong>de</strong> (A x B) na medida em que recorre aospares opositivos: Cabocla/Plácido, Castor/Pólux e outros. Utiliza-se também daambigüida<strong>de</strong> (A ou B), <strong>de</strong>ixando a estória oscilar entre seus personagens (Pedro ePaulo) e os mitos a que recorre. E termina por integrar (A e B) tudo isto a <strong>de</strong>speitodas contradições. Mas aí a contradição é dialética e integrativa, ela faz parte do sistema.Tanto o afastamento do conteúdo do mito quanto a utilização <strong>de</strong> sua formaopositiva vinculam-se ao sistema geral que possibilita a narrativa investir na suaprópria composição para instaurar sua complexida<strong>de</strong>.108


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoNão havendo i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva entre Pedro (Monarquia) e Paulo (República)nem entre Flora (República/Monarquia), como à primeira vista parece,nota-se o mesmo procedimento quanto aos suportes mitológicos. Monarquia/Repúblicaou Pedro/Paulo apenas ilustram a dualida<strong>de</strong> que o narradorcontraponteia. Tanto assim que, mesmo quando a Monarquia ce<strong>de</strong> à República,a dualida<strong>de</strong> é cavada <strong>de</strong>ntro da própria República, enfatizando que osregimes, personagens e mitos variam, mas a função permanece. O que existe édualida<strong>de</strong>, alternância e integração. Mudam-se os nomes, mas teremos a função:A x B, A ou B, A e B.Po<strong>de</strong>-se a esse respeito falar <strong>de</strong> uma autêntica teoria das funções 4 , a qual Machadonão nomeou assim tão claramente como outras suas teorias 5 , mas queaponta <strong>de</strong> vez o que estamos querendo dizer ao falar que os suportes mítico ehistórico ocorrem a <strong>de</strong>speito mesmo <strong>de</strong> serem mitos e histórias. Como a estória<strong>de</strong> Machado não visa ilustrar a História do Brasil, mas esta é que serve parailustrar a sua estória, po<strong>de</strong> o narrador, em vez <strong>de</strong> Monarquia e República, falartambém <strong>de</strong> Robespierre e Luís XVI (cap. 24), uma dupla que mantém o mesmoregime <strong>de</strong> oposição localizável na história <strong>de</strong> qualquer país. Interessadomais na função entre dois elementos A/B, Machado afasta-se do significado<strong>de</strong>les para reter-lhes a significação. Tanto faz que diga “Aut Cesar aut Nihil”, ou“César ou João Fernan<strong>de</strong>s”. A verda<strong>de</strong> é que a estrutura entre A/B é idênticaem qualquer das sentenças. Acontece, segundo a teoria das funções, que Petruspo<strong>de</strong> vir no lugar <strong>de</strong> Paulus (cap. 115), que a função é sempre a mesma e a estóriae/ou a História continuam. Mudam-se os nomes dos personagens, mas odrama se mantém. Mito e História são aproveitados na medida em que servemao jogo da escrita. César ou João Fernan<strong>de</strong>s, David ou Sibylla, o que interessa é4 É possível construir uma “teoria das funções” a partir da obra machadiana. Isto explicaria melhor oseu “relativismo” e introduziria a idéia <strong>de</strong> sistema ao mesmo tempo que mostraria o caráter<strong>de</strong>terminante da forma sobre os conteúdos. Ele busca sempre a tensão entre os elementos, a <strong>de</strong>speitodos nomes eventuais <strong>de</strong>sses mesmos elementos.5 O levantamento das muitas “teorias” que Machado expõe em suas narrativas <strong>de</strong>veria aspirar a ummo<strong>de</strong>lo que as articule e lhes dê um sentido estrutural.109


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annaa dualida<strong>de</strong>, a alternância e a integração <strong>de</strong> todos eles no movimento transformacionalda narrativa. Aí <strong>de</strong> novo <strong>de</strong>spontaria o lúdico, aquele mesmo lúdico<strong>de</strong> características tão sofisticadas quanto metafísicas, a que alu<strong>de</strong> Jacques Derridaem seu A Escritura e a Diferença. Encaixes reduplicadores <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>losAlém dos suportes míticos e históricos reagenciados por Machado, sua narrativaarticula alguns encaixes, que, tendo autonomia, funcionam como parábolasque exemplificam a duplicida<strong>de</strong>, a alternância e a integração dos elementos.Quer dizer: em vez <strong>de</strong> se ater somente a referentes externos da narrativa(mito/história) tradicionalmente aceitos, cria pequenas estorietas, anedotas eparábolas que reduplicam os mo<strong>de</strong>los centrais.Veja-se o episódio “Quando tiverem barbas” (cap. 23). Aparentemente<strong>de</strong>svinculado da estória, vincula-se à enunciação, ao <strong>de</strong>stacar o confronto entrebranco/preto, religioso/profano e ao justapor o narrador às figuras dos capuchinhoscom suas barbas brancas (antes) e negras (<strong>de</strong>pois) às barbas negras(antes) e brancas (<strong>de</strong>pois) do velho rifão.Tome-se, no entanto, como exemplo melhor <strong>de</strong>sses encaixes reduplicadoresda duplicida<strong>de</strong>, ambigüida<strong>de</strong> e integração, a parábola que é a teoria das vogais,do espírita Plácido (cap. 81). Inicialmente se <strong>de</strong>senvolve a teoria <strong>de</strong> que haveriauma correspondência exata entre as vogais e os sentidos (duplicida<strong>de</strong>). Osopositores, no entanto, rebatem afirmando que a correspondência certa é entreos sentidos e as vogais, posição antitética que estabelece claramente a oposiçãoAxB. Surge, então, uma terceira teoria, sustentada por a<strong>de</strong>ptos dissi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ambos os grupos, que formulam algo mais ambicioso (e conciliador): o homemnão é apenas a soma <strong>de</strong> cinco vogais, mas um alfabeto inteiro <strong>de</strong> sensações,o que dilata também a idéia <strong>de</strong> sentidos. Ou seja: a colocação final, saindoda discordância, acaba por abranger as colocações iniciais, uma vez que asvogais são parte do alfabeto e a teoria agora não se limita aos sentidos, mas incluitodas as sensações do homem <strong>de</strong> uma maneira integrativa. Nos três lances110


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong>sdobraram-se a duplicida<strong>de</strong>, a ambigüida<strong>de</strong> e a congeminação dos contrários,tudo englobado pelo sistema. Mo<strong>de</strong>los presentes na seqüenciaçãoNuma narrativa <strong>de</strong> estrutura simples po<strong>de</strong>-se extrair facilmente uma seqüência<strong>de</strong> oposições, todas elas significativas quanto às simetrias da estória.Esse tipo <strong>de</strong> construção eventualmente existe em Machado, mas sua narrativanão se limita a isso. Ele abandona a simplicida<strong>de</strong> da oposição vida/morte queaparece no princípio <strong>de</strong> Esaú e Jacó, por exemplo, para jogar com a duplicida<strong>de</strong>convertida em tema da composição.A tematização das antíteses transparece através da relevância que Machado dáàs oposições na distribuição dos capítulos como técnica <strong>de</strong> montagem da própriaestória. Isto faz com que os capítulos se sucedam e se complementem integrativamente.No capítulo 7, por exemplo, os personagens discutem sobre a viabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> Nativida<strong>de</strong> dar à luz ou um general ou um casal. Diversamente, o capítuloseguinte se intitula: “Nem casal nem general”, contando que Nativida<strong>de</strong>gerara dois meninos e que a estória iria, portanto, tomar outro rumo.Esse processo <strong>de</strong> negação e diferenciação mais se explicita no capítulo 48:“Ao contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu na ilha. Conjetureimal, emendo-me a tempo”. Deste modo faz crer que o que foi escrito antesseria inapagável, daí que a única solução seja a explicação. Mas não consta queEsaú e Jacó e muito menos Dom Casmurro, romance em que a estória também seautocorrige, tivessem sido romances-folhetins. Neste tipo <strong>de</strong> composição oautor tem que entregar a produção diária, restando-lhe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> correçãoapenas nos capítulos seguintes. Mesmo em casos assim, o procedimentoé diverso. No romance-folhetim, típica produção narrativa <strong>de</strong> estrutura simples,o autor, se tiver que fazer alguma modificação, a faz sempre ao nível daestória, introduzindo arranjos novos, mas se furtando a explicitar claramenteseu procedimento em comentários à margem, que informam mais a enunciaçãodo que o enunciado. Em Machado o conserto da estória é seu modo <strong>de</strong>111


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annacontar a estória. A negação ou modificação do enredo ou alteração das característicasdos personagens <strong>de</strong>monstram sua obsessão pela enunciação, seu prazerpelo bordado da narrativa, sua paixão pelo jogo.Está aí o caráter transformacional <strong>de</strong>ssa narrativa complexa, que se faz enquantose faz, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma práxis cheia <strong>de</strong> virtuosismo. O narrador po<strong>de</strong> dizerirônico e confiante: “Não, leitor, não me apanhas em contradição” ao confrontaro capítulo 74 com o 3, assinalando que a narrativa se altera porque a verda<strong>de</strong>também se altera. A verda<strong>de</strong> está em movimento, não tem centro, e a narrativa,como a verda<strong>de</strong>, vive num <strong>de</strong>slocar-se constante, recusando todos os centramentosque lhe queiramos conce<strong>de</strong>r. É para reafirmar isto que o narrador introduz asconsi<strong>de</strong>rações sobre a valida<strong>de</strong> da nota <strong>de</strong> dois mil réis ontem e hoje. Ontem elaenriqueceu o Nóbrega, mas “agora ela não subia a uma gorjeta <strong>de</strong> cocheiro”. E sea verda<strong>de</strong> transforma-se em câmbio imposto pelo jogo das relações, enten<strong>de</strong>-seque a opinião do narrador altere-se a ponto <strong>de</strong> parecer contraditória, No capítulo3 a esmola dada por Nativida<strong>de</strong> e Perpétua ao irmão das almas era creditada auma felicida<strong>de</strong> advinda <strong>de</strong> uma aventura amorosa, mas no capítulo 74 a esmola écreditada à proteção <strong>de</strong> Santa Rita <strong>de</strong> Cássia. É que as opiniões mudam, diz onarrador, e assim a sua narrativa. E são justamente essas mudanças que lhe interessafixar. Talvez mais as transformações do que os objetos <strong>de</strong>ssas transformações.Se assim não fosse, seus livros seriam o repositório <strong>de</strong> “cochilos do autor”.Mas o que Machado faz é “cochilar” <strong>de</strong> propósito e comentar porque cochilou, <strong>de</strong>tal modo que o <strong>de</strong>svio passa ser uma norma e componente necessário ao andamentoda composição. Incorporando o que parece ser um <strong>de</strong>slize, explicitandoas contradições, revela-se interessado em mostrar que, no jogo da verda<strong>de</strong>, centronão existe, pois a verda<strong>de</strong> (se existe) é função do ponto <strong>de</strong> vista do narrador. Mo<strong>de</strong>los presentes na intitulação dos capítulosA intitulação dos capítulos conduz o sistema <strong>de</strong> dualida<strong>de</strong>, alternância e integração.Em pelo menos 18 capítulos os títulos reforçam o jogo entre os contrários,ressaltando sempre o caráter transformacional (AxB, A ou B, AeB).112


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoDispensando uma análise mais pormenorizada, veja-se a permanência dos trêsmo<strong>de</strong>los nos seguintes títulos explicitadores do mecanismo:CAP.2 – Melhor <strong>de</strong>scer do que subir5 – Há contradições explicáveis8 – Nem casal nem general15 – Teste David com Sibylla19 – Apenas duas. Quarenta anos. Terceira causa24 – Robespierre e Luís XVI37 – Desacordo no acordo79 – Fusão, difusão, confusão80 – Transfusão, enfim81 – Ai, duas almas...85 – Três Constituições87 – Entre Aires e Flora93 – Não ata nem <strong>de</strong>sata94 – Gestos opostos100 – Duas cabeças105 – Ambos quais?113 – Uma Beatriz para dois118 – Coisas passadas, coisas futurasEsses títulos ganham mais importância tanto mais se percebe que a técnica <strong>de</strong>intitular em Machado é sempre informadora da enunciação e da estrutura do livro.Isto ele levou ao máximo em Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, quando um capítulotem apenas reticências no título (cap. 53) congeminando com outro (cap. 134)que é todo feito <strong>de</strong> reticências, sendo o seu conteúdo indicado apenas pelo título.Vistos esses itens a respeito da narração, consi<strong>de</strong>remos como se efetiva ojogo relacional dos personagens. De que maneira eles explicitam mais nitidamenteaqueles mo<strong>de</strong>los da dualida<strong>de</strong>, alternância e integração.113


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna Nível dos personagensPo<strong>de</strong>ríamos iniciar esta parte do estudo retomando a figura <strong>de</strong> Aires introduzidaatravés daquela proporção (Aires: enunciado; Machado: enunciação)expressa no nível da narração. Mas justamente porque Aires é uma das faces donarrador, sua figura é mais compreensível quando se analisam antes os personagens<strong>de</strong> composição mais simples.Esta parte do estudo, portanto, po<strong>de</strong>ria ser dividida em três itens que mostrama gradativa complexida<strong>de</strong> dos tipos. Essa complexida<strong>de</strong> crescente pareceacompanhar o <strong>de</strong>senvolvimento dos três mo<strong>de</strong>los, na medida em que nosaproximamos dos personagens car<strong>de</strong>ais. Ou seja:a) O mo<strong>de</strong>lo da duplicida<strong>de</strong> e oposição se exemplifica pela atuação dos gêmeosPedro & Paulo e na carreira que estabelecem, opondo-se simetricamente(A x B).b) O mo<strong>de</strong>lo da ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve-se através da figura <strong>de</strong> Flora, que,através <strong>de</strong> seu caráter <strong>de</strong> “inexplicável”, enfatiza a dubieda<strong>de</strong> entre osdois elementos antitéticos (A ou B).c) O mo<strong>de</strong>lo da integração se explicita pela atuação <strong>de</strong> Aires, que reúne aduplicida<strong>de</strong> e a ambigüida<strong>de</strong> abrangentemente como narrador (A e B).Os três mo<strong>de</strong>los se necessitam para se explicarem e revelam uma linha <strong>de</strong>simplicida<strong>de</strong> (ilustrada na oposição dos gêmeos) que acaba <strong>de</strong>rivandopara uma complexida<strong>de</strong> que tem Aires como exemplo.Introduzindo o sistema <strong>de</strong> dualida<strong>de</strong>s, no entanto, é necessário indicarcomo ela já está latente no relacionamento dos personagens menores. Nativida<strong>de</strong>e Perpétua, já a partir <strong>de</strong> seus nomes (a origem e a eternida<strong>de</strong>), mostrama dualida<strong>de</strong> entre o elemento primordial e o caráter infinito do jogo <strong>de</strong>relações. Entre os casais também há uma certa bilateralida<strong>de</strong> (Cláudia/Batista,Nativida<strong>de</strong>/Santos) apontada pela oposição entre o feminino (inteligente,dinâmico, mediador) e o masculino (inseguro, inconstante, irrealizado).A oposição continua através da figura da Cabocla do Castelo – i<strong>de</strong>ntificada114


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadocom os ritos mágicos populares – e Plácido – espírita da classe média.Ambos funcionam como oráculos que reduplicam suas funções na estóriailustrando a expressão clássica que confronta o cristão e o pagão: “Teste Davidcom Sibylla”. E ainda nessa mesma linha <strong>de</strong> personagens ancilares <strong>de</strong>staca-sea figura <strong>de</strong> Nóbrega. Aqui Machado repete um recurso comum em outroslivros: apresenta opositivamente as duas faces <strong>de</strong> um personagem e/ousituação. Lembre-se Quincas Borba: no capítulo 60, Rubião salva o meninoDeolindo da morte, no capítulo 182 é apedrejado pelo menino. O antes e o<strong>de</strong>pois revelando as antíteses do homem da narrativa. Com Nóbrega dá-sealgo estruturalmente equivalente: no princípio do livro é introduzido comoirmão das almas, esmoler. Depois transforma-se num próspero cidadão quecasa com a filha do ministro. Entre um dado e o outro, entre o anteseo<strong>de</strong>poisestá a vida e/ou narrativa com suas antíteses.Vejamos, contudo, o <strong>de</strong>senvolvimento dos mo<strong>de</strong>los a partir dos personagens<strong>de</strong> base. Pedro e PauloA dualida<strong>de</strong> básica do livro está vinculada ao <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>sses gêmeos. Filhos<strong>de</strong> Nativida<strong>de</strong> e Santos, antes <strong>de</strong> nascerem já <strong>de</strong>nunciavam uma insanávelrivalida<strong>de</strong>. O narrador se refere a uma “briga uterina dos filhos”, que, atravessandoa estória, nos últimos capítulos se converte numa “aversão recíproca, maspersistente no sangue como uma necessida<strong>de</strong> virtual” (cap. 121). Iniciando aoposição entre os dois irmãos, aparece a epígrafe – “Dico che quando l’anima malnata...,” sugerindo a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo por uma espécie <strong>de</strong> fatalismo enfatizadojá na fala do oráculo popular (Cabocla do Castelo), já na opinião do espíritaPlácido.Perfilando a oposição entre um personagem e outro, para visualizar melhoro contraponto que <strong>de</strong>screvem no livro, teremos duas colunas:115


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaPEDRORecebe como sinal distintivo umamedalha <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> São Pedro (cap. 8).Determina-se que seria médico (cap.8), oque se confirma quando entra para aescola <strong>de</strong> Medicina (cap. 35) e começa aclinicar no Rio.Pedro era mais dissimulado (cap. 18).O fato <strong>de</strong> o pai receber o título <strong>de</strong> barãoé para Pedro sinal <strong>de</strong> estima (cap 22).Nasce no aniversário do dia em queSua Majesta<strong>de</strong> Pedro II subiu ao trono(cap. 23).Passando por um vidraceiro, Pedro viupen<strong>de</strong>ndo um retrato <strong>de</strong> Luís XVI, entroue comprou-o (cap. 24).Pedro fantasia que a Praia do Botafogo,<strong>de</strong> acordo com suas idéias políticas, é uma“enseada imperial” (cap. 34).Pedro interpreta a emancipação dosescravos como um ato <strong>de</strong> justiça(cap. 37).Ao ouvir o artigo que o irmão lia paraAires, no qual atacava a figura doimperador, Pedro exclama: “Conheçotudo isto, são idéias paulistas” (cap. 44).Pedro quer extirpar o regime republicanocom um <strong>de</strong>creto (cap. 44).Aires <strong>de</strong>fine o caráter <strong>de</strong> Pedro dando-lheuma citação da Odisséia (cap. 45).Pedro acredita na restauração daMonarquia (cap. 67).Alusão <strong>de</strong> que Pedro po<strong>de</strong>ria ser oprimeiro-ministro do Império (cap. 85).PAULORecebe como sinal distintivo umamedalha <strong>de</strong> São Paulo (cap. 8).Determina-se que seria advogado, o que seconfirma quando entra para a escola <strong>de</strong>Direito e advoga em São Paulo.Paulo era mais agressivo. Paulo recebe ofato com um sentimento <strong>de</strong> inveja.Nasce no aniversário do dia em quePedro I caiu do trono.Paulo quis ter igual fortuna, a<strong>de</strong>quada àssuas opiniões, e <strong>de</strong>scobriu Robespierre.Paulo sonha com a Enseada do Botafogotransformada numa “Venezarepublicana”.Para Paulo era o início da revolução:emancipado o preto, resta emancipar obranco.Defen<strong>de</strong>ndo suas idéias contra o ataquemonarquista, Paulo diz: “Tudo são idéiascoloniais”.Paulo ainda se <strong>de</strong>clara capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>rribar aMonarquia com <strong>de</strong>z homens.Aires <strong>de</strong>fine o caráter <strong>de</strong> Paulo dando-lheuma citação da Ilíada.Paulo canta a vitória e diz que o regimeestava podre e caiu por si.Paulo po<strong>de</strong>ria vir a ser o presi<strong>de</strong>nte daRepública.116


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoFLORA MORRE E OS DOIS IRMÃOS FAZEM UM ACORDO DE PAZ(cap. 109)PEDROUm mês <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> Flora, Pedroleva-lhe uma coroa <strong>de</strong> miosótis e coloca-ano lado correspon<strong>de</strong>nte aos pés da<strong>de</strong>funta (cap. 112).Pedro, que era monárquico, passa arepublicano e a <strong>de</strong>fensor intransigente dogoverno.PAULONo mesmo dia Paulo leva perpétuas ecoloca-as do lado correspon<strong>de</strong>nte àcabeça da morta.Com a evolução dos acontecimentosPaulo se elege para a Câmara <strong>de</strong>Deputados, agora não mais como<strong>de</strong>fensor da República, mas comooposição ao governo instaurado.NATIVIDADE MORRE, MAS PEDE ANTES QUE OS FILHOS FAÇAM ASPAZES. ELES DE NOVO FAZEM UM ACORDO QUE DURA POUCO TEMPOPEDROPedro, símbolo da conservação, opõe-se aPaulo como antigamente, o que faz oConselheiro Aires dizer: “Não mudaramnada; são os mesmos”.PAULOPaulo volta às posições <strong>de</strong> ataque aogoverno em oposição ao irmão,representando “o espírito <strong>de</strong> inquietação”.Dada a maneira como se <strong>de</strong>senvolve, a relação entre Pedro e Paulo, em suaalternância <strong>de</strong> oposição, pausa e troca <strong>de</strong> posições, oferece características queultrapassam o sistemático para se inscrever como uma organização sistêmica.Deve haver aí atrás um conjunto <strong>de</strong> leis reguladoras dos mecanismos quetransparecemos exibindo os dois conjuntos <strong>de</strong> elementos em colunas separadas:três princípios básicos aí se notam:a) Há uma oposição constante entre os elementos. Toda a estória é construídaem torno <strong>de</strong>sse eixo oposicional revelador <strong>de</strong> um certo <strong>de</strong>terminismoe <strong>de</strong> um mistério que os mais diversos oráculos (Cabocla e Plácido)registram.117


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annab) A oposição, conquanto sistemática, está sujeita a intermitências. Nem por isso háquebra do ritmo, mas é por aí que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> uma maior complexida<strong>de</strong>do sistema. Há dois acordos <strong>de</strong> paz, quebrados logo <strong>de</strong>pois e motivadospelas duas figuras femininas que polarizam os gêmeos: Nativida<strong>de</strong> eFlora.c) Po<strong>de</strong> haver troca na posição dos elementos em jogo sem que isto lhes altere a função.Pedropo<strong>de</strong> ocupar o lugar <strong>de</strong> Paulo e vice-versa. Quem era contra o regimepassa a ser a favor, enquanto o outro passa à oposição. Essa alteração aspectualapenas reforça a função entre os dois elementos. Eles apenas trocam<strong>de</strong> lugar, mas seu <strong>de</strong>sempenho é o mesmo.Essas três anotações, que po<strong>de</strong>m ser lidas também como as leis que regem ojogo relacional dos gêmeos, po<strong>de</strong>m ser formalizadas do seguinte modo:a) Oposição constante: A x Bb) Pausa na oposição: A = Bc) Troca na posição: B x A.Esses mo<strong>de</strong>los po<strong>de</strong>m ser chamados <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los parciais integradores do mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> oposiçãoAxBjáassinalado anteriormente. O fato <strong>de</strong> que as modificaçõesaí se dão apenas aspectualmente e que a duplicida<strong>de</strong> persiste mostra queainda estamos no primeiro estágio <strong>de</strong> transformação da narrativa. É a oposiçãosimples e simétrica que aparece através das figuras <strong>de</strong> Pedro e Paulo. A complexida<strong>de</strong>vai emergindo exatamente quando passamos a analisar a figura <strong>de</strong> Flora. FloraIntroduzida como uma personagem “inexplicável” (cap. 31), Flora talveztenha sua figura mais bem situada a partir <strong>de</strong> seu relacionamento com outroselementos do grupo, marcando-se-lhe as diferenças e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. O primeiroelemento que se lhe po<strong>de</strong> contrapor é Nativida<strong>de</strong>. A mãe dos gêmeos tem em118


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadosi também uma certa dualida<strong>de</strong>, mas não é uma dualida<strong>de</strong> conflitiva. O narradormesmo a introduz como uma “senhora ver<strong>de</strong>, com a mesmíssima almaazul” (cap. 19), que converteu o Cabo das Tormentas em Cabo da Boa Esperança,vencendo “a primeira e a segunda mocida<strong>de</strong> sem que os ventos lhe <strong>de</strong>rribassema nau, nem as ondas a engolissem” (cap. 19).O limite entre Flora e Nativida<strong>de</strong> parece estar no verso “Ai, duas almas nomeu seio moram”, que funciona como a barra que as aproxima e diferencia,pois o narrador aplica o verso <strong>de</strong> Goethe a Flora <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter aplicado a Nativida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>ixando implícito que num caso e noutro o verso tem conotação diversa.Enquanto Nativida<strong>de</strong> era a fonte harmônica daquela oposição, Floranão consegue realizar as sínteses <strong>de</strong> seus elementos, parecendo antes per<strong>de</strong>r ume outro. Eles passaram por Flora sempre em oposição, e ela vai se ligar a Nativida<strong>de</strong>tentando surpreen<strong>de</strong>r na fonte geradora dos gêmeos a reunião impossíveldos contrários:“Queria Nativida<strong>de</strong> sempre ao pé <strong>de</strong> si, pela razão que já <strong>de</strong>u, e por outrasque não disse, nem porventura soube, mas po<strong>de</strong>mos suspeitá-la e imprimir.Estava ali o ventre abençoado que gerara os dois gêmeos. De instinto achavanela algo <strong>de</strong> particular” (cap. 212).Já o relacionamento <strong>de</strong> Flora com Pedro e Paulo parece ter passado pordois estágios. No primeiro ela se <strong>de</strong>ixa ludicamente entre um e outro sem sentirnenhuma exigência <strong>de</strong> maior escolha e opção. Há uma série <strong>de</strong> jogos que exprimemessa fase. Ela chama Paulo <strong>de</strong> Pedro e vice-versa: “Em vão eles mudamda esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomestambém e os três acabavam rindo” (cap. 35). Não havendo nenhuma premência<strong>de</strong> escolha, ela no princípio mantém com ambos uma relação idêntica:“Flora recebeu o irmão <strong>de</strong> Pedro tal qual recebia o irmão <strong>de</strong> Paulo” (cap. 57).Aos poucos a personagem vai se tornando mais complexa até que o narrador 1(Aires) no nível do enunciado confesse não mais entendê-la. Desenvolve otema <strong>de</strong> Flora como a “inexplicável” e anota em seu diário:119


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna“Que o diabo a entenda, se pu<strong>de</strong>r; eu, que sou menos que ele, não acerto <strong>de</strong>a enten<strong>de</strong>r nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; poucoantes das <strong>de</strong>spedidas, queria a ambos. Encontrei outrora <strong>de</strong>sses sentimentosalternos e simultâneos; eu mesmo fui uma e outra coisa, e sempre me entendia mim. Mas aquela menina e moça... A condição <strong>de</strong> gêmeos explicará estainclinação dupla; po<strong>de</strong> ser também que alguma qualida<strong>de</strong> falte a um que sobreao outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto <strong>de</strong> ambas, não acaba <strong>de</strong> escolher<strong>de</strong> vez. É fantástico, sei, menos fantástico é se eles, <strong>de</strong>stinados à inimiza<strong>de</strong>,acharem nesta criatura um campo estreito <strong>de</strong> ódio, mas isto os explicaria aeles, não a ela” (cap. 59).Os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> duplicida<strong>de</strong>, alternância e integração parecem estar presentesnestas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> Aires. Os dois mo<strong>de</strong>los (A x B, A ou B) são mais nítidos.O terceiro já não se resolve tão integrativamente, se pon<strong>de</strong>rarmos sobre ainviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> configurar claramente a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Flora. Quer dizer: asimultaneida<strong>de</strong>, à qual Aires se refere (“sentimentos alternos e simultâneos”),revela antes uma incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> junção dos contrários harmoniosamente.Não é que Flora consiga uni-los, o fato é que ela não consegue separá-los. Aoperação, portanto, é inversa: eles aparecem congeminados, como no capítulo“Duas cabeças”, porque “as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido”,que o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Flora não mostra, e a narrativa não esclarece, porqueesclarecer aquilo que é “inexplicável” é negar o próprio enigma.Feita essa ressalva sobre o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> integração irrealizado em Flora e entendidaa simultaneida<strong>de</strong> como sua solução para a impossível integração, po<strong>de</strong>-se localizarmesmo no nível da frase a permanência dos mo<strong>de</strong>los: “Ontem parecia querera um, hoje quis ao outro; pouco antes das <strong>de</strong>spedidas queria a ambos”. Ou entãonas palavras da Nativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>screvendo as ambigüida<strong>de</strong>s da moça (cap. 84).1. Parecera-lhe que Flora não aceitava nem um nem outro (A x B)2. Logo <strong>de</strong>pois, que os aceitava a ambos (A e B)3. E mais tar<strong>de</strong>, um e outro alternadamente (A ou B)120


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoA irresolução da figura <strong>de</strong> Flora, perdida entre os extremos, parece se mostrarmais naquilo que o narrador chama “parábola da asna <strong>de</strong> Buridan”. Segundoo sofisma <strong>de</strong> Jean Buridan (1327-1358), supunha-se que um asno colocadoentre duas vasilhas contendo aveia <strong>de</strong>via morrer <strong>de</strong> fome, se não fosse dotado<strong>de</strong> livre arbítrio, pois não haveria motivo <strong>de</strong>terminante para que preferisse ada direita à da esquerda e vice-versa.Essa “asna <strong>de</strong> Buridan” é referida pelo Conselheiro Aires consi<strong>de</strong>rando oenigma <strong>de</strong> Flora. É significativo que seja logo Aires quem faça essa consi<strong>de</strong>ração.Não conseguindo explicar o mistério <strong>de</strong> Flora, no entanto, ele o registra eo aceita como elemento da composição. Anota as antíteses procurando absorvê-laspor sua inexplicabilida<strong>de</strong> mesma. É isto que o diferencia <strong>de</strong> Flora e fazcom que esteja um passo a frente no <strong>de</strong>senvolvimento transformacional dosmo<strong>de</strong>los. Porque se a duplicida<strong>de</strong> caracteriza Pedro e Paulo, se a ambigüida<strong>de</strong>dilacera Flora, Aires vai realizar mais plenamente a integração incorporandoem sua escrita – o manuscrito – a sua inexplicável ambigüida<strong>de</strong>. Conselheiro AiresAires é figura vinculadora dos níveis da narração, personagens e lingua(gem). Estudando a narração, já anotávamos como esse duplo do narradorpo<strong>de</strong> ser visto na articulação da estória, consi<strong>de</strong>rando-se que ele é o narrador 1e autor da escrita fingida que é o manuscrito. Aqui a passagem daquele nívelpara este e <strong>de</strong>ste para o próximo (o da língua) po<strong>de</strong>ria ser feita usando <strong>de</strong> umatécnica comum em Machado: remeter o leitor a páginas atrás ou preveni-lo doque está por vir, através <strong>de</strong> comentários à margem da análise. Feito este manuseioda análise, se enten<strong>de</strong>rá melhor por que se diz que Aires é o único que alcançouas leis do sistema que pressupunha um jogo <strong>de</strong> oposições, alternânciase complementarida<strong>de</strong>.Machado marca a posição <strong>de</strong> Aires apontando para a superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>leem relação aos <strong>de</strong>mais. Se Nativida<strong>de</strong> era a mãe legítima, ele “é o pai espiritualdos gêmeos” (cap. 44). Tendo gostado <strong>de</strong> Nativida<strong>de</strong> na juventu<strong>de</strong>, o que121


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annasentiu “não foi propriamente paixão, não era homem disto” (cap. 12). Já poraí se mostra sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mediador, afastado dos <strong>de</strong>stemperos emocionais,sabedor <strong>de</strong> que “o coração é o abismo dos abismos”. Em <strong>de</strong>corrência,apresenta-se como tendo “algumas das virtu<strong>de</strong>s daquele tempo, e quase nenhumvício” (cap. 12). Descrito <strong>de</strong>ssa maneira, como um tipo superior quecontrola bem suas emoções, chega-se a saber que, “se os gêmeos tivessem nascido<strong>de</strong>le, talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio <strong>de</strong> seuespírito” (cap. 42).Como diplomata profissional, Aires atua também diplomaticamente. Conhecea arte <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scobrir” e “encobrir”, pois “toda a diplomacia está nestesdois verbos parentes” (cap. 98). Verbos parentes, vale dizer, congeminadoscomo Pedro e Paulo, que ele compreen<strong>de</strong> e sabe distinguir. Posição bem diversada <strong>de</strong> Flora, que não apenas se <strong>de</strong>ixou morrer entre as antíteses, como tambémnão compreen<strong>de</strong>u a síntese do conselheiro, dizendo-lhe: “Já o tenho achadoem contradição. Po<strong>de</strong> ser, respon<strong>de</strong> o conselheiro. A vida e o mundo nãosão outra coisa” (cap. 87). Aires é quem afasta o espanto diante do contraditórioe assimila as divergências para realizar seu papel. Não estranha que para eleconvergissem todos e que ele se manifeste através <strong>de</strong> um estilo no qual a duplicida<strong>de</strong>,a alternância e integração se manifestem.Tome-se, já introduzindo o nível da lingua(gem), esta <strong>de</strong>scrição do conselheiro:“José da Costa Marcon<strong>de</strong>s Aires tinha que nas controvérsias uma opinião dúbiaou média po<strong>de</strong> trazer a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma pílula, e compunha as suas <strong>de</strong>tal jeito, que o enfermo, se não sarava, não morria,eéoquefazem as pílulas.Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com açúcar. Aires opinoucom pausa, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, circunlóquios, limpando o monóculo ao lenço <strong>de</strong>seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, comoquem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela oparecer. Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou <strong>de</strong>acordo, assim o terceiro, o quarto e a sala toda” (cap. 12).122


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoA análise estilística das frases conferidas a Aires revela a mesma constante.Machado mais uma vez se adianta ao crítico e torna ele mesmo explícito o sistema<strong>de</strong> construção do personagem indicando claramente seu estilo/personalida<strong>de</strong>.Nesse trecho citado, o narrador fictício dá lugar ao narrador verda<strong>de</strong>iro,e Aires, que conduzia o enunciado, passa a ser analisado através da enunciação.Ele aparece reinterpretado lingüisticamente: o homem dos circunlóquios,da pílula com açúcar, arredondando o pensamento, procurando <strong>de</strong>rrogar as controvérsiase chegar a um acordo através <strong>de</strong> uma opinião dúbia e média, como<strong>de</strong> resto é natural a um diplomata ou a um narrador como Machado, interessadoem <strong>de</strong>senvolver ao máximo o aspecto lúdico da composição. Nível da lingua(gem)Pelo estudo minimal da frase, constata-se a afirmação <strong>de</strong> Barthes <strong>de</strong> que odiscurso não mais é mais que uma gran<strong>de</strong> frase que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>composta emseus elementos constitutivos. Neste nível preten<strong>de</strong>mos localizar aquilo que antesfoi mostrado num plano mais geral. Reduplicam-se, então, os mo<strong>de</strong>losatravés <strong>de</strong> sua persistência. É uma espécie <strong>de</strong> prova dos nove. Percebe-se por aíque a estrutura tem uma sintaxe, que fala através <strong>de</strong> sua organização, razão porque toda sintaxe é semanticamente recuperável.Po<strong>de</strong>-se introduzir o estudo da frase aqui pela escolha mais ou menos aleatória<strong>de</strong> sentenças reveladoras dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> duplicida<strong>de</strong>, ambigüida<strong>de</strong> e integração.Tomem-se frases como essas:“Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outroque <strong>de</strong>sce,edoriso edalágrima se faz o primeiro dia da situação, como nosGênesis” (cap, 47).“Não tardaria muito que saíssem formados, um para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o direito e o tortoda gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem”(cap. 35).123


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna“Quando a lembrança <strong>de</strong> Pedro surgiu na cabeça da moça, a tristeza empanavaa alegria, mas a alegria vencia <strong>de</strong>pressa a outra e assim acabou o baile. Entãoas duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração como as duas gêmeas queeram” (cap. 70).A simples leitura <strong>de</strong>ssas frases mostra a permanência dos mo<strong>de</strong>los. Masquando não seja assim formalmente, também conceitualmente o narrador voltaa enfatizá-la:“Como po<strong>de</strong> um só teto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é tambémeste céu claro ou brusco, outro teto vastíssimo que os cobre com o mesmozelo da galinha aos seus pintinhos... Nem esqueça o próprio crânio do homem,que os cobre igualmente, não só diversos, senão opostos” (cap. 94).Não seria difícil ir <strong>de</strong>monstrando simbolicamente que a narrativa é comoum teto e que, como o crânio do homem, ela abriga diversas contradições.No entanto, não é por este caminho que seguiremos. Não o da constataçãosimplória daqueles elementos, senão o da localização <strong>de</strong> processos estilísticosmais bem <strong>de</strong>finidos que reduplicam no plano minimal da frase certos comportamentosjá vistos na narração e nos personagens. Aforismos, paradoxos, redundâncias,estranhamento e ironiaReferimo-nos aos aforismos, paradoxos, redundâncias, estranhamentos eàironia, quesão tributários do tópico linguagem & ludicida<strong>de</strong> que abordaremos ao fim doestudo.Um estudo do mecanismo <strong>de</strong> produção dos aforismos talvez revelasse afuncionalida<strong>de</strong> das formulações estruturalistas no esforço <strong>de</strong> circunscreveras dualida<strong>de</strong>s. Há no aforismo, assim como no provérbio, um processo <strong>de</strong>tornar mais clara a mensagem sempre a partir da oposição dos elementos.124


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoUm jogo entre o elemento marcado e o não marcado, uma maneira <strong>de</strong> fazera virtu<strong>de</strong> saltar pela presença do pecado, o bem se mostrar pela emergênciado mal, e o presente se presentificar tanto mais se <strong>de</strong>marca o ausente. Istose <strong>de</strong>ve também ao caráter resumitivo <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> pensamento. O aforismo,como a máxima, é o <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong> uma parábola. A estória não é escritasenão para se chegar a uma moral, a uma máxima, a uma síntese didática sobreo cotidiano do homem. Expressando-se através <strong>de</strong> aforismos e provérbios,po<strong>de</strong> o indivíduo sustentar-se mítica e i<strong>de</strong>ologicamente, uma vez quetais construções são os esteios da comunida<strong>de</strong>, concentração <strong>de</strong> todo o seupensamento mágico.O aforismo, sobretudo, reproduz um universo <strong>de</strong> causa e efeito no nível dai<strong>de</strong>ologia que o gerou. Machado dá tratamento muito específico a esse recursolingüístico. Repousa formalmente sua narrativa sobre aforismos que revertemnuma proposição irônica e crítica, ao transformar o que seria simples reproduçãoda sabedoria da comunida<strong>de</strong> numa composição diversa, graças aos efeitos<strong>de</strong> estranhamento conseguidos pelo emprego do paradoxo, da ironia e do próprioestranhamento enquanto processo retórico típico <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio da norma.Sobretudo, dos aforismos, máximas e provérbios. Machado se serve <strong>de</strong> sua estrutura:a dualida<strong>de</strong> que existe na composição <strong>de</strong>sses efeitos.Vejamos os aforismos e provérbios, inicialmente, em sua forma mais corriqueira.Tanto alguns <strong>de</strong> origem popular quanto outros gerados pelo narrador.Neles sobressai principalmente o princípio da dualida<strong>de</strong>.“O que o berço dá só a cova tira.”“A guerra é a mãe <strong>de</strong> todas as coisas.”“Teste David com Sibylla.”“Na mulher o sexo corrige a banalida<strong>de</strong>; no homem agrava.”“Pitangueira não dá manga.”“Ni cet excès d’honneur, ni cette indignité.”“César ou João Fernan<strong>de</strong>s.”125


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaEsses exemplos perfilam expressões em códigos lingüísticos diversos, masem todos sobreleva a dualida<strong>de</strong>, o caráter sintético, o mesmo jogo <strong>de</strong> elementosque encontramos nos outros níveis analisados. Se po<strong>de</strong>ria também juntaraqui a inclusão <strong>de</strong> citações clássicas literárias, como aquele verso <strong>de</strong> Goethe,“Duas almas no meu seio moram”, que reafirma o aspecto dual da composição.As citações em Machado são uma continuação das frases feitas roubadas aocotidiano e exercem função semelhante.Existe, no entanto, um outro processo estilístico, na mesma linhagem dosaforismos, também sistemático em outras obras <strong>de</strong> Machado e nesta reinci<strong>de</strong>ntementeutilizado. Refiro-me às redundâncias, que tanto po<strong>de</strong>m surgir através<strong>de</strong> aforismos simplesmente quanto através <strong>de</strong> frases irônicas e <strong>de</strong> efeito.Nelas permanece o jogo das dualida<strong>de</strong>s:“O coração seja o abismo dos abismos.”“Verda<strong>de</strong>s eternas pe<strong>de</strong>m horas eternas.”“Foi um dos conselhos do Conselheiro.”“Petrópolis <strong>de</strong>ixou Petrópolis.”A redundância é o primeiro sinal <strong>de</strong> que o aforismo e a máxima sofrem <strong>de</strong>sviosque se caracterizarão melhor como ironia. De redundância em redundância,voltando várias vezes ao já dito para um reforço da mensagem, a frase machadianase inscreve ainda com um outro recurso estilístico portador do mesmocrivo das dualida<strong>de</strong>s: o paradoxo:“Convém que os homens afirmem o que não sabem, e por ofício o contráriodo que sabem.”“Serve-se muita vez a liberda<strong>de</strong> parecendo sufocá-la.”“A discórdia dos dois começou por um acordo.”“Emancipado o preto, resta emancipar o branco.”“A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos vivam.”“Nada mais parecido com um conservador que um liberal e vice-versa.”126


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoAforismos, redundâncias e paradoxos abrem espaços para o exercício <strong>de</strong>outro recurso retórico, este <strong>de</strong> emprego mais raro em autores contemporâneos<strong>de</strong> Machado, embora seja encontradiço nas narrativas <strong>de</strong> estrutura complexa<strong>de</strong> todas as épocas, como em Rabelais e Cervantes. Refiro-me ao efeito <strong>de</strong> estranhamento,artifício retórico revalorizado pelos formalistas, que o tomaramcomo ponto <strong>de</strong> partida para o estudo da poética mo<strong>de</strong>rna. Se através dos aforismosele se exercita na formalização das dualida<strong>de</strong>s, através do estranhamentose apropriará da “sabedoria” e da “verda<strong>de</strong>” da comunida<strong>de</strong>, modificando-aa seu modo. Inverte e subverte as regras do jogo, introduz uma ruptura no sistemalógico do esperado. Invertendo os conteúdos <strong>de</strong> sua frase, altera-lhe a semântica,colocando à mostra as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua sintaxe. Assim é que Machadodiz:“A discórdia não é tão feia quanto se pinta” (quando o usual seria: a <strong>de</strong>sgraçanão é tão feia quanto se pinta).“A mulher é a <strong>de</strong>solação do homem” (quando o pensamento bíblico: a mulheré a consolação do homem).“Paga o que <strong>de</strong>ves, vê o que não te fica” (on<strong>de</strong> a negativa “não” reforça a idéiado nada que resta, transformando a frase: paga o que <strong>de</strong>ve, vê o que te fica).“A ocasião faz o furto: o ladrão já nasce feito” (transformando o provérbio:a ocasião faz o ladrão).Consciente do processo <strong>de</strong> estranhamento, o narrador <strong>de</strong>dica todo o capítulo75 (“Provérbio errado”) a explicar o sentido do provérbio e a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> sua alteração. Este fato po<strong>de</strong> ser mais largamente explorado, principalmentese lançarmos mão <strong>de</strong> outras obras do romancista. Refiro-me ao processo sistemáticoque <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> adulterar frases feitas, o que já valeu <strong>de</strong> críticos asmais diversas censuras, mas todas no nível da impressão <strong>de</strong> que Machado estariaincorrendo em “cochilos”. Tal tipo <strong>de</strong> observação, conquanto possa ser127


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annaproce<strong>de</strong>nte num caso ou noutro, revela antes <strong>de</strong> tudo um tipo <strong>de</strong> leitura quenão é a mais apropriada para um texto <strong>de</strong> Machado. Ler assim é insistir em nãoler Machado, porque o que sua escrita muita vez <strong>de</strong>seja é apagar a escrita i<strong>de</strong>ológicacorroendo-a com jogos <strong>de</strong> estranhamentos.Talvez mais pertinente fosse remeter esse tipo <strong>de</strong> procedimento estilísticopara o sistema geral da obra, incorporando-o ao eixo interpretativo da estruturaromanesca em Machado. Mais vale <strong>de</strong>stacar aí a subversão da i<strong>de</strong>ologia dacomunida<strong>de</strong> e não referendum às verda<strong>de</strong>s cotidianas, numa atitu<strong>de</strong> antitética <strong>de</strong>senvolvidapela narrativa <strong>de</strong> estrutura simples, sempre empenhada em endossara “sabedoria” do homem médio através das frases feitas como “o crime nãocompensa”, “Deus ajuda quem madruga”, “quem tudo quer tudo per<strong>de</strong>”, etc.A oposição à verda<strong>de</strong> da comunida<strong>de</strong> é exercida no nível da linguagem namedida em que sua língua se diversifica da língua comum através <strong>de</strong> estranhamentos.Ao proce<strong>de</strong>r assim, está se <strong>de</strong>stacando da langue geral e introduzindosua parole, <strong>de</strong>scentrando-se das consuetúdines para centrar-se numa proposiçãoque por sua natureza corre o perigo <strong>de</strong> ser recusada, mas que é a sua legítimaexpressão. Nesse sentido, a coerência machadiana comprova-se não somenteno nível da frase e através do enfoque estilístico, mas exibe-se na própria maneiracomo <strong>de</strong>senvolve seus temas: <strong>de</strong> maneira distinta dos trilhos cotidianos aponto <strong>de</strong> contestar os elementos básicos da socieda<strong>de</strong>, que são a verda<strong>de</strong> e amentira, a sandice e a razão.Tanto em Plácido (Esaú e Jacó) quanto em Simão Bacamarte (O Alienista),como em Quincas Borba e Brás Cubas, a temática da loucura conjugada com a razãose entreabre <strong>de</strong> modo complexo e insólito. Deixando <strong>de</strong> opor esses elementoscomo inconciliáveis, como quer o mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>ológico, ele mostra a relativida<strong>de</strong><strong>de</strong> um e outro, configurando a loucura da razão e as razões da loucura,sem optar maniqueisticamente por um dos elementos em torno da barra,pois sabe que ambos os termos da proporção estão contaminados por <strong>de</strong>finiçõesi<strong>de</strong>ológicas das quais procura se afastar. O que faz, então, é estranhar osconceitos cotidianos, a i<strong>de</strong>ologia vigente. E esse estranhamento não sendo esporádico,mas sistemático, acaba por se dar em todos os níveis da análise.128


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoO estranhamento como forma vizinha do paradoxo parece reforçar uma figuramais genericamente apontada em Machado, que é a ironia. Quase todosos analistas <strong>de</strong> sua obra têm se referido ao humor e à ironia, e alguns até localizamaí o sarcasmo. Abordando o mesmo tópico, porém <strong>de</strong>svinculando o maispossível a ironia do texto do que seria a ironia na biografia e psicologia <strong>de</strong> Machado,veremos que essa figura se imbrica no sistema geral da obra, que ajuda asustentar.Tome-se a etimologia do termo “ironia”: dizer o contrário do que se pensa,ou seja, uma fala dupla e dúbia, mas que congemina os contrários. Ironia comofala do avesso. Fala que faz falar aquilo que está silenciado. Um falar dobrado,típico dos oráculos e em Machado também típico. A expressão irônica, a piada,a graça constituem um <strong>de</strong>svio da linearida<strong>de</strong> do significado. Um enriquecimentorítmico e uma pluralida<strong>de</strong> semântica. Freud e Bergson <strong>de</strong>dicaram páginasclássicas ao tema da ironia e do humor, e a estilística <strong>de</strong> Bousouño e a obra<strong>de</strong> Maria Helena Novais Paiva – Constituições para uma Estilística da Ironia – exemplificamo problema em textos literários. Bousouño <strong>de</strong>dica-se ao confrontoentre poesia e piada. Interessa-lhe <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong> que maneira uma e outra sãoum <strong>de</strong>svio da normalida<strong>de</strong>. Embora seu ensaio perca em objetivida<strong>de</strong> o que ganhaem imaginação, é clara e didática a observação <strong>de</strong> que, quando se produz otermo A, associamos-lhes em <strong>de</strong>corrência o termo a. Mas se o autor, <strong>de</strong>struindoessa relação, substitui a por b, emparelha A-b, com um conseqüente <strong>de</strong>sviodo esperado e ruptura do sistema.É como elemento referenciador da ruptura do sistema lógico do esperadoque funciona o efeito da ironia em Machado. Ironia que inclui o paradoxo e opróprio estranhamento. Maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar ou pôr a nu a verda<strong>de</strong> da comunida<strong>de</strong>,diante da ótica do narrador. Desentranhando o absurdo que a normalida<strong>de</strong><strong>de</strong> certas frases feitas contém, faz emergir o inesperado, o insólito, aomesmo tempo em que pratica uma ironia naturalmente crítica. Na ironia está adualida<strong>de</strong>, através do confronto entre o implícito e o explícito. O sentido verda<strong>de</strong>irooscila. Mas a ironia integra porque é aquilo que nãoéeaomesmo tempoé. O modo curvo <strong>de</strong> enfrentar o real salva-a <strong>de</strong> comprometer-se com a “ver-129


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Annada<strong>de</strong>”, porque, se ela não chega a ser a verda<strong>de</strong> por inteiro, afasta-se também damentira. É um artifício estilístico medial-mediador. Um circunlóquio ao gostodo Conselheiro Aires.Através dos aforismos, paradoxos, estranhamentos e ironia chega-se enfimao estudo não apenas da língua, mas às consi<strong>de</strong>rações sobre como tudo isto revertepara a constituição da linguagem em Machado. Essa linguagem que se <strong>de</strong>senvolvesobre os mo<strong>de</strong>los da dualida<strong>de</strong>, alternância e integração só se realizagraças ao aspecto não apenas transformacional dos elementos, mas à sua dançalúdica, que faz com que o centro esteja sempre em movimento e os pares secomplementem dialeticamente, transparecendo na enunciação o que disfarçamno enunciado.O tópico linguagem em Machado, portanto, carece <strong>de</strong> ser aproximado aoproblema da ludicida<strong>de</strong>. E é o próprio narrador que se incumbe da aproximaçãotratando a narrativa como uma partida <strong>de</strong> xadrez, usando um léxico <strong>de</strong>imagens que fala <strong>de</strong> rei e dama, bispo e cavalo, torre e peão. O capítulo 13 é omelhor exemplo da associação escrita/jogo, uma vez que todo ele é uma suspensãoda estória, um exercício <strong>de</strong> metalinguagem, pois através <strong>de</strong>le o autorcomenta qual seria a epígrafe mais conveniente ao livro:“A epígrafeOra, aí está justamente a epígrafe do livro se lhe quisesse pôr alguma, e nãome ocorresse outra. Não é somente um meio <strong>de</strong> completar as pessoas <strong>de</strong> minhanarração com as idéias que <strong>de</strong>ixaram, mas ainda um par <strong>de</strong> lunetas paraque o leitor do livro penetre o que foi menos claro ou totalmente escuro.Por outro lado, há proveito em irem as pessoas <strong>de</strong> minha história colaborandonela, ajudando o autor, por uma lei <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, espécie <strong>de</strong> troca<strong>de</strong> serviços, entre o enxadrista e os seus trabalhos.Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo,sem que o cavalo possa fazer <strong>de</strong> torre, nem a torre <strong>de</strong> peão. Há ainda a diferençada cor, branca e preta, mas esta não tira o po<strong>de</strong>r da marcha <strong>de</strong> cadapeça, e afinal umas e outras po<strong>de</strong>m ganhar a partida, e assim vai o mundo.130


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> MachadoTalvez conviesse pôr aqui, <strong>de</strong> quando em quando, como nas publicaçõesdo jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis, Não havendo tabuleiro,é um gran<strong>de</strong> auxílio este processo para acompanhar os lances, mas tambémpo<strong>de</strong> ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memória as situaçõesdiversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmentevisses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entreDeus e o Diabo” (cap. 13).Dispostos os partidos (branco/preto, Deus/Diabo, pessoa a pessoa), ojogo avança sem que haja uma opção clara por um dos contendores (afinal, umou outro po<strong>de</strong> ganhar a partida, e assim vai o mundo). Dentro <strong>de</strong> seu jogoconstante <strong>de</strong> “encobrir”, habilmente vai o narrador separando (ao mesmotempo em que aproxima) a narrativa <strong>de</strong> um tabuleiro invisível terminando pordispensar os “diagramas” dos avanços e recuos das peças.Mas é o próprio Machado que inclui o diagrama (veladamente) ao falar dojogo e ao dizer como moverá suas peças. É o comentário do jogo que ele mantéma todo instante e muita vez <strong>de</strong> modo explícito, como no capítulo transcrito.Em outros capítulos ele também se refere ao voltarete, ao gamão e a outrosjogos. Mas não é só nesse sentido que o jogo aqui nos interessa, mas o lúdicoque secunda isto tudo, quando se põe como comentador da própria partida.Assim, um capítulo envia a outro através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> composição que sequer auto-explicativo, como se estivesse reescrevendo constantemente a estóriae retomando a narrativa num processo <strong>de</strong> canto e contracanto. Ao proce<strong>de</strong>r assim,está tomando à narrativa os seus próprios referentes, centrando-se emseus próprios esteios, no interior daquilo mesmo que narra. Este processo <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> ser mero divertissement ou curiosida<strong>de</strong> estilística quando vinculado ao sistemalúdico <strong>de</strong> composição. Só no capítulo 99, por duas vezes, remete o leitora capítulos anteriores para reativar a partida e/ou estória. Só reativar o enunciado?Não, tornar mais clara a linha da enunciação, convertendo o comentárioda estória em algo tão relevante ou mais que a própria estória. Aí, efetivamente,já se po<strong>de</strong> dizer, glosando Marshall McLuhan, o meio é a mensagem.131


Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’AnnaEntrevista a narrativa como a arte <strong>de</strong> jogar criticamente o próprio jogo daescrita, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> um modo diverso daqueles até hoje apontados, amaneira como Machado constrói seus personagens. E dizer: ver aquela pecha<strong>de</strong> que ele faz tipos <strong>de</strong>svinculados da vida política e social, autor que não criariatipos típicos, como quereria a estética <strong>de</strong> Lukács: personagens vadios, homensaposentados, her<strong>de</strong>iros inconscientes <strong>de</strong> heranças misteriosas, mulherespresas ao jogo social e doméstico. Muita vez se repetiu que os personagens machadianosnão têm emprego nem muitas obrigações com o produto nacionalbruto do país. Vivem na Europa, apresentam-se em reuniões infindáveis numcomportamento puramente verbal ou verboso da vida. A vida passa e elestão-somente conversam seu <strong>de</strong>spreocupado bate-papo filosofante.Perseguindo essas observações para divergir, outros críticos procuram <strong>de</strong>monstraro contrário: a sutileza da “participação” machadiana. O que ocorretanto com os acusadores quanto com os <strong>de</strong>fensores é que inconscientementetornam-se eles mesmos atores dramatizando a mesma estrutura que Machado<strong>de</strong>nunciava e que ilustrou através <strong>de</strong> personagens como Plácido: a querela entreos que achavam que os sentidos correspondiam às vogais e aqueles queviam a correspondência entre as vogais e os sentidos (cap. 82). Não seria ocaso <strong>de</strong> se procurar, digamos, machadianamente, uma visão terceira que conjugasseos elementos <strong>de</strong> forma mais lúdica? Não é a sua narrativa um afastamentodo i<strong>de</strong>ológico por inversão? Não há aí a recusa do suporte histórico e míticoou a sua utilização apenas aspectualmente? Não tem a obra <strong>de</strong> Machado referentesinternos muito mais estruturantes do que os externos?Parece que Machado quis sempre se colocar ludicamente além da barra quesepara o sim e o não. Assim, <strong>de</strong>scentra-se da i<strong>de</strong>ologia e cria um mundo quepouco <strong>de</strong>ve à realida<strong>de</strong> cotidiana e aparente. Não estranha, portanto, quecomo ancestral da linha que veio dar em Jorge Luis Borges tivesse certa preferênciapor apólogos e parábolas em que seus personagens não sejam protótiposou típicos, parecendo muito mais alegorias ou elementos que ele articulasobre um impon<strong>de</strong>rável tabuleiro. Tome-se não apenas Quincas Borba, on<strong>de</strong> afábula se mo<strong>de</strong>rniza e torna-se mais complexa com as figuras do homem e do132


Esaú e Jacó: estrutura exemplar <strong>de</strong> Machadocão, mas sobretudo veja-se O Alienista: impossível conferir os dados da crônica<strong>de</strong> Itaguaí com a aparência do cotidiano. Nessa mesma linha tome-se o surrealismoavant la lettre <strong>de</strong> Brás Cubas. Aqui o texto se converteu na matéria-prima e averossimilhança só po<strong>de</strong> ser pensada no interior da obra.Se os referentes externos são relegados, on<strong>de</strong> se realiza, enfim, a partida aque se referia o narrador ao aproximar a narrativa do jogo do xadrez? O tabuleironão existe, já havia afirmado o narrador. O jogo busca a sua própria liberda<strong>de</strong>.E, não havendo tabuleiro, a narrativa se configura como o tempo em queescreve. Ela é o seu próprio tempo, é como “um tecido invisível em que sepo<strong>de</strong> bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo.Também se po<strong>de</strong> bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais sutil obra<strong>de</strong>ste mundo e acaso do outro” (cap. 22).Compreendido o nada, portanto, não como um tema metafísico, não comoa afirmação <strong>de</strong> uma filosofia, mas como a substância do lúdico, não estranhaque Aires atinasse que “há estados <strong>de</strong> alma em que a matéria da narração é onada, o gosto <strong>de</strong> a fazer e <strong>de</strong> a ouvir é que é tudo” (cap. 51).Centrar-se sobre o nada neste caso é <strong>de</strong>scentrar-se do tudo, que são a i<strong>de</strong>ologiae o mito, sempre fornecidos aprioristicamente às narrativas <strong>de</strong> estrutura simples,que, estas sim, por se colocarem especularmente diante <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> externa,<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser uma narrativa para serem um enganoso reflexo da criativida<strong>de</strong>.O jogo que teve um começo chega ao fim. Terminada a partida, o diálogoentre o enxadrista e seus trebelhos, o que resta? Para o autor do jogo/narrativa,o fascínio <strong>de</strong> uma nova partida e o crédito <strong>de</strong> um exemplar <strong>de</strong>sempenho. Parao analista do jogo, o crítico, talvez o gosto <strong>de</strong> ter feito o transcurso da partida,ainda que com maestria menor, porque o romancista ainda consegue dizer:“fora com os diagramas”, mas o analista já não po<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong>les.Tanto por não saber construir um jogo melhor sobre o jogo primeiro quantopelo receio <strong>de</strong>sses tais artifícios, não saber comunicar aos que lêem, “comonas publicações do jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis”.133


A revista Ilustração <strong>Brasileira</strong>, edição 24, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1877, publicou oprimeiro problema enxadrístico composto por um brasileiro: “Brancas jogam.Mate em dois lances”. Seu autor foi Machado <strong>de</strong> Assis. O <strong>de</strong>sfecho (a saber,1. Bb5, 1. e5, 2. Rf7#) é consi<strong>de</strong>rado elegante.


<strong>Prosa</strong>Machado <strong>de</strong> Assis,o enxadristaC. S. SoaresMeu bom xadrez, meu querido xadrez, tu que és o jogo dos silenciosos.MACHADO DE ASSIS Uma abertura machadianaAqui, jogaremos xadrez. A abertura fora do comum se justifica:os movimentos iniciais <strong>de</strong>terminam o curso <strong>de</strong> uma partida e porisso na teoria enxadrística são objetos <strong>de</strong> intensa investigação. Aqui,também seremos investigadores. Uma importante característica dapersonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Joaquim Maria Machado <strong>de</strong> Assis (1839-1908)ainda é pouco conhecida (porque pouco estudada): o inesgotável escritor,criador <strong>de</strong> alguns dos maiores clássicos <strong>de</strong> nossa literatura, foium gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong>dicado enxadrista, habilida<strong>de</strong> peculiar que po<strong>de</strong> terexercido uma enorme influência sobre o artista.O xadrez é citado na obra <strong>de</strong> Machado em contos como “Questão<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>”, “Astúcias <strong>de</strong> marido”, “História <strong>de</strong> uma lágrima”,C. S. Soaresé autor doromanceSantos DumontNúmero 8.Escreveregularmenteno blogPontolit, emhttp://www.pontolit.com.br.135


C. S. Soares“Rui <strong>de</strong> Leão”, “Qual dos dois”, “Antes que cases” e “Quem boa cama faz”.Machado ainda faz referência ao jogo em crônicas, no romance Iaiá Garcia enanovela A Cartomante.Entusiasta do xadrez, o autor jogou partidas amistosas e disputou torneios.O exame da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu jogo, através do estudo <strong>de</strong> suas partidas,além da assiduida<strong>de</strong> e facilida<strong>de</strong> com que solucionava problemas enxadrísticospublicados nos periódicos da época, confirma a força <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis como enxadrista. Diante <strong>de</strong> tanta <strong>de</strong>dicação, naturalmente, surgeuma pergunta inevitável: o xadrez ajudaria a explicar o gênio <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis? Analisemos cuidadosamente as peças no tabuleiro e executemoso próximo movimento. O primeiro torneio <strong>de</strong> xadrez no BrasilA Revista Musical e <strong>de</strong> Belas-Artes, em seu número 2, <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1880,publicou uma nota sobre o primeiro torneio <strong>de</strong> xadrez disputado no Brasil.Participavam da disputa seis dos melhores amadores da Corte. Cada um jogariaquatro partidas com o outro e, ao final, quem obtivesse o maior número <strong>de</strong>vitórias seria consi<strong>de</strong>rado o vencedor (partidas empatadas contariam meioponto para cada jogador).Os primeiros resultados do torneio indicavam: Machado <strong>de</strong> Assis, 6;Arthur Napoleão, 5 1/2; Caldas Vianna, 4 1/2; C. Pra<strong>de</strong>z, 4; Navarro, 1; Dr.Palhares, 1. A mesma revista publicaria outras parciais até o mês <strong>de</strong> abril domesmo ano, quando Machado <strong>de</strong> Assis aparecia na terceira colocação, atrásapenas <strong>de</strong> Arthur Napoleão (lí<strong>de</strong>r) e Caldas Vianna.João Caldas Vianna, primeiro gran<strong>de</strong> enxadrista brasileiro e i<strong>de</strong>alizador da“Variante Rio <strong>de</strong> Janeiro” na “Abertura Ruy Lopez”, em artigo publicado naprecursora revista Xeque-Mate, em maio <strong>de</strong> 1925, relembrou o torneio:“… assim foi que, em janeiro <strong>de</strong> 1880, Arthur Napoleão po<strong>de</strong> reunir emsua casa na Rua Marquês <strong>de</strong> Abrantes (Rio <strong>de</strong> Janeiro), um grupo <strong>de</strong> admi-136


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristaradores para um pequeno torneio, no qual tomou parte Machado <strong>de</strong> Assis,a mais pura glória das letras brasileiras. Esse torneio <strong>de</strong> família jamais terminaria,mas merece ser assinalado como o primeiro ensaio <strong>de</strong> armas”.A Plínio Doyle, advogado, bibliófilo e memorialista, incomodava que poucose estudasse o Machado <strong>de</strong> Assis enxadrista. É <strong>de</strong>le o artigo <strong>de</strong> 1958, para oprimeiro número do Boletim da Socieda<strong>de</strong> dos Amigos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, contendoas precursoras linhas <strong>de</strong>sse estudo. O artigo traz também as anotações <strong>de</strong> duaspartidas <strong>de</strong> Machado, uma contra Arthur Napoleão e a outra contra C.Pra<strong>de</strong>z.O hábito não traz perigo, alertava o historiador Marc Bloch, já que não engananinguém. Quero recordar Dom Casmurro a partir <strong>de</strong> observações, talvez arriscadascomo o próprio xadrez, mas <strong>de</strong> caráter pessoal. O livro, sabemos, éinesgotável. Lido, penso não ter sido o único a percebê-lo, nos <strong>de</strong>ixa a impressão<strong>de</strong> que, para além do próprio romance, seja a representação, em notação arbitrária(particular do artista), <strong>de</strong> uma partida <strong>de</strong> xadrez, cujos movimentos <strong>de</strong>ataques, <strong>de</strong>fesas e sacrifícios, em sua infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> combinações possíveis, foramproblematizados por seu autor. Dom Casmurro é xadrez em prosa, e seus leitoressão enxadristas em potencial.Em artigo publicado no jornal O Globo, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005, o AcadêmicoAntonio Carlos Secchin observou que o <strong>de</strong>sinteresse relativo à vida <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis é simetricamente proporcional ao interesse gerado por sua obra:“Enquanto a produção literária <strong>de</strong> Machado não cessa <strong>de</strong> ser mais e maisvalorizada, sua biografia estamparia apenas o morno transcurso <strong>de</strong> umexemplar funcionário público, <strong>de</strong> um esposo fiel e <strong>de</strong>votado à dona Carolina,<strong>de</strong> um ser algo distante das questões políticas, e, juntando-se asduas pontas da existência, <strong>de</strong> alguém que, vencendo barreiras da origemétnica e <strong>de</strong> uma frágil constituição física, alçou-se ao posto <strong>de</strong> nosso escritormáximo, tornando-se também o primeiro presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>”.137


C. S. SoaresO estudo do Machado <strong>de</strong> Assis jogador <strong>de</strong> xadrez (o “jogo dos silenciosos,dos calados, dos metidos consigo”) é importante, pois po<strong>de</strong> acenar com novaspossíveis (e até inusitadas) abordagens <strong>de</strong> estudo da obra do Bruxo do CosmeVelho.Aristóteles aconselhou seu discípulo Alexandre Magno: “Quando estiveressó, quando te sentires um estrangeiro no mundo, joga xadrez. Este jogo ergueráteu espírito e será teu conselheiro na guerra”. Teria Machado, na solidão <strong>de</strong>sua escrivaninha, seguido o conselho <strong>de</strong> Aristóteles?Quanto mais a obra se afirma (a segunda fase da obra <strong>de</strong> Machado), noslembra Secchin, mais o autor torna-se um homem retraído, calado, metidoconsigo, como Bento Santiago, narrador <strong>de</strong> Dom Casmurro. A discrição e a obstinação<strong>de</strong> Machado também são importantes características <strong>de</strong> um enxadrista.Só será possível compreen<strong>de</strong>r Machado <strong>de</strong> Assis a partir do xadrez. O xadrezé um jogo em que o jogador precisa levar em consi<strong>de</strong>ração as intenções dooponente e não apenas os seus próprios planos. É um jogo cruel. O menor erropo<strong>de</strong> arruinar os esforços <strong>de</strong> longas horas. O conflito é constante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeirolance <strong>de</strong> uma partida. O xadrez não se joga com as mãos, mas com o intelecto. Xadrez: o livro, o mágico e a máquinaNo tabuleiro, sabemos, vence-se <strong>de</strong> maneira fácil e categórica induzindo oadversário ao erro. O enxadrista austríaco Rudolf Spielmann, o “mestre doataque”, ensinou que o xadrez <strong>de</strong>ve ser jogado na abertura como um livro, nomeio-jogo como um mágico e no final como uma máquina.No prefácio <strong>de</strong> A Aventura do Xadrez, o americano Edward Lasker, mestre internacional<strong>de</strong> xadrez, é taxativo: “O xadrez <strong>de</strong>ve limitar o elemento sorte eacentuar a importância do planejamento e, como a vida, ensinar a coor<strong>de</strong>naçãoentre razão e instinto”. Lasker também enfatizou o elemento estético: “Emuma série <strong>de</strong> movimentos sutis po<strong>de</strong> ser encontrada a mesma emoção propor-138


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristacionada por um belo teorema”. No xadrez triunfam razão e lógica. Mas admitamossuas incertezas, seus imprevistos e, antes <strong>de</strong> tudo, seus enigmas.O Oxford Companion to Chess cataloga cerca <strong>de</strong> 1.330 aberturas e variantes.Algumas <strong>de</strong>las são consi<strong>de</strong>radas “ciladas <strong>de</strong> abertura”. O adversário <strong>de</strong>scuidadopo<strong>de</strong> ser ludibriado por uma <strong>de</strong>las e per<strong>de</strong>r uma partida já nos primeirosmovimentos. Seguem-se à abertura (<strong>de</strong> emboscada ou não) uma <strong>de</strong>fesa e, poruma intercalação <strong>de</strong> movimentos posicionais e táticos do intelecto, a construção<strong>de</strong> uma partida, ou <strong>de</strong> uma narrativa, porque a abertura <strong>de</strong> certas narrativastambém faz lembrar esse artifício enxadrístico.Uma tentativa simplória <strong>de</strong> contribuir com a Teoria das Aberturas não será amelhor seqüência para este artigo. O leitor po<strong>de</strong>rá, sentindo-se ludibriado,per<strong>de</strong>r a referência e se imaginar “fora do tabuleiro”. O que até não seria surpreen<strong>de</strong>nte,já que no xadrez, nos livros ou na própria vida nos confortará odomínio (ilusório, muita vez) que tivermos da situação. Por isso, mudo <strong>de</strong> tática,<strong>de</strong> rumo e <strong>de</strong> ritmo (penso que a “Teoria das Aberturas” ainda assim continuaráa evoluir, apesar <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>sto prejuízo). O que é o xadrez?O xadrez é um dos jogos mais populares do mundo. Pertence à mesma famíliado Xiangqi e do Shogi e, segundo os historiadores do enxadrismo (xadrezismoem Portugal), é originado do Chaturanga, praticado na Índia no séculoVI.No xadrez, um movimento <strong>de</strong>ve ser conseqüência lógica do anterior e <strong>de</strong>veantecipar o seguinte. Deve-se, <strong>de</strong>ntre as várias possibilida<strong>de</strong>s, escolher uma únicajogada: manter-se concentrado e imóvel na ca<strong>de</strong>ira, imaginar e processar um número<strong>de</strong> movimentos antecipados, calcular as conseqüências e só movimentar apeça após exaustiva análise <strong>de</strong> lances possíveis (após encontrar um lance apropriado,antes <strong>de</strong> executar a jogada, procurar uma alternativa ainda melhor).O adversário é um reflexo no espelho. O apelo irresistível à <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong>significados ocultos justifica a atração que o xadrez exerce renovadamente so-139


C. S. Soaresbre os escritores. Vários são os autores que contemplaram o xadrez em suasobras (uma <strong>de</strong>monstração da sua importância para a literatura).O xadrez potencializa qualida<strong>de</strong>s como a atenção e a concentração, o julgamentoe o planejamento, a imaginação e a previsão, a memória, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>vencer, a paciência e o autocontrole, o espírito <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e a coragem, a lógicamatemática, o raciocínio analítico e a síntese, a criativida<strong>de</strong>, a inteligência, oestudo e o interesse por línguas estrangeiras. Em uma partida <strong>de</strong> xadrez sãoexercitadas duas visões <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para o <strong>de</strong>senvolvimento da capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> abstração: a visão imediata e a visão mediata.Savielly Tartakower, russo, o mais espirituoso dos escritores <strong>de</strong> xadrez,criador da “Abertura Catalã”, dividiu os jogadores em quatro categorias: osjogadores fracos que não sabem que são fracos: são ignorantes e <strong>de</strong>vemos evitá-los;jogadores fracos que sabem que são fracos: são inteligentes, <strong>de</strong>vem serajudados; jogadores fortes que não sabem que são fortes: são mo<strong>de</strong>stos e <strong>de</strong>vemser respeitados; jogadores fortes que sabem que são fortes: são sábios,portanto, <strong>de</strong>vemos segui-los.Ao ser perguntado sobre quem teria sido o maior enxadrista <strong>de</strong> todos os tempos,Tartakower teria respondido que, se o xadrez é uma ciência, o melhor é Capablanca(1888-1942), cubano, campeão mundial <strong>de</strong> 1921 a 1927; se o xadrez éuma arte, o melhor é Alexan<strong>de</strong>r Alekhine (1892-1946), russo, campeão mundialentre 1927-35 e 1937-46; se o xadrez é um esporte, o melhor é Emanuel Lasker(1868-1941), filósofo e matemático alemão, campeão mundial <strong>de</strong> 1894 a 1921. Caíssa, a <strong>de</strong>usa literária do xadrezJesús Gonzáles Bayolo, presi<strong>de</strong>nte do Comitê <strong>de</strong> História da Fe<strong>de</strong>ração Cubana<strong>de</strong> Xadrez, confirmou na conferência intitulada El Ajedrez es La piedra <strong>de</strong>l intelecto(título inspirado nas palavras <strong>de</strong> Goethe) que o enxadrista não se esquece<strong>de</strong> Caíssa, a ninfa da mitologia grega que é consi<strong>de</strong>rada a <strong>de</strong>usa do xadrez.A relação entre Caíssa e o xadrez nasceu da cabeça do poeta Sir Willian Jones,que em 1763 escreveu o poema “Caíssa” ou o “Jogo <strong>de</strong> Xadrez” inspirado140


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristano Scacchia Ludus (Jogo <strong>de</strong> Xadrez), um longo poema medieval escrito em latimpor Marcus Hieronymus Vida em 1513.No poema <strong>de</strong> Sir Willian Jones, Marte, o <strong>de</strong>us da guerra, convence o <strong>de</strong>usdos esportes a inventar um jogo para distrair o coração <strong>de</strong> Caíssa, para que pu<strong>de</strong>sseconquistar o seu amor.“Caíssa” foi publicado pela primeira vez em 1773, ganhando popularida<strong>de</strong>na França. Em 1836, ao ser republicado na Le Palamè<strong>de</strong>, primeira revista sobrexadrez <strong>de</strong> que se tem conhecimento, Caíssa ficou conhecida como a <strong>de</strong>usa doenxadrismo e também como uma forma poética <strong>de</strong> se referir ao jogo e uma expressãoque enseja boa sorte. O gran<strong>de</strong> mestre do xadrez Garry Kasparov, russo,campeão do mundo <strong>de</strong> 1985 e 2000, em seu livro My Great Pre<strong>de</strong>cessors, usa aexpressão “Caíssa estava comigo” – em especial quando a situação <strong>de</strong> jogo éincerta. A literatura e o xadrez parecem mesmo caminhar lado a lado e se complementar.O tabuleiro e o movimento <strong>de</strong> suas peças, como metáfora para a própriavida, parecem ser tão fortes quanto o labirinto da busca, ambos originados namitologia grega.Enxadristas serão encontrados em outras modalida<strong>de</strong>s da cultura e daarte, e várias personalida<strong>de</strong>s já estabelecidas nas artes e nas ciências incursionaramno xadrez, certamente pela soma <strong>de</strong> paixão, psicologia, filosofia elógica intrínseca ao jogo. Cientistas como o astrônomo italiano GalileuGalilei, os filósofos Baruch Spinoza e Denid Di<strong>de</strong>rot, o matemático alemãoGottfried Wilhelm von Leibnitz, o historiador polonês Joachim Lelewel,o químico e inventor russo Dmitri Men<strong>de</strong>leev, Karol Wojtyla, (o PapaJoão Paulo II), e compositores clássicos como o alemão Ludwig van Beethovene o polonês Fry<strong>de</strong>ryk Chopin.Alekhine, gran<strong>de</strong> mestre campeão mundial <strong>de</strong> xadrez, para quem o jogoera uma arte, afirmava que, para competir no xadrez, seria preciso, antes <strong>de</strong>tudo, “conhecer a natureza humana e compreen<strong>de</strong>r a psicologia do contrário”.Machado, o enxadrista, ao percebê-lo, trouxe o xadrez para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sua obra.141


C. S. Soares Sobre escritores e enxadristasPorque aqui jogamos xadrez, não seremos surpreendidos pelo fato do xadrezter seduzido Machado <strong>de</strong> Assis, um autor que centrou seu interesse nasondagem psicológica e como poucos, buscou compreen<strong>de</strong>r os mecanismosque comandam as ações humanas, fossem elas <strong>de</strong> natureza espiritual ou <strong>de</strong>correntesda ação que o meio social exerce sobre cada indivíduo, tudo temperadocom uma profunda reflexão.Como o poeta romântico francês Alfred <strong>de</strong> Musset, Machado <strong>de</strong> Assis foiproblemista e publicou vários <strong>de</strong> seus enigmas <strong>de</strong> xadrez em periódicos nas décadas<strong>de</strong> 1870 e 1880, além <strong>de</strong> manter rica correspondência com as seções especializadas<strong>de</strong>sses periódicos e ocupar posição <strong>de</strong>stacada nos círculos enxadrísticosdo tempo do Império.Ao longo da história, tem sido gran<strong>de</strong> o interesse pelo jogo <strong>de</strong> xadrez entreos que abraçam o ofício das letras. A lista <strong>de</strong> escritores-enxadristas inclui tambémAsimov, Baum, Lewis Carroll, Cervantes, Dickens, Dostoiévski, ConanDoyle, Goethe, Ibsen, Kipling, Sinclair Lewis, Mailer, Melville, Nabokov,Orwell, Poe, Puchkin, Shakespeare, Shaw, Tolstoi, Vonnegut, Wells, Yeats,Zweig, Stevenson, Balzac, Rushdie e Amis.A pergunta é eterna e filosófica: mas afinal <strong>de</strong> contas, o que é o xadrez? Aresposta não será exata nem unânime, e, certamente, nos levará a interessantes eenriquecedores labirintos <strong>de</strong> idéias, bifurcações tão numerosas quanto a quantida<strong>de</strong><strong>de</strong> posições legais das peças sobre o tabuleiro.Estima-se que essa quantida<strong>de</strong> esteja situada entre as potências <strong>de</strong> 10 43 e10 50 com uma árvore <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproximadamente 10 123 (a árvore<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> do xadrez foi <strong>de</strong>terminada pela primeira vez pelo matemáticonorte-americano Clau<strong>de</strong> Shannon, gran<strong>de</strong>za hoje conhecida como o “Número<strong>de</strong> Shannon”).Por que o xadrez <strong>de</strong>sperta esse fascínio nos escritores? O xadrez tão retratadonas artes, a metáfora por excelência do combate e, com mais razão do que apriori se possa imaginar, da própria vida: o xadrez é imaginação e memória, um142


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristasímbolo <strong>de</strong> supremacia da lógica, ou ainda, no espírito dos moralistas medievais,uma alegoria da vida social.O romancista alemão Johann Wolfgang Goethe o consi<strong>de</strong>rava “a pedra <strong>de</strong>toque do intelecto”, uma imagem que ainda continua forte nos dias <strong>de</strong> hoje.Para Shakespeare, era “um jogo honrado”. A Tolstoi agradava por ser um bom<strong>de</strong>scanso e fazer trabalhar a mente <strong>de</strong> uma forma muito especial. Cervantes opercebeu semelhante à vida.Machado <strong>de</strong> Assis, na crônica “Antes que cases”, <strong>de</strong> 1875, discorda do espanhol:“a vida não é um jogo <strong>de</strong> xadrez”. Depois, em Iaiá Garcia, romance <strong>de</strong>1878, parece voltar atrás ao atribuir à personagem principal duas qualida<strong>de</strong>snecessárias no xadrez e na vida: “… vista pronta e paciência beneditina, qualida<strong>de</strong>spreciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas,umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”.Benjamin Franklin, autor <strong>de</strong> The Morals of Chess, <strong>de</strong> 1779, escreveu: “O xadreznão é uma fútil distração; permite <strong>de</strong>senvolver em nós as qualida<strong>de</strong>s doespírito mais necessárias à vida”. A sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ivan Turgueniev, novelistarusso, sintetizou com naturalida<strong>de</strong> o que parece ser inevitável para tantos escritores:“o xadrez é uma necessida<strong>de</strong> tão imperiosa como a literatura”. A influência <strong>de</strong> Arthur NapoleãoA cronologia do Machado enxadrista coinci<strong>de</strong> com a presença do maestroportuguês Arthur Napoleão na Corte. Foi sob sua influência que Machado <strong>de</strong>Assis se iniciou nos segredos do tabuleiro, do qual passou a ser um aficionado,fazendo do xadrez um sedativo espiritual e um salutar instrumento <strong>de</strong> convivênciasocial.Arthur Napoleão, músico e enxadrista, foi o primeiro a lutar incansavelmentepela divulgação e <strong>de</strong>senvolvimento do xadrez no Brasil a partir da década<strong>de</strong> 1860. Foi responsável pela criação <strong>de</strong> diversos clubes <strong>de</strong> xadrez, sendo oprimeiro anexo ao Club Politécnico. Menino prodígio, fez seu primeiro recital<strong>de</strong> piano aos sete anos, viajou pela Europa e também pela América, merecendo143


C. S. Soareselogios <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s personalida<strong>de</strong>s musicais. Depois <strong>de</strong> muitas viagens, fixou-se<strong>de</strong>finitivamente no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1866.Na capital do país, tornou-se comerciante <strong>de</strong> instrumentos e partituras,criando a famosa Casa Arthur Napoleão que, no papel <strong>de</strong> editora, muito incentivoue propagou a música brasileira durante décadas. Foi professor <strong>de</strong> ChiquinhaGonzaga. Arthur Napoleão é patrono da Ca<strong>de</strong>ira 18 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Música, nasceu no Porto em 6 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1843 e faleceu noRio <strong>de</strong> Janeiro em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1925.Machado <strong>de</strong>dicou a Arthur Napoleão sua crônica <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1862, publicada em O Futuro:“Falemos agora <strong>de</strong> Arthur Napoleão, que acaba <strong>de</strong> chegar ao Rio <strong>de</strong> Janeiro.Em 1857, aquele prodigioso menino inspirou verda<strong>de</strong>iro entusiasmonesta corte, on<strong>de</strong> acabava <strong>de</strong> chegar cercado pela auréola <strong>de</strong> uma reputação.(...) Com ele acontecera o mesmo que com Mozart (...). Assim cresceuArthur Napoleão na ida<strong>de</strong>, na glória e no talento”.A música e o xadrez aproximaram Machado <strong>de</strong> Assis e Arthur Napoleão,que, radicado no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> volta <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas viagens à Europa,acompanhara ao Brasil Carolina Xavier <strong>de</strong> Novais, futura esposa <strong>de</strong> Machado.Em 1868, Machado já é freqüentador do Club Fluminense com a finalida<strong>de</strong><strong>de</strong> jogar xadrez. Confessa em crônica <strong>de</strong> 1893, publicada em A Semana.Anos mais tar<strong>de</strong>, Machado praticava seu “querido xadrez” no Grêmio <strong>de</strong> Xadrezque funcionava em cima do Club Politécnico, na Rua da Constituição.Nesse salão realizou-se o match contra Artur Napoleão. No número 25 da Ilustração<strong>Brasileira</strong>, <strong>de</strong> 1<strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1877, na seção notícias, publicou-se: “Omatch entre os senhores Machado <strong>de</strong> Assis e Arthur Napoleão, dando este ocavalo da rainha, terminou ganhando o Sr. Arthur Napoleão sete partidas e osr. Machado <strong>de</strong> Assis, duas”.O interesse <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis pelo jogo se prolongou por anos a fio,conforme revelação constante nas suas correspondências com o Embaixador144


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristaJoaquim Nabuco, que em 1883 lhe enviava <strong>de</strong> Londres retalhos <strong>de</strong> jornaiscom transcrições <strong>de</strong> partidas, aten<strong>de</strong>ndo ao pedido que lhe fora feito: “Antes<strong>de</strong> falar do livro, agra<strong>de</strong>ço muito suas lembranças <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, que <strong>de</strong> quandoem quando recebo. A última, um retalho <strong>de</strong> jornal, acerca da partida <strong>de</strong> xadrez,foi-me mandada à casa pelo Hilário”.Em 4 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1882 é fundado o Club Beethoven. Meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> suafundação, recebe o ingresso dos enxadristas da época: Arthur Napoleão, CaldasVianna, Charles Pra<strong>de</strong>z, Machado <strong>de</strong> Assis e outros. A seção <strong>de</strong> jogos doclube seria <strong>de</strong>senvolvida a partir daí. Machado <strong>de</strong> Assis passaria a exercer nadiretoria do clube a função <strong>de</strong> bibliotecário. Em seus textos, ao <strong>de</strong>screver oClub Beethoven, discreto, Machado <strong>de</strong> Assis não menciona a palavra xadrez.Nos torneios realizados lá a partir <strong>de</strong> 1882, não há referência à sua participação.Assim como as referências ao jogo em sua obra vão se tornando raras.Machado é citado como solucionista <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> xadrez em diversosnúmeros da revista Ilustração <strong>Brasileira</strong> edaRevista Musical e <strong>de</strong> Belas-Artes. ArthurNapoleão, que dividiu por muito tempo o reinado do xadrez no Brasil comCaldas Vianna, redigiu seções especializadas em algumas revistas e no Jornal doCommercio.Em 1898, Arthur Napoleão publicou Caissana <strong>Brasileira</strong>, uma coleção <strong>de</strong>quinhentos problemas enxadrísticos seus e <strong>de</strong> outros problemistas. O livro reproduzum problema <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, publicado originalmenteem Ilustração <strong>Brasileira</strong>, número 24, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1877. Napoleão comentavaa respeito <strong>de</strong>sse problema: “Como Alfred <strong>de</strong> Musset, Machado <strong>de</strong>Assis compôs um bonito 2 lances”.Alfred <strong>de</strong> Musset, o poeta romântico do xadrez, parece ter sido uma das referências<strong>de</strong> Machado também como enxadrista. Em 1848, Musset tornou-semembro assíduo do famoso Café <strong>de</strong> la Régence, em Paris. O Café não era somenteo centro mundial do xadrez, mas também o lugar preferido da intelectualida<strong>de</strong>parisiense. O xadrez do século XIX fez parte do sentimento romântico.Os jogos eram francos e suicidas. O gran<strong>de</strong> mestre <strong>de</strong>ste período foiAdolf An<strong>de</strong>rssen (1818-1876). Conta-se que, no momento em que irrompe a145


C. S. SoaresRevolução <strong>de</strong> 1848, em 24 <strong>de</strong> fevereiro, Musset estava no Café, no meio <strong>de</strong>uma partida. Os tiros começavam a ser ouvidos das ruas, mas foram ignoradospelo poeta, que continuou contemplando o tabuleiro.Anos mais tar<strong>de</strong>, provavelmente inspirado pela história a respeito <strong>de</strong> Musset,Machado escreveria na crônica <strong>de</strong> 1<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1877 para a Ilustração brasileira:“Conta-se que no Café da Regência, em Paris, on<strong>de</strong> se joga o xadrez, dois adversáriostinham encetado uma partida, quando entrou um freguês às 9 horas emeia e falou a um dos jogadores: – Como tens passado, Janjão? O jogadornão lhe respon<strong>de</strong>u; mas, à meia-noite, acabada a partida, ergueu a cabeça e disseplacidamente: – Assim, assim. E tu? O outro estava, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as onze, entre oslençóis”. A ciência do xadrezO xadrez também tem servido <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> investigação nos campos da psicologia,pedagogia, informática, entre outros. Sua vinculação com a ciência etambém com a arte é inquestionável.São diversos os exemplos <strong>de</strong> sua aplicação como mo<strong>de</strong>lo para estudos <strong>de</strong>computação e técnicas <strong>de</strong> treinamento das capacida<strong>de</strong>s intelectuais. Características<strong>de</strong> arte e ciência são encontradas nas composições enxadrísticas.O xadrez parece inesgotável como o número <strong>de</strong> combinações possíveis <strong>de</strong>peças no tabuleiro. O xadrez também está presente na cultura popular contemporânea.O xadrez, como <strong>de</strong>finido pelo maestro Silvino García, “é umaarte oculta por sua linguagem”.Em 1894, o psicólogo francês Alfred Binet, um dos inventores do primeiroteste <strong>de</strong> inteligência, pesquisava a hipótese <strong>de</strong> que mestres do xadrez conseguiamformar uma imagem quase fotográfica do tabuleiro.As façanhas dos mestres do xadrez há muito são atribuídas a po<strong>de</strong>res mentaisquase mágicos. Mas a <strong>de</strong>streza no jogo, sabe-se hoje, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> treinamentoespecializado do que <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s inatas.146


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristaMais <strong>de</strong> um século <strong>de</strong> pesquisas dos psicólogos levou a novas teorias sobrecomo a mente organiza e recupera informações. O jogo é i<strong>de</strong>al para testar as teoriasdo pensamento.Digamos que o mestre esqueça a posição exata <strong>de</strong> um peão. Ele consegueencontrá-la analisando uma estratégia estereotipada da abertura. Através <strong>de</strong> associaçõesconsegue reconstituir qualquer <strong>de</strong>talhe especifico <strong>de</strong> uma partida.Como um livro, um xadrez é um artefato da memória. Um conhecimento estruturado<strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> informação.Vejamos o caso pitoresco que Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque relata, em carta aAlberto Pujol, em1916, sobre a memória visual <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis:“Certo dia, Machado me chamou na rua para contar-me este fato: disse-meque, na véspera, à tar<strong>de</strong>, quando voltava para casa, vira no Largo da Cariocaum sujeito que ele conhecia. Conhecia; mas não sabia <strong>de</strong> on<strong>de</strong>. Rodou emtorno do sujeito, fazendo um gran<strong>de</strong> esforço <strong>de</strong> memória para lembrar-se<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o vira, até que, <strong>de</strong> súbito, achou: Ah! É o Raposo do Me<strong>de</strong>iros! Eutinha publicado, dias antes, na Revista <strong>Brasileira</strong>, um conto – “As calças doRaposo”. Lendo-o, Machado <strong>de</strong> Assis evocara um certo tipo para o meuRaposo”.Machado era capaz <strong>de</strong> evocar um personagem com tanta niti<strong>de</strong>z que o julgavaencontrar na vida real. Não sabemos se Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque levouem conta em sua perspicaz observação que Machado tinha a memória treinadapelo xadrez. O conhecimento estruturado das posições do xadrez por um enxadrista,e Machado era um dos bons, permite que ele <strong>de</strong>scubra rapidamente olance correto. Um labiríntico tabuleiroParece-me correta a assertiva da psiquiatra e historiadora Nádia WeberSantos <strong>de</strong> que a escrita <strong>de</strong> si seja uma fonte privilegiada para se tecer uma re<strong>de</strong>147


C. S. Soares<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>s (constituintes da interiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto) a ser percebidasobre certa questão, em <strong>de</strong>terminada época, levando a uma busca mais pormenorizadaem seus conteúdos.No centenário da morte <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, o autor e sua obra continuaminesgotáveis como as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lances <strong>de</strong> uma partida <strong>de</strong> xadrez.Se às jogadas do escritor fossem dados contornos <strong>de</strong> conto, talvez seus leitorespu<strong>de</strong>ssem ser conduzidos com segurança pelas estratégicas casas claras e escuras,sugerindo que a trama se <strong>de</strong>senrola em um tempo in<strong>de</strong>terminado, comoem suma é o próprio tempo em um tabuleiro <strong>de</strong> xadrez.Um livro é apenas um livro <strong>de</strong> todas as possibilida<strong>de</strong>s que o arranjo <strong>de</strong> suasjogadas, ou histórias, po<strong>de</strong> conter. Esse é o princípio da combinatória. Esse é oprincípio do jogo que Machado e seus leitores jogam.Além da própria vida, certos livros sabem fazer as vezes <strong>de</strong> xadrez. O estranhocircular <strong>de</strong> seu labiríntico tabuleiro, tecido <strong>de</strong> palavras, nos causa a estranheza<strong>de</strong> que recorrer às páginas do Thought and Choice in Chess, <strong>de</strong> Adriaan D. <strong>de</strong>Groot, em busca <strong>de</strong> uma justificativa seria pura perda <strong>de</strong> tempo, explicações àbase <strong>de</strong> aspirinas que não nos tranqüilizariam o espírito, apenas uma pausapara a nossa tolice. Afinal, se vale o que está escrito (e disso não <strong>de</strong>vemos terdúvida) é porque sempre nos foi ensinado a jamais <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> acreditar no queestá escrito.Dom Casmurro é um exemplo contun<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que ao leitor-enxadrista Machado<strong>de</strong>ixa, como escolha, acreditar ou não se o que está acontecendo, pelomenos em seus motivos principais, aconteceu, acontecerá ou <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> acontecer(essa, ao menos, é a minha mais profunda e sincera esperança).Se estivemos corretos em nossa suposição, Dom Casmurro é um jogo <strong>de</strong> xadrez,com jogadas e padrões enxadrísticos a serem <strong>de</strong>codificados e extraídosdo romance. As personagens serão como peças, e os capítulos como casas dotabuleiro. Machado <strong>de</strong> Assis, tal e qual o jogador <strong>de</strong> xadrez <strong>de</strong> O Lobo da Estepe,<strong>de</strong> Hermann Hesse, dá lições sobre a formação da nossa personalida<strong>de</strong>. As peçascom que joga são as mesmas pelas quais reduzimos nossa personalida<strong>de</strong>. Écom elas que escritor e leitores jogam. Não po<strong>de</strong>m jogar sem elas.148


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadrista Xeque-mate?Aqui, nosso jogo se aproxima <strong>de</strong> um (talvez ilusório) final. Poucas são aspeças que ainda estão sobre o tabuleiro, mas é ele que agora parece multiplicar-se.O rei está prestes a sofrer o xeque-mate i<strong>de</strong>al. Machado, como um gran<strong>de</strong>mestre do xadrez, consegue manter o suspense e a atenção <strong>de</strong> sua platéia atéa sua próxima surpreen<strong>de</strong>nte jogada.É como um truque <strong>de</strong> mágica, coisa <strong>de</strong> ilusionista: executa alguns truquescom as mãos, mostra uma peça do tabuleiro (a rainha, por exemplo,outros a conhecem por Capitu), dizendo que irá executar uma mágicausando uma simples peça; pe<strong>de</strong> que a verifiquemos; junta as mãos entrelaçandoos <strong>de</strong>dos sem soltá-la; <strong>de</strong>ixa um dos <strong>de</strong>dos solto, escondido atrás dosoutros; pren<strong>de</strong> a peça com esse <strong>de</strong>do; não <strong>de</strong>ixa que ninguém perceba queele a segura; diz uma palavra mágica e, voilà!, separa as mãos sem soltar os<strong>de</strong>dos. O que vemos, então? Uma peça que flutua, para sempre, em nossoimaginário.Parabéns pelo truque, Machado. Parabéns pelo belo e inesgotável xadrez!Machado joga com seus leitores um xadrez coletivo. A obra só estará completana impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jamais voltar a ser lida. Enquanto um livro <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis for exumado <strong>de</strong> uma estante e lido, é porque a partida continua,a próxima jogada é esperada. O próximo movimento será executado.Em algum lugar, no meio daquelas páginas, Machado ainda joga. Jogamoscom ele. É pela leitura que movemos as peças, e o autor realiza o seu lance <strong>de</strong>mestre, segue para a próxima mesa, para o próximo tabuleiro (ou livro aberto),executa outro movimento, e outro e mais outro, completa o circuito evolta ao início.Estamos em xeque. O próximo movimento do enxadrista Machado<strong>de</strong> Assis é um enigma. A ressaca no olhar <strong>de</strong> Capitu é apenas um <strong>de</strong>les.Pistas essenciais para o estudo da obra do gran<strong>de</strong> escritor brasileiro po<strong>de</strong>rãoser <strong>de</strong>scobertas nos labirintos do tabuleiro, no contínuo movimentodas peças?149


C. S. SoaresPrecisamos manter a vista pronta e a paciência beneditina, pois aqui jogaremosxadrez. Porque só a partir do xadrez, creiam, Machado <strong>de</strong> Assis, o inesgotável,po<strong>de</strong>rá ser explicado. Mas até on<strong>de</strong>? Até quando? Cronologia enxadrística <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis1862-1865: Iniciação ao jogo, provavelmente contagiado pelo entusiasmo <strong>de</strong>seu amigo Arthur Napoleão (dos Santos), que disputara uma partida, emNova York, contra o famoso campeão mundial Paul-Charles Morphy.1866-1876: Partidas avulsas no Club Fluminense.1877-1879: Fundação do Grêmio <strong>de</strong> Xadrez, no Club Politécnico (Rua daConstituição, 47), on<strong>de</strong> havia reunião todas as sextas-feiras. Match contraArthur Napoleão, levando partido <strong>de</strong> um cavalo. Per<strong>de</strong>u por 7 a 2. Gran<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>como solucionador <strong>de</strong> problemas publicados na imprensa da época.Compõe um problema e um enigma (publicados na revista Ilustração <strong>Brasileira</strong>).1880: Participação no primeiro Torneio <strong>de</strong> Xadrez realizado no Brasil.Obtém a terceira colocação, entre seis disputantes, com dois pontos.1882-1890: Jogos no Club Beethoven, na Rua do Catete, e, <strong>de</strong>pois, no Cais daGlória, 62, para on<strong>de</strong> se transferiram os enxadristas e se realizaram vários torneios,nos quais, contudo, o romancista não tomou parte.1898: Última referência às ativida<strong>de</strong>s enxadrísticas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis coma publicação <strong>de</strong> um problema seu na Caissana <strong>Brasileira</strong>, <strong>de</strong> Arthur Napoleão.150


Machado <strong>de</strong> Assis, o enxadristaPara saber maisBLOCH, Marc. Apologia da História ou O Oficio <strong>de</strong> Historiador. Rio <strong>de</strong> Janeiro: JorgeZahar Ed., 2001.CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. São Paulo: Ateliê Editorial,2002.PIZA, Daniel. Machado <strong>de</strong> Assis: Um Gênio Brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial,2005.HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. São Paulo: Editora Record, 1995.DEGROOT, Adriann. Thought and Choice in Chess. Mouton De Gruyter; 2nd edition,1978.MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra Completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: NovaAguilar, 1994.PUJOL, Alfredo. Machado <strong>de</strong> Assis: Curso Literário em Sete Conferências na Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Cultura Artística <strong>de</strong> São Paulo [apresentação <strong>de</strong> Alberto Venancio Filho]. Rio <strong>de</strong>Janeiro: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado<strong>de</strong> São Paulo, 2007.SHENK, David. O Jogo Imortal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.BAYOLO, Jesús González. El ajedrez es la piedra <strong>de</strong> toque <strong>de</strong>l intelecto. In:Boletín <strong>de</strong> La Fe<strong>de</strong>ración Cubana <strong>de</strong> Ajedrez, Vol II-22, n. o 32, Janeiro 1998.(http://www.cuba.cu/ajedrez/boletin/confe32.zip).BILALIC´, Merim; MCLEOD, Peter; GOBET, Fernand. Personality profiles ofyoung chess players. In: Science Direct. August 2006.CANT, Gilbert. Why They Play: The Psychology of Chess. In: Time Magazine.Vol 100, n. 10, setembro 1972. http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,910405,00.htmlDOYLE, Plínio. Machado <strong>de</strong> Assis, jogador <strong>de</strong> xadrez. In: Boletim da Socieda<strong>de</strong> dosAmigos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 1, pp. 22-23, setembro 1958.MATHIAS, Herculano Gomes. Machado <strong>de</strong> Assis e o jogo <strong>de</strong> xadrez. In: Anais doMuseu Histórico Nacional. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Vol XIII, pp. 143-185, 1964.ROSS, Philip E. Mentes brilhantes. In: Scientific American Brasil. São Paulo, n. o 52,pp. 60-67,setembro 2006.151


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<strong>Prosa</strong>Machado <strong>de</strong> Assise o teatroJoão Roberto FariaOobjetivo <strong>de</strong>ste breve estudo é apresentar <strong>de</strong> maneira sintéticacomo se <strong>de</strong>u o envolvimento <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis como teatro, que o levou a escrever comédias, traduzir peças, fazer críticae tornar-se censor do Conservatório Dramático Brasileiro. Tudoisso entre os 20 e os 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, quando se afirmou no cenáriocultural do Rio <strong>de</strong> Janeiro também como poeta, crítico literário e folhetinista. O crítico teatralO interesse <strong>de</strong> Machado pelo teatro <strong>de</strong>u-se provavelmente naadolescência. Em crônicas escritas na maturida<strong>de</strong> ele rememora ofascínio que tinha pelo teatro <strong>de</strong> bonecos e que “regalou-se” quandomenino com o Antônio Joséou O Poeta e a Inquisição, <strong>de</strong> Gonçalves <strong>de</strong>Magalhães, representado por João Caetano. É certo que freqüentavanão só o teatro dramático mas igualmente o teatro lírico, pois umProfessor Titular<strong>de</strong> Literatura<strong>Brasileira</strong> na USP,on<strong>de</strong> concluiu oMestrado, oDoutorado e aLivre-Docência.É pesquisadordo CNPq ecoor<strong>de</strong>nadorda coleção“Dramaturgos doBrasil”, da editoraMartins FontesÉ autor dosseguintes livros:José <strong>de</strong> Alencar e oTeatro; O TeatroRealista no Brasil:1855-1865;O Teatro na Estantee Idéias Teatrais: oSéculo XIX no Brasil153


João Roberto Fariados poemas que publicou aos 16 anos, no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 7 fevereiro<strong>de</strong> 1856, era <strong>de</strong>dicado à cantora lírica Arsène Charton 1 . O interesse precocepelo teatro explica também por que um dos seus primeiros textos críticos, escritoaos 17 anos e publicado na Marmota Fluminense <strong>de</strong> seu amigo Paula Brito,em 31<strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1856, tenha versado justamente sobre “a comédia mo<strong>de</strong>rna”.O título mo<strong>de</strong>sto, “Idéias vagas”, fazia jus ao conhecimento ainda precárioda matéria tratada, mas já anunciava a disposição do jovem Machado paratornar-se crítico teatral, trabalho que assumiu no jornal O Espelho, no segundosemestre <strong>de</strong> 1859. Ao aceitar o compromisso <strong>de</strong> escrever um folhetim semanal,<strong>de</strong>via se sentir preparado para comentar peças e espetáculos, não só porqueera um rapaz inteligente e estudioso, mas seguramente porque vinhaacompanhando o movimento teatral como espectador.O que Machado presenciou nos palcos do Rio <strong>de</strong> Janeiro, na segunda meta<strong>de</strong>da década <strong>de</strong> 1850, foi uma estimulante rivalida<strong>de</strong> entre dois teatros que dividiamas preferências do público e dos escritores e intelectuais que atuavamna imprensa. O Teatro S. Pedro <strong>de</strong> Alcântara, o maior e principal da cida<strong>de</strong>,subsidiado pelo governo imperial, era administrado pelo ator e empresárioJoão Caetano, que tinha atrás <strong>de</strong> si um passado <strong>de</strong> glórias: fora o primeiro acriar uma companhia dramática brasileira, e, junto com Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães,renovara a cena romântica em 1838, interpretando o papel principal <strong>de</strong>Antônio Joséou O Poeta e a Inquisição. O repertório <strong>de</strong> tragédias neoclássicas, melodramase dramas românticos que ofereceu ao público ao longo da carreira projetou-ocomo gênio da cena, intérprete inigualável e sem rivais em territóriobrasileiro.Em 1855, a hegemonia do Teatro S. Pedro <strong>de</strong> Alcântara começou a serameaçada pelo Teatro Ginásio Dramático, criado pelo empresário JoaquimHeleodoro dos Santos. Nos primeiros meses <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s, a pequena empresaencenou apenas comédias curtas e vau<strong>de</strong>villes <strong>de</strong> Scribe, traduzidos pela atriz1 R. Magalhães Júnior, Vida e Obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização <strong>Brasileira</strong>,INL/MEC, 1981, vol. 1, p. 26.154


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroMaria Velluti. Já a partir do final <strong>de</strong> 1855 e durante os anos que se seguiram, oGinásio especializou-se na representação <strong>de</strong> peças francesas <strong>de</strong> autores comoAlexandre Dumas Filho, Émile Augier, Octave Feuillet, Théodore Barrière,entre outros, que foram chamadas <strong>de</strong> “realistas”, por trazerem à cena algunsaspectos da vida cotidiana do presente. De um modo geral, a comédia realistafrancesa é uma peça séria, que não procura provocar o riso, pois visa antes <strong>de</strong>tudo à <strong>de</strong>scrição positiva dos costumes e valores da vida burguesa. Os diálogose as cenas são construídos com o máximo <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong>, mas ao realismopretendido soma-se uma preocupação com a finalida<strong>de</strong> moral que o teatropo<strong>de</strong> alcançar. Ou seja: à <strong>de</strong>scrição dos costumes justapõe-se a prescrição <strong>de</strong>valores como o trabalho, a honestida<strong>de</strong>, o casamento e a família, no interior <strong>de</strong>um enredo que contrapõe bons e maus burgueses. Nessa dramaturgia não hámais lugar para os <strong>de</strong>svarios românticos, presentes nos dramas <strong>de</strong> VictorHugo e Alexandre Dumas, ou para os exageros dos melodramas. O bom sensoburguês prevalece para que o palco se transforme em uma tribuna, um espaçopara o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> idéias sobre a vida em família e em socieda<strong>de</strong>. O objetivo <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>bate: regenerar, moralizar e educar o espectador.Não tardou para que essa concepção <strong>de</strong> teatro, apoiada pela jovem intelectualida<strong>de</strong>,começasse a dar frutos no Brasil. José <strong>de</strong> Alencar saiu à frente <strong>de</strong> todose, em 1857, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estrear com uma comédia curta, viu o Ginásio representar,<strong>de</strong> sua autoria, as comédias realistas O Demônio Familiar e O Crédito.Eem1858, As Asas <strong>de</strong> um Anjo, que, por abordar o espinhoso tema da regeneração dacortesã, foi proibida pela polícia.Ao assumir o posto <strong>de</strong> crítico teatral em O Espelho, Machado estava a par doque ocorria nos palcos do S. Pedro e do Ginásio. Percebeu que não se tratavaapenas <strong>de</strong> uma questão empresarial, mas <strong>de</strong> uma disputa no terreno estético, eque <strong>de</strong>via fazer uma opção. Ou ficava com João Caetano, o gran<strong>de</strong> ator do Romantismo,e seu repertório já um tanto anacrônico, ou se aliava aos jovens <strong>de</strong>sua ida<strong>de</strong> que apoiavam o realismo teatral do Ginásio. A leitura dos folhetinsnão <strong>de</strong>ixa margem a dúvidas. Já no primeiro, publicado a 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1859, Machado afirma “pertencer” à escola realista por consi<strong>de</strong>rá-la “mais155


João Roberto Fariasensata, mais natural, e <strong>de</strong> iniciativa moralizadora e civilizadora” 2 . No mesmotexto, critica o “<strong>de</strong>sfecho sanguinolento” e “nada conforme com o gosto dramáticomo<strong>de</strong>rno” do drama Cobé, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, representadono Teatro S. Pedro <strong>de</strong> Alcântara, evi<strong>de</strong>nciando assim a sua inclinação pelorepertório realista.O que nesse momento seduziu Machado e os intelectuais <strong>de</strong> sua geração foia idéia <strong>de</strong> que o teatro, mais que entretenimento ou mero passatempo das massas,podia ser uma forma <strong>de</strong> arte útil para a socieda<strong>de</strong>. Dizia, então:“O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa<strong>de</strong> moral e civilização. Ora, não se po<strong>de</strong> moralizar fatos <strong>de</strong> pura abstraçãoem proveito das socieda<strong>de</strong>s; a arte não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>svairar-se no doido infinitodas concepções i<strong>de</strong>ais, mas i<strong>de</strong>ntificar-se com o fundo das massas; copiar,acompanhar o povo em seus diferentes movimentos, nos vários modose transformações da sua ativida<strong>de</strong>.Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula é uma dasforças mais produtivas com que conta a socieda<strong>de</strong> em sua marcha <strong>de</strong> progressoascen<strong>de</strong>nte.Assim os <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> transição lá vão passando e à artemo<strong>de</strong>rna toca corrigi-la <strong>de</strong> todo”. 3Machado compara o teatro à imprensa e à tribuna, que são “os outros doismeios <strong>de</strong> proclamação e educação pública”. O tom enfático <strong>de</strong> um dos seus folhetinsrevela o jovem que acredita nas instituições e no po<strong>de</strong>r transformador dapalavra, quando empregada convenientemente. O aspecto político <strong>de</strong> seus argumentosaparece claramente em uma das suas proposições <strong>de</strong> nítido corte liberal:“No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um <strong>de</strong>senvolvimentoconveniente – as caligens cairão aos olhos das massas; morreráo privilégio, obra da noite e da sombra; e as castas superiores da socie-2 Machado <strong>de</strong> Assis, Crítica Teatral, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jackson, vol. 30, 1950, p. 30.3 I<strong>de</strong>m, p. 10.156


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroda<strong>de</strong> ou rasgarão os seus pergaminhos ou cairão abraçadas com eles,como em sudários”. 4Isso que po<strong>de</strong> parecer uma posição um tanto conservadora para os nossosdias – a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um teatro com feição utilitária, comprometido com os valoreséticos da burguesia –, na época era o que havia <strong>de</strong> mais mo<strong>de</strong>rno em termosestéticos, por um lado, e em termos políticos, por outro. Em termos estéticos,porque o realismo teatral instaurara um novo modo <strong>de</strong> escrever peçase <strong>de</strong> propor a ação dramática no palco. Sem os excessos do melodrama ou dodrama romântico, a naturalida<strong>de</strong> dos diálogos e do trabalho do intérpretecolocava a cena brasileira em outro patamar. A farsa <strong>de</strong> costumes <strong>de</strong> MartinsPena ou Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, com seus recursos do baixo-cômico eridicularização das camadas populares, era substituída pela alta comédia, entendidacomo uma fotografia das classes superiores da socieda<strong>de</strong>, retocadapelo pincel moralizador. “Daguerreótipo moral” era como Alencar <strong>de</strong>finiasuas peças i<strong>de</strong>ntificadas com o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Alexandre Dumas Filho. Em termospolíticos, o mo<strong>de</strong>rno se impunha porque o que se aspirava era a uma revoluçãonos costumes a partir da prescrição dos valores burgueses. Num paísem formação, o mo<strong>de</strong>lo da socieda<strong>de</strong> francesa que se via nas comédias realistasera o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>sejável para a nossa burguesia emergente, já aberta ao liberalismo,mas em conflito com a própria realida<strong>de</strong> econômica do país, assentadana escravidão. 5Machado, liberal convicto nessa fase da sua vida, não se cansou <strong>de</strong> elogiar aspeças que con<strong>de</strong>navam a escravidão ou que apresentavam “tendências liberais”– como os dramas O Escravo Fiel, <strong>de</strong> Carlos Antônio Cor<strong>de</strong>iro, e Pedro,<strong>de</strong>Men<strong>de</strong>sLeal Jr., que consi<strong>de</strong>rou fracas do ponto <strong>de</strong> vista literário. Entre os aspectospositivos que via no drama Luís, <strong>de</strong> Ernesto Cibrão, estava o “sentimento4 I<strong>de</strong>m, pp. 17-18.5 Tal contradição, como se sabe, mereceu análises argutas <strong>de</strong> Roberto Schwarz, em seus estudos sobreMachado <strong>de</strong> Assis, especialmente nos livros Ao Vencedor as Batatas (São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 1977) eUm Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado <strong>de</strong> Assis (São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 1990).157


João Roberto Faria<strong>de</strong>mocrático”, também expresso como “sentimento liberal”, na apreciação <strong>de</strong>Feio no Corpo, Bonito n’Alma, <strong>de</strong> José Romano.Como crítico teatral, po<strong>de</strong>-se dizer que raras vezes Machado dirigiu elogiosàs peças representadas por João Caetano no S. Pedro <strong>de</strong> Alcântara. Reconheciao talento do famoso ator, mas não lhe perdoava o repertório anacrônico, a falta<strong>de</strong> iniciativa para se atualizar enquanto artista, o que significava manter oseu público distanciado das novas tendências teatrais. Quando o ator recolocouem cena A Nova Castro, tragédia neoclássica <strong>de</strong> João Batista Gomes Júnior,que vinha oferecendo ao público <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1839, escreveu:“Aprecio o Sr. João Caetano, conheço a sua posição brilhante na galeriadramática <strong>de</strong> nossa terra. Artista dotado <strong>de</strong> um raro talento, escreveu muitasdas mais belas páginas da arte. Havia nele vigorosa iniciativa a esperar. Desejo,como <strong>de</strong>sejaram os que protestaram contra a velha religião da arte, que<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua mão po<strong>de</strong>rosa a platéia <strong>de</strong> seu teatro se eduque e tome umaoutra face, uma nova direção; ela se converteria <strong>de</strong>certo às suas idéias e nãooscilaria entre as composições-múmias que <strong>de</strong>sfilam simultâneas em procissãopelo seu tablado”. 6Vários outros intelectuais, em ocasiões diferentes, já haviam feito cobrançassemelhantes e pedido a João Caetano que <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> se preocupar com aglória pessoal e que trabalhasse pelo futuro do teatro brasileiro. Machado firmousua posição e em outros folhetins repetiu os ataques, uma vez que o atorcontinuou a recorrer às “composições-múmias” <strong>de</strong> sempre. Em contrapartida,nos folhetins <strong>de</strong> O Espelho, o Ginásio é o seu “querido Ginásio”, que ele consi<strong>de</strong>rao primeiro teatro da capital, porque “iniciou ao público, então sufocadona poeira do romantismo, a nova transformação da arte – que invadia então aesfera social”. 76 Machado <strong>de</strong> Assis, Crítica Teatral, pp. 58-59.7 I<strong>de</strong>m, p. 40.158


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroEm outras palavras, o Ginásio revelou para os brasileiros as peças do realismoteatral francês, com as quais conquistou a simpatia da jovem intelectualida<strong>de</strong>.Como as diferenças entre as duas companhias dramáticas nãose resumiam ao repertório e eram visíveis também no terreno da interpretação,Machado elogiou artistas como Furtado Coelho, Gabriela da Cunha eJoaquim Augusto <strong>de</strong> Sousa, que procuravam atingir o máximo <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong>em seus <strong>de</strong>sempenhos, visando ao efeito realista, e criticou os artistasdo S. Pedro, que se <strong>de</strong>ixavam levar pelos exageros típicos da interpretaçãoromântica, como os gestos arrebatados, a fisionomia carregada e a voz empostada.Com o fechamento <strong>de</strong> O Espelho, Machado transferiu-se para o Diário do Rio<strong>de</strong> Janeiro, a convite <strong>de</strong> Quintino Bocaiúva. Era uma espécie <strong>de</strong> promoção, umreconhecimento <strong>de</strong> seu talento e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho. Durante sete anos,entre 1860 e 1867, nosso escritor amadureceu seu estilo e idéias, escrevendoeditoriais, folhetins, crítica literária e crítica teatral. Colaborou ainda em outrosjornais e entre 1862 e 1864 foi censor do Conservatório Dramático, parao qual emitiu 16 pareceres. A leitura do conjunto dos textos escritos nesse períodopermite acompanhar algumas mudanças em seu pensamento sobre o teatrocomo fenômeno artístico. Num primeiro momento, ele recua das posiçõesfrancamente favoráveis ao realismo teatral, colocando-se numa posição conciliadoraem relação aos movimentos literários:“Não subscrevo, em sua totalida<strong>de</strong>, as máximas da escola realista, nem aceito,em toda a sua plenitu<strong>de</strong>, a escola das abstrações românticas; admito eaplaudo o drama como a forma absoluta do teatro, mas nem por isso con<strong>de</strong>noas cenas admiráveis <strong>de</strong> Corneille e Racine”. 8Escrevendo em um dos três principais jornais do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Machadoprocurou colocar-se acima das escolas literárias, para libertar-se <strong>de</strong> qualquer8 I<strong>de</strong>m, p. 45.159


João Roberto Fariasectarismo no julgamento das peças teatrais. Para o exercício da crítica, pôs emprimeiro plano os critérios estéticos, como esclarece ao afirmar que o belo nãoera exclusivo <strong>de</strong> nenhuma forma dramática, mas do trabalho do artista:“Entendo que o belo po<strong>de</strong> existir mais revelado em uma forma menos imperfeita,mas não é exclusivo <strong>de</strong> uma só forma dramática. Encontro-o noverso valente da tragédia, como na frase ligeira e fácil com que a comédianos fala ao espírito”. 9Definindo-se como um crítico teatral in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e imparcial, Machadopô<strong>de</strong> apreciar alguns dramas românticos, como o Ângelo, <strong>de</strong> Victor Hugo, encenadoem 1865, e os espetáculos protagonizados pela gran<strong>de</strong> atriz românticaportuguesa Emília das Neves em 1864 e 1865. Essa posição mais aberta emrelação ao Romantismo e ao Realismo na primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1860não impediu que <strong>de</strong>monstrasse muitas vezes maior inclinação pelos preceitosbásicos do realismo teatral. A preocupação com a moralida<strong>de</strong> reaparece emmuitos folhetins, pois o crítico continua a acreditar que o teatro po<strong>de</strong> ser uma“escola <strong>de</strong> costumes”, <strong>de</strong>finição que aparece em suas apreciações, ao lado <strong>de</strong>outras equivalentes, como “pedra <strong>de</strong> toque da civilização” ou “uma tribuna euma escola”.Nos pareceres que emitiu para o Conservatório Dramático, o apreço pelaspeças realistas é ainda mais perceptível. Censor rigoroso, Machado utilizoutermos fortes para exprimir sua impaciência com as obras mal realizadas.Assim, a comédia A Mulher que o Mundo Respeita, do português Veridiano Henriquedos Santos Carvalho, não passava <strong>de</strong> uma “baboseira”; e o drama AsConveniências, original brasileiro <strong>de</strong> Quintino Francisco da Costa, era apenas“um feixe <strong>de</strong> incongruências”. Já as comédias realistas <strong>de</strong> Émile Augier, OsDescarados e As Leoas Pobres, mereceram elogios rasgados. Eis o que escreveu sobrea segunda:9 I<strong>de</strong>m, p. 160.160


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatro“Sempre que o poeta dramático limitar-se à pintura singela do vício e davirtu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> maneira a inspirar, esta a simpatia, aquele o horror, sempre quena reprodução dos seus estudos tiver presente à idéia que o teatro é uma escola<strong>de</strong> costumes e que há na sala ouvidos castos e mo<strong>de</strong>stos que o ouvem,sempre que o poeta tiver feito esta observação, as suas obras sairão irrepreensíveisno ponto <strong>de</strong> vista da moral”. 10Para Machado, peças <strong>de</strong>sse tipo – com alcance moral, mérito literário e “verda<strong>de</strong>nos caracteres e naturalida<strong>de</strong> nas situações” – <strong>de</strong>viam não apenas ser licenciadas,mas protegidas <strong>de</strong> censores intolerantes em relação ao realismo teatral.O mesmo tipo <strong>de</strong> elogio é feito a Os Íntimos, <strong>de</strong> Victorien Sardou, comédia“altamente moral e altamente literária”. Nessas duas características, a síntesedo que Machado queria encontrar nas peças <strong>de</strong> teatro: o cuidado formal e oconteúdo edificante. Para fundamentar sua crença na função civilizadora emoralizadora do teatro, o escritor gostava também <strong>de</strong> citar uma passagem doprefácio da Lucrécia Bórgia <strong>de</strong> Victor Hugo. No folhetim <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong>1861, transcreve-a, para reafirmar seu ponto <strong>de</strong> vista:“O teatro é uma tribuna, o teatro é um púlpito. O drama, sem sair dos limitesimparciais da arte, tem uma missão nacional, uma missão social e umamissão humana. Também o poeta tem cargos d’almas. Cumpre que o povonão saia do teatro sem levar consigo alguma moralida<strong>de</strong> austera e profunda.A arte só, a arte pura, a arte propriamente dita não exige tudo isso do poeta;mas no teatro não basta preencher as condições da arte”. 11Mais importante para ampliar o nosso conhecimento das idéias teatrais <strong>de</strong>Machado é lembrar que essa citação foi feita a propósito <strong>de</strong> uma discussão travadacom um intelectual da época, Macedo Soares, autor <strong>de</strong> dois artigos publica-10 “Pareceres emitidos por Machado <strong>de</strong> Assis”. In: Revista do Livro, Rio <strong>de</strong> Janeiro, INL/MEC,jun/1956, p. 188.11 Machado <strong>de</strong> Assis, Crônicas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jackson, 1951, vol. 20, pp. 99-100.161


João Roberto Fariados no Correio Mercantil, intitulados “O teatro, a concorrência e o governo”. Oconselheiro do Império, ministro Souza Ramos, havia <strong>de</strong>signado uma comissãopara estudar os problemas do teatro – formada por Cardoso <strong>de</strong> Menezes e Souza,José <strong>de</strong> Alencar e Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo –, e Macedo Soares, <strong>de</strong>sejandoparticipar da discussão, expôs suas idéias, entre as quais a <strong>de</strong> que o governonão <strong>de</strong>via subsidiar companhias dramáticas e que o teatro <strong>de</strong>via submeter-se à“doutrina liberal da concorrência”. Machado, apesar da simpatia pelos liberais,com quem convivia no Diário, opôs-se firmemente a Macedo Soares. Citou VictorHugo para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que o teatro não era uma “indústria”, que as peças nãoeram “mercadorias”, que o governo <strong>de</strong>via ter, sim, uma responsabilida<strong>de</strong> em relaçãoà arte. “Criar no teatro uma escola <strong>de</strong> arte, <strong>de</strong> língua e <strong>de</strong> civilização não éobra da concorrência”, afirma, para em seguida sugerir as medidas que o governo<strong>de</strong>veria tomar para impulsionar o teatro no Brasil:“Uma legislação emanada da autorida<strong>de</strong>, e reunião dos melhores artistas, aescolha dos mestres <strong>de</strong> ensino, a criação <strong>de</strong> escolas elementares, on<strong>de</strong> seaprenda arte e língua, duas coisas muitas vezes ausentes <strong>de</strong> nossas cenas, aboa remuneração ao trabalho dos compositores, um júri <strong>de</strong> julgamento <strong>de</strong>peças em boas bases, ficando extinto o Conservatório, tudo isso sem cuidar-sena flutuação das receitas, tais são os fundamentos, não <strong>de</strong> um teatro-escola,mas do teatro, na sua acepção mais abstrata”. 12Menos <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>pois, em setembro <strong>de</strong> 1862, Machado volta a discutira situação do teatro nacional. Os pareceres da comissão nomeada por SouzaRamos não <strong>de</strong>ram em nada, não se criou uma escola <strong>de</strong> teatro amparada pelogoverno e as companhias dramáticas em ativida<strong>de</strong> continuavam sem nenhumtipo <strong>de</strong> subvenção. Até mesmo João Caetano havia perdido a sua – ele que durantemuitos anos havia tido esse benefício –, porque a comissão orçamentáriapara o ano <strong>de</strong> 1862-1863 julgou que a verba <strong>de</strong>stinada ao S. Pedro <strong>de</strong> Alcânta-12 I<strong>de</strong>m, pp. 98-99.162


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatrora, “longe <strong>de</strong> prestar a utilida<strong>de</strong> que se tem em vista, ela entorpece o <strong>de</strong>senvolvimentoda arte, afastando a concorrência livre, primeira lei do trabalho”. 13Nos anos que se seguiram, Machado jamais abdicou <strong>de</strong> sua posição favorávelà subvenção. Sempre que pô<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-a com os argumentos buscadosem sua concepção <strong>de</strong> teatro. Para se ter uma idéia <strong>de</strong> como foi uma luta inglória,basta ler a crônica <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1865, na qual ele reitera a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> se criar no Brasil um “teatro normal”, isto é, uma companhia dramáticaadministrada pelo governo, junto da qual funcionaria uma escola <strong>de</strong> formação<strong>de</strong> atores. Como o governo, segundo informa, “sustenta uma aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> músicae uma <strong>de</strong> pintura e estatuária, só po<strong>de</strong> negar-se a sustentar uma aca<strong>de</strong>miadramática fundado na razão das suas predileções pessoais, o que não po<strong>de</strong> seruma razão <strong>de</strong> governo”. 14As intervenções <strong>de</strong> Machado no <strong>de</strong>bate cultural foram, portanto, bastanteabrangentes. Como crítico teatral e folhetinista, escreveu sobre a maior partedos espetáculos teatrais que se realizaram entre setembro <strong>de</strong> 1859 e maio <strong>de</strong>1865. Mais que isso, expôs com franqueza suas idéias sobre o teatro, elogiou ecriticou os intérpretes que viu nos palcos, discorreu sobre a forma <strong>de</strong> organizaçãodas companhias dramáticas, estimulou o fortalecimento da dramaturgianacional, além <strong>de</strong> reivindicar o tempo todo a melhoria das condições <strong>de</strong> trabalhopara os artistas e a proteção do governo para a arte.É nos textos escritos a partir do segundo semestre <strong>de</strong> 1865 que percebemosuma mudança mais significativa no pensamento crítico <strong>de</strong> Machado. A propósitodo drama O Suplício <strong>de</strong> uma Mulher, <strong>de</strong> Dumas Filho e Émile <strong>de</strong> Girardin, eleescreve um folhetim no qual introduz uma reflexão nova, relativa à questão damoralida<strong>de</strong>. Vimos como ele sempre valorizou o alcance moral das peças realistas,comprometidas com a visão <strong>de</strong> mundo burguesa e com os valores éticos<strong>de</strong>ssa classe. Agora, ao elogiar o drama que ele mesmo traduziu, modifica a suacompreensão da moralida<strong>de</strong>, citando Mme. <strong>de</strong> Staël, para quem “uma obra émoral se a impressão que se recebe é favorável ao aperfeiçoamento da alma hu-13 Cf. Décio <strong>de</strong> Almeida Prado, João Caetano, Perspectiva/Edusp, 1972, p. 175.14 Machado <strong>de</strong> Assis, Crônicas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jackson, 1951, vol. 21, p. 292.163


João Roberto Fariamana... A moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma obra consiste nos sentimentos que ela inspira”. 15Ou seja, ao aceitar essa <strong>de</strong>finição, Machado supera a limitação que o conceitotinha quando o empregava para atacar a doutrina da “arte pela arte”. Ligar oconceito <strong>de</strong> obra moral ao aperfeiçoamento da natureza humana significa vencero utilitarismo burguês. Tivesse entrado em contato com Mme. <strong>de</strong> Staël antes,muitos dos julgamentos que fez teriam sido diferentes.É muito provável que essa nova compreensão do que <strong>de</strong>va ser a moralida<strong>de</strong>tenha abalado a antiga crença na ação transformadora do teatro. Em 1866,num longo estudo sobre a dramaturgia <strong>de</strong> Alencar, Machado critica as ousadias<strong>de</strong> As Asas <strong>de</strong> um Anjo, peça que traz à cena o mundo da prostituição com umadose <strong>de</strong> realismo um tanto forte. E con<strong>de</strong>na exatamente a teoria que a teria ditadoao autor, ou seja, a <strong>de</strong> que, “pintando os costumes <strong>de</strong> uma classe parasita eespecial, conseguir-se-ia melhorá-la e influir-lhe o sentimento do <strong>de</strong>ver”. Paracompletar o seu raciocínio, compara a peça <strong>de</strong> Alencar aos seus mo<strong>de</strong>los franceses,negando-lhes o alcance transformador no qual tanto acreditou nos anosanteriores:“Pondo <strong>de</strong> parte esta questão da correção dos costumes por meio do teatro,coisa duvidosa para muita gente, perguntaremos simplesmente se há quemacredite que as Mulheres <strong>de</strong> Mármore,oMundo Equívoco,oCasamento <strong>de</strong> Olímpia eas Asas <strong>de</strong> um Anjo chegassem a corrigir uma única das Marias e das Paulinasda atualida<strong>de</strong>. A nossa resposta é negativa; e se as obras não serviam ao fimproposto, serviriam acaso <strong>de</strong> aviso à socieda<strong>de</strong> honesta? Também não, pelarazão simples <strong>de</strong> que a pintura do vício nessas peças (exceção feita das Asas<strong>de</strong> um Anjo) é feita com todas as cores brilhantes, que seduzem, que atenuam,que fazem quase do vício um resvalamento reparável”. 16Como se vê, a comédia realista não fica incólume ao novo olhar <strong>de</strong> Machado.Três anos <strong>de</strong>pois, em 1869, ao escrever sobre a atriz italiana A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Ris-15 Folhetim <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1865.16 Machado <strong>de</strong> Assis, Crítica Teatral, pp. 241-242.164


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatrotori, esse novo ponto <strong>de</strong> vista em relação ao teatro é reafirmado <strong>de</strong> maneiraainda mais incisiva: “Eu não creio nos intuitos moralizadores do teatro, nempenso que Tartufo matasse a hipocrisia”. 17Da crença à <strong>de</strong>scrença na função moralizadora do teatro, eis o caminho trilhadopor Machado em <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> crítica. Não é preciso dizer queo abandono da visão utilitarista da arte será benéfico para o escritor, que principalmentea partir <strong>de</strong> 1869 valorizará cada vez mais em seus textos críticos osdramaturgos que trazem ao palco temas universais. Não por acaso, Shakespearese tornará cada vez mais presente em seu pensamento. O tradutorVoltemos ao final da década <strong>de</strong> 1850. Machado, interessado em teatro, colaboracom a Imperial <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> Música e Ópera Nacional, instituição criadaem 1857 por D. José Zapata y Amat, espanhol radicado no Brasil, e sua esposaMaria Luísa Amat, com o objetivo <strong>de</strong> “promover a representação <strong>de</strong> cantatas eidílios, <strong>de</strong> óperas italianas, francesas e espanholas, sempre no idioma nacional, emontar, uma vez por ano, uma ópera nova <strong>de</strong> compositor brasileiro”. 18 No mesmoano <strong>de</strong> 1857 Machado traduz o libreto Par les Fenêtres, <strong>de</strong> Amédée Achard. AÓpera das Janelas – título em português – não chega a ser representada, mas em novembro<strong>de</strong> 1859 sua segunda tradução sobe à cena: Pipelé, a partir do original italianoPipelè, ossia il Portinaio di Parigi, libreto <strong>de</strong> Rafaelle Berninzone – e música <strong>de</strong>Serafino Ame<strong>de</strong>o Ferrari –, baseado em episódios do conhecido romance-folhetimOs Mistérios <strong>de</strong> Paris, <strong>de</strong> Eugène Sue. Em julho <strong>de</strong> 1861, a terceira colaboração<strong>de</strong> Machado é encenada: As Bodas <strong>de</strong> Joaninha. Os autores do libreto e da músicaeram os espanhóis Luis <strong>de</strong> Olona e Martín Allú.Infelizmente essas traduções, em três línguas diferentes, se per<strong>de</strong>ram. Maselas atestam o esforço <strong>de</strong> um jovem intelectual disposto a fazer parte do mun-17 Machado <strong>de</strong> Assis, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Ristori: Folhetins, Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 1955, p. 32.18 Ayres <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Francisco Manuel da Silva e seu Tempo, Rio <strong>de</strong> janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, v.2,p.98.165


João Roberto Fariado das letras. A Imperial <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> Ópera Nacional recebeu enorme apoio<strong>de</strong> escritores e jornalistas como José <strong>de</strong> Alencar, Quintino Bocaiúva, JoaquimManuel <strong>de</strong> Macedo, Francisco Bonifácio <strong>de</strong> Abreu, Salvador <strong>de</strong> Mendonça eManuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, que contribuíram com traduções ou libretospróprios e artigos na imprensa. A admiração <strong>de</strong> Machado por Alencar e a amiza<strong>de</strong>com Quintino Bocaiúva e Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida talvez estejam naorigem da ligação do nosso escritor com esse movimento que não foi além <strong>de</strong>1864, após sucessivas crises que envolveram o empresário e cantor D. José Zapatay Amat, os membros da companhia e o próprio governo, que preferia financiara montagem <strong>de</strong> óperas italianas, por serem mais rentáveis.Depois dos libretos, a primeira peça traduzida por Machado foi La Chasse auLion, <strong>de</strong> Gustave Vattier e Émile <strong>de</strong> Najac, que A Marmota <strong>de</strong> 20, 23 e 27 <strong>de</strong>março <strong>de</strong> 1860 publicou, com o título Hoje Avental, Amanhã Luva. Na verda<strong>de</strong>,mais que uma tradução, o texto, que não foi encenado, é uma “imitação”. Práticacomum na época, “imitar” uma peça significava apropriar-se do enredooriginal e adaptá-lo à paisagem e aos tipos brasileiros. Assim, a “caça ao dândi”,tradução literal do título, e que na comédia é uma “caça” a um marido, ganhana versão <strong>de</strong> Machado uma série <strong>de</strong> referências ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong>on<strong>de</strong> se passam os eventos, que têm como protagonista uma personagem <strong>de</strong>larga tradição cômica no teatro oci<strong>de</strong>ntal: a criada esperta. No carnaval <strong>de</strong>1859, na casa da Sra. Sofia <strong>de</strong> Melo, Rosinha, a criada, recebe Durval, preten<strong>de</strong>nteà mão da patroa, e o entretém com graça, beleza, inteligência e charme,conquistando-o para marido e subindo um <strong>de</strong>grau na escala social. O que teriachamado a atenção <strong>de</strong> Machado nesse enredo? O tema da ascensão social?Nesse sentido, teria sido um lapso do rapaz se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> se fazer aceito em umnível social acima do <strong>de</strong> sua origem? Perceba-se que o tema da ascensão socialpelo casamento, como ocorre na comediazinha e em muitas outras peças teatraisdo período, é recorrente na obra <strong>de</strong> Machado, e alimenta três dos seusquatro primeiros romances. Guardadas as diferenças, porque não se trata mais<strong>de</strong> tipos e enredos cômicos, o mais agudo <strong>de</strong>les – seria apenas uma coincidência?– repete uma palavra do título da pequena comédia: A Mão e a Luva. Evi-166


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatro<strong>de</strong>ntemente, Guiomar é uma personagem mais rica que Rosinha, mas ela tambémqueria, antes <strong>de</strong> tudo, trocar o avental pela luva, por meio do casamento.Será preciso dizer que Rosinha e Guiomar, <strong>de</strong> certa forma, antecipam a gran<strong>de</strong>criação que é a personagem Capitu? Todas essas mulheres trazem uma característicaque Machado trabalhou em enredos diferentes: elas nasceram com umanatureza humana superior à sua condição social. Assumindo um lugar maisalto na socieda<strong>de</strong>, elas corrigiram uma espécie <strong>de</strong> falha do <strong>de</strong>stino que as feznascer abaixo do seu merecimento.A questão do <strong>de</strong>snível social, outra forma <strong>de</strong> ler o tema da ascensão socialpelo casamento, encontra-se no centro da obra <strong>de</strong> um autor teatral muito lidoe admirado tanto por José <strong>de</strong> Alencar quanto pelo jovem Machado e outrosintelectuais dos anos 50 e 60 do século XIX. Refiro-me a Octave Feuillet, cujoRomance <strong>de</strong> um Moço Pobre parece ter inspirado os nossos dois escritores na criação<strong>de</strong> não poucos tipos e situações ficcionais, ainda que com uma diferençaque não po<strong>de</strong>mos ignorar: enquanto Alencar manteve-se fiel às soluções românticas(vi<strong>de</strong> o final reconciliador <strong>de</strong> Senhora), Machado retrabalhou o <strong>de</strong>snívelsocial entre personagens masculinas e femininas em diferentes graus: umacerta con<strong>de</strong>scendência nos primeiros romances, muita malda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sfaçatezem Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas e extraordinária sutileza psicológica em DomCasmurro, para lembrar alguma das suas obras principais. Leitor <strong>de</strong> Feuillet,Machado traduziu Montjoye, comédia realista em cinco atos e seis quadros, queo Ginásio Dramático pôs em cena em outubro <strong>de</strong> 1864. O que o atraiu nessapeça foi provavelmente o realismo com que o autor criou a figura do protagonista– um homem rico, <strong>de</strong>sonesto, ambicioso, que passou a vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhandoos valores éticos da burguesia – e a moralida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sfecho. No seu folhetimdo Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, “Ao acaso”, Machado lembrou o triunfo que a peçahavia obtido em Paris e convidou o leitor a “ver por seus próprios olhos oslances dramáticos, as situações novas, os traços enérgicos e verda<strong>de</strong>iros comque estão acabados os caracteres da peça <strong>de</strong> O. Feuillet”. 19 16719 Machado <strong>de</strong> Assis, Crônicas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jackson, 1951, vol.21, p. 209.


João Roberto FariaInfelizmente a tradução <strong>de</strong> Montjoye está perdida. Mas não a <strong>de</strong> Suplício <strong>de</strong> umaMulher, <strong>de</strong> Émile <strong>de</strong> Girardin e Alexandre Dumas Filho, encenada pelo GinásioDramático em setembro <strong>de</strong> 1865, e publicada no volume Teatro, da editoraJackson. Tudo indica que essa tradução foi encomendada pelo ator e empresárioFurtado Coelho, que passou a dirigir o Teatro Ginásio Dramático, on<strong>de</strong>havia trabalhado em 1859, quando então conquistou a simpatia <strong>de</strong> Machado,com seu estilo <strong>de</strong> interpretação francamente realista. Furtado Coelho era português,e logo que chegou ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1856, posicionou-se favoravelmenteao realismo teatral, publicando um importante artigo no Correio Mercantilsobre Le Demi-Mon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Alexandre Dumas Filho, que subira à cena com otítulo O Mundo Equívoco. Defendia a idéia <strong>de</strong> que a renovação teatral no Brasil sóse faria com a adoção <strong>de</strong>sse repertório mo<strong>de</strong>rno, do qual ele se tornou efetivamenteo principal intérprete. Machado, alçado à condição <strong>de</strong> amigo e colaborador,traduziu, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Suplício <strong>de</strong> uma Mulher, as peças O Anjo da Meia-Noite,<strong>de</strong>Théodore Barrière e Edouard Plouvier (estréia em julho <strong>de</strong> 1866); O Barbeiro<strong>de</strong> Sevilha, <strong>de</strong> Beaumarchais (estréia em setembro <strong>de</strong> 1866); A Família Benoiton,<strong>de</strong>Victorien Sardou (estréia em maio <strong>de</strong> 1867); e Como Elas São Todas, <strong>de</strong> Alfred<strong>de</strong> Musset (estréia em julho <strong>de</strong> 1868). Todas foram encenadas no GinásioDramático por Furtado Coelho.Essa colaboração merece uma série <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações, uma vez que as peçaspertencem a gêneros diferentes e muito possivelmente, com exceção das comédias<strong>de</strong> Beaumarchais e Musset, as <strong>de</strong>mais foram encomendadas pelo ator eempresário, em função do sucesso que haviam obtido em Paris. Esse procedimentoera comum na época. No caso <strong>de</strong> Suplício <strong>de</strong> uma Mulher, o próprio Machadotratou <strong>de</strong> informar os leitores sobre a história do drama nas páginas doDiário do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Em longo folhetim, relatou a polêmica travada por Girardine Dumas Filho em torno da autoria, que alavancou o sucesso da representação.Depois, num segundo folhetim, comentou a peça, que é um verda<strong>de</strong>irolibelo contra o adultério, um dos temas mais abordados pelos dramaturgosdo realismo teatral. O que há <strong>de</strong> interessante no folhetim <strong>de</strong> Machado é a<strong>de</strong>fesa da solução original que os autores encontraram para punir a esposa168


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroadúltera e o amante, falso amigo e sócio do marido traído. Sem violência física,o protagonista impõe ao sócio que o leve à falência, que o <strong>de</strong>ixe pobre pormeios <strong>de</strong>sonestos e à mulher que o abandone por não po<strong>de</strong>r viver na pobreza,abrindo mão da guarda da filha, que é do amante, não <strong>de</strong>le. Ambos serão expostosà execração pública. Para Machado, a solução encontrada é uma “vitóriada lei moral e da pureza dos costumes”. 20 E aos comentários sobre uma supostaimoralida<strong>de</strong> da peça ele respon<strong>de</strong>u que os seus amigos sabiam que elenão faria a tradução “<strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> cuja <strong>de</strong>formida<strong>de</strong> moral e poética estivesseconvencido”. 21Os críticos <strong>de</strong> Machado, em geral, não <strong>de</strong>ram atenção a essa obra que fezmuito sucesso na cena do Ginásio. Mas não passou <strong>de</strong>spercebido <strong>de</strong> BarretoFilho o comentário <strong>de</strong> uma personagem secundária sobre a filha do casal, menina<strong>de</strong> sete anos, em conversa com o amante da esposa do protagonista: “Oh!à força <strong>de</strong> viver juntos a gente acaba por se parecer uns com os outros!... Écomo esta menina, que se parece tanto com o senhor como com o pai”. 22Observa Barreto Filho:“Esse drama terá repercussões futuras, quando ele escreve o D. Casmurro.Parecia-lhe então que o erro <strong>de</strong> Matil<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scoberto, como no D. Casmurro,pela semelhança do filho ilegítimo com o pai verda<strong>de</strong>iro, não estána ‘lógica moral dos sentimentos’. E isso porque a fraqueza da personagemdo drama é atribuída a um sentimento <strong>de</strong> gratidão, e não a um impulsopassional. Quando ele esboça <strong>de</strong>pois a figura <strong>de</strong> Capitu, não vaijustificar o adultério valendo-se <strong>de</strong> um motivo extrínseco; o acontecimentosai da pessoa como uma fatalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua natureza passional edissimulada”. 23 16920 Machado <strong>de</strong> Assis, Teatro, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jackson, 1951, vol. 28, p. 478.21 I<strong>de</strong>m, p. 479.22 I<strong>de</strong>m, p. 410.23 Barreto Filho, Introdução a Machado <strong>de</strong> Assis, 2 ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro, Agir, 1980, p. 43.


João Roberto FariaDeixemos <strong>de</strong> lado a certeza com que Barreto Filho se refere ao supostoadultério <strong>de</strong> Capitu. O que importa é ressaltar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que uma peçatraduzida por Machado em 1865 lhe tenha sugerido a questão fundamental dasemelhança entre Escobar e Ezequiel em Dom Casmurro, fato que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia ociúme <strong>de</strong>vastador <strong>de</strong> Bentinho.Exceto a tradução <strong>de</strong> Suplício <strong>de</strong> uma Mulher, as <strong>de</strong>mais que Machado fez paraFurtado Coelho estão perdidas. O Anjo da Meia-Noite surpreen<strong>de</strong> no conjunto,pois é uma peça sem nenhuma qualida<strong>de</strong> literária. Trata-se <strong>de</strong> um “drama fantástico”,muito em voga na ocasião. Esse gênero <strong>de</strong> peça combinava as característicasda mágica e do dramalhão, isto é, os truques cênicos da primeira e o enredomirabolante do segundo, com possíveis incursões pelo sobrenatural. Voltadopara o gran<strong>de</strong> público, anunciado nos jornais como “peça <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aparato”ou “<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> espetáculo”, por causa da riqueza das montagens, o dramafantástico queria apenas divertir, impressionar, assustar ou encantar o espectador.Machado <strong>de</strong>ve ter ganho algum dinheiro com essa tradução, que ficou emcartaz por muito tempo.Como empresário teatral, Furtado Coelho alternava em sua companhia dramáticatanto os sucessos comerciais quanto peças <strong>de</strong> inquestionável qualida<strong>de</strong>artística. Assim, ao sucesso <strong>de</strong> O Anjo da Meia-Noite suce<strong>de</strong>u o fracasso <strong>de</strong> O Barbeiro<strong>de</strong> Sevilha. Muito provavelmente Furtado Coelho e Machado acreditaramque a peça <strong>de</strong> Beaumarchais repetiria o sucesso da ópera <strong>de</strong> Rossini. Mas nãofoi o que se <strong>de</strong>u. Apresentada em noite <strong>de</strong> gala, a 7 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1866, compresença do Imperador Dom Pedro II e da Imperatriz Teresa Cristina, a comédiaficou menos <strong>de</strong> uma semana em cartaz. Era uma “ópera... sem música”,observa R. Magalhães Júnior, que faz um bom comentário acerca <strong>de</strong>sse fracassoem sua biografia <strong>de</strong> Machado. 24Melhor sorte teve a montagem <strong>de</strong> A Família Benoiton, <strong>de</strong> Victorien Sardou,autor que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1860 vinha arrebatando a platéia parisiense com sua infalívelcarpintaria teatral. Legítimo her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Scribe, o dramaturgo tornou-se hábil24 R. Magalhães Júnior, Vida e Obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, vol. 1, pp. 373-374.170


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatrona construção <strong>de</strong> comédias que combinavam a intriga bem armada e <strong>de</strong>senvolvidacom a observação dos costumes sociais. Machado nada escreveu sobre AFamília Benoiton, mas é <strong>de</strong> se crer que o parentesco com as comédias realistas <strong>de</strong>Dumas Filho e Augier o tenha estimulado a traduzir essa peça que mostra oamor ao luxo como uma praga das socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas. Com bom humor, espíritosatírico e um certo viés moralizador, mas não sentencioso como nosdois outros autores mencionados, Sardou coloca em cena uma família <strong>de</strong>scaracterizadapela frivolida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus hábitos. Todos cultivam a aparência, a vidafora <strong>de</strong> casa, nos bailes, passeios, visitas, <strong>de</strong> modo que logo nasce uma suspeitaequivocada <strong>de</strong> adultério no genro do protagonista, para que em seguida, <strong>de</strong>sfeitaa confusão, a confiança mútua seja restabelecida na família. Esse olhar críticodo casamento e da vida em socieda<strong>de</strong>, esse dom da observação das pequenasou gran<strong>de</strong>s vaida<strong>de</strong>s humanas, presentes nos dramaturgos franceses e tambémbrasileiros dos anos <strong>de</strong> 1860, foram fundamentais no <strong>de</strong>senvolvimentoda visão <strong>de</strong> mundo do nosso escritor.O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver a cena brasileira tomada por obras teatrais <strong>de</strong> valor literáriodirigiu o pensamento <strong>de</strong> Machado em toda a sua trajetória como autor, crítico,censor e tradutor. Por isso, <strong>de</strong>ve ter partido <strong>de</strong>le a iniciativa <strong>de</strong> traduzir uma peça<strong>de</strong> Musset. É possível imaginar os bons argumentos que encontrou para convencerFurtado Coelho a incorporar no repertório <strong>de</strong> sua companhia dramática umautor que era mais conhecido como poeta do que como dramaturgo. Com essetrabalho, que não atraiu gran<strong>de</strong> público ao Ginásio, Machado encerrou sua colaboraçãocom Furtado Coelho. Sua última tradução para o teatro, <strong>de</strong> que se conhecea data, 1876,éadacomédia Les Plai<strong>de</strong>urs, <strong>de</strong> Racine – que ganhou o títuloOs Demandistas –, também perdida e jamais encenada. Pela escolha, mais uma vezse percebe o compromisso <strong>de</strong> Machado com o teatro <strong>de</strong> valor literário. Não nosesqueçamos, por fim, <strong>de</strong> que, além dos títulos aqui mencionados, po<strong>de</strong>mos teracesso a duas traduções preservadas em forma manuscrita: Os Burgueses <strong>de</strong> Paris,<strong>de</strong>Dumanoir, Clairville e J. Cordier; e Tributos da Mocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Léon Gozlan.O trabalho <strong>de</strong> Machado como tradutor <strong>de</strong> teatro pe<strong>de</strong> uma investigaçãomais profunda. Há muito por fazer para se <strong>de</strong>finir melhor a importância <strong>de</strong>ssa171


João Roberto Fariaativida<strong>de</strong> no conjunto da sua obra. Afinal, toda a formação literária do escritorse fez nesse tempo, em contato com um repertório teatral não muito lembradoem nossos dias. O comediógrafoAo mesmo tempo em que escreveu seus primeiros textos críticos e fez suasprimeiras traduções para o teatro, Machado iniciou-se como comediógrafo. É<strong>de</strong> 1861 a publicação em livro da comédia Desencantos. Em 1862, pela primeiravez duas comédias originais do escritor sobem à cena: O Caminho da Porta e OProtocolo são representadas no Ateneu Dramático, em setembro e <strong>de</strong>zembrorespectivamente.O que surpreen<strong>de</strong> o leitor <strong>de</strong>ssas comédias em um ato é que elas não correspon<strong>de</strong>mà visão que Machado tinha da arte dramática quando as escreveu. Ouseja: não são comédias realistas, o tipo <strong>de</strong> peça que nosso escritor consi<strong>de</strong>ravaa<strong>de</strong>quado para a construção <strong>de</strong> uma dramaturgia nacional robusta, comprometidacom as questões sociais do momento. Como explicar que não tenhaaproveitado o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Dumas Filho e Augier ou seguido o exemplo <strong>de</strong> seuamigo Quintino Bocaiúva e <strong>de</strong> Alencar, que se lançaram no teatro como autores<strong>de</strong> comédias realistas, ao lado <strong>de</strong> outros intelectuais, como Pinheiro Guimarãese Sizenando Barreto Nabuco <strong>de</strong> Araújo?É provável que, muito jovem, Machado não se achasse ainda com fôlego paraescrever a comédia longa, em três atos, com reflexões sobre o homem e a socieda<strong>de</strong>e com prescrições edificantes. Numa carta que enviou a Quintino Bocaiúva,pedindo-lhe o julgamento <strong>de</strong> O Caminho da Porta e O Protocolo, que ia publicarnum mesmo volume, em 1863, confessou: “Tenho o teatro por coisa muito sériae as minhas forças por coisa muito insuficiente” 25 . Na seqüência, acrescentouque sua ambição era mesmo chegar à alta comédia ou comédia realista:25 Machado <strong>de</strong> Assis, Teatro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 122.172


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatro“Caminhar <strong>de</strong>stes simples grupos <strong>de</strong> cena – à comédia <strong>de</strong> maior alcance,on<strong>de</strong> o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, on<strong>de</strong> a observaçãoda socieda<strong>de</strong> se case ao conhecimento prático das condições do gênero–, eis uma ambição própria <strong>de</strong> ânimo juvenil e que eu tenho a imodéstia <strong>de</strong>confessar”. 26Tanto a carta <strong>de</strong> Machado quanto a resposta <strong>de</strong> Quintino Bocaiúva exprimemos valores teatrais do período. Bocaiúva consi<strong>de</strong>rou as duas comédias um“ensaio”, uma “experiência”, um “brinco <strong>de</strong> espírito”, uma “ginástica <strong>de</strong> estilo”e sentenciou que lhes faltava a base, ou seja, “a idéia”. Sem isso, eram “friase insensíveis”, não podiam sensibilizar ou atingir o espectador. Enfim, erampecinhas <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> literária, mas para serem lidas, não representadas,concluiu o amigo, com excesso <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>, ou severida<strong>de</strong>, acrescentandoainda: “Já fizestes esboços, atira-te à gran<strong>de</strong> pintura”. 27 Suas palavras não <strong>de</strong>ixamdúvida sobre o tipo <strong>de</strong> peça que tinha em mente como parâmetro <strong>de</strong> julgamento.Machado, elegante, transcreveu sua carta e a resposta <strong>de</strong> Bocaiúva comoprefácios do volume com as comédias O Caminho da Porta e O Protocolo. Mas acabou<strong>de</strong>sistindo do projeto <strong>de</strong> escrever comédias realistas. Se foi excesso <strong>de</strong> autocrítica,se ficou aborrecido com as palavras <strong>de</strong> Bocaiúva, se foi a <strong>de</strong>cepçãocom os rumos que o teatro brasileiro tomou a partir <strong>de</strong> 1863, quando o gêneroalegre começou a ganhar a preferência das platéias e dos empresários teatrais,nunca saberemos.O que sabemos é que, não seguindo o mo<strong>de</strong>lo das peças <strong>de</strong> Dumas Filho,Machado inspirou-se nos provérbios dramáticos <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset e <strong>de</strong>Octave Feuillet para escrever suas primeiras comédias. Por que teria feito essaescolha? Vamos arriscar algumas hipóteses mais à frente. Antes, é preciso explicarbrevemente que o provérbio dramático surgiu no final do século XVII,nos salões aristocráticos franceses, e inicialmente era quase um jogo, uma cha-26 I<strong>de</strong>m, p. 122.27 I<strong>de</strong>m, pp. 126-127.173


João Roberto Fariarada: os espectadores tinham que adivinhar qual era o provérbio oculto na ação<strong>de</strong> pequenas cenas e comédias. Com Carmontelle, no século seguinte, o gêneropermaneceu como “teatro <strong>de</strong> salão”, feito por amadores da aristocracia e daalta burguesia, mas adquiriu características <strong>de</strong>finidoras <strong>de</strong> sua forma. Escreve opróprio Carmontelle:“O provérbio dramático é pois uma espécie <strong>de</strong> comédia, que se faz inventandoum assunto ou se servindo <strong>de</strong> uma personagem, uma historieta, etc. Achave do provérbio <strong>de</strong>ve estar no interior da ação, <strong>de</strong> modo que, se os espectadoresnão o adivinharem, é preciso que exclamem quando lhes disserem:‘Ah! é verda<strong>de</strong>’: como quando se revela a chave <strong>de</strong> um enigma que não sepô<strong>de</strong> encontrar”. 28Numa época em que a linguagem teatral era extremamente elaborada, emque o padrão eram as tragédias neoclássicas <strong>de</strong> Voltaire, Carmontelle buscoureproduzir o tom das conversas <strong>de</strong> salão, imprimindo em suas peças uma certanaturalida<strong>de</strong>: não as “belas frases” ou “estilo”, dizia ele, “mas um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> conseguir o tom da verda<strong>de</strong>”. 29 Com personagens colhidos nas classes altas,com assuntos leves e sem gran<strong>de</strong>s conflitos dramáticos, seus provérbios sepopularizaram e serviram <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a vários outros dramaturgos, entre elesAlfred <strong>de</strong> Musset, já no século XIX, em pleno Romantismo.Com regras mais frouxas que as do drama ou da tragédia, ou mesmo da comédia,o provérbio dispensa os enredos complicados e se articula em torno dasconversas entre personagens, buscando trazer a poesia e o estudo <strong>de</strong> caracterespara o interior dos textos. Se a ação dramática parece prejudicada, porque hápouca movimentação em cena, ganha-se em literatura e alcance psicológiconessa forma teatral que aposta tudo na linguagem bem elaborada dos diálogos.A leitura <strong>de</strong> peças como Un Caprice ou On ne Badine pas avec l’Amour mostra oquanto Musset foi um mestre do gênero.28 Carmontelle, Comédies et Proverbes, Paris, Aux Armes <strong>de</strong> France, 1941, vol. I, p. 19.29 I<strong>de</strong>m, pp. 20-21.174


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroMachado procurou guiar-se pelo conhecimento que tinha dos provérbiosdramáticos e também pôs em cena personagens refinados, que dialogam cominteligência e brilho, lançando mão da linguagem cifrada e dos ditos espirituosos.Em Desencantos já se esboça o universo que estará presente na maioria dassuas comédias: o da alta socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> seu tempo, constituída pelaburguesia emergente. Aí ele vai colher sugestões para os enredos e tipos comoas viúvas ainda em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se casar, homens ricos que veraneiam em Petrópolis,negociantes, diplomatas, políticos, advogados, rapazes e mocinhas bemeducados, inteligentes e espirituosos.Ao reproduzir com realismo o ambiente elegante do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Machadotalvez acreditasse que não se distanciava tanto das comédias realistas.Ainda que não enfatizasse as lições morais em suas peças, os personagens quecriou po<strong>de</strong>riam protagonizar qualquer comédia <strong>de</strong> Alencar ou Quintino Bocaiúva:pertenciam à mesma classe social e se exprimiam com naturalida<strong>de</strong>.Além disso, seus provérbios dramáticos, construídos predominantemente comrecursos do alto cômico, eram aliados na luta pelo bom gosto e pela vitória donovo repertório que se contrapunha ao teatro concebido como pura diversãodas massas. Não po<strong>de</strong>mos esquecer que, como crítico, Machado sempre atacouas comédias construídas com recursos do baixo cômico e elementos burlescos.Como comediógrafo, não proce<strong>de</strong>u <strong>de</strong> modo diferente. Basta ler Desencantos,O Caminho da Porta e O Protocolo para percebermos que a comicida<strong>de</strong> estácentrada nos diálogos, em que predominam os chistes, a ironia, o humor, as réplicasinteligentes, o brilho do raciocínio rápido. Os personagens revelam-sepelo que falam e pelo pouco que fazem, pois estamos diante <strong>de</strong> comédias <strong>de</strong>ação rarefeita, nas quais os enredos não apresentam gran<strong>de</strong>s conflitos. As situaçõescriadas por Machado são pontos <strong>de</strong> partida para uma observação por vezessutil, por vezes brincalhona, da natureza humana, apreendida em suas virtu<strong>de</strong>se <strong>de</strong>feitos, quase sempre pelo ângulo do sentimento amoroso.Em Desencantos, a graça da comédia está na “vingança” do personagem LuísMelo, que per<strong>de</strong> a viúva Clara para Pedro Alves. Cinco anos <strong>de</strong>pois, curado daantiga paixão, volta para o Rio <strong>de</strong> Janeiro e se interessa justamente pela filha <strong>de</strong>175


João Roberto FariaClara. A cena em que pe<strong>de</strong> a mão da mocinha à mãe é repleta <strong>de</strong> ironias e farpasque trocam entre si. Afinal, diz ele: “Se V. Exa. não teve bastante espírito paraser minha esposa, <strong>de</strong>ve tê-lo pelo menos para ser minha sogra”. 30 Tivesse outrastiradas como essa, Desencantos seria uma comédia mais cintilante, próximado gênero da alta comédia curta que Machado parece almejar. Aos diálogos daprimeira parte, principalmente, falta o brilho que <strong>de</strong>veria ser alcançado commais falas e réplicas espirituosas, com o ritmo próprio que esse tipo <strong>de</strong> peçaexige. Mesmo assim, a pequena comédia agrada, sobretudo por força <strong>de</strong> seusurpreen<strong>de</strong>nte e bem-humorado <strong>de</strong>sfecho.Em O Caminho da Porta Machado repetiu o ponto <strong>de</strong> partida da comédia anterior,colocando em cena uma viúva, Carlota, e dois preten<strong>de</strong>ntes, Valentim eInocêncio. O que ambos <strong>de</strong>sejam é encontrar o caminho para o coração da viúva.Como ela é uma namora<strong>de</strong>ira contumaz, que não se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por nenhum, aação mostra que “quando não se po<strong>de</strong> atinar com o caminho do coração toma-seo caminho da porta”.É certo que Machado tinha em mente o provérbio É Preciso que uma Porta EstejaAberta ou Fechada, <strong>de</strong> Musset, quando escreveu sua comédia. Mas, enquanto oescritor francês faz o con<strong>de</strong> encontrar o caminho do coração da marquesa, aofinal <strong>de</strong> um diálogo ao qual não faltam brilho, leveza e atmosfera poética, ospersonagens Inocêncio e Valentim procuram em vão esse caminho, atrapalhadosque são, como tipos cômicos. Assim, provocam o riso nas tentativas quefazem, todas fadadas ao insucesso, porque ambos não estão à altura da inteligência<strong>de</strong> Carlota. Por outro lado, a eficácia da comicida<strong>de</strong> elegante <strong>de</strong> OCaminhoda Porta <strong>de</strong>ve-se à linguagem dos diálogos, que prima pelos chistes, mordacida<strong>de</strong>,malícia, ironia e cinismo maroto, principalmente quando estão emcena o Doutor, o terceiro personagem masculino da comédia, e Carlota. Leiaseespecialmente a quinta cena, em que dialogam. Se há, nos provérbios <strong>de</strong> Machado,momentos que lembram Musset, este é um <strong>de</strong>les. Observem-se, entreoutras características, a presença <strong>de</strong> espírito dos personagens, a guerra lúdica30 Machado <strong>de</strong> Assis, Teatro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, p. 117.176


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroque travam, a elegância do vocabulário, as alusões inteligentes, a graça das réplicase o próprio ritmo das falas. Tudo é extremamente ágil, agradável e <strong>de</strong>bom gosto. Mantivesse a comédia esse tipo <strong>de</strong> diálogo o tempo todo, estaríamosdiante <strong>de</strong> uma pequena obra-prima teatral, <strong>de</strong> uma autêntica comédia <strong>de</strong>linguagem.Se O Caminho da Porta peca por vezes pela comicida<strong>de</strong> estereotipada dos personagensValentim e Inocêncio, O Protocolo evita esse <strong>de</strong>feito, uma vez que estão emcena quatro personagens refinados, que dialogam com inteligência e graça o tempotodo. O tema da comédia, aliás, parece ter sido inspirado pelo repertório realista: operigo que ronda os lares honestos quando o marido se ausenta, ou para cuidar dosnegócios, ou por causa <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>sentendimento com a esposa.Mais uma vez, o triângulo amoroso, mas com tratamento diferente. Afinal,o casamento <strong>de</strong> Pinheiro e Elisa não chega a correr perigo, por duas razões: emprimeiro lugar, porque eles se amam, e o <strong>de</strong>sentendimento é fruto apenas doscaprichos <strong>de</strong> ambos, que ainda são jovens e não apren<strong>de</strong>ram a ce<strong>de</strong>r; em segundo,porque Venâncio, o conquistador <strong>de</strong> plantão, não consegue impressionarElisa, que o tempo todo o <strong>de</strong>sencoraja. A ação da comédia, na verda<strong>de</strong>, ilustrao provérbio que aparece tanto na fala do marido quanto na da esposa, quandoconversam com a prima Lulu: “para caprichosa, caprichoso”, ou “para caprichoso,caprichosa”. É Lulu quem abre os olhos do casal para as intenções <strong>de</strong>Venâncio, levando Pinheiro a pôr um fim no <strong>de</strong>sentendimento com Elisa e,educadamente, com bom humor, convidar o rival a retirar-se <strong>de</strong> sua casa. Comum enredo sem gran<strong>de</strong>s conflitos entre os personagens, O Protocolo só po<strong>de</strong>riamesmo ser uma comédia centrada na linguagem.À mesma família dos provérbios dramáticos pertence As Forcas Caudinas,escritaprovavelmente entre 1863 e 1865, que Machado <strong>de</strong>ixou em forma manuscritae não fez chegar à cena. 31 A personagem Emília – 25 anos, viúva duas31 Essa peça teve uma primeira edição apenas em 1956, no volume Contos sem Data, organizado porR. Magalhães Júnior para a editora Civilização <strong>Brasileira</strong>. Sua divulgação revelou um fato curioso: apartir <strong>de</strong>la, o autor escreveu o conto “Linha reta e linha curva”, publicado em 1865 no Jornal dasFamílias. Eis o que explica o seu ineditismo na época.177


João Roberto Fariavezes! –, já quase no <strong>de</strong>sfecho, resume o que aconteceu com ela: “Quis fazerfogo e queimei-me nas mesmas chamas”. 32 O que ela quer dizer é que, ao tentarfazer Tito apaixonar-se por ela, numa espécie <strong>de</strong> jogo ou aposta consigomesma, apaixonou-se por ele.A comédia tem um bom ritmo, enredo bem estruturado em dois atos, comuma revelação surpreen<strong>de</strong>nte no final, diálogos chistosos e personagens refinados,com exceção <strong>de</strong> um extravagante coronel russo, tipo cômico por excelência,que não sabemos muito bem o que faz em Petrópolis, freqüentando a altasocieda<strong>de</strong>. De todo modo, o que talvez <strong>de</strong>fina melhor o enredo <strong>de</strong> As ForcasCaudinas 33 seja outro provérbio, que não é explicitado por nenhum personagem,embora se aplique perfeitamente a Emília: “quem com ferro fere com ferroserá ferido”. Troque-se “ferro” por “amor” e teremos a chave do enigma.Nas duas peças que escreveu em seguida, Machado <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado a formado provérbio dramático, mas não o objetivo <strong>de</strong> escrever comédias elegantes.Tanto Quase Ministro quanto Os Deuses <strong>de</strong> Casaca foram representadas em sarausliterários por amadores, em 1863 e 1865, respectivamente. Ambas são sátirasamenas, a primeira à vida política, a segunda à vida social do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Em Quase Ministro, a ação da comédia limita-se a apresentar alguns parasitas,bajuladores e espertalhões que se aproximam <strong>de</strong> um político cotado para serministro. Os aproveitadores e oportunistas <strong>de</strong> plantão são ridicularizados comfino senso <strong>de</strong> humor nessa comédia em que Machado já revela sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> observação da vida social e política brasileira. Em poucas páginas, tem-seum divertido e convincente retrato daquela parcela da humanida<strong>de</strong> movidapelo vírus da especulação.Os Deuses <strong>de</strong> Casaca, comédia escrita em versos alexandrinos, é assim <strong>de</strong>finidapelo autor: “Uma crítica anódina, uma sátira inocente, uma observação mais32 Machado <strong>de</strong> Assis, Teatro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, p. 356.33 Passar pelas forcas caudinas significa ren<strong>de</strong>r-se. Machado, conhecedor da história antiga, <strong>de</strong>u essetítulo à comédia ao lembrar-se <strong>de</strong> uma batalha perdida pelo exército romano, em 321 a.C., queobrigou os soldados, na condição <strong>de</strong> prisioneiros, a passarem por uma estreita passagem entre asmontanhas da região <strong>de</strong> Cápua, na Itália, chamada justamente Forcas Caudinas. Na comédia, Emíliaren<strong>de</strong>-se ao sentimento amoroso.178


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroou menos picante, tudo no ponto <strong>de</strong> vista dos <strong>de</strong>uses, uma ação simplicíssima,quase nula, travada em curtos diálogos”. 34 As farpas são bem dirigidas no interiordo engraçado enredo que nos apresenta os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>postos do Olimpo eseduzidos pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornarem-se humanos. Um a um, eles vão ce<strong>de</strong>ndoàs imperfeições humanas e escolhendo os seus novos papéis. Proteu,com o dom <strong>de</strong> transformar-se, será político, assim como Mercúrio, que há <strong>de</strong>ser imbatível na intriga e na eloqüência. Marte não mais fará a guerra com a espada;sua arma agora será o jornal que preten<strong>de</strong> fundar. Apolo será crítico literário,juiz supremo a emitir “as leis do belo e do gosto”. Vulcano transformaráos raios em penas que serão ferinas e aguçadas. Júpiter, o último a ser convencido,escolhe uma profissão digna <strong>de</strong> sua gran<strong>de</strong>za: será banqueiro. O recado,evi<strong>de</strong>ntemente, está dado: é o dinheiro, acima das crenças, que move o mundomo<strong>de</strong>rno.O enredo <strong>de</strong> Os Deuses <strong>de</strong> Casaca enfatiza também a sedução feminina. Júpiter,Marte, Apolo e Mercúrio se tornarão homens para conquistar as belasDiana, Vênus, Juno e Hebe. Afinal, no céu ou na terra, as mulheres serãosempre “a fonte dos prazeres”.Em 1870, Machado publica, junto aos poemas do livro Falenas, a pequenacomédia Uma O<strong>de</strong> <strong>de</strong> Anacreonte, na qual mais uma vez evoca o mundo grego.Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um “a-propósito”, inspirado pela leitura da obra lírica<strong>de</strong> Anacreonte, em especial <strong>de</strong> uma o<strong>de</strong> que havia sido traduzida pelo poetaportuguês Antônio Feliciano <strong>de</strong> Castilho. É o que Machado explica numanota <strong>de</strong> rodapé <strong>de</strong>ssa comédia lírica centrada na figura da bela cortesã Mirto,que <strong>de</strong>ve escolher para amante o poeta Cléon ou o rico Lísias. A ação rarefeitae o tratamento poético dado aos diálogos revelam que por vezes o teatro po<strong>de</strong>ser um instrumento eficaz da poesia.Coinci<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, outro poeta inspira Machado a escreveruma peça teatral. Convidado pelo Real Gabinete Português <strong>de</strong> Leitura aparticipar das comemorações do tricentenário <strong>de</strong> Camões, ele colabora com34 Machado <strong>de</strong> Assis, Teatro <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, p. 370.179


João Roberto Fariauma pequena jóia literária, intitulada Tu só, Tu, Puro Amor, que é representadano Teatro D. Pedro II, a 10 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1880.A homenagem a Camões não po<strong>de</strong>ria ser mais singela. Machado não traz àcena o homem já consagrado, mas o jovem impetuoso, apaixonado e sonhador,que na corte portuguesa diverte o rei e os nobres com seus <strong>de</strong>liciosos epigramas.Admirado também pelos sonetos que compõe, Camões <strong>de</strong>sperta a inveja<strong>de</strong> um poeta menor, Caminha, que tratará <strong>de</strong> indispô-lo com D. Antônio, pai<strong>de</strong> Catarina <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, sua amada. A peça traz à cena as intrigas palacianas e no<strong>de</strong>sfecho a triste separação dos jovens que se amam.Tu só, Tu, Puro Amor evoca com muita proprieda<strong>de</strong> a atmosfera da corte portuguesa<strong>de</strong> meados do século XVI, reproduzindo a sua linguagem particular,os seus costumes, valores e rigi<strong>de</strong>z moral. É obra <strong>de</strong> escritor sensível, que, nomesmo ano em que <strong>de</strong>u à luz a prosa crua das Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas,<strong>de</strong>rramou poesia no palco do Teatro D. Pedro II, para festejar o maior poetaportuguês.Das comédias <strong>de</strong> Machado até aqui comentadas, Desencantos, O Caminho daPorta, O Protocolo e As Forcas Caudinas se aproximam pela maneira <strong>de</strong> abordar avida social elegante do Rio <strong>de</strong> Janeiro e pelos enredos que envolvem relacionamentosamorosos. São ensaios para a alta comédia <strong>de</strong> maior fôlego que o autornão chegou a escrever, mas formam um conjunto importante para a história doteatro brasileiro, porque escritas num momento em que toda uma geração <strong>de</strong>escritores e intelectuais estava comprometida com o fortalecimento da dramaturgiabrasileira.Ainda que o envolvimento <strong>de</strong> Machado com o teatro tenha diminuído muitoa partir do final da década <strong>de</strong> 1860, Tu só, Tu, Puro Amor não foi sua últimacomédia. Já escritor feito, ele volta à forma do provérbio dramático e ao universoda família burguesa, elegante, e aos enredos com jovens em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> secasar, em duas comédias.A primeira, Não Consultes Médico, foi publicada na Revista <strong>Brasileira</strong> em 1896.Voltar a esse gênero <strong>de</strong> comédia que havia cultivado na mocida<strong>de</strong> só po<strong>de</strong> significarque Machado não quis escrever peças com as mesmas preocupações ou180


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatrocom a mesma dimensão que vinha dando aos romances e contos, nos quais dissecoucomo ninguém a natureza humana e os mecanismos sociais da vida brasileira<strong>de</strong> seu tempo. A comédia curta, elegante, requer leveza e comicida<strong>de</strong> espirituosa,características incompatíveis com a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> que se encontra emromances como Quincas Borba ou Dom Casmurro. Por isso, Não Consultes Médicoparece obra <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, dos tempos em que o escritor ainda não abraçara oseu tão evi<strong>de</strong>nte ceticismo em relação ao ser humano.Nessa pequena comédia, os personagens são bons e honestos, assim comoos seus sentimentos. O enredo gira em torno <strong>de</strong> um rapaz, Cavalcante, e umamoça, Carlota, que sofreram <strong>de</strong>cepções amorosas e têm dificulda<strong>de</strong>s em superá-las.Ambos <strong>de</strong>verão vencer a barreira da timi<strong>de</strong>z para se conhecerem e seperceberem como almas gêmeas, que po<strong>de</strong>m se curar pela troca <strong>de</strong> confidênciase experiências. Nenhum <strong>de</strong>les precisa <strong>de</strong> “médicos”, nem <strong>de</strong> remédios <strong>de</strong>spropositados,como os que a mãe da mocinha, Dona Leocádia, receita. Ela,que se diz médica dos doentes do coração – traço reiterado que a torna umtanto excêntrica e portanto cômica –, quer curar Cavalcante com uma temporadana China, como missionário, e quer mandar a filha para a Grécia, on<strong>de</strong> otempo e a distância do Brasil lhe fariam bem. Ora, como diz justamente umprovérbio grego que Carlota lê ao folhear um livro, “não consultes médico;consulta alguém que tenha estado doente”. É isso, afinal, que a comédia acabapor mostrar, com muita graça.A última incursão <strong>de</strong> Machado no teatro, Lição <strong>de</strong> Botânica, foi escrita em1905 e publicada em 1906, dois anos antes <strong>de</strong> sua morte. O provérbio evocadosurge já na segunda cena. Como Cecília hesita em confessar se ama ou nãoHenrique, Helena lhe diz: “Alguma coisa há <strong>de</strong> ser. Il Faut qu’une Porte Soit Ouverteou Fermée. Porta neste caso é o coração. O teu coração há <strong>de</strong> estar fechadoou aberto...”. 35Mais uma vez Musset inspira Machado. Aqui, temos personagens com ocoração aberto para o amor, como Helena, Cecília e Henrique – que na ver-35 I<strong>de</strong>m, p. 565.181


João Roberto Fariada<strong>de</strong> não chega a entrar em cena –, em confronto com um personagem com ocoração fechado, o Barão Sigismundo <strong>de</strong> Kernoberg, botânico sueco <strong>de</strong>votadoà ciência. Como ele acredita piamente que o casamento é incompatívelcom sua ativida<strong>de</strong>, o interesse da comédia está centrado na sua possíveltransformação. Ou seja, há que se abrir a porta <strong>de</strong> seu coração. O melhor instrumento?O charme feminino. Como resistir aos encantos <strong>de</strong> uma jovem ebela viúva <strong>de</strong> 22 anos?Machado constrói a pequena trama <strong>de</strong> sua melhor comédia com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zae mão <strong>de</strong> mestre. Quando o barão, homem dos seus 39 anos, conhece Helena,que se dispõe a conquistá-lo, <strong>de</strong> nada vale a antiga convicção. Nos dois diálogosque há entre ambos, assistimos à vitória do charme, da beleza e da inteligênciasobre uma rigi<strong>de</strong>z ingênua e sem base sólida. As hesitações do personagem– quer e não quer ensinar botânica a Helena; quer ir embora, porque percebeo perigo, mas quer ficar porque a viúva o agrada – revelam o que se passaem seu coração, com a porta agora entreaberta: é abri-la para o amor ou fechá-la<strong>de</strong> vez. Vence o amor, porque Machado quer também dar a sua palavrasobre o papel que ocupa a esposa na vida <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> ciência, <strong>de</strong> um escritor,<strong>de</strong> um sábio. Ao contrário do que pensava o barão acerca da incompatibilida<strong>de</strong>entre o amor e a ciência, Helena é que estava certa ao lhe dizer:“A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro <strong>de</strong>licioso para ohomem que <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> as suas horas na investigação da natureza fazê-lo aolado da mulher que o ampara e anima, testemunha <strong>de</strong> seus esforços, sócia <strong>de</strong>suas alegrias, atenta, <strong>de</strong>dicada, amorosa”. 36Machado havia perdido Carolina um ano antes <strong>de</strong> escrever essas palavras.Difícil não consi<strong>de</strong>rá-las uma homenagem à esposa e companheira <strong>de</strong> tantosanos. Depois, como se sabe, ele lhe <strong>de</strong>dicará um emocionado soneto e a projetarána doce figura que é a Dona Carmo do romance Memorial <strong>de</strong> Aires.36 I<strong>de</strong>m, p. 592.182


Machado <strong>de</strong> Assis e o teatroCom Lição <strong>de</strong> Botânica nosso escritor encerra, portanto, sua obra teatral. Coerenteem relação à produção anterior, não se afastou do mo<strong>de</strong>lo do provérbiodramático, gênero que lhe permitiu, tanto na juventu<strong>de</strong> quanto na maturida<strong>de</strong>,exercitar a fantasia e o bom gosto literário, seja na criação dos enredos e personagens,seja na construção da linguagem dramática, à qual <strong>de</strong>u brilho, refinamentoe vivacida<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>rações finaisO envolvimento <strong>de</strong> Machado com o teatro, como se tentou <strong>de</strong>monstrar,não foi pequeno. O volume <strong>de</strong> textos críticos e comédias que escreveu e o númerorazoável <strong>de</strong> peças que traduziu revelam que, principalmente entre os 20 eos 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o escritor foi um autêntico homem <strong>de</strong> teatro. Boa parte dasua formação literária e intelectual baseou-se na leitura <strong>de</strong> obras dramáticas enos espetáculos a que assistiu. As marcas <strong>de</strong>sse tempo estão espalhadas portoda sua obra <strong>de</strong> cronista, romancista e contista. Nas crônicas, não são poucosos momentos em que o passado evocado alcança justamente o final da década<strong>de</strong> 1850 e os anos <strong>de</strong> 1860. Entre tantas que po<strong>de</strong>riam ser lembradas, há umaem especial que dá uma idéia perfeita da importância do teatro na juventu<strong>de</strong> literáriado escritor. É a que foi publicada no dia 1. o <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1895 naGazeta <strong>de</strong> Notícias, e que trata da morte <strong>de</strong> Alexandre Dumas Filho. Machado relembrao sucesso que esse dramaturgo e outros da mesma geração fizeram nopalco do Ginásio e como seus textos eram lidos com avi<strong>de</strong>z.Nos contos e romances são inúmeras as referências a peças e espetáculos,muitas vezes importantes para a própria compreensão <strong>de</strong> um enredo ou <strong>de</strong> umpersonagem. Tema para estudo específico e abrangente, lembremos apenasdois exemplos: a ida <strong>de</strong> Bentinho ao teatro, on<strong>de</strong> vê Otelo, peça fundamentalpara se compreen<strong>de</strong>r o enredo centrado no ciúme, e não no adultério, em DomCasmurro; e o conto “Singular ocorrência”, todo construído a partir do diálogocom três peças teatrais: A Dama das Camélias, <strong>de</strong> Dumas Filho; O Casamento <strong>de</strong>Olímpia, <strong>de</strong> Émile Augier; e Janto com minha Mãe, <strong>de</strong> Lambert Thiboust e Adrien183


João Roberto FariaDecourcelle. As referências a dramaturgos e peças importantes ou não do repertóriouniversal são tão constantes nos textos machadianos que é impossívelnão consi<strong>de</strong>rá-las fontes riquíssimas para os estudos <strong>de</strong> literatura comparada.A convivência com o teatro <strong>de</strong>u a Machado não só uma sólida formaçãocultural, mas também um extraordinário domínio da forma dramática. São visíveisem seus romances e contos da maturida<strong>de</strong> certos modos teatrais <strong>de</strong> armaras cenas, <strong>de</strong> fazer entrar e sair personagens, <strong>de</strong> indicar o cenário das açõesficcionais e <strong>de</strong> organizar os diálogos. Há contos inclusive que rigorosamentenão pertencem ao gênero épico, por dispensarem o narrador. “Teoria do medalhão”,“O anel <strong>de</strong> polícrates”, “A <strong>de</strong>sejada das gentes” e “Singular ocorrência”,entre outros, são diálogos dramáticos, em que os personagens se apresentamdiretamente ao leitor. A vocação teatral <strong>de</strong> Machado, escreveu RuggeroJacobbi, está presente não apenas numa pequena obra-prima como Lição <strong>de</strong> Botânica,mas em toda a sua obra <strong>de</strong> ficcionista, “cheia <strong>de</strong> situações resolvidas diretamentepelo diálogo; e este diálogo é um dos mais brilhantes, dos mais dinâmicos,dos mais cheios <strong>de</strong> nuanças irônicas e do sentido vivo da realida<strong>de</strong> quese possa conhecer na literatura”. 37No universo constituído pelas peças teatrais lidas ou vistas no palco porMachado, pelos seus textos críticos, comédias originais e traduções, há muitomaterial <strong>de</strong> estudo. Sobre a farta produção <strong>de</strong>ixada pelo escritor po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>bruçartanto os estudiosos das suas comédias, crônicas, contos e romancesquanto o historiador do teatro brasileiro.37 Ruggero Jacobbi, O Espectador Apaixonado, Porto Alegre, Ed. da URGS, 1962, p. 59.184


<strong>Prosa</strong>Machado <strong>de</strong> Assis:dulcíssimo poeta?Flávia Vieira da Silva do Amparo“A flor sofre, tocadapor mão inconsciente.Há uma queixa abafadaem sua docilida<strong>de</strong>.” 1Professora doColégio Pedro II,mestra emLiteratura<strong>Brasileira</strong> edoutoranda em<strong>Letras</strong> pelaUniversida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do Rio<strong>de</strong> Janeiro.Aprodução poética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, em particular a <strong>de</strong>suas obras <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, permanece pouco explorada. Umaleitura mais <strong>de</strong>tida <strong>de</strong>sses primeiros escritos já revela, porém, as marcas– que o autor jamais abandonaria – <strong>de</strong> uma intensa auto-reflexãoe a busca incessante <strong>de</strong> aprimoramento. Mais do que isso, é possívelestabelecer um franco diálogo entre o escritor da juventu<strong>de</strong> e o damaturida<strong>de</strong>, reafirmando a idéia <strong>de</strong> famoso verso <strong>de</strong> Wordsworth,tão apropriada à arte <strong>de</strong> Machado: “O menino é pai do homem”.1 ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. “Unida<strong>de</strong>”. In: ___. Farewell. 2 ed. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Record, 1996. p. 13.185


Flávia Vieira da Silva do AmparoO objetivo principal <strong>de</strong>ste estudo é mostrar como a crítica recebeu a poesia<strong>de</strong> Machado, e como esta imagem foi sendo alterada ou ratificada no <strong>de</strong>correrdos anos. Um outro ponto importante é a leitura dos textos críticos <strong>de</strong> Machadopara compreen<strong>de</strong>rmos os passos <strong>de</strong>sse mestre e pensador da literatura. Selevarmos em conta a crítica da época e a atual, notaremos uma discrepância entreelas, evi<strong>de</strong>nciando os sentidos antagônicos provocados por uma única obra.Destacaremos alguns comentários, publicados nos jornais da época, <strong>de</strong> admiradorese <strong>de</strong> êmulos.O primeiro livro <strong>de</strong> poesias, Crisálidas, foi publicado em 1864, quando Machado<strong>de</strong> Assis tinha apenas 25 anos. Apesar da pouca ida<strong>de</strong>, Machado já eraum nome conhecido no mundo das letras e começava a se <strong>de</strong>stacar como tradutor.É o que po<strong>de</strong>mos comprovar com a leitura <strong>de</strong> um artigo <strong>de</strong> Amaral Tavares,publicado no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro. O livro <strong>de</strong> Machado não suscita muitoselogios, pelo contrário, parece que o público esperava mais do jovem talentodo escritor:“Acabo <strong>de</strong> lê-lo e passeariam por cima <strong>de</strong>le, indiferentes, os meus olhos,se um nome não recomendara à minha atenção – Machado <strong>de</strong> Assis: é umpequeno livro <strong>de</strong> poucas páginas, minguado formato, que se <strong>de</strong>nomina –Crisálidas. Mas aquele nome, cujo possuidor torna-se caro a quantos o tratam<strong>de</strong> perto, e sabem apreciar o coração aberto aos mais nobres sentimentos,à imaginação fecunda, ao talento pouco vulgar, que se revela por diversase encontradas manifestações, aquele nome roubou-me a vista.” 2O nome <strong>de</strong> Machado soa mais forte do que o livro, é essa a impressão quetemos do texto <strong>de</strong> Amaral Tavares. Apesar do <strong>de</strong>scuido <strong>de</strong> alguns versos,apontado como o principal <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> Crisálidas, o jovem mostrava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedomuito talento, principalmente para a tradução:2 TAVARES, Amaral. “Folhetim”. In: Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1864.186


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?“Nota-se porventura aqui e ali algum verso <strong>de</strong>scuidado, um não sei que<strong>de</strong> incompleto, que a crítica severa po<strong>de</strong>rá perceber, não sendo, porém, fácilprecisar o ponto falho.(...) Machado <strong>de</strong> Assis é poeta, tradutor <strong>de</strong> primeiraforça, e aqueles que alguma vez se <strong>de</strong>ram ao trabalho <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m sabem asdificulda<strong>de</strong>s que se tem <strong>de</strong> vencer.” 3Sobre o poema “As ondinas”, Amaral chega a perguntar: “Dize-me: já lestealguma cousa <strong>de</strong> mais mimoso e suave?” É a esse ponto que precisamos darmaior <strong>de</strong>staque: a posição <strong>de</strong> poeta doce e mimoso que vai se consolidando,por parte da crítica, relacionada ao poeta Machado <strong>de</strong> Assis.Em outubro do mesmo ano, outro artigo, <strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong> F.T. Leitão, partilhada mesma <strong>de</strong>cepção quanto às Crisálidas, julgando os poemas como produçõesaquém do talento machadiano:“O cantor <strong>de</strong> ‘Corina, tomando em consi<strong>de</strong>ração o quanto <strong>de</strong>ixamos manifestado,há <strong>de</strong> fazer-nos justiça não nos <strong>de</strong>nominando rigorosos em relaçãoao seu pródomo poético. Esperávamos mais, muito mais, do seu já conhecidotalento, e não tendo o volume satisfeito a nossa expectativa, semdúvida alguma cumpria-nos mostrar os sentimentos que possuímos poresse fato.” 4À parte o prefácio elogioso, em extremo, <strong>de</strong> Caetano Filgueiras, faltarampalavras <strong>de</strong> incentivo ao jovem Machadinho. A crítica foi mais ru<strong>de</strong> principalmentena questão da forma, tachando os versos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scuidados. O prefácio<strong>de</strong> Crisálidas, que também foi alvo da crítica, já trazia uma visão do livro<strong>de</strong> Machado como uma produção cercada <strong>de</strong> doçura e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Filgueiras,já quase no final da apresentação, mostra-nos o livro e o jovem escritor da seguinteforma: “o livro que i<strong>de</strong>s percorrer é flor mimosa <strong>de</strong> nossa literatura e3 I<strong>de</strong>m.4 LEITÃO, F.T. (outubro <strong>de</strong> 1864). O presente artigo foi publicado na Revista Mensal da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Ensaios Literários – Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 10, <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1866, pp. 378-84.187


Flávia Vieira da Silva do Amparoque o poeta há <strong>de</strong> ser, sem dúvida alguma, uma das glórias literárias <strong>de</strong>stegran<strong>de</strong> império”. 5Machado tinha como principal meta <strong>de</strong> produção literária um aperfeiçoamentoatravés da crítica e do estudo. Sendo os “Versos à Corina”, escritos emalexandrinos, o poema <strong>de</strong> Crisálidas que recebeu mais elogios da crítica, o autor<strong>de</strong>cidiu adotar a medida do do<strong>de</strong>cassílabo em uma comédia em versos, Os <strong>de</strong>uses<strong>de</strong> casaca, <strong>de</strong> 1866. Essa curiosa peça, aos poucos, <strong>de</strong>sloca-se do mundo dos<strong>de</strong>uses mitológicos para o espaço humano, trazendo à tona o combate dostempos mo<strong>de</strong>rnos: a guerra <strong>de</strong> papel – do jornal à tribuna. Quanto à escolhado alexandrino, o autor faz questão <strong>de</strong> explicar no prólogo da comédia:“Tem este verso alexandrino seus adversários, mesmo entre os homens<strong>de</strong> gosto, mas é <strong>de</strong> crer que venha a ser finalmente estimado e cultivado portodas as musas brasileiras e portuguesas (...). O autor teve a fortuna <strong>de</strong> verseus “Versos a Corina”, escrito naquela forma, bem recebidos pelos enten<strong>de</strong>dores.Se os alexandrinos d’esta comédia tiverem igual fortuna, seria essa a verda<strong>de</strong>irarecompensa para quem procura empregar nos seus trabalhos a consciênciae a meditação.” 6A opinião dos intelectuais marcou tanto a produção dos primeiros livros<strong>de</strong> Machado que, em Falenas, publicado em 1870, houve uma preocupaçãodo autor em diminuir o tom lírico e pessoal para concentrar-se no rigor daforma. Também <strong>de</strong>vemos observar a ausência <strong>de</strong> um prefácio ou advertêncianesse segundo livro <strong>de</strong> poesia como prova <strong>de</strong> quanto a recepção negativa dacrítica, em relação ao texto <strong>de</strong> Caetano Filgueiras, influenciou o escritor <strong>de</strong>Falenas. Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Crisálidas, <strong>de</strong>cidiu simplesmente cortar5 FILGUEIRAS, Caetano. Prefácio. In: ASSIS, Machado <strong>de</strong>.Crisálidas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria B.L.Garnier, 1864. p. 19.6 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Os Deuses <strong>de</strong> Casaca. Tipografia do Imperial Instituto Artístico: Rio <strong>de</strong> Janeiro,1866. p. 3.188


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?as opiniões encomiásticas <strong>de</strong> amigos no prefácio <strong>de</strong> seus livros, limitando-sea fornecer, ele mesmo, apenas uma pequena introdução, explicando os motivosda obra.No livro <strong>de</strong> 1870, no entanto, nem mesmo uma advertência há. O que aparecena abertura do livro é um poema, com o título “Prelúdio”, remetendo àidéia <strong>de</strong> abertura musical. Esse poema, por sua vez, faz referência à peça intituladaDalila, <strong>de</strong> Octave Feuillet. 7 O poeta Machadinho, tomando a obra comopano <strong>de</strong> fundo, lamenta o presente e anseia pelo asilo em outro espaço, buscandoconquistar o sonho que, por vezes, lhe foge:Longe d’aquele asilo, o espírito se abate;A existência parece um frívolo combate,Um eterno ansiar por bens que o tempo leva,Flor que resvala ao mar, luz que se esvai na treva,Pelejas sem ardor, vitórias sem conquistas!O poema parece revelar tons autobiográficos, mostrando a luta do poetapara alcançar o respeito <strong>de</strong> seus contemporâneos na cena literária. O poetaaproxima a sua imagem à figura da flor “que resvala ao mar”, perdida e esfaceladana torrente da existência. As palavras combate e flor aparecem em visívelcontraste, apontando a <strong>de</strong>rrota iminente, reforçada pelo verso “pelejas sem ardor,vitórias sem conquistas”, que soa um tanto melancólico. Em “Prelúdio”,Machado parece tratar da batalha constante do poeta na construção do poema,ao mesmo tempo em que mostra o seu combate com a vida. Não uma vida<strong>de</strong> homem simples, mas a do artista que se doa em prol <strong>de</strong> sua criação.Tratando ainda da influência <strong>de</strong> Octave Feuillet, Machado refere-se pelaprimeira vez ao drama Dalila nos textos sobre o teatro em 1860, portantobem anteriores a Crisálidas e Falenas. Na introdução do artigo <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> maio7 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Crítica Teatral. Livro do mês S.A: São Paulo, 1962. pp. 155-160.189


Flávia Vieira da Silva do Amparo<strong>de</strong> 1860, o estreante no folhetim fala <strong>de</strong> seus temores diante da recepção dopúblico:“(...) o folhetinista também sofre suas torturas com a apresentação doseu primeiro folhetim.Ninguém calcula as incertezas e as ânsias em que luta a alma <strong>de</strong> um folhetinistanovel, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lançada nesse mar, que se chama público, a primeiracaravela que a custo construiu no estaleiro <strong>de</strong> suas opiniões. (...) A dúvida<strong>de</strong>saparece quando o primeiro, o segundo, o terceiro amigo vêm com a mãoaberta e o sorriso leal dizer-lhe uma palavra <strong>de</strong> animação.” 8Tais indícios nos levam a acreditar que, na construção <strong>de</strong> Falenas, Machado<strong>de</strong>ixou-se cercar <strong>de</strong> cuidados para não repetir os mesmos <strong>de</strong>slizes apontadospela crítica em relação à obra poética anterior. Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar,no tom <strong>de</strong> lamento, uma censura aos intelectuais brasileiros, que tanto velavampela forma poética, isto é, pela exteriorida<strong>de</strong> da poesia. Em “Prelúdio” ele encontracomo refúgio a própria poesia e a invenção <strong>de</strong> imagens, isto é, o poetaestá metaforizado na figura da “flor que resvala ao mar”. É através da máscarada metáfora poética que o autor encontra o remédio para dizer tudo o quepensa sem ficar <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>scoberto.A preocupação do poeta em ouvir a crítica não produz o efeito <strong>de</strong>sejado,pois as opiniões negativas acerca do novo livro parecem ser ainda mais contun<strong>de</strong>ntesdo que as dirigidas ao primeiro. Falenas foi vista como uma obra <strong>de</strong> escassaoriginalida<strong>de</strong> por conter traduções <strong>de</strong> poetas consagrados e por tratar <strong>de</strong>temas diversos que dialogavam com outros espaços, diferentes do contextobrasileiro, como a “Lira chinesa”, “La marchesa <strong>de</strong> Miramar” e “Uma o<strong>de</strong> <strong>de</strong>Anacreonte”, além <strong>de</strong> um poema composto em francês “Un vieux pays”. Aonovo poeta não bastava agora a opinião <strong>de</strong> um ou dois amigos, ele queria ser8 ASSIS. Crítica Teatral. Op. cit. pp. 154-155190


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?reconhecido fora do círculo íntimo. Precisava <strong>de</strong> um parecer sincero e abalizado,que <strong>de</strong>ixasse em segundo plano a relação pessoal.Nas folhas do Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, num artigo <strong>de</strong> Guimarães Júnior, observa-sea mudança da crítica, que aponta a correção métrica do livro como algoartificial e sente falta do lirismo das Crisálidas, outrora visto como obra <strong>de</strong>scuidada:“O livro das Crisálidas é aquele em que mais salientemente se patenteia aíndole poética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. As Falenas revelam o artista, o método,a correção na estrutura e na plástica. Nas Crisálidas adivinha-se o poeta, ohomem da inspiração e o músico da alma.” 9Seguindo na crítica, Guimarães Jr. chega a afirmar que Machado <strong>de</strong> Assisem Falenas foi pouco espontâneo, além <strong>de</strong> apontar-lhe a falta <strong>de</strong> espírito pátrioe <strong>de</strong> “inspiração característica”. Uma opinião que se perpetuou até os nossosdias, quando ainda lemos alguns textos sobre a obra machadiana em geral quemostram a ausência <strong>de</strong> patriotismo do autor e um certo alheamento em relaçãoàs questões políticas e históricas.Sobre Falenas há uma opinião curiosa <strong>de</strong> um dos colaboradores <strong>de</strong> A VidaFluminense, que se assina como A. <strong>de</strong> C., ocultando talvez o nome <strong>de</strong> Augusto<strong>de</strong> Castro, principal redator da publicação, segundo pesquisa <strong>de</strong> Ubiratan Machado.10 Em 2 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1870, A <strong>de</strong> C. faz as seguintes observações:“Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabrochadas as Crisálidas, e quando todos esperavam uma miría<strong>de</strong><strong>de</strong> borboletas crepusculares, apresenta-nos o autor, repassado <strong>de</strong> modéstia,as suas Falenas, borboletas noturnas, cuja leitura encetei logo, e poron<strong>de</strong> coligi que, se as sombras <strong>de</strong>vem aprazer a tais lepidópteros, muitobem <strong>de</strong>vem eles achar-se nos novos versos do amável poeta.9 GUIMARÃES JR., Luis. Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 5 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1870. p. 210 MACHADO, Ubiratan. A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: EdUERJ,2001. p. 236191


Flávia Vieira da Silva do AmparoNeles há sombras a mais não querer. Não só as poesias tomam título àssombras (“Luz entre sombras” e “Sombras”), como também reinam assombras em todas elas.”O redator <strong>de</strong> A Vida Fluminense dá continuida<strong>de</strong> ao texto mostrando em váriaspassagens a ocorrência das palavras “sombra”, “sombrio” e <strong>de</strong> verbos queexprimem a mesma idéia, porém não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> afirmar que o segundo livro <strong>de</strong>poesias <strong>de</strong> Machado é bem superior ao primeiro. A observação feita por A. <strong>de</strong>C, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>smerecer o livro, <strong>de</strong>staca certas características <strong>de</strong> Falenas que são,visivelmente, mais acentuadas: lirismo comedido, objetivida<strong>de</strong> nos temas, tendênciadramática em alguns poemas e presença <strong>de</strong> uma ironia sutil. Falenas,como o próprio título indica, marca o nascimento <strong>de</strong> uma “borboleta noturna”,ambígua e melancólica, assim como presencia a <strong>de</strong>struição causada peloverme, que passa a roer todo vínculo <strong>de</strong> “flor”, isto é, <strong>de</strong> lirismo, que transbordavaoutrora nas Crisálidas, invólucro <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíra aquela borboleta preta.Em outra ocasião, A. <strong>de</strong> C. também faz crítica ao temperamento do poetaMachadinho, pelo mesmo jornal, em 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1871, ao tratar da eleiçãodos novos membros do Conservatório Dramático. Sendo Machado <strong>de</strong>Assis um dos escolhidos, o redator <strong>de</strong>staca a mudança <strong>de</strong> opinião do escritor<strong>de</strong> Falenas, que, num primeiro momento, havia “<strong>de</strong>clinado <strong>de</strong> si a honra <strong>de</strong> sermembro do novo conservatório”, mas que, logo <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> aceitar a novafunção. Como o artigo é ainda pouco conhecido, o transcreveremos na íntegra:“Asseguramos no sábado passado que o Sr. Machado <strong>de</strong> Assis havia <strong>de</strong>clinado<strong>de</strong> si a honra <strong>de</strong> ser um dos membros do nimiamente conspícuo <strong>de</strong>strutóriodramático, conservatório grasnático, ou coisa que assim se pareça.E asseguramo-lo, sem receio, nem <strong>de</strong> leve, <strong>de</strong> faltar a verda<strong>de</strong>, porque odulcíssimo poeta (grifo nosso) era o primeiro a divulgá-lo par <strong>de</strong>ssus toits.Infelizmente, porém, consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> um alcance que não nos é dadoatingir induziram <strong>de</strong>pois (logo <strong>de</strong>pois) nosso amigo cultor das musas a voltarpara o sapiente grêmio.192


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?Que bonitas coisas não diria o presi<strong>de</strong>nte para chamar <strong>de</strong> novo ao abrigadoretábulo a ovelha que lhe havia fugido?Coisas lindíssimas sem dúvida alguma e que muito abonam a fecundida<strong>de</strong><strong>de</strong> sua imaginação, mas que não justificam, nem mesmo atenuam, a irresolução<strong>de</strong> ânimo, o vaivém, o quero e não quero do inspirado autor das Falenas.Antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedir-se, <strong>de</strong>via calcular as conseqüências do passo que ia dar,para não ter <strong>de</strong> voltar atrás no dia seguinte, como um viandante inexperienteque reconhece haver errado o caminho do mato.Olhe; o Sr. Vitorino <strong>de</strong> Barros não abandona seu posto nem a tiro <strong>de</strong> canhãoprussiano.Faça como ele, <strong>de</strong>ixe correr o barquinho à feição das águas. Nem se fazmister remar!É este um conselho <strong>de</strong> velho amigo, Sr. Machado <strong>de</strong> Assis.” 11A ironia ácida do jornalista toca em dois pontos que se tornam o “calcanhar<strong>de</strong> Aquiles” <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, a serem retomados por Sílvio Romero: a figurado “dulcíssimo poeta”, tomada <strong>de</strong> forma pejorativa, e a “irresolução <strong>de</strong>ânimo” como marca <strong>de</strong> um caráter in<strong>de</strong>ciso. Nota-se também a expressão emfrancês, que realça a fala atribuída a Machado, <strong>de</strong>finindo o gosto do poeta pelalíngua francesa e, maliciosamente, intensificando a imagem <strong>de</strong> escritor alheioao contexto nacional.Por consi<strong>de</strong>rar que a crítica estava enganada no julgamento ao avaliar a suaobra pouco patriótica, Machado reformula o indianismo em Americanas, paramostrar que o conceito <strong>de</strong> pátria englobava algo maior que a causa indianista.Fica claramente exposta essa idéia no prefácio do livro. Parece um paradoxotratar do índio para dizer que nele não se resume a “cor local”, mas o escritorprecisava concretizar em uma obra suas idéias sobre o autêntico e o nacional naliteratura. Na advertência, escrita nas primeiras páginas <strong>de</strong> Americanas, vemos oque podia ser consi<strong>de</strong>rado um dos objetos <strong>de</strong> análise do poeta e do prosador:11 O artigo foi extraído <strong>de</strong> A Vida Fluminense, 28/01/1871. p. 30193


Flávia Vieira da Silva do Amparo“A generosida<strong>de</strong>, a constância, o valor, a pieda<strong>de</strong> hão <strong>de</strong> ser sempre elementos<strong>de</strong> arte, ou brilhem nas margens do Scamandro ou nas do Tocantins.O exterior muda; o capacete <strong>de</strong> Ajax é mais clássico e polido do que ocanitar <strong>de</strong> Itajubá; a sandália <strong>de</strong> Calipso é um primor <strong>de</strong> arte que não achamosna planta nua <strong>de</strong> Lindóia. Esta é, porém, a parte inferior da poesia, aparte acessória. O essencial é a alma do homem.”As palavras do autor <strong>de</strong> Americanas fazem uma ressalva ao pensamento,corrente na época, <strong>de</strong> que uma obra só po<strong>de</strong>ria ser nacionalista se falasse <strong>de</strong>índios, sabiás e palmeiras, nos mesmos mol<strong>de</strong>s das <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar eGonçalves Dias. Machado <strong>de</strong> Assis não queria contestar a herança literáriaindianista, mas abrir espaço às novas experiências. A originalida<strong>de</strong> não selimita ao exterior, à paisagem, mas ao interior, à alma do homem. Essaabordagem machadiana permite que a obra assuma uma universalida<strong>de</strong> eque permaneça sempre atual, mesmo passados muitos anos <strong>de</strong> sua publicação.No terreno da forma poética, no entanto, era mais difícil concretizaruma inovação porque o verso ainda estava preso às leis da métrica e aos rígidospadrões da época.Com Americanas, graças à temática indígena, Machado foi reconhecido poralguns como um poeta nacional que se iniciava na escola <strong>de</strong> Gonçalves Dias eJosé <strong>de</strong> Alencar. Em um artigo do Brazil Americano po<strong>de</strong>mos ver <strong>de</strong> que formaele foi recebido pela imprensa:“Um livro com esse título simpático e firmado por nome tão conceituado<strong>de</strong>via ser acolhido <strong>de</strong> outro modo pela imprensa do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Nãosabemos ainda qual a norma por que os nossos jornalistas pautam o seuprocedimento em relação aos fatos literários do país, e quando vemos obrasescritas por poetas <strong>de</strong> fama passarem quase <strong>de</strong>spercebidas, merecendo apenasuma simples e lacônica notícia.Quando pranteamos ainda a morte <strong>de</strong> Varela e não lhe vemos sucessor,era natural que os sumos sacerdotes da imprensa literária, aqueles a quem194


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?coube a cornucópia da reputação, saudassem o convertido poeta cosmopolitaque espedaçando os ídolos estrangeiros vinha afinal reunir-se aos crentesdo americanismo.” 12Dois aspectos são relevantes nessa crítica: o <strong>de</strong>scaso da imprensa em relaçãoao livro indianista <strong>de</strong> Machado e, novamente, a reafirmação da imagem cosmopolitado escritor. Americanas surge como uma espécie <strong>de</strong> conversão <strong>de</strong> Machadoa um estilo já ultrapassado na literatura, mas que parece ter sido um cultonecessário aos poetas “verda<strong>de</strong>iramente” brasileiros da época. O nacionalismoromântico não estava, então, completamente enterrado. O prefácio do livro<strong>de</strong> Machado aparece como uma tentativa <strong>de</strong> mostrar que tudo po<strong>de</strong>ria sermatéria poética, e não somente uma paisagem estereotipada pelos indianistas.O escritor é capaz <strong>de</strong> refletir sua pátria mesmo quando não fala <strong>de</strong> coisas especificamentenacionais. A alma do homem brasileiro, com todos os seus paradoxos,era a matéria pura e essencial que Machado <strong>de</strong> Assis buscava.Os poemas <strong>de</strong> Americanas gravitam em torno <strong>de</strong> temas indianistas permeados<strong>de</strong> uma consciência crítica, que opõe o cristianismo ao paganismo, refletindosobre momentos controversos da História do Brasil e mostrando a oposiçãoentre questões essenciais e aparentes.O artigo do Brazil Americano con<strong>de</strong>nou o prefácio <strong>de</strong> Americanas, argumentandosobre a importância do ambiente externo na formação do caráter humano.Uma opinião que era fortalecida pelo mito do “bom selvagem” rousseauniano eque, mais tar<strong>de</strong>, seria adotada pelo cientificismo naturalista <strong>de</strong> Taine, avaliandoo homem como um produto do meio, da raça e do momento, esvaziando-o <strong>de</strong>seu conteúdo racional:“A alma do homem é a mesma nos pólos e sob o Equador; diversas porém sãoas idéias que a imagem dos objetos suscita no esquimó e no árabe. O poetaque consi<strong>de</strong>ra a influência da latitu<strong>de</strong> e da educação social e doméstica como12 Artigo sem assinatura pertencente ao Brazil Americano n° 23 <strong>de</strong> 20/12/1875.195


Flávia Vieira da Silva do Amparoa parte inferior da obra, se a tiver em conta do acessório, e encara o indivíduo<strong>de</strong>sprezando a fisionomia que nele imprime a socieda<strong>de</strong> em que vive, recusa omais po<strong>de</strong>roso subsídio poético, esquiva-se a perpetuar ao lado da beleza artísticaa verda<strong>de</strong> histórica e escreve como o Sr. Machado <strong>de</strong> Assis frouxas narrações,cronimetrificadas, quadros sem colorido nem vigor e sonega à pátriaos frutos que todas as inteligências vigorosas lhe <strong>de</strong>vem oferecer.” 13O censor inicia o texto falando <strong>de</strong> uma possível conversão <strong>de</strong> Machado aum estilo nacionalista e termina chamando-o <strong>de</strong> sonegador da pátria. O quefaz o “nacionalismo” poético <strong>de</strong> Machado passar a impressão <strong>de</strong> ter fracassado?Talvez isso aconteça porque talvez a intenção do escritor não fosse repetirmo<strong>de</strong>los; queria, ao contrário, da formação cultural do povo brasileiro, quenão se resumia à figura do indígena.Diante <strong>de</strong> um panorama tão complexo, Machado <strong>de</strong> Assis parecia insatisfeitocom a recepção da sua poesia. Mudou mais uma vez <strong>de</strong> tema, para não servisto como um poeta distante da causa nacional, e acabou por <strong>de</strong>sagradar aindamais aos leitores. Teria nascido Machado <strong>de</strong> Assis apenas para a ficção romanesca,já que seus versos foram tachados <strong>de</strong> “cronimetrificados”?Havia uma tendência em Machado para tratar a fundo as questões referentesà arte. Arte para o escritor se confundia com reflexão, por isso procuravameios <strong>de</strong> manifestar suas opiniões sobre a literatura e o fazer literário, mesmoquando escrevia poesia. Essa intenção metapoética, que avulta em Falenas, seconcretiza em Americanas em consonância com as idéias formuladas no “Instinto<strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>”, artigo publicado em O Novo Mundo, em 1873. O artigotraçava um panorama da arte no Brasil, falando do romance, da poesia, do teatroe, ainda, fazendo algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a língua escrita:“Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da Literatura<strong>Brasileira</strong>, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal (...).13 I<strong>de</strong>m.196


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião,que tenho como errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obrasque tratam <strong>de</strong> assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedaisda nossa literatura.” 14O artigo aborda o mesmo assunto do prefácio <strong>de</strong> Americanas, mas, infelizmente,a crítica não conseguiu chegar a um consenso quanto ao que seria o verda<strong>de</strong>iro“instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>”. Essa reflexão machadiana é recorrentemesmo nos contos e romances, quando o escritor <strong>de</strong>sloca o espaço/tempo dasnarrativas, mas segue ironizando o seu espaço e época. Assim, nas Americanas,quando Machado <strong>de</strong> Assis nos fala do sacrifício pagão/cristão no poema “Potira”,está assinalando outras questões ligadas ao pensamento <strong>de</strong>strutivo domundo oci<strong>de</strong>ntal e às dicotomias razão/emoção e corpo/espírito. O jogo entreos duplos marca o pensamento em conflito, acentuado na literatura <strong>de</strong>sseperíodo, em que se viam a diluição do Romantismo e o surgimento <strong>de</strong> tendênciasrealistas e cientificistas.Em 1897, Sílvio Romero escreveu um longo estudo sobre a obra <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis, abordando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros versos até os romances da maturida<strong>de</strong>.O crítico mostra opiniões contun<strong>de</strong>ntes, mas que muito nos interessam,sobre o nacionalismo machadiano e, no que se refere a Americanas, chega aafirmar que este livro seria o “menos brasileiro” <strong>de</strong>ntre todos os <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis:“E agora veja o estimável crítico uma coisa curiosa: <strong>de</strong> todos os livros doautor fluminense o pior, o mais pálido, o mais insignificante e menos brasileiroé precisamente e exatamente aquele em que escolheu <strong>de</strong> preferência assuntosnacionais, as suas Americanas – um livro incolor a mais não ser. É queo poeta fez ali obra <strong>de</strong> erudito, sem paixão, sem alma.” 15 19714 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Instinto <strong>de</strong> Nacionalida<strong>de</strong> & Outros Ensaios. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.pp. 15-16.15 ROMERO, Sílvio. Machado <strong>de</strong> Assis. 2 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio Editora, 1936. p. 29.


Flávia Vieira da Silva do AmparoPo<strong>de</strong>mos observar que a opinião <strong>de</strong> Romero sobre Americanas é semelhante à<strong>de</strong> alguns críticos sobre Falenas em relação a Crisálidas: perda da paixão e preocupaçãocom a forma e o conteúdo. A posição <strong>de</strong> poeta erudito substituiu a <strong>de</strong>poeta apaixonado, doce e lírico? Como <strong>de</strong>finir o poeta Machado <strong>de</strong> Assis? Seguindoo estudo <strong>de</strong> Romero, verificamos que ele encontra três feições diferentesna poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis:“A poesia do notável fluminense, pondo <strong>de</strong> parte certa feição patriótica,quase sempre rebuscada e fria, que se acha em Americanas, tem três notas capitais:uma sonhadora e pessoal, outra humorística e docemente irônica(grifo nosso), a terceira <strong>de</strong> certa curiosida<strong>de</strong> por coisas estranhas, por quadrosafastados e peregrinos.” 16Segundo Romero, Falenas é o livro <strong>de</strong> Machado que apresenta as três notasapontadas acima. No entanto, faz uma ressalva à última característica observadana poesia <strong>de</strong> Machado, pois vê como mau gosto esta “curiosida<strong>de</strong> por coisasestranhas”, tomando como exemplo a “Lira chinesa”. Apesar disso, nãopo<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar, mais uma vez, um esforço para tentar compreen<strong>de</strong>ro poeta Machado <strong>de</strong> Assis e a expressão utilizada para <strong>de</strong>fini-lo: “docementeirônico”. De fato, se compararmos a ironia do escritor fluminense com a dosescritores da época, principalmente com a dos românticos, como BernardoGuimarães e Álvares <strong>de</strong> Azevedo, percebemos o tom mais ácido da ironia nessesautores, enquanto, em Machado, há certa suavida<strong>de</strong> nas palavras, principalmenteporque sua ironia é o que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> enviesada, ou seja, umaironia que vai sendo construída, tecida por entre as malhas do texto, mas nuncamostrada abertamente.Romero, no <strong>de</strong>correr do seu estudo, torna-se mais enfático e intransigente.Acirrando a crítica, ele torna a falar do “doce poeta”, que aqui apresenta omesmo sentido empregado por A. <strong>de</strong> C. no artigo <strong>de</strong> A Vida Fluminense, trans-16 I<strong>de</strong>m. p.37198


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?crito anteriormente. O “dulcíssimo poeta” e a “irresolução <strong>de</strong> ânimo” são imagensretomadas em Romero para menosprezar a obra e o autor.“Po<strong>de</strong> ser gracioso, não duvido; porém é acanhado e algum tanto piegase pulha. Creio não ser <strong>de</strong>masiado grosseiro afirmar que esta águia não temenvergadura, este condor não possui o largo vôo solitário das montanhas,este Machado <strong>de</strong> Assis é um doce poeta <strong>de</strong> salão, pacato e meigo, se quiserem;porém gago e in<strong>de</strong>ciso (grifo nosso).” 17O crítico também se apropria do discurso machadiano para marcar certostraços <strong>de</strong> caráter, que consi<strong>de</strong>rava negativos no poeta. Assim, a expressão“meias tintas” empregada por Machado <strong>de</strong> Assis na crônica do primeiro númerodo Futuro, em 1862, foi retomada por Sílvio Romero com a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacarno escritor uma falta <strong>de</strong> imaginação e <strong>de</strong> um estilo vigoroso; neste caso, o“doce” assume a conotação <strong>de</strong> fraco e inerme. Na crônica do Futuro temos:“Tirei hoje do fundo da gaveta, on<strong>de</strong> jazia, a minha pena <strong>de</strong> cronista. Acoitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la articular, por entre osbicos, uma tímida exploração.(...) O pugilato das idéias é muito pior que odas ruas; tu és franzina [a pena], retrai-te na luta e fecha-te no círculo dosteus <strong>de</strong>veres, quando couber a tua vez <strong>de</strong> escrever crônicas. Sê entusiastapara o gênio, cordial para o talento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa para a nulida<strong>de</strong>, justiceirasempre, tudo com aquelas meias-tintas tão necessárias aos melhores efeitosda pintura.” 18Machado <strong>de</strong> Assis usou a expressão para caracterizar sua forma <strong>de</strong> escrever,como já dissemos, um tanto encoberta, sem exagerar no estilo, <strong>de</strong>ixando apenasentrever os seus contornos. No meio jornalístico, no entanto, a expressão17 I<strong>de</strong>m. p 40.18 Apud: MASSA, Jean-Michel. A Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Trad. <strong>de</strong> Marco Aurélio Matos. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Civilização <strong>Brasileira</strong>, 1971.p. 352199


Flávia Vieira da Silva do Amparotem um significado diferente, associando-se a uma escrita sem opiniões marcantes,logo, sem traços fortes <strong>de</strong> caráter. O escritor fluminense trabalha osdois sentidos na crônica, o jornalístico e o artístico, mas sob a ótica da ironia,exatamente por consi<strong>de</strong>rar que a crítica agia injustamente com o escritor quepossuía idéias próprias.A in<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> estilo, para Romero, torna-se uma das marcas atribuídas aMachado e, não po<strong>de</strong>ndo encaixá-lo no mo<strong>de</strong>lo romântico, <strong>de</strong> característicasexageradamente sentimentais, opta por enquadrar o poeta num meio-tom, naacepção mais negativa do termo:“Por outros termos, seu romantismo foi sempre, no meio da barulhadaimaginativa e turbulenta dos seus velhos companheiros, pacato e pon<strong>de</strong>rado,com uma porta aberta para o lado da observação e da realida<strong>de</strong>; seu atualsistema, que pon<strong>de</strong>rei chamar <strong>de</strong> um naturalismo <strong>de</strong> meias-tintas, um psicologismola<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> ironias veladas e <strong>de</strong> pessimismo sossegado, tem porsua vez uma janela escancarada para as bandas das fantasias românticas, nãoraro das mais exageradas e aéreas.” 19Ao afirmar que o escritor utiliza “ironias veladas”, Romero aponta parauma particularida<strong>de</strong> da poesia machadiana: o disfarce. Essa ironia não aparece<strong>de</strong> forma direta e contun<strong>de</strong>nte, já que se reveste <strong>de</strong> uma aparente doçura paradisfarçar a crítica incisiva. A “pena justiceira” <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis pareceaplicar nos versos as instruções da crônica <strong>de</strong> 1862, valendo-se das “meiastintas”para buscar um efeito, um estilo, enfim, um modo <strong>de</strong> protestar, quasesilenciosamente, dissimulado no discurso.Talvez esse seja o principal motivo das interpretações negativas da poesia<strong>de</strong> Machado. As análises têm apontado particularida<strong>de</strong>s da obra poética, masnão consi<strong>de</strong>ram a poesia como um todo, no seu arcabouço estrutural. O “fazer”em Machado está intimamente ligado ao “pensar”; a realização <strong>de</strong> uma19 ROMERO, Sílvio. Op. cit. p. 25.200


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?obra <strong>de</strong> arte se cerca da análise crítica, como se, para ele, escrever fosse umaforma <strong>de</strong> pôr em prática, simultaneamente, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> escritor e <strong>de</strong> crítico.As questões formuladas na obra <strong>de</strong> Machado, tanto a poética quanto a ficcional,são sempre retomadas, e o escritor escolhe tratar <strong>de</strong> todos os assuntossem pen<strong>de</strong>r para os extremos, fazendo do seu discurso uma expressão dúbia ecomplexa. De Crisálidas a Memorial <strong>de</strong> Aires, Machado segue matizando suas consi<strong>de</strong>rações,sempre trazendo à tona as revelações da alma humana, um misto <strong>de</strong>Bem e <strong>de</strong> Mal, a “meia-tinta” da humanida<strong>de</strong>.Nos arquivos da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> pu<strong>de</strong>mos ter acesso a algunstextos produzidos por terceiros e enviados a Machado. Alguns trazem opiniõessobre o escritor fluminense e outros avaliam-lhe a produção intelectual.Dentre esses, há um poema curto que realiza as duas coisas, pois fala do autor eda obra. Infelizmente o texto não está datado, e o autor se i<strong>de</strong>ntifica apenascomo “O plantonista”. O título é bem sugestivo e enfatiza o teor da estéticamachadiana: “Ao corte do Machado”.O velho mol<strong>de</strong>, antiquado,D’inchada literaturaFoi-se aos golpes do MachadoVibrado com mão segura.Romancista – fez HelenaFez também Iaiá Garcia:Pondo Brás Cubas em cena,Também fez filosofia.Fez Falenas, fez Crisálidas;fez versos a fundo;Se na véspera tem nascido...Teria feito este mundo!201


Flávia Vieira da Silva do AmparoPoeta....sabeis que é raroO que com ele se agarreNo lirismo doce-amaroQue o faz o nosso Gayarre...Que ele é quase este cantorSabe-o ele, ele o diz:Pois se dá dós o tenor(Ele) Machado... d’Assis.O “mol<strong>de</strong> antiquado <strong>de</strong> inchada literatura” é uma referência direta aos excessosromânticos da época, que se foram “ao golpe do Machado”, uma brinca<strong>de</strong>iracom o nome do escritor, que passa a ser i<strong>de</strong>ntificado com o instrumentocortante. O enxugamento do lirismo e o corte narrativo são outros pontosque estão relacionados ao poema. A quarta estrofe traz um parecer que explicao lirismo presente na poesia do escritor fluminense: “doce-amaro”. O “dulcíssimopoeta” é retomado numa expressão que <strong>de</strong>fine melhor o poeta Machadinho,pois, afinal, ele não queria mesmo tomar uma única posição, era doce eamargo ao mesmo tempo.O poema <strong>de</strong> “O plantonista” nos revela um Machado em ascendência naprosa, mas, apesar disso, já bem reconhecido como poeta, apresentando um lirismoincomum, raro e dúbio, ou seja, o verso doce estava cercado <strong>de</strong> uma ironiaamarga. O “leitor ruminante”, diante <strong>de</strong> um manjar tão excêntrico, há <strong>de</strong> saberdigeri-lo, mesclando, continuamente, os sabores que se alternam no texto.Um outro poema, “Refus”, escrito por Machado na Gazeta <strong>de</strong> Notícias em1890, <strong>de</strong>screve a mesma feição íntima e ambígua do escritor. Os versos são dirigidosa Jaime <strong>de</strong> Séguier e fazem alusão a um certo retrato machadiano <strong>de</strong>lineadopelas palavras do amigo. O poema, escrito em francês, foi coligido pelaedição da Aguilar. 2020 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Obra Completa. Vol. III. Nova Aguilar: Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1979. p. 311.202


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?Non, j’ ne paye pas, car il est incompletCet ouvrage. On y voit, certes, la belle toucheQue ton léger pinceau met à tout ce qu’ il touche;Et, pour un beau sonnet, c’est un fort beau sonnet.Ce sont-là mes cheveux, c’est bient-là le refletDe mes yeux noirs. Je ris <strong>de</strong>vant ma propre bouche.Je reconnais cet air tendre ainsi que faroucheQui fait toute ma force et tout mon doux secret.Mais, cher peintre du ciel, il manque à ton ouvrageDe ne pas être dix, tous ègalement doux,Vibrant d’âme, et parfaits, pleins <strong>de</strong> charme et <strong>de</strong> vie,Pour un baiser, je veux toute une galerie. 21A segunda estrofe apresenta, em tradução <strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>sto <strong>de</strong> Abreu, as seguintes<strong>de</strong>finições: “Meu cabelo é bem esse, esse é o reflexo discreto/ De meuolhar. Eu rio, ao fitar minha boca,/ Reconheço esse ar terno e um tanto taciturno,/Que faz a minha força e o meu dulçor secreto”. O “eu lírico” reconheceem si o “olhar discreto” e o “ar terno e taciturno”, ao mesmo tempo. Nopoema original Machado utiliza a expressão “air tendre ainsi que farouche”, isto é,um ar terno e selvagem, duas oposições que são a “força e o dulçor secreto” dopoeta. A combinação das duas características se torna, <strong>de</strong> fato, a melhor <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> Machado, principalmente na poesia, on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>ixa entrever algumasnotas <strong>de</strong> docilida<strong>de</strong> entrecortadas por boas doses <strong>de</strong> ironia. Qualquer aprecia-21 Tradução <strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>sto <strong>de</strong> Abreu: Apud LEAL, Cláudio Murilo. Anexo à tese doutoral. pp. 105-106.“Recusa”: Não, não pago o trabalho inda está incompleto./ Vê-se por certo, aí, o zelo que, diurno,/ Põe teu leve pincel emtudo quanto toca;/ E, para um bom soneto, é um ótimo soneto.// Meu cabelo é bem esse, esse é o reflexo discreto/ De meuolhar. Eu rio, ao fitar minha boca,/ Reconheço esse ar terno e um tanto taciturno,/ Que faz a minha força e o meu dulçorsecreto.// Mas, meu caro pintor, a teu quadro o que falta/ É ser <strong>de</strong>z em vez <strong>de</strong> um, igualmente serenos,/ Ricos <strong>de</strong> alma,vibrando à inspiração mais alta.// A<strong>de</strong>us, pois meu contrato! Eu lhe nego valia,/ Pois, <strong>de</strong> retratos tais, <strong>de</strong> encanto e vidaplenos,/ Quero, para os beijar, toda uma galeria.203


Flávia Vieira da Silva do Amparoção crítica que mostre apenas um dos lados da poesia machadiana <strong>de</strong>ve serconsi<strong>de</strong>rada incompleta.O pacato homem das letras era movido pela tensão <strong>de</strong>ssas forças polaresque guardava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si. O “mundo interior” <strong>de</strong> Machado revelava um abismo,que, na mesma proporção dos olhos <strong>de</strong> Capitu, arrastava as maiores convicçõespara o seu interior, dando às certezas uma boa parcela <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>.Percebemos, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua trajetória literária, uma progressiva mudança,ou seja, uma opção cada vez mais óbvia pelo meio, como forma <strong>de</strong> equilibraros extremos. Nos primeiros versos, por exemplo, po<strong>de</strong>mos verificar a suadocilida<strong>de</strong> sem os laivos <strong>de</strong> amargor e ironia. Notamos um lirismo mais puro,sem a mediação do conflito. No poema “Teu canto”, publicado na MarmotaFluminense em 15 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1855, portanto um dos primeiros poemas <strong>de</strong> Machado,po<strong>de</strong>mos constatar isoladamente o “dulçor” do poeta, sem a oposição<strong>de</strong> uma imagem antitética como ocorreu em “Réfus”:Eu sinto nest’ alma,Num meigo transporte,Meu forteDulçor;Se soltas teu cantoQue o peito me abala,Que falaDe amor. 22Sua alma ainda não se revestira <strong>de</strong> agonias, sua flor poética não tinha se resvaladono mar e sua luz não havia se esvaído na treva. O dulcíssimo poeta, como tempo, <strong>de</strong>ixou que sua flor fosse corroída pelo amargor do verme.Em 1901, quando muitos pensavam que Machado havia abandonado <strong>de</strong>todo os versos da juventu<strong>de</strong>, o escritor surpreen<strong>de</strong> seus leitores com o lança-22 ASSIS. Obra Completa. Vol. III. Op. cit. p. 284.204


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?mento das Poesias Completas. A publicação reacen<strong>de</strong> novos <strong>de</strong>bates sobre a importânciada obra poética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Alguns êmulos encontraramneste fato o motivo <strong>de</strong> que precisavam para <strong>de</strong>sprestigiar o escritor e para criticaro grupo da recém-formada <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, como foi o caso<strong>de</strong> Múcio Teixeira, enquanto para outros, como Sílvio Romero, era a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> mostrar as fragilida<strong>de</strong>s do Machado poeta, já que não era possívelfazer o mesmo com o prosador.Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sprezar a opinião <strong>de</strong> José Veríssimo sobre as Poesias Completas,<strong>de</strong> 1901. Ubiratan Machado consi<strong>de</strong>rou o texto <strong>de</strong> Veríssimo, escritono Jornal do Commercio em 21 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1901, o melhor artigo publicado sobrea poesia machadiana na época e talvez até a atualida<strong>de</strong>. 23 Nele, o crítico paraenseaponta os possíveis <strong>de</strong>feitos em Machado e as qualida<strong>de</strong>s irrefutáveis; aotratar das falhas, ele assinala as mesmas restrições feitas por A. <strong>de</strong> C. e Romero:“Os mesmos <strong>de</strong>feitos, ou antes, falhas, que se lhe po<strong>de</strong>m notar no estilo,carência <strong>de</strong> cor, falta <strong>de</strong> eloqüência ou energia, ausência <strong>de</strong> animação, abuso<strong>de</strong> hesitação, são os do seu próprio temperamento, aumentados por uma excessiva<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, uma sensibilida<strong>de</strong> exagerada às mesquinharias e ridiculariasda vida, um <strong>de</strong>scomedido receio da ilusão.” 24Vemos a retomada <strong>de</strong> idéias presentes nas expressões “meias-tintas”, “irresolução<strong>de</strong> ânimo” e “dulcíssimo poeta”, presentes nos outros dois críticos.Quanto às características positivas da poesia machadiana, Veríssimo ressalta:“pureza e correção da forma, singularida<strong>de</strong> do pensamento, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za refinadados sentimentos e da expressão (...), um <strong>de</strong>licioso poeta das sensações, visões,sentimentos <strong>de</strong>licados, raros, expressos com uma arte esquisita.” 2523 MACHADO, Ubiratan. Machado <strong>de</strong> Assis: Roteiro da Consagração. Rio <strong>de</strong> Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 27.24 VERÍSSIMO, José. Apud: MACHADO, Ubiratan. Machado <strong>de</strong> Assis: Roteiro da Consagração. Rio <strong>de</strong>Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 245.25 I<strong>de</strong>m. p. 251.205


Flávia Vieira da Silva do AmparoO que haveria <strong>de</strong> novo no artigo <strong>de</strong> Veríssimo? Talvez a tentativa <strong>de</strong> comprovara existência dos fenômenos <strong>de</strong>stacados por outros críticos e <strong>de</strong> mostrarque não eram <strong>de</strong>feitos, mas “efeitos” do estilo machadiano. Procurando explicaçõespara essas tendências <strong>de</strong> Machado, Veríssimo buscava a motivação poéticado escritor:“Como poeta, não foi propriamente romântico, nem propriamente parnasiano,nem propriamente naturalista, e foi simultaneamente tudo istojunto. A cada tendência artística, a cada forma estética, colheu discretamentedas flores da beleza que produziram a que se casava com o seu temperamento,usou-lhe sobriamente o perfume, obtendo da sua mistura um novoaroma, <strong>de</strong>licado e mo<strong>de</strong>sto.” 26De fato, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> encaixar Machado num estilo é evi<strong>de</strong>nte, mesmoquando se trata <strong>de</strong> sua poesia. Pouco sentimental, em face dos <strong>de</strong>rramamentoslíricos dos românticos, e <strong>de</strong>licado <strong>de</strong>mais para a frieza dos versos parnasianos,o poeta flutua entre mo<strong>de</strong>los antigos e novos, tanto no que se refere aos temasquanto à métrica e à correção formal. O ponto principal do artigo <strong>de</strong> Veríssimoparece ser o <strong>de</strong>sfecho, quando afirma: “Regalo para outros poetas, para intelectuais,gozo para espíritos literários e para refinados, não satisfará talvez osque não o forem. É para mim o seu <strong>de</strong>feito capital; o poeta lhe achará porventuraa sua principal virtu<strong>de</strong>... E ambos talvez tenhamos razão...” 27A conclusão a que se chega é a <strong>de</strong> que Machado não escrevia para o leitorcomum, para as massas, mas para um público seleto <strong>de</strong> intelectuais e espíritosliterários. Talvez seja a reafirmação do título <strong>de</strong> poeta “cosmopolita”, que jáhavíamos apontado anteriormente. Os críticos atribuíam a Machado um estilo“estranho”, e apontavam poemas cuja temática estava mais voltada para a literaturaestrangeira do que para a nacional, e mais afeita aos paladares apuradosdo que à simplicida<strong>de</strong> do povo.26 I<strong>de</strong>m. p. 24827 I<strong>de</strong>m. p. 252.206


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?Temos observado até agora a ausência <strong>de</strong> uma análise profunda da crítica emrelação à poesia machadiana. Todos os artigos aqui <strong>de</strong>stacados procuraram <strong>de</strong>finirmais o poeta e o seu caráter pessoal do que fazer uma leitura intrínseca dosseus poemas. Disso se <strong>de</strong>sculpa Veríssimo ao <strong>de</strong>clarar que seu propósito não eraanalisar os poemas <strong>de</strong> Machado, mas unicamente dizer a “impressão geral <strong>de</strong>lecomo poeta”. Enfim, os contemporâneos apenas fizeram uma apreciação geraldo poeta Machado <strong>de</strong> Assis, não se <strong>de</strong>tendo no seu estudo <strong>de</strong>talhado nem buscandonestas produções, como sugeriu Machado, a alma do escritor.Os textos <strong>de</strong> crítica apresentados até agora foram publicados quando Machado<strong>de</strong> Assis ainda estava vivo. Inevitavelmente, muitos <strong>de</strong>les chegaram a influenciá-loe lhe provocaram algum tipo <strong>de</strong> reação, que, <strong>de</strong> certa forma, po<strong>de</strong>ter marcado suas obras posteriores. Po<strong>de</strong>mos notar alguns pontos em comumentre os textos críticos da época, mas que, no <strong>de</strong>correr dos anos, foram esquecidospelos novos intérpretes.O Mo<strong>de</strong>rnismo, por exemplo, foi um movimento que quis pôr abaixo tudoaquilo que representava Machado <strong>de</strong> Assis e conseguiu, por muito tempo, fazercom que consi<strong>de</strong>rassem sua obra como melancólica, sombria e difícil <strong>de</strong> ser entendida,além <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar o escritor como um cultor das formas, alheio ao seu entornoe dono <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> doentia. Essa visão se coadunava com o todo da obra, poesiae prosa. Na crítica mais atual, no entanto, o abismo se encontra entre o prosadore o poeta. A gran<strong>de</strong>za da prosa machadiana obscurece a divulgação <strong>de</strong> sua poesia,<strong>de</strong> tal maneira que muitas pessoas, mesmo as que apreciam a obra do escritor,<strong>de</strong>sconhecem quase completamente seus poemas, sobrevivendo apenas algumaslembranças do soneto “A Carolina” e <strong>de</strong> alguns versos <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntais.Começaremos esta segunda parte com a opinião <strong>de</strong> uma figura importantenas letras: Manuel Ban<strong>de</strong>ira. Em seu ensaio “O poeta”, Ban<strong>de</strong>ira mostra que “éum perigo para o poeta assinalar-se fortemente nos domínios da prosa”. Enfaticamente,chega a dizer que a obra machadiana até 1878, em prosa e verso, sereveste <strong>de</strong> uma mediocrida<strong>de</strong>. Também nos fala <strong>de</strong> um certo “estalo” do escritorapós essa data, que elevou o padrão <strong>de</strong> suas produções literárias. 2828 BANDEIRA, Manuel. O poeta. In: ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Obra Completa. Vol III. p. 11207


Flávia Vieira da Silva do AmparoBan<strong>de</strong>ira assinala apenas alguns poemas <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntais como dignos <strong>de</strong> algummérito. 29 Destaca também alguns versos esparsos dos livros anteriores, mas<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra todo o resto, sempre realizando uma apreciação da obra “em geral”.Em nenhum momento Ban<strong>de</strong>ira analisa a poesia <strong>de</strong> Machado com oaprofundamento <strong>de</strong>vido.Há outro julgamento <strong>de</strong> peso, por se tratar <strong>de</strong> um escritor que <strong>de</strong> igualmodo experimentou os gêneros literários, vindo a se firmar mais no terrenoficcional: Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Em seu livro Aspectos da Literatura <strong>Brasileira</strong> há umcapítulo que fala sobre a produção machadiana, por ocasião do centenário <strong>de</strong>nascimento do escritor fluminense, incluindo sua poesia. Já nas primeiras linhaso crítico lança-nos um pergunta inquietante: “Amas Machado <strong>de</strong>Assis?”. 30 Mário sugere que há uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> admirar e cultuar, comedidamente,o escritor, mas acrescenta: “Aos artistas a que faltem esses dons <strong>de</strong>generosida<strong>de</strong>, a confiança na vida e no homem, a esperança, me parece impossívelamar”. 31A leitura da obra machadiana é um <strong>de</strong>safio, pois lança a pergunta que talveznão seja possível respon<strong>de</strong>r ou que, <strong>de</strong> fato, a cada resposta se torne ainda mais<strong>de</strong>safiadora. Parece que Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> tenta <strong>de</strong> todas as formas, através dapergunta retórica, <strong>de</strong>smerecer a figura <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Aponta-o comoum representante da burguesia, acusa-o <strong>de</strong> não estar envolvido nas causas sociaise enfoca a perversida<strong>de</strong> das personagens machadianas, principalmente asfemininas, enfim, todos os preconceitos que o Mo<strong>de</strong>rnismo perpetrou contrao homem e o escritor Machado <strong>de</strong> Assis.Quanto à obra poética, o crítico <strong>de</strong>fine-a como medíocre, tal como Ban<strong>de</strong>ira,mas acrescentando que os versos <strong>de</strong> Americanas são fracos e os <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntais,amargos. Mesmo assim, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong>staca um dos poemas <strong>de</strong> Americanas,intitulado “A última jornada”, exatamente por conseguir ver nele a ligaçãocom o canto V do “Inferno” <strong>de</strong> Dante. A <strong>de</strong>scoberta do sentido <strong>de</strong>sperta ime-29 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m.30 ANDRADE. Mário <strong>de</strong>. Aspectos da Literatura <strong>Brasileira</strong>. 6 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 10731 I<strong>de</strong>m. p. 108.208


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?diatamente o prazer. Pena que ele não se tenha <strong>de</strong>bruçado sobre outros poemaspara <strong>de</strong> igual modo <strong>de</strong>svendá-los. Sobre “A última jornada”, Mário diz:“É o dom da poesia... A invenção não se origina propriamente <strong>de</strong> umahistória a contar, <strong>de</strong> um caso que é uma realida<strong>de</strong> possível <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r, mas<strong>de</strong> uma intuição íntima do poeta (...).Daí o seu <strong>de</strong>snorteante, o seu admirável, o seu mistério fecundo – essapotência <strong>de</strong> atração, <strong>de</strong> domínio, <strong>de</strong> hipnotização, <strong>de</strong> enfeitiçamento, <strong>de</strong>sugestivida<strong>de</strong> que o poema tem. E esta é a força, a essência mesma da verda<strong>de</strong>irapoesia.” 32Como o escritor po<strong>de</strong>ria exercer esta atração sem manifestar o amor?Talvez seja essa pergunta que retorne <strong>de</strong>safiante para interpelar o crítico.Mário, apesar <strong>de</strong> mostrar fascínio por “A última jornada”, acaba por reiteraras palavras <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira sobre a poesia <strong>de</strong> Machado, afirmandoque a sua preocupação com a linguagem era maior que com o lirismo e acriativida<strong>de</strong>.O texto <strong>de</strong> Mário nos faz pensar qual seria <strong>de</strong> fato sua intenção ao discorrersobre o escritor fluminense. Ficamos cogitando se, sentindo-se obrigado a escreveralgo no centenário do escritor, ele tentou <strong>de</strong>stacar uma gota <strong>de</strong> entusiasmonum oceano <strong>de</strong> insatisfação e incômodo que esta figura tão grandiosa causava.Por outro lado, po<strong>de</strong>ríamos pensar que <strong>de</strong> fato havia uma admiração,abafada pelo recalque mo<strong>de</strong>rnista, que o obrigava a colocar uma pérola – acontribuição <strong>de</strong> leitura que ofereceu sobre “Última jornada” – cercada por palavrastão severas sobre Machado.No mesmo ano do centenário, Mário Matos <strong>de</strong>staca a dificulda<strong>de</strong> na fala<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis como um dos motivos para que ele não fosse um bomorador e, por conseqüência, um bom poeta. Talvez o crítico estivesse pensandounicamente no poema <strong>de</strong>clamatório, como se a poesia não pu<strong>de</strong>sse en-32 I<strong>de</strong>m. pp. 120-121.209


Flávia Vieira da Silva do Amparofatizar apenas o texto escrito e a leitura intimista. Diz ainda que o poeta “carecia<strong>de</strong> estro, <strong>de</strong> flama, <strong>de</strong> frescura nos sentimentos ou emoções”. 33 Vemoscomo o “dulcíssimo poeta” se torna, <strong>de</strong> um momento para o outro, um artistainsensível.Machado <strong>de</strong> Assis ficou por muito tempo relegado ao segundo plano na literaturaaté voltar a ser valorizado, principalmente nos anos posteriores ao seucentenário <strong>de</strong> nascimento, quando enfim foram <strong>de</strong>rribados muitos preconceitos,inclusive o <strong>de</strong> que o escritor era alheio às questões políticas e sociais do seutempo. Estudos importantes surgiram entre as décadas <strong>de</strong> 1950 e 1960, masem gran<strong>de</strong> parte voltavam-se para a prosa machadiana ou <strong>de</strong>dicavam-se as pesquisasbiográficas do escritor. A poesia foi posta ao largo, excetuando-se, logicamente,os biógrafos, como Massa, que fizeram um levantamento das produçõesmachadianas da juventu<strong>de</strong>.Alguns textos mais recentes procuraram reunir opiniões que tratam da obramachadiana como um todo. No panorama atual <strong>de</strong>stacam-se alguns artigossobre a poesia <strong>de</strong> Machado, como os <strong>de</strong> Ivan Teixeira, Mario Curvello, MarioChamie e, também, num estudo mais aprofundado, a tese <strong>de</strong> doutoramento <strong>de</strong>Cláudio Murilo Leal.A imagem do poeta doce, <strong>de</strong>licado e recatado diluiu-se no <strong>de</strong>correr dosanos. Na atualida<strong>de</strong>, nenhum crítico enfatizou essa vertente machadiana, mesmotendo sido tão acentuada na crítica feita em vida do autor. O que nos interessa,no entanto, é perceber como se manifestam a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e a docilida<strong>de</strong>na poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, resgatando idéias do passado e do presente.Comecemos com uma afirmação <strong>de</strong> Cláudio Murilo Leal sobre a chave <strong>de</strong> leiturado verso machadiano:“Machado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primeiros poemas, <strong>de</strong>monstra uma precoce habilida<strong>de</strong>no jogo da dissimulação verbal. O subentendido permanece na penumbra<strong>de</strong> uma mensagem que aguarda o perspicaz exegeta, aquele paciente <strong>de</strong>-33 MATOS, Mario. In: BOSI, Alfredo et al. Machado <strong>de</strong> Assis. São Paulo: Ática, 1982. p. 353.210


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?codificador que encontrará as chaves do sentido oculto dos versos <strong>de</strong> duplasignificação.” 34Leal sugere um “jogo <strong>de</strong> dissimulação verbal”, que <strong>de</strong>finimos como ironiapoética machadiana, revestida <strong>de</strong> “um sentido oculto” e que, po<strong>de</strong>mos acrescentar,se escon<strong>de</strong> numa fragilida<strong>de</strong> aparente <strong>de</strong> rosa. Veríssimo também já haviamostrado no poeta uma “sincerida<strong>de</strong> contida”, uma ironia específica, quese oculta por trás da docilida<strong>de</strong> do poeta:“E o poeta, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu recato e timi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>ixar-lhe-á, por isso mesmo,uma impressão <strong>de</strong> extrema <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, <strong>de</strong> fina e alta aristocracia <strong>de</strong> sentimentos,não pelo rebuscado <strong>de</strong> complicações emocionais, mas pela sua sincerida<strong>de</strong>sempre contida, que, no receio da ironia alheia, corrige com suaprópria toda manifestação que lhe parece mais aparente e, portanto, à suasensibilida<strong>de</strong> aguda – grosseira e chocante.” 35Talvez o amigo <strong>de</strong> Machado tenha sido o único a procurar <strong>de</strong>finir essa doçurainexplicável do poeta, tão exaltada/discriminada em sua época e quaseimperceptível à nossa. “O aroma <strong>de</strong>licado e mo<strong>de</strong>sto” do poeta Machadinho,repetindo as palavras <strong>de</strong> Veríssimo citadas linhas atrás, tinha “a lhe embaçar oestro o seu espírito <strong>de</strong> análise, que já entrava a amadurecer, o seu nativo ceticismo,a sua ironia, o seu arisco pudor <strong>de</strong> exteriorizar-se.” 36 O “arisco pudor” casa-sebem com o “ar terno e selvagem”, que são “a força e o dulçor secreto” dopoeta Machado <strong>de</strong> Assis, além <strong>de</strong> revelar a essência do lirismo “doce-amaro”sugerido por “O plantonista”.Para encerrar, <strong>de</strong>ixemos o discurso machadiano revelar-se pela voz da poesia.Em Oci<strong>de</strong>ntais, Machado escreve o “Soneto <strong>de</strong> Natal”, on<strong>de</strong> fala <strong>de</strong> um recordar<strong>de</strong> “sensações antigas” e da luta do poeta para transmitir suas emoções34 I<strong>de</strong>m. p. 78.35 VERÍSSIMO. Op. cit. p. 253.36 I<strong>de</strong>m. p. 247.211


Flávia Vieira da Silva do Amparoem verso “doce e ameno”. Fracassado em seu intuito criador, o poeta, metaforizadona figura do “homem” que aparece no poema, só consegue escrever umúnico verso, mas, ironicamente, ao tratar <strong>de</strong>ssa dificulda<strong>de</strong>, o escritor compõeos dois quartetos e dois tercetos necessários a sua produção. Na verda<strong>de</strong>, umfalso fracasso:Um homem – era aquela noite amiga,Noite cristã, berço do Nazareno –,Ao relembrar os dias <strong>de</strong> pequeno,E a viva dança, e a tépida cantiga,Quis transportar ao verso doce e amenoAs sensações da sua ida<strong>de</strong> antiga,Naquela mesma velha noite amiga,Noite cristã, berço do Nazareno.Escolheu o soneto... A folha brancaPe<strong>de</strong>-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,A pena não aco<strong>de</strong> ao gesto seu.E, em vão lutando contra o metro adverso,Só lhe saiu este pequeno verso:“Mudaria o Natal ou mu<strong>de</strong>i eu?”. 37O homem-poeta teria mudado <strong>de</strong> repente? O prosador, enfim, matara opoético Machadinho <strong>de</strong> uma vez? Parece que o vate está sempre pronto a renascercom sua face docemente irônica dos seus versos, em contraste com a“boca gelada e sardônica” da ironia prosaica. Seria possível o poeta sobreviver,como a “fruta <strong>de</strong>ntro da casca”, face ao prosador? Para respon<strong>de</strong>r a essas ques-37 ASSIS. Obra Completa. Vol. III. Op. cit. p. 167.212


Machado <strong>de</strong> Assis: dulcíssimo poeta?tões será preciso, primeiramente, reconstruir a imagem <strong>de</strong> poeta que ficou atadaa um passado povoado <strong>de</strong> “produções medíocres”, segundo a opinião <strong>de</strong>certa crítica impiedosa.Talvez, mais do que uma simples análise do metro e do verso, o maior valorda poesia machadiana esteja no exercício exegético <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar o “subentendidona penumbra <strong>de</strong> uma mensagem”, <strong>de</strong>ixando-nos envolver por esta queixaabafada, presente em sua docilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> flor, tocando-a com mão consciente ecuriosa, como nos sugeriu o poema drummondiano que serviu <strong>de</strong> epígrafe aeste ensaio. Terminamos aqui como começamos, buscando, com os versos <strong>de</strong>um poeta, explicar o enigma <strong>de</strong> um outro: “A flor sofre, tocada/ por mão inconsciente./Há uma queixa abafada/ em sua docilida<strong>de</strong>.”213


Casa da Rua Cosme Velho, 18.


<strong>Prosa</strong>O coloquialismo <strong>de</strong>Machado <strong>de</strong> AssisJ. Mattoso Câmara Jr.Asua técnica <strong>de</strong> referências ao leitor é, com efeito, a conseqüência<strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> geral, que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>finir comoum contínuo esforço <strong>de</strong> aproximação da linguagem coloquial falada.O romancista sente-se escritor – é verda<strong>de</strong> – e sabe estar se dirigindoa leitores e não a pessoas que o cerquem para ouvir diretamente anarrativa da sua própria boca. Não obstante, procura aproveitar aomáximo, <strong>de</strong>ntro das condições da linguagem escrita, as possibilida<strong>de</strong>sque lhe ensanchariam a fala se ele fosse um contador da Ida<strong>de</strong>Média, quando “toda a literatura em língua vulgar se propagavamais pelo ouvido do que pela vista”. 1Po<strong>de</strong>mos dizer assim que há em Machado <strong>de</strong> Assis uma tal ouqual tendência a reduzir uma das antinomias mais nítidas da ativida<strong>de</strong>lingüística, qual é a que existe entre a linguagem oral e a linguagemescrita.J. MattosoCâmara Jr. eracarioca, nascidoa 13 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong>1904 e falecidoa 4 <strong>de</strong> fevereiro<strong>de</strong> 1970.Introdutor doestruturalismolingüístico noBrasil <strong>de</strong>ixou-nosnumerosaspublicações noscampos daLingüísticaGeral, da LínguaPortuguesa,Estilística, semcontar suasimportantescontribuiçõesaos estudos eLínguasIndígenas.1 PIDAL, Menen<strong>de</strong>z. Mis Páginas Preferidas, Temas Literários. Madrid: 1957. p. 30.215


J. Mattoso Câmara Jr.A literatura se integra naturalmente nesta última, como logo transparece doseu nome, <strong>de</strong>rivado do latim littera, isto é, “letra”. Apesar do reconhecimento<strong>de</strong> haver um objetivo <strong>de</strong> arte em muitas manifestações lingüísticas orais, nopassado e mesmo no presente oci<strong>de</strong>ntal através da ativida<strong>de</strong> folclórica (o que<strong>de</strong>terminou a expressão, contraditória em seus termos, “literatura oral”), aconceituação <strong>de</strong> literatura, em seu sentido usual, é <strong>de</strong> um corpus <strong>de</strong> textos. Até apoesia, que se fundamenta no ritmo da enunciação, é concebida comumentepelo prisma da linguagem escrita: enten<strong>de</strong>-se o verso como uma “linha” contínuano papel, e chega-se a consi<strong>de</strong>rar um verso único duas ou três frases métricasescritas em seguimento, como fez Olavo Bilac, que julgou ter criado umverso <strong>de</strong> catorze sílabas alinhando por esse processo três tetrassílabos. 2Ora, o enquadramento da obra literária na linguagem escrita acarreta umaconseqüência <strong>de</strong> vulto, resultante do caráter básico <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> linguagem emface da linguagem oral.A gran<strong>de</strong> diferença entre uma e outra não é a rigor o aspecto visual da primeirae o auditivo da segunda, como po<strong>de</strong>ria parecer numa apreciação perfunctória.Na verda<strong>de</strong> não há leitura rigidamente silenciosa, isto é, feita exclusivamentecom os olhos, e dá-se uma audição mental, que reintroduz na literaturaos sons através das letras e as pausas e o jogo tonal através da pontuação. Aeste respeito as duas linguagens acabam por encontrar-se. O que as distingue,porém, inapelavelmente, são as condições específicas em que se realizam. Alinguagem oral é um intercurso entre um falante e um ou mais ouvintes <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong>finida, numa sala, numa rua, num veículo e assim por diante.São esse ouvinte e essa situação, cujos conceitos tão bem souberam formularteoristas como Bally e Gardiner, 3 que <strong>de</strong>saparecem na linguagem escrita em2 No soneto “Cantilena” <strong>de</strong> A Tar<strong>de</strong>:“Quando as estrelas / morrem na tar<strong>de</strong> / morre a esperança” – Etc. (Poesias. Rio: 1922. p. 369).3 Cf. o que se diz em Princípios <strong>de</strong> Lingüística Geral. Rio: 1959. p. 106: “O que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a divisãointerpretativa num caso <strong>de</strong>stes” (fr. si je la prends ou si je l’apprends) “são dois fatores exteriores à frase ainterpretar: 1) o ambiente lingüístico on<strong>de</strong> ela se acha, que é o contexto; 2) o ambiente físico e socialon<strong>de</strong> ela é enunciada, que é a situação (...) O discurso escrito, que é um ersatz do genuíno discurso – ooral ou fala –, conserva o fator contexto, mas per<strong>de</strong> o fator situação (...)”.216


O coloquialismo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assisque se consubstancia a obra literária: o primeiro se difun<strong>de</strong> e oblitera num públicoledor vago, in<strong>de</strong>terminado e atípico; a segunda se esvai ao resolver-se emdois momentos disjuntos e heterogêneos, que são aquele em que o escritor lançouno papel os seus pensamentos, e esse outro, posterior, <strong>de</strong>scontínuo e díspar,em que cada leitor entra em contato com esses pensamentos.Em face <strong>de</strong>ssa divergência básica entre a linguagem oral e a escrita, a literatura<strong>de</strong> ficção, consubstanciada no romance mo<strong>de</strong>rno a partir dos fins doséculo passado, adotou uma solução radical – a obliteração do ouvinte –, ecompletou-a pela sua própria obliteração. Como já se frisou no ensaio anterior,a narrativa torna-se uma apresentação impessoal, que elimina o narradorcom os indivíduos ouvintes: “São uma seqüência <strong>de</strong> quadros objetivose concretos, expostos à vista da massa anônima que se digne <strong>de</strong> atentarneles.”Antes <strong>de</strong>ssa época, entretanto, a narrativa oscilava, um tanto incaracterística,com a intromissão do narrador em meio do relato e o seu freqüente apeloaos leitores, que ele procurava visualizar em imaginação. É uma atitu<strong>de</strong> queimporta em aceitar os liames da narrativa literária com a linguagem oral. E foia que preferiu Machado <strong>de</strong> Assis, estilizando-a no que bem se po<strong>de</strong> dizer umsistema coerente.Não se contenta, em verda<strong>de</strong>, com a apresentação <strong>de</strong> si próprio como narradore com a visualização dos leitores, através <strong>de</strong> referências e apóstrofes que osaproximam <strong>de</strong> ouvintes. Também procura muitas vezes recriar o elemento dasituação concreta, estabelecendo, discreta e esporadicamente embora, um quadroambiental para se dirigir a seus leitores.Assim, nas narrativas <strong>de</strong> estilo autobiográfico, o escritor procura focalizar omomento em que o personagem-autor escreveu o que nos conta. Em “O enfermeiro”é o momento preciso da elaboração do testamento e são-nos fornecidoscertos dados que reconstroem a situação:217


J. Mattoso Câmara Jr.“Olhe, eu podia contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisasinteressantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenhopapel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina da madrugada.Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida.A<strong>de</strong>us, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem (...)” (Var. 149).Da mesma sorte, em “Último capítulo” o suicida, ao nos contar sua história,ministra dados nítidos sobre o momento em que a escreveu:“(...) retiro-me <strong>de</strong>ixando não só um escrito, mas dois. O primeiro é o meu testamento,que acabo <strong>de</strong> compor e fechar, e está aqui em cima da mesa, ao péda pistola carregada.O segundo é este resumo <strong>de</strong> autobiografia” (Hist., 27).No Brás Cubas são analogamente expressivos os passos em que se evoca a situaçãodo narrador no além-túmulo a redigir a sua mensagem aos vivos:“(...) evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição<strong>de</strong>stas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo (Cub. X) – Começo a arrepen<strong>de</strong>r-me<strong>de</strong>ste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente,expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefaque distrai um pouco da eternida<strong>de</strong> (Cub., 195) – ‘Eu tive essa distinçãopsíquica; eu a agra<strong>de</strong>ço ainda agora do fundo do meu sepulcro’” (Cub., 321).É, entretanto, no Dom Casmurro que se revela mais nitidamente esta faceta dacomposição narrativa <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. O leitor é conduzido para aquelacasa do Engenho Novo que reproduz a velha mansão “na antiga Rua <strong>de</strong> Matacavalos”e “que <strong>de</strong>sapareceu” (Casm., 3). São-lhe <strong>de</strong>scritos os <strong>de</strong>talhes arquitetônicos,e, assim bem concretizado o ambiente, vemos através das páginas danarrativa Bento Santiago a compô-la pachorrentamente num monólogo contínuoem sua sala do Engenho Novo, como <strong>de</strong> quando em quando procura fazerlembrar ao leitor:218


O coloquialismo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis“Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas,é reprodução da minha antiga casa <strong>de</strong> Matacavalos” (Casm., 190)– “É claro que as reflexões que aí <strong>de</strong>ixo não foram feitas então, a caminhodo seminário, mas agora no gabinete do Engenho Novo” (Casm., 258)– “Já me suce<strong>de</strong>u, aqui no Engenho Novo (....)” (Casm., 204).A situação em que escreve o narrador ainda se torna mais vívida quando sabemosque está à sua mesa diante dos retratos <strong>de</strong> seus pais, cuja felicida<strong>de</strong> conjugalevoca num contraste antecipado e implícito com a sua própria <strong>de</strong>sventura:“Depois da morte <strong>de</strong>le, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos<strong>de</strong> ambos sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão” (Casm., 229).Haja vista ainda este trecho com a situação visualmente apresentada:“Sabes a opinião que eu tinha <strong>de</strong> minha mãe. Ainda agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> interromperesta linha para mirar-lhe o retrato que pen<strong>de</strong> da pare<strong>de</strong>, acho que trazia no rostoimpressa aquela qualida<strong>de</strong>” (Casm., 229).Desta sorte, reintroduzido o ouvinte na pessoa <strong>de</strong> um leitor a quem se fazcontínua referência e firmada a situação do momento da narrativa, o escritorrecobra os dois elementos precípuos que caracterizam um relato oral e cria abase para comprazer-se num coloquialismo estilístico. 4 Vêm então os pequenoscapítulos em que a narração alterna com reflexões ocasionais naquela maneira<strong>de</strong> contar <strong>de</strong>scosida e sem plano coerente e concatenado, que é própria dalinguagem da conversação:“Já agora conto também os a<strong>de</strong>uses do velho Pádua.” (Casm., 154) –“No seminário... Ah! não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso4 A comunicação entre o autor e os leitores, distanciados no tempo, faz então lembrar a <strong>de</strong> umaconversa telefônica ou da audição <strong>de</strong> um discurso pelo rádio, com o seu distanciamento no espaço.219


J. Mattoso Câmara Jr.um capítulo” (Casm., 159) – “Já agora meto a história em outro capítulo”(Casm., 171) – “Mas é tempo <strong>de</strong> tornar àquela tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> novembro, umatar<strong>de</strong> clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em quemorávamos (...) Agora é que eu ia começar a minha ópera. ‘A vida é umaópera’, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-meum dia a <strong>de</strong>finição, <strong>de</strong> tal maneira que me fez crer nela. Talvez valhaa pena dá-la; é só um capítulo” (Casm., 23) – Etc.E assim vai a narrativa <strong>de</strong> capítulo em capítulo; <strong>de</strong> um para outro sentimoscomo que uma pausa, em que Bento Santiago, assumindo a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sujeitofalante em frente a seus interlocutores, pára, mira <strong>de</strong> longe o leitor e recomeçao seu doloroso <strong>de</strong>sabafo.Parece que uma tal técnica só se compa<strong>de</strong>ce com uma narrativa <strong>de</strong> formaautobiográfica on<strong>de</strong> o protagonista figura na 1.ª pessoa do discurso, ou numanarrativa dada através <strong>de</strong> um diálogo fortuito na rua, como a <strong>de</strong> “O anel <strong>de</strong> Polícrates”(Pap., 193 ss.).É curioso, entretanto, ressaltar que mesmo num romance <strong>de</strong> 3.ª pessoa,como o Quincas Borba, Machado <strong>de</strong> Assis insiste não só nas referências ao leitormas também na fixação do momento do relato. A sua solução para introduzireste segundo dado foi a <strong>de</strong> fazer-se acompanhar <strong>de</strong> seus leitores e conduzi-loscomo um cicerone experimentado aos recessos da sua história:“Deixemos Rubião na sala <strong>de</strong> Botafogo, batendo com as borlas do chambre nosjoelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes,à cabeceira do Quincas Borba” (Borb., 4) – “Este Quincas Borba, se acasome fizeste o favor <strong>de</strong> ler as Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, é aquele mesmonáufrago da existência, que ali aparece, mendigo, her<strong>de</strong>iro inopinado e in-220


O coloquialismo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assisventor <strong>de</strong> uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena” (Borb. 5) – “Um irmão<strong>de</strong>la, que éo presente Rubião (...)” (Borb., 5).Muito significativa, neste particular, é a exposição do almoço que Rubiãoofereceu aos seus dois amigos Freitas e Carlos Maria. O leitor é levado pelo romancistapara a sala do palacete <strong>de</strong> Botafogo e assim <strong>de</strong> visu passa a acompanhara cena que o autor, como que complementarmente, o vai fazendo (digamossem ambages) ouvir:“Queres o avesso disso, leitor curioso? Vê este outro convidado para o almoço,Carlos Maria (...) Assim, não te custará nada vê-lo entrar na sala, lento, frio esuperior (...) Também po<strong>de</strong>s ver por ti mesmo que o nosso Rubião,” (atente-separa o possessivo no seu emprego tipicamente coloquial) “se gosta mais doFreitas, tem o outro em maior consi<strong>de</strong>ração” (Borb., 47-8).Posta neste clima, a narrativa assume insensivelmente o aspecto <strong>de</strong> um comentário<strong>de</strong> espectador, e é como tal que logo enten<strong>de</strong>mos, por exemplo, o seguintetrecho:“Agora, ao sentar-se à mesa, ao pegar no talher, ao abrir o guardanapo,em tudo se vê que ele está fazendo um insigne favor ao dono da casa –talvez dois –, o <strong>de</strong> lhe comer o almoço eo<strong>de</strong>lhenãochamar pascácio”(Borb., 48).É claro que o processo não se repete capítulo por capítulo, o que seria enfadonhoe até canhestro para o objetivo visado. Nem se compa<strong>de</strong>ceria com o estilo<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, que é todo tecido <strong>de</strong> subentendidos, sugestões e insinuaçõesrápidas e sutis. Mas não é menos claro que esses e outros trechos, espalhadoscuidadosamente pelo livro, nas ocasiões oportunas, são suficientespara imprimir-lhe um tom geral e impregná-lo do espírito que estamos procurandoaqui ressaltar.221


J. Mattoso Câmara Jr.Tal espírito é o <strong>de</strong> uma linguagem escrita que quer aproximar-se da fala eser antes <strong>de</strong> tudo coloquial.Firmemo-lo nitidamente como um dado interpretativo para muitos aspectosestilísticos da obra machadiana.Assim, por exemplo, a ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições, tão freqüentes na literaturanovelística da época.A exclusão da paisagem nos romances e contos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assissempre intrigou os seus críticos, e duas explicações foram aventadas a esterespeito.Uma partiu do preconceito que atribui ao escritor secura <strong>de</strong> alma e falta<strong>de</strong> predicados estéticos para po<strong>de</strong>r compreen<strong>de</strong>r e sentir a natureza, comofaziam então José <strong>de</strong> Alencar no Brasil e Eça <strong>de</strong> Queirós em Portugal. Esquece,porém, duas circunstâncias que a invalidam. A primeira, fundamental, éque esse modo <strong>de</strong> interpretar a alma machadiana é inteiramente gratuito;nela há a vibração <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro poeta, que se externa liricamente emmuitos versos, em outros se concentra na contemplação emocionada da vida,e, na própria prosa, se extravasa numa linguagem <strong>de</strong> dolorosos ressaibos, quenão são menos intensos por virem envolvidos na cápsula do humorismo.Acresce que na sua obra lírica não faltam passos <strong>de</strong>scritivos da mais franca ecolorida nota paisagística:Lá, como quando volta a primavera em flor,Tudo sorri <strong>de</strong> luz, tudo sorri <strong>de</strong> amor;Ao influxo celeste e doce da beleza,Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;Mais lânguida e mais bela, a tar<strong>de</strong> pensativaDesce do monte ao vale; e a viração lascivaVai <strong>de</strong>spertar à noite a melodia estranha222


O coloquialismo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> AssisQue falam entre si os olmos da montanha;A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;O mar tem novos sons e mais viva ar<strong>de</strong>ntia;A onda enamorada arfa e beija as areias,Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!(Poes., 46).E a profundida<strong>de</strong> da imersão no mundo das coisas naturais vai ao ponto, nestesmesmos “Versos a Corina”, <strong>de</strong> dar voz e expressão a forças telúricas, como asbrisas, a luz, as águas, as selvas (Poes., 39-41), irmanadas com o poeta:Também eu junto a voz à voz da natureza,E soltando o meu hino ar<strong>de</strong>nte e triunfal,Beijarei ajoelhado as plantas da belezaE banharei minh’alma em tua luz – I<strong>de</strong>al!Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoasTua alma <strong>de</strong> mulher <strong>de</strong>ve <strong>de</strong> palpitar;Mas que te não seduza o cântico das águas,Não procures, Corina, o caminho do mar.(Poes.; 41-42).A segunda explicação para a falta <strong>de</strong> apreciáveis trechos <strong>de</strong>scritivos na novelísticamachadiana é, sem dúvida, mais proce<strong>de</strong>nte e repousa num dado inegáveldo feitio do escritor: a sua absorvente preocupação com a análise mental dohomem, que havia forçosamente <strong>de</strong> levá-lo a pôr praticamente <strong>de</strong> lado a palhetapaisagística 5 . Ele próprio corrobora essa interpretação, quando no “Mundo5 “Inteiramente o absorvia a pesquisa <strong>de</strong> uma geometria moral, e os seus olhos <strong>de</strong> zaori, enxergandoem transparência, não sabiam <strong>de</strong>ter-se na sensibilida<strong>de</strong> das formas” (MEYER, Augusto. Preto e Branco.Rio, 1956; p. 28).223


J. Mattoso Câmara Jr.interior” contrapõe a paisagem externa à paisagem das almas, que forceja acima<strong>de</strong> tudo por retratar:Ouço que a natureza é uma lauda eternaDe pompa, <strong>de</strong> fulgor, <strong>de</strong> movimento e lida,Uma escala <strong>de</strong> luz, uma escala <strong>de</strong> vida.............................................................................E contudo, se fecho os olhos, e mergulhoDentro em mim, vejo à luz <strong>de</strong> outro sol, outro abismo,Em que um mundo mais vasto, armado <strong>de</strong> outro orgulho,Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,(Poes., 298).Raramente, entretanto, se po<strong>de</strong> circunscrever a uma causa única um traçocaracterístico <strong>de</strong> uma obra literária. E, aqui, a essa tendência íntima que propeliao romancista em dado sentido, há uma razão que po<strong>de</strong>mos chamar formal eestá justamente na feição coloquial da narrativa machadiana.Não nos esqueçamos <strong>de</strong> que a intrusão sistemática da <strong>de</strong>scrição no romance eno conto foi <strong>de</strong>finitivamente estabelecida pela escola naturalística francesa, precisamenteaquela que – como já vimos – criou o relato impessoalizado, em que onarrador se oculta, aceitando integralmente na linguagem escrita a supressão doselementos concretos (falante, ouvintes, situação) que condicionam o <strong>de</strong>senvolvimentodo intercurso falado. Foi essa atitu<strong>de</strong> que permitiu a elaboração da “prosaartística” <strong>de</strong> um Flaubert ou <strong>de</strong> um Goncourt, pois “prosa artística” significa, antes<strong>de</strong> tudo, prosa “artificial” (<strong>de</strong> “arte feita”), fora da execução natural e espontâneada linguagem da conversação. E foi ela ainda que também permitiu os longostrechos <strong>de</strong>scritivos em meio <strong>de</strong> uma narrativa. No relato oral a <strong>de</strong>scrição tem <strong>de</strong> sernecessariamente rápida, esquemática e apresentada en passant; aí não é possível essaposição <strong>de</strong> pintor paisagista, que se fixa <strong>de</strong>moradamente no ambiente <strong>de</strong> fundo eelimina por instantes os seus personagens para nele melhor se comprazer.Dir-se-á que o amor à natureza e à paisagem vem do Romantismo e queAlencar, por exemplo, não se po<strong>de</strong>ria argüir <strong>de</strong> um sequaz <strong>de</strong> Flaubert ou224


O coloquialismo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> AssisGoncourt. Atentemos, porém, que o Romantismo explorou a paisagem essencialmentena poesia (fora da linguagem da conversação) ou na prosa intencionalmentepoética <strong>de</strong> um Chateaubriand. José <strong>de</strong> Alencar encontrou o impulsopara a <strong>de</strong>scrição justamente na sedução que sobre ele exerceu a prosa poética(não menos que o indianismo) do autor <strong>de</strong> Os Mártires e Atala.Chegamos assim a um contraste curioso entre as duas primaciais figuras danovelística brasileira da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX: em Machado <strong>de</strong> Assisum coloquialismo intencional, em que o escritor conversa <strong>de</strong>spreocupadamentecom os seus leitores; em Alencar uma franca atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> elaboração escrita, <strong>de</strong>fazer arte com a pena, como o pintor com o pincel.À primeira vista po<strong>de</strong>-se alegar, em contraposição, que Alencar foi o <strong>de</strong>fensorda “linguagem brasileira”, da utilização, na língua literária, dos vulgarismosda nossa fala corrente; ao passo que Machado <strong>de</strong> Assis se abeberavanos clássicos e praticava um purismo meticuloso, embora inteligente ediscreto.A objeção, entretanto, em última análise não é proce<strong>de</strong>nte. Nada estava maisdistante <strong>de</strong> Alencar do que o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> Macedo Soares, recentemente renovadopela corrente filológica nativista, que a cada passo traz à baila o mesmo Alencar:“Já é tempo dos brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreveem Portugal”. 6 O gran<strong>de</strong> romancista o que na realida<strong>de</strong> pretendia era elaboraruma língua escrita literária na base da nossa fala corrente, da mesma sorteque o francês clássico, o italiano <strong>de</strong> Dante, o português <strong>de</strong> Camões se cristalizarampela lenta elaboração do romance vulgar. Deixa-o bem claro, quando nosdiz: “A linguagem literária, escolhida, limada e grave, não é por certo a linguagemcediça e comum que se fala diariamente e basta para a rápida permuta dasidéias: a primeira é uma arte, a segunda é simples mister”. 7 2256 SOARES, Macedo. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio: 1875-1888. p. 3.7 ALENCAR, José <strong>de</strong>. Diva. Nova edição revista por Mário <strong>de</strong> Alencar. Rio: Garnier. p. 195 (Poscrito).


J. Mattoso Câmara Jr.Por isso, O Guarani,aIracema, ou ainda O Gaúcho,aDiva e assim por diantesão prosa artística, firmemente plantada numa linguagem que quer ser línguaescrita, e não oral; os elementos lingüísticos vulgares entram aí como os motivosrítmicos folclóricos da Polônia na música <strong>de</strong> Chopin ou os costumes popularesnum quadro <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> Teniers. O nativismo lingüístico em nadaimpe<strong>de</strong> aproximarmos o estilo <strong>de</strong> Alencar do daqueles escritores que mais se<strong>de</strong>stacaram pelo distanciamento da linguagem coloquial, como em francêsFlaubert ou em inglês Meredith, <strong>de</strong> sorte que em espírito – embora não emexecução factual – O Guarani ou O Gaúcho não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter a sua afinida<strong>de</strong> estilísticacom Salambo ou Diana of Crossways.Já o objetivo <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis é a aproximação da linguagem falada, ocoloquialismo em suma, para que a narrativa escrita adquira a naturalida<strong>de</strong> e aespontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um relato oral. A sua atuação purista é no sentido <strong>de</strong> um enobrecimentoda língua da conversação, que ele sente no Brasil relaxada e amorfa.Em vez <strong>de</strong> amoldar-se a ela, como fez, por exemplo, Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida,que também usou o coloquialismo narrativo, ele quer apurá-la, torná-la nítidae expressiva, concorrer enfim para que se elabore no Brasil um volgare ilustre nosentido quatrocentista italiano. E assim conversa com os leitores, em seu próprionome ou pela boca <strong>de</strong> personagens que se autobiografam, numa linguagem que éum mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong> espontânea e elegante precisão.Com quem melhor po<strong>de</strong>mos associá-lo é com o velho Boccaccio, que tambémsoube no Decameron criar o ambiente concreto do momento da narração novetusto castelo dos arredores <strong>de</strong> Florença, on<strong>de</strong> se abrigara o pequeno grupo <strong>de</strong>cavaleiros e damas <strong>de</strong> cujas conversações nascem as encantadoras histórias. EmMachado <strong>de</strong> Assis houve, pelo menos, inconcussamente, o gran<strong>de</strong> predicado queVossler ressalta em Boccaccio: “O propósito <strong>de</strong> elevar o nível do narrador coloquial,(al. Unterhalten<strong>de</strong> Geschichter) por meio <strong>de</strong> uma conversação enobrecida, pormeio do tom, do estilo, do cuidado consciente da sua prosa”. 88 VOSSLER, Karl. Die Dichtungsformen <strong>de</strong>r Romanen. Ed. Póstuma <strong>de</strong> A. Bauer. Stuttgart: 1951. p. 310.226


<strong>Prosa</strong>Machado e Sôseki NotaChika TakedaO texto <strong>de</strong> Chika Takeda, que leremos a seguir é uma con<strong>de</strong>nsaçãodo seu trabalho realizado conjuntamente com o prof. Shoji Shibata,Machado e Sôseki – Afinida<strong>de</strong>s entre dois contemporâneos antípodas para efeito<strong>de</strong> publicação nesse número da RB, no ano em que se comemora ocentenário da morte <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e do início da imigraçãojaponesa para o Brasil.O trabalho <strong>de</strong> Takeda, que ora editamos, consiste na introduçãoe conclusão do referido estudo, cabendo à redação da RB realizar umbrevíssimo resumo <strong>de</strong> suas análises sobre o contexto sociopolítico epsicológico em que se moveram e se movem tanto os autores dos romancescomo os seus personagens.Machado <strong>de</strong> Assis e Natsume Sôseki viveram numa época em queos seus respectivos países saíam do isolamento para um processo <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnização e, conseqüentemente, <strong>de</strong> internacionalização, provocadopela vinda da Família Real para o Brasil e pela instauração doimpério <strong>de</strong> Meiji, conhecido como a Era <strong>de</strong> Meiji, no Japão.Professoraadjunta daTokyoUniversity ofForeign Studies(línguaportuguesa eliteraturabrasileira).Tradutora.227


Chika TakedaFazendo uma leitura alegórica dos romances da maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado, aautora parte <strong>de</strong> uma bibliografia bastante conhecida do leitor brasileiro, queinclui, por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> surgimento no texto, os livros <strong>de</strong> Roberto Schwarz,Antonio Carlos Secchin, John Gledson, Raimundo Magalhães Jr., Lúcia MiguelPereira, Eugênio Gomes, Augusto Meyer e Astrogildo Pereira, entre outros.Do mesmo modo, ela analisa os romances <strong>de</strong> Sôseki, tratando-os, comoos <strong>de</strong> Machado, do ponto <strong>de</strong> vista da alegoria, isto é, vendo suas narrativas“como mito <strong>de</strong> origem <strong>de</strong> uma nação”.No primeiro romance por ela analisado, Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, sualeitura baseia-se na idéia <strong>de</strong> que Brás Cubas é a representação do Brasil, que,nessa época, visava a construir-se como nação, partindo como mote, neste sentido,palavras do próprio personagem: “Éramos dous rapazes, o povo e eu.”Essa visão alegórica dos personagens machadianos esten<strong>de</strong>-se aos outros romances,como Bentinho e Capitu, em Dom Casmurro, Pedro e Paulo, filhos <strong>de</strong>Nativida<strong>de</strong>, em Esaú e Jacó, etc.Há, como foi dito, nesses trechos suprimidos por necessida<strong>de</strong> editorial,além do estudo sociopolítico, uma série <strong>de</strong> análises psicológicas especularesdos personagens <strong>de</strong> ambos os autores, como é o caso <strong>de</strong> Sofia, figura dramáticamachadiana <strong>de</strong> Quincas Borba. Discordando <strong>de</strong> Lúcia Miguel Pereira, que vianesta personagem a arte da ambigüida<strong>de</strong> por “se manter sempre à beira doadultério, sendo fiel ao marido”, exemplo <strong>de</strong> “traços admiráveis da psicologiafeminina”, Takeda a vê não ambiguamente, mas como uma “figura fria e racional”,“impelida menos por um sentimento superior do que pelos ‘cálculos<strong>de</strong> sensualida<strong>de</strong>’ ou os ‘ímpetos <strong>de</strong> concubina’”.Enfim, Takeda termina por <strong>de</strong>monstrar que, como Machado em relação aoBrasil, também Sôseki tinha uma visão crítica do processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização japonesaatravés dos seus personagens, além <strong>de</strong> outras tantas afinida<strong>de</strong>s reveladaspor ela a ponto <strong>de</strong> se referir a Sôseki como o “Machado do Japão” e a Machado,“o Sôseki do Brasil”.Resta-nos advertir ao leitor que as notas <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página <strong>de</strong>ssa edição nãocorrespon<strong>de</strong>m às do original do estudo <strong>de</strong> Takeda.228


Machado e Sôseki Afinida<strong>de</strong>s entre dois contemporâneosantípodasComo po<strong>de</strong>mos interpretar as afinida<strong>de</strong>s entre obras literárias <strong>de</strong> dois escritoresquando não há nenhuma sombra <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eles terem se conhecidopessoalmente nem lido as obras um do outro? A primeira coisa que vem àmente talvez seja a existência <strong>de</strong> alguma influência comum que receberam <strong>de</strong>outras obras literárias que ambos conheceriam. Mas será que não existem outraspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aproximação? Machado <strong>de</strong> Assis (1839-1908) e NatsumeSôseki (1867-1916) foram quase contemporâneos, mas <strong>de</strong> terras antípodas,e talvez nunca tenham tido contato direto. Isso é natural, pois as relaçõesentre o Japão e o Brasil naquela época eram um simples broto. Os dois paísesestabeleceram relações diplomáticas em 1895, com o Tratado <strong>de</strong> Amiza<strong>de</strong>,Comércio e Navegação e instalaram suas representações governamentais respectivamenteem cada se<strong>de</strong> em 1897. A ocorrência da primeira imigração aindaé posterior, somente em 1908. É difícil, portanto, imaginar que tenha existidoalgum contato entre os dois. Mas nota-se algo em comum nas suas obras,não obstante nenhuma obra <strong>de</strong>les tivesse sido traduzida para a língua do outro,nem para o inglês, que era a única língua comum entre eles. Então por que essasafinida<strong>de</strong>s?É <strong>de</strong>ssa pergunta que parti para um estudo comparativo entre Machado eSôseki. 1 Através <strong>de</strong>le, foi revelado que os dois se utilizam do mesmo procedimentoliterário, a alegoria, para <strong>de</strong>screver as respectivas socieda<strong>de</strong>s em queviviam. Muitos personagens dos romances <strong>de</strong> Sôseki representam o “Japãomo<strong>de</strong>rno” e o mesmo acontece com os <strong>de</strong> Machado, que atuam como representantesdo “Brasil mo<strong>de</strong>rno”. Conforme esclareceu Shibata, através <strong>de</strong>seus personagens, Sôseki expressou alegoricamente as relações diplomáticas1 O estudo é uma pesquisa em co-autoria com Shoji Shibata, professor especialista em literaturamo<strong>de</strong>rna japonesa, realizada com o Subsídio para Pesquisa Científica do Ministério da Educação doJapão. Os resultados são apresentados no Relatório <strong>de</strong> Pesquisa: Machado <strong>de</strong> Assis e Natsume Sôseki –A consciência comum em relação à mo<strong>de</strong>rnização entre dois contemporâneos antípodas (2003-2006, Categoria (C)(2),N. o 15520158.Tóquio, 2007).229


Chika Takedaque o Japão manteve com a Coréia naquela época nos seus quatro romances(Então [Sorekara, 1909], Portão [Mon, 1910], Kojin [1912], Coração [Kokoro,1914]). 2 Procedimento idêntico po<strong>de</strong> ser notado nos romances <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis. Por exemplo, Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, que geralmente é lidocomo um romance que <strong>de</strong>screve comunida<strong>de</strong>s humanas violentas regidaspela lei do mais forte, ganhará outra dimensão, se consi<strong>de</strong>rarmos o protagonistacomo representante do Brasil – e também dos outros países latino-americanos,<strong>de</strong>svairados por um monstro chamado imperialismo. O imperialismodo século XIX, que nasceu no Oci<strong>de</strong>nte com a guerra napoleônica, seespalhou pelo mundo inteiro, engolindo várias regiões que até então não tinhamsido incorporadas pela re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comércio internacional. Possuía forte capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> contaminação: o não-Oci<strong>de</strong>nte, uma vez atingido por ele, paranão ser sua vítima, não tinha outro remédio senão interiorizá-lo e adotar as mesmaspráticas <strong>de</strong> dominação <strong>de</strong> outras regiões. Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas espelhaessa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> barbarida<strong>de</strong> que se alastrou pelo globo. O episódio <strong>de</strong> Prudêncio,que adquiriu um escravo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> liberto e o espancou como se quisessese <strong>de</strong>sfazer das pancadas recebidas, transmitindo-lhas, resume bem esse ato.Assim, os dois <strong>de</strong>screveram nas suas obras situações históricas semelhantes <strong>de</strong>seus países naquela época, particularmente no sentido internacional. E o ato,para quem tinha razão, era imperdoável. Machado e Sôseki o teriam feito movidospor forte espírito crítico. O mesmo tipo <strong>de</strong> leitura po<strong>de</strong> ser aplicado aosoutros quatro romances da segunda fase <strong>de</strong> Machado. 32 Estes estudos se encontram em SHIBATA, Shoji. “O império” <strong>de</strong> Sôseki. Tóquio: Kanrin-shobo, 2006.3 As análises dos romances machadianos constam nos seguintes artigos: “Um estudo sobre Sofia, <strong>de</strong>Quincas Borba” (Area and Cultural Studies 65, Tóquio: Tokyo University of Foreign Studies, 2003); “Aprofecia <strong>de</strong> Ezequiel, Dom Casmurro como romance alegórico” (Trans-cultural Studies, v. 7. TokyoUniversity of Foreign Studies, 2004); “Machado <strong>de</strong> Assis e a Guerra do Paraguai” (Tóquio: Area andCultural Studies 69, Tóquio: Tokyo University of Foreign Studies, 2004); “Um antimito <strong>de</strong>dicado àmo<strong>de</strong>rna nação brasileira – uma tentativa <strong>de</strong> leitura alegórica <strong>de</strong> Esaú e Jacó (Area and Cultural Studies 70,Tóquio: Tokyo University of Foreign Studies, 2005). “Elegia melancólica – Um estudo sobre aleitura alegórica <strong>de</strong> Memorial <strong>de</strong> Aires” (Area and Cultural Studies 72, Tóquio: Tokyo University of ForeignStudies, 2006). Todos foram escritos em língua japonesa.230


Machado e SôsekiDevido à expansão do Oci<strong>de</strong>nte, os países não-oci<strong>de</strong>ntais foram forçados ase inserir na comunida<strong>de</strong> internacional e, com isso, tiveram que se apressar emse mo<strong>de</strong>rnizar. A mo<strong>de</strong>rnização e a civilização se tornaram condição sine quanon para países periféricos como o Japão e o Brasil. Ambos acabavam <strong>de</strong> realizaruma abertura repentina para a comunida<strong>de</strong> internacional <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> centenas<strong>de</strong> anos <strong>de</strong> isolamento e não estavam preparados para aceitar as novas tendências,como a difusão do liberalismo, a industrialização, a penetração do capitalismo,etc. A perturbação diante <strong>de</strong>sses fenômenos está presente nos personagensdos dois escritores. Sôseki chamou essa mudança drástica à qual os doispaíses se submeteram <strong>de</strong> “progresso superficial, oco (Hiso uwasuberi no kaika)”.Ele temia que isso causasse um <strong>de</strong>sequilíbrio e uma sensação <strong>de</strong> vazio entre opovo. Em se tratando do japonês, ele disse o seguinte:“O japonês tenta realizar em <strong>de</strong>z anos o progresso que o Oci<strong>de</strong>nte levou100 anos para realizar, e, além do mais, como que para se libertar do remorso,tenta realizá-lo <strong>de</strong> maneira que qualquer pessoa ache que o fez espontaneamente.Naturalmente, isso provoca um resultado alarmante.” 4E Daisuke, protagonista <strong>de</strong> Então, testemunha:“[O Japão] tenta à força ser membro do grupo dos países <strong>de</strong> primeira classe.Por isso, teve <strong>de</strong> se expandir para todas as direções, poupando a profundida<strong>de</strong>,e acabou se munindo só <strong>de</strong> uma porta <strong>de</strong> primeira qualida<strong>de</strong>. (...) Umpovo como o nosso, que sofre as pressões do Oci<strong>de</strong>nte, não tem paz <strong>de</strong> espírito,portanto, (...) acaba por sofrer <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão nervosa”. 5Esse receio <strong>de</strong> Daisuke vira realida<strong>de</strong> no caso do protagonista <strong>de</strong> Kojin, Ichirô.Mas isto não é o mesmo que aconteceu com Rubião, <strong>de</strong> Quincas Borba, quepossivelmente representa o Brasil imperial? Ichirô teve que assumir todas as4 SÔSEKI, Natsume. Meu Individualismo. Tóquio: Kodansha-bunko, 1989, p. 63.5 SÔSEKI, Natsume. Tóquio: Iwanami-bunko, 1989, pp. 91-92.231


Chika Takedadistorções causadas pelo rápido e forçado progresso e por isso sofreu uma séria<strong>de</strong>pressão nervosa, o que parece ter parentesco com a loucura <strong>de</strong> Rubião.Em conseqüência do “progresso superficial, oco”, a nação em si tambémnão podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um Estado oco e imaturo. Essa imagem está bem resumidano título Botchan (que significa um menininho, inexperiente, muitas vezescriado com mimo) do romance <strong>de</strong> Sôseki, 6 e também no apelido do protagonista<strong>de</strong> Dom Casmurro, Bentinho. O curioso é que os dois escritores usam metáforasemelhante para exprimir a superficialida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>cada país. Em Portão, quando Sôsuke consultou um <strong>de</strong>ntista, foi diagnosticadauma gangrena muito séria, incurável e que estava “completamente podre por<strong>de</strong>ntro” apesar <strong>de</strong> não se perceber <strong>de</strong> fora. Isso logo lembra a leitores <strong>de</strong> Machadoo famoso episódio da tabuleta <strong>de</strong> Custódio em Esaú e Jacó, no qual elequeria mandar pintar a tabuleta, mas ela, apesar da aparência normal, estavatão estragada por <strong>de</strong>ntro que não agüentava a tinta. Ambos os episódios tratam<strong>de</strong> objetos simbólicos (Sôsuke = o Japão <strong>de</strong> Meiji; a tabuleta = o Império)que parecem sãos por fora, mas se encontram arruinados por <strong>de</strong>ntro. Paraos dois, das duas nações só se salvavam as aparências.Como se vê, Machado e Sôseki possuem várias afinida<strong>de</strong>s, apesar da ausência<strong>de</strong> qualquer contato entre eles, da gran<strong>de</strong> diferença entre as duas culturasem que viviam e da gran<strong>de</strong> distância geográfica. O processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnizaçãotomou várias formas, e nesta pesquisa foi focalizada especificamente a expansãoimperialista. Mas também há outros aspectos que os dois trataram comumentenas suas obras, como a penetração do capitalismo, a forte crença no cientificismocomo evolucionismo, etc. Por que surgiram esses dois escritores comobras assemelhadas em dois pólos do globo? A resposta não po<strong>de</strong> ser melhorachada em outro lugar senão na época e nas circunstâncias internacionais emque os dois países se colocavam. O século XIX foi o tempo em que as potênciasoci<strong>de</strong>ntais expandiram sua influência conforme o princípio imperialista,envolvendo conseqüentemente, e <strong>de</strong> maneira direta, os países que até então6 SHIBATA, Shoji. “Sôseki, ultrapassador da fronteira – Japão Mo<strong>de</strong>rno “, in: Trans-cultural Studies,v. 7. Tóquio, Tokyo University of Foreign Studies, 2004, p. 94.232


Machado e Sôsekiviviam isolados ou quase isolados do sistema internacional. Esses países, semquerer e inconscientemente, foram pressionados a se mo<strong>de</strong>rnizar, isto é, a seoci<strong>de</strong>ntalizar, e todos eles, como se competissem uns com os outros, se apressarampor aceitar os costumes e valores oci<strong>de</strong>ntais. Isto naturalmente causouchoques profundos com as antigas tradições. E, além do mais, como Sôsekiapontou agudamente, causou sérias distorções no povo e na socieda<strong>de</strong>, porquese tentou realizar em poucos anos o que os oci<strong>de</strong>ntais levaram mais <strong>de</strong> 100anos para atingir. A introdução do conhecimento oci<strong>de</strong>ntal impregnou todoscom a crença no “progresso”, o que exauriu o povo e a nação em si. O pior foique, mesmo consciente <strong>de</strong>sses prejuízos, uma vez envolvido nesta re<strong>de</strong>, não eramais permitido a um país permanecer isolado. O resultado é se oci<strong>de</strong>ntalizar,seguir cegamente os padrões oci<strong>de</strong>ntais e, para se prevenir contra os ataquesdos outros, sair para o ataque: similia similibus curantur.Assim pensando, é natural que as obras <strong>de</strong> Machado e Sôseki, que tentaram<strong>de</strong>screver o povo e a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada país, tivessem afinida<strong>de</strong>s. É lógico e éalgo inevitável, pois o fundo histórico semelhante e as situações geopolíticasdo Brasil e do Japão aproximaram estes autores. 7 Os dois nasceram numa época<strong>de</strong> transição: Machado nasceu nas vésperas do Segundo Império, viveu naplena mudança; Sôseki nasceu nas vésperas da Restauração <strong>de</strong> Meiji e tambémviveu no intenso período <strong>de</strong> transição da pré-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> para a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>(inclusive da era <strong>de</strong> Meiji para a era <strong>de</strong> Taisho), ambos nas cida<strong>de</strong>s capitais:Rio <strong>de</strong> janeiro e Tóquio. Os dois conseguiram captar o que captaram porqueatravessaram todo esse processo con<strong>de</strong>nsado, ao passo que os escritores quenasceram <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les, quando a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> já estava bem arraigada na socieda<strong>de</strong>e se tornava algo normal, já não tinham condições <strong>de</strong> possuir essa antenasensível.E é digna <strong>de</strong> ser ressaltada uma outra aproximação. Desta vez, não <strong>de</strong> obras,mas da presença atual <strong>de</strong>les. Os dois são consi<strong>de</strong>rados entre os maiores escritores7 Além <strong>de</strong>sse motivo, é possível que os dois tenham sofrido influência da literatura inglesa, poisambos estavam bem familiarizados com ela. Mas a análise a respeito das afinida<strong>de</strong>s propriamenteliterárias ainda está por ser feita. Nesta pesquisa, focalizei mais o aspecto sociopolítico.233


Chika Takedamo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> cada país e, ao mesmo tempo, são cada vez mais reconhecidos.Penso que isto também tem um motivo. Os prejuízos da mo<strong>de</strong>rnização que osdois perceberam agudamente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um século, estão se tornando fatais.Cada vez mais, percebemos os limites da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Por isso é que nós, à procura<strong>de</strong> uma solução, vamos apelar para esses escritores que perceberam e analisarambem os danos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> com os quais nós temos <strong>de</strong> conviver.Kojin Karatani diz que encontrou um estudante da literatura japonesa, oriundoda Bulgária, que disse enten<strong>de</strong>r muito bem o problema da origem da literaturamo<strong>de</strong>rna do Japão, pois isso também é o que se passou em seu país. E aponta apossibilida<strong>de</strong> da presença <strong>de</strong> outro Sôseki em qualquer lugar do mundo. 8 Istomostra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudos comparativos da literatura mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> váriospaíses que se colocavam em condições sociopolíticas similares. Ao mesmo tempoem que o mundo se tornou uno, integrado, com o intenso <strong>de</strong>senvolvimentoda re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, a globalização da literaturatambém se intensificou. Creio que Machado é um <strong>de</strong>sses Sôsekis quepo<strong>de</strong>riam ser encontrados fora do Japão, e vice-versa: Sôseki também é um <strong>de</strong>ssesMachados que po<strong>de</strong>riam ser encontrados fora do Brasil.8 Sôseki Kenkyu (Estudos <strong>de</strong> Sôseki) 1993 (n. 1), Tóquio: Kanrin-shobo, 1993, p. 34.234


<strong>Prosa</strong>Um retalho <strong>de</strong>impalpável Algumas consi<strong>de</strong>rações sobrea narrativa <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> AssisLuciano RosaAsingularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis é facilmente reconhecidaquando sua obra é cotejada com a <strong>de</strong> seus contemporâneos– os que “mamaram o leite romântico” e os que “meteram o<strong>de</strong>nte no rosbife naturalista”. 1 Um dos traços que marcam essa diferençaé o ajuste que Machado opera no enfoque narrativo: emtrajetória oposta à da narrativa convencional, sua ficção relativiza aimportância atribuída à história contada para privilegiar outros aspectos,que se insinuam por entre os eventos da trama. Atenta aesse movimento, Marlene <strong>de</strong> Castro Correia aponta em Machado<strong>de</strong> Assis a “minimização do enredo [...] frente à hipertrofia da in-Mestre emLiteratura<strong>Brasileira</strong> pelaUFRJ.Organizou eprefaciou osMelhores Contos <strong>de</strong>Aurélio Buarque <strong>de</strong>Holanda (2007) eo volume Anos40 (no prelo), dacoleção Roteiro daPoesia <strong>Brasileira</strong>,ambos da GlobalEditora.1 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Crônica n. o 36 (25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1892). In: A Semana (org.John Gledson). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 170.235


Luciano Rosatriga do romance tradicional”, 2 enquanto Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ao observar“que há contos <strong>de</strong>le movidos com tão pouca substância”, o qualifica comoum “<strong>de</strong>sprezador <strong>de</strong> assuntos”. 3Decerto sua originalida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve a tantos outros fatores, mas aqui nossaatenção se voltará especificamente para o modo como se configura essa narrativa“feita <strong>de</strong> retalhos, um retalho <strong>de</strong> impalpável, outro <strong>de</strong> improvável, outro<strong>de</strong> invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação”. 4Fabulação rarefeita que, no entanto, manifesta um discurso <strong>de</strong>nso e sofisticado,repleto <strong>de</strong> referências e significações. Para investigá-la, circunscrevemosnossa análise a “Suje-se gordo!”, breve conto coligido em Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha(1906), o qual, cremos, constitui interessante microcosmo na obra <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis, já que nele ressaltam facetas expressivas e procedimentos recorrentesem sua criação ficcional.O conto erige-se a partir do relato <strong>de</strong> um personagem-narrador não nomeadoque, em conversa com outro personagem (cujo nome também não éreferido) durante o intervalo <strong>de</strong> uma peça teatral, lembra dois casos sucedidosem épocas distintas, quando servira ao tribunal do júri. Além da presençado narrador, os episódios têm em comum a participação <strong>de</strong> Lopes, figuracentral da trama.O diálogo no teatro se inicia com a narração do julgamento <strong>de</strong> “um moçolimpo, acusado <strong>de</strong> haver furtado certa quantia, não gran<strong>de</strong>, antes pequena, comfalsificação <strong>de</strong> um papel”. 5 Um dos jurados, Lopes, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seu voto pelacon<strong>de</strong>nação do réu, mostra-se indignado, não pela prática do crime em si, maspelo fato <strong>de</strong> o <strong>de</strong>lito ter sido motivado “por uma miséria, duzentos mil-réis!”. 62 CORREIA, Marlene <strong>de</strong> Castro. A ficção <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis sob o signo da contemporaneida<strong>de</strong>.In: Estudos <strong>de</strong> Literatura <strong>Brasileira</strong> – Número Especial n. o 4. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> da UFRJ,1994. p. 89.3 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Machado <strong>de</strong> Assis. In: Aspectos da Literatura <strong>Brasileira</strong>. São Paulo: Martins;Brasília: INL, 1972. p. 106.4 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 1997. pp. 28-29.5 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Suje-se gordo! In: Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier, 1990. p. 69.6 I<strong>de</strong>m, p. 70.236


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelLopes arremata a argumentação inflamada em favor da cominação da penacom a seguinte máxima: “Quer sujar-se? Suje-se gordo!”. 7 A elocução impressionao narrador: “Confesso-lhe que fiquei <strong>de</strong> boca aberta, não que enten<strong>de</strong>ssea frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmoque fiquei <strong>de</strong> boca aberta”. 8O colóquio prossegue, e na seqüência o narrador lembra outro julgamento,ocorrido tempos <strong>de</strong>pois, do qual participara investido novamentena condição <strong>de</strong> jurado. Os autos versavam sobre vultosa quantia – 110contos <strong>de</strong> réis – <strong>de</strong>sviada do Banco do Trabalho Honrado. O réu <strong>de</strong>ssa vezera o Lopes, que fora jurado no outro processo e pregara entusiasticamentecontra o acusado.O conto se organiza em torno <strong>de</strong>sses dois episódios, cuja função étão-somente pôr à mostra o contraste que efetivamente se estabelecerá comocentro da narrativa. Do relato dos julgamentos <strong>de</strong>sdobram-se os elementos<strong>de</strong> que o narrador se valerá na construção alegórica <strong>de</strong> sua reflexão. Em “Suje-segordo!” reafirma-se a estratégia clássica <strong>de</strong> Machado, qual seja, “sob aneutralida<strong>de</strong> das suas histórias ‘que todos podiam ler’” 9 , tocar em pontosnodais da natureza humana <strong>de</strong> modo aparentemente <strong>de</strong>spretensioso, quaseinci<strong>de</strong>ntal. Sobre a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conjugar o superficial e o profundo, AntonioCandido assinala:“A sua técnica consiste em sugerir as coisas mais tremendas da maneiramais cândida (como os ironistas do século XVIII); ou em estabelecer umcontraste entre a normalida<strong>de</strong> social dos fatos e a sua anormalida<strong>de</strong> essencial;ou em sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional énormal e anormal seria o ato corriqueiro.” 10 2377 Ibi<strong>de</strong>m.8 I<strong>de</strong>m, pp. 70-71.9 CANDIDO, Antonio. Esquema <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cida<strong>de</strong>s,1970. p. 17.10 I<strong>de</strong>m, p. 23.


Luciano RosaNa “Advertência” <strong>de</strong> Ressurreição (1872), seu primeiro romance, Machado<strong>de</strong> Assis escreve: “Não quis fazer romance <strong>de</strong> costumes; tentei o esboço <strong>de</strong>uma situação e o contraste <strong>de</strong> dois caracteres; com esses simples elementosbusquei o interesse do livro.” A intenção veiculada nessa passagem ecoa emboa parte da ficção machadiana, que, partindo <strong>de</strong> “esboços <strong>de</strong> situação”, ocupa-sedo “contraste <strong>de</strong> caracteres”. Em “Suje-se gordo!” não é diferente: há obosquejo <strong>de</strong> acontecimentos narrativos (a conversa no teatro, o caso dos julgamentos)dos quais irrompe justamente o contraste – elemento-chave que justificaa narrativa e lhe garante o interesse. Verda<strong>de</strong>s cambiantes“Quantos olhos, tantas vistas”. 11 A frase colhida numa crônica <strong>de</strong> Machadopublicada na Gazeta <strong>de</strong> Notícias resume significativamente um dos alicerces <strong>de</strong>sua ficção: a consciência <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>preensão efetiva do real dá-se <strong>de</strong> forma peculiarem cada ponto <strong>de</strong> vista que o capta. Deste modo, não há como postularuma versão única da realida<strong>de</strong>, pois que ela se atualiza e se manifesta singularmenteem cada indivíduo que a experiencia. Essa compreensão faz da narrativamachadiana terreno fecundo para a relativização dos conceitos unívocos <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>e verda<strong>de</strong>.A recusa ao dogmatismo <strong>de</strong> tais categorias se infiltra em “Suje-se gordo!”por meio <strong>de</strong> diversos procedimentos narrativos, como a opção <strong>de</strong> fundar atrama em situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas judiciais. Num julgamento, há duas partesoponentes – acusação e <strong>de</strong>fesa – disputando a prevalência <strong>de</strong> seusargumentos. No conto, promotores e <strong>de</strong>fensores apresentam ao Conselhodo Júri versões contrapostas sobre <strong>de</strong>terminados atos <strong>de</strong>lituosos, <strong>de</strong> modo aconvencê-lo da culpa ou inocência dos acusados. Os jurados, então, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>mo <strong>de</strong>stino dos réus, e o fazem baseados em impressões suscitadas pelo arrazaoado<strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra parte. Os que advogam contrária ou favoravelmente aos11 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Crônica n. o 64 (9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1893). In: A Semana (org. John Gledson). SãoPaulo: Hucitec, 1995. p. 263.238


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelacusados, por sua vez, não vivenciaram ou testemunharam os fatos e, <strong>de</strong>ssaforma, as versões trazidas à baila não são mais do que simulacros da realida<strong>de</strong>.Em última análise, a sorte dos acusados será <strong>de</strong>cidida por impressões queoscilam entre interpretações simuladas do real, proclamadas <strong>de</strong> acordo coma conveniência <strong>de</strong> quem as formula. Nesse passo, José Guilherme Merquiori<strong>de</strong>ntifica na ficção <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis “o reino arbitrário da opinião”, noqual “‘verda<strong>de</strong>’ e ‘moralida<strong>de</strong>’ são simples produto da opinião, motivada pelosapetites e interesses”. 12Assim, a narrativa põe em xeque a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensão do real comofenômeno estável, sujeito aos ditames inflexíveis da Verda<strong>de</strong> una e inconteste.No conto, é flagrante a incidência <strong>de</strong> vários pontos <strong>de</strong> vista sobre um mesmoaspecto da realida<strong>de</strong> objetiva. Logo no início o narrador, ao comentar o discursoque o réu do primeiro julgamento proferira em sua <strong>de</strong>fesa, <strong>de</strong>staca o fato<strong>de</strong> a postura do acusado ensejar diferentes interpretações do promotor públicoe do <strong>de</strong>fensor:“[O acusado] Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos,com tal pali<strong>de</strong>z que metia pena; o promotor público achou nessa mesmacor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o <strong>de</strong>fensor mostrou queo abatimento e a pali<strong>de</strong>z significavam a lástima da inocência caluniada.” 13Também o comportamento do réu Lopes provocou avaliações díspares:“Todos esses gestos do homem [Lopes] serviram à acusação e à <strong>de</strong>fesa, talcomo serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotorachou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocênciae a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz <strong>de</strong> espírito.” 1412 MERQUIOR, José Guilherme. Machado <strong>de</strong> Assis e a prosa impressionista. In: De Anchieta a Eucli<strong>de</strong>s:Breve História da Literatura <strong>Brasileira</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1996. p. 223.13 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Suje-se gordo! In: Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier, 1990. p. 69.14 I<strong>de</strong>m, p. 72.239


Luciano RosaNota-se que a um mesmo fato po<strong>de</strong>m-se atribuir intenções e significadosdistintos. Impossível, pois, <strong>de</strong>terminar qual percepção se valida em <strong>de</strong>trimentoda pretensa ilegitimida<strong>de</strong> da outra. Mais à frente, já no segundo julgamento, onarrador afirma: “Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente,tão certo me pareceu o <strong>de</strong>svio dos cento e <strong>de</strong>z contos. [...] Mas parece quenem todos leram com os mesmos olhos que eu”. 15 Seu voto foi pela con<strong>de</strong>naçãoporque lhe parecera certa a gatunagem. Nem todos, porém, partilharam damesma impressão, já que o réu foi absolvido. Assim elaborada, a narrativa levaao extremo o questionamento sobre o caráter monolítico do real, do mesmomodo que esboroa a suposta existência <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> absoluta. A verda<strong>de</strong> –ao cabo travestida da versão hegemônica que se estabelece como tal – se subordinaaos interesses e conveniências dos que a professam, bem como à formaparticular <strong>de</strong> apreensão dos que com ela se confrontam. O <strong>de</strong>sdobramento<strong>de</strong>sta postura narrativa será a inconsistência <strong>de</strong> qualquer discurso que se autoproclameportador exclusivo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> ou verda<strong>de</strong> preconcebida.Aprofundando a questão, a trama <strong>de</strong> “Suje-se gordo!” promove uma interpenetraçãoentre os planos jurídico-processual e teatral. O conto tem início numteatro, on<strong>de</strong> o narrador e seu interlocutor assistem a uma peça em cujo intervaloserão contados os episódios dos julgamentos. Ao eleger como cenário um tribunalcircunscrito a um teatro, a narrativa evi<strong>de</strong>ncia os aspectos cênicos <strong>de</strong> um julgamento.O título da peça – A Sentença ou o Tribunal do Júri – prenuncia o movimento<strong>de</strong> aproximação que será levado a efeito. A concentricida<strong>de</strong> entre tribunale teatro a<strong>de</strong>nsa a discussão sobre o real, uma vez que legitima a superposição darealida<strong>de</strong> ficta do palco, que prescin<strong>de</strong> do lastro da verda<strong>de</strong>, aos domínios dajustiça. A associação entre fórum e proscênio se materializa no comentário donarrador sobre o <strong>de</strong>bate entre acusação e <strong>de</strong>fesa no primeiro julgamento:“Poucas vezes terei assistido a <strong>de</strong>bate tão brilhante. O discurso do promotorfoi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não15 I<strong>de</strong>m, p. 73.240


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelera. A <strong>de</strong>fesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância <strong>de</strong> ser a estréia<strong>de</strong>le na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discursodo rapaz, e não per<strong>de</strong>ram na espera. O discurso foi admirável [...]” 16Chamam a atenção as feições <strong>de</strong> espetáculo que a fala do narrador imprimeà contenda. O promotor mostra refinada técnica dramática ao usar em suaprolação “um tom que parecia ódio, e não era”. O advogado <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, moçotalentoso, estreava na tribuna diante do júri e da platéia <strong>de</strong> parentes, colegas eamigos, que aguardavam ansiosamente sua entrada, como se, ao final da atuação,fossem saudá-lo com uma salva <strong>de</strong> palmas. Palco e tribuna confun<strong>de</strong>m-sena encenação <strong>de</strong> uma disputa <strong>de</strong> interesses, na qual o <strong>de</strong>sempenho dos atores/oponentesé avaliado pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convencer os espectadores do camarote– os jurados. São melhores os atores que fazem valer sua versão dos fatos,sem que ela seja, necessariamente, verda<strong>de</strong>ira.A analogia entre o aparato judiciário e o teatral serve com justeza ao propósitodo ficcionista. Interessante também é vê-la surgir em meio às sagazes observaçõesdo cronista Machado <strong>de</strong> Assis, incrustada nos comentários cheios <strong>de</strong>ironia sobre os acontecimentos da semana. A crônica <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong>1893, publicada na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, traz o seguinte fragmento:“Posto que inútil, pela ausência <strong>de</strong> crimes, o júri é ainda uma excelenteinstituição. Em primeiro lugar, o sacrifício que fazem todos os meses algunscidadãos em <strong>de</strong>ixarem os seus ofícios e negócios para fingirem <strong>de</strong> réus é jáum gran<strong>de</strong> exemplo <strong>de</strong> civismo. O mesmo direi dos jurados. Em segundolugar, o torneio <strong>de</strong> palavras a que dá lugar entre advogados constitui umaboa escola <strong>de</strong> eloqüência. Os jurados apren<strong>de</strong>m a respon<strong>de</strong>r aos quesitos,para o caso <strong>de</strong> aparecer algum crime. Às vezes, como suce<strong>de</strong>u há dias, enganam-senas respostas, e mandam um réu para as galés, em vez <strong>de</strong> o <strong>de</strong>volveremà família; mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é benefício,16 I<strong>de</strong>m, p. 70.241


Luciano Rosapara tirar aos homens alguma pontinha <strong>de</strong> orgulho <strong>de</strong> sapiência que porventuralhes haja ficado. 17Também aqui o tribunal é tratado como um tipo <strong>de</strong> palco, on<strong>de</strong> alguns cidadãos,à maneira <strong>de</strong> intérpretes, fingem-se <strong>de</strong> réus e jurados. O torneio <strong>de</strong> palavrasentre advogados – “uma boa escola <strong>de</strong> eloqüência” – faz as vezes <strong>de</strong> umtexto <strong>de</strong> dramaturgia; os jurados, por seu turno, <strong>de</strong>vem apren<strong>de</strong>r a respon<strong>de</strong>raos quesitos formulados pelo juiz como os atores <strong>de</strong>coram os diálogos que serãotravados com os companheiros <strong>de</strong> cena. Na seqüência, a ironia do cronistairrompe da dissidência entre representação e realida<strong>de</strong>: se os jurados se enganame “mandam um réu para as galés, em vez <strong>de</strong> o <strong>de</strong>volverem à família”, nãohá implicações ou remorso para quem con<strong>de</strong>na, já que, para os que comandamo espetáculo, tudo não passa <strong>de</strong> “simples ensaios”.Po<strong>de</strong>mos avançar e investigar como a arquitetura ambígua da narrativa sereafirma na construção do personagem central do conto. O protagonista Lopessurge em duas circunstâncias <strong>de</strong>sempenhando papéis supostamente antagônicos,ora acusador, ora acusado. Num primeiro momento, ao apresentá-locomo membro do Conselho do Júri – colegiado que, em tese, exige integrida<strong>de</strong>incontestável <strong>de</strong> seus componentes –, a narrativa autoriza a suposição <strong>de</strong> Lopestratar-se <strong>de</strong> homem probo, cuja lisura e retidão <strong>de</strong> caráter asseguram-lheassento no corpo <strong>de</strong> jurados. Entretanto, essa expectativa é frustrada em seguidapelo discurso que põe a <strong>de</strong>scoberto a ambivalência do personagem:“O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo réu nega, maso certo é que ele cometeu a falsida<strong>de</strong>, e que falsida<strong>de</strong>! Tudo por uma miséria,duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!” 1817 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Crônica n. o 45 (26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1893). In: A Semana (org. John Gledson).São Paulo: Hucitec, 1995. pp. 203-4.18 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Suje-se gordo! In: Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier, 1990. p. 70.242


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelA indignação <strong>de</strong> Lopes não se <strong>de</strong>ve ao roubo em si, mas à quantia furtada. Aseus olhos o que importa é o montante envolvido: se consi<strong>de</strong>rável, justifica-seo <strong>de</strong>lito; se parco, agrava-se a infração, por minguado o valor subtraído. Emsua análise não se computam eventuais circunstâncias atenuantes (como o fato<strong>de</strong> o acusado, segundo o narrador, ser “um moço limpo” que buscava “acudir auma necessida<strong>de</strong> urgente”), mas apenas a “agravante” <strong>de</strong> a falta ter sido cometidapor “uma miséria”. A complacência <strong>de</strong> Lopes em relação à prática <strong>de</strong> sujar-segordo não se coaduna, pois, com a honra<strong>de</strong>z que se espera <strong>de</strong> um jurado.A ambigüida<strong>de</strong> do personagem é amplificada quando ele senta no banco dosréus e se completa a alegoria proposta: eis que se revela a coexistência, na mesmapersona, do judicante, pronto a con<strong>de</strong>nar e a execrar, e do con<strong>de</strong>nável, alvoda inquisição alheia pela infração que se lhe imputa.A narrativa, contudo, não permite afiançar que o Lopes, embora acusado,tenha praticado o crime a ele atribuído. Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que asinformações nos chegam filtradas pelo narrador, que em dado momento,aturdido por reconhecer no réu seu antigo colega <strong>de</strong> júri, confessa: “Digo-lheaqui com verda<strong>de</strong> que todas essas circunstâncias me impediram <strong>de</strong>acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam.Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim”. 19 Se o próprio narradoradmite não ter <strong>de</strong>dicado a atenção necessária ao <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Lopes,não é <strong>de</strong>scabido consi<strong>de</strong>rar seu relato, no mínimo, passível <strong>de</strong> contestação. Eele prossegue: “O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionoumuito, o inquérito, os documentos, a tentativa <strong>de</strong> fuga do caixa euma série <strong>de</strong> circunstâncias agravantes”. 20 Atente-se no fato <strong>de</strong>, novamente,o texto refletir a impressão do narrador. A propósito, ressalte-se que a leiturado processo não teve o mesmo significado para os outros jurados, que absolveramo réu. Adiante o narrador confirma sua <strong>de</strong>sconcentração nos <strong>de</strong>bates eanuncia seu voto:19 I<strong>de</strong>m, p. 72.20 Ibi<strong>de</strong>m.243


Luciano Rosa“Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumodos <strong>de</strong>bates que o presi<strong>de</strong>nte do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitose recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que voteiafirmativamente, tão certo me pareceu o <strong>de</strong>svio dos cento e <strong>de</strong>z contos. Havia,entre outros documentos, uma carta <strong>de</strong> Lopes que fazia evi<strong>de</strong>nte o crime. Masparece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu.” 21Fica claro que, ao votar favoravelmente pela con<strong>de</strong>nação, o narrador nãopô<strong>de</strong> apreciar os elementos do processo em sua totalida<strong>de</strong>, pois sua concentraçãofora prejudicada pela surpresa e pela atonia <strong>de</strong> reencontrar o ex-colega emsituação tão imprevista.O caso é que a questão da verda<strong>de</strong> permanece em aberto. A in<strong>de</strong>finição é otom, a dúvida é a única certeza, como se o narrador, à semelhança <strong>de</strong> Brás Cubas,se restringisse “à admissão da probabilida<strong>de</strong>”. 22 Talvez a narrativa insinue– ou mesmo faça crer – que a culpa do Lopes seria maior do que a do outroréu, mas os dados do texto não garantem isso. O conto arma, assim, um jogo<strong>de</strong> gato-e-rato com o leitor, numa espécie <strong>de</strong> logomaquia narrativa habilmenteurdida em que as expectativas erguidas não são explicitamente confirmadas.Daí não haver qualquer preceito moralizante ou edificante a coroar o discursodo narrador: “Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer!” 23 é suaposição final, à qual se achega o conselho pru<strong>de</strong>nte que pontua a narrativa:“Não queirais julgar para que não sejais julgados.” Sujar-se gordo, sujar-se magroComo se vê, vários são os pontos dos quais se dispara contra o vidro aparentementecristalino e sem fissuras da Verda<strong>de</strong>, que finda estilhaçado. Todavia,Machado não investe apenas contra o casuísmo da or<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ológica domi-21 I<strong>de</strong>m, p. 73.22 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 176.23 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Suje-se gordo! In: Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier, 1990. p. 73.244


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelnante: sob sua mira também estão a relação promíscua entre dinheiro e po<strong>de</strong>r eos frutos sórdidos que <strong>de</strong>la advêm. A caracterização dos incriminados, a reação<strong>de</strong> ambos nos respectivos julgamentos e sobretudo a sentença que lhes <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>o <strong>de</strong>stino são elementos que a narrativa aciona para marcar o contraste entreos que se sujam gordo e os que se sujam magro. A oposição começa já na<strong>de</strong>scrição dos acusados:“O primeiro réu que con<strong>de</strong>nei era um moço limpo, acusado <strong>de</strong> haver furtadocerta quantia, não gran<strong>de</strong>, antes pequena, com falsificação <strong>de</strong> um papel.Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativaou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrouesse modo <strong>de</strong> acudir a uma necessida<strong>de</strong> urgente; mas Deus, que via os corações,daria ao criminoso verda<strong>de</strong>iro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase,triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal pali<strong>de</strong>z que metia pena[...].” 24Já Lopes é assim referido:Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia<strong>de</strong> maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos semmedo nem ansieda<strong>de</strong>; não sei até se com uma pontinha <strong>de</strong> riso nos cantos daboca. [...] Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia,mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presi<strong>de</strong>nte, o tecto e as pessoasque o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu;fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. 25O confronto entre as duas passagens <strong>de</strong>ixa patente a diferença entre os acusados,apesar <strong>de</strong> ambos estarem em circunstâncias semelhantes. A reação doprimeiro réu é própria <strong>de</strong> alguém acuado, resignado com a con<strong>de</strong>nação, por-24 I<strong>de</strong>m, p. 69.25 I<strong>de</strong>m, p. 72.245


Luciano Rosaque se sabe “um ladrão reles, um ladrão <strong>de</strong> nada” 26 ; a <strong>de</strong> Lopes, não: sua soberbacombina com um ladrão “<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor” 27 , a quem o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> alta quantiaassegura posição social, amiza<strong>de</strong>s influentes e a certeza <strong>de</strong> se esquivar aos rigoresda lei. A associação simbiótica e fraudulenta entre dinheiro e po<strong>de</strong>r, valedizer, entre corrupção e impunida<strong>de</strong>, tão antiga quanto perniciosa, não passa<strong>de</strong>spercebida aos olhos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Alfredo Bosi comenta a estratégiado autor para “<strong>de</strong>smascarar a i<strong>de</strong>ologia que tudo justifica”: 28“Repuxando o cotidiano para situações-limite, Machado testa o pensamentoconformista segundo o qual a or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> é uma or<strong>de</strong>m naturalou provi<strong>de</strong>ncial, e ambas formam a melhor das or<strong>de</strong>ns possíveis <strong>de</strong>stemundo. A análise dos contos-teorias revelou exatamente o contrário: a convenção,enquanto prática das relações sociais correntes, é, muitas vezes, produtoda frau<strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r exerceu para instalar-se e perpetuar-se. A verda<strong>de</strong>pública é uma astúcia bem lograda. E a dicotomia selvagem <strong>de</strong> fracos efortes reproduz-se no contraste civilizado <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos e carentes, espertose ingênuos.” 29Lopes e o outro réu protagonizam, assim, a “dicotomia selvagem” apontadapor Bosi. Nessa dinâmica, a sorte <strong>de</strong> ambos nos respectivos julgamentos já estáselada, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> terem praticado os <strong>de</strong>litos que lhes são atribuídos,o que ao fim se mostra irrelevante. Esvaziada a questão da culpa, a queconclusões a narrativa permite chegar? De concreto há dois ilícitos: uma infração<strong>de</strong> pouca monta e um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> soma expressiva. É certo também que noprimeiro caso o réu foi con<strong>de</strong>nado e, no segundo, absolvido. Consi<strong>de</strong>rados oselementos do texto, estabelece-se a seguinte relação:26 I<strong>de</strong>m, p. 73.27 Ibi<strong>de</strong>m.28 BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda – sobre alguns contos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. In: Encontros com aCivilização <strong>Brasileira</strong> n. o 17. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização <strong>Brasileira</strong>, 1979. p. 149.29 Ibi<strong>de</strong>m.246


Um retalho <strong>de</strong> impalpávelcrime envolvendo pouco dinheiro (“sujar-se magro”) con<strong>de</strong>naçãocrime envolvendo muito dinheiro (“sujar-se gordo”) absolvição.É nos binômios sujar-se magro/con<strong>de</strong>nação e sujar-se gordo/absolviçãoque repousa a tese em torno da qual o conto se estrutura. A mesma concepçãoaparece noutra crônica da Gazeta <strong>de</strong> Notícias, em que Machado comenta en passanto furto <strong>de</strong> um guarda-chuva:“Furtar po<strong>de</strong> não ser punido em todos os casos; mas em muitos o é.Nunca há <strong>de</strong> esquecer um sujeito que, com o pretexto (aliás honesto) <strong>de</strong> estarchovendo, levou um guarda-chuva que vira à porta <strong>de</strong> uma loja; o júriprovou-lhe que a proprieda<strong>de</strong> é coisa sagrada, ao menos sob a forma <strong>de</strong> umguarda-chuva, e con<strong>de</strong>nou-o a não sei quantos meses <strong>de</strong> prisão.” 30O fragmento corrobora o mote do conto, baseado na compreensão <strong>de</strong> quesituações análogas – no caso, crimes <strong>de</strong> mesma natureza – estão sujeitas, comperigosa freqüência, a critérios <strong>de</strong> avaliação distintos e temerários, condicionadospor variáveis que subvertem os fundamentos da justiça legítima e igualitária.O juízo dúbio que daí resulta guarda estreita conexão com a verda<strong>de</strong> esquivae claudicante que a trama escamoteia.As questões se entremeiam sem que a narrativa se ocupe em esclarecê-las <strong>de</strong>forma cabal. Antonio Carlos Secchin salienta que a ficção machadiana trabalha“à contracorrente do peremptório, na esfera ambígua das <strong>de</strong>clarações aproximativas”,configurando-se como “discurso que alu<strong>de</strong> e eli<strong>de</strong>”. 31 Acrescente-seque a narrativa prismática e especular <strong>de</strong> “Suje-se gordo!” ilu<strong>de</strong> e ili<strong>de</strong> a simesma, <strong>de</strong> forma oblíqua e dissimulada, <strong>de</strong>ixando eventuais conclusões, emúltima instância, a cargo do leitor, cuja participação é convocada já na “Adver-30 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Crônica n. o 37 (1. o <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1893). In: A Semana (org. John Gledson).São Paulo: Hucitec, 1995. p. 174.31 SECCHIN, Antonio Carlos. “Cantiga <strong>de</strong> esposais” e “Um homem célebre”: estudo comparativo.In: Poesia e Desor<strong>de</strong>m. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1996. p. 195.247


Luciano Rosatência” <strong>de</strong> Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha: “Depen<strong>de</strong> da tua impressão, leitor amigo,como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> ti a absolvição da má escolha”. Ao “leitor amigo”, um últimoe singelo conselho, o qual, não fossem o tom irônico e o caráter movediçoda ficção machadiana, po<strong>de</strong>ria valer como “moral da história”: “o mais seguroé não julgar ninguém...”. 3232 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Suje-se gordo! In: Relíquias <strong>de</strong> Casa Velha. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier, 1990. p. 73.248


<strong>Prosa</strong>Recepção crítica à poesia<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis Como a crítica viu e vê a obrapoética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis?Cláudio Murilo LealDe 1864, ano <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong> Crisálidas, aos dias <strong>de</strong> hoje, arecepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis revela umagran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> juízos e até mesmo pontos <strong>de</strong> vista opostosque, ao longo do tempo, vêm ampliando em quantida<strong>de</strong> e melhorandoem qualida<strong>de</strong> a sua fortuna crítica. Posições dicotômicas são <strong>de</strong>tectadasno exercício do exame analítico da obra poética machadiana.Há elogios, há restrições, há controvérsias. E um dos motivospara o <strong>de</strong>sencontro <strong>de</strong> opiniões <strong>de</strong>ve-se, certamente, à concorrênciado ficcionista insuperável que parece, ainda, sombrear o trabalhooriginalíssimo do poeta.É questionado, também, o difícil enquadramento da poesia <strong>de</strong> Machadoem uma única e <strong>de</strong>finida corrente literária, seja no Romantismo,seja no Parnasianismo.Poeta e professor, éDoutor em <strong>Letras</strong>pela UFRJ.Lecionou nasuniversida<strong>de</strong>sFe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong>Janeiro e <strong>de</strong> Brasília,e em váriasuniversida<strong>de</strong>s doBrasil e do Exterior.Organizou entreoutras edições, a daspoesias completas<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong>Assis. Seus últimoslivros são Módulos eCinelândia.249


Cláudio Murilo LealDiscute-se, ainda, o seu peculiar estilo, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir, no conjunto<strong>de</strong> sua obra poética, sobre uma possível predominância ou do mo<strong>de</strong>lo líricoou da construção narrativa. Debate-se, e muito, a qualida<strong>de</strong> da inspiração<strong>de</strong> Machado, talvez dividida entre o que Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> chamou,na Revista da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Amigos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis,<strong>de</strong>acte même <strong>de</strong>s Muses, istoé, uma poesia inspirada e <strong>de</strong>sinteressada, e os fabricados versos <strong>de</strong> circunstância,que marcam uma significativa presença nos “Dispersos”, em Toda apoesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, livro recentemente apresentado na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.As resenhas em jornal na época da publicação <strong>de</strong> Crisálidas, 1864, primeirolivro <strong>de</strong> poesias <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, são simpáticas ao jovem estreante <strong>de</strong> 25anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Nota-se o acolhimento favorável, o aplauso, e a esperança <strong>de</strong>positadano êxito da carreira poética que se inicia.A primeira resenha, publicada sem assinatura no Jornal do Commercio,em7<strong>de</strong>outubro <strong>de</strong> 1864 (Inocêncio Francisco da Silva dá como autor Luiz <strong>de</strong> Castro,redator do jornal), começa justamente sob o signo da esperança, ao afirmar:“Mais <strong>de</strong> uma ocasião já temos tido [a oportunida<strong>de</strong>] <strong>de</strong> dizer que víamos no Sr.Machado <strong>de</strong> Assis um jovem <strong>de</strong> muitas esperanças para as letras pátrias.” E ainda:“As Crisálidas recomendam-se por si mesmas; basta que se leiam.”Amaral Tavares, um mês <strong>de</strong>pois, no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, arrisca-se a vaticinarcom otimismo: “Machado <strong>de</strong> Assis eraeéumbelo prenúncio <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>poeta.” E no final do seu extenso artigo invoca a frase mágica que, certamente,teria alegrado o autor <strong>de</strong> Crisálidas: “Machado <strong>de</strong> Assis é uma das maisrobustas esperanças da poesia nacional.”De Portugal, chega também a palavra <strong>de</strong> estímulo <strong>de</strong> Ramalho Ortigão, noJornal do Porto, que, ainda em 1864, confessa: “Por tal modo se me revelou aexistência do Sr. Machado d’Assis, poeta indubitavelmente fadado para gran<strong>de</strong>s<strong>de</strong>stinos...”F.T. Leitão, em outro longo artigo publicado na Revista Mensal da Socieda<strong>de</strong>Ensaios Literários, n. 10, <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1866, também <strong>de</strong>posita a sua confiançano futuro do poeta estreante: “Machado <strong>de</strong> Assis po<strong>de</strong> ir muito além do que250


Recepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assisfoi, po<strong>de</strong> conquistar um lugar mais distinto do que aquele que ocupa entre osnossos verda<strong>de</strong>iros poetas.”As divergências começam a surgir mais tar<strong>de</strong>, a partir da verrina <strong>de</strong> SílvioRomero, em seu livro Machado <strong>de</strong> Assis, publicado em 1897, uma obra motivadapor claro intuito <strong>de</strong> revi<strong>de</strong> à critica negativa feita por Machado ao livro <strong>de</strong> poesiasdo sergipano, intitulado Cantos do Fim do Século. Para enten<strong>de</strong>rmos a atitu<strong>de</strong>beligerante <strong>de</strong> Sílvio Romero, transcrevemos as palavras <strong>de</strong> Machado em seuconhecido ensaio “A nova geração”: “Os Cantos do Fim do Século po<strong>de</strong>m ser tambémdocumento <strong>de</strong> aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e tudo dizernuma só palavra, o Sr. Romero não possui forma poética.”Fausto Cunha, no Jornal do Brasil, em artigo datado <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1976, é uma das negativas vozes críticas que se vão juntando a outras manifestações<strong>de</strong> semelhante teor. Escreve o ensaísta: “Quem leu com olho crítico, em1864, as poesias <strong>de</strong> Crisálidas certamente percebeu que Joaquim Maria não teriafuturo como poeta.”É claro que Fausto Cunha não leu as críticas encomiásticas <strong>de</strong> 1864, emparte aqui transcritas. Porém, mais adiante, no mesmo artigo, ele próprio aparentementese retrata:“Dono <strong>de</strong> alguns bons versos avulsos (‘Entreaberto botão, entrefechadarosa,/ Um pouco <strong>de</strong> menina um pouco <strong>de</strong> mulher’), <strong>de</strong> composições felizescomo o ‘Soneto <strong>de</strong> Natal’, ‘A mosca azul’, ‘Círculo vicioso’, <strong>de</strong> uma admiráveltradução <strong>de</strong> ‘O corvo’, <strong>de</strong> Edgar Allan Poe, só o prestígio do contista edo romancista justificou, no entanto, a edição Garnier <strong>de</strong> 1901 e as reediçõesque se lhe seguiram.”Um autor <strong>de</strong> “composições felizes”, no dizer <strong>de</strong> Fausto Cunha, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas<strong>de</strong> outras que, todos sabemos, enriquecem o legado poético <strong>de</strong> Machadocertamente não necessitaria utilizar seu renome como romancista para conseguireditar a sua poesia. Fausto Cunha, como outros críticos, não <strong>de</strong>ve ter to-251


Cláudio Murilo Lealmado conhecimento <strong>de</strong> toda a poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e, por este motivo,seus comentários refletem uma visão parcial, fruto da leitura das selecionadasPoesias Completas.Outro tema objeto <strong>de</strong> indagações é o que trata da questão da filiação <strong>de</strong>Machado a esta ou aquela escola literária. O assunto já não <strong>de</strong>sperta o interesse<strong>de</strong> outrora, quando a crítica buscava o enquadramento do poeta no Romantismoou no Parnasianismo. Hoje, aceita-se a tese <strong>de</strong> que Machado foi um poeta<strong>de</strong> transição e, mais do que isso, um poeta personalíssimo, que conseguiu imprimiruma dicção inconfundível aos seus poemas, principalmente os da maturida<strong>de</strong>,incluídos em Oci<strong>de</strong>ntais. Essa in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Machado já havia sidonotada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Crisálidas, no arguto registro <strong>de</strong> Amaral Tavares:“A poesia <strong>de</strong> MA, já o disse outrem, não se pren<strong>de</strong> a escola alguma,traduz o seu próprio sentimento: é quanto basta. A inspiração incen<strong>de</strong>ialhea mente, o verso alinha-se fluente e doce, a forma adapta-se ao pensamento,o estilo gradua-se pelo assunto... As imagens são frescas, precisas,naturais...”Se Machado não se subordinou aos preceitos e cânones <strong>de</strong> uma escola literária,fato percebido por gran<strong>de</strong> parte da crítica, a exegese <strong>de</strong> seus poemasnão <strong>de</strong>ve procurar encerrá-los nos códigos dos estilos <strong>de</strong> época vigentes noséculo XIX. Também como romancista e contista Machado não foi nemum realista, nem um naturalista e, muito menos, um impressionista. Ele“graduava o seu estilo pelo assunto”, segundo a correta percepção <strong>de</strong> F. T.Leitão.Em uma conferência na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 4 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1939,J. Pereira da Silva confirma: “Eis como se me afigura o que foi a poesia <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis: uma poesia que só teve uma escola: a humanida<strong>de</strong> do autor...”Outro ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo entre os estudiosos da poesia <strong>de</strong> Machado seriaacerca da <strong>de</strong>finição da predominância em sua poesia <strong>de</strong> uma das duas vertentes,ou a lírica ou a narrativa. Depois da publicação do estudo fundamental252


Recepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assispara o entendimento do processo lírico, <strong>de</strong> Hugo Friedrich, Estrutura da LíricaMo<strong>de</strong>rna, que examinou as obras <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, Rimbaud, Mallarmé, Lorca,Jorge Guillén, Ungaretti, Valéry, Rilke e outros, surgiu a tendência da mo<strong>de</strong>rnacrítica no sentido <strong>de</strong> serem aceitas como verda<strong>de</strong>ira poesia apenas as manifestaçõesda lírica. Este posicionamento, entretanto, contradiz a história dapoesia oci<strong>de</strong>ntal, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Homero até o fim do século XVIII, privilegia ascomposições poéticas narrativas. Ela está presente na épica <strong>de</strong> Homero ou <strong>de</strong>Virgílio, nas canções <strong>de</strong> gesta <strong>de</strong> Roland ou do Cid Campeador, nas eddas nórdicas,nas epopéias metafísicas e religiosas <strong>de</strong> Dante e Milton, nas epopéiastardias <strong>de</strong> Camões e Torquato Tasso, sem falar nos mo<strong>de</strong>rnos franceses e ingleses,as Legendas <strong>de</strong> Hugo ou Chil<strong>de</strong> Harold <strong>de</strong> Byron.Talvez <strong>de</strong>vido à contaminação sofrida pelos procedimentos da prosa – comoa utilização <strong>de</strong> dramatis personae, a construção <strong>de</strong> enredos com começo, meio e fime a preferência pela linguagem <strong>de</strong>notativa –, Machado adaptou muitos <strong>de</strong> seuspoemas à estrutura narrativa, sejam eles reproduzindo algumas das sagas <strong>de</strong> saborindianista, incluídas no livro Americanas, ou, por exemplo, uma espécie <strong>de</strong>conto <strong>de</strong> amor em versos, “on<strong>de</strong> há muito riso e muitas lágrimas”, nas palavras<strong>de</strong> Joaquim Serra, referindo-se a “Pálida Elvira (“um mimo <strong>de</strong> estilo e <strong>de</strong> encanto<strong>de</strong>scritivo”, segundo outro crítico). Ou, ainda, uma sátira como “O Almada”,que aproveita o cenário histórico do Brasil <strong>de</strong> 1659, quando era prelado administradordo Rio <strong>de</strong> Janeiro o Dr. Manuel <strong>de</strong> Sousa Almada, presbítero do hábito<strong>de</strong> S. Pedro; ou mesmo ainda a famosa “A mosca azul”, poema que po<strong>de</strong>riaser consi<strong>de</strong>rado um relato fantástico, digno da imaginação <strong>de</strong> um Cortázar ou <strong>de</strong>um Borges. Po<strong>de</strong> também ser citado “Círculo vicioso”, um mo<strong>de</strong>rno apólogocom uma implícita moraleja, que reconta o milenar e universal sentimento da inveja.Também a simplicida<strong>de</strong> que caracteriza o gênero da fábula encontra-se representadana primorosa tradução <strong>de</strong> La Fontaine, “Os animais iscados da peste”,além da adoção <strong>de</strong> estórias-lendas, incluídas em Americanas, como “Potira”,“Niâni” (história <strong>de</strong> guaicuru) e “A cristã nova”. É importante citar o esquete“Uma o<strong>de</strong> <strong>de</strong> Anacreonte”, urdido em admiráveis versos alexandrinos, comouma outra forma bem-sucedida <strong>de</strong> narração dramatizada.253


Cláudio Murilo LealEm síntese, seria possível dizer que Machado <strong>de</strong> Assis transitou com êxitopor ambas as modalida<strong>de</strong>s da poesia, a lírica e a narrativa, mas, a partir <strong>de</strong> Americanas,o viés <strong>de</strong>scritivo-narrativo impôs-se como a forma poética que mais seadaptou à sua irresistível vocação <strong>de</strong> romancista.Este aspecto foi ressaltado por L. C Ishimatsu, no seu livro The poetry of Machado<strong>de</strong> Assis, excelente apreciação da obra poética machadiana:“Americanas difere <strong>de</strong> Crisálida e Falenas não somente por sua organizaçãoem torno <strong>de</strong> um tema central, mas também porque aquela coleção <strong>de</strong> poemasconsiste primariamente <strong>de</strong> longos poemas narrativos, talvez como resultadodo crescente interesse <strong>de</strong> Machado pela ficção.”Dentro <strong>de</strong> um amplo espectro estilístico, Machado aproveitou-se <strong>de</strong> todasas possibilida<strong>de</strong>s expressivas do verso. Poemas líricos e leves, que falam doamor, da musa consoladora, dos <strong>de</strong>sencantos da mocida<strong>de</strong>, do “naufrágio dasilusões.” Outros, poemas graves, filosóficos, que transcen<strong>de</strong>m as dores subjetivase buscam alcançar, através <strong>de</strong> indagações metafísicas, a compreensão domundo, o conhecimento da alma humana, como em “Aspiração”:Sinto que há na minh’alma um vácuo imenso e fundo,E <strong>de</strong>sta meia morte o frio olhar do mundoNão vê o que há <strong>de</strong> triste e <strong>de</strong> real em mim;Encontramos, também, poemas <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e consagração (“Polônia”,“Epitáfio do México”, “A cólera do Império”, “Hino patriótico”) que provama falácia do alegado absenteísmo político e social <strong>de</strong> Machado.Poesias com um viés piedoso, em que a fé, o apelo às forças superiores dadivinda<strong>de</strong>, ao sentimento religioso, não militante mas não menos profundo,<strong>de</strong>ixam aflorar uma grave espiritualida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>smente o propalado ateísmo,um pessimismo agônico que, se existiu na prosa <strong>de</strong> Machado, não foi um sentimentohegemônico, mas conflituoso, na alma torturada do poeta.254


Recepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> AssisA censura ao ateísmo <strong>de</strong> Machado não é inteiramente válida. Ele apenas nãoprofessou um credo, não aceitou dogmas. Como homem, cético, duvidava.Como poeta, sentia a presença <strong>de</strong> Deus, criador do universo e dos homens.Machado escreveu também versos encomiásticos, como quase todos os poetasdos séculos XVIII e XIX. São exemplos “O soneto a S.M. o Imperador, oSenhor D. Pedro II”, poemas às artistas Mme <strong>de</strong> la Grange, Arsène ChartonDemeur, a um proscrito, a Camões, a Pombal, a Mont’Alverne, a José <strong>de</strong> Alencare a muitíssimas outras figuras do mundo cultural e político. São versos <strong>de</strong>circunstância, <strong>de</strong> homenagem, que em nada diminuem o poeta. Mo<strong>de</strong>rnamente,Manuel Ban<strong>de</strong>ira, com Mafuá do Malungo, e Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>com Viola <strong>de</strong> Bolso, praticaram com talento e graça versos <strong>de</strong> ocasião. E nem énecessário citar poemas como o réquiem consagratório <strong>de</strong> Mallarmé, “Le tombeaud’Edgar Poe”, ou versos <strong>de</strong> circunstância como “Vers pour le portrait <strong>de</strong> M. HonoréDaumier”, <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire.Machado também escreveu na Gazeta <strong>de</strong> Notícias 48 crônicas em verso, intituladas“Gazetas <strong>de</strong> Holanda”, que captavam instantâneos do cotidiano, com oolhar atento para os faits divers, as modas, os acontecimentos pitorescos dodia-a-dia fluminense, os fatos do mundo da política e da economia, como muitobem analisou dois <strong>de</strong>sses versiprosas o economista Gustavo Franco, em seu livroA Economia em Machado <strong>de</strong> Assis.Machado poetou durante mais <strong>de</strong> 40 anos, abrangendo, como dissemos,uma impressionante diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas, aproveitando os mais variados tipos<strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> técnicas poéticas.No entanto, uma corrente crítica, iniciada por Sílvio Romero, repete, semmaiores pesquisas, que Machado escreveu uma poesia sem emoção. MúcioTeixeira seguiu a trilha aberta por Romero em trabalho estampado no Jornal doBrasil, em 1901, quando da publicação das Poesias Completas. Em seu veredicto,Teixeira con<strong>de</strong>na o poeta:“A verda<strong>de</strong>, porém, é esta: há no Sr. Machado <strong>de</strong> Assis um bom prosadora amparar um medíocre poeta, ou para melhor dizer, um correto versejador.255


Cláudio Murilo LealMas fazer versos metrificados, como ensina o compêndio, não é ter poesia,que é precisamente o que falta neles.Há nos versos do Sr. Machado <strong>de</strong> Assis muito torneio mecânico, só nãohá poesia neles. É que os seus versos não lhe saem da alma, nem do coração:saem-lhe sorrateiramente das duras pare<strong>de</strong>s cranianas.”Diversamente <strong>de</strong>ssa posição radical, Hermelindo Scavone, em 1939, noDiário <strong>de</strong> S. Paulo, consi<strong>de</strong>ra “Versos a Corina”, no seu dizer, “um poema admirável<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> uma intensa emoção, <strong>de</strong> um lirismo ar<strong>de</strong>nte”.Após transcrever parte do longo poema, arremata: “São hinos vibrantes aoamor, talvez dos mais belos da nossa poesia romântica.”Nesse mesmo sentido, L. Guimarães Júnior, como Scavone, também reconhecea carga emotiva que emana dos versos <strong>de</strong> Machado. No Diário do Rio <strong>de</strong>Janeiro, em 5 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1870, ele inaugura o que virá a tornar-se uma tendênciada crítica, ao explicar que Crisálidas é um livro on<strong>de</strong> predomina a emoçãoe que com Falenas inicia-se o processo <strong>de</strong> aperfeiçoamento do instrumentalpoético <strong>de</strong> Machado. Escreve L. Guimarães Júnior:“O livro das Crisálidas é aquele em que mais salientemente se patenteia aíndole poética <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. As Falenas revelam o artista, o método,a correção na estrutura e na plástica. Nas Crisálidas adivinha-se o poeta, o sonhador,o homem da inspiração e o músico da alma.”O percurso artístico rumo à perfeição, atingida nos poemas <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>,tem o seu gran<strong>de</strong> final na publicação <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntais. O cuidado formal, o minuciosotratamento artesanal do poema, a escolha <strong>de</strong> temas mais amplos e universais,o conhecimento e a prática das várias configurações métricas e rímicas,o árduo treinamento para a conquista <strong>de</strong> um verso alexandrino irretocável, elogiadoaté pelo feroz tratadista português Antônio Feliciano <strong>de</strong> Castilho, <strong>de</strong>monstramclaramente o ingresso <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis na galeria dos clássicosmo<strong>de</strong>rnos, como Bau<strong>de</strong>laire, Edgar Allan Poe ou Leopardi.256


Recepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> AssisOutra injusta acusação recai sobre Machado: a <strong>de</strong> que a sua poesia não traduzum sentimento <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”. A eleição dos temas, a construção do verso,o vocabulário, a estrutura sintática e até a ausência <strong>de</strong> um espírito nacionalsão apontados por aqueles que vêem em Gonçalves Dias e Castro Alves osmaiores retratistas das cores da nossa natureza e da mistura <strong>de</strong> nossas raças.Isso prova que a poesia <strong>de</strong> Machado ainda é lida <strong>de</strong> modo superficial. Comoclassificar, então, o autor dos poemas indianistas <strong>de</strong> Americanas, em cuja “Advertência”,no início do livro, explica que durante“algum tempo foi opinião que a poesia brasileira <strong>de</strong>via estar toda, ou quasetoda, no elemento indígena. Veio a reação, e adversários não menos competentesque sinceros absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional.São opiniões extremas, que, pelo menos, me parecem discutíveis.”Machado, como sempre o fez, segue o caminho do equilíbrio e do bom senso.No arguto e insuperável ensaio “Instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>” reitera: “Manifesta-Seàs vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espíritonacional nas obras que tratam <strong>de</strong> assunto local, doutrina que, a ser exata,limitaria muito os cabedais da nossa literatura.” Machado cantou os nossos índiossem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um artista universal.Mas até o amigo Joaquim Serra, ao elogiar “Pálida Elvira”, acrescenta que“todavia falta nesse poema-romance o cunho brasileiro.” E o citado Luis GuimarãesJúnior segue no mesmo teor: “O poeta <strong>de</strong> Falenas sujeitou o seu livro àsregras metódicas do velho classismo (sic) latino e português. A própria frase, opróprio estilo não pertencem a escritor nacional.”É possível situar o início <strong>de</strong> uma nova crítica favorável à poesia <strong>de</strong> Machadocom Alfredo Pujol, que em 1917 pronunciou em São Paulo sete conferênciassobre a obra em prosa e em verso <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, reunidas, em 2007, emcuidada edição da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, precedidas por uma esclarecidaapresentação do Acadêmico Alberto Venancio Filho. O tom <strong>de</strong> Pujol éconscientemente elogioso:257


Cláudio Murilo Leal“O que sobreleva nos versos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis é o apuro da forma eda expressão. Foi ele o nosso primeiro poeta artista, muito antes que os parnasianospusessem no cuidado da métrica e na escultura do verso os primoresdo seu engenho.”Quase 20 anos mais tar<strong>de</strong>, em 1935 e 36, aparecem dois trabalhos da maiorimportância para os estudos machadianos, o <strong>de</strong> Augusto Meyer e o <strong>de</strong> LúciaMiguel Pereira.Meyer, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>bruçar-se mais sobre a prosa, exalta alguns poemas <strong>de</strong>Machado, como “No alto”, adjetivando-o <strong>de</strong> “misterioso e fascinante”.Já Lúcia Miguel Pereira é incisiva num tipo <strong>de</strong> afirmação que influenciou aopinião <strong>de</strong> muita gente: “Sem po<strong>de</strong>r preten<strong>de</strong>r ao título <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> poeta, Machado<strong>de</strong> Assis foi inegavelmente um poeta.”Alexei Bueno, no prefácio <strong>de</strong> uma seleção dos melhores poemas <strong>de</strong> Machadopublicada pela editora Global, em coleção dirigida por Edla van Steen, consi<strong>de</strong>raque em “Oci<strong>de</strong>ntais se encontram sem dúvida alguns <strong>de</strong> seus maiores poemas”. Alexeiestá ciente <strong>de</strong> que “a questão Machado <strong>de</strong> Assis poeta sempre permaneceu dasmais controversas, com o agravante <strong>de</strong> o autor <strong>de</strong> Helena ter sido, coisa rara emquase todas as literaturas, um poeta <strong>de</strong> evolução lenta, um poeta que, inequivocamente,escreveu na plena maturida<strong>de</strong> ou mesmo na velhice seus melhores poemas”.Em 1939, uma voz respeitável, a <strong>de</strong> Mário Matos, que escreveu com excepcionalluci<strong>de</strong>z sobre a obra e a vida <strong>de</strong> Machado, aborda um dos pontos polêmicosque levantamos nesta presente síntese da recepção crítica à sua poesia:“Até certo tempo, foi vezo da crítica afirmar que Machado <strong>de</strong> Assis erapoeta <strong>de</strong> somenos. Que não possuía temperamento poético. [...] E vem doerro <strong>de</strong> nossa emoção mais transbordante que profunda. Vem <strong>de</strong> nosso gênioretórico ou verbalista, do gosto <strong>de</strong> pompa. É ele poeta <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zassentimentais, <strong>de</strong> melancolia e reflexão. O que levou um crítico a dizer quesuas virtu<strong>de</strong>s literárias são as do prosador: medida, graça, bom gosto, correção<strong>de</strong> linguagem. Assim, não há negar. Mas cabe apontar que, estudado no258


Recepção crítica à poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assistempo e no meio, tem resistido a todas as evoluções, e o seu nome, quer dizer,a sua glória aí está viva e contemporânea com o nosso gosto, ao passoque muitos poetas <strong>de</strong> sua época, chefes <strong>de</strong> escola, que obtiveram ruidososucesso, como Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, por exemplo, que o antece<strong>de</strong>u, nãosobrevivem em nenhum poema, em nenhum canto, em nenhum verso.”Machado <strong>de</strong>ixou-nos poemas memoráveis que, somente agora, estão recebendoo reconhecimento que merecem. Ivan Teixeira, em livro datado <strong>de</strong> 1987,Apresentação <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, em relação ao poema “No alto”, alerta que “torna-sequase impossível <strong>de</strong>screver a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong>sse poema. Não é comum emnossa poesia um texto dizer tanto em tão pouca extensão.” E acrescenta Teixeiraque “ele sozinho bastaria para creditar o nome <strong>de</strong> Machado como poeta”.Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao organizar uma antologia dos poemas<strong>de</strong> Machado, afirma que em Oci<strong>de</strong>ntais “está a sua melhor poesia, a poesia quegarante sobrevivência <strong>de</strong> seu nome como poeta”.O conceito <strong>de</strong> “sobrevivência” vai paulatinamente incorporando-se ao entendimentodos estudiosos que examinam, hoje, as poesias <strong>de</strong> Machado. Procuramostrazer novamente à luz estas abordagens críticas, reveladoras <strong>de</strong> umadupla perspectiva: a do ponto <strong>de</strong> vista sincrônico, ao comparar Machado comos poetas <strong>de</strong> seu tempo, a maioria com suas obras <strong>de</strong>finitivamente esquecidas,e a do ponto <strong>de</strong> vista diacrônico, que <strong>de</strong>spertaram reflexões ao longo do tempo.A <strong>de</strong>finitiva revalorização da poesia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis <strong>de</strong>verá passar,primeiramente, pelo conhecimento da sua opera omnia poética. Ler e reler osseus poemas é tarefa que se impõe aos novos críticos e às faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,que <strong>de</strong>veriam abrir ainda mais o leque <strong>de</strong> autores brasileiros estudados.Em “Anexo” à minha tese doutoral, <strong>de</strong>fendida no ano <strong>de</strong> 2000, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, recolho na íntegra 42 avaliações sobre a poesia machadiana,muitas <strong>de</strong>las, até aquela data, esquecidas em jornais. O livro organizadopor Ubiratan Machado, operoso e lúcido pesquisador, intitulado Machado<strong>de</strong> Assis: Roteiro da Consagração, publicado em 2003, traz selecionadas resenhas ecríticas <strong>de</strong> vários autores que ajudam a construir o perfil literário do poeta.259


<strong>Prosa</strong>O amor masculinoem A Mão e a Luva 1. IntroduçãoLetícia MalardEste texto, aqui publicado pela primeira vez, faz parte <strong>de</strong> umapesquisa sobre as transformações do discurso amoroso masculinoem romances machadianos. Funciona como uma espécie <strong>de</strong>“segundo capítulo” do assunto, já que o primeiro, centrado emRessurreição, romance inaugural <strong>de</strong> Machado, foi publicado com otítulo “O medo do feminino” 1 . Aí <strong>de</strong>monstramos como o protagonistaFélix – nome <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> – tem tudo para ser feliz; contudo,acaba sendo infeliz. Covar<strong>de</strong> e visionário, “per<strong>de</strong>u o bempelo receio <strong>de</strong> o buscar”, diz o narrador. O temor do feminino emFélix coroa-se na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer a aliança “eterna”com a mulher, submisso que está à ancestral mitologia do Oci<strong>de</strong>nte,em que a mulher é um mal magnífico, prazer funesto, vene-Letícia Malard éProfessoraEmérita daFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong> daUniversida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> MinasGerais, escritorae crítica literária.Seus últimoslivros publicadossão No VastoMundo <strong>de</strong>Drummond(2005, ensaio) eLiteratura eDissidência Política(2006, ensaios).1 MALARD, Letícia. “O medo do feminino”. Estado <strong>de</strong> Minas: Pensar, Belo Horizonte,11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2000. p. 1.261


Letícia Malardnosa e enganadora. É um agente <strong>de</strong> Satã, ser perverso que trouxe ao mundoo pecado, a infelicida<strong>de</strong> e a morte. 2Vejamos como se agencia o discurso amoroso dos homens no romance seguinte,A Mão e a Luva. Ressalte-se que a crítica que trabalha com estilos <strong>de</strong> épocacostuma inserir essa obra na fase romântica <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e, já queseu núcleo é a escolha amorosa, iremos privilegiá-lo pela ótica do romantismoironizado, mas não só. Veremos como, antecipando as correntes sucessoras daromântica entre nós, o escritor operacionaliza outras formas <strong>de</strong> amar como“superiores”, mas esten<strong>de</strong>ndo-se em comparações explícitas ou nas entrelinhascom o i<strong>de</strong>alismo romântico.De início, recor<strong>de</strong>mos a trama: Guiomar, moça fria e calculista, é <strong>de</strong> origemhumil<strong>de</strong> e tem um projeto compensatório <strong>de</strong> escalada social. Três rapazes <strong>de</strong>sejamcasar-se com ela: Estêvão – ingênuo e sincero; Jorge – frívolo e preguiçoso;Luís – ambicioso e esperto, <strong>de</strong> características condizentes com as <strong>de</strong> Guiomar,ambos encaixando-se como a mão à luva. 2. Três estilos <strong>de</strong> amarEsse romance (ou novela, como Machado preferia <strong>de</strong>signá-lo) se constituiem um teorizador dos diferentes modos <strong>de</strong> amar do homem brasileiro daCorte, na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Publicado em 1874, sua ação sepassa em 1853. Daí, se quisermos trabalhar com a noção <strong>de</strong> estilos <strong>de</strong> época,na esteira do escritor, veremos articuladas no livro as acepções machadianas<strong>de</strong> “amor romântico”, e indiciadas as <strong>de</strong> “amor realista” e “amor naturalista”.Dispensamo-nos <strong>de</strong> conceituar “Romantismo”, “Realismo” e “Naturalismo”,dado que os utilizaremos no sentido comum e consensuado da teorialiterária. 3 Todavia, os adjetivos <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong>sses estilos e aqui aplicados a2 Cf. DELUMEAU, Jean. O Medo no Oci<strong>de</strong>nte – 1300-1800: uma cida<strong>de</strong> sitiada. Os agentes <strong>de</strong> Satã.III. A mulher. São Paulo: Companhia das <strong>Letras</strong>, 1989. pp. 310-349.3 Cf. PROENÇA FILHO, Domício. Estilos <strong>de</strong> Época na Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 1989. pp.206-259.262


O amor masculino em A Mão e a Luva“amor” talvez correspondam melhor a uma questão <strong>de</strong> retórica do que propriamente<strong>de</strong> estilística, e assim queremos que nosso leitor os compreenda. Aexceção vai para “romântico”: as tiradas irônicas metalingüísticas <strong>de</strong> Machadose estabelecem num contexto <strong>de</strong> romantismo do século XIX, como porexemplo: “Era [...] mais romântico pelo menos [...] se eu o pusesse lavado emlágrimas” (p. 21).Em primeiro lugar, cabem algumas rápidas consi<strong>de</strong>rações sobre o pensamentomachadiano quanto aos caminhos percorridos pelo romance brasileiro,pensamento dado a conhecer num texto datado com o mesmo ano da elaboração<strong>de</strong> A Mão e a Luva. Ali diz Machado:“Os livros <strong>de</strong> certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, nãocontaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotaras suas doutrinas, o que é já notável mérito. [...] Os nomes que principalmenteseduzem a nossa mocida<strong>de</strong> são os do período romântico; [...] são aindaaqueles com que o nosso espírito se educou.” 4A “escola” francesa referida, naquele 1873, tanto po<strong>de</strong>ria ser o realismo <strong>de</strong>Balzac quanto o naturalismo <strong>de</strong> Zola, ainda não bem <strong>de</strong>finidos como duas “escolas”.Ou ambos. Consultando-se os livros <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado, observa-se,por exemplo, que suas edições <strong>de</strong> Balzac e <strong>de</strong> Flaubert são posterioresao ano <strong>de</strong> publicação não só <strong>de</strong> A Mão e a Luva, como também <strong>de</strong> outros romancesseus, inclusive Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. 5Contudo, isso não significa que Machado, à época, <strong>de</strong>sconhecesse tais“escolas”, sobretudo porque assinava revistas francesas. Significa que,àquela altura do século, ainda procurava pautar sua literatura pelas preferênciasda “nossa mocida<strong>de</strong>”, recheando-a <strong>de</strong> ironia, porém temperando-a4 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Literatura brasileira: instinto <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>. In: ASSIS, Machado <strong>de</strong>. CríticaLiterária. Rio <strong>de</strong> Janeiro-São Paulo-Porto Alegre: W. M. Jackson, 1938. pp. 143-144.5 Cf. JOBIM, José Luís (org.). A Biblioteca <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Topbooks, 2001. pp.250-254.263


Letícia Malardcom os novos ingredientes daquela “certa escola francesa”. Para não consi<strong>de</strong>rar-seultrapassado? Talvez. Inconscientemente? É possível. Examinemos,então, alguns elementos do discurso amoroso masculino nesse romancepublicado em 1874.Na “Advertência” da primeira edição, Machado pergunta se os caracteres,que tão somente esboçou, teriam saído “naturais e verda<strong>de</strong>iros”. A narrativa seabre com Estêvão falando em morrer, <strong>de</strong>vido ao fim <strong>de</strong> um namoro. Assim,advertência e abertura apontam para a oposição real-natural versus romântico.Este último é ironizado: a escolha do ano <strong>de</strong> 1853 para cenário da ação liga-seà década-auge do nosso Romantismo (1846-1856), e em 1874 já embarcávamosno Realismo-Naturalismo, rejeitado por Machado pelo menos na formulaçãoda França, como vimos.Ora, na primeira página do livro o narrador informa estar escrevendo em1873. No ano seguinte a obra fora publicada integralmente em folhetins e emvolume. Observe-se que O Crime do Padre Amaro é publicado em 1875, e logo<strong>de</strong>pois O Primo Basílio, ambos recebendo críticas acerbas do escritor, três anos<strong>de</strong>pois. A rejeição à fórmula da “escola” portuguesa faz par com a francesa. 6Por aquele tempo, Machado se encontrava num entrelugar: brincava <strong>de</strong> romantismoe atacava o realismo-naturalismo franco-lusitano.Em A Mão e a Luva o novelista caracteriza os três homens que amam a mesmamulher através <strong>de</strong> três amores diferentes: Estêvão, com o amor romântico ironizado;Luís amando pelo figurino do realismo machadiano; e Jorge tateandonuma sinuosa vereda pré-naturalista. Aventamos que a tese do romance, iniciadaem Ressurreição, fundamenta-se em “amor é harmonia”. Cite-se <strong>de</strong>ste umafala <strong>de</strong> Lívia: “[O amor] não nasce <strong>de</strong> uma circunstância fortuita nem <strong>de</strong> umalonga intimida<strong>de</strong>, é uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem ese completam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito, sinto que Deusnão nos fez para que o amor nos unisse.” 7 Em A Mão e a Luva, essa tese se paten-6 Cf. ASSIS, Machado <strong>de</strong>. O Primo Basílio, por Eça <strong>de</strong> Queirós. In: ASSIS, Machado <strong>de</strong>. CríticaLiterária. Op. cit., pp. 160-186. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 30 <strong>de</strong> abril, 1878.7 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. Ressurreição. Rio <strong>de</strong> Janeiro-São Paulo-Porto Alegre: W. M. Jackson, 1950. p. 128.264


O amor masculino em A Mão e a Luvateia no casal Luís-Guiomar. Luís é o porta-voz da idéia <strong>de</strong> harmonia, ao dizer aEstêvão que ele – Luís – e Guiomar não nasceram um para o outro. Mas se encaixamharmonicamente, como uma luva calça a mão. O amor romântico <strong>de</strong> EstêvãoSegundo o médico-psicanalista Jurandir Freire Costa, o sujeito do amor românticose formou na escola da satisfação sentimental, que não se confundia como prazer da gratificação sensual. O sujeito sentimentalmente exemplar era aqueleque fosse capaz <strong>de</strong> reconhecer na vida afetiva o que se tinha <strong>de</strong> melhor, sob o aspectomoral, e não necessariamente o que se tinha <strong>de</strong> mais prazeroso. 8 Sob essaótica, analisemos o amor romântico <strong>de</strong> Estêvão, que passa por três fases.Na primeira, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morrer por amor se explica por ter ele um coraçãocovar<strong>de</strong>: portanto, um julgamento moral. Acredita que o primeiro amor, à primeiravista, é o que pren<strong>de</strong> até à morte – outro julgamento moral. Adjetiva-o<strong>de</strong> “estouvado e cego”, “sincero e puro.” Sua perfeita expressão é o choro. Aí oromantismo adquire feições wertherianas, estabelecidas sobre o tripé da personagem<strong>de</strong> Goethe, cuja tragédia po<strong>de</strong> ser creditada à obediência estrita às regrasmorais, quer dizer, sacrificar seu amor pela ética da não traição – não seenvolver com a esposa do amigo.Eis o tripé: covardia, por não lutar pela amada; choro constante, pela exarcebaçãosentimental; e morte, como única porta <strong>de</strong> saída para o amor impossível.Aquilo que Barthes afirma <strong>de</strong> Werther po<strong>de</strong> ser transposto para Estêvão,leitor <strong>de</strong> Werther: “Werther chora com freqüência, muita freqüência e abundantemente.Em Werther, é o enamorado que chora ou é o romântico?” 9 .Diríamosque ambos, ou melhor: ele chora por ser romântico. Chora porque não8 COSTA, Jurandir Freire. Sem Frau<strong>de</strong> nem Favor: Estudos sobre o Amor Romântico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed.Rocco, 1999. p. 212.9 BARTHES, Roland. Fragmentos <strong>de</strong> um Discurso Amoroso. Elogio das lágrimas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FranciscoAlves, 1981. p. 41.265


Letícia Malardconsegue romper a dicotomia “moral versus prazer”, cujo limite é o suicídio. Sóque o ameaçado suicídio <strong>de</strong> Estêvão é uma caricatura do concretizado suicídio<strong>de</strong> Werther, pois o objetivo <strong>de</strong> Machado é <strong>de</strong>sconstruir pela ironia o velho romantismo.Registrem-se as primeiras linhas <strong>de</strong> A Mão e a Luva, num diálogo entreEstêvão e Luís, iniciado por este último, a propósito do rompimento entreEstêvão e Guiomar:“ – Mas que preten<strong>de</strong>s fazer agora?– Morrer.– Morrer? Que idéia. Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tãopouco...” 10É claro que, se a essa altura apelarmos para questões freudianas, <strong>de</strong> sobreposições<strong>de</strong> prazer e sofrimento, ou lacanianas, como a noção <strong>de</strong> “gozo” – outroserá o caminho da análise. Mas não é o caso. Nessa primeira fase do amor <strong>de</strong>Estêvão, o Werther machadiano, interessa sobretudo sua pusilanimida<strong>de</strong> antinarcísica,reforçada numa troca simbólica: ele dá a Guiomar um gran<strong>de</strong> amor,ela lhe retribui com uma flor murcha: a flor que ele pe<strong>de</strong> à amada retirar doscabelos, pois ela certamente iria jogá-la fora. Estêvão, em vez <strong>de</strong> lhe pedir “asua flor”, símbolo do sexo não interdito apenas mediante a aliança matrimonial,“o prazer”, lhe pe<strong>de</strong> o <strong>de</strong>notativo enfeite fanado, contentando-se com o quehá <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>scartável na namorada:“O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura,mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.– Faz-me um favor? disse um dia Estêvão apontando para a flor que ela trazianos cabelos: esta flor está murcha, e, naturalmente, vai <strong>de</strong>itá-la fora ao<strong>de</strong>spentear-se; eu <strong>de</strong>sejava que ma <strong>de</strong>sse.10 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva. Rio <strong>de</strong> Janeiro-São Paulo-Porto Alegre: W. M. Jackson,1944. p. 11.266


O amor masculino em A Mão e a LuvaGuiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e <strong>de</strong>u-lha; Estêvão recebeu-a comigual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu.” 11Por outro lado, encerrando essa primeira fase amorosa, a diminuição doamor <strong>de</strong> Estêvão correspon<strong>de</strong> ao viés irônico machadiano quanto ao Romantismo.Aqui Machado, que criticara o realismo e/ou o naturalismo no ano anterior,também critica aquela “escola” em que foi educado, a preferida peloscontemporâneos, conforme vimos. O escritor mostra como o moço “nascerapara amar”, mas a paixão termina em um mês. Dois anos <strong>de</strong>pois, nada maissente por Guiomar e passa a <strong>de</strong>dicar-se à cantora lírica Mlle. Lagrua. Em seucoração, substitui a moça <strong>de</strong> “magnífico par <strong>de</strong> olhos castanhos” pela cantora<strong>de</strong> famoso buço, que um cartunista elevava “à categoria <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong>”.Não pensem os <strong>de</strong>savisados que estamos lendo uma comédia ou a pintura<strong>de</strong> um caráter heterossexual resvalando para o homossexualismo. Não. Aindamais porque a artista era uma musa canora da juventu<strong>de</strong> da Corte. Estamos édiante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sconstrução irônica do Romantismo: “Oh! Aquele buço! [...]Quem me <strong>de</strong>ra ir encaracolado por ali acima, até ficar mais próximo do céu,quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ela, que me não <strong>de</strong>scobre na turbainumerável dos seus admiradores.” 13Nesse momento o livro “se apropria” do primeiro capítulo <strong>de</strong> um ícone doRomantismo – O Moço Loiro, <strong>de</strong> Macedo. Este, ambientado no Rio nove anosantes <strong>de</strong> A Mão e a Luva, inicia-se com as manifestações e disputas entusiásticasentre os homens a respeito das qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos das atrizes do teatro lírico.Os embates ultrapassavam as portas do teatro para ganhar as ruas. Ummoço acompanha a sege da Candiani até à casa <strong>de</strong>la e beija-lhe a soleira da porta.Outro passa a noite com o nariz no buraco da fechadura da porta da Delmastro,e comenta: “Não dormi; porém, ao menos, com o meu nariz metido nafechadura daquela porta, respirei por força alguma molécula <strong>de</strong> ar que já tivessesido respirada por aquela Musa do Parnaso.” 13 26711 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva. Op. cit., p. 16.12 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva.Op. cit., p. 28.13 MACEDO, Joaquim Manuel <strong>de</strong>. O Moço Loiro, 2 v. Rio <strong>de</strong> Janeiro-Paris: L. Garnier, 1927. p. 17.


Letícia MalardContudo há uma diferença <strong>de</strong> postura entre as duas narrativas: em Macedo,as atitu<strong>de</strong>s dos adoradores das cantoras têm um tom <strong>de</strong> comédia e integram aação romanesca; em Machado, assumem um ar crítico <strong>de</strong> algo démodé, <strong>de</strong> idéiafora do lugar – epopéia grega encenada no Rio <strong>de</strong> Janeiro transformado emTróia: “Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo chartonista,com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. [...] Estêvão é umadas relíquias daquela Tróia.” 14 Concluindo essa primeira fase: Estêvão vivepaixões fogo-<strong>de</strong>-palha, sem fortuna e mantém-se da advocacia.Na segunda fase, o moço reencontra Guiomar. Dela dirá, tal como Bentinho26 anos <strong>de</strong>pois a respeito <strong>de</strong> Capitu: “A Guiomar que ele conhecera eamara era o embrião da Guiomar <strong>de</strong> hoje, o esboço do painel agora perfeito.” 15Vai amá-la <strong>de</strong> novo – como se fosse possível amar duas vezes a mesma pessoa– tentando recuperar o passado, pois “havia uma faísca <strong>de</strong>baixo da cinza e essabastava para repetir o incêndio”. A tentativa é similar à <strong>de</strong> Bentinho, porémcom as cores românticas: este ama Capitu antes e <strong>de</strong>pois do seminário. O “seminário”<strong>de</strong> Estêvão é a Escola <strong>de</strong> Direito, em que, opondo-se ao seminário,todas as “<strong>de</strong>vassidões” eram permitidas.No entanto, nessa volta, Guiomar confirma a antiga rejeição. Mas ele a ama,e isso basta. É feliz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que possa vê-la e respirar o mesmo ar que ela. Retoma-se,<strong>de</strong>ssa forma, o mo<strong>de</strong>lo wertheriano: amor repelido é amor multiplicado,diz Machado em uma das histórias <strong>de</strong> Contos Fluminenses. É próprio do covar<strong>de</strong>iludir-se. O moço confessa sua paixão e é novamente repelido. Retorna àidéia inicial do suicídio. Com essa idéia, na noite do casamento, posta-se àfrente da casa festiva <strong>de</strong> Guiomar e sente “a voluptuosida<strong>de</strong> da dor”. Pensa emmatar-se ali mesmo para causar remorsos aos que o fizeram sofrer (leia-se “osnubentes”). Assim Machado complementa criticamente os ingredientes dapersonagem do wertherianismo extemporâneo: o complexo <strong>de</strong> suicídio – simultaneamentenobreza e escárnio – como diria Barthes. 1614 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva.Op. cit., pp. 26-27.15 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva.Op. cit., p. 45.16 BARTHES, Roland. Fragmentos <strong>de</strong> um Discurso Amoroso. Idéias <strong>de</strong> suicídio. Op. cit., p. 185.268


O amor masculino em A Mão e a Luva O amor realista <strong>de</strong> LuísLuís é o porta-voz da séria filosofia da <strong>de</strong>sromantização. Diz a Estêvão:“Dás-me uma lição <strong>de</strong> amor, que eu te pagarei com uma filosofia.” Essa fala secoaduna com a “inculcação social e apostólica” que Machado enxergou noRealismo, ao criticar a tese <strong>de</strong> O Primo Basílio. Afinal, filosofar para o Outronão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um apostolado. Luís brinca com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morrer do amigo.Assim <strong>de</strong>fine o amor: “[...] uma carta, mais ou menos longa, escrita em papelvelino, corte-dourado, muito cheiroso e catita; carta <strong>de</strong> parabéns quando se lê,carta <strong>de</strong> pêsames quando se acabou <strong>de</strong> ler.” 17 Diz também que, se Guiomarnão tinha amado Estêvão antes, não o amaria agora, em sua recaída, e que nãonasceram um para o outro. Repete-se o argumento fundador da <strong>de</strong>sarmoniaexplicitado em Ressurreição. Luís propõe saber se Estêvão é amado e, caso não oseja, pergunta se <strong>de</strong>sistiria da moça.Ora, o veículo por excelência da <strong>de</strong>claração amorosa nas práticas sociais doséculo XIX é a carta. Ao Luís criador da metáfora do amor como carta <strong>de</strong> parabénsno início e pêsames no fim aplica-se este comentário <strong>de</strong> Jurandir Costa,pouco importa se se referindo ou não ao Realismo epocal: “Os realistas, ao subestimaras paixões do amor, acabam por reduzir a emoção amorosa a seu aspectoracional e minimizam o valor dos sentimentos e sensações na prática social dalinguagem.” 18 Luís representa o racional, o econômico não sugerido nem adivinhado,o realista, enfim: o logos da tese machadiana.Ele também disputa o coração <strong>de</strong> Guiomar e, já em sua primeira <strong>de</strong>claração,assoma o <strong>de</strong>sconcerto romântico: ela é oral e direta: “A senhora tem uma almagran<strong>de</strong> e nobre e eu a admiro”. É mais que um cumprimento e menos que uma<strong>de</strong>claração, não comovida, mas firme e profundamente convicta, avaliará onarrador. Mais adiante Luís adota uma postura diferente do sentimentalismo<strong>de</strong> Estêvão e da elegância <strong>de</strong> Jorge, através <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>claração simples: “Eu aamo.” Acrescenta que a <strong>de</strong>claração foi breve e apressada, mas não o será a consagração,e pe<strong>de</strong> tempo para que ela o julgue digno (do seu amor).17 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva. Op. cit., p. 20.18 COSTA, Jurandir Freire. Sem Frau<strong>de</strong> nem Favor: Estudos sobre o Amor Romântico. Op. cit., p. 175.269


Letícia MalardA economia <strong>de</strong>claratória <strong>de</strong> Luís está no bojo da incerteza dos signos <strong>de</strong> quenos fala Barthes, evocando Gi<strong>de</strong>. Os signos não provam nada, pois po<strong>de</strong>m serfalsos ou ambíguos e, assim, não se <strong>de</strong>ve acreditar na interpretação. Quando sefala à pessoa amada, não se tem dúvida <strong>de</strong> que ela vai receber como verda<strong>de</strong>,como real, o que é dito. Daí a importância das <strong>de</strong>clarações (curtas): nada ficapara ser sugerido, adivinhado. Para que se saiba alguma coisa, é necessário quea <strong>de</strong>claração seja dita (e não escrita, não carta). 19Assim, Luís navega em um realismo platônico, pois sabe reger as afeições,mo<strong>de</strong>rá-las e guiá-las ao seu próprio interesse. Declara o narrador que o moçonão era corrupto nem perverso, não era <strong>de</strong>dicado nem cavalheiresco. Tal comoGuiomar, era ambicioso e, portanto, se conjugam na harmonia. A moça o avalia<strong>de</strong> forma espelhada: sóbrio, direto, resoluto, sem <strong>de</strong>sfalecimentos nem <strong>de</strong>masiasociosas, nascera para vencer, sua ambição e coração têm asas. Dessemodo, o amor filosófico com que Luís paga Estêvão é platônico, pelo aspectoda boa medida; cartesiano, por ser guiado pela razão; não escrito mas verbalizado,pela <strong>de</strong>negação valorativa da tagarelice errática dos signos (da carta / daconversa <strong>de</strong> amor exuberantemente romântica) e pela <strong>de</strong>scrença na interpretação.Enfim: anti-romântico e realista. O amor naturalista <strong>de</strong> JorgeSabe-se que o moço ama Guiomar ao respon<strong>de</strong>r a uma pergunta da sua tiabaronesa, que a cria. Pe<strong>de</strong>-a em casamento por sugestão <strong>de</strong> terceiros. As iniciativasnão são <strong>de</strong>le. Analisa com distanciamento e frieza os fatos. Interesseiro,pensa na instituição familiar baseada na riqueza. Impressiona-se pela beleza e élúbrico, olhando a moça com vaida<strong>de</strong> e cobiça. Declara-se por uma carta quase“científica”, <strong>de</strong> três parágrafos, ao passo que Estêvão o faz numa missiva longa,lacrimosa e patética, e Luís prefere oralizar o “eu a amo”, curto e grosso,pois está consciente <strong>de</strong> que nenhum sistema <strong>de</strong> signos é seguro.19 Cf. BARTHES, Roland. Fragmentos <strong>de</strong> um Discurso Amoroso. A incerteza dos signos. Op. cit., p. 179.270


O amor masculino em A Mão e a LuvaA escrita amorosa <strong>de</strong> Jorge é sexualizada; diversa, portanto, do discurso dosoutros preten<strong>de</strong>ntes. Fala da “doce embriaguez” que os olhos da amada produzemnos seus; que se lhe <strong>de</strong>clara não com a pena e os lábios, mas a mandado<strong>de</strong> uma força interior (leia-se “instintiva”), “como transborda o rio, como se<strong>de</strong>rrama a luz”. Expressa os seus sentimentos com “todas as forças vivas” <strong>de</strong>sua existência. Naturalismo discreto, à moda machadiana, e natureza romantizadanela se entrecruzam. A própria Guiomar não i<strong>de</strong>ntifica sinal <strong>de</strong> paixão nacarta, consi<strong>de</strong>ra ridículo o amor assim expressado, num estilo “rendilhado ecomplicado” – sintoma <strong>de</strong> um amor <strong>de</strong>sarmonioso, portanto. Nem é compreensívela avaliação <strong>de</strong> Guiomar sobre o estilo da carta, que não se tece <strong>de</strong> rendasnem <strong>de</strong> complicações.Ao tomar conhecimento <strong>de</strong> que o eleito por Guiomar tinha sido Luís, ogolpe foi leve e indiferente para Jorge. Pon<strong>de</strong>ra a <strong>de</strong>rrota pelo lado financeiro,uma vez que “possuir era seu único ofício”. Sobrinho da baronesa, quando refletesobre uma provável aceitação <strong>de</strong> Guiomar, a filha postiça, raciocina: “ [avitória] não consistia só em haver por esposa uma moça bela e querida, masainda em tornar muito mais sumárias as partilhas do que a baronesa <strong>de</strong>ixariapor sua morte a ambos.” 20 O casamento por interesse <strong>de</strong>savergonhadamenteexplicitado e <strong>de</strong>sejante da morte da tia <strong>de</strong> quem é her<strong>de</strong>iro se revela como umapatologia social do naturalismo, pouco menos grave do que o incesto e outrasbestialida<strong>de</strong>s.O amor <strong>de</strong> Jorge é tão medido quanto os gestos e tão superficial como assuas outras impressões. Ele simboliza o <strong>de</strong>svirtuamento do amor e do casamentoromântico, pois é financeiramente comprometido, capitalista e capitalizante,muito <strong>de</strong> acordo com o ambiente que o livro retrata. Jorge é carnal,imediatista e frio.Machado sintetiza com precisão esses três discursos amorosos – o romântico,o pré-naturalista e o realista – ao comparar o amor <strong>de</strong> Luís, o escolhidopor Guiomar, com o dos outros preten<strong>de</strong>ntes: “[...] amor um pouco sossega-20 ASSIS, Machado <strong>de</strong>. A Mão e a Luva. Op. cit. p. 176.271


Letícia Malarddo, não louco e cego como o <strong>de</strong> Estêvão, não pueril e lascivo, como o <strong>de</strong> Jorge,um meio-termo entre um e outro – como podia havê-lo no coração <strong>de</strong> umambicioso.” 21 Guiomar e os três amoresEstêvão oferecera-lhe a vida sentimental. Entretanto, não sendo ela uma heroínatipicamente romântica, mas a que conseguiu ascensão social, <strong>de</strong> modocalculista, não lhe interessa o amor marcado pela loucura e pela cegueira, comointeressaria, por exemplo, à romântica Honorina – protagonista <strong>de</strong> O Moço Loiro.Jorge disponibilizara-lhe a vida vegetativa, na medida em que, rico, acomoda-seà lubricida<strong>de</strong> e à puerilida<strong>de</strong>. Também está à margem dos objetivos damoça. Luís, o escolhido, lhe <strong>de</strong>ra as afeições domésticas, ou seja, o casamentoburguês, combinadas com o ruído exterior – o mundo divertido da socieda<strong>de</strong>.O fim último do par Guiomar-Luís – o casamento – é <strong>de</strong>marcado rigorosamentenos termos da tese dualista “amor e harmonia”, “amor é harmonia”,tese que Machado <strong>de</strong>fendia em 1873. O casal não experimenta o amor-êxtase<strong>de</strong> Estêvão, amor romântico, nem o amor lascivo <strong>de</strong> Jorge, mas se ama sinceramente.E o que é o amor verda<strong>de</strong>iro? O amor da harmonia, da ambição, doméstico-social,enfim: realista, limitado às concepções machadianas <strong>de</strong> Realismo,expostas na mencionada crítica a Eça <strong>de</strong> Queirós, em fotografias censuradasdo real: cenas assépticas, esposas sem os “cálculos da sensualida<strong>de</strong> e os ímpetos<strong>de</strong> concubina”, tom <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> sensações físicas. É esse o amor / mão,que cabe na luva / mulher amada, harmonizada com o amante.21 Id., p. 157.272


<strong>Prosa</strong>Debuxos, <strong>de</strong> Machadopara GracilianoBenjamin Abdala JuniorEm ensaio anterior 1 , discutimos como Graciliano Ramosimprime ênfase social a procedimentos literários que provavelmenteencontrou na obra <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós. Entre outrosprocedimentos, <strong>de</strong>stacamos as diferenças do sentido do concretonos dois autores. No <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Paulo Honório, narrador <strong>de</strong> SãoBernardo 2 , Graciliano construiu imagens distorcidas, em função dorealismo crítico que pautou suas estratégias discursivas. Nestasanotações críticas, abordaremos suas apropriações dos “<strong>de</strong>buxos”que aparecem em Dom Casmurro 3 , <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, outro autorcuja obra serviu <strong>de</strong> repertório para o escritor alagoano. Serão<strong>de</strong>stacadas, sobretudo, configurações que procuram representar aslinhas tortuosas do ciúme, tema central dos dois romances. Bento1 De percursos e distâncias: entre dois finais <strong>de</strong> século. In: MOTTA, P.; SCARPELLI,M. F. Org. Belo Horizonte: FALE, 2001. pp. 35-50.2 27. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora Record, 1977.3 In: Machado <strong>de</strong> Assis: Obra Completa. V. 1. Rio <strong>de</strong> Janeiro. Editora José Aguilar, 1959.pp. 727-870.É professor titularda FFLCH da USP.Pesquisador 1A doCNPq, écoor<strong>de</strong>nador daárea <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> eLingüística emembro doConselhoTécnico-Científicoda CAPES.Publicou cerca <strong>de</strong>40 livros, entre osquais A EscritaNeo-Realista (1981);História Social daLiteratura Portuguesa(1984); Literatura,História e Política(1989); Literaturas <strong>de</strong>Língua Portuguesa:Marcos e Marcas –Portugal (2007).273


Benjamin Abdala JuniorSantiago (Bentinho) e Paulo Honório são personagens divididas e, da tensãoentre facetas <strong>de</strong> suas personalida<strong>de</strong>s, instauram-se ambigüida<strong>de</strong>s que distorcemas linhas da representação e imprimem-lhes complexida<strong>de</strong> Personas divididas, embutidasUma primeira questão que se coloca é da a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bentinho e PauloHonório. São i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s complexas, com atributos em constante interação.O rosto que se <strong>de</strong>senha <strong>de</strong>ssas personagens narradoras não é unívoco. O capítulo“O regresso”, <strong>de</strong> Dom Casmurro, po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> introdução para mostraressa ausência <strong>de</strong> univocida<strong>de</strong>. O leitor aí encontra explicitadas tensõesentre caracteres contraditórios <strong>de</strong> Bentinho, cujos traços aparecem no cursodo romance. De um lado, o narrador-personagem mostra-se com atributosdo campo sêmico predicado à paternida<strong>de</strong>. Sentia-se como um pai, feliz peloretorno a sua casa <strong>de</strong> Ezequiel, legalmente seu filho. De outro, continuava aexercer sua casmurrice, valendo-se <strong>de</strong>la para não dar asas à afetivida<strong>de</strong>, buscandotraços e gestos que questionassem sua paternida<strong>de</strong>. Logo que o filhoretornou a sua casa, após o <strong>de</strong>finitivo exílio imposto à mãe, o narrador assimregistra os fatos:“Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns <strong>de</strong>z ou quinze minutos na sala. Só<strong>de</strong>pois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo,falar-lhe da mãe. [...] Acabei <strong>de</strong> me vestir às pressas. Quando saí do quarto,tomei ares <strong>de</strong> pai, um pai entre manso e crespo, meta<strong>de</strong> Dom Casmurro. [...](Ezequiel) trajava à mo<strong>de</strong>rna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes(das <strong>de</strong> Escobar), mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio,o exato, o verda<strong>de</strong>iro Escobar. Era o meu comborço; era filho <strong>de</strong> seupai. Vestia <strong>de</strong> luto pela mãe (morte <strong>de</strong> Capitu); eu também estava <strong>de</strong> preto.[...] Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos <strong>de</strong>agra<strong>de</strong>cimento, é verda<strong>de</strong>; a princípio doeu que Ezequiel não fosse realmentemeu filho, que não me completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à274


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para Gracilianomãe, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que ele pareciahaver-me <strong>de</strong>ixado na véspera, evocava a meninice, cenas e palavras, a ida aocolégio...” 4Uma banda solidária, i<strong>de</strong>ntificada com uma abertura <strong>de</strong> quem se encontra <strong>de</strong>bem com a sociabilida<strong>de</strong> anterior e seu papel <strong>de</strong> pai, e outra – “meta<strong>de</strong> DomCasmurro” – solitária, soturna e fechada, que tudo procura circunscrever a limitespré-fixados, quando as ondas do ciúme têm extensões problemáticas. São essasfacetas que irão embalar essa persona na construção do romance <strong>de</strong> Machado<strong>de</strong> Assis, propiciando um jogo artístico que embaralha o ponto <strong>de</strong> vista casmurroda personagem narradora, que reduz aparências a convicções. As marcas editoriaisproblematizam, embutidas na personagem, a rigi<strong>de</strong>z dos ajuizamentos <strong>de</strong>Bentinho. Elas se expressam na voz <strong>de</strong>ssa personagem, num gesto correlato aoque ele divisa quando procura recuperar a imagem <strong>de</strong> Capitu:“O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava <strong>de</strong>ntro da <strong>de</strong>Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito <strong>de</strong> algum inci<strong>de</strong>nte.Jesus, filho <strong>de</strong> Sirac, se soubesse <strong>de</strong> meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, comoem seu cap. 9, vers. I: ‘Não tenhas ciúmes <strong>de</strong> tua mulher para que ela não semeta a enganar-te com a malícia que apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ti’. Mas eu creio que não, etu concordarás comigo: se te lembras bem da Capitu menina, hás <strong>de</strong> reconhecerque uma estava <strong>de</strong>ntro da outra, como a fruta <strong>de</strong>ntro da casca.” 5Este é o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Bentinho, não do narrador, que fica com o encaixeda citação do autor <strong>de</strong> O Eclesiástico. Uma inserção feita com humor, dirigidaao leitor-interlocutor, que provoca o efeito <strong>de</strong> relativização <strong>de</strong> facetas embutidasna personalida<strong>de</strong> casmurra: tudo é e não é, ao mesmo tempo, emergindoconjunturalmente manifestações <strong>de</strong> caracteres que se chocam com as “convic-4 p. 867.5 p. 870.275


Benjamin Abdala Juniorções” do narrador. Não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Capitu, mas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,on<strong>de</strong> afloram aspectos <strong>de</strong>ssa personalida<strong>de</strong>, como em Bentinho, “meta<strong>de</strong>Casmurro” (a meta<strong>de</strong> caracterizadora do narrador-personagem).Consciência <strong>de</strong> divisão correlata também ocorre com Paulo Honório, narrador<strong>de</strong> São Bernardo. Na perspectiva do Neo-Realismo, Graciliano procurouassociar sua criação literária ao mundo diretamente vivido pelo escritor.Assim, quando estava hospitalizado <strong>de</strong>vido a uma queda, Graciliano Ramos,com febre, sofreu um <strong>de</strong>lírio em que se via dividido entre uma parte do corposã e a outra doente:“[...] supunha-me dois, um são e o outro doente, e <strong>de</strong>sejava que o cirurgiãome dividisse, aproveitasse o lado esquerdo, bom, e enviasse o direito, ocorrompido, para o necrotério. [...] A parte direita não tinha nada comigo ese chamava Paulo. Está podre. Clemente Pereira (o cirurgião) po<strong>de</strong>ria facilmentesepará-la <strong>de</strong> mim, serrar-me pelo meio, <strong>de</strong>ixar o lado ruim no cemitério,<strong>de</strong>ixar o outro viver.” 6Na construção <strong>de</strong> seu romance, Graciliano não apenas não <strong>de</strong>scartou “cirurgicamente”a própria perna podre (politicamente <strong>de</strong> direita), mas, por extensão,fez o mesmo em relação à personagem central <strong>de</strong> seu romance. Atendo-seaos objetivos das múltiplas tendências do realismo literário, foi esse oseu “jeito estético” <strong>de</strong> diagnosticar problemas, para melhor “aplicá-las” navida social. Será, portanto, através da coexistência contraditória entre partessãs e doentes na mesma personagem que ele po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a “distorção” eos “tons borrados”, alguns <strong>de</strong>ntre os recursos mais recorrentes das vanguardaseuropéias, sobretudo do cubismo e do expressionismo.Superpõem-se então as vozes do problemático Paulo Honório escritor e doenciumado Paulo Honório fazen<strong>de</strong>iro, numa estratégia discursiva correlata à <strong>de</strong>6 RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: Confirmação Humana <strong>de</strong> uma Obra. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Record,1979. Pp. 71-75.276


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para GracilianoMachado <strong>de</strong> Assis. Bentinho, como personagem, não merece confiança. PauloHonório ganha-a ao curso da escrita <strong>de</strong> seu romance. Os dois terminam o relatosolitários: o primeiro submetido a um processo <strong>de</strong> distanciamento para atenuarou esquecer fatos relevantes <strong>de</strong> sua vida, que o levaria ironicamente, ao final dorelato, a escrever uma medíocre História dos Subúrbios. Dissocia a tensa pessoalida<strong>de</strong>do relato autobiográfico para a impessoalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um discurso histórico menosrelevante. Paulo Honório, ao tomar consciência da falta <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong> suavida, faz <strong>de</strong> seus caracteres psicossociais motivos <strong>de</strong> construção artística e se vêpessoalmente emparedado enquanto aponta horizontes para seu leitor.Se o registro ambíguo das perspectivas do narrador em Dom Casmurro in<strong>de</strong>finefronteiras na caracterização do adultério, no romance <strong>de</strong> Graciliano essasuperposição <strong>de</strong> perspectiva provoca distorções <strong>de</strong> imagens para revelar umarealida<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>nsa do ponto <strong>de</strong> vista psicossocial. Ao materializar-se em suaforte plasticida<strong>de</strong>, o intrincamento <strong>de</strong> diversas perspectivas para traçar o retrato<strong>de</strong> Paulo Honório e a monstruosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas mãos evocam mesmo o perspectivismo<strong>de</strong>slocado <strong>de</strong> Picasso e as <strong>de</strong>formações <strong>de</strong> Portinari, o qual ilustrouuma das obras <strong>de</strong> Graciliano: “Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo,lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um narizenorme, uma boca enorme, <strong>de</strong>dos enormes.” 7 Linhas revoltasMachado <strong>de</strong> Assis, em Dom Casmurro, vale-se <strong>de</strong> referentes privilegiados,como os da literatura e as artes, em especial as plásticas. O narrador procuraresgatar, então, fatos <strong>de</strong> sua vida, estabelecendo correspondência com obras artísticasque são referências para a cultura <strong>de</strong> seu tempo. Não obstante essas observações,na imagem central do romance, ao <strong>de</strong>senhar a personagem Capitucom “olhos <strong>de</strong> cigana oblíqua e dissimulada” – expressão do agregado JoséDias –, o narrador não se restringe a esse juízo. Ao procurar enten<strong>de</strong>r e aferir a7 P. 247.277


Benjamin Abdala Juniorveracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses traços, observando mais profundamente os olhos da amada,Bentinho acaba por eliminar mediações. Desarmado, com uma visão não aparelhada,sente medo, ante uma visão <strong>de</strong> linhas revoltas, sem a tranqüilida<strong>de</strong> dasrepresentações estabelecidas. Qualifica então como “olhos <strong>de</strong> ressaca” a porta<strong>de</strong> entrada do universo <strong>de</strong> sua amada:“Não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para<strong>de</strong>ntro, como a vaga que se retira da praia, nos dias <strong>de</strong> ressaca. Para não serarrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aoscabelos espalhados pelos ombros; mas tão <strong>de</strong>pressa buscava as pupilas, aonda que saía <strong>de</strong>las vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me,puxar-me e tragar-me.” 8Nessas águas, a i<strong>de</strong>ologia preconceituosa do ex-seminarista não permite omergulho. Como diz o narrador do romance, por toda parte ele ouvia latim e aEscritura. São limites discursivos que se associam simbolicamente ao fato <strong>de</strong>que a personagem não sabia nadar. Para Bentinho, qualquer mergulho seria enfrentara perigosa ressaca que divisa nos olhos <strong>de</strong> Capitu. Escobar, ao contrário,era exímio nadador, e corajoso como Capitu. Foram eles seus gran<strong>de</strong>s amigos,pois Bentinho procurava na amada e no amigo o que lhe faltava. Sua facesolidária, a comunhão da amiza<strong>de</strong>. Sem se projetar nos olhos da amada, eleacabou simbolicamente sendo envolvido pela ressaca, cujas linhas <strong>de</strong> força acabarampor representar também o seu ciúme, tendo em conta o mesmo objeto –Capitu. Vale indicar neste ponto, com risco <strong>de</strong> anacronismo, o título da peçado teatro social <strong>de</strong> Ferreira Gullar e Oduvaldo Viana Filho: “Se correr o bichopega, se ficar o bicho come”. Ao final, valendo-se <strong>de</strong> metáforas marítimas,Bentinho via-se como um náufrago, embora “fosse um homem da terra, contoaquela parte da minha vida como um marujo contaria o seu naufágio.” 98 P. 763.9 P. 857.278


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para GracilianoNo <strong>de</strong>buxo <strong>de</strong> Machado, a ressaca funciona como décor representativo dosestados psicológicos do narrador, mas não só: aponta também para uma misteriosaonda que envolve os mundos físico e do espírito. Ao <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> Sancha,mulher <strong>de</strong> Escobar, após receber insinuantes olhares e um <strong>de</strong>morado aperto<strong>de</strong> mãos, em que “a mão <strong>de</strong>la apertou muito a minha”, Bentinho sentiu “umfluido particular que me correu todo o corpo (...) foi um instante <strong>de</strong> vertigem e<strong>de</strong> pecado. Passou <strong>de</strong>pressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio aoouvido, trabalhavam só os minutos da virtu<strong>de</strong> e da razão”. 10Bentinho conseguiu equilibrar-se internamente, embora no exterior o marestivesse bravio, cheio <strong>de</strong> paixões, não afeito à or<strong>de</strong>nação do tempo. Ao contrário<strong>de</strong> Paulo Honório, o narrador <strong>de</strong> Dom Casmurro não tem plena consciênciado sentido das situações narrativas que constrói. A informação sobre a ressacaveio através <strong>de</strong> José Dias. Interiormente, procurava afastar-se <strong>de</strong>ssas “abominações”ou “alucinações”, sob mediação dos discursos religiosos. Serve-lhetambém <strong>de</strong> motivo o retrato <strong>de</strong> Escobar, <strong>de</strong>dicado ao “querido amigo”. Bentinhoemoldurou o retrato, investindo-o <strong>de</strong> valor simbólico.Para além das circunscrições das molduras, estabelece-se uma correspondênciaentre a ressaca que vem do mar e a simbolização dos olhos <strong>de</strong> Capitu.Talvez uma perspectiva monística, à maneira das tendências finisseculares, queestabeleciam uma mesma natureza entre fatos psicológicos (espirituais) e naturais.E – enquanto tais – os “fluidos convulsivos” da ressaca vão agir nessesdois planos. Atingirão fisicamente Escobar, que não tem força suficiente paraenfrentar as ondas bravias, mesmo sendo um exímio nadador, e também o narrador,que não tem discernimento para enfrentar as linhas igualmente convulsas<strong>de</strong> seu ciúme. O primeiro morre e o segundo torna-se obsessivo, embaralhando-seem linhas <strong>de</strong>senhadas em sua subjetivida<strong>de</strong>, já que era incapaz <strong>de</strong> situá-lasem um contexto mais amplo.No <strong>de</strong>buxo <strong>de</strong> Machado, as ondas revoltas da ressaca, ao fundirem o psicológicoe a natureza, não permitem a representação da or<strong>de</strong>m do “relógio ao ou-10 P. 848.279


Benjamin Abdala Juniorvido”, on<strong>de</strong> “trabalhavam só os minutos da virtu<strong>de</strong> e da razão”. O mergulhoimpõe, inclusive, formas <strong>de</strong> práxis que não seriam afins das predicações <strong>de</strong>ssapersonagem. Tê-las seria relevar caracteres que colocariam a personagemcomo atípica <strong>de</strong> seu tempo. Machado não chega a tanto, apenas <strong>de</strong>senha asambigüida<strong>de</strong>s do ciúme, com humor ou mesmo certa ironia – o que <strong>de</strong> certaforma atenua a tragédia que envolve o grupo <strong>de</strong> amigos. Molduras e enquadramentosOs ciúmes <strong>de</strong> Paulo Honório <strong>de</strong>vem ser situados noutro plano, pois têmsentido psicossocial e segue a práxis da personagem, entendida em sentidomarxista. A sobreposição <strong>de</strong> perspectiva assinalada entre o narrador-escritor eo narrador-personagem <strong>de</strong>finem traços <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senho, embora os caracteresrevelem pela distorção, confome foi indicado anteriormente. Assim, o leitortoma conhecimento <strong>de</strong> que Paulo Honório conheceu Madalena, uma professorinhada escola primária, e, embora não o admita, apaixonou-se por ela.Emergiram então, aos poucos, novos traços psicológicos <strong>de</strong> Paulo Honório.Madalena, franzina e <strong>de</strong>licada, possuía atributos físicos totalmente opostosaos que imaginava para sua mulher (uma fêmea pari<strong>de</strong>ira). O casamento é tratadocom estratégia equivalente à da aquisição da fazenda. Madalena não gostava<strong>de</strong> Paulo Honório, mas aceita casar-se para, segundo ela, proteger D. Glória,a tia que a criara. Declara que não o amava, e Paulo Honório consi<strong>de</strong>ra estaatitu<strong>de</strong> digna, contando submetê-la <strong>de</strong>pois do casamento. Tratava-se <strong>de</strong> umnovo negócio realizado apenas na aparência, pois Paulo Honório efetivamentegostava <strong>de</strong> Madalena: “De repente conheci que estava querendo bem à pequena.Precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me,com os diabos”. 11Entretanto, diferentemente do controle que mantém sobre os subalternos, elenão consegue enquadrar Madalena. Ela não cabe em molduras simbólicas, comopretendia igualmente Bentinho, restrito a papéis sociais <strong>de</strong>limitados. Paulo Ho-11 P. 67.280


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para Gracilianonório começa, então, a sentir ciúmes... Como Bentinho, as ondas dos ciúmesatravessam fronteiras <strong>de</strong> tudo o que possa estar ligado ao conhecimento, seja doconhecimento mais empírico ao mais abstrato, cujas pinceladas vêm através donarrador-escritor. Somente mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r Madalena, é que PauloHonório obtém o distanciamento necessário para reconhecer os méritos da mulher:“Conheci que Madalena era boa em <strong>de</strong>masia, mas não conheci tudo <strong>de</strong> umavez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foiminha, ou antes, a culpa foi <strong>de</strong>sta vida agreste, que me <strong>de</strong>u uma alma agreste.” 12Madalena, ao não se encaixar no papel submisso, emoldurado e <strong>de</strong>corativoque lhe quer impingir o marido, luta para expressar seus valores e seus i<strong>de</strong>ais.Participa das ativida<strong>de</strong>s do marido, sem contudo <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r suas posiçõespessoais, discutindo política, examinando a contabilida<strong>de</strong> da fazenda einterce<strong>de</strong>ndo pelos trabalhadores. São atitu<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>riam ser entendidascomo benéficas (assistencialismo) e reuniriam condições <strong>de</strong> apresentar, a longoprazo, divi<strong>de</strong>ndos políticos e para os negócios do marido. Paulo Honóriointerpreta-as como liberda<strong>de</strong> inadmissível para uma “esposa”. Além disso, elenão lhe aceita a vida intelectual, sobretudo por ela dominar um campo <strong>de</strong> conhecimentoque ele <strong>de</strong>sconhece. Interessante <strong>de</strong>stacar que a falta <strong>de</strong> domíniodas palavras (os “palavrões”, no entendimento do narrador, isto é, conceitosque ele não entendia) faz com que ele as interprete como essências misteriosas(e <strong>de</strong>certo “safadas”, na distorção provocada por seu ciúme) e a competênciaintelectual da mulher como uma ameaça, justamente em face <strong>de</strong> sua incompetêncianesse ramo. Fica claro que, além <strong>de</strong> se sentir intelectualmente inferior,Paulo Honório, como um bom “coronel” nor<strong>de</strong>stino, mostra-se preconceituosoe machista diante da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias da “professora” Madalena, umexemplo ameaçador aos maridos:“As moças apren<strong>de</strong>m muito na escola normal. Não gosto <strong>de</strong> mulheressabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto algumas que12 P. 100.281


Benjamin Abdala Juniorrecitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido oucoisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinascerradas, dizem:– Me auxilia, meu bem.Nunca me disseram isso, mas disseram ao Nogueira. Imagino. Aparecemnas cida<strong>de</strong>s do interior, sorrindo, ven<strong>de</strong>ndo folhetos, discursos, etc. Provavelmenteempestaram as capitais. Horríveis.” 13Madalena tenta resistir à opressão, e seu suicídio não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma forma<strong>de</strong> preservar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Até à altura da história que prece<strong>de</strong> o suicídio<strong>de</strong> sua mulher, Paulo Honório não aceita a diferença dos outros. Como Madalenase opõe à perspectiva do fazen<strong>de</strong>iro, ele não consegue, <strong>de</strong> forma efetiva,impor-lhe os valores quantitativos, como fizera com outras personagens. Sãoexemplos, nesse sentido, <strong>de</strong> um lado, o acordo estabelecido com o esperto einescrupuloso advogado João Nogueira, que lhe custava quatro contos e oitocentosmil-réis por ano; ou, do outro, sua disposição <strong>de</strong> pagar a afetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vidaà velha Margarida, que o criara e que lhe “custa <strong>de</strong>z mil-réis por semana,quantia suficiente para compensar o bocado que me <strong>de</strong>u”. 14No fundo, o suicídio <strong>de</strong> Madalena <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia, na economia da narrativa, alatência <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo Honório e contribui para revelar o problemáticoescritor embutido nessa persona. Não é uma fruta <strong>de</strong>ntro da casca, esperandoum momento <strong>de</strong> emergir, como registra o narrador <strong>de</strong> Dom Casmurro. Ao contráriodo fazen<strong>de</strong>iro com quem se casou, a professora primária procurava viver autenticamente,sem se <strong>de</strong>ixar alienar. Seu casamento, visto ter-se firmado sob aforma <strong>de</strong> um contrato, po<strong>de</strong> ser entendido como um pacto <strong>de</strong> alienação. Há nessegesto um pressuposto implícito <strong>de</strong> perda consensual da liberda<strong>de</strong> feminina.Se forem relacionadas essas observações com as atuais discussões sobre sexoe etnia, é curiosa a observação <strong>de</strong> Paulo Honório, num <strong>de</strong> seus acessos <strong>de</strong> ciú-13 P. 87.14 Pp. 12-13.282


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para Gracilianome, <strong>de</strong> que Madalena seria “uma mulher <strong>de</strong> escola Normal ” . 15 A educação era,no contexto representado pelo romance São Bernardo, uma das raras formas socialmenteaceitas <strong>de</strong> libertação da mulher. Nem isso, entretanto, o mandonismoe os preconceitos <strong>de</strong> Paulo Honório reconhecem. Os tempos eram outros,mas ele se situa como um homem do século XIX e sob esse aspecto se aproxima<strong>de</strong> Bentinho. Não é por acaso que acaba só, como a personagem <strong>de</strong> Machado,embora sua vida interior revele o surgimento <strong>de</strong> novos tempos. A solidão e,mais, os conflitos humanos, para Machado, procuram referenciais mais amplos,presentes nas obras <strong>de</strong> arte.Em vista <strong>de</strong> Paulo Honório não aceitar a diferença <strong>de</strong> Madalena, estabelece-seentre os dois a tensão que resulta na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convivência. Ofato <strong>de</strong> Madalena ter opinião própria e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r suas posições com argumentosque escapam à compreensão do narrador leva-o a se sentir inferiorizado.Sua reação é negativa e se expressa com <strong>de</strong>sprezo e falso <strong>de</strong>sdém. Como o vocabulárioda mulher não faz parte do repertório lingüístico <strong>de</strong> Paulo Honório,este o toma como signos <strong>de</strong>liberadamente cifrados para encobrir um presumíveladultério.Não se po<strong>de</strong> esquecer que, da mesma forma que Capitu, Madalena foi construídapor um narrador problemático, que só a posteriori conseguiu enten<strong>de</strong>r osentido das opções da mulher. É o problemático narrador-escritor que registra:“Com efeito, se me escapa o retrato moral <strong>de</strong> minha mulher, para que serveesta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.” 16 A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>aproximação também se manifesta, como já se comentou, em relação ao códigolingüístico: “Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavraseram apenas palavras, reprodução imperfeita dos fatos exteriores, e as <strong>de</strong>latinham alguma coisa que não consigo exprimir.” 17Bentinho também tinha dificulda<strong>de</strong>s, apesar <strong>de</strong> suas “convicções”. Após amorte <strong>de</strong> Capitu se isolou ainda mais, mas não transformou sua experiência em15 P. 126.16 P. 92.17 P. 92.283


Benjamin Abdala Juniorsabedoria. Continuou a emoldurar simbolicamente seus <strong>de</strong>buxos. Para Madalena,a moldura seria uma forma <strong>de</strong> alienação, um retrocesso irreparável com aperda do livre-arbítrio, conquistado a duras penas. Seu casamento não permitea diferença individual, mascarando uma guerra surda entre os cônjuges.São paradoxalmente os atributos humanos <strong>de</strong> Madalena que, ao diferenciá-lados bichos atrelados ao curral do marido, acabam, ainda que involuntariamente,provocando a emergência do outro Paulo Honório. Esse “outro” játranspôs as próprias cercas da proprieda<strong>de</strong>, que o colocavam apenas como umseu agente, sem vida própria, embora ele não o reconheça. No momento emque o fazen<strong>de</strong>iro escritor redige seu romance, acha-se entre duas faces: a atual,do momento em que escreve, e a outra, construída por sua mitologia pessoal.Trata-se, contudo, <strong>de</strong> uma interface problemática e cambiante. Arte e experiênciaMelancólico, ao final do romance Paulo Honório já não tem nenhuma certeza.Acredita que a escrita do livro não modificará em nada o que viveu. Não há,pois, o objetivo <strong>de</strong> ganho que movia suas ações. Na verda<strong>de</strong>, ele já mudou,eolivroque escreve é mostra disso. Os caracteres dominantes <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong> jánão são os mesmos, e as bases <strong>de</strong> sua subjetivida<strong>de</strong> o distanciam do primeiroPaulo Honório. A diferença entre o primeiro e segundo Paulo Honórioéaexperiência<strong>de</strong> vida, valorizada por Graciliano Ramos. Não foi uma experiência similar,vivida por Bentinho, capaz <strong>de</strong> transformá-lo, como ocorreu com o narrador<strong>de</strong> São Bernardo. As ondas do ciúme, como as da paixão, ultrapassam limitesestabelecidos. Ao final do romance, também solitário e melancólico como PauloHonório, ele continua a se submeter aos ritos estabelecidos, emoldurados pela“razão”. Não se imbui <strong>de</strong> sentido autocrítico e problematizador. Se o narrador<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis procura se equilibrar (encontrar a “razão”) na or<strong>de</strong>m dotempo do relógio, como já foi indicado, no fundo essa or<strong>de</strong>m não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> senti-latambém como cíclica, repetitiva, como sua obsessão.Foi anteriormente observado que Bentinho procurava em Capitu e emEscobar aquilo que lhe faltava: a coragem <strong>de</strong> entrar em ambientes <strong>de</strong> ressaca,284


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para Gracilianocujas linhas <strong>de</strong> força contrariam a disciplina da linearida<strong>de</strong> do tempo. Deslocapara o outro sua inclinação, seus sentimentos. Inclusive as motivações para ociúme. Interessa <strong>de</strong>stacar, sob esse aspecto, que Bentinho passou a sentir ciúmesquando projetou na esposa e no amigo a sensação <strong>de</strong> “vertigem e pecado”advinda dos olhares e aperto <strong>de</strong> mãos que o envolveu com Sancha, pouco antesda morte do amigo. No velório, passou a sentir ciúmes, quando visualizou osolhos <strong>de</strong> Capitu, como se fossem <strong>de</strong> ressaca, procurando tragar também o corpodo amigo morto. É a sua perspectiva e será a partir <strong>de</strong>sse ponto que começaráa costurar índices comprovadores <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista (“convicção”).Sua memória é seletiva, embora ele próprio aponte suas insuficiências. Não<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso o fato <strong>de</strong> que, embora tenha mandado sua mulher para oexílio, esta tenha <strong>de</strong>stacado sempre para o filho que o pai foi pessoa bondosa.Tais ambigüida<strong>de</strong>s o narrador-escritor atribui à arte e aos turbilhões <strong>de</strong> significaçãoque ela po<strong>de</strong> ensejar.Vale ler, nesse sentido, o capítulo “O barbeiro” e a fusão <strong>de</strong> traços entrevida e arte, <strong>de</strong> forma análoga ao que foi apontado anteriormente em relação àimagem da ressaca. Enquanto “cismava” sobre a possível traição <strong>de</strong> Capitu,Bentinho passou por um barbeiro que tocava uma rabeca. Ao se sentir observado,o barbeiro se entusiasmou e passou a tocar para Bentinho, sem se importarcom a perda <strong>de</strong> fregueses. Nada via, apenas a obra <strong>de</strong> arte. A mulher do barbeiroapareceu e agra<strong>de</strong>ceu ao narrador-espectador, com os olhos. Ao voltar paracasa, Bentinho observa:“Pobre barbeiro! Per<strong>de</strong>u duas barbas naquela noite, que eram o pão dodia seguinte, tudo para ser ouvido por um transeunte. Supõe agora que este,em vez <strong>de</strong> ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhea mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca, tocaria <strong>de</strong>sesperadamente.Divina arte!” 18 28518 P. 854.


Benjamin Abdala JuniorA música associa-se ao estado psicológico da personagem, assim como Bentinho,que naquele momento estava mergulhado numa “barafunda <strong>de</strong> idéias esensações” e procurava colocá-las numa “or<strong>de</strong>m lógica e <strong>de</strong>dutiva”. Para Machado,ela é insuficiente, e a memória, pautada pela banda casmurra <strong>de</strong> Bentinho,irá tomar como verda<strong>de</strong> o que po<strong>de</strong> ser apenas construção. Seleciona índicescomprovadores <strong>de</strong> suas “convicções”, tendo como tempo da enunciaçãoum distanciamento que lhe po<strong>de</strong>ria ensejar experiência. Capitu, Escobar e Ezequieljá estavam mortos. A personagem procura limitar-se à banda casmurra,mas há a outra, por on<strong>de</strong> entram as marcas autorais, para fazer do relato <strong>de</strong>Bentinho uma “divina arte”.Nesse sentido, convém remeter ao capítulo “Ciúmes do mar”, on<strong>de</strong> uma intrusãodo autor-editor perturba a lógica do simples observador <strong>de</strong> traços exterioresdo narrador-personagem. Bentinho sentia, então, ciúmes pela <strong>de</strong>satençãoda esposa que fixava o mar, mas reconhece os problemas <strong>de</strong> ilações superficiaispor parte do observador, da mesma forma que “um anônimo ou anônimaque passe na esquina da rua faz com que metamos Sírius <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> Marte, e tusabes, leitor, a diferença que há <strong>de</strong> um a outro na distância e no tamanho”. 19 Oobservador fixo não é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar essas diferenças, como aconteceucom o registro do Bentinho-personagem. A inserção vem mais do distanciamentodo narrador-escritor, <strong>de</strong> forma correlata ao que foi apontado nas observaçõessobre São Bernardo.Quando a perspectiva se <strong>de</strong>sloca para outras personagens, os pontos <strong>de</strong> vistasão outros. Bentinho só tinha convicções e não consegue explicitar elementosmais concretos para caracterizar a traição da esposa. Situacionalmente, éCapitu quem propõe a separação do casal. Personalida<strong>de</strong> forte, ela dá dimensãoaos ciúmes do marido. Intercala-se, nesse sentido, uma sua observação quetambém po<strong>de</strong> ser atribuída a Machado <strong>de</strong> Assis. Da mesma forma que o observadorpo<strong>de</strong> confundir Sírius como Vênus, embora sejam totalmente diferentes,com <strong>de</strong>sdém Capitu aponta: “Sei a razão disto: é a casualida<strong>de</strong> da seme-19 P. 832286


Debuxos, <strong>de</strong> Machado para Gracilianolhança... A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário,não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisso; não nos ficabem dizer mais nada.” 20A altivez <strong>de</strong> Capitu redireciona os predicados <strong>de</strong> dissimulação a ela atribuídos.Há em sua fala, não obstante, um toque <strong>de</strong> ironia relativamente às <strong>de</strong>duçõesaparentemente lógicas da personagem. O grupo <strong>de</strong> amigos formava umaunida<strong>de</strong>, e tanto Capitu quanto Escobar eram, para com ele, “tão extremososambos e tão queridos também”. Depois das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> engravidar, eis queCapitu aparece grávida. Bentinho estava mais <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> que ela engravidassedo que ela própria. Amigos “extremosos”? No exílio, <strong>de</strong>pois da separação, jáfoi indicado que Capitu não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> falar muito bem do ex-marido para ofilho. Consi<strong>de</strong>rava impossível conviver com seus ciúmes e casmurrices, circunstânciaque comunicou diretamente ao marido.No nascimento <strong>de</strong> Ezequiel estariam os “<strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> Deus”? Po<strong>de</strong>r-se-iaacrescentar com humor: afinal, o nome Ezequiel não significa “a força <strong>de</strong>Deus”? Ou, como preten<strong>de</strong> ainda Capitu, não haveria também aí uma “casualida<strong>de</strong>da semelhança”? As in<strong>de</strong>finições da enunciação não permitem buscar“razões”, pois na ambiência <strong>de</strong> ressaca as linhas se tornam revoltas. Deduções<strong>de</strong> um observador fixo em suas idéias, como Bentinho, não permitem aquilatarrelevos, dimensões. Nas águas revoltas do ciúme ele se escuda em pontos <strong>de</strong>vista fixos. Po<strong>de</strong> estabelecer como idênticos objetos distintos, tal como na visão<strong>de</strong> Sírius e Vênus.Em São Bernardo, esses relevos se configuram. A imagem dividida entreesquerda e direita <strong>de</strong> Paulo Honório tem correspondência com a práxis dapersonagem: ela mo<strong>de</strong>la seu rosto até à distorção, ao curso da narrativa.Interioriza seu discurso, buscando “razões” através da autocrítica. Os tempos<strong>de</strong> Graciliano eram outros – tempos dialéticos, motivados pela esperança,que levavam ao sonho <strong>de</strong> se encontrarem condições objetivas <strong>de</strong> sesuperarem carências.20 P. 862.287


Benjamin Abdala JuniorNa perspectiva <strong>de</strong> Bentinho, esses tempos circunscrevem-se à disciplina dorelógio, que no registro irônico <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis só po<strong>de</strong>ria levar a <strong>de</strong>duções<strong>de</strong> aparência, embora apontasse pretensas evidências. Bentinho, casmurro,tem convicções (palavras <strong>de</strong> Capitu), mas só diz as coisas pela meta<strong>de</strong>. Nofundo, eram tempos <strong>de</strong> ressaca, seja da perspectiva religiosa ou da positivista.E, noutro sentido, ressaca finissecular em relação a enredamentos passadiços,que tragavam os sujeitos. Uma experiência artística que não configurava, masapontava para <strong>de</strong>buxos impressionistas, correlação analógica que contribuíapara a in<strong>de</strong>finição dos traços da representação literária. Retratos emolduradoscomo o que tinha em sua casa e que lhe servia <strong>de</strong> referência seriam insuficientespara pintar o que observava em Escobar. Representações <strong>de</strong> situações consagradorasdo passado que pouco dizem às situações do presente. Fun<strong>de</strong>m-se,por outro lado, na imagem da ressaca, sentimento e ambiência natural, <strong>de</strong> maneiraa apontar para outras possibilida<strong>de</strong>s das artes e suas formas <strong>de</strong> representação,ultrapassando, assim, os enquadramentos das molduras.Referências bibliográficasABDALA JUNIOR, B. De percursos e distâncias: entre dois finais <strong>de</strong> século. In:MOTTA, Paulo; SCARPELLI, Marli Fantini. Orgs. Os Centenaries. Belo Horizonte:FALE, 2001. Pp. 35-50.ASSIS, Machado. Dom Casnurro. In: Machado <strong>de</strong> Assis: Obra Completa. V. 1. Rio <strong>de</strong> Janeiro.Editora José Aguilar, 1959. Pp. 727-870.RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: Confirmação Humana <strong>de</strong> uma Obra. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Editora Record, 1979. Pp. 71-75.RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 27. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Record, 1977.288


<strong>Prosa</strong>Narradores do ocaso damonarquia (Machado <strong>de</strong>Assis, cronista)Jefferson Cano, Sidney Chalhoub,Leonardo Affonso <strong>de</strong> MirandaPereira e Ana Flávia Cernic Ramos 1 1. À guisa <strong>de</strong> introduçãoA crônica mo<strong>de</strong>rna é um gênero narrativo que oferece dificulda<strong>de</strong>sespecíficas <strong>de</strong> interpretação, a maior parte <strong>de</strong>las ligada ao modoparticular pelo qual estabelece a interlocução com seu tempo e à insistência<strong>de</strong> parte da crítica em atribuir a ela a condição <strong>de</strong> gênero literárioinferior, ligeiro ou <strong>de</strong>spretensioso. Por isso mesmo é impor-1 Este texto resulta <strong>de</strong> longos anos <strong>de</strong> colaboração entre seus autores no trabalho <strong>de</strong>recolhimento <strong>de</strong> crônicas oitocentistas em periódicos <strong>de</strong> época e no esforço <strong>de</strong>interpretação <strong>de</strong>las. Mais recentemente, tal colaboração contou com o auxílio doCNPq, por meio do Projeto <strong>de</strong> Auxílio à Pesquisa no. 475224/2004-3 (EditalUniversal), sob o título <strong>de</strong> “As crônicas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis: história e literatura naimprensa do Brasil no século XIX”, trabalho coor<strong>de</strong>nado por Sidney Chalhoub.Toda a pesquisa foi realizada na UNICAMP, como parte das ativida<strong>de</strong>s do Centro<strong>de</strong> Pesquisa em História Social da Cultura (CECULT-IFCH/UNICAMP),utilizando-se da coleção <strong>de</strong> periódicos microfilmados adquiridos pelo Centro junto àBiblioteca Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro e doados ao acervo do Arquivo EdgardLeuenroth (IFCH/UNICAMP). Sidney Chalhoub agra<strong>de</strong>ce também o auxílio doCNPq por meio <strong>de</strong> bolsa <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> em pesquisa.Jefferson Cano e outrosNarradores do ocaso da monarquia289


Jefferson Cano e outrostante apresentar brevemente uma pauta <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> interpretação queprecisa ser enfrentada na análise da crônica oitocentista, em especial a machadiana,objeto específico <strong>de</strong>ste artigo.Em primeiro lugar, tais textos caracterizam-se por sua imersão nosacontecimentos da época, por incorporar como circunstância <strong>de</strong> escrita aexperiência da in<strong>de</strong>terminação da história vivida. Os narradores das séries<strong>de</strong> crônicas machadianas, construídos para comentar os fatos da semana,da quinzena, ou do mês que seja, registram freqüentemente a sua perplexida<strong>de</strong>diante do rumo dos acontecimentos ou <strong>de</strong> sua incerteza quanto aospossíveis <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong>les. Por conseguinte, o texto do cronista éexercício <strong>de</strong> intervenção no <strong>de</strong>vir, maneira <strong>de</strong> posicionar-se e quiçá influenciarno andamento dos diversos aspectos entrelaçados da realida<strong>de</strong> que elese empenha em enten<strong>de</strong>r e comentar. Ao fazer isto, cria também uma proximida<strong>de</strong>ou cumplicida<strong>de</strong> com o leitor, que é pressuposto e condição inerenteao protocolo narrativo da crônica: ambos, cronista e leitor, esforçam-separa interpretar o sentido do presente <strong>de</strong>les, para <strong>de</strong>svendar o significadodo processo histórico no qual estão inseridos. Já se vê que <strong>de</strong>ssa situação<strong>de</strong>corre uma penca <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> pesquisa obrigatórias aos historiadoresque se <strong>de</strong>bruçam sobre esses textos. Textos <strong>de</strong>claradamente afundadosna história à qual pertencem, o entendimento <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>de</strong> enraizá-los, por assim dizer, na interpretação das séries completasnas quais aparecem, na leitura <strong>de</strong> cada crônica como peça inteira nocontexto da série, na leitura do cronista específico em diálogo com outroscronistas, na visão do gênero crônica em sua interlocução com outros gênerosnarrativos, literários ou não, também presentes nos periódicos em pauta,e fora <strong>de</strong>les. Muita vez lidar com essas questões significa não somenteatentar na relação entre cada crônica particular e o seu entorno imediato –,isto é, as outras colunas do periódico em que foi publicada – mas tambémbuscar textos em outros periódicos nela referidos, localizar <strong>de</strong>bates parlamentarescitados, peças <strong>de</strong> legislação comentadas, obras políticas e literáriasmobilizadas pelo narrador. Enfim, é preciso ver o narrador como per-290


Narradores do ocaso da monarquiasonagem fictícia da história real, à qual remete sem cessar, atento às suas diversasdimensões. 2Em segundo lugar, e em <strong>de</strong>corrência direta da frase anterior, ver o narrador dacrônica como personagem fictícia da história real significa aceitar uma pauta específica <strong>de</strong>questões <strong>de</strong>stinadas a apurar o processo <strong>de</strong> construção literária do ponto <strong>de</strong> vistada narrativa. A narração nas crônicas machadianas ocorre sempre na primeirapessoa do singular, cabendo a assinatura <strong>de</strong>las a autores putativos que levam umavarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> apelidos: Gil, Manassés, Lélio, João das Regras e Malvólio, para ficarapenas nos pseudônimos das séries abordadas adiante. A conjunção da circunstânciada crônica como texto <strong>de</strong> observação do presente imediato, conforme explicitadono parágrafo anterior, com a escolha <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis–e<strong>de</strong>tantos outrosliteratos/cronistas à época – por conceber uma narrativa em primeira pessoa,mesmo que assinada por um autor ficcional, cria dificulda<strong>de</strong>s específicas na interpretação<strong>de</strong>sses escritos, pois po<strong>de</strong> ser gran<strong>de</strong> a tentação <strong>de</strong> atribuir diretamente aMachado o conteúdo político e i<strong>de</strong>ológico e as opções estilísticas <strong>de</strong> seu autor putativoou imaginário. Nesses textos, o ponto <strong>de</strong> partida analítico mais pru<strong>de</strong>nteparece ser a hipótese <strong>de</strong> que autor real e narrador-personagem permaneçam em relação<strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>, um não se reduz ao outro, e parte importante do exercício críticoconsiste exatamente em <strong>de</strong>svendar as relações que se estabelecem entre Machado<strong>de</strong> Assis e os autores ficcionais que inventa.A<strong>de</strong>mais, se é verda<strong>de</strong> que narrador ficcional <strong>de</strong> crônica não é narrador ficcional<strong>de</strong> romance – ou seja, Manassés ou Lélio, por exemplo, não são da mesmamassa histórico-literária que Brás Cubas ou Dom Casmurro –, o motivo distotem pouco a ver com a idéia <strong>de</strong> os narradores em primeira pessoa <strong>de</strong> um ou outrogênero narrativo serem naturalmente mais ou menos ventríloquos do próprio2 Para o conteúdo <strong>de</strong>ste parágrafo e do seguinte, ver Chalhoub, Sidney; Neves, Margarida <strong>de</strong> Souza; ePereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda, “Apresentação”, em História em Cousas Miúdas: Capítulos <strong>de</strong>História Social da Crônica no Brasil, Campinas, Editora da UNICAMP, 2005, pp. 9-20; e Chalhoub,Sidney, “John Gledson, leitor <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis”, ArtCultura, Uberlândia, volume 8, número 13,julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2006, pp. 109-115. Muito do que se diz aqui sobre história e literatura étambém apropriação particularizada <strong>de</strong> vários textos <strong>de</strong> Carlo Ginzburg, em especial talvez osreunidos em Relações <strong>de</strong> Força: História, Retórica, Prova, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 2000.291


Jefferson Cano e outrosautor <strong>de</strong>les, Machado <strong>de</strong> Assis. Para elucidar esse tipo <strong>de</strong> problema, importapon<strong>de</strong>rar as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada gênero, e <strong>de</strong> cada peça particular <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les,<strong>de</strong> modo que se esclareça que o tipo <strong>de</strong> relação que Manassés e Malvólio, porexemplo, estabelecem com seus leitores pressupõe um compartilhamento agudodas incertezas do tempo, uma franqueza crítica (real ou suposta no que tange àperspectiva do próprio Machado <strong>de</strong> Assis) que beira muita vez o escracho ou asátira <strong>de</strong>sabusada. No caso <strong>de</strong> Bento Santiago, ao contrário, a arte <strong>de</strong> se aproximardo leitor e enredá-lo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do convite a uma visada mais supostamentemadura e distante das cousas, <strong>de</strong> uma forma textual macia que busca encobrir ointeresse do narrador-personagem ao invés <strong>de</strong> escancará-lo. 3 Quanto às estratégiasou práticas <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> cada série específica <strong>de</strong> crônicas, torna-se <strong>de</strong>cisivoenten<strong>de</strong>r o sentido da escolha do pseudônimo ou apelido do autor ficcional<strong>de</strong>la, seu título, suas preferências temáticas e características retóricas.Vejamos, em seguida, como essas questões po<strong>de</strong>m ser abordadas nas seguintesséries <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis: “Comentários da Semana” (assinada emparte por Gil, em parte por M.A.), “História <strong>de</strong> Quinze Dias”/“História <strong>de</strong>Trinta Dias” (Manassés), “Balas <strong>de</strong> Estalo” (Lélio), “A+B” (João das Regras)e “Gazeta <strong>de</strong> Holanda” (Malvólio). Quanto aos temas, priorizaremos a observaçãodo comentário político, ou quiçá tal escolha não seja nossa, mas dos própriosnarradores machadianos. 2. “Comentários da Semana”“Comentários da Semana” foi a série <strong>de</strong> estréia <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis no gênero<strong>de</strong> crônica <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s. Publicou-a <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1861 a maio <strong>de</strong> 18623 As observações constantes <strong>de</strong>ste parágrafo originam-se não só da leitura crítica <strong>de</strong> itens da vastabibliografia machadiana, como também da reflexão sobre textos que problematizam a questão daconstrução do ponto <strong>de</strong> vista narrativo em textos redigidos em primeira pessoa – sejam eles romancesou outros gêneros; por exemplo, Gallagher, Catherine, “The Rise of Fictionality”, em Moretti,Franco, The Novel. Volume 1: History, Geography and Culture, Princeton e Oxford, Princeton UniversityPress, 2006, pp. 336-363 e, em especial, Cohn, Dorrit, The Distinction of Fiction, Baltimore e Londres,The Johns Hopkins University Press, 1999.292


Narradores do ocaso da monarquiano Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, folha <strong>de</strong> simpatias liberais um tanto extremadas no espectropolítico imperial, cujos redatores exprimiam-se às vezes <strong>de</strong> modo a sugerirsimpatias republicanas. O responsável pelo reaparecimento do jornal,fora <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano anterior, Quintino Bocaiúva, ofereceu ao jovemMachado um emprego <strong>de</strong> jornalista, não sem antes sondar as suas convicçõespolíticas, para vê-las em harmonia com as do novo órgão liberal. E se asconvicções <strong>de</strong> ambos se encontravam <strong>de</strong> acordo, e se po<strong>de</strong>mos medi-las pelasidéias veiculadas naquele jornal, então o que caracterizava Machado naquelemomento era a <strong>de</strong>fesa do legado liberal, <strong>de</strong> cuja <strong>de</strong>rrota política tornara-sesímbolo o movimento praieiro, além <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira ojeriza pela política <strong>de</strong>conciliação dos partidos, hegemônica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o gabinete do Marquês <strong>de</strong> Paraná(1853-1857). Para os redatores da folha, tal “conciliação” significava na verda<strong>de</strong>a invasão do “princípio monárquico” sobre o “princípio <strong>de</strong>mocrático”,que, segundo eles, <strong>de</strong>veria predominar em respeito à constituição <strong>de</strong> 1824. Poroutro lado, tal afirmação <strong>de</strong> princípios liberais se expressava também na críticapolítica dura ao gabinete então no po<strong>de</strong>r, sob a batuta do Marquês <strong>de</strong> Caxias, eao sistema político imperial como um todo, classificado como uma varieda<strong>de</strong><strong>de</strong> absolutismo disfarçado com as fórmulas constitucionais. 4O Diário começou a circular em março <strong>de</strong> 1860, mas, embora Machadoatuasse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro momento junto àquela equipe <strong>de</strong> jornalistas liberais,levaria mais <strong>de</strong> um ano e meio até que ele assumisse uma coluna <strong>de</strong> crônicas naquelejornal. Durante esse tempo, é bem plausível imaginar que Machado ganhavaexperiência e provavelmente se <strong>de</strong>stacava no trabalho coletivo <strong>de</strong> redaçãoda folha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o noticiário até as crônicas <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s não assinadas, etambém <strong>de</strong> forte conteúdo político. Enfim, após esse trabalho anônimo, Machadoganharia seu espaço próprio, surgindo então Gil, o cronista dos “Comentáriosda Semana”, a princípio assíduo, nos meses <strong>de</strong> 1861, para <strong>de</strong>pois setornar cada vez mais irregular e, finalmente, <strong>de</strong>saparecer sem mais nem menos,4 Para as informações sobre esta série e sua interpretação, baseamo-nos na introdução crítica e nascrônicas anotadas por Cano, Jefferson e Granja, Lúcia, Machado <strong>de</strong> Assis: Comentários da Semana,Campinas, Editora da UNICAMP, no prelo.293


Jefferson Cano e outrosjustamente quando prometia voltar à regularida<strong>de</strong>. Durante esse tempo, a políticanão foi o único assunto das crônicas, cujo caráter <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s era reforçadopela atenção aos teatros, novida<strong>de</strong>s literárias e divertimentos públicos.Mas em todos os textos era marcante um tom ten<strong>de</strong>ndo à polêmica e até mesmoagressivo, como ao referir-se aos folhetinistas da Presse e suas “críticas sensaboronas”,na primeira crônica da série, <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1861; ou na segunda,<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> outubro, quando mirava o moralismo com que foi recebida AHistória <strong>de</strong> uma Moça Rica, <strong>de</strong> Francisco Pinheiro Guimarães. Essa peça, exemplodo teatro realista da época, só teria chocado, segundo Machado, “as almas beatase pudicas”, que “dormiam pacificamente, daquele sono que Deus dá aosque se provaram, na austerida<strong>de</strong> e na penitência”.Nesses textos havia uma correspondência entre a retórica cortante e a críticapolítica <strong>de</strong>sabusada, que beirava às vezes o ataque pessoal. Já no texto <strong>de</strong> 1<strong>de</strong> novembro<strong>de</strong> 1861, portanto bem no início da série e particularmente afiado, o cronistapergunta “O que há <strong>de</strong> política?” A resposta é que havia “silêncio”, “marasmo”,pois que nada acontecia diante <strong>de</strong> um governo caracterizado pelo “fatalismo”,“indolência”, sendo por isso mesmo um “ministério-mo<strong>de</strong>lo” da situaçãoconservadora, que “dorme à noite com a paz na consciência, uma vez que <strong>de</strong> manhãtenha assinado o ponto na secretaria”. O cronista arremata a peça dizendo queem nosso país “a vulgarida<strong>de</strong> é um título, a mediocrida<strong>de</strong> um brasão”.Duas questões fazem <strong>de</strong>ssa primeira série <strong>de</strong> textos um objeto <strong>de</strong> particularinteresse para o estudo <strong>de</strong> um Machado <strong>de</strong> Assis cronista. Primeiro, o fato <strong>de</strong> asérie se tornar tão irregular em 1862 já foi interpretado como uma punição aoredator radical que ficara inconveniente, originando-se aí um suposto <strong>de</strong>sencantopela política que passaria a acompanhar Machado. Nesse sentido, parece-nosdiscutível o argumento <strong>de</strong> Jean-Michel Massa <strong>de</strong> que o tom político“liberal exaltado” <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis nesses textos acabaria levando a umseu afastamento da crônica política do Diário logo que se configurou, nos primeirosmeses <strong>de</strong> 1862, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os liberais retomarem o po<strong>de</strong>r nogoverno central. Segundo Massa, a pena afiada <strong>de</strong> Machado teria se erigido emobstáculo ao interesse político liberal, resultando em seu envio ao “Purgató-294


Narradores do ocaso da monarquiario”, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> volta ao “anonimato das notícias anódinas”. 5 A hipótese <strong>de</strong>Massa, que parte da interpretação quiçá muito literal <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração docronista, em texto <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1862, <strong>de</strong> que sentia “<strong>de</strong>sgosto pela política”,fez carreira na fortuna crítica <strong>de</strong> Machado, ajudando a fundamentar acrença <strong>de</strong> que houvera um jovem Machadinho, politicamente engajado e radical,escritor aprendiz, que só ao <strong>de</strong>sincumbir-se do fardo da militância permitiua liberação do impulso criativo necessário ao pleno <strong>de</strong>senvolvimento do gênioliterário <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.Sem entrar no mérito da crença <strong>de</strong> que a dita “alta literatura” <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria do indiferentismoou absenteísmo político para acontecer, pois que a improcedência <strong>de</strong>tal mito e as origens históricas <strong>de</strong>le na literatura oci<strong>de</strong>ntal estão hoje bem i<strong>de</strong>ntificadaspela crítica 6 , há motivos pon<strong>de</strong>ráveis para lançar dúvidas sobre a hipótese <strong>de</strong>Massa. Em primeiro lugar, entre o alegado “<strong>de</strong>sgosto pela política” em 22 <strong>de</strong> fevereiro<strong>de</strong> 1862 e o último texto da série, em 5 <strong>de</strong> maio, Machado <strong>de</strong> Assis continuouno mesmo diapasão <strong>de</strong> ácida crítica política, que não teria cabimento permitircaso os editores do Diário o consi<strong>de</strong>rassem realmente em divergência com algumanova suposta orientação da folha. Assim, num momento <strong>de</strong> intensa movimentaçãopolítica, com o gabinete Caxias <strong>de</strong>certo lutando para sobreviver, o autor dos “Comentáriosda Semana” juntava-se à artilharia do Diário na campanha para <strong>de</strong>rrubar5 Massa, Jean-Michel, A Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, 1839-1870. Ensaio <strong>de</strong> Biografia Intelectual, Rio <strong>de</strong>Janeiro, Editora Civilização <strong>Brasileira</strong>, 1971, pp. 306-8.6 Ver, para o caso da literatura francesa, Bourdieu, Pierre, As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do CampoLiterário, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 1996; Oehler, Dolf, Quadros Parisienses. Estética Antiburguesa,1830-1848, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 1997; Oehler, Dolf, O Velho Mundo Desce aos Infernos.Auto-Análise da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> Após o Trauma <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1848 em Paris, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>,1999; para o caso inglês, Thompson, E. P., Os Românticos. A Inglaterra na Era Revolucionária, São Paulo,Civilização <strong>Brasileira</strong>, 2002; Thompson, E. P., Witness Against the Beast. William Blake and the Moral Law,Nova York, The New Press, 1993. Sobre política e literatura no próprio Machado <strong>de</strong> Assis, ver,entre outros, Schwarz, Roberto, Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos Inícios do RomanceBrasileiro, São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 1981; Schwarz, Roberto, Um Mestre na Periferia do Capitalismo:Machado <strong>de</strong> Assis, São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 1990; Gledson, John, Machado <strong>de</strong> Assis: Ficção e História, Rio<strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra, 1986; Gledson, John, Machado <strong>de</strong> Assis: Impostura e Realismo. Uma Reinterpretação <strong>de</strong>Dom Casmurro, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 1991; Chalhoub, Sidney, Machado <strong>de</strong> Assis, Historiador,São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 2003.295


Jefferson Cano e outroso ministério. Em 2 <strong>de</strong> maio, aparecia para dizer que o governo, “que já é artificial,quer ver se artificialmente se sustenta”. Diante da notícia <strong>de</strong> que haveria uma reunião<strong>de</strong> conservadores “na secretaria <strong>de</strong> estado da Indústria, Artes e Comércio”,fulminava a iniciativa ao dizer que se tratava <strong>de</strong> “mais uma indústria para com artefazer comércio <strong>de</strong> a<strong>de</strong>sões”. Em segundo lugar, e diante da constatação <strong>de</strong> que ostextos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis em “Comentários da Semana” permaneceram sempreafinados com a orientação do conjunto <strong>de</strong> redatores do Diário, uma hipótese maisplausível para o <strong>de</strong>saparecimento da série seria vê-lo como um ato político a<strong>de</strong>quadoa uma nova conjuntura, que resultaria na ascensão dos liberais ao po<strong>de</strong>r em fins<strong>de</strong> maio. Em suma, em vez <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sgosto pela política”, ao interromper a série Machadoapenas continuava a fazer a política do grupo liberal do Diário ao qual estavavinculado e cujo i<strong>de</strong>ário parecia compartilhar naquele momento. 7Por fim, o fato <strong>de</strong> iniciar a série com o uso <strong>de</strong> uma assinatura, Gil, que <strong>de</strong>poisé abandonada e substituída pelas iniciais M.A., sem qualquer explicaçãopara a mudança, sem alteração visível na tonalida<strong>de</strong> ou no conteúdo i<strong>de</strong>ológicodos textos, parece indicar que, apesar do investimento retórico presente naescrita das crônicas, o sentido do discurso do cronista coincidia <strong>de</strong> maneiraalgo transparente com o do jornalista e com o credo geral da redação do Diário.Tudo isso tirava sentido ao gesto <strong>de</strong> conferir uma autoria ficcional ao que Machadoescrevia naquela série, em contraste com o que encontraremos nas séries<strong>de</strong> crônicas publicadas por ele nas décadas seguintes. 3. “História <strong>de</strong> Quinze Dias”/“História <strong>de</strong>Trinta Dias”Machado <strong>de</strong> Assis iniciou a publicação <strong>de</strong> “História <strong>de</strong> Quinze Dias” emjulho <strong>de</strong> 1876, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro número da Illustração <strong>Brasileira</strong>, novo perió-7 Marco Cícero Cavallini argumenta que em textos muito posteriores, como no conto “Capítulo doschapéus” e em Dom Casmurro, Machado <strong>de</strong> Assis mobiliza perspectivas e símbolos provenientes <strong>de</strong> suaexperiência no jornalismo político liberal da Corte nos anos 1860: “<strong>Letras</strong> políticas: a crítica social doSegundo Reinado na ficção <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis”, tese <strong>de</strong> doutorado em História, UNICAMP, 2005.296


Narradores do ocaso da monarquiadico criado pelos irmãos Carlos e Henrique Fleuiss. Ele tinha longa experiência<strong>de</strong> colaboração com os irmãos Fleuiss na Semana Illustrada, o periódico anterioreditado por eles, que alcançou sucesso e longevida<strong>de</strong> na Corte, aparecendoininterruptamente entre 1860 e 1876 (Machado colaborara, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1869, nasérie coletiva “Badaladas”, assinadas por “Dr. Semana”). A idéia dos Fleiussera produzir uma publicação esmerada, capaz <strong>de</strong> fazer boa figura em relação asuas congêneres editadas no exterior, para promover assim as gran<strong>de</strong>zas e glóriasdo Império brasileiro. Quanto à política, bem ao contrário do Diário queacabamos <strong>de</strong> abordar, seu lema era “in<strong>de</strong>pendência e verda<strong>de</strong>”, o que significavadizer que professava não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r “idéias nem sentimentos exclusivos <strong>de</strong> algumpartido”. Os textos <strong>de</strong> Machado na série, num total <strong>de</strong> 40, sempre assinadospor “Manassés”, apareceram em todos os números da revista. A única modificaçãoda série em todo o período <strong>de</strong> sua publicação foi o título, que passoua ser “História <strong>de</strong> Trinta Dias” a partir <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1878, mas isto apenasporque o periódico entrara em crise e mudara a sua periodicida<strong>de</strong>, vindo <strong>de</strong>fato a <strong>de</strong>saparecer em abril daquele ano. 8Comecemos por algumas hipóteses sobre o sentido das escolhas do títuloda série e do apelido <strong>de</strong> seu narrador-personagem. Por um lado, o vocábulo“História” parecia ancorar esses textos numa <strong>de</strong>finição clássica <strong>de</strong> crônica, quese referia na verda<strong>de</strong> a outro gênero narrativo, o dos antigos cronistas dos séculosXV e XVI empenhados em fazer o registro ou a narração supostamenteisenta dos fatos, assemelhando-se assim à concepção <strong>de</strong> História que se tornavape<strong>de</strong>stre no século XIX. Ao chamar <strong>de</strong> “História” o que era crônica, o narradorbuscava já <strong>de</strong> início dar a seus textos uma certa elevação, pois que lhesconferia a aura <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> pertinente à pretensão da própria Illustração <strong>Brasileira</strong><strong>de</strong> promover as virtu<strong>de</strong>s e a afirmação da nacionalida<strong>de</strong> brasileira. Poroutro lado, o embuço encobria mal uma outra <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> crônica, esta simcorrente e praticada à época, até mesmo por outros luminares da literatura8 Para as informações sobre esta série e sua interpretação, baseamo-nos na introdução crítica e nascrônicas anotadas por Pereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda, Machado <strong>de</strong> Assis: História <strong>de</strong> QuinzeDias/História <strong>de</strong> Trinta dias, volume em preparação, a ser publicado pela Editora da UNICAMP.297


Jefferson Cano e outroscomo José <strong>de</strong> Alencar e Joaquim Manoel <strong>de</strong> Macedo 9 , segundo a qual tais textosseriam o comentário ligeiro do tempo vivido, às vezes no calor da hora e naincerteza do <strong>de</strong>senrolar dos acontecimentos, logo marcados pela subjetivida<strong>de</strong>do narrador – e tudo isso tirava à semelhante prosa a possibilida<strong>de</strong> do distanciamentoe objetivida<strong>de</strong> requeridos à História.Machado <strong>de</strong> Assis explora as ambigüida<strong>de</strong>s do título até o limite ao fazer opróprio Manassés refletir sobre o caráter <strong>de</strong> seus textos em crônica <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong>março <strong>de</strong> 1877. Obrigado a comentar os fatos da quinzena, o narrador observavaque, por não ir às touradas, às quais odiava, não podia oferecer ao leitor orelato fi<strong>de</strong>digno <strong>de</strong>las. Reflexivo, consciente <strong>de</strong> sua posição, Manassés ameaçava<strong>de</strong>mitir-se do lugar <strong>de</strong> “historiador <strong>de</strong> quinzena”. Quem passava os dias“no fundo <strong>de</strong> um gabinete escuro e solitário”, sem ir às câmaras e às touradas,sem testemunhar a vida lá fora ficava mero “contador <strong>de</strong> histórias”, e “umcontador <strong>de</strong> histórias é justamente o contrário <strong>de</strong> um historiador”. Na linhaseguinte, em nova reviravolta, o narrador reparava que o próprio historiador,“afinal <strong>de</strong> contas”, não era mais do que “um contador <strong>de</strong> histórias”, ou seja,não se distinguia tanto assim do cronista <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s. A diferença entre ohistoriador e o cronista (ou contador <strong>de</strong> histórias) estava na pretensão <strong>de</strong> cadaum: o historiador fora uma invenção do “homem culto, letrado, humanista”,leitor <strong>de</strong> Tito Lívio; o contador <strong>de</strong> histórias “foi inventado pelo povo”, porquem “enten<strong>de</strong> que contar o que se passou é só fantasiar”.Em poucas penadas, na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manassés em <strong>de</strong>finir o seu própriopapel, Machado <strong>de</strong> Assis ironizava a pretensão do título da série e do projetoeditorial no qual aparecia, a Illustração <strong>Brasileira</strong>: impressão luxuosa, elevaçãomoral, valorização da nacionalida<strong>de</strong>, aura <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>, promessa <strong>de</strong> pairaracima das rivalida<strong>de</strong>s partidárias, e nisso tudo quiçá um modo <strong>de</strong> ver ascousas excluindo as perspectivas e o interesse do “povo”. Machado <strong>de</strong> Assisdistanciava-se <strong>de</strong> tal perspectiva – <strong>de</strong>ixando-se ficar sem chegar a pertencer,fulminando a lógica político-i<strong>de</strong>ológica do projeto parecendo afagá-lo – ao9 Ver, a título <strong>de</strong> exemplo, Cano, Jefferson, org., Joaquim Manoel <strong>de</strong> Macedo: Labirinto, Campinas,Mercado <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2006 (coleção <strong>Letras</strong> em Série).298


Narradores do ocaso da monarquiafazer o narrador expor com sincerida<strong>de</strong> a própria subjetivida<strong>de</strong>: não é pelomotivo <strong>de</strong> não ir a touradas que ele não podia dar opinião sobre elas; afinal, diziaManassés, “eu não preciso ver a guerra para <strong>de</strong>testá-la”. Se há mesmo, naprópria concepção da série, essa coexistência dialética entre a busca do discursoelevado e a infiltração dos elementos que permitem miná-lo, então ela se repeteno pseudônimo escolhido, “Manassés”. O nome aparece no Gênesis, conferidoao precursor <strong>de</strong> uma das 12 tribos <strong>de</strong> Israel. Desse modo, o narrador dasérie recebia apelido <strong>de</strong> personagem bíblica ligada às origens da civilização oci<strong>de</strong>ntal,elevando-se <strong>de</strong> novo diante do leitor, imbuído que estava da autorida<strong>de</strong>da referência ancestral, da condição <strong>de</strong> testemunha simbólica <strong>de</strong> tempos imemoriais.Todavia, segundo o significado etimológico da palavra <strong>de</strong> origem hebraica,Manassés é “aquele que faz esquecer”, ou “fazendo esquecer”. Ou seja,o historiador da quinzena, compilador dos fatos, tornava-se também aqueleque produzia o esquecimento, aparecendo outra vez, por conseguinte, a estratégia<strong>de</strong> dotar o discurso <strong>de</strong> um sentido transparente às vezes inverso ao quepo<strong>de</strong>riam sugerir outros elementos também presentes nele.Já se vê que o paradigma narrativo da “História <strong>de</strong> Quinze Dias” é mui radicalmentediverso daquele <strong>de</strong> “Comentários da Semana”, e sem dúvida maispróximo das várias séries <strong>de</strong> crônicas que Machado continuaria a escrever nasduas décadas seguintes. Verda<strong>de</strong> que aqui, como lá nos “Comentários”, fala-se<strong>de</strong> quase tudo que estava à baila no tempo: crise política na Turquia, teatro lírico,teatro <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s, literatura, emancipação dos escravos, políticos, eleições,câmaras, anúncios, imprensa... Fala-se até, com certa recorrência, da falta<strong>de</strong> assunto para escrever a crônica, tema que na realida<strong>de</strong> dá mote a muita crônica,naquela época como na nossa. Enfim, uma poeira <strong>de</strong> assuntos, cujos nexos<strong>de</strong>safiam a compreensão do leitor hodierno. Aproximar-se <strong>de</strong> tais nexos<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do acesso ao próprio periódico em que os textos apareceram, ou dautilização <strong>de</strong> uma edição criteriosamente anotada da série. De qualquer modo,está claro que em “História <strong>de</strong> Quinze Dias”, ao contrário <strong>de</strong> “Comentáriosda Semana”, há um narrador-personagem plenamente constituído segundo ascircunstâncias da crônica enquanto gênero narrativo específico, com conteú-299


Jefferson Cano e outrosdos e modulações discursivas pertinentes só a ele, Manassés, cuja atribuição aMachado <strong>de</strong> Assis, seu criador, é meio certo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o rumo e o prumo necessáriosà crítica.Há nesses textos uma espécie <strong>de</strong> protocolo narrativo – ou seja, um modo <strong>de</strong>construir situações, <strong>de</strong> tecer comentários – que confirma a cada passo o paradigmada coexistência dialética dos contrários, conforme vimos <strong>de</strong>finindo.Machado fazia com que Manassés exagerasse nos traços para evi<strong>de</strong>nciar, às vezesescancarar, as fissuras no discurso do narrador-personagem. Vem a calhar,até por seu paroxismo, o exemplo que abre a primeira crônica da série (1<strong>de</strong> julho<strong>de</strong> 1876), sobre acontecimentos recentes na Turquia. Abdul-Azziz, “o últimosultão ortodoxo”, havia sido <strong>de</strong>posto. Telegramas e imprensa européiaviam nisso o rompimento da lógica religiosa tradicional e mencionavam a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> emergência <strong>de</strong> arranjos institucionais à moda liberal na Turquia;ou como disse Maomé ao sultão <strong>de</strong>posto, num momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio divertidíssimodo narrador, pairava sobre o país islâmico a ameaça <strong>de</strong> passar a contarcom “uma câmara, um ministério responsável, uma eleição, uma tribuna, interpelações,crises, orçamentos, discussões, a lepra toda do parlamentarismo e doconstitucionalismo”. Manassés <strong>de</strong>clarava-se inconformado com tal situação,apegava-se à tradição, via expirar a poesia “às mãos grossas do populacho”. Erao Oriente que acabava, e com ele o harém, aquele “bazar <strong>de</strong> belezas <strong>de</strong> toda acasta e origem, umas baixinhas, outras altas, as louras ao pé das morenas, osolhos negros a conversar os olhos azuis, e os cetins, os damascos, as escumilhas...”.Terminava a lista <strong>de</strong> prejuízos causados pela “abolição do serralho”mencionando os eunucos, “Sobretudo os eunucos!”. Hiperbólico, como quasesempre, dizia que “o vento do parlamentarismo” <strong>de</strong>smanchava tudo issonum “minuto <strong>de</strong> cólera e num acesso <strong>de</strong> eloqüência”. A eloqüência ficava melhornele próprio, narrador, e servia para que Machado risse <strong>de</strong>le, e nós a rircom Machado, todos a reparar no excesso <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rência <strong>de</strong> Manassés àquiloque dizia. Ao nos juntarmos a Machado no divertimento, porém, há o risco <strong>de</strong>não reparar em algo que fazia <strong>de</strong>le, Manassés, mais radicalmente diferente <strong>de</strong>Machado <strong>de</strong> Assis: nostálgico do mundo tradicional dos palácios e haréns, que300


Narradores do ocaso da monarquiaameaçava ruir, o narrador mostrava-se também indiferente às suas mulheres eeunucos que, como os escravos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes no Brasil imperial, po<strong>de</strong>riam ternaquela queda a esperança <strong>de</strong> outra vida.É verda<strong>de</strong> que há <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s na postulação <strong>de</strong>ssa distância radicalentre autor real e narrador ficcional, entre Machado e Manassés. Há passagensnessas crônicas em que Machado parece “esquecer” o narrador-personagemque inventou para autor ficcional <strong>de</strong>las. Os trechos mais caracterizados <strong>de</strong>ssetipo <strong>de</strong> ocorrência estão nos meses finais da série, quando a notícia da morte<strong>de</strong> várias pessoas que Machado admirava, ou <strong>de</strong> quem era amigo, repetiu-semelancolicamente: Alexandre Herculano, José <strong>de</strong> Alencar, Zacarias <strong>de</strong> Góis eVasconcelos, Nabuco <strong>de</strong> Araújo, Francisco Pinheiro Guimarães. Nesses momentosMachado <strong>de</strong> Assis parecia tomar a pena para chorar o morto, afastandoManassés até a parte seguinte da crônica, quando ele voltava com seus tiquesretóricos e abordagens características. De qualquer modo, “Comentáriosda Semana” e “História <strong>de</strong> Quinze Dias” representam maneiras muito diversas<strong>de</strong> fazer crônica, testemunhando a adoção, por Machado, <strong>de</strong> um paradigmanarrativo que pautaria as suas experiências seguintes nesse gênero literário,quiçá em outros, ou em diálogo com eles. 10 4. “Balas <strong>de</strong> Estalo”“Balas <strong>de</strong> Estalo” é uma série que oferece a oportunida<strong>de</strong> excepcional <strong>de</strong>acompanhar Machado <strong>de</strong> Assis num projeto coletivo, no qual as questões sobrea feitura <strong>de</strong> crônicas indicadas até aqui tornam-se relevantes para o entendimentodo processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sse gênero no diálogo entre muitos literatos,<strong>de</strong>smanchando-se assim outro possível terreno para platitu<strong>de</strong>s interpretativaspor meio da saída fácil da genialida<strong>de</strong> do bruxo do Cosme Velho.10 O texto pioneiro na marcação da alterida<strong>de</strong> entre autor real e narrador ficcional em crônicasmachadianas é Pereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda, O Carnaval das <strong>Letras</strong>: Literatura e Folia no Rio <strong>de</strong>Janeiro do Século XIX, Campinas, Editora da UNICAMP, 2004 (2 a . edição revista; 1 a . edição: 1994),em especial o capítulo 3, intitulado “Por trás das máscaras: Policarpo e os sentidos da festa”, pp.169-221, que aborda a série intitulada “BONS DIAS!” (1888-9).301


Jefferson Cano e outrosMachado <strong>de</strong> Assis estreou na série, que já vinha sendo publicada havia trêsmeses, em 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1883, sob o pseudônimo “Lélio”. “Balas <strong>de</strong> Estalo”seria uma das mais prolíficas e duradouras séries <strong>de</strong> crônicas do jornalismobrasileiro no século XIX, publicada diariamente na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, umdosperiódicos <strong>de</strong> maior tiragem na Corte, num revezamento intenso <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> narradores-personagens, resultando em várias centenas <strong>de</strong> textosao longo <strong>de</strong> seus três anos <strong>de</strong> duração (1883-1886). Seus narradoresacompanharam os principais assuntos do dia na década <strong>de</strong> 1880, tais como asmudanças urbanas da Corte, os <strong>de</strong>bates sobre a vinda <strong>de</strong> imigrantes, a emancipaçãodos escravos, a questão religiosa, a crise do regime monárquico. Além dopróprio Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>de</strong>la participaram outros literatos <strong>de</strong> renome à época,como Ferreira <strong>de</strong> Araújo, Valentim Magalhães, Henrique Chaves, Capistrano<strong>de</strong> Abreu. Seus textos podiam ser “balas <strong>de</strong> artilharia”, às vezes eram “docesguloseimas”, mais freqüentemente consistiam em “balas amargas”, talvez umdoce-veneno, fórmula ambivalente para captar o sentido <strong>de</strong> textos que achavammotivo para pilhéria em quase tudo pertinente à vida política do tempo. 11O humor e o formato coletivo da série correspondiam ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Ferreira<strong>de</strong> Araújo, dono da Gazeta, <strong>de</strong> produzir um jornal leve, acessível ao gran<strong>de</strong> públicoe facilitador do convívio <strong>de</strong> opiniões diversas num mesmo espaço. LuluSênior, Zig-Zag, Décio, Publicola, João Tesourinha, Blick, Mercutio, Confúcio,Ly, Carolus e Lélio 12 formavam um grupo <strong>de</strong> autores ficcionais que se alternavamna publicação das crônicas para <strong>de</strong>bater entre si os assuntos do dia. Aunida<strong>de</strong> da série, aquilo que lhe dava o nexo principal em meio a tantas vozesdiferentes (ainda que estivesse longe <strong>de</strong> excluir outros temas), era o comentá-11 Para as informações sobre esta série e sua interpretação, baseamo-nos nas crônicas anotadas e notrabalho em andamento para a preparação do seguinte volume: Ramos, Ana Flávia Cernic, Machado <strong>de</strong>Assis: Balas <strong>de</strong> Estalo, a ser publicado pela Editora da UNICAMP.12 Inicialmente a série contava com a participação dos seguintes pseudônimos: Lulu Sênior (Ferreira<strong>de</strong> Araújo), Zig-Zag e João Tesourinha (ambos criados por Henrique Chaves), Décio e Publicola(ambos por Demerval da Fonseca), Lélio (Machado <strong>de</strong> Assis), Mercutio e Blick (ambos porCapistrano <strong>de</strong> Abreu) e José do Egito (Valentim Magalhães). Posteriormente, ingressaram Confúcio,Ly e Carolus, todos ainda sem i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> autoria.302


Narradores do ocaso da monarquiario humorístico à política imperial em suas diversas dimensões – práticas eleitorais,prerrogativas e limites do po<strong>de</strong>r mo<strong>de</strong>rador, funcionamento das câmaras(Senado, Câmara dos Deputados, Câmara Municipal), idas e vindas nas lutasentre os partidos políticos. Ao mesmo tempo em que traziam à baila as“pérolas” ou “absurdos” perpetrados por senadores, <strong>de</strong>putados, vereadores,chefes <strong>de</strong> polícia e até mesmo pelo imperador – às vezes em especial por SuaAlteza Imperial –, os cronistas pareciam compartilhar um certo diagnósticosobre a situação do país. Assim, mesmo que sempre brincalhões, militavamabertamente pela emancipação dos escravos, criticavam a não separação entrereligião católica e Estado, castigavam a instituição monárquica por sua tolerânciaem relação à Igreja e à instituição da escravidão, atribuindo-lhe, e ao imperador,um estado <strong>de</strong> inércia incompatível com o progresso <strong>de</strong>sejado para opaís. Talvez paradoxalmente, também atribuíam à Coroa um excesso <strong>de</strong> ingerêncianos assuntos políticos, uma disposição para inflar o “elemento monárquico”em <strong>de</strong>trimento do “<strong>de</strong>mocrático”, como já se queixavam os liberais doDiário na década <strong>de</strong> 1860, chegando às vezes a parecer proselitismo pelo regimerepublicano.O uso dos pseudônimos era crucial para estabelecer o jogo ficcional entreos narradores. 13 Às vezes, o mesmo literato talhava simultaneamente mais <strong>de</strong>um narrador-personagem, sempre diferentes entre si quanto ao perfil <strong>de</strong> seusinteresses temáticos e ao modo <strong>de</strong> abordá-los. Quando estreou, em abril <strong>de</strong>1883, “Balas <strong>de</strong> Estalo” contava com a participação <strong>de</strong> cinco autores ficcionais:Lulu Sênior, Zig-Zag, Publicola, Mercutio e Décio. O perfil <strong>de</strong>finido<strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les sugere o quanto houve <strong>de</strong> trabalho coletivo na concepçãoe execução da série <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu início. Lulu Sênior, criatura <strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong>Araújo, escreveu muitas crônicas sobre o papel da Igreja na socieda<strong>de</strong> e asconseqüências <strong>de</strong> sua influência no país. Zig-Zag, <strong>de</strong> Henrique Chaves, ocu-13 Para uma análise inicial da série, ver Ramos, Ana Flávia Cernic, “Política e humor nos últimosanos da monarquia. A série ‘Balas <strong>de</strong> Estalo’”, em Chalhoub, Sidney; Neves, Margarida <strong>de</strong> Souza; ePereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda, História em Cousas Miúdas: Capítulos <strong>de</strong> História Social da Crônica noBrasil, pp. 87-121.303


Jefferson Cano e outrospava-se das sessões da Câmara dos Deputados, “reproduzindo” na coluna diálogossupostamente travados entre os legisladores, como se os tivesse taquigrafadodurante as sessões do parlamento – releva notar, talvez, que no passadoHenrique Chaves havia trabalhado como taquígrafo na Câmara. Publicola,obra <strong>de</strong> Demerval da Fonseca, assim como o era Décio, constituíra-se “fiscal”e “amigo do povo”, assumindo as tarefas <strong>de</strong> acompanhar as ativida<strong>de</strong>s da CâmaraMunicipal, <strong>de</strong> vigiar a execução das obras públicas na cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> observarse havia correção nos gastos públicos. Mercutio, e <strong>de</strong>pois Blick, eram ambos<strong>de</strong> Capistrano <strong>de</strong> Abreu, mas seus estilos variavam ao extremo: o primeirovinha leve, acessível e brincalhão; o segundo aparecia sisudo, cismando semprenos mesmos assuntos.Havia aí então uma pletora <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s fictícias a testemunhar e comentara história real, sem a preocupação, ao que parece, <strong>de</strong> ocultar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>dos criadores dos narradores-personagens. De fato, tudo indica que a adoçãodos pseudônimos consistia num dos modos da carpintaria literária do grupo,mais do que estratégia para ocultar a autoria real dos textos. Em crônica <strong>de</strong>1<strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1884, sem dúvida uma espécie <strong>de</strong> celebração do sucesso da série,que viera a lume no ano anterior, Décio oferecia todas as pistas possíveispara a i<strong>de</strong>ntificação dos autores <strong>de</strong> “Balas”: Lulu Sênior (Ferreira <strong>de</strong> Araújo,médico e proprietário do jornal) era “médico retirado, patrão capaz <strong>de</strong> todosos sacrifícios”, etc.; Zig-Zag (Henrique Chaves, o outrora taquígrafo da Câmara)era “aquele conhecido rapaz corpulento, <strong>de</strong> boa cara, a arrancar constantementee vertiginosamente os fios do bigo<strong>de</strong>, que taquigrafa na Câmarados Deputados”; Mercutio e Blick (do historiador Capistrano <strong>de</strong> Abreu)“eram aquele mesmo e único professor <strong>de</strong> história, míope <strong>de</strong> profissão ... edoudo por Spencer, como ninguém”. Lélio, por sua vez, fora criado por“aquele literato chefe, poeta, dramaturgo e romancista, que <strong>de</strong>pôs um dia a suacoroa <strong>de</strong> burocracia da agricultura e a sua filosofia Braz cubica” para “estalar balas”com os outros colegas. Em cada caso, Décio dizia o pseudônimo, resumiacaracterísticas do narrador (temas, temperamento) e concluía com as pistasque po<strong>de</strong>riam levar à i<strong>de</strong>ntificação do autor. Parecia escrever a crônica, na ver-304


Narradores do ocaso da monarquiada<strong>de</strong>, como resposta a um provável clamor dos leitores para saber quem estavapor trás <strong>de</strong> cada narrador-personagem. Enfim, Décio <strong>de</strong>ixava tudo às claras:cada autor participante do grupo inventava o seu narrador ficcional (ou mais<strong>de</strong> um <strong>de</strong>les), que se movia então segundo preferências e tiques retóricos próprios,num esforço coletivo <strong>de</strong> seus autores reais para, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>senharindividualida<strong>de</strong>s imaginárias e colocá-las em interação na série, dando aesta um perfil, fazendo com que funcionasse como uma espécie <strong>de</strong> fórum propiciadordo <strong>de</strong>bate sobre as questões públicas do momento.Machado <strong>de</strong> Assis produziu nada menos do que 125 textos para “Balas <strong>de</strong>Estalo”, no período <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1883 a março <strong>de</strong> 1886, tornando realmenteformidável a tarefa <strong>de</strong> coligir e redigir notas para todo esse material. Lélio, ouLélio dos Anzóis Carapuça, 14 o apelido do narrador, <strong>de</strong>ve ter sido inspiradoem personagem da peça <strong>de</strong> Molière, intitulada L’Étourdi (O Estouvado), pois queestava na or<strong>de</strong>m do dia <strong>de</strong>bochar do ministro da Fazenda e chefe do gabinete<strong>de</strong> ministros, Lafayette Rodrigues Pereira, que havia citado O Tartufo, outrapeça do dramaturgo, em discurso no parlamento. Por um lado, a alusão à atualida<strong>de</strong>política presente no pseudônimo ajudava Machado a inserir <strong>de</strong> pronto asua personagem na série em andamento; por outro lado, ao recorrer a Molière,retomava uma prática <strong>de</strong> alusão literária que vinha caracterizando suas crônicas<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1860, pois já por várias vezes utilizara personagens teatraispara satirizar as atitu<strong>de</strong>s exageradas ou <strong>de</strong>scabidas dos homens públicos, a retóricavazia <strong>de</strong>les, a mediocrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas querelas. 15O Lélio “estouvado” <strong>de</strong> Molière é cômico, impulsivo, um tanto quantoatrapalhado nas idéias e nas ações. O Lélio <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis não está tão14 Lélio <strong>de</strong>clara seu sobrenome na crônica <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1885, na qual escreve seu testamento.Segundo Daniela Callipo, este sobrenome cômico e popular já havia sido usado em 1862 pelopseudônimo “Dr. Semana” na Semana Illustrada, coinci<strong>de</strong>ntemente outra personagem <strong>de</strong> uma sériecoletiva <strong>de</strong> crônicas. Ver Callipo, Daniela Mantarro, “As recriações <strong>de</strong> Lélio: a presença francesa nascrônicas machadianas. Gazeta <strong>de</strong> Notícias – “Balas <strong>de</strong> estalo”, julho <strong>de</strong> 1883 a março <strong>de</strong> 1886”,dissertação <strong>de</strong> mestrado em <strong>Letras</strong>, USP, 1998, p. 10.15 Granja, Lúcia, Machado <strong>de</strong> Assis: Escritor em Formação (à Roda dos Jornais), Campinas, Mercado <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,2000.305


Jefferson Cano e outroslonge <strong>de</strong>ssas características. Apesar <strong>de</strong> não apresentar, já no primeiro texto, um“programa” para a sua participação na série, prática que era muito freqüente,Lélio evi<strong>de</strong>ncia em vários <strong>de</strong> seus textos sentimentos <strong>de</strong> incerteza e confusão,uma certa “dificulda<strong>de</strong>” <strong>de</strong> compreensão dos fatos, tal como a personagem <strong>de</strong>Molière. Diversas são as crônicas em que Lélio se mostra perplexo diante dosacontecimentos, busca explicá-los <strong>de</strong> maneiras inusitadas, chega enfim a “pérolas”<strong>de</strong> sua própria lavra, num movimento <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rência à mixórdia políticareinante que provoca o distanciamento risonho do leitor, e por meio do riso oimpulso para se posicionar no <strong>de</strong>bate sobre as questões públicas.Na crônica <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1884, Lélio diz que amigos o haviam convencidoa concorrer a uma ca<strong>de</strong>ira na Câmara dos Deputados. O “ponto melindroso”consistia em fazer uma “profissão <strong>de</strong> fé”. Sentia-se como um certo candidato inglêsque, ao fazê-lo, num pequeno speech, <strong>de</strong>clarara ser liberal por amar a liberda<strong>de</strong>política, e conservador porque, para ter liberda<strong>de</strong>, era preciso respeitar a constituição.Essa opinião, <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> política notável, tornava-se logo pretextopara uma retórica em falsete, na qual o narrador concluía, <strong>de</strong> modo absurdono contexto das rivalida<strong>de</strong>s políticas do tempo, que conseguiria o apoio dosdois partidos caso mostrasse a<strong>de</strong>rência às teorias <strong>de</strong> ambos, sem “dizer se souconservador ou liberal”. Bastava evitar os nomes, pois somente eles dividiam asfacções. Desse modo, perplexo diante da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar posição, pois queambos os partidos pareciam ter razão, sem que nenhum <strong>de</strong>les pu<strong>de</strong>sse ter toda arazão, Lélio estabelecia nexos e analogias arbitrárias, logo divertidas, terminando,por meio alegórico, em franca apologia ao oportunismo político. Lembrouum sujeito que se dava ao <strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> ir a todos os casamentos <strong>de</strong> que tinha notícia.Vestia-se, ia para a igreja, comparecia ao baile e apreciava especialmente ojantar, sempre dando um jeito <strong>de</strong> parecer aos convidados da noiva que o era donoivo, e vice-versa. Certo dia, à mesa, um vizinho importuno lhe perguntara seera parente do lado do noivo ou do lado da noiva. O filão respon<strong>de</strong>ra ser “dolado da porta”, retirando-se com o jantar no bucho.Noutra crônica, <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1885, Lélio resolvera fazer uma enquete,na qual pedia a seus concidadãos “que me dissessem francamente o que consi-306


Narradores do ocaso da monarquia<strong>de</strong>ravam que fosse política”. Choveram cartas, uma das quais dizia que políticaera “tirar o chapéu às pessoas mais velhas”; outra afirmava que consistia na“obrigação <strong>de</strong> não meter o <strong>de</strong>do no nariz”; outra ainda opinava que políticaera, “estando à mesa, não enxugar os beiços no guardanapo da vizinha”; um barbeiroa <strong>de</strong>finia como “a arte <strong>de</strong> lhe pagarem as barbas”; já uma dama gamenha,mui religiosa também, lembrava o Evangelho <strong>de</strong> São Mateus para dizer que políticaera praticar com os olhos um <strong>de</strong> seus versículos: “batei e abrir-se-vos-á”. Lélionão recebera cartas <strong>de</strong> políticos, o que estranhara, pois as havia solicitado,mas achava resposta indireta no que dissera o <strong>de</strong>putado César Zama haviapouco. Discutia-se à época, em idas e vindas sem fim, mais um projeto para aemancipação dos escravos (processo que resultaria na lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1885, a chamada Lei dos Sexagenários). O texto que estava à baila consistiaem flagrante recuo do governo na questão, numa situação que, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o gabineteDantas, <strong>de</strong>rrubado em maio, caracterizava-se por tenaz resistência dos escravocratas,presentes nos dois partidos oficiais da Monarquia, a qualquernova iniciativa do legislativo nesse assunto. Zama, um liberal, dizia ser favorávelà abolição imediata da escravidão, mas aceitara o projeto <strong>de</strong> emancipaçãogradual “passado e aceita este”, justificando-se assim: “quando não se po<strong>de</strong>obter o que se quer, é necessário que se queira aquilo que se po<strong>de</strong>”. O narradorprosseguia, reconhecendo nisso “oportunismo”, mas ren<strong>de</strong>ndo-se aos fatos elhe fazendo <strong>de</strong> novo a apologia: “quem não tem cão caça com gato”. O maisrazoável parecia mesmo a<strong>de</strong>rir ao que se lhe oferecesse, para encher o bucho.Em suma, o movimento interno do texto do narrador seguia um padrão regular,segundo o qual ele i<strong>de</strong>ntificava um problema real, ficava perplexo dianteda dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> formar opinião, pois que nenhuma das soluções à vista pareciamelhor do que as outras, logo a<strong>de</strong>ria à posição que lhe parecesse individualmentemais vantajosa. O paradigma narrativo, estruturalmente semelhante ao<strong>de</strong> “História <strong>de</strong> Quinze Dias”, ainda que diferente em cada <strong>de</strong>talhe particular,instituía a alterida<strong>de</strong> radical entre autor real e narrador ficcional no centro doprocesso, resultando daí mesmo o sarcasmo e o <strong>de</strong>boche tão pertinentes a essestextos. A<strong>de</strong>mais, em se tratando <strong>de</strong> escravidão, a Gazeta <strong>de</strong> Notícias lutava para307


Jefferson Cano e outrosque o legislativo tomasse medidas firmes para superá-la, o que tornava as hesitações<strong>de</strong> Lélio nesse assunto <strong>de</strong>stoantes e risíveis na própria interlocução queestabelecia com outras colunas da folha. 5. “A+B”/“Gazeta <strong>de</strong> Holanda”“A + B” foi série curta, apenas sete crônicas publicadas na Gazeta <strong>de</strong> Notíciasem setembro e outubro <strong>de</strong> 1886. 16 Todavia, parece originalíssima enquantoprojeto <strong>de</strong> série, pois levou ao limite a idéia <strong>de</strong> representar personagens imersasna in<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> seu tempo, perplexas diante dos acontecimentos mesmoque empenhadas em lhes “arrancar” “uma significação”, como diria <strong>de</strong>poisPolicarpo, o autor ficcional <strong>de</strong> “BONS DIAS!”. 17 Machado <strong>de</strong> Assis procediacomo se houvesse convidado o seu companheiro <strong>de</strong> redação na Gazeta, HenriqueChaves, ou a criatura <strong>de</strong>ste, Zig-Zag, a utilizar as suas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> taquígrafono registro da conversa entre dois leitores da folha, em vez <strong>de</strong> as utilizarpara reproduzir falas <strong>de</strong> parlamentares. As crônicas consistiam, pois, na“transcrição” do diálogo imaginário entre esses dois leitores, “A” e “B”, comose o próprio cronista não tivesse interferência alguma no que se dizia, seu moteconsistindo em <strong>de</strong>ixar falarem as fontes. Assim, no texto <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> setembro, “A”e “B” encontram-se na rua, como estás para lá e para cá, como <strong>de</strong> praxe, e logoencetam o seguinte diálogo: “Vamos a saber, não leu nada? Não sabe nada?”; eo outro, já no exercício <strong>de</strong> interpretar os eventos, “Sei vagamente uma história<strong>de</strong> emendas que passaram no senado, e que provavelmente não passam na câmara”.Noutro dia, 24 <strong>de</strong> outubro, “A” andava pela rua totalmente absorto naleitura do jornal, o que fazia em voz alta: “Nós ontem ouvimos o nobre senadorpela Bahia, aliás um parlamentar <strong>de</strong> talento...”. “B” tenta interromper:16 Os parágrafos seguintes resumem o argumento apresentado em Chalhoub, Sidney, “A arte <strong>de</strong>alinhavar histórias. A série ‘A + B’ <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis”, em Chalhoub, Sidney; Neves, Margarida<strong>de</strong> Souza; e Pereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda, História em Cousas Miúdas: Capítulos <strong>de</strong> História Socialda Crônica no Brasil, pp. 67-85.17 Crônica <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1888, em Gledson, John (introdução e notas), Machado <strong>de</strong> Assis: BONSDIAS!, São Paulo/Campinas, Hucitec/Editora da UNICAMP, 1990, p. 56.308


Narradores do ocaso da monarquia“Eh! Olá! Pare, homem”, “Que distração é essa?”. “A” acaba convidando o colegaa ler, juntos, o discurso do <strong>de</strong>putado Martinho Campos, escravocrata <strong>de</strong>truz, então com a bossa <strong>de</strong> discursar sobre os vícios do parlamentarismo.Enfim, as personagens <strong>de</strong>ssa série são, <strong>de</strong> fato, figurações <strong>de</strong> leitores das folhas,em especial da própria Gazeta. 18Se o jogo ficcional agora passava a ser a idéia <strong>de</strong> reprodução, pelo narrador,<strong>de</strong> diálogos entre leitores das folhas, também era verda<strong>de</strong> que tal narrador,apelidado João das Regras, exercia a prerrogativa <strong>de</strong> escolher o que transcrever.A inspiração para o pseudônimo <strong>de</strong>ve ter sido o João das Regras que viveu noséculo XIV, época <strong>de</strong> D. João I, a quem servia esforçando-se para fazer retornarà Coroa prerrogativas e direitos perdidos para a nobreza e o clero. Em outraspalavras, João das Regras aparece nos compêndios e dicionários <strong>de</strong> história<strong>de</strong> Portugal como um dos construtores ou i<strong>de</strong>ólogos do absolutismo monárquiconaquele país. Uma referência à personagem, localizada ao acaso numdiscurso <strong>de</strong> Paulino José Soares <strong>de</strong> Souza durante os <strong>de</strong>bates parlamentaresque resultariam na lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1871, a chamada Lei do VentreLivre, confirma esse modo <strong>de</strong> interpretar tal alusão. Paulino li<strong>de</strong>rava à época adissidência conservadora contrária à aprovação do projeto <strong>de</strong> lei sobre a liberda<strong>de</strong>dos nascituros, argumentando, entre outras cousas, que a iniciativa contrariavaa opinião pública – isto é, contrariava os interesses dos gran<strong>de</strong>s cafeicultoresdo Vale do Paraíba –, logo caracterizava um abuso, pelo imperador,das prerrogativas do Po<strong>de</strong>r Mo<strong>de</strong>rador. Além disso, prosseguia, usurpava direitos<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> sobre escravos protegidos pela constituição imperial.Em certo momento <strong>de</strong> seu arrazoado, Paulino citou João das Regras e os seusesforços para fazer “reverter gradualmente à coroa” os bens da nobreza, “sempreque lhe parecesse”; em seguida observava que aquele era, “porém, o tempoem que o rei foi a lei viva sobre a terra, e a sua vonta<strong>de</strong> a expressão jurídica”. O18 “A” e “B”, leitores em diálogo, <strong>de</strong>ve remeter a Di<strong>de</strong>rot, Supplément au Voyage <strong>de</strong> Bougainville ou Dialogueentre A. et B., Paris, Garnier-Flammarion, 1972 (publicado originalmente em 1772). Tanto na série <strong>de</strong>Machado quanto no texto <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot, “A” e “B” começam a sua conversa falando sobre aimprevisibilida<strong>de</strong> do tempo (clima), sugerindo metáforas sobre o sentido da seqüência do diálogo.309


Jefferson Cano e outrosraciocínio <strong>de</strong> Paulino conduzia à idéia <strong>de</strong> que os excessos do rei – no caso, doimperador – po<strong>de</strong>riam levar à <strong>de</strong>sobediência aberta <strong>de</strong> seus súditos, que resistiriamà aplicação da lei <strong>de</strong> emancipação, se viesse a ser aprovada. 19Quanto aos critérios do João das Regras <strong>de</strong> “A + B”, nota-se que os diálogosque transcreveu foram quase sempre sobre problemas financeiros, em especialnotícias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfalques e <strong>de</strong>mais falcatruas que sangravam os cofres dogoverno imperial; sobre a instabilida<strong>de</strong> política nas repúblicas do Prata, o quepropiciava todo tipo <strong>de</strong> alusão à crise da instituição monárquica no Brasil esuas possíveis conseqüências; e sobre insatisfações <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças políticas nasprovíncias, o que colocava na or<strong>de</strong>m do dia o arranjo institucional centralizadorda Monarquia diante das ambições localistas, ditas fe<strong>de</strong>ralistas, que ganhavamforça.É curioso que o último texto da série “A + B”, publicado na página 2 daGazeta <strong>de</strong> Notícias <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1886, tenha aparecido ao lado <strong>de</strong> parteda longa cobertura da folha sobre o julgamento <strong>de</strong> Dona Francisca da SilvaCastro, ocorrido na véspera no júri da Corte. Tal episódio é referência centralpara a leitura da primeira crônica da série “Gazeta <strong>de</strong> Holanda”, <strong>de</strong> 1<strong>de</strong> novembro,havendo motivo para pensar que Machado pinçou aí elementos importantesna concepção <strong>de</strong> seu novo projeto no gênero. Dona Francisca da SilvaCastro, senhora casada com José Joaquim Magalhães Castro, moradora daPraia <strong>de</strong> Botafogo, era acusada <strong>de</strong> haver torturado barbaramente duas <strong>de</strong> suasescravas, Eduarda e Joana, <strong>de</strong> 15 e 17 anos, respectivamente. A primeira notíciasobre o episódio aparecera nas folhas da Corte em 12 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1886.A Gazeta <strong>de</strong>sse dia, em matéria intitulada “Barbarida<strong>de</strong>”, narra a marcha dasduas escravas pela Rua do Ouvidor na tar<strong>de</strong> do dia anterior, em companhia <strong>de</strong>João Clapp, José do Patrocínio e outras figuras <strong>de</strong> proa do movimento abolicionistada Corte, que insistiam em exibir as chagas <strong>de</strong>las para o público e na re-19 Annaes do Parlamento Brazileiro, Câmara dos Deputados, sessão <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1871; para umrelato pormenorizado da resistência da dissidência conservadora nos <strong>de</strong>bates <strong>de</strong> 1871, ver Chalhoub,Sidney, Machado <strong>de</strong> Assis, Historiador, São Paulo, Companhia das <strong>Letras</strong>, 2003, capítulo 4, em especialpp. 164-206.310


Narradores do ocaso da monarquiadação <strong>de</strong> jornais. Segundo o relato da Gazeta, Eduarda teria ficado cega <strong>de</strong> umolho <strong>de</strong>vido às pancadas; Joana, que viria a falecer dias <strong>de</strong>pois, estava magérrimae tísica; ambas tinham escoriações por todo o corpo, sangravam e vinhamcom roupas rasgadas, maltrapilhas. Foram levadas para um estúdio fotográficopara o registro <strong>de</strong> seu estado, <strong>de</strong>pois entregues a um juiz para que se tratasse <strong>de</strong>sua liberda<strong>de</strong>. 20O caso tornara-se rumoroso e, como se vê, arregimentara abolicionistas <strong>de</strong>s<strong>de</strong>o seu início, em especial no rescaldo da aprovação da lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1885, vista por muitos àquela altura como passo tímido <strong>de</strong>mais em direção à extinçãoda escravidão – e entre os que viam a situação por esse prisma contavam-se,<strong>de</strong> modo conspícuo, os redatores da Gazeta <strong>de</strong> Notícias. Após acompanharo andamento do caso ao longo do ano, a Gazeta intensificara a cobertura nos diasanteriores ao julgamento, culminando em várias colunas <strong>de</strong> texto sobre a sessãodo júri, espalhadas por duas páginas, na edição <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1886. A estratégiada <strong>de</strong>fesa consistira, por um lado, em alegar que o episódio fora manipuladopelos abolicionistas, que teriam aumentado a sua importância <strong>de</strong>vido a seus<strong>de</strong>sígnios políticos; por outro lado, e mais importante, diziam que Dona Franciscaestava doente, sofrendo ataques que lhe tiravam a consciência do que fazia.A Machado <strong>de</strong> Assis não <strong>de</strong>ve ter escapado o laudo “científico” dos médicosque haviam examinado a ré, transcrito assim na Gazeta do dia 24:“É curiosa a anamnese constante do exame feito na acusada pelos senhores TeixeiraBrandão, Souza Lima e Teixeira <strong>de</strong> Souza. Transcrevemo-la aqui (...):‘Soubemos que Dona Francisca <strong>de</strong> Castro, filha <strong>de</strong> uma união ilegítima,cresceu e <strong>de</strong>senvolveu-se em um ambiente pouco apto para arvorecer a expansãodas forças virtuais congênitas, que, <strong>de</strong>pois sob a forma <strong>de</strong> sentimentoséticos, <strong>de</strong>veriam constituir o centro regulador <strong>de</strong> todas as suas ações.Descen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> uma senhora que, segundo nos referem, sucumbiu a uma20 Para as informações sobre a série “Gazeta <strong>de</strong> Holanda” e sua interpretação, baseamo-nos nascrônicas anotadas e no trabalho em andamento para a preparação do seguinte volume: Chalhoub,Sidney, Machado <strong>de</strong> Assis: A + B e Gazeta <strong>de</strong> Holanda, a ser publicado pela Editora da UNICAMP.311


Jefferson Cano e outrosmoléstia cerebral, D. Francisca se distinguiu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância pela excitabilida<strong>de</strong>do sistema nervoso e instabilida<strong>de</strong> do caráter. Sem cultivo intelectualnem corretivo que pu<strong>de</strong>sse subordinar os seus instintos, <strong>de</strong>sejos e sentimentosao império das leis que consubstanciam o progresso moral, habituou-seela a governar sem constrangimento; e, se por acaso encontrava relutânciaao menor <strong>de</strong> seus caprichos, vencia facilmente todos os escrúpulos com umataque histérico ou uma tentativa <strong>de</strong> suicídio. Vendo satisfeitas as suas fantasiase realizados sem discrepância todos os seus votos, D. Francisca <strong>de</strong>Castro tornou-se <strong>de</strong>spótica e avessa aos estímulos da pieda<strong>de</strong> e do bem(...)’.” (Gazeta <strong>de</strong> Notícias, 24/10/1886, p. 2).O resumo da ópera é que Dona Francisca “douda” da Silva teve gran<strong>de</strong> performanceem seu próprio julgamento: entrou na sala <strong>de</strong> mãos dadas com um <strong>de</strong>seus três filhinhos, sofreu um “ataque” que a levou ao chão, riu durante a sessãodo júri sem que se soubesse do quê. Acabou absolvida por unanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>votos, para gran<strong>de</strong> indignação dos jornalistas da Gazeta. Quanto a Machado, nasuposta loucura <strong>de</strong> Dona Francisca, cuja causa insinuada no laudo tinha a vercom nascimento ilegítimo e <strong>de</strong>generação, saltava o tema do cientificismo e dasapropriações várias do darwinismo naquele momento para justificar quasetudo, em especial no que tange à sua vinculação com o tipo <strong>de</strong> oportunismopolítico e social que ele já vinha abordando em séries anteriores. De fato, Machado<strong>de</strong> Assis relacionava a busca inescrupulosa do interesse próprio, a avi<strong>de</strong>zpor lucro que levava a <strong>de</strong>sfalques e falcatruas diversas, assunto importante em“A + B”, com a idéia <strong>de</strong> que “vida é luta”, resultando na sobrevivência do maisapto. Num caso como no outro, a busca do interesse próprio, levado ao pontoda superação ou eliminação do próximo, ou do prazer em vê-lo varrido pelascircunstâncias, resultaria no equilíbrio da socieda<strong>de</strong> – doutrina esta, enfim,cujo absurdo Machado vinha expondo e combatendo ao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as MemóriasPóstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. 21 Em “A + B”, <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1886, “B”21 Ver Chalhoub, Sidney, Machado <strong>de</strong> Assis, Historiador, capítulo 3.312


Narradores do ocaso da monarquiapergunta a “A”: “Você crê na luta pela vida?”. “A” respon<strong>de</strong>: “Como não crer,se é a verda<strong>de</strong> pura?”. “B” explica então que “na luta pela vida tem <strong>de</strong> vencer omais forte ou o mais hábil”, e pergunta ao outro: “Você é forte?”. “Sou um banana”,respon<strong>de</strong> o colega. “B” então aconselha: “Pois seja hábil. Make money;éoconselho <strong>de</strong> Cássio. Mete dinheiro no bolso”. Nessas linhas, o dogma cientificistada “luta pela vida” aproxima-se do mote capitalista do lucro a qualquercusto, “mete dinheiro no bolso”, entrelaçando-se, tornando-se inextricáveis.Na série “Gazeta <strong>de</strong> Holanda”, como nas outras que Machado <strong>de</strong> Assis escreveuao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “História <strong>de</strong> Quinze Dias”, a realização literária <strong>de</strong>sseprojeto <strong>de</strong> crítica política e i<strong>de</strong>ológica é sinuosa e complexa. A série consisteem 48 textos, publicados na Gazeta <strong>de</strong> Notícias entre 1<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1886 e24 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1888, sempre em versos rimados organizados em quadrascujo número variava <strong>de</strong> uma crônica a outra. Sobre o título, sua origem maisgeral po<strong>de</strong> ser entendida na leitura do verbete “(Les) Gazettes <strong>de</strong> Hollan<strong>de</strong>” noGrand Dictionnaire Universel du XIXe siècle, <strong>de</strong> Pierre Larousse (1872). SegundoLarousse, tais Gazettes consistiam em jornais ou panfletos publicados por refugiadosfranceses em Amsterdã e Lei<strong>de</strong>n, durante os séculos XVII e XVIII, cujacaracterística principal seria a maledicência e a calúnia, explorando a curiosida<strong>de</strong>do público pelo escândalo e pela <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> reputações. A referênciamais próxima do título era ao estribilho <strong>de</strong> uma das canções da opereta <strong>de</strong> JacquesOffenbach, Henri Meilhac e Ludovic Halévy, La Gran<strong>de</strong> Duchesse <strong>de</strong> Gérolstein,cantada com gran<strong>de</strong> sucesso no Alcazar Lyrique Français da Rua da Vala,segundo Raimundo Magalhães Júnior. 22 Na verda<strong>de</strong>, o estribilho abria todasas crônicas: “Voilà ce que l’on dit <strong>de</strong> moi/ Dans la Gazette <strong>de</strong> Hollan<strong>de</strong>”.O enredo da opereta esclarece o contexto em que aparece o estribilho. OPríncipe Paul esperava havia seis meses que a Grã-Duquesa <strong>de</strong> Gérolstein aceitasserealizar o casamento acordado entre eles. A grã-duquesa enrolava o donzel<strong>de</strong> todas as maneiras, interessando-se por campanhas militares, e por militareschibantes, antes que pelo príncipe insosso. Numa das cenas, o príncipe se22 Magalhães Júnior, Raimundo, Vida e Obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Volume 3: Maturida<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro eBrasília, Civilização <strong>Brasileira</strong> e INL, 1981, pp. 102-3.313


Jefferson Cano e outrosqueixava à grã-duquesa do incômodo <strong>de</strong> sua situação, pois virara motivo <strong>de</strong>chacota “dans la Gazette <strong>de</strong> Hollan<strong>de</strong>”, lendo em seguida trechos do jornal para aconsorte almejada, entre os quais se incluía o tal estribilho. Após muitas peripécias,e frustrada em seu <strong>de</strong>sejo por homem fardado e engalanado, agrã-duquesa acaba anuindo em casar com o Príncipe Paul, que afinal não pareciamau partido do ponto <strong>de</strong> vista do interesse material. Ao fazer isto, todavia,justifica-se dizendo frase que Machado colocara antes na pena <strong>de</strong> Lélio, empassagem <strong>de</strong> crônica já citada (8 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1885), na qual o tema era o oportunismopolítico: “Quand on n’a pas ce que l’on aime, il faut aimer ce que l’on a” (“quandonão se tem aquilo que se ama, resta amar aquilo que se tem”). Quanto ao apelidodo narrador-personagem, Malvólio, também se inspirava em sujeito que passararidículo na esperança <strong>de</strong> casar com mulher nobre, a Con<strong>de</strong>ssa Olívia, na comédiaThe Twelfth Night (A noite dos reis), <strong>de</strong> Shakespeare. Tanto Paul quantoMalvólio são envolvidos em várias tramas e interesses <strong>de</strong> personagens que seaproveitam da ingenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, como se não estivessem bem adaptados paralidar com “a lei darwinica” (expressão que abre a crônica <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong>1886) que passara a informar as relações sociais. De qualquer modo, Paul acabaconseguindo casar com a grã-duquesa; quanto a Malvólio, <strong>de</strong>scobre as tramas<strong>de</strong> que foi vítima e termina a peça jurando vingança. Pareciam prontos,enfim, para encarar a vida <strong>de</strong> outro jeito, fornecendo assim o barro que, moldadocom a pena da galhofa, resultaria no Malvólio da “Gazeta <strong>de</strong> Holanda”.Em outras palavras, <strong>de</strong> todos esses ingredientes históricos e literários surgeum narrador disposto a a<strong>de</strong>rir à “lei darwinica”, atento a todas as oportunida<strong>de</strong>sque po<strong>de</strong>riam levá-lo a “meter dinheiro no bolso”, a<strong>de</strong>pto da máxima <strong>de</strong> que “naluta pela vida tem <strong>de</strong> vencer o mais forte ou o mais hábil”. Já se vê o potencialpara argumentos absurdos, e logo para versos cômicos, em semelhante situação.Na crônica <strong>de</strong> 1<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1886, a <strong>de</strong> abertura, toda ela eivada <strong>de</strong> referênciasao julgamento <strong>de</strong> Dona Francisca da Silva Castro, o narrador observa que aenchente <strong>de</strong> pessoas interessadas em assistir ao julgamento no júri tornara claroque a Corte precisava <strong>de</strong> novo prédio para abrigar o tribunal. Se tal edifício vingasse,pensou consigo Malvólio, bem feito “Que Joaninha expirasse/ De uma314


Narradores do ocaso da monarquiamoléstia do peito,/ E que a Eduarda cegasse./ Só assim tínhamos prédio/ Paraum tribunal sem nada;/ Não foi morte, foi remédio;/ Foi vida, não foi pancada”.No texto <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> novembro, Malvólio, em conversa com um boticário visivelmentefeliz com os lucros que lhe adviriam caso se confirmasse, na Corte, aameaça <strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> cólera, que já grassava na Argentina, também encontramotivo para ver nisso promessa <strong>de</strong> bem-aventurança. Os telegramas <strong>de</strong> BuenosAires informavam que o cólera dizimara os internos <strong>de</strong> um hospício <strong>de</strong> alienados.Depois <strong>de</strong> várias quadras que <strong>de</strong>screviam a vida “enclausurada” dos “doudos”,cheia <strong>de</strong> “conversações sem gente”, “meias lembranças”, “meia flor <strong>de</strong> esperanças”,Malvólio via na interrupção daquelas vidas um “benefício imenso”:“Nem sempre a peste é moléstia/ Sacramentos e ataú<strong>de</strong>;/ Aos doudos vale umaréstia/ De inesperada saú<strong>de</strong>”.Por fim, como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, Malvólio discorre em várias ocasiõessobre as estratégias que imaginava para chegar ao lucro fácil, “para meter dinheirono bolso”. Na crônica <strong>de</strong> 21<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1886, ele fantasia umaconversa com o diabo, que lhe pergunta: “Que queres ser nesta vida?”. O <strong>de</strong>moo tenta com muitas cousas, tronos, altares, moças, ouro, figos, estrelas, masMalvólio recusava tudo. Por fim, conta que “Quisera ser cartomante,/ Dizerque espere ao que espera,/ Dizer que ame ao amante./ Saber <strong>de</strong> cousas perdidas,/Saber <strong>de</strong> cousas futuras,/ De verda<strong>de</strong>s não sabidas,/ De verda<strong>de</strong>s nãomaduras”. Cada número da Gazeta <strong>de</strong> Notícias à época trazia meia-dúzia <strong>de</strong> reclames<strong>de</strong> profissionais que tais, sempre intitulados “Cartomante”, como porexemplo o <strong>de</strong> Madame Vidal, que vinha assim: “dá consultas por diversos sistemas,todos os dias, para <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> qualquer espécie, lê o <strong>de</strong>stino na mãoe explica-se com clareza; na Rua do Hospício no. 249, sobrado”. 23 Malvólioconcluía a crônica dizendo que promoveria “notáveis melhoramentos” no ofício,“Tapetes, largo edifício,/ E o preço – mil e quinhentos”. Noutra crônicamuito divertida, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1887, é Deus quem pergunta ao narradoro que ele <strong>de</strong>sejava ser na vida. Dessa vez Malvólio queria entrar no Senado,23 Gazeta <strong>de</strong> Notícias, 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1886, p. 3.315


Jefferson Cano e outros<strong>de</strong> preferência “pela janela”, <strong>de</strong>certo impressionado com querelas eleitorais e<strong>de</strong>bates públicos sobre a vitalicieda<strong>de</strong> dos cargos dos senadores. Não carece,enfim, multiplicar exemplos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> postura do narrador, pois será sempremais divertido ler as quadras <strong>de</strong> Machado na íntegra. O que surpreen<strong>de</strong> econsterna, no entanto, é que esses textos permaneçam praticamente <strong>de</strong>sconhecidos,pouco estudados e quase sempre ignorados em antologias e ditas obrascompletas do escritor. 24O objetivo <strong>de</strong>ste artigo foi apresentar uma leitura <strong>de</strong> algumas séries <strong>de</strong> crônicas<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>de</strong> maneira a <strong>de</strong>monstrar, por um lado, como oexercício <strong>de</strong> estudá-las comparativamente ajuda no esforço <strong>de</strong> compreensão<strong>de</strong>las. Por outro lado, buscou-se dar alguma dimensão da complexida<strong>de</strong> intelectual<strong>de</strong>sse esforço, da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> combinar a pesquisa exaustiva necessáriaà sua anotação com o exercício <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong>sses textos. A<strong>de</strong>mais, seinterpretados com o cuidado <strong>de</strong>vido, tais textos tornam-se testemunhos <strong>de</strong>nsose complexos, ainda praticamente inexplorados, da vida política e socialbrasileira nas últimas décadas do regime monárquico.24 No volume III <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis: Obra Completa, da Editora Nova Aguilar (consultei a edição <strong>de</strong>1986), <strong>de</strong>dicado em gran<strong>de</strong> parte a uma seleção das crônicas do escritor, não há nenhum texto dasséries “A + B” e “Gazeta <strong>de</strong> Holanda”. Em volume recente, <strong>de</strong> uma coleção intitulada “MelhoresCrônicas”, reproduz-se o procedimento <strong>de</strong> passar diretamente <strong>de</strong> “Balas <strong>de</strong> Estalo” a “BONSDIAS!”; ver Cara, Salete <strong>de</strong> Almeida (seleção e prefácio), Machado <strong>de</strong> Assis, São Paulo, Global, 2003.316

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