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Anorexia: um fracasso do trabalho da melancolia Ana Paula ...

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Em seu artigo Luto e Melancolia [2011(1915)], Freud se ocupa em apresentar oprocesso de luto – “reação à per<strong>da</strong> de <strong>um</strong>a pessoa queri<strong>da</strong> ou de <strong>um</strong>a abstração queesteja no lugar dela, como pátria, liber<strong>da</strong>de, ideal, etc” (p.47) - como <strong>um</strong> <strong>trabalho</strong> dedesinvestimento <strong>do</strong> psiquismo sobre o objeto perdi<strong>do</strong>. Considera esse processonecessário e normal, especialmente pela retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> libi<strong>do</strong> que recai sobre o objeto quejá não se faz mais presente, deixan<strong>do</strong>-a assim, livre para novos investimentos. O caráterde reali<strong>da</strong>de é, portanto, inquestionável; bem como, o envolvimento <strong>do</strong>s processos préconscientes/conscientes.Há casos, contu<strong>do</strong>, em que o processo não se dá assim, em que além <strong>do</strong> desânimo, <strong>do</strong>desinteresse pelo mun<strong>do</strong>, <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de amar e <strong>da</strong> redução <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>dede trabalhar, há <strong>um</strong> expressivo “rebaixamento <strong>do</strong> sentimento de autoestima que seexpressa em autorrecriminações e autoinsultos” (opus cit, p. 47). Trata esses porprocessos melancólicos, em que sublinha a distinção concernente à alteração <strong>da</strong>autoestima e também pelo caráter <strong>da</strong> per<strong>da</strong> que não recai, necessariamente à morte de<strong>um</strong> ente queri<strong>do</strong>, mas sim a sua natureza ideal, algo que se perdeu como objeto de amor.Relaciona à <strong>melancolia</strong> <strong>um</strong> caráter fantasmático e inconsciente. E nos aponta tal qual noluto, em que se faz claro o caráter de <strong>trabalho</strong> – elaboração psíquica -, também na<strong>melancolia</strong>, o mesmo atributo. É por essa quali<strong>da</strong>de de <strong>trabalho</strong> que a <strong>melancolia</strong>possibilita que, internamente, se busque reparar <strong>um</strong>a per<strong>da</strong> no ego.Assim Freud nos ensina que, se soubermos ouvir com paciência as múltiplasautoacusações <strong>do</strong> melancólico, compreenderemos que seus insultos recaem menos à suaprópria pessoa, mas sim a alguém a quem o <strong>do</strong>ente ama, amou ou deveria amar. “Dessemo<strong>do</strong>, tem-se à mão a chave <strong>do</strong> quadro clínico, na medi<strong>da</strong> em que se reconhecem as


prazer. Nessa ocasião, tentamos compreender tal problemática como <strong>um</strong> destino <strong>do</strong>narcisismo em que, por não conseguir superar, separar o que seria <strong>um</strong> ideal <strong>do</strong> outroimpingi<strong>do</strong> em seu psiquismo, regride ao corpo identifica<strong>do</strong> com o que foi incorpora<strong>do</strong>.Um destino pulsional que causa estranhamento e <strong>do</strong>r: a libi<strong>do</strong> que deveria se desligar de<strong>um</strong> objeto e ganhar novos investimentos retorna ao ego, só que nesse caso ao egocorporal que encarnaria representações identificatórias bastante primitivas. Concluímosnesse artigo que para poder continuar viven<strong>do</strong> a anoréxica tem a tarefa de desencarnaresse objeto intrusivo, incrustra<strong>do</strong> no que consideramos seu narcisismo corporal.Em Sobre o narcisismo: <strong>um</strong>a introdução (1914), Freud assinala que a escolha objetalfeita pelas mulheres é preferencialmente narcísica: elas tomam por objeto sexualàqueles que as amam ou que as convertem em seu ideal; que restituam sua autoestima.Hugo Bleichmar (1989) abor<strong>da</strong> o tema <strong>do</strong> narcisismo consideran<strong>do</strong> duas ordens deproblema, o <strong>da</strong> relação entre o ego e o objeto e o <strong>da</strong> vivência de perfeição, deautossatisfação, de plenitude. Toman<strong>do</strong> o narcisismo primário como objetal, <strong>um</strong>a vezque o próprio corpo ou o ‘si mesmo’ se ofereceriam como objeto de amor para o sujeito,reitera a importância <strong>do</strong> outro na construção <strong>da</strong>s representações que serão base <strong>da</strong>sidentificações. Assinala ain<strong>da</strong> que “identificação e narcisismo são incompreensíveis senão forem articula<strong>do</strong>s com a divisão em consciente e inconsciente, essencial para apsicanálise. Com relação à imagem inconsciente, o ego e o outro são o mesmo” (p. 36).Bleichmar destaca ain<strong>da</strong> que o amor <strong>do</strong> narcisismo se caracteriza pela idealização, o quepotencializa os sentimentos de perfeição, beleza, encantamento e inteligência, entreoutras quali<strong>da</strong>des associa<strong>da</strong>s aos ideais.Remete-nos, a partir <strong>da</strong>í, à constatação que essas valorizações implicam <strong>um</strong>a ordemsimbólica que é exterior ao sujeito e na qual se inscreve. “É o outro quem convertemeros objetos anatômicos em algo digno de ser admira<strong>do</strong> como belo. Resulta fácil


imaginar as múltiplas situações em que <strong>um</strong>a mãe pode converter em a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>s os olhos eos cachos de cabelos de sua filha ou em notáveis as produções intelectuais ou físicas <strong>da</strong>smesmas”. (opus cit. p.38). E assinala, também, que o narcisismo <strong>do</strong>s pais estarádiretamente <strong>um</strong>brica<strong>do</strong> na satisfação de suas próprias necessi<strong>da</strong>des de hiperestima aovalorar seus filhos.O que aconteceria então com nossas pacientes que desenvolvem <strong>um</strong> quadro deanorexia?Ao considerarmos a maior incidência dessa patologia na a<strong>do</strong>lescência <strong>da</strong>s garotas,inevitavelmente remeteremos aos lutos que deman<strong>da</strong>m elaboração por si nessa fase <strong>do</strong>desenvolvimento - luto ao próprio corpo, à identi<strong>da</strong>de infantil, aos pais <strong>da</strong> infância e àbissexuali<strong>da</strong>de. O que parece já ser <strong>um</strong>a tarefa difícil é potencializa<strong>da</strong>, via de regra, poroutras per<strong>da</strong>s significativas já cita<strong>da</strong>s (decepção amorosa, mu<strong>da</strong>nça, separações,viagens, intercambio, etc.), e então assistimos a essa jovem atribuir a algo em seu corpoa causa de seu <strong>fracasso</strong>.Parece, sobretu<strong>do</strong>, que o que poderia ser <strong>um</strong> <strong>trabalho</strong> melancólico que lhe outorgasse apossibili<strong>da</strong>de de encontrar em representações mentais a identificação narcísica própria aesse processo, vai além e transfere para o corpo o sadismo já assinala<strong>do</strong> por Freud comopertinente a esse complexo. A ambivalência <strong>da</strong>s relações amorosas, que já configura na<strong>melancolia</strong> o amor e o ódio dirigi<strong>do</strong>s ao objeto, encontra aqui peculiar expressão. Aentra<strong>da</strong> na a<strong>do</strong>lescência <strong>da</strong> menina lhe impõe a tarefa de desligar as representaçõespróprias ao seu mun<strong>do</strong> infantil e nesse caso, nos parece que a força <strong>do</strong>s investimentosimpede que esse desligamento siga <strong>um</strong> processo de luto normal. Freud enfatiza que parahaver <strong>um</strong> <strong>trabalho</strong> de luto as representações devem encontram <strong>um</strong> caminho flui<strong>do</strong> <strong>do</strong>sistema inconsciente para o pré-consciente/consciente e que o mesmo não acontece na


<strong>melancolia</strong>: “esse caminho está bloquea<strong>do</strong> para o <strong>trabalho</strong> melancólico, talvez emconsequência de inúmeras causas ou de <strong>um</strong>a ação conjunta de causas” (opus cit. p. 81).Mais <strong>do</strong> que <strong>um</strong> bloqueio que impeça a derivação de representações mentaisinconscientes, o que observamos é essa derivação para representações corporais. Porisso propomos considerar <strong>um</strong> <strong>fracasso</strong> <strong>do</strong> <strong>trabalho</strong> <strong>da</strong> <strong>melancolia</strong>, na medi<strong>da</strong> em que oódio e o sadismo são dirigi<strong>do</strong>s ao próprio corpo, depositário dessas identificações.Nesse caso, nos parece que nesse <strong>trabalho</strong> regressivo o ego já encontra o próprio objetoencarna<strong>do</strong> – e não a ‘sombra <strong>do</strong> objeto’, como assinala Freud como característicacentral <strong>do</strong> <strong>trabalho</strong> <strong>da</strong> <strong>melancolia</strong>.Retoman<strong>do</strong> o texto freudiano, ao tratar a tendência ao suicídio na <strong>melancolia</strong>, teremosque considerar que “... a análise <strong>da</strong> <strong>melancolia</strong> nos ensina que o ego só pode matar a sipróprio se puder, por meio <strong>do</strong> retorno <strong>do</strong> investimento de objeto, tratar-se como <strong>um</strong>objeto (grifo meu), se puder dirigir contra si a hostili<strong>da</strong>de que vale para o objeto e querepresenta a reação primordial <strong>do</strong> ego contra os objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo” (opus cit. p.69). A confusão que se estabelece no espelho <strong>da</strong> anoréxica parece nos contar sobre afalta de discernimento entre ego, objeto e ego corporal. Confusão essa decorrente <strong>do</strong>superinvestimento <strong>do</strong> narcisismo materno, que a impossibilita de realizar <strong>um</strong> processomelancólico exitoso – que lhe ofereceria representações mentais para elaborar seus lutose que outorgaria ao ego sua principal atribuição, o discernimento. Ela suc<strong>um</strong>be, nãopercebe que castiga seu corpo; ao contrário tem plena certeza que não se alimentan<strong>do</strong>está cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de <strong>um</strong> corpo deforma<strong>do</strong> pela gordura. Dito de outra maneira: estátentan<strong>do</strong> pela via motora desinvestir a libi<strong>do</strong> que recai sobre o objeto de amor e ódio.Reage maniacamente: luta com to<strong>da</strong> energia, resultante <strong>da</strong> retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> libi<strong>do</strong> objetal,contra si mesma, mas acreditan<strong>do</strong> que <strong>do</strong>minou o inimigo.


A morte não está em questão como possibili<strong>da</strong>de real para a anoréxica, ela não tem porintenção morrer. Só poderá viver se puder matar sua imagem especular.BibliografiaBLEICHMAR, H. Depressão: <strong>um</strong> estu<strong>do</strong> psicanalítico. Porto Alegre: ArtesMédicas, 3ª Ed. 1989.FREUD, S. (1915) Sobre o narcisismo: <strong>um</strong>a introdução. In: Edição Stan<strong>da</strong>rdBrasileira <strong>da</strong>s Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago; 1976. Vol. XIV.FREUD, S. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.GONZAGA, A.P. “Se esse corpo fosse meu...” - Considerações sobre oestranhamento na anorexia. In: GONZAGA, A.P; WEINBERG, C. (org.). Psicanálisede Transtornos Alimentares. São Paulo: Primavera Editoria, 2010.

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