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Ordem e Ser. Ontologia da Relação em Santo Agostinho

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INTRODUÇÃO1. A noção de ordo no contexto <strong>da</strong> obra augustinianaSituando-se no cerne <strong>da</strong> metafísica augustiniana, a reflexão sobre a ordo rerumnão é exclusiva do Hiponense. Efectivamente, é fácil identificar um discurso sobre aord<strong>em</strong>, tanto nas obras dos filósofos <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de como nos escritos <strong>da</strong>queles que sesituam já na era cristã e com os quais Sto. <strong>Agostinho</strong> mais de perto dialogou.Quase s<strong>em</strong>pre identifica<strong>da</strong> com o conceito de hierarquia, a noção de ord<strong>em</strong> pareceexercer fascínio sobre a mente. Ao discorrer sobre esta noção, <strong>em</strong> busca deracionali<strong>da</strong>de para o real, a linguag<strong>em</strong> humana socorre-se de uma multiformeconstelação de imagens, traduzindo a percepção <strong>da</strong> ordo rerum por meio de escalas deseres, níveis de pensamento, estádios de existência, pirâmides de ideias, árvores desaberes. A este esforço <strong>da</strong> razão está subjacente a convicção de que s<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> não háracionali<strong>da</strong>de. Subconjunto desta certeza é a persuasão de que todo o real está dispostohierarquicamente, mediante formas diferencia<strong>da</strong>s de ser. Com efeito, ao conceber aord<strong>em</strong> como disposição gradual de formas, a razão humana admite no universo umadispensação do ser segundo uma medi<strong>da</strong> – maius et minus esse.A obra augustiniana obedece a esta solicitude pela ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas e a estespadrões de interpretação. Nesta medi<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> a t<strong>em</strong>ática, n<strong>em</strong> o modo de a abor<strong>da</strong>rdefin<strong>em</strong> a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reflexão do Hiponense sobre a noção de ordo. To<strong>da</strong>via, nointuito de identificar o que nela há de próprio, cabe destacar dois aspectos, intensamentevividos por <strong>Agostinho</strong>: a experiência <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> e a exigência de resposta para aquestão essencial de to<strong>da</strong> a metafísica, a saber, a <strong>da</strong> relação entre o Uno e o múltiplo. Sea primeira vertente deste binómio r<strong>em</strong>ete para um domínio predominant<strong>em</strong>ente próprio,<strong>da</strong><strong>da</strong> a sua relação com o percurso biográfico de <strong>Agostinho</strong>, a segun<strong>da</strong> é de alcanc<strong>em</strong>aximamente universal.Contudo, note-se que mesmo esta distinção entre um domínio próprio, de vivênciaou experiência de desord<strong>em</strong>, e um comum, que interroga a relação entre o Uno e omúltiplo, ou, <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> mais cara a <strong>Agostinho</strong>, entre o <strong>Ser</strong> e os seres, entre Deus eas criaturas, padece de algum artifício. Na ver<strong>da</strong>de, a própria experiência <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>é, pelo menos num primeiro confronto <strong>da</strong> razão com a estrutura do real, um el<strong>em</strong>entouniversal. Se há vivência comum a todo o ser humano é a do confronto com o mal,9


noção identifica<strong>da</strong> com a experiência limite do sofrimento e <strong>da</strong> morte. Ora, uma talconvivência está <strong>em</strong> perene conflito com o desejo de felici<strong>da</strong>de, anichado, também d<strong>em</strong>odo irrefragável, no íntimo do ser humano.Ao colocar a in<strong>da</strong>gação sobre a ordo rerum no cerne <strong>da</strong> filosofia, Sto. <strong>Agostinho</strong>t<strong>em</strong> plena consciência <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tarefa. Com efeito, e segundo uma insistenteadvertência do Hiponense, a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas é uma noção que não se deixa facilmentedomesticar pelo entendimento, não obstante surgir como a questão mais universal einquietante, aquela com a qual inevitavelmente todo o espírito humano alguma vez seconfrontou, desde o alvorecer dos primeiros passos na apreensão do real, até aoanoitecer <strong>da</strong> sua existência nesta terra de <strong>em</strong>igração.Ora, é a própria condição rebelde e resvaladiça <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que permite captar oalcance que Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui a esta noção. Para o filósofo, a ord<strong>em</strong> espelha-se porto<strong>da</strong> a parte na essência do Universo. A apreensão dela por parte do entendimentohumano permite desven<strong>da</strong>r a natureza do Princípio s<strong>em</strong> princípio de to<strong>da</strong>s as coisas, <strong>em</strong>cuja compreensão consiste, afinal, o término <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de filosófica, entendi<strong>da</strong> comoamor seu dilectio Sapientiae. A identi<strong>da</strong>de que, na obra augustiniana, se estabeleceentre a ord<strong>em</strong> e o ser, permite compreender que, para o Hiponense, aquela noção estáintrinsecamente uni<strong>da</strong> ao próprio exercício <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de. A ord<strong>em</strong> está imiscuí<strong>da</strong> <strong>em</strong>tudo e por to<strong>da</strong> a parte se manifesta. Este facto decorre <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> próprianoção, do mesmo modo que o ser está omnipresente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> expressão de reali<strong>da</strong>de.Ordo-esse-ratio formam, assim, para o Hiponense, uma trilogia que, na sua inesgotávelriqueza, se desdobra <strong>em</strong> múltiplas outras, no intuito de tornar acessível à compreensãohumana a forma de to<strong>da</strong> a criatura.Essencial na dinâmica do múltiplo, a trilogia ordo-esse-ratio integra os princípiosque garant<strong>em</strong> a harmonia do real e a sobrevivência deste <strong>em</strong> face de to<strong>da</strong> a aparentesubsistência <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>. Porém, e não obstante o cosmos ser, de per si, sinal deord<strong>em</strong>, nas formas que preench<strong>em</strong> o universo o ser e a ord<strong>em</strong> conviv<strong>em</strong> com factores decorrosão. Estes manifestam-se através <strong>da</strong> contingência <strong>da</strong>s formas, <strong>da</strong> finitude et<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de delas, <strong>da</strong> sua inserção numa dinâmica de historici<strong>da</strong>de que o Filósofo deHipona gosta de designar por curso dos t<strong>em</strong>pos, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana interveniente nahistória, do concurso <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des, enfim, <strong>da</strong> inserção de to<strong>da</strong>s estas reali<strong>da</strong>des <strong>em</strong>uma condição mais vasta de existência, designa<strong>da</strong> por cosmos, ele mesmo sujeito aot<strong>em</strong>po e à historici<strong>da</strong>de.10


Como faz notar <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> De ordine, a complexi<strong>da</strong>de dos factores enunciadose a possibili<strong>da</strong>de, para a razão humana, de apreender, <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong>de e extensão, arelação que entre eles se constitui, estabelece um paralelismo entre a dificul<strong>da</strong>de que arazão humana enfrenta para apreender a noção de ordo e o mito de Proteu. De facto, aord<strong>em</strong> surge com evidência apodíctica ante o olhar desprevenido que, de modoinocente, se fixa na beleza e na harmonia <strong>da</strong>s formas. Porém, no confronto com o luscofusco<strong>da</strong> finitude e contingência delas, a ord<strong>em</strong> imediatamente se oculta, quando a razãohumana se detém num esforço de apreensão <strong>da</strong> natureza de ca<strong>da</strong> forma, considera<strong>da</strong> <strong>em</strong>si mesma e no diálogo que estabelece com o conjunto. Ante o esforço de apreensãoracional, qual Proteu, a ord<strong>em</strong> assume diferentes rostos e <strong>em</strong> nenhum deles se esgota acompreensão dessa indisciplina<strong>da</strong> e resvaladiça noção. Em última instância, o carácterprobl<strong>em</strong>ático <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong> decorre do facto de a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> naturezadela coincidir com a questão que ocupa o cerne de to<strong>da</strong> a metafísica: o confronto <strong>da</strong>razão humana com o modo como se relacionam a Plenitude e a contingência, o Uno e omúltiplo.Desde os seus primeiros escritos Sto. <strong>Agostinho</strong> apresenta a questão <strong>da</strong> ordorerum como um filosof<strong>em</strong>a de máxima radicali<strong>da</strong>de, formulado de modo a inscreveraquela interrogação num horizonte de universali<strong>da</strong>de.É um facto que a questão é apresenta<strong>da</strong> mediante uma interrogação de algummodo epidérmica – Se Deus existe, como justificar o mal? Se não existe, como garantirracionali<strong>da</strong>de ao real? Porém, este modo de posicionar o filosof<strong>em</strong>a, para além deinscrever o horizonte de compreensão dela num determinado contexto histórico ecultural, manifesta, a um t<strong>em</strong>po, a condição radical do ser humano, na relação que eleestabelece com a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas que compõ<strong>em</strong> a imensa sinfonia cósmica <strong>em</strong>que está inserido.Em última instância, tal interrogação revela uma inquietude derradeira: é, ou não,possível colmatar o infinito desejo de beatitude e de paz que o ser humano, para ondequer que se volte e independent<strong>em</strong>ente do objecto sobre o qual detenha a sua atenção,encontra no interior de si mesmo, não logrando satisfazer tal anseio, mesmo quandopossui to<strong>da</strong> a espécie de bens? E, como descreve <strong>Agostinho</strong> com sagaci<strong>da</strong>de, se é umfacto que n<strong>em</strong> a experiência <strong>da</strong> posse ou indigência de bens que se pod<strong>em</strong> possuir - nãoobstante, <strong>da</strong><strong>da</strong> a contingência dessas formas, tal posse ser inalienável do risco de per<strong>da</strong> -preenche esse desiderato essencial, será, ou não, possível aquietar um tal anseio? Para11


complexificar a questão acerca de decidir que tipo de bens logram preencher esse afã depaz e beatitude, Sto. <strong>Agostinho</strong> enfrenta, ain<strong>da</strong>, a comprovação de uma reali<strong>da</strong>deirrefragável: os bens a possuir, disponíveis no universo, assim como o próprio serhumano que a eles tende, não são apenas contingentes. Eles padec<strong>em</strong> de uma efectivadeformação.É um facto que o Filósofo de Hipona canta o louvor de to<strong>da</strong> a criatura, a beleza, aord<strong>em</strong> e a harmonia que nela brilha e se reflecte. Porém, no interior de to<strong>da</strong> a forma e,de modo particular, na forma humana, o Hiponense não nega a reali<strong>da</strong>de de umapresença desfeia<strong>da</strong> a qual, de acordo com o seu modo de pensar, essencialmentedialógico e dinâmico, gosta de justificar de diversos modos. Assim, a falta de densi<strong>da</strong>deontológica <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s pode entender-se como efeito de uma corrupção original.Esta, não afectando, na essência, as formas cria<strong>da</strong>s, retira-lhes brilho e esplendor. Olusco-fusco que a razão humana verifica <strong>em</strong> tais formas pode decorrer, também, <strong>da</strong>relação que o ser humano estabelece com elas. Tal fenómeno ocorre quando, <strong>em</strong> vez defazer uso delas <strong>em</strong> direcção ao B<strong>em</strong> Comum, o faz servindo-se delas para satisfação desi mesmo. Nestas acepções – informi<strong>da</strong>de relativa <strong>da</strong>s formas, manifestação <strong>da</strong>tendência a uma maior perfeição e disformi<strong>da</strong>de introduzi<strong>da</strong> naquelas <strong>em</strong> virtude de umuso indevido - dir-se-ia que a densi<strong>da</strong>de ontológica <strong>da</strong>s formas se oculta <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong>presença de uma estrutura de desord<strong>em</strong> no universo. Este modo de relação defectiva queo ser humano estabelece com a reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte é designado por mal. Porém, namundividência augustiniana cabe ain<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de de considerar a deformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>scriaturas como resultado de um apelo feito ao ser humano pelo próprio real, no sentidode colaborar no progressivo aperfeiçoamento do universo, na expressão histórica deste,a qual é indissociável <strong>da</strong> sua dinâmica escatológica.<strong>Agostinho</strong> enfrenta a um t<strong>em</strong>po estas diversas perspectivas sobre a forma de umser. Com efeito, nenhuma delas exclui a outra, mas to<strong>da</strong>s se complexificam na relaçãointra-mun<strong>da</strong>na, intra-histórica, na qual se tece o diálogo que o ser humano estabelececom a reali<strong>da</strong>de que circunscreve a sua existência. Assim, para entender a concepçãoaugustiniana de ord<strong>em</strong>, é necessário proceder a uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do modo como oHiponense concebe a relação entre o ser humano e o cosmos, integrando nesta dinâmicaa reali<strong>da</strong>de do mal, do sofrimento e <strong>da</strong> morte. Em derradeira instância, subjacente àreflexão augustiniana sobre a noção de ordo está o enfrentamento <strong>da</strong> razão humana como mistério insondável do sofrimento e <strong>da</strong>s estruturas de mal, experimentados por ca<strong>da</strong>12


existência e pela totali<strong>da</strong>de dos homens, reflectindo-se à escala humana e mesmocósmica.Neste sentido, mais do que falar <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> concepção augustiniana deord<strong>em</strong>, apelar-se-á para a radicali<strong>da</strong>de, a universali<strong>da</strong>de e, até, a pereni<strong>da</strong>de destain<strong>da</strong>gação leva<strong>da</strong> a efeito pelo Hiponense. Efectivamente, ela assume, na históriahumana e nas diferentes expressões de humani<strong>da</strong>de, uma condição perene, podendoencontrar referentes na infinita varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s expressões de cultura, independent<strong>em</strong>entedo momento histórico e do condicionamento geográfico. A experiência humana ante omal conduz a uma razão perplexa que, tanto ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong> como nacont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de - <strong>em</strong> busca de uma justificação para a contradição radicalvivencia<strong>da</strong> entre o desejo universal de felici<strong>da</strong>de e a vivência de uma força aniquiladora,igualmente experimenta<strong>da</strong> no mais imo do ser humano -, acaba por bifurcar as respostaspossíveis, s<strong>em</strong> encontrar um tertium quid: ou existe um <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o que garante aracionali<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as formas, e neste caso torna-se angustiosa a explicação do malno Mundo; ou não existe tal Princípio e ficam por explicar as expressões de harmonia,beleza e ord<strong>em</strong>, presentes, de modo igualmente irrefragável, como a luz evidencia assombras, neste mesmo cosmos.Sto. <strong>Agostinho</strong> assume o desafio <strong>da</strong> terceira via, defrontando este posicionamentodicotómico que her<strong>da</strong>ra <strong>da</strong> tradição filosófica greco-romana e procurando enquadrar, d<strong>em</strong>odo dinâmico e harmónico, a própria duali<strong>da</strong>de inerente à formulação do filosof<strong>em</strong>a.Por conseguinte, para compreender a proposta augustiniana acerca <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>, a mente humana deve abrir-se, antes de mais, à descoberta de uma terceira via.Para tal deverá ultrapassar os dois vícios inerentes àquela formulação: ou dualismoradical, ou dissolução de to<strong>da</strong> a identi<strong>da</strong>de e autonomia numa uni<strong>da</strong>de indiferencia<strong>da</strong>.Interrogando a obra augustiniana com o objectivo de averiguar qual a sinergia queimpulsiona o filósofo a edificar sobre a noção de ord<strong>em</strong> a sua mundividência, a respostaencontra-se porventura na vivência de uma encruzilha<strong>da</strong> entre o desejo de beatitude e depaz, traduzido pela visceral inquietude de coração, e a experiência de uma forçaaniquiladora, igualmente anicha<strong>da</strong> no interior <strong>da</strong> mente humana. Como ficou dito, nãoobstante o carácter paradoxal desta afirmação, é a experiência do na<strong>da</strong>, do mal, nointerior de si e <strong>em</strong> torno a si, que impulsiona Sto. <strong>Agostinho</strong> a investigar e a descortinara natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Movido por uma força quase instintiva, por um desejo desobrevivência, o Hiponense é levado a romper as amarras e constrangimentos do seu13


próprio espírito, dirigindo-se <strong>em</strong> busca <strong>da</strong>quilo que reconhece como Ver<strong>da</strong>de. Est<strong>em</strong>ovimento, que o filósofo descreve <strong>em</strong> Confessionum, é, na essência, aquilo que sedesigna por conversão metafísica. Tal metamorfose concretiza-se no abandono, porparte de <strong>Agostinho</strong>, de quanto lhe retirava a liber<strong>da</strong>de de investigar e dodireccionamento <strong>da</strong> sua existência <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de de uma reali<strong>da</strong>de quecont<strong>em</strong>pla como melhor e que reconhece consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> no cristianismo.Esta experiência de passag<strong>em</strong>, conversão, metanóia, ou qualquer outra expressãoque se encontre para melhor a designar, é, afinal, uma experiência comum a todo o serhumano, quando enfrenta a reali<strong>da</strong>de do mal. Com efeito, é a experiência <strong>da</strong>proximi<strong>da</strong>de de uma força aniquiladora que ameaça a própria existência - forçad<strong>em</strong>asiado circunvizinha, imanente no ser humano, experimenta<strong>da</strong> de modo derradeirono fenómeno <strong>da</strong> morte alheia e na certeza <strong>da</strong> morte própria -, o denodo que move arazão humana <strong>em</strong> busca de uma resposta do sentido <strong>da</strong> própria existência.Afinal, é a experiência do movimento vi<strong>da</strong>-ameaça de morte-instinto desobrevivência que impele a razão a justificar a existência própria, b<strong>em</strong> como a encontrarresposta para a causa <strong>da</strong>quela ameaça. Em si mesmo, tal facto é expressão de umaperene vitali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão ou, como dirá Sto. <strong>Agostinho</strong>, de um desiderato de vi<strong>da</strong>eterna. Por conseguinte, cabe comprovar que este movimento, esta força vital que incitaa razão a reflectir, é universal. Não se compadece com um determinado contextohistórico, n<strong>em</strong> se confina geograficamente. Por este facto, o modo como <strong>Agostinho</strong>posiciona o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> adquire universali<strong>da</strong>de. Não obstante os mais de 1600anos que cronologicamente nos separam a <strong>da</strong>ta de nascimento do Hiponense, aexperiência vivi<strong>da</strong> pelo filósofo e por ele converti<strong>da</strong> <strong>em</strong> obra escrita é profun<strong>da</strong>menteactual porque atinge o ser na sua máxima radicali<strong>da</strong>de. A mesma questão queatormentara <strong>Agostinho</strong> nos anos de juventude e que o impelira a procurar uma respostaadequa<strong>da</strong> – o que é o mal e como se compatibiliza com a presença de uma noçãoexcelente, o B<strong>em</strong> Comum, irrefragavelmente inscrita no âmago do ser humano -, estáhoje presente <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de humani<strong>da</strong>de, mesmo que, pelos mais variadosmotivos, tal interrogação seja intimamente silencia<strong>da</strong>, r<strong>em</strong>eti<strong>da</strong> para o domínio doesquecimento, permanent<strong>em</strong>ente contorna<strong>da</strong> como intrusa ou simplesmente nãoverbaliza<strong>da</strong>.A experiência do mal é descrita pelo Hiponense como uma tendência ao na<strong>da</strong>. Poreste motivo se pode afirmar que esta experiência impele o movimento humano de14


sobrevivência, de resistência à aniquilação. Ora, basicamente, a experiência do na<strong>da</strong>, oudo mal, enquanto possibili<strong>da</strong>de e tendência vivencia<strong>da</strong> pelo ser humano, pode definir-secomo um impulso de horror à diferença. Enquanto tal, este impulso é inócuo. Maisain<strong>da</strong>, o impulso inverso – o amor pela diferença, identificado por Sto. <strong>Agostinho</strong> comotendência ao ser - é mais forte do que aquele outro. To<strong>da</strong>via, ambos os movimentosresid<strong>em</strong> no interior do ser humano – e, afinal, de to<strong>da</strong>s as formas que preench<strong>em</strong> ocosmos – como possibili<strong>da</strong>des de to<strong>da</strong> a expressão de existência. E se é ver<strong>da</strong>de que,para o Hiponense, a tendência ao ser é superior à tendência à aniquilação, o filósofotambém reconhece, porque assim o experimentou, o fascínio que encerra todo abismo.Ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong>, duas mundividências colocavam neste horror à diferençaa máxima expressão de reali<strong>da</strong>de. Note-se que, na perspectiva augustiniana, uma e outrase sustentam na mesma tendência ao na<strong>da</strong> que identifica a força aniquiladora do mal.Tais mundividências tinham o seu ápice no maniqueísmo e no neoplatonismo. De facto,ao edificar uma metafísica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, a obra do Hiponense está marca<strong>da</strong> por uma atitudede patente rejeição para com o maniqueísmo, manifestando-se claramente avessa a estaconcepção do mundo. Inversamente, para com o neoplatonismo a atitude augustiniana énão apenas condescendente, como até, <strong>em</strong> alguns aspectos, de comunhão de princípios.Porém, é um facto que ambas as mundividências, ca<strong>da</strong> uma a seu modo, se alicerçam nohorror <strong>da</strong> diferença. Não é outro o motivo pelo qual o maniqueísmo defende o eternoconflito entre alteri<strong>da</strong>des, a não ser pela incapaci<strong>da</strong>de de assumir e de integrar ambos ostermos <strong>em</strong> uma terceira reali<strong>da</strong>de, abrindo-se à relação. Desde esta óptica, e de acordocom a escatologia defendi<strong>da</strong> por Mani, um final do combate surgirá quando o mais fortedominar sobre o mais fraco, aniquilando-o pelo princípio de poder. Por seu turno, e nãoobstante a divergência de pontos de parti<strong>da</strong>, o neoplatonismo acabaria por defender amesma anulação <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> diferença, propondo, como ideal de sageza e comofim final de to<strong>da</strong> a existência, a dissolução de to<strong>da</strong>s as formas no Uno Inteligível, aeterna recondução <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> uma ao Unoindiferenciado. Nesta exacta medi<strong>da</strong>, enquanto ambas as propostas anulam a diferença,retiram-na do horizonte do <strong>Ser</strong>. Por este mesmo facto, considerando que a diferença é oel<strong>em</strong>ento determinante <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a relação, e precisamente por ser esta a proprie<strong>da</strong>de queSto. <strong>Agostinho</strong> descobre como essencial na reali<strong>da</strong>de do Princípio, Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong> ou<strong>Ser</strong>, o Hiponense rejeitará uma e outra propostas de compreensão do Mundo.Na ver<strong>da</strong>de, o filósofo compreendeu que, partindo <strong>da</strong> experiência do mal, aquelasmundividências chegaram a soluções que justificam a racionali<strong>da</strong>de do real mediante a15


anulação <strong>da</strong> diferença. Com efeito, o maniqueísmo entende-a como um el<strong>em</strong>ento aaniquilar num combate bélico. O neoplatonismo considera-a um definhamento doPrincípio, uma corrupção ou degra<strong>da</strong>ção do Uno, pois to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de que dele divergeé considera<strong>da</strong> como menos ser, numa escala s<strong>em</strong>pre degenerativa. O estoicismo, enfim– mundividência com a qual Sto. <strong>Agostinho</strong> também dialogou, máxime através <strong>da</strong>influência de Cícero -, entendia a diferença como uma reali<strong>da</strong>de provisória, a anularnum princípio supr<strong>em</strong>o de natureza cósmica, ao postular que a perfeição de to<strong>da</strong>s asformas se resolve numa espécie de conflagração universal, tudo reconduzindo aoPrincípio originário onde tudo devém eternamente, to<strong>da</strong>s as formas se subjugam aoeterno retorno do ciclo cósmico <strong>da</strong> existência.No intuito de encontrar racionali<strong>da</strong>de para a desord<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> é impelidoa reflectir sobre a natureza do Princípio. Em Confessionum é claro o fascínio que aproposta neoplatónica exerce sobre o filósofo, precisamente por considerar o Princípiocomo racionali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, Logos ou Verbo. Deste modo, o próprio mal, o conflito oudesord<strong>em</strong>, dependendo de um princípio único de racionali<strong>da</strong>de, nele deve encontrar asua inteligibili<strong>da</strong>de. Com efeito, bens e males têm de estar dentro <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, integradosna racionali<strong>da</strong>de do Princípio. Na óptica augustiniana, fora deste Princípio na<strong>da</strong> há,na<strong>da</strong> é, na<strong>da</strong> subsiste. À marg<strong>em</strong> do Princípio é o na<strong>da</strong>, a total ausência de forma e deidenti<strong>da</strong>de ou ser.Compreendendo o universo que o circun<strong>da</strong> a partir de um Princípio único de ser,Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe um enquadramento para a reali<strong>da</strong>de do mal, ou desord<strong>em</strong>. Ora,é precisamente sobre este eixo que a concepção augustiniana <strong>da</strong> ordo rerum se v<strong>em</strong> aarticular com a questão essencial de to<strong>da</strong> a metafísica, a saber, aquela que reflecte sobreo modo como se equacionam o Uno e o múltiplo, a Uni<strong>da</strong>de do Princípio e adiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas que, na sua contingência, repletam o universo.Bens e males estão dentro <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Tal afirmação, defendi<strong>da</strong> de modoinconcusso por Sto. <strong>Agostinho</strong>, só é possível se a própria ord<strong>em</strong> for considera<strong>da</strong> comoPrincípio soberano de reali<strong>da</strong>de. É este, afinal, o esforço <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de augustiniana,expressa ao longo <strong>da</strong> sua vasta obra: mostrar que o Princípio é <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, <strong>em</strong> sentido plenoe soberano, pois ele próprio vive <strong>da</strong> relação perene entre a identi<strong>da</strong>de e a diferença,entre Uni<strong>da</strong>de e Multiplici<strong>da</strong>de. De trinitate será porventura a obra na qual o Hiponens<strong>em</strong>ais reflecte sobre esta natureza do Princípio, sendo um facto que, no referido escrito,essa reflexão se expande <strong>em</strong> diferentes sentidos e abrange diversos níveis decomplexi<strong>da</strong>de. Como mostra <strong>Agostinho</strong>, o Princípio único de ser é, na sua essência,16


identi<strong>da</strong>de e diferença, Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de. Precisamente porque essa relação seexerce <strong>em</strong> plena harmonia, respeitando, ain<strong>da</strong>, uma hierarquia, a qual não integra jádiferença de essência ou substância, n<strong>em</strong> graduação de ser, mas não prescinde de umaracionali<strong>da</strong>de na processão, o Princípio é entendido como <strong>Ord<strong>em</strong></strong> Soberana. Esta <strong>Ord<strong>em</strong></strong>escapa ao t<strong>em</strong>po: é Eterna. Integra a diferença <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des que nela subsist<strong>em</strong> eviv<strong>em</strong>, congrega-as na identi<strong>da</strong>de de uma só substância, a divina. E esta <strong>Ord<strong>em</strong></strong> Eterna éPrincípio de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as formas, seja qual for aexpressão delas e independent<strong>em</strong>ente do lugar que ocupam na hierarquia ontológica.A metafísica augustiniana afirma, por conseguinte, a existência de um PrincípioSoberano de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que reúne <strong>em</strong> si, de modo muito peculiar, a diferença, viabilizandoa Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de. Para <strong>Agostinho</strong>, a compreensão desta ord<strong>em</strong> soberana exigeuma especial agudeza de espírito, senão mesmo uma penetração no carácter arcanodeste Princípio, mediante uma peculiar participação no dom divino – a Sabedoria. Adiferença, factor inerente a to<strong>da</strong> a forma de reali<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong> a qual não subsiste nenhumarelação, é entendi<strong>da</strong> como uma expressão do próprio <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o, na eterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaessência. Nesta dinâmica, a diferença subsiste integra<strong>da</strong> na identi<strong>da</strong>de eterna de umamesma substância.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, este Princípio é também a orig<strong>em</strong> de todos os seres.Enquanto tal, a sua activi<strong>da</strong>de específica é doar ser às diferentes formas de existir. Estaactivi<strong>da</strong>de é designa<strong>da</strong> por criação. Com ela, o Princípio instaura uma diferença radicalde natureza entre ele mesmo e as reali<strong>da</strong>des que cria. Enquanto no interior do Princípioa diferença subsiste <strong>em</strong> igual<strong>da</strong>de de natureza, fora dele – ou seja, na relação queestabelece com os seres que não são o Princípio, e que dele depend<strong>em</strong> no ser, nomovimento e <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de alento que neles se possa encontrar – a diferença éabissal. Dir-se-ia mesmo que ela é intransponível. Na perspectiva augustiniana, entre o<strong>Ser</strong> e os seres, entre o Criador e as criaturas não poderá haver jamais identi<strong>da</strong>de deessência.Como, então, garantir que a ord<strong>em</strong> – princípio soberano de reali<strong>da</strong>de, que articulaharmoniosamente uni<strong>da</strong>de e diferença – permanece no cosmos? Como garantir que esseprincípio uno, precisamente porque essencialmente relacional, estabelece, ain<strong>da</strong>, e paraalém <strong>da</strong> dinâmica de vi<strong>da</strong> e relação que ele mesmo é, relação e diálogo com adiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e dos seres? Se a diferença entre <strong>Ser</strong> e seres é radical, haveráain<strong>da</strong> alguma relação entre o Princípio e as formas? A <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, Princípio Supr<strong>em</strong>o, está,ou não, ocupa<strong>da</strong> com os assuntos humanos? Há, ou não, uma efectiva relação entre o17


Criador e as criaturas? Há, ou não, ord<strong>em</strong> no interior do cosmos e, de modo particular,na vi<strong>da</strong> dos seres humanos, no curso dos t<strong>em</strong>pos e dos acontecimentos?Para responder a tais interrogações e esclarecer a noção de ordo, Sto. <strong>Agostinho</strong>necessita de in<strong>da</strong>gar qual a essência do Princípio. Obriga-se, também, a discorrer sobreo modo como tal Princípio estabelece relação, num plano descendente, com o universopor Ele criado. E, considerando tal relação no plano ascendente, o Hiponense precisa deesclarecer o modo como os seres interag<strong>em</strong> com o <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o.Para eluci<strong>da</strong>r o primeiro aspecto, o filósofo detém-se a analisar a noção de creatio,entendi<strong>da</strong> no sentido bíblico-cristão, a saber, como a passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> total informi<strong>da</strong>de àforma, <strong>da</strong> mais radical ausência de existência e de ser, à participação ou assunção de umdeterminado modo ou forma de ser. Este processo, efeito <strong>da</strong> liberali<strong>da</strong>de e gratui<strong>da</strong>de doCriador, garante a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> existência, ao mesmo t<strong>em</strong>po que instaura, entreela e o seu Princípio, uma total irreciproci<strong>da</strong>de ontológica – aquela que se dá entre aPlenitude e a indigência, entre Aquele que É e aquilo que devém, entre o Dom e o <strong>da</strong>do.É nesta irreciproci<strong>da</strong>de ontológica que se enraíza a característica essencial <strong>da</strong>s criaturas,a saber, a contingência delas, a qual se expressa, <strong>em</strong> última instância, no facto deestar<strong>em</strong> afecta<strong>da</strong>s pela t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Nesta medi<strong>da</strong>, só a relação descendente, do Uno<strong>em</strong> direcção ao múltiplo, é conceptível. Só para este domínio de relação é possívelencontrar uma causa eficiente – a vontade de se <strong>da</strong>r a participar, ou Dom. Entre o Uno eo múltiplo instaura-se uma radical diferença ontológica. Esta identifica a ord<strong>em</strong> própria<strong>da</strong> relação que entre ambos se estabelece. <strong>Ord<strong>em</strong></strong> é, neste caso, a dinâmica que seestabelece entre o Uno e o múltiplo, na qual Aquele permanent<strong>em</strong>ente manifesta afideli<strong>da</strong>de à aliança estabeleci<strong>da</strong> com a Criação, pois a vontade eterna que trouxe osseres à existência permanece para s<strong>em</strong>pre. Precisamente porque a natureza do Princípioé dialógica e relacional, tal vontade do Criador vai uni<strong>da</strong> ao sentido <strong>da</strong> criação de ca<strong>da</strong>forma e do conjunto <strong>da</strong>s formas. E este sentido inscreve-se no cerne dessa característicaessencial mediante a qual o Uno e o múltiplo se diferenciam: o factor t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de.Sto. <strong>Agostinho</strong> considera s<strong>em</strong>pre a noção de t<strong>em</strong>po como envolvi<strong>da</strong> num contextode mistério, de enigma, o qual reside, antes de mais, no facto de o t<strong>em</strong>po ser um factorde máxima diferenciação entre o Uno e o múltiplo. Acresce ain<strong>da</strong> ao enigma o facto deo próprio Princípio, uni<strong>da</strong>de consubstancial e eterna, ter querido assumir a condição domúltiplo, instaurando um peculiar dinamismo no curso dos t<strong>em</strong>pos e nosacontecimentos históricos.18


Esta presença <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de no t<strong>em</strong>po manifesta-se pelo compromisso que oPrincípio assumiu, ao criar, com a forma de ca<strong>da</strong> criatura. Manifesta-se, também, nofacto de ter criado o próprio curso dos t<strong>em</strong>pos. Se é ver<strong>da</strong>de que a condição histórica douniverso deriva <strong>da</strong> contingência <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s, aquela não se identifica com estas.Há uma economia dos t<strong>em</strong>pos, um curso ou evolução histórica, à qual Sto. <strong>Agostinho</strong>foi sensível desde o primeiro momento <strong>em</strong> que entrou <strong>em</strong> contacto com os libriPlatonicorum, de modo particular ao confrontar o conteúdo destes escritos com osentido histórico que impregna profun<strong>da</strong>mente a racionali<strong>da</strong>de cristã. Com efeito, é aausência de qualquer referência à Incarnação do Verbo que Sto. <strong>Agostinho</strong> impugna aquanto leu nos Platonicorum libri. É a rejeição <strong>da</strong> presença histórica do Verbo - queassume a contingência <strong>da</strong>s criaturas e, de modo particular, a do ser humano, fazendo-secarne, sujeitando-se ao t<strong>em</strong>po, ao sofrimento e à morte - que o Hiponense anota comofragili<strong>da</strong>de radical, na mundividência neoplatónica.Para o filósofo, a Incarnação do Verbo revela o sentido <strong>da</strong> história, ainteligibili<strong>da</strong>de do curso dos t<strong>em</strong>pos. É para esse momento histórico que at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de converge. Com ele se inaugura um novo sentido para a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>.A relação entre o Uno e o múltiplo não se estabelece apenas no sentido descendente,delineando uma estrutura gradual de formas – o Uno é maior do que o múltiplo, o eternoé mais do que o t<strong>em</strong>poral. A instauração <strong>da</strong> diferença ontológica não é, <strong>em</strong> absoluto,entendi<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> n<strong>em</strong> como degenerescência do Uno, n<strong>em</strong> como instauradora deum fatalismo cósmico a realizar numa dinâmica mediante a qual, para recuperar umaperfeição original, tudo deverá regressar e recolher-se no Princípio, anulando aidenti<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> forma. Diferença é, na óptica augustiniana, sinónimo de potenciaçãode ser. Por conseguinte, quanto maior for a expressão de diferença, quanto maior arealização, no t<strong>em</strong>po, de to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de conti<strong>da</strong> <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> forma existente, maiormanifestação de ord<strong>em</strong> e de ser, maior, afinal, a proximi<strong>da</strong>de entre o Uno e o múltiplo,entre o <strong>Ser</strong> e os seres. Com efeito, é a máxima potenciação e expressão de ser no t<strong>em</strong>poque faz parte do sentido <strong>da</strong> Criação, revelando ao ser humano o projecto criador divino.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, na relação do Uno com o múltiplo, essa plenitude t<strong>em</strong> lugarquando o Verbo Eterno de Deus assume a natureza humana, num determinado momentodo curso dos t<strong>em</strong>pos. Só a partir desse ápice <strong>da</strong> história se torna viável, de modo pleno,a relação do múltiplo para o Uno e, <strong>em</strong> concreto, uma efectiva comunicação ecomunhão entre o ser humano e o Divino.19


De facto, a impossibili<strong>da</strong>de de encontrar um ver<strong>da</strong>deiro mediador entre amultiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e o Princípio Supr<strong>em</strong>o de reali<strong>da</strong>de fora, desde s<strong>em</strong>pre, agrande angústia <strong>da</strong>s propostas filosóficas <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de. Se era possível compreender,de algum modo, a relação do Uno com o múltiplo <strong>em</strong> sentido descendente – sob formade eterno retorno, de degeneração ou de lugar de combate entre princípios antagónicos-,a relação do múltiplo para o Uno surgia s<strong>em</strong>pre à racionali<strong>da</strong>de humana como inviável.Qualquer que fosse a forma de considerar a natureza do Princípio, este seria s<strong>em</strong>pre, epor definição, superior às reali<strong>da</strong>des intra-cósmicas, à multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas. Ante oPrimado do Princípio, e precisamente por uma questão de ord<strong>em</strong>, não cabe reagir, masapenas acatar a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inferiori<strong>da</strong>de do múltiplo tal como ela é. Se o Princípiopode estabelecer relação com o Mundo, o inverso só aparente e ilusoriamente parece serpossível.Sto. <strong>Agostinho</strong> dá conta deste mesmo facto: assume-o no interior <strong>da</strong> suamundividência, confirma a veraci<strong>da</strong>de desta pr<strong>em</strong>issa. Fá-lo subtilmente, no confrontoentre a natureza <strong>da</strong> mente humana e a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Com efeito, para aceder àcompreensão <strong>da</strong> natureza do Princípio, o Hiponense propõe-se analisar aquela reali<strong>da</strong>deque, na hierarquia ontológica e entre as formas disponíveis à consideração do espíritohumano, mais está ao alcance <strong>da</strong> razão. Assim, é sobre a natureza <strong>da</strong> própria mentehumana que Sto. <strong>Agostinho</strong> ergue o caminho privilegiado para compreender a naturezado Princípio, a tal ponto está convicto de que, na mente humana, está impressa umaefígie divina. Porém, após longa análise, o Hiponense comprova que é infinita adistância entre a imag<strong>em</strong> de Deus impressa no ser humano e o Princípio de que ele éimag<strong>em</strong>. Uma vez mais, a tentativa de ascender do múltiplo para o Uno é malogra<strong>da</strong>,mesmo supondo a boa vontade dos humanos que quer<strong>em</strong> aceder ao divino, desejandocont<strong>em</strong>plar a essência dele, identificar-se com ele, a fim de com ele cooperar<strong>em</strong> para ainstauração <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e <strong>da</strong> harmonia no t<strong>em</strong>po e na história, fazendo coincidir a vontadeprópria com o B<strong>em</strong> Comum. Mesmo seguindo a via <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de, mesmo supondo aboa vontade humana, mesmo procurando desven<strong>da</strong>r o sentido <strong>da</strong> história e compreendero lugar de ca<strong>da</strong> peça e do conjunto delas na ordo rerum, o fosso entre o Uno e omúltiplo, entre o <strong>Ser</strong> e os seres, é intransponível.Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebe-se claramente <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de clarificar a noção deord<strong>em</strong> e de compreender a relação entre o Uno e o múltiplo s<strong>em</strong> encontrar um Mediadore esclarecer a função Dele, quer no plano <strong>da</strong> Criação, quer no <strong>da</strong> Salvação. Aidentificação entre a ord<strong>em</strong> e a essência <strong>da</strong> própria Dei<strong>da</strong>de – essa relação eterna de20


processões que é inerente ao ser divino – é resultado, na obra augustiniana, de umexercício moroso <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé, o qual culmina com a conquista de um pouco deluz acerca <strong>da</strong> essência divina, ténue raio que dista infinitamente do conhecimento <strong>da</strong>própria fonte de iluminação que a Ver<strong>da</strong>de é <strong>em</strong> si mesma. Compreender a relação entrea Dei<strong>da</strong>de, concebi<strong>da</strong> como Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de, e o Universo criado é manifestação,já <strong>em</strong> si, de que a mente humana está <strong>em</strong> peculiar comunhão com a Sabedoria divina.Mediante esta participação, o ser humano entende que tudo quanto se dá no universoconcorre para uma plenitude de realização e de ser. Na perspectiva de <strong>Agostinho</strong>, talplenitude coincide com o facto histórico <strong>da</strong> Incarnação do Verbo, não obstante estasuperabundância de ser e de sentido conviver com o efeito constrangedor do exercíciohistórico <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s. De facto, estas são capazes de realizar a ord<strong>em</strong> do serou de acordo com o sentido <strong>da</strong> história, ou numa direcção avessa àquele. Por seu turno,a Incarnação do Verbo, ao potenciar uma nova reali<strong>da</strong>de sobre a história, revela ao serhumano, com um novo sentido, o encaminhamento de to<strong>da</strong>s as formas de ser e <strong>da</strong>própria história para um finis optimus, a realizar escatologicamente e no qual Deus serátudo <strong>em</strong> todos.Ora, se a ordo rerum se realiza na constituição desta imensa sinfonia onde uni<strong>da</strong>dee multiplici<strong>da</strong>de, nos diferentes níveis de ser, desde o mais ínfimo até à essência dopróprio Princípio, se conjugam, cabe in<strong>da</strong>gar de que modo o múltiplo, também nadiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas formas, pode estabelecer uma efectiva relação com o Uno. Talinvestigação exige avaliar as condições de possibili<strong>da</strong>de de realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> nosentido ascendente – aquele que parte <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s para o Criador.Sto. <strong>Agostinho</strong>, na esteira de S. Paulo, acolhe a via ascendente <strong>da</strong> razão nacompreensão do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o: <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s ao entendimento <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>desdivinas. De entre aquelas primeiras, como itinerário privilegiado de ascese, presta umapeculiar atenção à natureza <strong>da</strong> mente humana, na tríplice dinâmica <strong>da</strong>s funções que nelahabitam: o entendimento, a vontade e a m<strong>em</strong>ória. Para ascender à compreensão <strong>da</strong>essência divina - e partindo de um <strong>da</strong>do de revelação, segundo o qual Deus diz de simesmo não apenas que É, mas que o seu <strong>Ser</strong> é Amor – o Hiponense analisará,precisamente com base na relação de amor, a natureza <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, atendendoao modo como elas se relacionam entre si e com os d<strong>em</strong>ais níveis de reali<strong>da</strong>de.Como resultado deste esforço analítico, o filósofo conclui que, no caso <strong>da</strong> relaçãocom seres que, na hierarquia ontológica, se colocam num nível inferior à mente humana,21


ou, até, no mesmo degrau dessa ord<strong>em</strong>, a relação pode estabelecer-se a partir <strong>da</strong>s forças<strong>da</strong> própria mente. Porém, no caso <strong>da</strong> relação com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, ou com o ser humano,na exacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que este é imag<strong>em</strong> do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, tal relação extravasa aspossibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> forma humana. Este facto ocorre por dois motivos. Antes de mais, poruma razão hierárquica – o inferior não pode agir sobre o superior. Ora, é superior àmente humana poder conhecer e amar um reali<strong>da</strong>de que a excede hierarquicamente, oumesmo amar e conhecer uma reali<strong>da</strong>de na sua ver<strong>da</strong>deira e mais ima dimensão, a saber,enquanto nela está impressa a efígie divina. Com efeito, para que tal fosse possível,exigir-se-ia à mente humana o conhecimento de si mesma e do outro não já no contexto<strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente mas no seio <strong>da</strong> própria Dei<strong>da</strong>de. Porém, este conhecimento <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> Deus só é possível mediante uma particular comunhão com a Sabedoriadivina. Em segundo lugar, tal impossibili<strong>da</strong>de resulta de uma questão historicamentedetermina<strong>da</strong>. Sto. <strong>Agostinho</strong> admite que o ser humano padece de uma debili<strong>da</strong>deintrínseca à sua forma, estando esta afecta<strong>da</strong> por uma corrupção original, a qual, não lheimpedindo o acesso à Dei<strong>da</strong>de, o confronta, nesta busca, com duas característicaspeculiares: a ignorância de si mesmo e a dificul<strong>da</strong>de de aceder à Ver<strong>da</strong>de.Para estabelecer relação com a Uni<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a, Princípio Soberano de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, esanar as duas condições supra referi<strong>da</strong>s, o ser humano necessita de um peculiar auxílio.Por um lado, só poderá conhecer o ser divino se este vier até ele. Só poderá conheceressa Uni<strong>da</strong>de na multiplici<strong>da</strong>de, modelo pleno de ord<strong>em</strong> e harmonia, se ela se lh<strong>em</strong>anifestar, facto que, tal como o <strong>da</strong> própria Criação, apenas t<strong>em</strong> causa eficiente nainfinita liberali<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. Por outro lado, para suprir aquela afecção <strong>da</strong> formahumana, debilita<strong>da</strong> por uma corrosão desde a sua orig<strong>em</strong>, historicamente determina<strong>da</strong>,no contexto <strong>da</strong> metafísica augustiniana aquela aproximação <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a ao serhumano assumirá, também, uma função sanante. Tal proximi<strong>da</strong>de minimizará, dest<strong>em</strong>odo, os efeitos <strong>da</strong> ignorância <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de que a razão experimenta nopercurso de ascese para a Dei<strong>da</strong>de.A função do Mediador assume estas duas dimensões. Por ela, Sto. <strong>Agostinho</strong>esclarece de que modo é possível estabelecer a relação entre o múltiplo e o Uno, nosentido ascendente: <strong>da</strong> criatura ao Criador, dos seres ao <strong>Ser</strong>. Ao eluci<strong>da</strong>r o lugar queocupa, na obra do Hiponense, a dimensão salvífica do Mediador, evidencia-se a soluçãoaugustiniana para o mistério do sofrimento e <strong>da</strong> morte e torna-se legível o modo como ofilósofo integra, na ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas, os bens e os males. Por seu turno, a dimensão de22


Plenitude dos T<strong>em</strong>pos, associa<strong>da</strong> à Incarnação do Verbo, esclarece até que ponto aDei<strong>da</strong>de está próxima dos assuntos humanos e se ocupa deles, uma vez que assumiu aprópria natureza humana e, com ela, a contingência e a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de que acaracterizam. Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste, contudo, que, neste movimento descendente, aDei<strong>da</strong>de não se degra<strong>da</strong>, não degenera, n<strong>em</strong> se corrompe na sua natureza. Inversamente,ela eleva à máxima expressão to<strong>da</strong>s as dimensões de reali<strong>da</strong>de que assume e com asquais convive, potenciando-as no ser e revelando a plenitude de sentido que nelas seencerra. De modo particular, a Incarnação do Verbo eluci<strong>da</strong> o mistério do sofrimento e<strong>da</strong> morte. Por conseguinte, é neste apogeu de proximi<strong>da</strong>de entre Deus e a forma humanaque se descodifica de modo pleno e derradeiro o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.Com efeito, esse exponencial máximo para o qual to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> estáescatologicamente orienta<strong>da</strong> é vivido já no t<strong>em</strong>po histórico pela existência incarna<strong>da</strong> noHom<strong>em</strong> Cristo. Porém, tal potenciali<strong>da</strong>de é, ain<strong>da</strong> e uma vez mais, apenas incrusta<strong>da</strong><strong>em</strong> germe na história pelo Mediador. A partir deste facto histórico, e <strong>em</strong> união com ele,todos os seres humanos poderão ascender, efectivamente, à uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua formacontingente com a plenitude de Forma que é a Dei<strong>da</strong>de, preservando s<strong>em</strong>pre adiferença. Com efeito, na óptica augustiniana, o espírito humano pode, <strong>em</strong> união com oVerbo Incarnado, estabelecer uma efectiva relação e comunicação com a Dei<strong>da</strong>de. Estarealizar-se-á quer no plano vertical - aquele no qual o ser humano interage com o <strong>Ser</strong>divino, envolvendo neste movimento to<strong>da</strong>s as criaturas com as quais se relaciona no seuagir intra-histórico -, quer no plano horizontal - aquele no qual o ser humano serelaciona com os seus s<strong>em</strong>elhantes e com as d<strong>em</strong>ais formas de ser que preench<strong>em</strong> ouniverso criado. Note-se, contudo, que estes dois planos só analiticamente admit<strong>em</strong>separação. Efectivamente, na realização histórica do ser humano, eles são inseparáveis.O filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> adquire, por conseguinte, na identi<strong>da</strong>de do Mediador, Deuse Hom<strong>em</strong>, a sua máxima inteligibili<strong>da</strong>de. Deus ocupa-se a tal ponto dos assuntoshumanos que incarna na história, assumindo natureza humana. S<strong>em</strong> deixar de ser Deus,contrai o sofrimento e a morte, esclarecendo o sentido dessas reali<strong>da</strong>des aniquiladoras.S<strong>em</strong> deixar de ser hom<strong>em</strong>, ultrapassa, com a sua existência marca<strong>da</strong> pelo tríplic<strong>em</strong>ovimento vi<strong>da</strong>-morte-ressurreição, to<strong>da</strong> a contingência t<strong>em</strong>poral. Tornando viável, not<strong>em</strong>po e na história, a efectiva relação dos seres humanos com o <strong>Ser</strong> divino, o Mediadoresclarece e potencia, definitivamente, a proximi<strong>da</strong>de entre o múltiplo e o Uno, através23


de uma efectiva uni<strong>da</strong>de e comunhão entre ambos, e de ambos com a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sformas existentes.Esta uni<strong>da</strong>de, na qual se preserva a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> forma, realiza a plenitude<strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Sinónimo de Dilectio seu Amor , a noção augustiniana de ordo não se reduz àponderação do exercício <strong>da</strong>s vontades segundo uma escala de maius et minus. Ela nãoavalia tão-só a quali<strong>da</strong>de do amor de que é capaz ca<strong>da</strong> ser dotado de racionali<strong>da</strong>de. Umentendimento <strong>da</strong> ordo amoris no seio <strong>da</strong> obra augustiniana que se esgotasse apenas napercepção <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do amor <strong>da</strong> vontade de ca<strong>da</strong> ser humano seria ain<strong>da</strong> estreito paracompreender a radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela noção, no contexto <strong>da</strong> obra do Hiponense. Comefeito, a ordo identifica o imenso concerto de to<strong>da</strong>s as vontades, <strong>em</strong> plena harmoniacom a vontade do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o, numa conjugação que significa uma efectiva einteractiva comunhão de todos os seres. Tal uni<strong>da</strong>de realiza-se eternamente e de modocabal na essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. De modo também cabal e pleno, de acordo com acontingência que as caracteriza, a mesma uni<strong>da</strong>de e comunhão é realiza<strong>da</strong> entre ascriaturas dota<strong>da</strong>s de razão que, unindo-se ao <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o mediante o Amor – donum dei-, se un<strong>em</strong> igualmente entre si, s<strong>em</strong>pre preservando a diferença e s<strong>em</strong>pre pela mediaçãodo Verbo. E, ain<strong>da</strong> de modo cabal e pleno, porque concorde com a possibili<strong>da</strong>de deescolha que especifica as liber<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, tal uni<strong>da</strong>de é também realiza<strong>da</strong> nos seresracionais que rejeitam a comunhão com a Dei<strong>da</strong>de. Não obstante rejeitar<strong>em</strong> estacomunhão, faz<strong>em</strong>-no, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, mediante o amor. Na ver<strong>da</strong>de, eles un<strong>em</strong>-se, porum lado, aos seus congéneres, na quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade – aquela que permanece nomovimento de aversão a Deus ou rejeição do dom, amando bens perecíveis, <strong>em</strong> lugar doB<strong>em</strong> Comum ou Eterno. Por outro lado, como tal movimento é, ain<strong>da</strong>, uma expressãode ser e de bon<strong>da</strong>de, apenas viabilizado pelo próprio dom divino, a uni<strong>da</strong>de destesespíritos com a Dei<strong>da</strong>de não deixa de se realizar eternamente, mesmo se de modoínfimo. Nela se manifesta ain<strong>da</strong> a magnificência do Criador e a bon<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, não obstante também nela se verificar a indigência metafísica <strong>da</strong> criatura.O efeito desta plenitude de ord<strong>em</strong>, que só se realizará quando o curso dos t<strong>em</strong>posatingir o seu término, é a tranquili<strong>da</strong>de ou Paz. Esta reina eternamente na essênciadivina, identificando-se com a comunhão essencial de Amor que Deus É. A mesma Pazreinará para s<strong>em</strong>pre na Criação quando ca<strong>da</strong> forma adquirir, no universo, o seu lugarpróprio. Tal ubicação é aferi<strong>da</strong> pela quali<strong>da</strong>de do amor que reina <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> forma, sendoavalia<strong>da</strong> pelo modo como estabelece relação com os três planos <strong>da</strong> hierarquia24


ontológica. Assim, para avaliar até que ponto o ser humano está ordenado de acordoconsigo mesmo é necessário ponderar o modo como estabeleceu relação com o <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, com o seu próprio modo de ser – e o dos d<strong>em</strong>ais, como s<strong>em</strong>elhantes – e comas outras formas de existência, que apenas viv<strong>em</strong> e são. De facto, também estas levam<strong>em</strong> si o apelo a participar na uni<strong>da</strong>de com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Na ver<strong>da</strong>de, após aIncarnação do Verbo e mediante a comunhão <strong>da</strong>s vontades humanas e divina, também aforma dos seres desprovidos de razão encontra, no interior do cosmos, uma novi<strong>da</strong>de desentido, pois a razão humana, na qual progressivamente se instaura a Sabedoria,compreende o modo como pode direccionar tais seres ao B<strong>em</strong> Comum, tornando-os,assim, parte integrante do concerto cósmico, intra-histórico mas escatologicamenteorientado para a plena e definitiva comunhão com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Só então, quando to<strong>da</strong>s as formas tiver<strong>em</strong> atingindo, na união com o Mediador, aplenitude <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des conti<strong>da</strong>s no seu ser e no seu agir, <strong>em</strong> expressão de<strong>Agostinho</strong>, Deus será tudo <strong>em</strong> todos, preservando a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> expressão dereali<strong>da</strong>de. Só então a Paz, tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, estará realiza<strong>da</strong> e se manifestará nasua plenitude.2. MetodologiaIn<strong>da</strong>gando a obra de Sto. <strong>Agostinho</strong> desde o prisma supra referido verifica-se,antes de mais, que a literatura auxiliar não é abun<strong>da</strong>nte. Se é possível encontrar algunsestudos sobre a noção augustiniana de ordo eles ficam-se, as mais <strong>da</strong>s vezes, numaanálise do termo no contexto dos primeiros escritos, cingindo-se a uma averiguação <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> como harmonia cósmica. A noção fica, assim, restringi<strong>da</strong> à sua dimensãoestética, s<strong>em</strong> se evidenciar<strong>em</strong> as suas raízes metafísicas.Poder-se-ia justificar tal facto pela consideração de uma evolução, no interior <strong>da</strong>obra do Hiponense, <strong>da</strong> noção de ordo, tal como acontece com tantas outras noções.Destarte, uma leitura <strong>da</strong> obra augustiniana desde uma perspectiva cronológica obrigariaa cessar a in<strong>da</strong>gação <strong>em</strong> escritos correspondentes a determinados períodos <strong>da</strong> designa<strong>da</strong>evolução intelectual do Hiponense. É um facto que esta perspectiva de análise fez escola<strong>em</strong> comentadores no início do século passado, tendo subsistido de modo evidente atémeados do século XX. Trata-se <strong>da</strong> tentativa de encarar a obra do Hiponense a partir deuma perspectiva genético-evolutiva a qual, para além de nos parecer extrínseca ao modo25


como flu<strong>em</strong> os escritos de <strong>Agostinho</strong>, debate-se com a extr<strong>em</strong>a dificul<strong>da</strong>de de fixar umacronologia definitiva para a grande maioria <strong>da</strong>s obras do Hiponense.Não será esta a metodologia de análise aqui segui<strong>da</strong>. Ela afasta-se, também, deduas outras perspectivas que, <strong>em</strong> nosso entender, marcam a literatura acerca de Sto.<strong>Agostinho</strong> produzi<strong>da</strong> sobretudo no passado século. É um facto que abun<strong>da</strong>m os estudosque, desenvolvidos <strong>em</strong> paralelo com o desejo de esquadrinhar as influências sofri<strong>da</strong>spelo Hiponense <strong>da</strong>s correntes filosóficas com as quais dialogou e <strong>da</strong> tradição culturalonde se inscreve, se detêm <strong>em</strong> análises de carácter filológico ou historiográfico. S<strong>em</strong>menosprezar estas perspectivas de análise, o presente estudo encara o resultado delascomo um instrumento de trabalho, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> útil, mas, <strong>em</strong> última instância, s<strong>em</strong>preredutor, pois tantas vezes é inconclusivo, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de provardefinitivamente uma ou outra <strong>da</strong>s teses levanta<strong>da</strong>s pelos especialistas.Um outro conjunto de estudos que integram a literatura produzi<strong>da</strong> nos últimosanos <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> obra do Hiponense orienta-se no sentido de purgar Sto. <strong>Agostinho</strong> doónus que a história <strong>da</strong> filosofia ou <strong>da</strong> teologia lançou sobre a sua obra. Deste esforço,na maior parte dos casos <strong>em</strong>ergente de meios eclesiásticos, resulta uma literatura que,pelo menos de forma sub-reptícia, padece de um cunho apologético. Da leitura destasobras resulta um saibo de instrumentalização <strong>da</strong> obra do próprio Hiponense. Talperspectiva, não obstante a virtuali<strong>da</strong>de de esclarecer conceitos e de determinar tesescomplexas <strong>da</strong> metafísica augustiniana, por vezes constrange uma leitura dos escritosaugustinianos despi<strong>da</strong> de preconceitos.A metodologia ora adopta<strong>da</strong> rege-se, acima de tudo, por um contacto directo coma produção filosófica de <strong>Agostinho</strong>, dissecando-a à luz do fio condutor supra enunciado:o esclarecimento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e <strong>da</strong>s questões metafísicas nele envolvi<strong>da</strong>s.Ao fazê-lo, partimos <strong>da</strong> convicção de que a noção de ordo permite uma compreensãomais universal e profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra do Hiponense, conferindo-lhe uma maior amplitudede sentido. Por conseguinte, é essencialmente um regresso às fontes, à leitura <strong>da</strong> obraaugustiniana lega<strong>da</strong> pelo trabalho <strong>da</strong> filologia e de acordo com as edições críticas, queserve de base ao nosso trabalho. O objectivo deste esforço hermenêutico é evidenciar apujança <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de augustiniana.É ver<strong>da</strong>de que a dialéctica augustiniana é o resultado de um exercício <strong>da</strong>inteligência <strong>da</strong> fé, mas esse facto apenas manifesta, confirmando-a, a sua profun<strong>da</strong>racionali<strong>da</strong>de. Afinal, não são a d<strong>em</strong>ora do raciocínio e a d<strong>em</strong>onstração <strong>da</strong>quilo <strong>em</strong> quese acredita, princípios inerentes ao condicionamento histórico <strong>da</strong> razão humana?26


No exercício hermenêutico de que resultou este trabalho procurou-se, acima detudo, trazer a claro a própria obra do Hiponense, seguindo o fio condutor <strong>da</strong> suaracionali<strong>da</strong>de quando questiona o modo com se relacionam a Uni<strong>da</strong>de e Multiplici<strong>da</strong>de,<strong>em</strong> Deus e no Mundo de que a Dei<strong>da</strong>de é Princípio. Outro não é o ensejo do filósofoquando coloca a noção de ord<strong>em</strong> no cerne <strong>da</strong> Filosofia. Outro não é, também, <strong>em</strong> nossoentender, o modo de evidenciar a dimensão universal <strong>da</strong> metafísica do Hiponense e decomprovar a vigência do resultado <strong>da</strong> sua produção filosófica e a radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaproposta.27


CAPÍTULO IO FILOSOFEMA DA ORDEM1. Articulações do filosof<strong>em</strong>a no diálogo De ordineNo início de De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> invoca as teses ímpias que, não obstanteser<strong>em</strong> claramente insatisfatórias, são as únicas que a cultura clássica propõe paraequacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Embora tal filosof<strong>em</strong>a abranja, já no seu enunciado,um horizonte de interrogação mais amplo e, sobretudo, mais radical do que o de in<strong>da</strong>garacerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> e <strong>da</strong> natureza do mal, é este, afinal, que entra <strong>em</strong> conflito com ainquietação radical do ser humano: o desejo de felici<strong>da</strong>de. Ora, <strong>da</strong>do que, a ca<strong>da</strong>instante, o ser humano esbarra com obstáculos à realização de tal desiderato, aexistência do mal insere-se no filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> como uma dificul<strong>da</strong>de para a qual arazão deve encontrar uma solução satisfatória.Tal como é equacionado por Sto. <strong>Agostinho</strong>, o filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa não in<strong>da</strong>gasobre a existência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, ou de Deus, a qual é <strong>da</strong><strong>da</strong> por suposta. Este factojustifica-se por dois motivos. Em primeiro lugar, o Hiponense inscreve o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> no horizonte mais radical <strong>da</strong> questão sobre o ser. Em segundo lugar, o contextocultural <strong>em</strong> que o filósofo se insere não respira os ares do ateísmo, entrando <strong>em</strong>conivência, inclusivamente, com um excesso de religiosi<strong>da</strong>de ou, melhor dito, comaquilo que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera uma deturpação dessa dimensão ima do serhumano.Na tentativa de equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e <strong>em</strong> busca de superarparadoxos, a razão humana concluíra, com os epicuristas, que não há Deus,despreocupando-se de interrogar acerca <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de do real. Esta seria,efectivamente, a posição teórica mais próxima do ateísmo, ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong>,muitas vezes desacredita<strong>da</strong> por uma prática de superstições e crendices que,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De ciuitate dei, é descrita como tendo-se generalizado, na vivênciareligiosa <strong>da</strong> gentili<strong>da</strong>de. Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a morte de Deus significa o sepulcro <strong>da</strong>Filosofia. Com ela entra <strong>em</strong> luto, também, o sentido <strong>da</strong> existência humana, pois se nãohá nenhuma enti<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a que garanta a racionali<strong>da</strong>de do Cosmos, é ociosa e vã a29


tarefa de construir uma explicação coerente para o Universo <strong>em</strong> que o ser humano seinsere.Numa outra forma de equacionar o filosof<strong>em</strong>a, e reduzindo a noção de ord<strong>em</strong> àadministração do Universo por uma inteligência supr<strong>em</strong>a, ou ao conceito deprovidência, a razão humana respondera, <strong>em</strong> outras formulações, que a ord<strong>em</strong> não éuniversal. Desde esta óptica, Deus não se imiscui nos assuntos humanos, entregandoestes ao curso <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de material. Esta tese poderia ser defendi<strong>da</strong> pelos partidáriosde um estoicismo radical, ou até mesmo, por contraditório que pareça, pelos defensoresdo neoplatonismo. Em qualquer caso, o Hiponense considera-a claramente ímpia, poisdesvaloriza a noção de divin<strong>da</strong>de. Um tal Deus não é n<strong>em</strong> omnipotente, n<strong>em</strong> atencioso.Não é, portanto, digno de devoção e pie<strong>da</strong>de.Por último, caberia considerar a hipótese de Deus ser causa do mal, tese aberranteque encarna a posição maniqueísta, sendo esta, na perspectiva de Sto. <strong>Agostinho</strong>, entreto<strong>da</strong>s, claramente a mais ímpia 1 .Em De ordine, a discussão <strong>em</strong> torno a este conjunto de questões é enuncia<strong>da</strong> comclareza. Trata-se de saber de que modo acontece que, tomando Deus o cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong>scoisas humanas, se verifique tanta perversi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> tais assuntos. Como <strong>Agostinho</strong> faznotar, tal modo de agir não é conforme com uma recta administração do real. Umescravo inculto, o último dos humanos, certamente faria melhor, se tal estivesse <strong>em</strong> seupoder 2 . Efectivamente, a razão que se fixe, mesmo por breves instantes, <strong>em</strong> fenómenosde natureza física, moral ou social, rapi<strong>da</strong>mente encontrará defeitos no Universo. Dest<strong>em</strong>odo <strong>em</strong>erge uma justificação fácil, por parte <strong>da</strong> razão humana, para a imperfeição edisformi<strong>da</strong>de, para a desord<strong>em</strong> reinante, deduzindo que o mundo está mal organizado 3 .1 Cf. DO I, I, 1 (CCL 29, p. 89). A mesma formulação é retoma<strong>da</strong> <strong>em</strong> LA III, II, 5 (CCL 29, p. 277).2 Cf. DO I, I,1 (CCL 29, p. 89).3 Num artigo de J. DANIELOU encontra-se um resumo, b<strong>em</strong> documentado e objectivo, <strong>da</strong>s principaisteses acerca do Governo do Mundo, presentes na antigui<strong>da</strong>de grega e no gnosticismo primitivo. Emconclusão, o A. escreve: “ (…) Le mauvais gouvern<strong>em</strong>ent du monde est une thèse propr<strong>em</strong>ent gnosticiste.Pour les Grecs le désordre est un pôle opposé à l’ordre, mais qui fait partie de la nature même del’Univers. Pour les Juifs et les Chrétiens, le monde est bien gouverné par un Dieu sage et bon; le désordrey est introduit par le péché, mais n’<strong>em</strong>pêche pas le monde d’être gouverné par Dieu. Pour les gnosticisteau contraire l’Univers à la fois stellaire et terrestre est l’œuvre d’un démiurge inférieur, qui le gouvern<strong>em</strong>al » [J. DANIÉLOU, « Le mauvais gouvern<strong>em</strong>ent du monde », in Le origine dello gnosticismo.Colloquio di Messina 13-18 aprile 1966 ( Leinden, 1970), p. 456]. A traços largos, são estes os aspectosfulcrais <strong>da</strong>s principais teses que se apresentam a Sto. <strong>Agostinho</strong> para eluci<strong>da</strong>r o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.30


Para solucionar tais dificul<strong>da</strong>des, o estoicismo defendera a identi<strong>da</strong>de entre anoção de ord<strong>em</strong> e a causali<strong>da</strong>de universal, afirmando que essa razoabili<strong>da</strong>de do realtranscende o mero conhecimento humano acerca <strong>da</strong> conexão <strong>da</strong>s causas dos fenómenos<strong>da</strong> natureza. A ordo rerum não se identificaria, na perspectiva estóica, com acompreensão que a razão humana possa ter de um determinado fenómeno. De facto, aoreferir a razão ou ord<strong>em</strong> do cosmos, o estoicismo não indica uma construção razoávelde argumentos que permita justificar, por via d<strong>em</strong>onstrativa, a causa de um fenómeno,<strong>da</strong><strong>da</strong> a convicção de que a razão do real transcende a esfera <strong>da</strong> lógica humana, sendoesta entendi<strong>da</strong> como subconjunto de uma racionali<strong>da</strong>de mais ampla. O ser humano não éo cume n<strong>em</strong> o centro do Universo e, por isso, não é <strong>em</strong> função dessa pequena parcela docosmos que a ordo rerum pode ser descortina<strong>da</strong>. Nesta perspectiva, uma definição deprovidência, cara ao estoicismo, diria que o cosmos é melhor do que o hom<strong>em</strong>. Aracionali<strong>da</strong>de humana é apenas uma função <strong>da</strong> razão cósmica, essa sim soberana eeterna.Isto mesmo se pode ler <strong>em</strong> De natura deorum, quando Crisipo expõe osargumentos a favor <strong>da</strong> existência de Deus, identificando esta última noção com oprincípio fabricador <strong>da</strong> natureza, ou seja, a Razão Cósmica 4 . A mesma tese éconfirma<strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ndo os argumentos de Zenão: se o Mundo é o melhor dos bens,então ele contém to<strong>da</strong>s as perfeições, entre as quais se contam a Razão e a Sabedoria 5 . AAlma do Mundo é a razoabili<strong>da</strong>de dele. Por sua vez, o movimento eterno dessa Vi<strong>da</strong>justifica todos os fenómenos intra-cósmicos, dos quais a vivência humana é um casoparticular, com as suas brisas benévolas e os ímpetos abalos de ventos tumultuosos,4 De nat. deor. II, 6, 16: “(...) Etenim si di non sunt, quid esse potest in rerum natura homine melius; in eoenim solo est ratio, qua nihil melius potest esse praestantius; esse aut<strong>em</strong> homine qui nihil in omni mundomelius esse quam se putet desipientis adrogantiae est; ergo est aliquid melius. est igitur profecto deus.”[Stutgardiae, 1980: Biblioteca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana (Recognovit ed. W.AX (1933), p. 55]. Em De nat. deor. II, 7, 18, depois de considerar os diferentes modos de existir, Crisipoconclui que o Mundo é o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, dotado de uma racionali<strong>da</strong>de intrínseca, ela mesma divina: “(…)atqui certe nihil omnium rerum melius est mundo nihil praestabilius nihil pulchrius, nec colum nihil est secogitare quid<strong>em</strong> quicquam melius potes. et si ratione et sapientia nihil est melius, necesse est haec inessein eo quid optimus esse concedimus.” ( p. 56 : it.n).5 De nat. deor. II, 8, 21: “(…) ‘Quod ratione utitur id melius est quam id quod ratione non utitur; nihilaut<strong>em</strong> mundo melius; ratione igitur mundus utitur.’ similiter effici potest sapient<strong>em</strong> esse mundum,similiter beatum, similiter aeternum; omnia enim haec meliora sunt quam ea quae sunt his carentia, necmundo quicquam melius. ex quo efficietur esse mundum deum.” (p. 57).31


umas e outros predefinidos e irrefragáveis. Estes vaivéns <strong>da</strong> fortuna mais não são doque uma expressão <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> cósmica. A activi<strong>da</strong>de humana integra-se, assim, como umel<strong>em</strong>ento mais <strong>da</strong> sucessão ordena<strong>da</strong> <strong>da</strong>s causas, determina<strong>da</strong> pela Alma do Mundo.Em De ordine, a reflexão acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> <strong>em</strong>erge a partir <strong>da</strong> percepção defenómenos naturais. O acto filosófico que dá início à discussão é a admiração de<strong>Agostinho</strong> ante a alternância do som do curso <strong>da</strong>s águas junto aos balnea 6 . Airregulari<strong>da</strong>de do rumor terá vindo ao encontro dos ouvidos do filósofo e chamou-lh<strong>em</strong>ais a atenção do que de costume. Perante a perplexi<strong>da</strong>de de <strong>Agostinho</strong> – cur ita esset?–, a resposta é r<strong>em</strong>eti<strong>da</strong> por Licêncio para o âmbito <strong>da</strong>s causas naturais: “folhas queca<strong>em</strong> no rio”. Porém, o filósofo insiste na in<strong>da</strong>gação, <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> causa, acabando porconsiderar que, não encontrando outra solução, a de Licêncio se pode inscrever noâmbito <strong>da</strong>s sentenças prováveis.No interior deste Diálogo, os níveis de exigência de resposta são, para estes doisinterlocutores, claramente distintos. Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, é insólito e digno deadmiração que alguma reali<strong>da</strong>de não siga o curso <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> manifesta, isto é, que aquiloque deveria acontecer de modo natural ou que, pelo menos, acontece de modo habitual,seja capaz de sofrer alteração, <strong>da</strong>ndo lugar a uma aparente desord<strong>em</strong>. Para Licêncio, odomínio fenoménico <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> é apenas um subconjunto de uma ord<strong>em</strong> mais ampla,abrangido por uma ocultissima ratio que, <strong>em</strong>bora profun<strong>da</strong>mente latente para ossentidos humanos, se inscreve no percurso inalterável <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de material.A primeira discussão regista<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine ron<strong>da</strong> mais <strong>em</strong> torno <strong>da</strong>s convicçõesde Licêncio do que de uma definição por este assumi<strong>da</strong>, a qual, de facto, só lhe ésolicita<strong>da</strong> depois de todo um dia de labor, dedicado a pôr à prova a certeza inconcussado jov<strong>em</strong>, segundo a qual “na<strong>da</strong> se faz fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>”. Porém, esta inabalávelconvicção cai por terra quando confronta<strong>da</strong> com um s<strong>em</strong>-número de dificul<strong>da</strong>des, asquais <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> de modo assist<strong>em</strong>ático ao longo do Diálogo. Ao ser derruba<strong>da</strong> aafirmação de Licêncio acerca <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> surg<strong>em</strong>, de novo, os apor<strong>em</strong>asnos quais o filosof<strong>em</strong>a se subsume: ou os assuntos humanos estão à deriva, pois não háuma instância supr<strong>em</strong>a que deles se ocupe, ou tal instância existe, mas não alcança todoo real. Nesse caso, não é supr<strong>em</strong>a, e pode coexistir com outras reali<strong>da</strong>des que lhe façamfrente na disputa pelo domínio do Universo.6 Cf. DO I, III, 7 (CCL 29, p. 92).32


Se, <strong>em</strong> De ordine, <strong>Agostinho</strong> e Licêncio assum<strong>em</strong> como proposição consensual,que “na<strong>da</strong> se faz fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>”, porém o termo ord<strong>em</strong> não é por ambos usadounivocamente. Licêncio identifica a noção de ordo com o princípio de razão suficiente,segundo o qual “todo o efeito t<strong>em</strong> uma causa”. To<strong>da</strong>via, o princípio de causali<strong>da</strong>deuniversal apenas dá resposta à orig<strong>em</strong> do fenómeno na sua circunscrição física.Responde à razão de ser <strong>da</strong> sua presença no Universo como efeito de uma lógica que fazcoisas, revelando-se, contudo, incapaz de alcançar a percepção <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de delas. EmDe ordine, Licêncio explicita o âmbito ao qual se distende a sua convicção sobre auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>: a natureza, que gera os fenómenos físicos, de nenhum modo ét<strong>em</strong>erária, sendo a sua activi<strong>da</strong>de defini<strong>da</strong> pela sucessão exacta dos nós que estreitam asrelações necessárias estabeleci<strong>da</strong>s entre diferentes fenómenos. A causali<strong>da</strong>de universal,aqui postula<strong>da</strong>, não ultrapassa o domínio <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des materiais, no qual se inscreve eao qual se subordina a própria activi<strong>da</strong>de humana. Deste modo, a resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> pelofilho de Romaniano à pergunta “<strong>em</strong> função de que b<strong>em</strong> a natureza procriou (no caso <strong>em</strong>discussão, árvores)?” apenas pode manifestar a recusa a investigar sobre a natureza <strong>da</strong>causali<strong>da</strong>de final 7 .Licêncio contorna a dificul<strong>da</strong>de apresenta<strong>da</strong> pelo Filósofo de Hipona restringindoclaramente o horizonte do seu conceito de ordo. Dado que há um s<strong>em</strong>-número dereali<strong>da</strong>des cuja utili<strong>da</strong>de para os homens é ínfima ou nula, a investigação sobre afinali<strong>da</strong>de do real é irrelevante ou indiferente: a razão humana apenas pode interrogaracerca <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de eficiente. O horizonte mental de Licêncio é, portanto,voluntariamente restrito. Só naquele âmbito faz sentido interrogar a ordo rerum e, paraum tal domínio de compreensão, basta a in<strong>da</strong>gação sobre a causa eficiente dosfenómenos 8 .To<strong>da</strong>via, a convicção do jov<strong>em</strong> é ambiciosa, <strong>da</strong>do que, para tomar conhecimentode uma tal causa, exige que o entendimento alcance aquilo que Licêncio considera comoa plenitude do saber: o domínio <strong>da</strong> arte divinatória, ou presciência humana. Na ver<strong>da</strong>de,este poder <strong>da</strong> razão mais não é do que aquela forma de saber que é capaz de se dilatar7 Cf. DO I, IV, 11; V, 14 ( CCL 29, p. 94-95; p. 96).8 A intervenção de <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> DO I, V, 13, aparent<strong>em</strong>ente retórica, pode interpretar-se comoadmoestação a Licêncio para que esteja atento a tudo aquilo que lhe pode ser ensinado pela ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>scoisas, facto que acontecerá desde que se mantenha unido a ela pela cadência <strong>da</strong>s próprias questões.33


no curso dos t<strong>em</strong>pos, pela auscultação <strong>da</strong> ocultissima ratio que envolve os fenómenosnaturais, alcançando, assim, o encadeamento e conexão <strong>da</strong>s relações de causa-efeito 9 .Porém, é sobretudo quando Sto. <strong>Agostinho</strong> solicita a Licêncio um juízo de valorsobre a noção de ord<strong>em</strong> que se evidencia o limite <strong>da</strong>s convicções de Licêncio. O jov<strong>em</strong>interlocutor de <strong>Agostinho</strong> não é capaz de decidir se a ord<strong>em</strong> é um b<strong>em</strong> ou um mal,precisamente porque colocou esta noção à marg<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> a valoração, atribuindo-lheuma certa indiferença ontológica 10 .Note-se que, tal como é equacionado na primeira parte do Diálogo, o modo deabor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> circunscreve a pesquisa ao âmbito do factum. Talcomo são ou estão, as coisas têm uma razão de ser, mesmo que, por qualquer motivo,igualmente razoável, present<strong>em</strong>ente se desconheça qual a causa de um determinadoefeito. Desde esta óptica, <strong>em</strong>bora se assuma que a ordo rerum t<strong>em</strong> um alcanceuniversal, ela não deixa de encerrar os acontecimentos do Mundo num circuito fatal.Esta é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, uma resposta fácil. Fomenta a preguiça <strong>da</strong> razão, que deixa deinquirir o porquê, e a inércia <strong>da</strong> vontade, que se exime de intervir no curso <strong>da</strong> História,reconforta<strong>da</strong>, na sua fatídica cegueira, por um destino, cujo sentido, a existir, não é <strong>da</strong>dopenetrar senão a um número privilegiado de mentes. Num tal contexto, o sábio é oadivinho e o conhecimento <strong>da</strong>s leis cósmicas está entregue aos vaticínios dele.Em De ordine, as intervenções de Licêncio propõ<strong>em</strong> a construção de umamundividência onde a noção de ord<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> contrário, não tanto por ser uma ideiasupr<strong>em</strong>a, mas por se considerar que tudo o que existe é indiscrimina<strong>da</strong>mente válido,uma vez que é o próprio real que atribui indiferent<strong>em</strong>ente igual valor a to<strong>da</strong>s as suasexpressões: as coisas simplesmente são, estão aí, coloca<strong>da</strong>s por alguma causa. Nesteuniverso, não há, sequer, uma efectiva distinção entre o erro e a ver<strong>da</strong>de. O erro teráseguramente alguma causa eficiente, pela qual se inscreve no curso exacto dosacontecimentos, facto que lhe confere, tal como à ver<strong>da</strong>de, o estatuto de maximamenteordenado. Licêncio superou o cepticismo académico, do qual se manifestara partidário,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De beata uita 11 , e que o fazia declarar que a ver<strong>da</strong>de apenasconcerne a probabili<strong>da</strong>de 12 . Agora adere a uma ver<strong>da</strong>de que sustenta como inamovível:“todo o efeito t<strong>em</strong> uma causa e na<strong>da</strong> se faz fora deste princípio”. Contudo, uma tal9 Cf. DO I, V, 14 ( CCL 29, p. 96).10 Cf. DO I, VI, 15 ( CCL 29, p. 96-97) .11 Cf. CA I, II, 6 ( CCL 29, p. 6); BV II, 15 ( CCL 29, p. 73-74).12 Cf. CA III, V, 11 ( CCL 29, p. 41).34


mundividência, profun<strong>da</strong>mente imbuí<strong>da</strong> <strong>da</strong>s convicções provenientes do materialismoestóico, contém, ain<strong>da</strong>, o germe <strong>da</strong>s perplexi<strong>da</strong>des já enuncia<strong>da</strong>s, a que outras se virãoacrescentar.Por seu turno, Sto. <strong>Agostinho</strong>, ao procurar, <strong>em</strong> De ordine, um horizonte maisamplo para estas convicções, provando-as no âmbito <strong>da</strong> causa final, introduz a noção deord<strong>em</strong> no horizonte de uma teleologia, indissociável de uma apreciação valorativa doreal. O mestre de Cassicíaco não nega que a reali<strong>da</strong>de seja um factum, ou seja, que oUniverso se componha de um conjunto de fenómenos que se impõ<strong>em</strong> à percepçãosensível como irrecusáveis e <strong>em</strong>piricamente verificáveis 13 . Contudo, <strong>Agostinho</strong> sabeque a compreensão de tais fenómenos não se pode reduzir ao mero impacto fisiológicosobre a sensibili<strong>da</strong>de humana, pois a própria presença deles reclama a in<strong>da</strong>gação pelotermo ad qu<strong>em</strong> – para que serve tal reali<strong>da</strong>de? É útil? É benéfica ou <strong>da</strong>nosa? Para ofilósofo, a interrogação acerca <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de do real torna-se decisiva para apurar anatureza do real e, inclusivamente, para ilustrar a essência <strong>da</strong> causa eficiente. Daídecorre, <strong>em</strong> De ordine, o carácter radical <strong>da</strong> interrogação augustiniana, ao versar sobre autili<strong>da</strong>de e a bon<strong>da</strong>de dos seres 14 .Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que, ao assumir, como fizera Licêncio, o princípio derazão suficiente como definição de ord<strong>em</strong>, é necessário, acima de tudo, tomar posiçãosobre a natureza <strong>da</strong> causa final. De contrário, esse domínio imediato de percepção <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des físicas, o âmbito do factum, torna-se completamente irrazoável. Por isso, naperspectiva do Hiponense, se a noção de ord<strong>em</strong> é entendi<strong>da</strong> como um princípio causalque faz coisas, importa maximamente compreender para que as faz. S<strong>em</strong> estajustificação, a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> será, <strong>em</strong> si mesma, irracional e, portanto, desprovi<strong>da</strong>de ord<strong>em</strong>, sendo manifesta a contradição do raciocínio. Deste modo, não obstante asaporias <strong>em</strong> que De ordine se submerge, são de registar dois el<strong>em</strong>entos acerca do modocomo, neste escrito de juventude, o Hiponense equaciona o filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa. Porum lado, vai ao encontro <strong>da</strong> justificação de uma razão universal de natureza incorpórea13 Em De ordine, o termo factum t<strong>em</strong> o sentido <strong>da</strong>quilo que aparece, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que, enquantomanifestação <strong>da</strong> natura, é percepciona<strong>da</strong> pelo ser humano através dos órgãos sensíveis externos.Mediante estes, o factum torna-se disponível à reflexão <strong>da</strong> razão. Muitas são as causas possíveis para aexistência deste factum ou <strong>da</strong> natura. Na obra do Hiponense, a derradeira causa encontra-se numavontade omnipotente de ser: o factum será entendido como efeito de um fiat primordial, integrando-se nocontexto <strong>da</strong> noção bíblica-cristã de creatio.14 Cf. DO I, VI, 15 (CCL 29, p. 96-97).35


e, por outro lado, esta razão é, para <strong>Agostinho</strong>, indissociável <strong>da</strong> interrogação acerca <strong>da</strong>finali<strong>da</strong>de do real. Assim, se, ao interrogar a relação entre Deus e os humanos, ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> se inscreve, antes de mais, no horizonte de uma teodiceia, só noseio de uma teleologia ele encontrará uma articulação possível, por parte <strong>da</strong> razãohumana.No decurso do debate levado a efeito <strong>em</strong> De ordine, Licêncio concede, finalmente,que a ordo rerum integra os bens e os males. Esta formulação colide directamente como probl<strong>em</strong>a crucial <strong>da</strong> natureza do Princípio – a ord<strong>em</strong>, é ou não, noção supr<strong>em</strong>a? Aord<strong>em</strong> é Deus, ou submete-se, ain<strong>da</strong>, a Deus, como enti<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, cume de umahierarquia ontológica? Com estas interrogações, a discussão do filosof<strong>em</strong>a atinge ovértice <strong>da</strong> Filosofia, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a concebe: como a reflexão sobre anatureza <strong>da</strong> noção supr<strong>em</strong>a que a razão pode alcançar e sobre o modo como ela serelaciona com as d<strong>em</strong>ais formas de existência.Considerando a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e atribuindo o primado ontológico a estanoção, exigindo que ela seja capaz de integrar bens e males, o filosof<strong>em</strong>a, tal como éequacionado por Sto. <strong>Agostinho</strong>, in<strong>da</strong>ga, afinal, sobre a natureza do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. EmDe ordine, é Trigécio que reduz ao absurdo a tese de Licêncio, integrando-a no âmbito<strong>da</strong> interrogação sobre a natureza do Princípio Supr<strong>em</strong>o de reali<strong>da</strong>de.De facto, identificando a ordo rerum com a reali<strong>da</strong>de mais universal, a cujogoverno to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais estão sujeitas, Licêncio julga ter alcançado a essência <strong>da</strong>divin<strong>da</strong>de. Mas de que modo é possível entender que Deus integre e sustente, no seugoverno, o próprio mal, s<strong>em</strong> atribuir à divin<strong>da</strong>de a autoria desta noção <strong>da</strong>ninha? Paraevitar s<strong>em</strong>elhante apor<strong>em</strong>a, é necessário estabelecer uma diferença entre a ord<strong>em</strong> e adivin<strong>da</strong>de, r<strong>em</strong>etendo aquela para um domínio sectário e negando-lhe, assim, o atributo<strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de.No esforço de elaborar uma resposta para estas perplexi<strong>da</strong>des, Licêncio constrói,para a noção de ordo, enunciados antinómicos que permit<strong>em</strong> integrar,indiscrimina<strong>da</strong>mente, as teses neoplatónica e maniqueísta acerca <strong>da</strong> natureza doPrincípio. Tal confusão e <strong>em</strong>aranhado de proposições t<strong>em</strong>, contudo, a virtude deevidenciar que aquelas visões do mundo - neoplatonismo e maniqueísmo -, não an<strong>da</strong>m,afinal, tão longe uma <strong>da</strong> outra como poderia parecer. Se, como afirma Licêncio, a ord<strong>em</strong>é o facto de ‘Deus amar os bens e não amar os males’, então, mais do que uma noçãosupr<strong>em</strong>a, a ord<strong>em</strong> é o resultado de uma acção divina. Submetendo-se à dominação deDeus, a ordo rerum não alcança o estatuto soberano: não é divina n<strong>em</strong> integra os males,36


caso <strong>em</strong> que estes ca<strong>em</strong> fora <strong>da</strong> diligência divina. Fica, assim, aberto o caminho para aautonomia ontológica <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des nocivas e disformes, tal como sugere omaniqueísmo.É um facto que, também <strong>em</strong> De ordine, se considera a possibili<strong>da</strong>de de que Deusgere harmonia, ao compatibilizar os contrários. Deste modo, pretende-se garantir oprimado <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> como Soberano B<strong>em</strong> – harmonia, congruência, beleza -, mas Deus,na sua relação com o Universo, <strong>em</strong>erge com características d<strong>em</strong>iúrgicas, eximindo ainefabili<strong>da</strong>de Dele ao contacto <strong>da</strong>s confusões que pululam o cosmos. Considere-se,então, que a ordo rerum é defini<strong>da</strong> como reali<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>iúrgica. Mediante ela, oPrincípio Supr<strong>em</strong>o gera harmonia. Nela se resume o contacto que tal Princípio t<strong>em</strong> comos assuntos que diz<strong>em</strong> respeito ao cosmos, pois a essência <strong>da</strong>quele n<strong>em</strong> se esgota nestarelação, n<strong>em</strong> está peculiarmente vocaciona<strong>da</strong> para ela. Nesta interpretação - que seconjuga facilmente com a neoplatónica, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que esta confere à Alma doMundo a função de gerir o cosmos e de o governar - há, novamente, lugar, mesmo sesub-repticiamente, para uma autonomia do mal.Em De ordine esta proposta de uma condição intermédia <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na hierarquiaontológica surge quando se discute acerca do modo como se há-de entender que Deusexerce a justiça. Partindo <strong>da</strong> definição clássica de justiça, segundo a qual esta se exerceatribuindo a ca<strong>da</strong> um aquilo que lhe é devido, para que Deus possa ser justo,distribuindo prémios e castigos, exige-se a preexistência do b<strong>em</strong> e do mal. A noção deordo, agora identifica<strong>da</strong> com o exercício <strong>da</strong> justiça divina, reclama a subsistência <strong>da</strong>contradição, o movimento antitético entre o b<strong>em</strong> e do mal. Novamente, b<strong>em</strong> e malsurg<strong>em</strong> como categorias cujo princípio escapa ao domínio de Deus. Mas, querendoinvestigar a orig<strong>em</strong> de ambos, apurar-se-á que, se o b<strong>em</strong> pode, s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de, derivarde Deus, dificilmente se justificará que a natureza do mal decorra por iniciativa <strong>da</strong>quelanoção supr<strong>em</strong>a.Na ver<strong>da</strong>de, considerando a ordo rerum como o efeito de uma harmonia decontrários, legitima-se a substanciali<strong>da</strong>de do mal e a condição eternamente bélica doreal, por exigência <strong>da</strong> própria subsistência do Princípio de <strong>Ser</strong>. Mais ain<strong>da</strong>, é a própriaeterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça - identifica<strong>da</strong> pela harmonia de contrários e entregue à activi<strong>da</strong>dede um deus menor – que exige a subsistência do mal, pois onde não há distinção ediferença, onde to<strong>da</strong>s as coisas são boas, não parece ser possível o exercício <strong>da</strong> justiça.A não existir<strong>em</strong> os contrários e antíteses, eternamente subsistentes, os interlocutores deDe ordine têm dificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> compreender de que modo Deus distribui a ca<strong>da</strong> um37


aquilo que lhe é próprio. Inversamente, se negam a Deus esta activi<strong>da</strong>de, terão deconcluir que Ele não é justo e surge, novamente, o apor<strong>em</strong>a 15 .Neste raciocínio, o que está <strong>em</strong> causa é a relação entre as noções de ordo e iustitia.Em De ordine atribui-se à justiça a eterni<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é uma proprie<strong>da</strong>dedivina. Deste modo, a categoria <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de é introduzi<strong>da</strong> no debate sobre anatureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Para que a justiça, administração, ord<strong>em</strong> ou providência divinas –termos apresentados, <strong>em</strong> De ordine, como sinónimos e a exigir, do Filósofo de Hipona,futuras distinções - s<strong>em</strong>pre se tenham exercido, é necessário postular a eterna existênciado mal, o que equivale a afirmar a subsistência desta reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ninha como coprincípiojunto do b<strong>em</strong>, a sua coexistência eterna junto <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Ora, esta forma deconceber a ord<strong>em</strong> enuncia, de modo chão, a tese maniqueísta.Em De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> equaciona, pela primeira vez no contexto <strong>da</strong> suaobra, o conjunto de apor<strong>em</strong>as com que se enfrenta a razão quando quer equacionar aexistência de um <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e a evidência do sofrimento humano. Nesse Diálogorecolh<strong>em</strong>-se algumas <strong>da</strong>s soluções culturalmente disponíveis à razão dos interlocutorespara enfrentar as dificul<strong>da</strong>des que se apresentam à razão, no confronto com o filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Assim, Trigécio intui que a justiça divina não pode ser um atributodependente de outras reali<strong>da</strong>des, extrínsecas à divin<strong>da</strong>de, tais como a existência do mal.Na ver<strong>da</strong>de, a justiça subsiste <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de com o ser divino, eterno e imutável, e éexerci<strong>da</strong> por Deus de forma distributiva, quando se trata de conferir prémios e castigos.To<strong>da</strong>via, desde esta perspectiva não se vê como anular a eterni<strong>da</strong>de do mal, <strong>da</strong>do que,para que a justiça distributiva divina seja eterna, tal como se intui que eterno é o ser deDeus, é necessário que, desde s<strong>em</strong>pre, o b<strong>em</strong> e o mal tenham existido 16 .Uma vez mais, é a dificul<strong>da</strong>de de relacionar a eterni<strong>da</strong>de do ser divino e at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções humanas que obsta ao esclarecimento <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>. Naresolução apresenta<strong>da</strong> por Trigécio ain<strong>da</strong> persiste a distinção entre Deus e a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, nãosendo esta última noção eleva<strong>da</strong> à condição de Enti<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a, mas apenasreconduzi<strong>da</strong> a uma <strong>da</strong>s activi<strong>da</strong>des de Deus, na relação - que se quer preservar tãoindirecta quanto possível - que Ele t<strong>em</strong> com o Mundo. A justiça é, de facto, considera<strong>da</strong>como um atributo divino. Mas, quando se trata de a exercer, Deus socorre-se de umaoutra reali<strong>da</strong>de, designa<strong>da</strong> por ord<strong>em</strong>, <strong>da</strong>do que, para distribuir prémios e castigos de15 Cf. DO I, VII, 19 ( CCL 29, p. 98).16 Cf. DO II, VII, 22 ( CCL 29, p. 99-100).38


acordo com os méritos de ca<strong>da</strong> um, tal Deus t<strong>em</strong> de se relacionar com a multiplici<strong>da</strong>de ea diferença. Ao fazê-lo, coloca <strong>em</strong> jogo a sua supr<strong>em</strong>a perfeição. Encarrega, por isso,uma outra enti<strong>da</strong>de, a ordo rerum, de des<strong>em</strong>penhar tal tarefa.A noção de ordo <strong>em</strong>erge, assim, como efeito de uma delegação de Deus. Ela é,assim, uma degenerescência Dele ou qualquer outra designação que se encontre paraidentificar a relação entre ord<strong>em</strong> e divin<strong>da</strong>de. Sendo assim, ela não é, de modo algum,universal. Acima dela, e com maior amplitude de acção, estão, antes de mais, o b<strong>em</strong> e omal, reali<strong>da</strong>des que cabe à ord<strong>em</strong>, afinal, arbitrar. Em sentido ascendente, coloca-sesegui<strong>da</strong>mente, na hierarquia ontológica, o próprio Deus, que coexiste, eternamente, comaquelas duas reali<strong>da</strong>des ontologicamente antitéticas, o B<strong>em</strong> e o Mal. Inversamente,qu<strong>em</strong> queira admitir que s<strong>em</strong>pre existiu uma enti<strong>da</strong>de designa<strong>da</strong> por <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, cujanatureza é universal e divina – caso <strong>em</strong> que ela assume o perfil <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de - terá deacolher a sentença segundo a qual o mal brotou no interior <strong>da</strong>quela, confessando serDeus o autor dos males e fazendo <strong>em</strong>ergir o espectro desta ímpia opinião 17 .Em De ordine expõe-se, ain<strong>da</strong>, uma posição filosófica que de modo algum Sto.<strong>Agostinho</strong> desprezará, servindo-se, inclusivamente, dela, na orientação dosdesenvolvimentos ulteriores que prestará ao filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> apreço. Trata-se <strong>da</strong> posiçãoenuncia<strong>da</strong> por Mónica. Com efeito, a Mãe de <strong>Agostinho</strong> sugere que a subsistênciaeterna <strong>da</strong> justiça como atributo divino não exige a eterna subsistência do mal. Mesmoque se queira admitir que o juízo divino sobre bons e maus é cont<strong>em</strong>porâneo <strong>da</strong><strong>em</strong>ergência do mal, <strong>da</strong>í não se pode concluir, na perspectiva de Mónica, a eternasubsistência desta reali<strong>da</strong>de negativa. O mal pode ter tido um início t<strong>em</strong>poral,distinguindo-se, assim, radicalmente e por essência, <strong>da</strong> eterna subsistência de Deus.A intervenção de Mónica insinua que o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> exige reflectir sobreduas questões fun<strong>da</strong>mentais, nele latentes, as quais incid<strong>em</strong>, fun<strong>da</strong>mentalmente, sobre acategoria <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e sobre a orig<strong>em</strong> dos seres. Com efeito, Mónica sugere queuma reflexão sobre estes dois aspectos poderia descortinar quer o mistério do mal, quera natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, evidenciando a interligação entre estes quatro el<strong>em</strong>entos:t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, orig<strong>em</strong> dos seres, existência do mal e ordo rerum. Mais ain<strong>da</strong>, no dizerde Mónica a <strong>em</strong>ergência do mal é coeva, não <strong>da</strong> essência de Deus, mas do exercício <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de judicativa Dele sobre o Mundo. Tal modo de posicionar a questão dissocia aeterna justiça de Deus, atributo de essência, e o exercício distributivo <strong>da</strong> mesma17 Cf. DO II, VII, 23 ( CCL 29, p. 119-120).39


quali<strong>da</strong>de divina que só é levado a efeito na relação que Deus estabelece com oUniverso. Seja qual for o modo como o mal tenha brotado no Mundo, desde s<strong>em</strong>pre teráestado submetido ao poder <strong>da</strong> eterna rectidão do ser divino. Na reali<strong>da</strong>de, a intervençãode Mónica <strong>em</strong> De ordine antevê as condições de possibili<strong>da</strong>de para a solução doconflito entre a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e a existência do mal, quando afirma que ajustiça divina não permitiu que o mal, uma vez nascido, estivesse desordenado, tendo-oreconduzido à ord<strong>em</strong>, obrigando-o a que se lhe submetesseEm De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> enuncia, também, a sua convicção a propósito dosel<strong>em</strong>entos que envolv<strong>em</strong> a resolução do filosof<strong>em</strong>a. Na hipótese de a ord<strong>em</strong> serposterior ao surgimento do mal, este não é causa <strong>da</strong>quela. Visto ser um b<strong>em</strong>, a ord<strong>em</strong>esteve s<strong>em</strong>pre junto de Deus, tese que exigirá defender que todos os bens estão juntodesse princípio Supr<strong>em</strong>o. Assim, ou s<strong>em</strong>pre existiu na<strong>da</strong> a que se chame mal ou, se omal teve um começo, ele aconteceu estando contido na ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas. Porém, paradefender esta tese, Sto. <strong>Agostinho</strong> obrigar-se-á a mostar que o mal não é senão umaexpressão diminuta <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de dos seres. Mais ain<strong>da</strong>, ao afirmar que a ord<strong>em</strong> s<strong>em</strong>preesteve junto de Deus, <strong>Agostinho</strong> terá de justificar que ela própria é Deus. Para tal, serlhe-ánecessário alcançar uma noção suficient<strong>em</strong>ente ampla de divin<strong>da</strong>de, de modo aque, s<strong>em</strong> corromper a uni<strong>da</strong>de divina, nela se integr<strong>em</strong>, a um t<strong>em</strong>po, to<strong>da</strong>s as diferençasinerentes à pluriformi<strong>da</strong>de do real, b<strong>em</strong> como a própria ord<strong>em</strong>, que as administra egoverna. <strong>Agostinho</strong> compromete-se, assim, a uma tarefa deveras ambiciosa: mostrar quea noção de ord<strong>em</strong> é uma reali<strong>da</strong>de simultaneamente diferente <strong>da</strong> substância divina eidêntica a ela, dependendo <strong>da</strong> perspectiva sob a qual a razão humana a considere.O filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> abrange um s<strong>em</strong>-fim de questões deveras complexas.Qu<strong>em</strong> poderá encontrar argumentos para tamanhas contradições? Em De ordine, ofilósofo - reconhecendo-se impotente perante a magna silua rerum com que se deparacomo objecto de relexão - admite que há uma única via para encontrar soluções:recolher o espírito, maturar a cogitação no recôndito <strong>da</strong> alma consigo mesma. Naproposta de <strong>Agostinho</strong>, onde são reconheci<strong>da</strong>s as influências <strong>da</strong> metodologianeoplatónica do regressus animae, só a partir do cume <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de pode todo o filósofodigno desse nome cont<strong>em</strong>plar, s<strong>em</strong> perturbação, as contradições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e discernir olugar que estas ocupam no conjunto dos seres, formando a harmonia <strong>da</strong> existênciaindividual e cósmica. Uma vez alcançado esse vértice, a mente humana não maisperspectivará o real com base no produto fabricado. Fá-lo-á tomando como posto deobservação a própria Razão, Artífice de to<strong>da</strong>s as coisas. Para alcançar esse patamar de40


cont<strong>em</strong>plação, Sto. <strong>Agostinho</strong> não conhece senão duas vias, às quais, contudo, nãoatribui igual valor epistémico. São elas o itinerário <strong>da</strong> razão, que se há-de dedicar àsartes liberais, ou a via <strong>da</strong> resignação à adesão aos mistérios. Por ora, uma vez que asinterrogações e dificul<strong>da</strong>des moram no próprio espírito do Hiponense, resta-lherecomen<strong>da</strong>r o itinerário <strong>da</strong> dedicação <strong>da</strong> mente à erudição pelas artes, como caminhoseguro para a descoberta dos paradoxos acerca <strong>da</strong> ordo rerum 18 .2. Ordo disciplinarumAin<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> regista outra ardui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pesquisa, aacrescentar à obscuri<strong>da</strong>de que acompanha a investigação acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> noção deord<strong>em</strong> e <strong>em</strong> íntima conexão com ela. Com efeito, ain<strong>da</strong> que alguém venha a superar asangústias dos que se <strong>em</strong>brenham na explanação de tão misteriosa noção, terá de contarcom a falta de aceitação <strong>da</strong>quilo que expõe, por parte dos ouvintes. Esta resistência está<strong>em</strong> estreita conexão com a ausência de quali<strong>da</strong>de de espírito, pois a posse <strong>da</strong>s virtudesintelectuais e morais, que constitu<strong>em</strong> o ideal do hom<strong>em</strong> sábio, condiciona a capaci<strong>da</strong>dehumana de entender quanto diz respeito à Filosofia.Em De ordine, confrontado com a inépcia dos seus interlocutores, Sto. <strong>Agostinho</strong>profere um longo excurso sobre a erudição, convicto <strong>da</strong> eficácia desta como via ascética<strong>da</strong> mente que quer ascender <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des corpóreas às incorpóreas 19 . Para o filósofo, aimportância dos diferentes saberes consiste <strong>em</strong> que, neles, a razão manifesta to<strong>da</strong> a suamestria na arte de ensinar a sua própria natureza, auto-revelando-se. Ora, uma vez que anatureza <strong>da</strong> razão é a mesma que a do Mundo Inteligível, mediante ela tal Mundopoderá ser cont<strong>em</strong>plado pelos que se dedicam ao cultivo <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma 20 .Sto. <strong>Agostinho</strong> fará consistir todo o projecto <strong>da</strong> sua filosofia na ascese <strong>da</strong> almapara o inteligível. Ao longo <strong>da</strong> sua obra, esta ascese virá a assumir distintos matizes e amanifestar as suas virtuali<strong>da</strong>des, as quais ultrapassarão amplamente o mero exercício deerudição. Porém, é um facto que, nos primeiros escritos, insiste na instrumentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>18 Cf. DO II, 5, 15 (CCL 29, p. 115).19 Retract. I, III, 1: “(...) Sed cum r<strong>em</strong> vider<strong>em</strong> ad intellegendum difficil<strong>em</strong> satis aegra ad eorumperception<strong>em</strong>, cum quibus agebam, disputando posse perduci, de ordine studendi loqui malui, cum acorporalibus ad incorporalia potest profici.” (CCL 57, p.12).20 Cf. DO II, XII, 35 ( CCL 29, p. 127).41


dedicação <strong>da</strong> razão à ord<strong>em</strong> dos saberes, na tarefa de conquistar a Sabedoria. Note-se,contudo, que o Filósofo de Hipona não convi<strong>da</strong> a razão a este esforço movido por umfrívolo afã de erudição. Como é notório, sobretudo <strong>em</strong> De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> fá-lopor estar convicto de que a razão ou ord<strong>em</strong> se manifesta <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um dos saberes,enquadrando este projecto de erudição naquele outro afã, mais geral, de ascender àsreali<strong>da</strong>des incorpóreas por meio <strong>da</strong>s corporais. Esta proposta, que corresponde a ummodo de conceber o real, pautará a obra do Hiponense. Se, nos primeiros escritos, elaestá fun<strong>da</strong>mentalmente dependente <strong>da</strong> metodologia de ascese de tradição neoplatónica,posteriormente ela fundir-se-á com o enunciado paulino - per ea quae facta suntintellecta conspicitur 21 - numa lógica onde a metafísica cristã <strong>da</strong> Criação adquireplenitude de sentido, não obstante ser um facto que já o neoplatonismo identificava abusca do saber com uma atitude vivencial. To<strong>da</strong>via, como se verá, o itinerárioaugustiniano irá divergir do neoplatónico, tanto no plano teórico, como enquantoproposta de vi<strong>da</strong>.Quer caminhando mediante os produtos <strong>da</strong> razão, que são as disciplinae, quertomando como ponto de parti<strong>da</strong> de reflexão as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, é a natureza <strong>da</strong> razãoque o filósofo intenta descortinar, consoli<strong>da</strong>ndo, progressivamente, a sua convicçãosegundo a qual a natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> é idêntica à Inteligência, Artífice de to<strong>da</strong>s as coisas.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> apreende-se nas reali<strong>da</strong>des corpóreas,mas a sua plenitude só se adquire numa comunhão com a Sabedoria, Artífice de to<strong>da</strong>s asformas. Nela reside a ratio essendi do real, a racionali<strong>da</strong>de do conjunto de fenómenosque compõ<strong>em</strong> o Universo, o princípio e a finali<strong>da</strong>de que justificam a existência de ca<strong>da</strong>um deles e do conjunto. Por isso, a proposta augustiniana de aquisição de Sabedoriaaponta para a comunhão de ca<strong>da</strong> razão singular com essa Razão Artífice, sendonecessário encontrar uma forma de interligação entre ambas que permita realizar esteideal. Nos primeiros escritos e, de modo particular, <strong>em</strong> De ordine, <strong>Agostinho</strong> estáconvicto de que tal comunhão se realiza como término de um esforço <strong>da</strong> razão quandose dedica à aprendizag<strong>em</strong>. É neste contexto que surg<strong>em</strong> os elogios às disciplinae, b<strong>em</strong>como o próprio projecto, incumprido, de redigir uma Enciclopédia de saberes 22 .21 Cf. Rom 1: 20.22 Em Retract. I, VI (CCL 57, p. 17), <strong>Agostinho</strong> afirma que tinha <strong>em</strong> mente compor um manual de artesliberais. Mas é o filósofo qu<strong>em</strong> informa que apenas escreveu um texto, De gramatica, o qual teria jásumido <strong>da</strong> sua biblioteca, e seis livros De musica. Os d<strong>em</strong>ais livros que tinha intenção de escrever (Dedialectica, De rethorica, De geometria, De arithmetica e De philosophia) só ficaram nos começos. Sto.42


De facto, tal como é apresentado <strong>em</strong> De ordine, o excurso augustiniano sobre asartes liberais não deixa de se revestir de originali<strong>da</strong>de. A digressão inicia-se,precisamente, definindo a razão como aquela moção <strong>da</strong> mente que está subjacente <strong>em</strong>todo o processo de aprendizag<strong>em</strong> e que é condição do exercício de todos os saberes 23 .Sendo a razão a força motriz de to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de humana, contudo <strong>Agostinho</strong> faz notarque a maior parte dos que a <strong>em</strong>pregam desconhec<strong>em</strong> a natureza dela, facto que constituium imenso enigma 24 . Esta ignorância <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> razão, por parte do ser humano,converge, necessariamente, para o auto desconhecimento, que o filósofo considera ser acausa máxima dos erros gerados ao redor <strong>da</strong>s tentativas de solução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> 25 . Ora, tal ignorância é absolutamente injustifica<strong>da</strong>, pois até aqueles que se atêmàs reali<strong>da</strong>des que os sentidos captam pod<strong>em</strong> verificar, nelas, mesmo s<strong>em</strong> se dedicar<strong>em</strong>ao esforço dialéctico, o poder e a força <strong>da</strong> razão. De facto, o Filósofo de Hiponaconsidera que a racionali<strong>da</strong>de é indissociável <strong>da</strong> condição fenoménica do real. Desdeesta perspectiva, o ser humano só não atenderá nesta quali<strong>da</strong>de – a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> -, se contrariar voluntariamente a natureza <strong>da</strong>s coisas e, antes de mais, a sua<strong>Agostinho</strong> informa que os iniciou <strong>em</strong> Milão mas que perdeu esses textos. Quanto a De musica, redigido já<strong>em</strong> África, teve melhor destino e preservou-se. Sobre os Disciplinarum libri de <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> v. H.-I.MARROU, Saint Augustin et la Fin <strong>da</strong> la Culture Antique, Paris, 19584, p. 570-579; Ubaldo PIZZANI“L’enciclopedia agostiniana e i suoi probl<strong>em</strong>i”, Congresso Internazionale su S. Agostino nel XVIcentenario della conversione, Roma 15-20 set<strong>em</strong>bre 1986. Atti 1. (Roma 1987), 331-361. V. tambémBibliografia B. II, 9 – ERVDITIO.23 DO II, XI, 30: « Ratio est mentis motio ea, quae discuntur, distinguendi et conectendi potens (…)»(CCL 29, p. 124).24 Cf. DO II, XI, 30 (CCL 29, p. 124). No Proémio ao Livro I de De Trinitate este mesmo enigmaprevalece, sendo apontado como a causa dos erros acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de (Cf. DT I, I, 1: CCL 50,p. 26-27).25 Cf. DO II, XI, 31 (CCL 29, p. 124-125). Torna-se agora mais evidente a razão <strong>da</strong> insistênciaaugustiniana sobre a necessi<strong>da</strong>de de autoconhecimento. Não se trata de propor um conhecimentosubjectivo, de cariz psicológico, ou <strong>da</strong> auto-avaliação <strong>da</strong>s aptidões pessoais, mas <strong>da</strong> descoberta, nointerior <strong>da</strong> mente, <strong>da</strong> característica essencial do real, isto é, <strong>da</strong> relação específica que se estabelece entreaquela dimensão humana e uma racionali<strong>da</strong>de universal. Este conhecimento, quando perspectivado apartir do princípio universal que garante inteligibili<strong>da</strong>de a to<strong>da</strong> a expressão de ser, permite também umrecto posicionamento acerca <strong>da</strong> própria identi<strong>da</strong>de.43


própria forma de ser, pois Sto. <strong>Agostinho</strong> assume a definição clássica do ser humanocomo animal racional mortal 26 .Depois de expor de modo breve a condição razoável <strong>da</strong> percepção sensível no quese refere à visão e à audição, o mestre de Cassicíaco encontra razoabili<strong>da</strong>deinclusivamente na causa do próprio deleite sensível 27 . Com efeito, <strong>Agostinho</strong> considerao real como radicalmente significativo, estando a mente humana, como parte dele,essencialmente aberta a interpretar essa significação, atenta a recebê-la, s<strong>em</strong>pre que ossentidos se relacionam com as coisas. Por isso, conclui que o carácter razoável do realse manifesta, pelo menos, <strong>em</strong> três domínios: as acções humanas, s<strong>em</strong>pre referencia<strong>da</strong>s aum fim, as palavras e o deleite.Embora afirme que para levar a cabo a sua exposição sobre a ord<strong>em</strong> dos saberes éimportante prestar atenção, de modo peculiar, ao uso <strong>da</strong>s palavras, pelo qual se ensinaconvenient<strong>em</strong>ente, e ao deleite, pelo qual se acede à cont<strong>em</strong>plação ditosa, o filósofo nãoexclui, obviamente, a razoável finali<strong>da</strong>de do seu próprio discurso. Na ver<strong>da</strong>de, ele nãose faz ao acaso, mas pronuncia-se precisamente para manifestar o modo como aquiloque, no ser humano, é racional, se revela na constituição dos diferentes saberes. Emobras posteriores a De ordine, deter-se-á a explanar detalha<strong>da</strong>mente o acesso <strong>da</strong> menteao domínio inteligível mediante a visão, como acontece, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> alguns26 Em Enn. VI, 7, 4-5 (Ed. Bréhier, p. 72-74), Plotino discute a essência do ser humano <strong>em</strong> diálogo comas concepções platónica e aristotélica, procurando atingir uma definição, mas s<strong>em</strong> chegar a nenhumaconclusão definitiva.27 Cf. DO II, XI, 32 ( CCL 29, p. 125). Esta passag<strong>em</strong> de De ordine recor<strong>da</strong> necessariamente o opúsculode S. Boaventura, Opusculum de reductione artium ad theologiam (S. BONAVENTURA, Opera omnia.Quaracchi, 1891, t. V, p. 321-325). É ver<strong>da</strong>de que este texto de <strong>Agostinho</strong> está ain<strong>da</strong> d<strong>em</strong>asiado próximode um entendimento <strong>da</strong> disciplina como instrumento privilegiado de acesso à compreensão <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de,enquanto S. Boaventura - e na esteira do desenvolvimento que o próprio Hiponense <strong>da</strong>rá à sua concepçãoquer <strong>da</strong>s disciplinas, quer <strong>da</strong>s funções do ser humano coloca<strong>da</strong>s <strong>em</strong> acção no exercício <strong>da</strong>quelas – assumecomo ponto de parti<strong>da</strong> indiscutível que elas são um momento <strong>da</strong> Luz que desce do Alto (1: p. 319), cujafonte é o próprio Verbo, e cujo ápice revalacional é a Incarnação Dele (11-12: p. 322). Além do mais,para o Doutor <strong>Ser</strong>áfico a lux artis mechanicae, enquanto peculiar expressão dessa luz divina, estáinteiramente ao serviço <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura (7-8: p. 322) e, <strong>em</strong> última instância, <strong>da</strong>perfeição supr<strong>em</strong>a do ser humano que se alcança na illuminatio gloriae (6: p. 322). Note-se que é tambémeste o sentido que <strong>Agostinho</strong> haverá de conferir às disciplinas, mormente <strong>em</strong> De doctrina christiana,sublinhando to<strong>da</strong> a positivi<strong>da</strong>de delas mas evidenciando também o seu carácter instrumental. É neste quereside a ordo disciplinarum, na sua função instrumental, condição que afecta também a própria EscrituraSagra<strong>da</strong>, enquanto expressão t<strong>em</strong>poral e forma de mediação do Verbo Eterno.44


trechos de De quantitate animae, De uera religione e de De libero arbitrio, ou mediantea audição, como sucede <strong>em</strong> De musica.A destrinça, no interior <strong>da</strong>s liberales artes, entre racionali<strong>da</strong>de e razoabili<strong>da</strong>de –que, na expositio de De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> estabelece de comum sentir com‘homens muitíssimo sábios’ 28 -, pretende exactamente distinguir três reali<strong>da</strong>des que s<strong>em</strong>esclam no exercício <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>: a razão, a alma, dita racional (isto é, aquelaque, possuindo a razão, dela se serve), e aquilo que é feito ou dito segundo a razão, deque são ex<strong>em</strong>plo as próprias disciplinas liberais 29 . Estas são, de facto, razoáveis, mas oprincípio que as gera é absolutamente universal, divergindo <strong>da</strong> alma, que o usa, e doefeito que resulta deste uso. Por isso, na perspectiva augustiniana, seja qual for aactivi<strong>da</strong>de humana ou a parcela <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se considere, será s<strong>em</strong>pre possíveleluci<strong>da</strong>r estas diferenças e esclarecer os respectivos domínios de operativi<strong>da</strong>de.No caso do excurso sobre as ciências, Sto. <strong>Agostinho</strong> dispõe-se a averiguar de qu<strong>em</strong>odo, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma e de forma ascendente, a razão se revela numa dupla dimensão,inerente à sua essência dialógica ou relacional: a Razão Supr<strong>em</strong>a e a facul<strong>da</strong>de humanade raciocinar. Assim, sendo a gramática a ciência que recolhe <strong>em</strong> regras fixas as normas<strong>da</strong> comunicação linguística, o filósofo mostra como a razão construiu tal saber a fim deestabelecer o vínculo de união precisamente entre aquela reali<strong>da</strong>de que é comum a todosos seres humanos: o facto de possuír<strong>em</strong> uma dinâmica espiritual, cuja vi<strong>da</strong> escapa àpercepção sensível. A gramática, tendo-se constituído pela edificação de um conjuntode sinais significantes, tornaria possível o relacionamento humano, <strong>da</strong>do que aconfiança, base <strong>da</strong> sociabilização, só seria possível se o conteúdo <strong>da</strong>s mentes, pornatureza inteligível, fosse, de algum modo, transposto para o domínio <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de 30 . Sto. <strong>Agostinho</strong> considera, ain<strong>da</strong>, como partes constituintes <strong>da</strong>gramática, a historiografia e a literatura, uma vez que ambas mais não são do que oregisto <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, confiado à m<strong>em</strong>ória e partilhado com a comuni<strong>da</strong>de humana, no28Em Enn. VI, 7, 1-3 (p. 67-71), Plotino opera também uma distinção entre o Inteligível, princípio supr<strong>em</strong>o de racionali<strong>da</strong>de mas alheio ao raciocínio, e o razoável(♑✂), facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma humana, coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> exercício <strong>em</strong> particular pelo hom<strong>em</strong> sábio,ficando por decidir o modo como ambos os princípios se relacionam, e por explicitar o modo comoambos conflu<strong>em</strong> no composto humano.29 Cf. DO II, XI, 31 ( CCL 29, p.124-125).30 Cf. DO II, XII, 35 ( CCL 29, p.127).45


curso do t<strong>em</strong>po 31 . Contudo, se a gramática é o saber que acolhe e regista, <strong>em</strong> primeiramão, a expressão natural <strong>da</strong> razão, que é a palavra, ficando garantido o seu carácter dedisciplina racional, a historiografia e a literatura parec<strong>em</strong> ameaçar a convivência entre agramática e a razão. Com efeito, por meio destas, os escritos de que se ocupa agramática inclu<strong>em</strong>, no seu âmbito, o carácter fictício <strong>da</strong> narrativa, tornando difícil odiscernimento entre o ver<strong>da</strong>deiro e o falso.Em Soliloquiorum libri duo esta objecção à essência racional <strong>da</strong> gramática volta aser considera<strong>da</strong>. Na referi<strong>da</strong> obra, a Razão interroga <strong>Agostinho</strong> sobre as suas convicçõesacerca <strong>da</strong> gramática. Dado que tal saber se ocupa <strong>da</strong> ficção literária, será ele ver<strong>da</strong>deiro,do mesmo modo que o é a dialéctica? De facto, a gramática parece ter como objecto ofalso ou, pelo menos, integra-o s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de. Porém, a dialéctica não suporta talconvivência 32 . Sto. <strong>Agostinho</strong> contorna esta dificul<strong>da</strong>de explicando que não é agramática, enquanto disciplina, que torna falsas as fábulas. To<strong>da</strong> a fábula é uma ficção,exposta com vista ou a alguma utili<strong>da</strong>de ou ao prazer. Inversamente, a gramática é aciência guardiã <strong>da</strong> palavra articula<strong>da</strong> e que lhe atribui regras 33 . Portanto, não é agramática, enquanto disciplina, que constrói a falsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fábulas. A tarefa destadisciplina é, antes, a de ensinar e de estabelecer, para a compreensão dos textos, ummétodo ver<strong>da</strong>deiro e operativo na interpretação dos signos 34 . Assim, neste mesmo saberque permite a comunicação entre os homens, a razão, construindo um sist<strong>em</strong>a desímbolos linguísticos, estabelece, simultaneamente, a possibili<strong>da</strong>de de distinguir entre o31 Cf. DO II, XII, 35-37 (CCL 29, p. 127-128). Embora considera<strong>da</strong> como parte <strong>da</strong> gramática e submeti<strong>da</strong>ao seu juízo, a ars poeticae e, de modo particular, a musica como expressão dela, têm lugar à parte, nesteexcurso de <strong>Agostinho</strong> (Cf. DO II, XIV, 40: CCL 29, p. 129).32 Cf. Solil. II, 11, 19 ( CSEL 89, p. 70-71).33 Cf. Solil. II, 11, 20-21 ( CSEL 89, p. 71-74).34 Cf. Ibid. Também <strong>em</strong> Solil., a propósito <strong>da</strong> fábula do voo de Dé<strong>da</strong>lo, <strong>Agostinho</strong> afirma que a gramáticanão se <strong>em</strong>penha <strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstrar que tal história tenha efectivamente sucedido, não ensinando, porconseguinte, na<strong>da</strong> que seja falso. Mais ain<strong>da</strong>, pelo próprio facto de ser uma disciplina, isto é, de ensinaralguma coisa, a gramática é ver<strong>da</strong>deira, <strong>da</strong>do que o falso não é ensinável. Este carácter s<strong>em</strong>pre ver<strong>da</strong>deiro<strong>da</strong>s disciplinas é reiterado <strong>em</strong> LA I, I, 2-3 (CCL 29, p. 211). Anos mais tarde, <strong>em</strong> Conf. I, XVI, 25-26(CCL 27, p. 14-15), <strong>Agostinho</strong> censura as falácias dos mitos e fábulas, como aliás já <strong>em</strong> De ordine fazreparar continuamente a Licêncio. To<strong>da</strong>via a poesia, a gramática, a música, considera<strong>da</strong>s formalmenteenquanto disciplinas, são apresenta<strong>da</strong>s nesta obra como um instrumento privilegiado para umapropedêutica de ascese <strong>da</strong> alma ao Uno. No entanto, mais tarde, <strong>em</strong> De doctrina christiana tal como, v.gr., na Ep. CXVIII, a Dióscoro, Sto. <strong>Agostinho</strong> revisitará esta sua posição acerca dos designados saberesprofanos e <strong>da</strong> função que ocupam na ascese <strong>da</strong> razão para Deus.46


uso - ver<strong>da</strong>deiro ou falso - que se poderá fazer de si própria. Deste modo, Sto.<strong>Agostinho</strong> mostra a conexão existente entre gramática e dialéctica, conferindo, a estaúltima, o saber por antonomásia, pois é ela que dita as regras à luz <strong>da</strong>s quais se exerce opróprio poder <strong>da</strong> razão 35 .No conjunto <strong>da</strong>s disciplinas, a dialéctica surge, portanto, como aquele saber queatinge a essência <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> sapiência. De facto, é a dialéctica que revela a razão asi mesma. O objecto próprio desta disciplina não é, portanto, qualquer reali<strong>da</strong>desensível, mas a própria natureza <strong>da</strong> razão. A dialéctica confere, por conseguinte, a qu<strong>em</strong>a domina, a posse e o império dos meios de que a razão se serve no exercício <strong>da</strong> suaactivi<strong>da</strong>de própria que é a aprendizag<strong>em</strong> 36 . De facto, é por meio <strong>da</strong> dialéctica que arazão conhece o modo próprio de se exercitar na produção do saber. Porém, é-lheconcedido, tão-só, o segundo degrau no ciclo <strong>da</strong>s artes, pois a Filosofia sobrepõe-se-lhe.Por sua vez, a retórica, que compl<strong>em</strong>enta a dialéctica, viu-se necessária pelaignorância dos homens. Na ver<strong>da</strong>de, o estado de estultícia e de indisciplina <strong>em</strong> que seencontram aqueles a qu<strong>em</strong> se dirige a dialéctica não lhes permite aderir à ver<strong>da</strong>de,proposta por esta arte, s<strong>em</strong> que ela lhes seja apresenta<strong>da</strong> de modo grato, através de umuso apurado <strong>da</strong> eloquência. Consequência <strong>da</strong> debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente dos ouvintes, o efeito<strong>da</strong> retórica não é catártico, como o será o <strong>da</strong> música ou <strong>da</strong> geometria, mas meramentesedutor, tendo por finali<strong>da</strong>de despertar na alma a aspiração a deleitar-se nos bensinteligíveis.Concluí<strong>da</strong> a exposição sobre o conjunto de artes que diz<strong>em</strong> respeito à posse <strong>da</strong>ciência, Sto. <strong>Agostinho</strong> detém-se na investigação do que é razoável, através <strong>da</strong>cont<strong>em</strong>plação. Tal como antes fizera para a determinação <strong>da</strong>s três disciplinas queencontram a razoabili<strong>da</strong>de no discurso e confrontando-se, uma vez mais, com agrandeza <strong>da</strong> tarefa, o filósofo descreve o modo como a razão constrói degraus para siprópria, activi<strong>da</strong>de na qual ela revela a si mesma a sua capaci<strong>da</strong>de analítica. Para35 Cf. DO II, XIII, 38 ( CCL 29, p. 128).36 Hadot comenta com acerto o motivo pelo qual a dialéctica assume lugar central no ciclo augustiniano<strong>da</strong>s artes “ (…) la constitution de la dialéctique se présente comme le résultat d’une réflexion de la Raisonsur elle-même, sur ses instruments et ses moyens. La dialectique correspond donc à l’activité de la pureRaison sans la participation des sens (…). C’est donc la dialectique qui, par sa méthode pur<strong>em</strong>entrationelle, assure le caractère scientiphique des autres sciences ou disciplinae” [ I. HADOT, Arts libérauxet philosophie <strong>da</strong>ns la pensée antique (Paris 1984), p.115-116].47


construir esta esca<strong>da</strong>, a razão retrocede, obrigando-se a reflectir sobre o terreno jáconquistado.Mediante este artifício do discurso, <strong>em</strong> que a razão é principal personag<strong>em</strong>, Sto.<strong>Agostinho</strong> mostra a conexão entre os saberes vocacionados à acção e aquelesdireccionados à cont<strong>em</strong>plação, esclarecendo o modo como compreende a integração,neles, dos domínios sensível e inteligível do conhecimento humano. No excurso de Deordine, tal harmonia é comprova<strong>da</strong> pela análise <strong>da</strong> estrutura dos saberes. Noutrosescritos, o mesmo objectivo será alcançado pela análise <strong>da</strong> própria natureza <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de cognitiva humana, como sucede no Livro sexto de De musica, ou no Livrosegundo de De libero arbitrio.Assim, a razão, para integrar a estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de na racionali<strong>da</strong>de dossaberes superiores, tais como a dialéctica ou a mat<strong>em</strong>ática, regressa à consideração dosom, já dominado nos anteriores saberes. E compreende que, enquanto tal, o registo dosom não é uma tarefa <strong>da</strong> sua competência, devendo delegá-la nos órgãos próprios <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de, no caso, o ouvido. A razão fica, por conseguinte, disponível para analisaro significado do som, definindo o ritmo e a proporção 37 . O resultado desta tarefa é ageração <strong>da</strong> música, disciplina que, partindo do interior <strong>da</strong> própria percepção sensível,permite ascender, a partir dos sons, até à razão inteligível <strong>da</strong> harmonia, residindo esta naproporção estabeleci<strong>da</strong> entre aqueles. No excurso sobre a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s disciplinas, amúsica encerra, ain<strong>da</strong>, uma outra virtuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão, uma vez que congrega <strong>em</strong> si,por um lado, a cont<strong>em</strong>plação do Eterno – o número, causa <strong>da</strong> proporção – e, por outro, acondição pretérita do som. Deste modo, a música é a disciplina que estabelece a uniãoentre a Eterni<strong>da</strong>de e o t<strong>em</strong>po, permitindo compreender, com alguma evidência, que anatureza <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de consiste na relação entre a Uni<strong>da</strong>de eterna de Deus e amultiplici<strong>da</strong>de dos seres, sendo um facto que esta última se difunde no t<strong>em</strong>po 38 . Ora, aquanti<strong>da</strong>de numérica fora aquele princípio que permitira à razão estabelecer proporçõesno âmago <strong>da</strong> sonori<strong>da</strong>de sensível, na qual se integra o próprio discurso e, com ele, a37 Cf. DO II, XIV, 39 ( CCL 29, p. 129). Recorde-se que o diálogo <strong>em</strong> questão <strong>em</strong>erge precisamente <strong>da</strong>admiração ante uma reali<strong>da</strong>de audível: a alteração do som do curso <strong>da</strong>s águas.38 Cf. DO II, XIV, 41 ( CCL 29, p. 129). <strong>Agostinho</strong> confere grande importância à música no ciclo <strong>da</strong>sartes. Essa disciplina, que concerne o ritmo do som e a que o filósofo consagrará todo um tratado,identifica-se, na prática, com a poesia, cuja análise se submete aos gramáticos. Sendo o ritmo ou numerusa essência <strong>da</strong> música, uma vez mais se reforça a convicção augustiniana segundo a qual esta categoriarege to<strong>da</strong>s as disciplinas.48


primeira trilogia <strong>da</strong>s artes. Por este motivo, os números tornam-se, desde este degrau <strong>da</strong>razão, a um t<strong>em</strong>po, a meta a atingir pelo saber e a própria essência <strong>da</strong> razão. Nareali<strong>da</strong>de, como se verá, a concepção augustiniana de numerus não significaprincipalmente a quanti<strong>da</strong>de, mas o entendimento <strong>da</strong> proporção capta<strong>da</strong> pela razão nasucessão numérica, na qual se revela a ordo numerorum. Por isso, a percepção donumerus ou ritmo conduz a razão a compreender não a quanti<strong>da</strong>de ou extensão doscorpos, mas a harmonia e proporção inerente à forma de ca<strong>da</strong> ser e às relações que asformas estabelec<strong>em</strong> entre si.Uma vez explorados os recursos audíveis, a razão <strong>em</strong>penha-se <strong>em</strong> avaliar aspotenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> visão. Nesse domínio de reali<strong>da</strong>de, ao considerar a beleza do céu e<strong>da</strong> terra, a razão fixa-se na proporção <strong>da</strong>s figuras e formas. Estabelece, assim, oconfronto entre o universo inteligível, que ela cont<strong>em</strong>pla, e aquele outro, sensível, quet<strong>em</strong> como referente quando atende àquilo que o órgão físico <strong>da</strong> visão regista.Considera<strong>da</strong> a pureza, a harmonia e perfeição <strong>da</strong> proporção inteligível, a razão opta porse fixar nela, ao concluir que aquilo que a mente cont<strong>em</strong>pla é melhor do que tudoquanto possa ver com os sentidos corpóreos. Uma vez mais, optando pelas formasinteligíveis, a razão limita-se a agir ordena<strong>da</strong>mente, isto é, de acordo consigo mesma.Da distinção <strong>da</strong>s linhas e do equilíbrio <strong>da</strong>s formas, opera<strong>da</strong> pela razão, nasce ageometria. Aplicando esta distinção ao movimento do céu, gera-se a astronomia,disciplina que estabelece a relação entre a imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma geométrica e omovimento sideral 39 . Segui<strong>da</strong>mente, apurando o que há de comum entre a reali<strong>da</strong>deaudível e visível, a razão identifica o número, pois verifica que a proporção do ritmo ou<strong>da</strong> figura, causa <strong>da</strong> harmonia, é precisamente o efeito de uma disposição numérica 40 .Deste modo, a noção de numerus é apresenta<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>, neste excurso sobre asartes liberais, como el<strong>em</strong>ento de mediação entre o Uno e o múltiplo. Porém, sendo onúmero uma reali<strong>da</strong>de de carácter inteligível – sendo ele a medi<strong>da</strong> que permite avaliar areali<strong>da</strong>de sensível e conferir a proporção e harmonia dela com a reali<strong>da</strong>de inteligível -no excurso sobre as artes Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe que o numerus seja o instrumento ded<strong>em</strong>onstração <strong>da</strong> natureza imortal <strong>da</strong> alma, seguindo, neste aspecto, literalmente, atradição pitagórica que colhera de Varrão. Deste modo, a aritmologia recolhe, já s<strong>em</strong>mediações, o universo de questões que concern<strong>em</strong> à instrução, pois ao incidir sobre a39 Cf. DO II, XV, 42 ( CCL 29, p. 130).40 Cf. DO II, XV, 43 ( CCL 29, p. 130-131).49


causa de to<strong>da</strong> a ordenação ou harmonia <strong>da</strong> razão, aquela disciplina antevê a imortali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> alma.Uma vez alcançado este patamar, <strong>Agostinho</strong> considera o ser humano apto para quese lhe atribua o nome digníssimo de erudito. O mestre de Cassicíaco enuncia, então, oinfindo ror de probl<strong>em</strong>as cujo esclarecimento se confia ao hom<strong>em</strong> instruído. Entre eles,enumera aquele que se instala no cerne do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>: o desafio, feito àrazão, para que enten<strong>da</strong> o modo como se conjugam a bon<strong>da</strong>de e a omnipotência divinascom a existência do mal 41 .Contudo, <strong>em</strong> De ordine – não tendo ain<strong>da</strong> estabelecido claras fronteiras entreSabedoria e erudição – considera que a coluna dorsal do hom<strong>em</strong> erudito se forja numadupla ciência: a de b<strong>em</strong> discutir ou a <strong>da</strong> potência dos números, a dialéctica ou amat<strong>em</strong>ática. Na essência, uma de ambas basta à erudição, uma vez que as duasconverg<strong>em</strong> na simplici<strong>da</strong>de de uma única noção: a Ver<strong>da</strong>de ou o Número. Ora, aSabedoria incide precisamente, para o filósofo, sobre essa noção una. Sendo o Uno oobjecto <strong>da</strong> Filosofia, o limite do percurso <strong>da</strong>s disciplinas confina com o início <strong>da</strong>Filosofia 42 . Assim, no término desta expositio sobre a ordo disciplinarum, Sto.<strong>Agostinho</strong> conclui que Erudição e Filosofia coincid<strong>em</strong> no objecto: a busca do Unosimples. To<strong>da</strong>via, elas diverg<strong>em</strong> no modo como a razão se exerce para o alcançar. Nabusca do Uno, seu objecto próprio, a razão ocupa-se de uma dupla questão – investigara natureza de Deus e <strong>da</strong> alma. O produto desta pesquisa é a Filosofia. Defini<strong>da</strong> comoamor à Sabedoria, a Filosofia diverge claramente dos d<strong>em</strong>ais saberes ou artes. De facto,nela a razão exerce não tanto o seu poder de discernir e analisar, quanto o carácterunitivo que a especifica.Esta é a esperança que <strong>Agostinho</strong> deposita na erudição. No plano de ascese <strong>da</strong>razão para o Uno mediante a eruditio, o exame que a alma fará de si mesma noexercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de filosófica levá-la-á a concluir que aquilo que a razão busca é,s<strong>em</strong>pre e <strong>em</strong> qualquer caso, o Uno. Na ver<strong>da</strong>de, separar e unir são os actos <strong>da</strong> razãoquando gera o saber, mas o que ela conhece sobre si própria, no exercício <strong>da</strong>aprendizag<strong>em</strong>, é a convergência destas duas activi<strong>da</strong>des, aparent<strong>em</strong>ente opostas, numasó 43 . Assim, quando produz as artes, a razão reconhece a sua activi<strong>da</strong>de analítica. Ao41 Cf. DO II, XVII, 46 ( CCL 29, p.132).42 Cf. DO II, XVIII, 47 ( CCL 29, p.132-133).43 Cf. DO II, XVIII, 48 ( CCL 29, p. 133-134).50


conhecer, progressivamente, as reali<strong>da</strong>des que foi identificando como razoáveis, a razãosepara o que nelas diverge <strong>da</strong> natureza do Uno. Alcança, deste modo, um universo dereali<strong>da</strong>des inteligíveis, onde se conjugam, harmoniosamente, o racional e o razoável.Inversamente, quando a razão congrega todos os saberes numa única noção,reconduzindo-os à perfeição <strong>da</strong> harmonia gera<strong>da</strong> pela proporção do Número, aquelapotência persegue a integri<strong>da</strong>de do Uno, procurando captá-lo na sua perfeição própria.Nesta analítica <strong>da</strong> razão, Sto. <strong>Agostinho</strong> verifica que, quer separando, quer unindo,há na razão um desiderato fun<strong>da</strong>mental: ela quer o Uno, ama o Uno, porque buscaaquela reali<strong>da</strong>de que é condição <strong>da</strong> sua própria subsistência. Percorrendo todos os níveisde reali<strong>da</strong>de, o filósofo ilustra o modo como a uni<strong>da</strong>de é imprescindível à subsistênciade ca<strong>da</strong> forma. Recorrendo a ex<strong>em</strong>plos retirados de ca<strong>da</strong> um dos graus de ser, fazendoconvergir, de modo intuitivo, a natureza hierárquica do real com a procura <strong>da</strong> sua fonteunitária, <strong>Agostinho</strong> mostra que to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de sobrevive pela coesão interna dosel<strong>em</strong>entos que a constitu<strong>em</strong>.Porém, nos ex<strong>em</strong>plos recolhidos <strong>em</strong> De ordine, o Filósofo de Hipona não designaa uni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> sentido unívoco. Com efeito, aquela que se manifesta na pedra, na árvoreou no animal significa a exacta proporção dos m<strong>em</strong>bros, ou seja, a integri<strong>da</strong>de de umcorpo, pela qual ele se pode identificar como um indivíduo determinado. Por sua vez, jána relação de amizade, a uni<strong>da</strong>de é entendi<strong>da</strong> como o efeito de uma força espiritual: odesejo de união entre os amigos. A amizade sustenta-se - tal como a coesão de um povo,ci<strong>da</strong>de ou exército -, porque se verifica, entre os indivíduos implicados nessas relações,um único sentir, uma finali<strong>da</strong>de comum, um objecto intencional único, <strong>em</strong> função doqual, mediante uma união de vontades, se congrega e forma uma só reali<strong>da</strong>de.Em De ordine, <strong>Agostinho</strong> encontra, na união dos corpos dos que se amam, oex<strong>em</strong>plo que melhor ilustra este sentido <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, sublinhando, uma vez mais, aconvergência e a integração entre os domínios corpóreo e inteligível. Com efeito, é aintenção de um mesmo fim, o desejo de fusão num só, que move à cópula os que serelacionam corporalmente. Esta mesma é a definição de amor: fazer-se um só com areali<strong>da</strong>de ama<strong>da</strong>. Similar há-de ser a identificação <strong>da</strong> razão com a Sabedoria, para que,no plano <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de inteligível – portanto, mais sublime – se possa falar de Filosofia 44 .44 Cf. DO II, XVIII, 48 ( CCL 29, p. 133-134). Note-se que Sto. <strong>Agostinho</strong> volta a esta mesma definição<strong>em</strong> De trinitate, quando o objecto <strong>em</strong> análise for a união entre a mente e a essência divina, afastando dohorizonte to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de corpórea e material. A definição de amor como união de diferentes numa única51


Destas duas formas de união – a individuação e a convergência num único fim –, oFilósofo de Hipona atribui primazia à segun<strong>da</strong>, definindo-a como específica <strong>da</strong> almaracional e modelo <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de filosófica. Com efeito, organizar o real de acordo comuma proporção é comum aos animais e ao ser humano. To<strong>da</strong>via, só aos humanos é <strong>da</strong>doreconhecer a razão <strong>da</strong> harmonia e superar o plano puramente técnico <strong>da</strong> produção ouexecução de reali<strong>da</strong>des harmónicas 45 .Este poder de conhecer a ord<strong>em</strong>, aqui identifica<strong>da</strong> com a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coisas,harmonia ou proporção do real, é atribuído por <strong>Agostinho</strong> à natural racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>alma humana. Sendo assim, para o ser humano, o reconhecimento <strong>da</strong> harmonia éaprendido com a mesma naturali<strong>da</strong>de que corresponde à aprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong> fala 46 , de talmodo que esta se pode <strong>em</strong>pregar s<strong>em</strong> conhecer a força <strong>da</strong> qual <strong>em</strong>erge, ignorando,portanto, a racionali<strong>da</strong>de que lhe subjaz. Tal ignorância corresponde, afinal, à situaçãodos homens estultos 47 e o Filósofo de Hipona considera que a condição deles não deixade ser paradoxal 48 . Ora, só quando o ser humano descobre que a razão é a causa final <strong>da</strong>harmonia de todo o ser e de todo o agir, se pode dizer que a forma humana se antepõe àdos animais, estabelecendo a fronteira <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de entre aquela e estes. Com efeito,estando dotado de uma força que transcende a desintegração dos m<strong>em</strong>bros própria <strong>da</strong>morte corporal, é necessário concluir que, naquilo que t<strong>em</strong> de racional, o ser humano éimortal.Como justificar, então, a consagra<strong>da</strong> definição dos sábios, segundo a qual ‘homoest animal rationale mortale’ 49 ? Na ver<strong>da</strong>de, no exercício próprio <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>deintenção ou finali<strong>da</strong>de permanecerá nesse escrito de maturi<strong>da</strong>de tal como é exposta neste Diálogo,redigido <strong>em</strong> 386.45 Cf. DO II, XIX, 49 ( CCL 29, p. 134).46 Por isso, a gramática, ciência que recolhe o uso natural <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, é a primeira na ascese <strong>da</strong>s artes,uma vez que nela se contém o uso natural <strong>da</strong> razão.47 Cf. DO II, XIX, 49 ( CCL 29, p. 134).48 DO II, XI, 30 ( CCL 29, p. 124).49 A definição ocorre <strong>em</strong> CÍCERO, Lucullus. c. 7, 21: “ (...)’si homo est, animal est mortale, rationesparticeps’” [ M. T. Cicero, Acad<strong>em</strong>icorum reliquiae cum Lucullo [ Stutgardiae/Lipsiae, 1996: Bibliotecascriptorum Garecorum et Romanorum Teubneriana (recognovit ed. O. PLASBERG, 1922), p. 38],justamente para mostrar que as noções ver<strong>da</strong>deiras estão impressas na alma, e que esse facto distingue osseres humanos dos animais irracionais. A mesma definição é retoma<strong>da</strong> por Quintiliano, Inst. orat., V, 10,56-57 ( Cf. QUINTILIANUS, Institutio oratoria libri VI (ed. L. Ra<strong>da</strong>macher, Leipzig 1971), Bibliotecascriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, p. 259-260). [ A propósito <strong>da</strong> ocorrência desta52


amorosa, na qual consiste a Filosofia, entendi<strong>da</strong> como forma de saber unitivo, a razãodialéctica separa, do Uno, aquilo que não é próprio dele. Pode, então, concluir que há,na própria razão, um el<strong>em</strong>ento de imortali<strong>da</strong>de, a saber, a racionali<strong>da</strong>de, e outro, d<strong>em</strong>ortali<strong>da</strong>de, a saber, a corrupção do corpo. Desta distinção, Sto. <strong>Agostinho</strong> deduz queaquilo que é mortal no ser humano não corresponde à essência dele, enquanto animalracional. Ora, a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão pode verificar-se pela imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sproporções numéricas, nela presentes. Estas, por seu turno, são cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong>s pela almacomo s<strong>em</strong>pre ver<strong>da</strong>deiras, mesmo quando ela as confronta com a mutabili<strong>da</strong>de ecorruptibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria. Assim, torna-se necessário considerar que a alma é umareali<strong>da</strong>de diferente desta razão que o ser humano cont<strong>em</strong>pla como el<strong>em</strong>ento constituinte<strong>da</strong> sua forma específica de existência e de vi<strong>da</strong>. A alma é, por conseguinte, inferior àrazão, pois exist<strong>em</strong> outras formas de vi<strong>da</strong> incapazes de descodificar a significação doreal. A vi<strong>da</strong> anímica é comum aos animais e ao ser humano e, nesta medi<strong>da</strong>, este últimoserá, porventura, como aqueles, mortal 50 . Contudo, cabe à alma a possibili<strong>da</strong>de de seimortalizar, se a razão aderir àquilo que nela existe de melhor: a forma imutável.Uma vez mais, para Sto. <strong>Agostinho</strong> é uma razão de ord<strong>em</strong> que garantirá a ascese<strong>da</strong> alma ao Uno. A Sabedoria, tendo elevado a alma a este nível de conhecimento,exigirá que se exerça a ord<strong>em</strong> do agir. Com efeito, para o Filósofo de Hipona, o serhumano que se dedicou às disciplinas liberais tenderá a agir razoavelmente, isto é, deacordo com aquilo que nele há de melhor, procurando unir-se à razão imortal 51 . ASabedoria consiste nesta harmonia entre a razão, a alma e o corpo, efeito do exercício deto<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong>des, intelectuais e morais.definição <strong>em</strong> De ordine, v. J. DOIGNON, Œuvres de Saint Augustin, L’ordre, in Bibliothèqueaugustinienne 4/2 (Paris, 1997), p. 257, n. 147]. <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> cita-a com frequência, ao longo <strong>da</strong> suaobra: v., sobretudo, De quant. anim., XXV, 47-49 ( CSEL 89, p. 190-194); De mag. VIII, 24 ( CCL 29, p.184); De ciu. dei IX, XIII ( CCL 47, p. 26); XVI, VIII ( CCL 48, p. 508); DT VII, IV ( CCL 50, p. 255-260); XV, VII ( CCL 50A, p. 474-479). E ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> De Dialectica IX, 16-17 [B. Darrel Jackson/ J.Pingborg, Augustine: De dialectica (Dordrecht/Boston 1975], p. 110.50 A dificul<strong>da</strong>de de explicar a relação entre ratio e animus permanecerá, para Sto. <strong>Agostinho</strong>.Distinguindo a alma e a razão, o filósofo necessita de d<strong>em</strong>onstrar a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela, pois não basta aconsideração <strong>da</strong> presença de uma razão universal na alma para garantir a pereni<strong>da</strong>de do ser humano. Aomesmo t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> esta última garantia, o desejo de felici<strong>da</strong>de e a busca <strong>da</strong> sabedoria tornam-se umabsurdo existencial. O Hiponenese necessita de encontrar, também, uma explicação para a singulari<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s almas, mas a sua perene indecisão versará sobre a orig<strong>em</strong> deste princípio de vi<strong>da</strong> no ser humano.51 Cf. DO II, XIX, 50 ( CCL 29, p. 134).53


A proposta augustiniana para a Filosofia distancia-se, de modo patente, de umedifício fun<strong>da</strong>do numa aglomeração de saberes. Ain<strong>da</strong> que o percurso pelas disciplinasliberais possa revelar-se uma boa metodologia para exercitar a alma no discernimentoentre o domínio <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sensível e o <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de inteligível, a finali<strong>da</strong>de atribuí<strong>da</strong>pelo Hiponense à dedicação <strong>da</strong> mente às disciplinas é clara: permitir que o ser humanose conheça a si próprio, resolvendo a questão central <strong>da</strong> Filosofia e aquela que se ocultana formulação do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> – identificar qual seja o modo de relação entre oser humano e o <strong>Ser</strong> Divino.Esclarecido este intuito, duas conclusões são necessárias. A primeira, de foroteórico, evita ao filósofo as perplexi<strong>da</strong>des que advêm à mente pela consideração <strong>da</strong>aparente contradição entre a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e a existência do mal. Vendoto<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des à luz <strong>da</strong> convergência no Uno, nenhuma <strong>da</strong>s parcelas surgirádesajusta<strong>da</strong>. A segun<strong>da</strong>, de foro prático, exige do sábio uma conduta <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>decom a harmonia que ele próprio cont<strong>em</strong>pla, pois a sua é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, uma animaordinata.3. Existirá um governo do Mundo?A in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong> articula-se s<strong>em</strong>pre, na obra de Sto.<strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> relação entre Sabedoria e Felici<strong>da</strong>de, pois a compreensão <strong>da</strong>raiz ontológica deste binómio polariza todo o esforço racional do Hiponense. To<strong>da</strong>via,querendo enunciar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, porventura pod<strong>em</strong> fixar-se duas formulaçõespresentes na obra augustiniana. A primeira encontra-se <strong>em</strong> De ordine e interroga acerca<strong>da</strong> natureza de Deus e <strong>da</strong> perversi<strong>da</strong>de espalha<strong>da</strong> nos assuntos humanos, sendoapresentado à razão o desafio de encontrar um discurso capaz de conciliar ambas asreali<strong>da</strong>des, mediante a cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> concordância universal do real 52 . A segun<strong>da</strong>encontra-se na síntese que o filósofo disponibiliza <strong>em</strong> Retractationum sobre a t<strong>em</strong>áticade De ordine, e in<strong>da</strong>ga se os bens e os males se integram na ord<strong>em</strong> 53 .52 DO I, I, 1: “(...) Quam ob r<strong>em</strong> illud quasi necessarium his, quibus talia curae sunt, credendumdimittitur, aut diuinam prouidentiam non usque in haec ultima et ima pertendi aut certe mala omnia deiuoluntate committi, utrumque impium, sed magis posterius.” ( CCL 29, p. 89-90).53 Retract. I, III, 1: “ (…) utrum omnia bona et mala diuinae prouidentiae ordo contineat.” (CCL 57, p.12).54


Não cab<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>s quanto ao facto de que a questão filosófica acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>consiste <strong>em</strong> pôr à prova a força <strong>da</strong> razão humana, verificando se ela é capaz de sustentars<strong>em</strong>elhante dificul<strong>da</strong>de, a saber, a natureza de Deus, associando a in<strong>da</strong>gação <strong>da</strong> jamaisevidente existência de tal Princípio, e o carácter apodíctico <strong>da</strong> presença do mal noUniverso. O filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> articula, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, como tantas vezes refere Sto.<strong>Agostinho</strong>, uma magna quaestio, na qual a razão deve investir to<strong>da</strong> a sua capaci<strong>da</strong>de deponderação.À luz destas coordena<strong>da</strong>s, tal filosof<strong>em</strong>a não <strong>em</strong>erge como uma questão ociosa.B<strong>em</strong> pelo contrário, esta parece ser, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a in<strong>da</strong>gação mais universal,<strong>em</strong>ergindo, na obra do filósofo, como aquela questão com a qual to<strong>da</strong> a inteligência seenfrenta alguma vez, mesmo s<strong>em</strong> formular discursivamente tal inquietação e ain<strong>da</strong> quenão possua de Deus uma ideia defini<strong>da</strong> ou, sequer, tenha sido sujeita a qualquer revés navi<strong>da</strong>.Eleva<strong>da</strong> à categoria de filosof<strong>em</strong>a, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong> o enigma <strong>da</strong> ord<strong>em</strong><strong>em</strong>erge unido ao ingente mistério do desejo de Felici<strong>da</strong>de. Se esta é a aspiração maisuniversal, se, como escreve Marco Túlio, recolhendo um sentir comum a todo o serhumano, beati certe esse uolumus 54 , por que razão o ser humano não é aquilo que quer?Afinal, qual a orig<strong>em</strong> desse princípio de desord<strong>em</strong>, de descoincidência entre ser equerer, que marcha a par <strong>da</strong> existência humana e que permite que uma inteligênciadesatenta incorra <strong>em</strong> ímpios cálculos, afunilando os disjuntos inerentes ao filosof<strong>em</strong>aapenas <strong>em</strong> duas possibili<strong>da</strong>des: ou a providência divina não chega aos pormenores maisrecônditos e ínfimos, ou todos os males derivam <strong>da</strong> vontade de Deus 55 ?A resposta às interrogações que converg<strong>em</strong>, do ponto de vista teórico, noquestionamento acerca <strong>da</strong> noção de ordo, <strong>em</strong>erge, portanto, de uma inquietaçãofun<strong>da</strong>mental, apura<strong>da</strong> pelo Filósofo de Hipona: a necessi<strong>da</strong>de que todo o ser humanoexperimenta de viver seguro, sereno e estável, num universo onde tudo está <strong>em</strong>movimento e onde a quase totali<strong>da</strong>de do real escapa ao domínio de ca<strong>da</strong> um. Nestamedi<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> resolver as questões que, teoricamente, estão enlea<strong>da</strong>s e enovela<strong>da</strong>s, qualimensa floresta de coisas, no enunciado do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, o ser humano -sobretudo se t<strong>em</strong> por vocação a Filosofia - não pode viver <strong>em</strong> Paz, buscar a Sabedoria e,54 Cf. CA I, II, 5 ; I, IX, 25 ( CCL 29, p. 6; p. 17); LA II, IX, 26 ( CCL 29, p. 254); DT XIII, IV, 7 (CCL50, p. 391) ; Ep. CIV, 4 ( CSEL 34/2, p. 590) ; Ep. CLV, 2 ( CSEL 44, p. 436).55 Cf. DO I, I, 2 ( CCL 29, p. 89-90).55


portanto, ser feliz, tanto quanto se pode ser no curso <strong>da</strong> sua existência t<strong>em</strong>poral. Sto.<strong>Agostinho</strong> apercebe-se do alcance universal <strong>da</strong> questão. Ela transcende o espaço, ot<strong>em</strong>po, o indivíduo e a própria história, pois in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong> essência do próprio <strong>Ser</strong>.Pela sua radicali<strong>da</strong>de e universali<strong>da</strong>de, tal questão é coloca<strong>da</strong>, na obra do Hiponense, nocerne <strong>da</strong> Filosofia.Na sua expressão mais el<strong>em</strong>entar, o questionamento acerca <strong>da</strong> ordo rerumcoincide com a interrogação sobre a existência, ou não, de uma providência divina.Neste sentido, ele é banal e obtivera várias respostas entre os sábios, ao t<strong>em</strong>po de<strong>Agostinho</strong>. A dificul<strong>da</strong>de consiste, porventura, <strong>em</strong> identificar escolas e correntesfilosóficas, num momento <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> cultura onde reina o maior sincretismo,sobretudo naquelas formas mais radicais <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de humana que são a filosofia e areligião.O Filósofo de Hipona conhecia diversas respostas para a justificação <strong>da</strong> existênciade uma providência universal e os seus escritos facilmente permit<strong>em</strong> reconstruir essepercurso intelectual 56 . Efectivamente, quando inicia a sua reflexão sobre a ordo rerum,Sto. <strong>Agostinho</strong> serve-se, de modo recorrente, dos termos fortuna - e seus derivados:forte, forsan, forsitan, fortasse, fortuito 57 -, ou casus, para designar a providênciadivina, sendo este facto motivo ulterior de retractatio 58 . Por sua vez, a articulação entreo filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e a noção de prouidentia é son<strong>da</strong><strong>da</strong> quer no Livro primeiro deContra Acad<strong>em</strong>icos, quer <strong>em</strong> De beata uita, mas só é claramente enfrenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> Deordine.Em Contra Acad<strong>em</strong>icos, o termo fortuna designa, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, a providênciadivina, mas entendi<strong>da</strong> como uma certa razão omnipresente, d<strong>em</strong>asiado próxima <strong>da</strong> ideiaestóica <strong>da</strong> subsistência de uma natureza predetermina<strong>da</strong> 59 . Dirigindo-se a Romaniano,recent<strong>em</strong>ente assolado por ventos menos favoráveis <strong>da</strong> fortuna, <strong>Agostinho</strong> faz-lhe ver56 Extravasa o propósito deste trabalho o levantamento exacto <strong>da</strong>s fontes que <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> utilizou aolongo de todos os seus escritos. Os estudos considerados de relevo neste âmbito encontram-se compilados<strong>em</strong> BIBLIOGRAFIA, B. I, 2.2. Presença <strong>da</strong> Cultura Clássica na obra de <strong>Agostinho</strong>.57 Cf. Retract. I, 1, 2 (CCL 57, p. 7).58 Retract. I, I, 2: “ (…) quod tamen totum ad diuinam reuocandum est prouidentiam.” ( CCL 57, p. 7). O<strong>em</strong>prego desta terminologia é motivo <strong>da</strong> retractatio que Sto. <strong>Agostinho</strong> faz do <strong>em</strong>prego destes vocábulos,aplicando-a aos seus três primeiros Diálogos (cf. Ibid. I, II; I, III, 2: CCL 57, p. 11; p. 12).59 CA I, I, 1: “ (...) fortasse quae uulgo fortuna nominatur, occulto quo<strong>da</strong>m ordine regitur; nihilque aliud inrebus casum uocamus, nisi cujus ratio et causa secreta est (…). Nam si diuina prouidentia pertenditurusque ad nos, quod minime dubitandum est, mihi crede, sic tecum agi oportet ut agitur.” (CCL 29, p. 3).56


que Deus toma a seu cargo o curso dos acontecimentos, razão pela qual as coisas sãocomo são. Ante o Agir Soberano de uma Razão Soberana, cabe apenas a resignação.Ora, esta prouidentia - este Deus -, tomando a cargo os assuntos humanos, não conced<strong>em</strong>arg<strong>em</strong> de manobra para uma atitude de libertação <strong>da</strong>s malhas do destino, noção com aqual parece identificar-se aqui a noção de providência divina.Em Contra Acad<strong>em</strong>icos, e ao longo dos três Diálogos supra referidos, a mente de<strong>Agostinho</strong> encontra-se ain<strong>da</strong> d<strong>em</strong>asiado próxima do fatalismo estóico que assimilara naleitura de Cícero. Por isso, o Filósofo de Hipona admite a possibili<strong>da</strong>de do universomaterial estar submetido às leis do acaso – razão pela qual não se pode afirmar, <strong>em</strong>sentido próprio, que existe um conjunto de bens, pertencentes a ca<strong>da</strong> um, e não há modode que algum b<strong>em</strong> material se possua com segurança 60 . Só as quali<strong>da</strong>des moraisescapam, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, aos reveses <strong>da</strong> fortuna 61 . De igual maneira, só mediante oexercício <strong>da</strong> virtude o ser humano se pode libertar, também de modo relativo, do elofatal dos acontecimentos, não tanto intervindo neles ou alterando o seu curso, masfortalecendo o seu espírito ante as dificul<strong>da</strong>des, ou esquivando-as, refugiando-se parafora do mundo - num topos que pode ser meramente interior, ou que pode, até, assumirformas de vivência <strong>em</strong> ermitismo, no intuito de escapar às vicissitudes que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> nobulício do Mundo, e que escapam, quase <strong>em</strong> absoluto, à previsibili<strong>da</strong>de humana. Ondequer que se situe esse “lugar”, o sábio entregar-se-á a uma vi<strong>da</strong> de solidão, dedica<strong>da</strong> àcont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des divinas.De facto, muito <strong>em</strong>bora uma concepção do mundo que admita um lugar para afortuna aten<strong>da</strong> ao facto de uma tal providência não ser irracional, o curso dosacontecimentos está dotado de um sentido inacessível para a mente humana. Aprovidência é, neste contexto, uma força natural cósmica que se rege pela lógica donecessário e do supra-racional. Ante ela, para o comum dos mortais, do ponto de vistaprático, só cabe uma atitude de resignação. Mesmo do ponto de vista teórico, a ela só épossível prestar o assentimento <strong>da</strong> fé. Ao sábio, contudo, entrega-se a missão de60 Esta concepção permanecerá, ao longo <strong>da</strong> obra do Hiponense, uni<strong>da</strong> ao eud<strong>em</strong>onismo augustiniano, nãoobstante o contexto metafísico <strong>em</strong> que se insere se venha a transformar. A disposição, no Universo, debens que se pod<strong>em</strong> possuir <strong>em</strong> segurança, e de outros, que não possu<strong>em</strong> esta proprie<strong>da</strong>de, articulando-secom a categoria de pondus, ocupará uma função central na definição augustiniana <strong>da</strong> ordo rerum e <strong>da</strong>conquista desta pelo espírito humano.61 CA I, VII, 20: “ (…) res humanas esse ut conce<strong>da</strong>m res hominum, quidquid tu existimas nostrum esse,quod nobis uel <strong>da</strong>re uel eripere casus potest?” (CCL 29, p. 14).57


descortinar os mistérios desta ordo rerum, pela cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>s coisas divinas,fixando a mente nas reali<strong>da</strong>des puramente inteligíveis, vivendo as virtudes cardeais,conformando a sua vi<strong>da</strong> com os conselhos de homens quase divinos 62 , até obter o cume<strong>da</strong> perfeição. Por sua vez, o falso sábio entrega-se à arte divinatória, fomentando asuperstição do povo e a crendice.Desde esta perspectiva, a noção de providência, precisamente por ser universal epelas características de totali<strong>da</strong>de que lhe são atribuí<strong>da</strong>s, é considera<strong>da</strong> divina, ficando aprópria divin<strong>da</strong>de regi<strong>da</strong>, na sua activi<strong>da</strong>de, pela lei do necessário. De igual modo, setodos os seres, e de modo peculiar o ser humano, se encontram ao abrigo de um talgoverno, então deve reconhecer-se que se encontram <strong>em</strong>aranhados numa teia defatali<strong>da</strong>de. Com efeito, <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos Sto <strong>Agostinho</strong> afirma que é por umanecessitas naturae que a alma está uni<strong>da</strong> ao corpo 63 . No mesmo Diálogo, Licêncioafirma que o ser humano, que busca a Ver<strong>da</strong>de como algo que lhe é natural, só não aalcançará por um defeito <strong>da</strong> natureza 64 . Por seu turno, Trigécio sustenta que a noção deSabedoria corresponde a uma palavra que a natureza quis que fosse absolutamenteevidente para o espírito humano 65 . Do mesmo modo, será sábio qu<strong>em</strong> conheça a leioculta e necessária que rege o Cosmos: a mente de tal hom<strong>em</strong> há-de dedicar-se apenetrar o significado oculto <strong>da</strong>s relações de causali<strong>da</strong>de que dão orig<strong>em</strong> quer aosdiferentes fenómenos naturais, quer aos acontecimentos humanos. Desde estaperspectiva, a Sabedoria an<strong>da</strong>rá, certamente, liga<strong>da</strong> às artes divinatórias que desven<strong>da</strong>mas cadeias férreas que sustentam, nos seus nós, os fenómenos naturais e, também, a vi<strong>da</strong>do ser humano, como el<strong>em</strong>ento e expressão de Natura.62 Cf. DO II, X, 28; II, XX, 53 ( CCL 29, p. 123; p. 136).63 Cf. CA I, I, 1 ( CCL 29, p. 3); Retract. I, I, 2 ( CCL 57, p. 8). Na Dedicatio de De beata uita a ManlioTeodoro, Sto. <strong>Agostinho</strong> confessa não ter posição defini<strong>da</strong> sobre a causa <strong>da</strong> presença dos humanos noMundo, apresentando, entre as causas possíveis, deus, ou a natureza, ou a necessi<strong>da</strong>de, ou a nossavontade, ou a conjunção de alguns ou de todos estes el<strong>em</strong>entos (Cf. BV I, I, 1: CCL 29, p. 65).64 CA I, III, 9:” (…) Quisquis ergo minus instanter quam oportet ueritat<strong>em</strong> quaerit, is ad fin<strong>em</strong> hominisnon peruenit; quisquis aut<strong>em</strong> tantum, quantum homo potest ac debet, <strong>da</strong>t operam inuenien<strong>da</strong>e ueritati,etiamsi eam non inueniat, beatus est; totum enim facit, quod ut faciat, ita natus est. inuentio aut<strong>em</strong> sidefuerit, id deerit quod natura non dedit.” ( CCL 29, p. 8-9: it.n.).65 CA I, V, 15 ( CCL 29, p. 12). Em De libero arbitrio esta evidência será justifica<strong>da</strong> através do recurso àsnotiones impressae.58


Identifica<strong>da</strong> com o questionamento acerca de uma providência divina, a t<strong>em</strong>ática<strong>da</strong> ord<strong>em</strong> não é, obviamente, de inovação augustiniana 66 . Para além <strong>da</strong> sua presença naliteratura clássica, trágica e poética, ela t<strong>em</strong> uma longa tradição de comentário que poderegredir aos escritos de Platão e Aristóteles, ou às concepções do mundo elabora<strong>da</strong>s porestóicos e epicuristas, b<strong>em</strong> condimenta<strong>da</strong>s pelas múltiplas crenças importa<strong>da</strong>s doOriente que pululam o ambiente cultural tardo-antigo 67 .Com efeito, o modo como a questão surge nos designados Diálogos de Cassicíacofaz pensar que Sto. <strong>Agostinho</strong> teria <strong>em</strong> mente os argumentos de Cícero a respeito <strong>da</strong>providência divina – veiculados, sobretudo, <strong>em</strong> De natura deorum, mas tambémpresentes <strong>em</strong> obras como De divinatione ou De fato -, b<strong>em</strong> como as reflexõesassimila<strong>da</strong>s <strong>da</strong> leitura dos Libri Platonicorum, com peculiar relevância para o TratadoIII <strong>da</strong>s Enneades de Plotino. Se o Hiponense parece ter <strong>em</strong> vista mostrar algumas <strong>da</strong>scontradições inerentes à interpretação estóica sobre a ordo rerum ou providência,inversamente os textos de Plotino ter-lhe-ão fornecido alguns el<strong>em</strong>entos para <strong>da</strong>r inícioa um novo modo de posicionar um eterno probl<strong>em</strong>a. Não é de desprezar, de igual modo,o facto de alguns textos bíblicos, concretamente o epistolário paulino e os escritosjoaninos, se incluír<strong>em</strong> entre as leituras de <strong>Agostinho</strong> durante o período anterior aobaptismo, no qual o filósofo susteve os referidos Diálogos.Entre as teses disponíveis para explicar a existência de uma ord<strong>em</strong> universal, adoutrina estóica, fazendo depender os seres que compõ<strong>em</strong> o universo de um princípio66 Escreve Bréhier: “Il est peu de thèmes plus courants, chez les penseurs du IIè et du IIIè siècles, que ladéfense de la liberté humaine contre la théorie stoïcienne du destin et contre l’astrologie qui avait alorstant d’adeptes. Péripatéciens, cyniques et même épicuriens rivalisent avec les platoniciens et les chrétienspour combattre la doctrine de la nécessité.” [E. BRÉHIER, Notice. in Plotin, Ennéades III (Paris 51989),p. 3].67 Aldo MAGRIS, <strong>em</strong> L’idea di destino nel pensiero antico (Trieste, 1985), apresenta um estudoexaustivo <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática do destino no pensamento antigo e <strong>da</strong> evolução dela até ao século IV d.C.. <strong>Santo</strong><strong>Agostinho</strong> é, portanto, o termo ad qu<strong>em</strong> deste imenso estudo, onde se pode ler uma articulação <strong>da</strong>s ideiasde ♓♋ ♍♒ ♓♋, desde os pré-socráticos à Grécia clássica,passando pelo período imperial e des<strong>em</strong>bocando no pensamento bíblico-cristão sobre a providência, comparticular relevo para a compreensão paulina e augustiniana deste conceito. O trabalho está construídoextensivamente, pela própria envergadura do projecto. Assim, não obstante permitir situar culturalmente aprobl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> providência e registar os meandros <strong>da</strong> evolução do conceito, confia-se ao leitor a tarefade construir articulações <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong>de dentro dos escritos dos filósofos cujo legado Magrisamplamente documenta.59


material que os anima, postulava a existência de uma certa simpatia entre todos os seres,subsumindo o princípio deles e a sua finali<strong>da</strong>de na Matéria. O Fogo, princípio de todo oreal, assume, nesta mundividência, características divinas e nomes diferentes, de acordocom o ponto de vista a partir do qual a razão humana o considere. Assim, enquantoprincípio de inteligibili<strong>da</strong>de, chama-se logos; gerador de vi<strong>da</strong>, ele é espírito; LeiSupr<strong>em</strong>a, é Necessi<strong>da</strong>de.Para os partidários do estoicismo, seguir este Princípio Soberano de Governo naordo uitae é submeter-se à lei do determinismo causal e reconhecer que ca<strong>da</strong>acontecimento é produzido, inflexível e irrevogavelmente, por essa sequência de causas.Da parte do ser humano cabe, apenas, a anuência à parcela de sorte – fortuna ou casus –que lhe coube. Contudo, esta convicção <strong>da</strong> existência de um determinismo causal queabrange to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de não deixa de satisfazer, no ser humano, algo que Sto.<strong>Agostinho</strong>, tal como Cícero, proclamará insistent<strong>em</strong>ente: o afã de segurança e detranquili<strong>da</strong>de.Em De natura deorum, Cícero põe os sábios do seu t<strong>em</strong>po – Epicuristas, Estóicose Académicos - <strong>em</strong> diálogo sobre os principais questionamentos acerca <strong>da</strong> relação entreDeus e o Mundo, com os quais colide a probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> providência 68 . Para o epicuristaVelleius, é indubitável que exist<strong>em</strong> deuses, felizes e imortais, dos quais os homens têmuma ideia antecipa<strong>da</strong>, geradora de um consenso universal. Os deuses têm forma humana– afinal, a mais sublime <strong>da</strong>s formas -, e estão inactivos, não se ocupando dos infinitosmundos existentes, pois estes são produzidos por uma estrutura atómica que nãoestabelece qualquer relação com o divino 69 . Ora, esta proposta apresenta-se, aoAcadémico Cotta como o mais fantástico produto de uma fértil imaginação, razão pelaqual se entrega ao trabalho de negar a verosimilhança de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s proposições deVelleius. De to<strong>da</strong>s as levian<strong>da</strong>des, a mais grave consiste, na óptica de Cotta na negação<strong>da</strong> providência divina, pois assim se inviabiliza a relação entre Deus e os assuntoshumanos, entregando estes à pura arbitrarie<strong>da</strong>de.68 A. MAGRIS ao contrapor as teses de Anaxágoras e de Diógenes de Apolónia sobre a ord<strong>em</strong> cósmica,esclarece o modo como, já na Antigui<strong>da</strong>de grega, o questionamento acerca <strong>da</strong> providência é transferidodo plano cosmológico para o teológico. No entender do A., o primeiro defenderia uma planificação decarácter técnico para o ordenamento do Mundo, enquanto aquele último se interroga sobre qu<strong>em</strong> planificao Universo e <strong>em</strong> função de que fim ( cf. op. cit., Vol. II, p. 613-618).69 Cf. CÍCERO, De nat. deor. I, 8, 18 - 10, 25 (p. 8-11).60


Na explanação <strong>da</strong> posição estóica que, <strong>em</strong> De natura deorum, fica a cargo deBalbus, defende-se, como tese central <strong>da</strong>quela doutrina, a existência <strong>da</strong> providênciadivina, numa dupla dimensão: uma primeira, aplica<strong>da</strong> à ord<strong>em</strong> geral do Mundo e às leisdos fenómenos físicos 70 ; uma outra, atribuí<strong>da</strong> ao curso dos acontecimentos humanos eao destino de ca<strong>da</strong> hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> particular 71 .Submetendo o estoicismo à crítica acostuma<strong>da</strong>, o cepticismo radical de Cottaderruba novamente estes argumentos. Em última análise, nesta perspectiva é precisoconsiderar que o Mundo não é produto dos deuses, n<strong>em</strong> se relaciona com eles, pois amatéria, nos seus quatro el<strong>em</strong>entos, preexiste à acção divina providente. Além disso,importa enfrentar o grande dil<strong>em</strong>a: como justificar a existência do mal, quer na suadimensão física 72 , quer na sua expressão ética, cuja dimensão fenoménica se regista nast<strong>em</strong>pestades e escolhos que assolam a vi<strong>da</strong> dos homens 73 ? Ante s<strong>em</strong>elhante escân<strong>da</strong>lo edesorganização, é impossível falar de uma providência e muito menos considerá-ladivina ou, sequer, acção de uma divin<strong>da</strong>de. Ao contestar a hipótese <strong>da</strong> existência deuma providência divina agindo sobre os acontecimentos do mundo, Cotta apresenta ofamoso dil<strong>em</strong>a de Epicuro, o mesmo que, mediante acesa peleja, será discutido <strong>em</strong> Deordine por Sto. <strong>Agostinho</strong>: ou Deus quer suprimir os males e não pode, ou quer e pode.Se quer e não pode, a razão humana enfrenta-se com um Deus impotente, o que repugnaao conceito de divin<strong>da</strong>de. Se pode e não quer, a razão deve concluir que Deus odeia oser humano, o que não é menos contrário à noção de Divin<strong>da</strong>de; se não pode n<strong>em</strong> quer,não é de todo Deus; se Deus quer e pode – única solução que lhe convém –, de ondevêm os males que assolam a vi<strong>da</strong> humana e por que razão tal Deus não os suprime?70 Cf. Ibid. A exposição ocupa os parágrafos 73 a 153. Veja-se, principalmente, II, 33, 83 - 34,88 ( p. 82-84).71 Cf. Ibid. II, 61, 154 - 66, 167 ( p. 112-117). Basicamente, a prouidentia diuina <strong>em</strong> relação aos assuntoshumanos manifesta-se no facto de to<strong>da</strong>s as formas existente visar<strong>em</strong> satisfazer as necessi<strong>da</strong>des humanas.72 Cf. Ibid. III, 12, 29-14, 35 ( p. 129-131).73 Cf. Ibid. III, 32, 80-33, 83 (p. 153-155). Cotta argumenta que os deuses não se ocupam dos assuntoshumanos e acima de tudo, mostra-o pela evidência <strong>da</strong>s situações trágicas <strong>da</strong> existência humana, tais comoas guerras, a derrota de Imperadores vencidos e, <strong>em</strong> última instância, a dimensão irrefragável <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>decomum a todos: a morte. Este facto, que n<strong>em</strong> poupou o próprio Sócrates, é, para Cotta, a máxima prova<strong>da</strong> irracionali<strong>da</strong>de dessa prouidentia que os estóicos defend<strong>em</strong>. Mediante a morte, escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong> razão,Deus anula a diferença entre os humanos, ímpios e justos, sábios e ignaros: “(...) quid dicam de Socrate,cuius morte inlacrimare soleo Platon<strong>em</strong> legens? Videsne igitur deorum iudicio, si vident res humanas,discrimen esse sublatum?” ( Ibid. III, 33, 82: p. 155).61


Com efeito, quando a razão humana se propõe dissecar analiticamente a questão<strong>da</strong> providência depara-se essencialmente com duas dificul<strong>da</strong>des. Por um lado, a noçãode providência abrange uma multiplici<strong>da</strong>de de reali<strong>da</strong>des, uma imensa silua rerum. Poroutro lado, aquela noção forja-se numa encruzilha<strong>da</strong> de heranças culturais, fruto detradições diversas, as quais obtêm, as mais <strong>da</strong>s vezes, conclusões opostas entre si.Providência identifica-se, na tradição homérica grega, com a Necessi<strong>da</strong>deinflexível do princípio de causali<strong>da</strong>de universal: a ord<strong>em</strong> regular <strong>da</strong>s coisas. Ante estareali<strong>da</strong>de implacável, deuses e humanos acham-se absolutamente impotentes. Esteprincípio é defendido por Licêncio nos primeiros parágrafos de De ordine, comoexpressão de uma herança do estoicismo na mente do jov<strong>em</strong> filho de Romaniano.Por seu turno, a ♓♋ grega <strong>da</strong>va conta de um <strong>da</strong>do de experiência: a ca<strong>da</strong>ser, nomea<strong>da</strong>mente a ca<strong>da</strong> ser humano, corresponde uma parte de felici<strong>da</strong>de no Mundo,uma medi<strong>da</strong>, prefixa e indelével, que não se pode n<strong>em</strong> negar, n<strong>em</strong> alterar. Pretendermais do que aquilo que se t<strong>em</strong> é tombar na insensatez. Do mesmo modo, a ca<strong>da</strong> umcompete uma parcela de males, de entre os quais se destaca uma reali<strong>da</strong>deincontornável: a morte. Estes <strong>da</strong>dos pertenc<strong>em</strong> a uma reali<strong>da</strong>de de facto e são, portanto,inalteráveis. Ora, contra factos não há argumentos, cabendo ao ser humano tão-só umaaceitação passiva de um estado de coisas. Trata-se, aqui, <strong>da</strong> noção de fortuna, à qualSto. <strong>Agostinho</strong>, s<strong>em</strong> outra solução para o enigma <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, se refere com algumaprofusão nos escritos de juventude, para lamentar, na maturi<strong>da</strong>de, esse mesmo facto.Desde esta perspectiva, a razão humana deduz que o Mundo está entregue a umprincípio cego, forjado por duras leis de encadeamento causal. É ver<strong>da</strong>de que, nocontexto <strong>da</strong> mundividência estóica, todos os seres <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> de um mesmo Princípio, oFogo, artífice do Cosmos, permitindo, portanto, que se fale de uma estrutura congéneredo real, de uma simpatia cósmica 74 . Esta mesma simpatia - a que os Caldeus teriam74 Esta concepção é também comum ao neoplatonismo. Plotino considera o Universo como um imensoser vivo. Dotado de uma alma única que contém <strong>em</strong> si todos os seres vivos, o universo forma umatotali<strong>da</strong>de simpática para consigo mesma, que integra a uni<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de ( Cf. Enn. II, 7: p. 33;IV, 4, 32-35: p. 137-144; II, 3, 5: p. 32). Esta simpatia universal garante a eficácia <strong>da</strong> impetração a Deus( Cf. Enn. IV, 4, 41: p. 149), <strong>da</strong> própria magia ( Cf. Enn. IV, 4, 40: p. 147-148), b<strong>em</strong> como <strong>da</strong> influênciados astros sobre as acções humanas. Os astros são presságio do futuro e pod<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>mentar aadivinhação, como sinais do que virá a acontecer. Mas não exerc<strong>em</strong> uma acção directa sobre osacontecimentos ( Cf. Enn. II, 3, 7-8: p. 33-34). Por isso, Plotino considera que, sobrepondo-se a estasinfluências materiais dos astros e <strong>da</strong>s forças mágicas, o sábio se pode libertar deste encadeamento, através<strong>da</strong> união com o Uno ( Cf. Enn. IV, 4, 43: p. 150-151 ).62


prestado peculiar crédito, tornando-se símbolo de uma cultura que resolve asinquietações metafísicas com base no recurso à adivinhação 75 -, verifica-se, de modoparticular, entre os seres humanos e os astros. Uma concepção do <strong>Ser</strong> que iguale anoção supr<strong>em</strong>a com a matéria irá <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> expressão material mais etérea paraidentificar o cume <strong>da</strong> hierarquia ontológica. É neste contexto que os astros surg<strong>em</strong> comolimite derradeiro de inteligibili<strong>da</strong>de e justificação causal de tudo quanto ocorre noUniverso que lhes está submetido e, de modo particular, de quanto ocorre na vi<strong>da</strong>humana.Note-se que a soberania ontológica, e a própria noção de ord<strong>em</strong> como disposiçãogradual de seres, se define, aqui, com base numa estrutura racional de regime espacial.Tomando o ser humano como referência, a reali<strong>da</strong>de superior é a que está acima,geograficamente. Inversamente, a que ele pisa é-lhe inferior. Tendo <strong>em</strong> consideração oordenamento dos seres no Cosmos, os astros são, afinal, os mais divinos e etéreos seresdo Universo 76 . O movimento astral domina todo o curso dos fenómenos materiais,regendo esse imenso Mundo no qual o ser humano mais não é do que uma pequenacentelha. Deste modo, também o curso dos acontecimentos humanos, e a sucessãot<strong>em</strong>poral que os afecta, se submeterá à influência de tais seres soberanos. Ao serhumano comum cabe, to<strong>da</strong>via, uma esperança de viver <strong>em</strong> segurança, desde que sejacapaz de descortinar o futuro. De facto, adivinhos e astrólogos, de preferência afamadosCaldeus, saberão enxergar – s<strong>em</strong> ser possível determinar por que motivo assim é ouqual a orig<strong>em</strong> desse conhecimento – os futuros desenvolvimentos <strong>da</strong> sucessão causal: amente de tais homens penetra, não <strong>em</strong> Deus, mas no processo de conexão causal entrefenómenos, no desenrolar futuro dos acontecimentos humanos e <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais formas deser.75 Cf. DO I, V, 14 ( CCL 29, p. 96).76 Em Contra Acad<strong>em</strong>icos ain<strong>da</strong> parece haver um certo apego, por parte de <strong>Agostinho</strong>, a um modelo deresolução para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> baseado na superstição dos horóscopos. Em De ordine, é Licêncioque está imbuído de tais convicções, limitando-se o Mestre de Cassicíaco a fazer notar quão ignorante éum jov<strong>em</strong> que desconhece quanto se disse contra a adivinhação. Mas <strong>em</strong> CA III o t<strong>em</strong>a <strong>da</strong> fortunarenasce, não s<strong>em</strong> que esse facto deixe de causar alguma perplexi<strong>da</strong>de (CA III, II; III, XVI: CCL 29, p. 35-36; p. 55-57).63


A ideia de providência an<strong>da</strong> associa<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, ao conceito de justiça 77 . Há umaord<strong>em</strong> justa no Mundo que exige uma razão ordenadora, capaz de distribuir méritos ecastigos segundo as acções de ca<strong>da</strong> um. Em De ordine, a consistência ontológica desteDeus distribuidor e a operativi<strong>da</strong>de de uma tal figura na resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> estarão, também, <strong>em</strong> discussão. To<strong>da</strong>via, o curso ordenado dos acontecimentosnão se entende s<strong>em</strong> postular uma finali<strong>da</strong>de para a acção desse mesmo Princípioordenador. Compreender a providência exigirá, por conseguinte, que a razão humanaenquadre a pergunta sobre a ordo rerum no horizonte de uma teleologia.Neste sentido, duas são, de modo el<strong>em</strong>entar, as propostas dos filósofos. Umamundividência de cariz platónico defenderá a existência de uma enti<strong>da</strong>de intermédiaentre Deus e o Mundo, dota<strong>da</strong> de inteligência e de potência fabricadora, que produzseres e organiza o Cosmos <strong>em</strong> função de um B<strong>em</strong> que só a ele, D<strong>em</strong>iurgo, é <strong>da</strong>doconhecer. Em alternativa, segundo o modelo aristotélico, poder-se-á considerar umDeus egocêntrico, Entendimento Puro, que, muito <strong>em</strong>bora por razão de coerência com asua perfeição absoluta só se conheça e se cont<strong>em</strong>ple a si próprio, atrai como fim <strong>em</strong>odelo os seres compostos de acto e potência, animando-os a realizar to<strong>da</strong> a energianeles conti<strong>da</strong>, s<strong>em</strong>, contudo, estabelecer com eles qualquer relação intrínseca. Aperfeição <strong>da</strong> forma de um ser, neste contexto, tomando o Acto Puro como causaex<strong>em</strong>plar, é a auto-realização de si, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> relação que estabelece com oconjunto dos seres.Nestas diferentes propostas, o grande olvido – e, porventura, a fonte de maioresangústias – parecia recair sobre a liber<strong>da</strong>de humana. Deus e necessi<strong>da</strong>de, Deus e justiça,77 A. MAGRIS contribui com alguns el<strong>em</strong>entos para esclarecer esta inflexão do conceito, desde acosmologia, à religião, ao direito, aju<strong>da</strong>ndo a compreender como a noção de ♓♋ vaifazendo convergir noções como ♓✂, ♑✂ e ✂, sendo particularmentedecisiva a concepção platónica, expressa no Timeu, acerca <strong>da</strong> existência de uma Alma do Mundo comcarácter providente e finalístico, cuja actuação é ex<strong>em</strong>plar para o comportamento humano. Interpretando aactivi<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> por Platão ao d<strong>em</strong>iurgo na produção do mundo, escreve MAGRIS: “ (…) l’azioneprovvidenziale del D<strong>em</strong>iurgo si può considerare <strong>da</strong> due punti di vista. Suo contenuto è la “vita” in quantosist<strong>em</strong>a organizzato necessariamente <strong>da</strong> “forme e misure”; l’edificazione morale dell’uomo è invece ilfine in vista del quale tale sist<strong>em</strong>a necessario esiste ed è “meglio” che esista in quel determinato modo.Questo doppio aspetto fa sì che, per un verso, la ♓♋ di fatto coinci<strong>da</strong> con la stessamat<strong>em</strong>atizzazione degli el<strong>em</strong>enti, cioè con l’ ♋♋♑♒ d<strong>em</strong>iurgica; per un altro, che laprónoia abbia un riferimento essenziale alla vita morale dell’uomo, alla maniera in cui egli pone nelmondo ed imposta il proprio comportamento. ( Op. cit., p. 643).64


Deus e influências astrais, Deus, causa final extrínseca parec<strong>em</strong> resumir as hipóteses deresolução sobre a relação entre a providência divina, a Inteligência Supr<strong>em</strong>a ordenadorae o Universo. Se Sto. <strong>Agostinho</strong> interrogasse a cultura do seu t<strong>em</strong>po, comoefectivamente fez, acerca <strong>da</strong> articulação entre Deus e a liber<strong>da</strong>de humana, porventuraparecer-nos-ia estar perante uma nova forma de posicionar o probl<strong>em</strong>a. To<strong>da</strong>via, mesmoentão a inquietação não seria de todo original.Para além destas considerações sobre a providência, algo periféricas quandoconfronta<strong>da</strong>s com a noção augustiniana de ord<strong>em</strong> que ultrapassa amplamente esteâmbito de discussão, importa, acima de tudo, verificar que, para o Hiponense, ord<strong>em</strong> eprovidência não se identificam. Certamente é necessário partir de algum ponto, parain<strong>da</strong>gar acerca <strong>da</strong>quela noção. Ora, faz sentido centrar a atenção no que, a respeito <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>, é transmitido nos Diálogos de Cassicíaco, precisamente porque aí a noção <strong>em</strong>causa é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> de modo directo e a in<strong>da</strong>gação é equaciona<strong>da</strong> sob forma defilosof<strong>em</strong>a.No que diz respeito ao conceito de providência, é possível verificar, por parte deSto. <strong>Agostinho</strong>, sobretudo nas obras de juventude, algum conflito acerca <strong>da</strong> decisãosobre a relação hierárquica a estabelecer entre a fortuna e a ord<strong>em</strong>, decerto peladificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> encontrar uma resposta plausível para o mistério do mal, questão quenão estará sofrivelmente resolvi<strong>da</strong> antes de o filósofo compor os primeiros dois Livrosde De libero arbitrio.Com efeito, encerrado que fora De ordine, persist<strong>em</strong> as dúvi<strong>da</strong>s de Alípio sobre olugar que <strong>Agostinho</strong> atribui à fortuna 78 . A disputa prossegue: será que a fortunacontribui para que, desprezando-a, a alma do sábio progri<strong>da</strong> <strong>em</strong> direccão ao desejo depossuir bens maiores? 79 Em qualquer caso, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste no facto de que a vi<strong>da</strong>humana está in potestate fortunae. Por isso, s<strong>em</strong> o favor <strong>da</strong> fortuna, que protege a vi<strong>da</strong>,78 CA III, II, 2: “ (...) Quare s<strong>em</strong>per fuit sententia mea, sapienti jam homini nihil opus esse; ut aut<strong>em</strong>sapiens fiat, plurimum necessariam esse fortunam: nisi quid aliud uidetur Alypio. Tum ille: Quantumiuris, inquit, fortunae tribuas, nondum bene noui. Nam si ad cont<strong>em</strong>nen<strong>da</strong>m fortunam, fortuna ipsa opusesse arbitraris, me quoque comit<strong>em</strong> in hanc sententiam do tibi. Sin fortunae nihil aliud concedis, quam eaquae corporis necessitati non possunt, nisi ipsa uolente, suppetere, non ita sentio. Aut enim licet ead<strong>em</strong>repugnante atque inuita, nondum sapienti, cupido tamen sapientiae, ea sumere quae uita necessariaconfit<strong>em</strong>ur; aut concedendum est etiam in omni sapientis uita eam dominari, cum et ipse sapiens his quaecorpori necessaria sunt, non indigere non possit.” ( CCL 29, p. 35).79 Cf. CA III, II, 3 ( CCL 29, p. 35-36).65


necessária para a busca <strong>da</strong> Sabedoria, esta última noção, entendi<strong>da</strong> como B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o,não poderá residir no ser humano 80 .Fortuna identifica-se, nesta perspectiva, também para Sto. <strong>Agostinho</strong>, com umcerto vento favorável dos acontecimentos que permite viver <strong>em</strong> paz e fruir dessa vi<strong>da</strong>,boa e pacata – o ócio <strong>em</strong> liber<strong>da</strong>de -, s<strong>em</strong> a qual é impossível realizar a aspiração àSabedoria e conquistar, eventualmente, a Felici<strong>da</strong>de 81 . Esta concepção recor<strong>da</strong>inevitavelmente as conclusões de Plotino, no final de Enneades III, 1, depois decombater as posições deterministas e fatalistas. Com efeito, há acontecimentosproduzidos pela alma e há acontecimentos produzidos por causas externas. As causasque privam a alma <strong>da</strong> Sabedoria são diferentes <strong>da</strong> alma e, nesse caso, ela actua deacordo com o destino 82 . A fortuna (♍♒) rege tudo o que rodeia a vi<strong>da</strong>, mas aalma superior – a Alma do Mundo - sobrepõe-se a esta reali<strong>da</strong>de. Deste modo, tambéma fortuna serve para exercitar a alma do sábio nas virtudes, modificando as coisas, maisdo que sendo modifica<strong>da</strong> por elas 83 .É um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> ordo rerum comouma magna quaestio, tendo dedicado um dos seus primeiros escritos à discussão doprobl<strong>em</strong>a. Mas <strong>em</strong> De ordine pouco avança face àquilo que, quer <strong>em</strong> termos de herançacultural, quer <strong>em</strong> termos de metodologia, já estava disponível, concretamente nasdoutrinas neoplatónicas. Na ver<strong>da</strong>de, não admira que o Filósofo de Hipona se tivesseentusiasmado com a leitura dos Libri Platonicorum. No que se refere à t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong>providência e <strong>da</strong> ordo rerum – noções que, por ora, surg<strong>em</strong> <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de, até aomomento <strong>em</strong> que se evidenci<strong>em</strong> as razões pelas quais, progressivamente, se afastam80 Cf. CA III, II, 4 ( CCL 29, p. 36).81 É sabido que o curso dos acontecimentos s<strong>em</strong>pre contrariou este desejo de <strong>Agostinho</strong>. O retiro deCassicíaco, prévio ao baptismo, foi, porventura, um dos poucos momentos <strong>em</strong> que o gozo do ócio <strong>em</strong>liber<strong>da</strong>de lhe terá sido concedido pela providência. A vi<strong>da</strong> no mosteiro de Tagaste exigia-lhe já o encargo<strong>da</strong> organização <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de e, desde que, inopina<strong>da</strong>mente, foi ordenado presbítero, não mais tevedescanso. To<strong>da</strong>via, tal facto não obstou à sua imensa produção literária a qual, como o filósofo s<strong>em</strong>preafirmou, brota <strong>da</strong> sereni<strong>da</strong>de e sinceri<strong>da</strong>de de espírito (cf. CA II, IV, 10; III, XVII, 38: CCL 29, p. 23-24;p. 57-58; BV II, 13; III, 18: CCL 29, p. 72; p. 75), tal como serena é a Ver<strong>da</strong>de de Deus (cf. Conf. II, III,8: CCL 27, p. 21). Este terá sido, por conseguinte, o clima interior de <strong>Agostinho</strong> no meio <strong>da</strong>s azáfamas e<strong>da</strong>s tribulações do seu quotidiano.82 PLOTINO, Enn. III, 1, 10: ♋ ♓☺♋ ( ed. Bréhier, p. 16).83 Cf. Enn. III, 1, 8 (p. 14-15).66


ambos os conceitos –, basta recor<strong>da</strong>r a paixão do catecúmeno de Milão pelo belo e pelacongruência ou harmonia do Mundo.Sto. <strong>Agostinho</strong> confessa os limites do seu primeiro escrito. De pulchro et apto,texto a tal ponto indigno que a própria providência se encarregou de o aniquilar <strong>em</strong>pouco t<strong>em</strong>po, é-o sobretudo por ter brotado do orgulho do espírito. Porém, <strong>em</strong>Confessionum, o filósofo não lamenta o conteúdo <strong>da</strong> reflexão aí explana<strong>da</strong>, a saber, aatracção pela beleza do Universo, reveladora de que as coisas são portadoras <strong>da</strong>digni<strong>da</strong>de de uma forma 84 . Duas preocupações se debatiam nesse escrito perdido. Porum lado, a de descobrir o que constitui, nas reali<strong>da</strong>des corpóreas, essa impressão detotali<strong>da</strong>de que gera beleza e, por outro, a de investigar a razão de ser <strong>da</strong> conveniência,<strong>da</strong> congruência ou aptidão que se dá entre as partes e o Todo, e que gera harmonia, pelaconcordância. Ao redigir De pulchro et apto, Sto. <strong>Agostinho</strong> confessa que procurava osolhares de outros e a atenção sobre a sua pessoa. Mas evidencia também que nãodeixava, por isso, de se ocupar, no íntimo do olhar interior, <strong>em</strong> cont<strong>em</strong>plar a beleza e aharmonia 85 .Na ausência de um comentário do Filósofo de Hipona sobre este primeiro escrito,precoc<strong>em</strong>ente desaparecido – de facto, <strong>em</strong> Retractationum, Sto. <strong>Agostinho</strong> apenascomenta escritos existentes na sua biblioteca -, as referências de Confessionum tornamsepreciosas para conhecer algo do seu conteúdo e as críticas que lhe merec<strong>em</strong>. Comefeito, o Bispo de Hipona confessa a principal limitação de De pulchro et apto. Emboranele manifestasse a sua admiração pela beleza e congruência do real, não encontrava over<strong>da</strong>deiro eixo dessa harmonia, fixando-se na materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas corpóreas 86 .Incapaz de elevar o espírito até conceber, na hierarquia ontológica, uma reali<strong>da</strong>dediferente <strong>da</strong> matéria, as soluções para a conveniência e harmonia do Todo convergiam84 Conf. IV, XIII, 20: “ (…) Nisi enim esset in eis decus et species, nullo modo nos ad se mouerent. Etanimaduertebam et uidebam in ipsis corporibus aliud esse quasi totum et ideo pulchrum, aliud aut<strong>em</strong>,quod ideo deceret, quoniam apte adconmo<strong>da</strong>retur alicui, sicut pars corporis ad uniuersum suum autcalciamentum ad ped<strong>em</strong> et similia. Et ista consideratio scaturriuit in animo meo ex intimo corde meo, etscripsi libros de Pulchro et Apto (…) » ( CCL 27, p. 50-51).85 Conf. IV, XIV, 23: « (...) libenter animo uersabam ob os cont<strong>em</strong>plationis meae et nullo conlau<strong>da</strong>tor<strong>em</strong>irabar.» ( CCL 27, p. 52).86 Conf. IV, XV, 24: “Sed tantae rei cardin<strong>em</strong> in arte tua nondum uidebam, omnipotens, qui facismirabilia solus, et ibat animus per formas corporeas et pulchrum, quod per se ipsum, aptum aut<strong>em</strong>, quo<strong>da</strong>d aliquid adconmo<strong>da</strong>tum deceret, definiebam et distinguebam et ex<strong>em</strong>plis corporeis adstruebam.” ( CCL27, p. 52).67


na tese, de cariz maniqueísta, <strong>da</strong> subsistência de contrários numa mesma alma racional:paz e discórdia, uni<strong>da</strong>de e divisão, razão e irracionali<strong>da</strong>de, mente s<strong>em</strong> sexo econcupiscência colérica. Beleza e concórdia seriam gera<strong>da</strong>s por estas forças <strong>em</strong>oposição no interior do ser humano 87 .Porém, o providencial contacto com os Libri Platonicorum permitiu a Sto.<strong>Agostinho</strong> conceber, não apenas a noção de uma reali<strong>da</strong>de espiritual, mas uma certacomunhão de sentido, uma quase identi<strong>da</strong>de, entre o Verbo Eterno, presente nametafísica bíblica <strong>da</strong> Criação, e a Razão universal neoplatónica 88 . Por seu turno, perdi<strong>da</strong>a esperança de encontrar razoabili<strong>da</strong>de nas fabulações maniqueístas, a crise decepticismo levaria <strong>Agostinho</strong> a acolher-se à sombra <strong>da</strong>s crenças dos parentes. Assim,uma vez <strong>em</strong> Milão, inicia-se como auditor do bispo Ambrósio, cujos <strong>Ser</strong>mões permit<strong>em</strong>ao Hiponense obter algumas referências seguras, capazes de principiar a reconstrução deuma mundividência. Entre elas, conta-se a descoberta do sentido espiritual <strong>da</strong> Escritura,facultando-lhe a possibili<strong>da</strong>de de abandonar uma concepção antropomórfica <strong>da</strong>divin<strong>da</strong>de e aceder à ideia de uma s<strong>em</strong>elhança espiritual entre o ser humano e Deus 89 .87 Cf. Conf. IV, XV, 25 ( CCL 27, p. 53 ). M. TESTARD sugere uma interpretação equilibra<strong>da</strong> destepasso de Conf., desvalorizando a exclusiva influência de fontes maniqueístas e apontando MACRÓBIOou os pitagóricos como fontes possíveis (cf. Op. cit., p. 66).88 Conf. VII, IX, 13: “ (…) ibi [ Platonicorum libros ex graeca lingua in latinam uersos] legi non quid<strong>em</strong>his uerbis, sed hoc id<strong>em</strong> omnino multis te multiplicibus suaderis rationibus, quod in principium eratuerbum et uerbum erat apud deum et deus erat uerbum: hoc erat in principium apud deum; omnia peripsum facta sunt (…)” ( CCL 27, p. 101). SOLIGNAC estabeleceu uma relação de lugares paralelos entreo texto de Conf. VII, IX, 13-16,22 e os escritos de Plotino ( Cf. A. SOLIGNAC, “Ce qu’Augustin ditavoir lu de Plotin”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saint Augustin 13, p. 682-693). Mais do queas s<strong>em</strong>elhanças entre o texto joanino e o de Plotino – e para além de ratificar a influência dos libriPlatonicorum na conversão de Sto. <strong>Agostinho</strong> através de el<strong>em</strong>entos de crítica interna, o referido estudopermite evidenciar as divergências entre as mundividências cristã e a neoplatónica, pondo <strong>em</strong> realce ospontos-chave que o Hiponense necessitará de eluci<strong>da</strong>r para, a partir <strong>da</strong>s virtuali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> filosofia pagã,construir uma estrutura de compreensão do mundo compatível com as exigências <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de docristianismo. Não obstante afirmar que o sentido <strong>da</strong>s palavras do Prólogo do evangelho joanino é id<strong>em</strong>omnino, quando comparado com o dos libri Platonicorum, é Sto. <strong>Agostinho</strong> que orienta nessa direcção asua exegese, contornando paulatinamente as dificul<strong>da</strong>des inerentes às divergências, concretamente as quese refer<strong>em</strong> à natureza <strong>da</strong> geração eterna do Verbo, como defende o cristianismo, e não à <strong>em</strong>anação dele,como queria Plotino, e à natureza individual <strong>da</strong> alma humana, rejeitando a sua essência cósmica, comopropunha a tradição neoplatónica. Em Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> regista acima de tudo uma lacunafun<strong>da</strong>mental, nos Platonicorum: a ausência de qualquer referência à Incarnação do Verbo.89 Cf. Conf. VI, III, 3-4 ( CCL 27, p. 75-76).68


Com efeito, ao conjugar a leitura dos Platonicorum com a dos escritos de S. Joãoe de S. Paulo, <strong>Agostinho</strong> é levado a construir, progressivamente, uma simbiose entre osel<strong>em</strong>entos colhidos nas mundividências neplatónica e cristã 90 . Assim, no Po<strong>em</strong>a que S.João dedica à Pessoa Divina do Verbo, o qual serve de pórtico ao quarto Evangelho, oHiponense lê o ver<strong>da</strong>deiro sentido <strong>da</strong> Razão dos filósofos. De igual modo, ao debater amagna quaestio acerca <strong>da</strong> providência, encontrar-se-á, na obra augustiniana, essa fusãoentre cristianismo e neoplatonismo, concretamente ao aludir ao conceito de Razão ouVerbo divino.Este facto, por sua vez, causa alguma dificul<strong>da</strong>de à in<strong>da</strong>gação sobre a noção deaugustiniana de ordo, pois Sto. <strong>Agostinho</strong> intui, desde logo, que providência e ord<strong>em</strong>não são noções sinónimas ou, pelo menos, exigirão uma releitura, para ultrapassar asdificul<strong>da</strong>des coloca<strong>da</strong>s inclusivamente pelo próprio Plotino quanto à possibili<strong>da</strong>de deconciliar um governo universal do Mundo e a existência do mal.<strong>Agostinho</strong> confirma que homens imensamente sábios, quase divinos, não puderam<strong>da</strong>r resposta satisfatória ao filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, do qual a reflexão sobre a providênciaparece intuir-se como subconjunto. De facto, se o filósofo pôde ler, nos escritos<strong>da</strong>queles, tantas coisas magníficas, to<strong>da</strong>via a lacuna do que aí se transmite, uma vezconfronta<strong>da</strong> com o conteúdo do texto bíblico, apresenta-se-lhe d<strong>em</strong>asiado radical. Se arelação entre Deus e o Mundo pode resolver-se sofrivelmente equacionando osel<strong>em</strong>entos disponibilizados por Plotino ou por Cícero, a relação entre o ser humano eDeus não t<strong>em</strong> nestas mundividências solução viável, <strong>da</strong>do que entre ambos os Mundos,inteligível e sensível, entre o <strong>Ser</strong> divino e o ser humano, se cava um fossointransponível, criando sérias dificul<strong>da</strong>des, quer para descortinar o enigma do mal, quer90 Em Conf. VII, XXI, 27, depois de expor to<strong>da</strong>s as virtuali<strong>da</strong>des dos libri Platonicorum no seu percursode adesão à Ver<strong>da</strong>de, <strong>Agostinho</strong> adverte sobre o risco de uma leitura destes escritos s<strong>em</strong> o concurso <strong>da</strong>prouidentia. Fora esta que guiara o filósofo, afastando-o do maior inimigo <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a soberba deespírito, e fazendo-lhe notar a insuficiência do conteúdo desses escritos, pois muitas interrogações, quelhe nasciam <strong>da</strong>s leituras bíblicas, ficavam por esclarecer nos Platonicorum. Assim, por uma razão deord<strong>em</strong> – a Sagra<strong>da</strong> Escritura contém tudo, e mais alguma coisa, quando compara<strong>da</strong> com os escritos dosfilósofos –, <strong>Agostinho</strong> opta por assentar o seu discurso filosófico na meditação do texto bíblico: “ (...)aliud est de soluesti cacumine uidere patriam pacis et iter as eam non inuuenire (…) aliud tenere uiamilluc ducent<strong>em</strong> cura caelestis imperatoris munitam (…). et consideraueram opera tua et expaueram.”(CCL 27, p. 111-112).69


para garantir a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção de ordo 91 . Esta perplexi<strong>da</strong>de não permitirá aSto. <strong>Agostinho</strong> posicionar desde logo <strong>em</strong> De ordine to<strong>da</strong>s as coordena<strong>da</strong>s que abrang<strong>em</strong>o filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa. Por isso, tal Diálogo é inconclusivo face às questões que colocae as altercações mergulham, uma e outra vez, na aporia, sendo um facto que osargumentos aí explanados padec<strong>em</strong>, inclusivamente, de alguma ambigui<strong>da</strong>de.No referido Diálogo, é clara a filiação estóica <strong>da</strong> decisão de Licêncio, quando querjustificar a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, fazendo girar <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> Natureza ou Cosmos oepicentro <strong>da</strong> questão e desviando do assunto essencial a discussão do filosof<strong>em</strong>a: arelação entre a ord<strong>em</strong> e o ser humano 92 . De facto, a concepção estóica de ord<strong>em</strong>,associa<strong>da</strong> ao determinismo <strong>da</strong> natura, declara que a conexão <strong>da</strong>s causas dos fenómenosé tão firme que permite concluir que todos os acontecimentos têm um significadointrínseco, predeterminado e inalterável. Precisamente por estar dota<strong>da</strong> destascaracterísticas, uma tal conexão pode ser eventualmente conheci<strong>da</strong> por alguém quesobre ela reflicta actualmente, exercitando-se <strong>em</strong> alguma arte ou saber. To<strong>da</strong>via, ela seráconheci<strong>da</strong> certa e irrecusavelmente por qu<strong>em</strong> possua o dom <strong>da</strong> adivinhação. Desde estaóptica, tal saber mais não é do que uma forma excelente de participação na RazãoCósmica, pois permite conhecer antecipa<strong>da</strong>mente o desenrolar <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> do Mundo. Esta,por ser eterna e inalterável, está desde s<strong>em</strong>pre defini<strong>da</strong>. Por isso, a adivinhação será aforma mais perfeita de conhecimento, sendo essa arte o saber que mais aproxima eass<strong>em</strong>elha a razão humana e a divin<strong>da</strong>de, ao permitir que aquela penetre no âmago <strong>da</strong>sucessão causal dos acontecimentos, apreendendo a racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria sucessão,independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s circunstâncias onde esta última se inscreve.Por seu turno, o facto <strong>da</strong> adivinhação é entendido de per se como um argumento afavor <strong>da</strong> providência universal. Com efeito, se não existisse essa conexão causal,intrínseca e predetermina<strong>da</strong>, entre os fenómenos que ocorr<strong>em</strong> no Universo, não seexplicaria o conhecimento humano de presciência. Este, por sua vez, liga-sedirectamente com a perfeição que a razão humana descortina no movimento astral. Aperfeição do Cosmos, a beleza <strong>da</strong> sua forma, a perpetui<strong>da</strong>de do seu movimento, pode91 Conf. VII, IX, 13: “ (...) Quia uero in sua propria uenit et sui enim non receperunt, quotquot aut<strong>em</strong>receperunt eum, dedit eis potestat<strong>em</strong> filios dei fieri credentibus in nomine eius, non ibi legi.” ( CCL 27, p.101). A solução do paganismo, amplamente comenta<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> De ciuitate dei, fora a deconstruir um mundo divino à imag<strong>em</strong> do humano, multiplicando as divin<strong>da</strong>des. Porém, estas tornavam-seineficazes para operar uma ver<strong>da</strong>deira mediação entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e os assuntos humanos.92 Cf. DO I, V, 12 ( CCL 29 p. 95).70


cont<strong>em</strong>plar-se, de modo privilegiado, na natureza e movimento dos seres que ocupam oespaço sideral. Na ver<strong>da</strong>de, nessa sucessão inalterável e eterna, a relação entre oUniverso e o Hom<strong>em</strong> parece expressar-se sublim<strong>em</strong>ente. Por isso, a adivinhação e aastrologia são saberes que necessariamente se cruzam, ficando ao sabor dodeterminismo astral quer o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana, quer a conquista de uma vi<strong>da</strong>virtuosa ou vicia<strong>da</strong> 93 .Numa tal mundividência, a providência divina é sinónimo <strong>da</strong> invariável conexãocausal dos fenómenos cósmicos. Precisamente por se apresentar como um axiomanecessário à razoabili<strong>da</strong>de do real, torna-se impossível atribuir-lhe valor. A ord<strong>em</strong>cósmica, neste contexto, não é boa n<strong>em</strong> má. Ante tais noções, ela é indiferente, por serum factum cuja natureza e curso são incontornáveis 94 . Bon<strong>da</strong>de e malícia são categoriasque têm por referência o ser humano. Mas a questão acerca <strong>da</strong> ordo rerum, entendi<strong>da</strong>como determinismo causal <strong>da</strong> natureza, ficou coloca<strong>da</strong> num plano cósmico onde osacontecimentos ocorr<strong>em</strong> necessária e fatalmente, à marg<strong>em</strong> <strong>da</strong>s livres decisões doshumanos b<strong>em</strong> como <strong>da</strong> solução para o desejo universal de Felici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> pesquisaacerca do fim último do ser humano ou <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação sobre a natureza e existência domal.A ord<strong>em</strong> cósmica é noção soberana e a ela tudo se subordina. Esta posição não écontrária à religião, quando esta se entende como a relação que se estabelece entre Deuse o Mundo, pois afirma a existência de uma precognição <strong>da</strong> razão divina sobre o cursodos acontecimentos. Dependendo <strong>da</strong> presciência de uma Razão Universal, o Mundo e osfenómenos que nele ocorr<strong>em</strong> - dos quais os relacionados com a vi<strong>da</strong> humana são apenasum modo ou expressão, entre tantos outros – têm, com aquela Razão, uma ligação de<strong>em</strong>briogénese, dela dependendo como <strong>da</strong> sua causa eficiente. Se assim não fosse, o93 Cabe recor<strong>da</strong>r o apreço que o próprio <strong>Agostinho</strong> sentia pelos cálculos dos math<strong>em</strong>atici, frequentandoos,sob pretexto de cientifici<strong>da</strong>de, durante os anos transcorridos na seita maniqueista. No entender dofilósofo, mediante esta arte não estava <strong>em</strong> causa desven<strong>da</strong>r o futuro com base <strong>em</strong> rituais teúrgicos, mas<strong>em</strong> cálculos exactos acerca do curso dos astros e <strong>da</strong> natureza dos el<strong>em</strong>entos materiais (cf. Conf. IV, III, 4:CCL 27, p. 41-42). Em diálogo com o médico Vindicianus, <strong>Agostinho</strong> recebe uma resposta plausível parao possível acerto <strong>da</strong>s profecias dos genethliacorum: “ (...) uim sortis hoc facere in rerum naturausquequaque diffusam.” (cf. Conf. IV, III, 5: CCL 27, p. 42). A força <strong>da</strong> sorte é a razão de ser dessapseudo-ciência. Não obstante só tardiamente ter renunciado à consulta dos leitores de horóscopos, oFilósofo de Hipona declara que o fez por esse mesmo motivo: descobriu que o acerto dos genetlíacos eradevido forte uel sorte, non arte inspectorum siderum ( cf. Conf. IV, III, 6: CCL 27, p. 43).94 Cf. DO I, VI, 15 ( CCL 29, p. 96-97).71


Universo seria irracional e caótico. Mas a própria existência dele apela à razoabili<strong>da</strong>de<strong>da</strong> causa, <strong>da</strong>do que na<strong>da</strong> se faz s<strong>em</strong> um princípio eficiente de causali<strong>da</strong>de, sendo esteaxioma a máxima garantia <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.É dentro destes parâmetros que se desenvolve a noção de providência, defendi<strong>da</strong>pelo estoicismo. Contudo, no interior desta proposta de uma religação cósmica entretodos os seres e de uma fusão do próprio ser humano no cosmos, dificilmente seencontrará uma resposta razoável para o enigma do mal. Igual dificul<strong>da</strong>de encontraráqualquer mente que se <strong>em</strong>penhe <strong>em</strong> defender a natureza, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente boa, <strong>da</strong> noçãode ord<strong>em</strong>, aqui entendi<strong>da</strong> como providência, b<strong>em</strong> como a condição, essencialmentelivre, <strong>da</strong>s acções humanas.Na ver<strong>da</strong>de, se não é possível predeterminar um valor para o real e se o mundomaterial é ordenado, por que motivo o conhecimento ver<strong>da</strong>deiro resulta apenas de umaactivi<strong>da</strong>de pura do entendimento, devendo a alma do sábio arre<strong>da</strong>r-se de todo o contactocom a sensação? Afinal, qual a natureza desta ord<strong>em</strong> ou cosmos? <strong>Ser</strong>á a Alma doMundo um princípio imaterial, podendo a Razão ser reconduzi<strong>da</strong> ao Fogo, o mais subtildos el<strong>em</strong>entos, como propunha Zenão? Ou, recuando ain<strong>da</strong> mais e corroborando aproposta de Heraclito, a ord<strong>em</strong> há-de constituir-se no eterno conflito entre o b<strong>em</strong> e omal, integrando-os dialecticamente, ao mesmo t<strong>em</strong>po que os supera? 95S<strong>em</strong> negar o facto <strong>da</strong> providência e a universali<strong>da</strong>de dela, a articulação dofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> atinge progressivamente, na elaboração augustiniana, o cerne <strong>da</strong>Filosofia, pois trata-se de decidir sobre o modo como Deus e os seres humanos se95 No Livro II De natura deorum Cícero recolhe uma exposição destas teses. Por seu turno, <strong>em</strong> De ordine,elas latejam nos apor<strong>em</strong>as a que constant<strong>em</strong>ente são conduzidos os interlocutores. A presença objectivado referido escrito de Marco Túlio na obra de <strong>Agostinho</strong> foi estu<strong>da</strong><strong>da</strong> por Testard, tendo encontrado 34citações, distribuí<strong>da</strong>s entre a Ep. CXVIII, a Dióscoro, De ciuitate dei e Contra Iulianum ( cf. M.TESTARD, Saint Augustin et Cicéron, I, p. 211-212). To<strong>da</strong>via, o A. anota com pertinência: « (...)l’importance des citations d’un ouvrage de Cicéron par saint Augustin, n’est pas nécessair<strong>em</strong>ent lamesure de l’influence de cet ouvrage sur saint Augustin ! (…) Or il résulte de précédentes recherches, queparmi les ouvrages de Cicéron, le De natura deorum est de ceux qui exercèrent la plus grande influencesur saint Augustin » (Ibid., p. 212). Uma análise do confronto entre as diferentes teses disponíveis nacultura antiga para justificar a ord<strong>em</strong> do mundo ou a ausência dela, de que resulta um peculiar ambientede sincretismo intelectual e religioso, pode ler-se <strong>em</strong> A.-J. FESTUGIÈRE, La révélation d’HermèsTrismégiste II (Paris 1949), p. 375 ss; Id., L’idéal religieux des grècques et l’Évangile (Paris 1981), p. 86-115, onde o A. abor<strong>da</strong> esta fusão de ideias e ideais, presente na Antigui<strong>da</strong>de, a partir <strong>da</strong>s noções deprouidentia e fatum.72


elacionam, com vista a tornar acessível a aspiração humana essencial, a saber, oalcance <strong>da</strong> Felici<strong>da</strong>de. Ora, de que modo será possível atingir este fim, num universoonde o sofrimento e o mal <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> por to<strong>da</strong> a parte, a capricho? Em última análise, aproposta de uma providência universal de cariz determinista conduz a uma atitude deresignação ante um destino que, não sendo cego ou irracional, é superior e tirânico. Aúnica forma de libertação que resta ao ser humano é a <strong>da</strong> penetrar, pela gnose, nosdesígnios fatais, procurando decifrá-los junto <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des competentes: os sábios ouadivinhos. O comum dos mortais, depois de informado acerca do seu horóscopo,conformar-se-á com o decurso irrevogável que se estabelece entre a sua vi<strong>da</strong> e omovimento <strong>da</strong>s esferas celestes, religando-se a esse movimento através <strong>da</strong> prática deto<strong>da</strong>s as formas de superstição, ou procurando, quanto antes, diluir-se na vi<strong>da</strong> anímicado cosmos pela prática do nirvana, pelo alcance <strong>da</strong> ataraxia ou, <strong>em</strong> caso limite,mediante a experiência, irreversível, do suicídio voluntário, na esperança de uma novaencarnação ou de uma comunhão definitivamente <strong>em</strong>pática com o Logos Universal.Se atendermos à influência que as fontes neoplatónicas terão exercido sobre Sto.<strong>Agostinho</strong>, comprova-se que Plotino 96 consagrara já um lugar à liber<strong>da</strong>de humana96 A amplitude <strong>da</strong> influência do neoplatonismo e, de modo particular, dos escritos de Porfírio e Plotino naobra de <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> sido objecto de múltiplos estudos (S<strong>em</strong> pretensão de exaustivi<strong>da</strong>de, v.BIBLIOGRAFIA. B. I. 2.4.Platonismo e Neoplatonismo). A questão centra-se na dificul<strong>da</strong>de de identificaras obras referi<strong>da</strong>s por Sto. <strong>Agostinho</strong> mediante a expressão Platonicorum libri, <strong>da</strong> qual se serve paraindicar as leituras que exerceram peculiar influência na sua conversão metafísica (cf. Conf. VII, 20, 26:CCL 27, p. 109). O facto <strong>da</strong>queles livros ser<strong>em</strong> uma tradução do grego, feita por Marius Victorinus, não éobjecto de contestação. <strong>Agostinho</strong> afirma-o explicitamente <strong>em</strong> Conf. VII, IX, 13; VIII, II, 3 ( CCL 27, p.101; p.114-115). A dificul<strong>da</strong>de estriba <strong>em</strong> identificar quais os Livros que Victorinus traduzira do grego.P. HADOT é levado a concluir que a obra de Victorinus na<strong>da</strong> revela sobre os referidos Libri, tendomesmo mostrado que o conteúdo <strong>da</strong>s obras profanas de Victorinus não é plotiniano maspredominant<strong>em</strong>ente porfiriano ( Cf. P. HADOT, Marius Victorinus, p. 203-204; Id. Porphyre etVictrorinus, I, p. 79-143). A hipótese, levanta<strong>da</strong> por P. COURCELLE, segundo a qual a fonte maispróxima para a presença de Plotino na obra de <strong>Agostinho</strong> seriam os sermões de Ambrósio (cf. P.COURCELLE, Recherches sur les Confessions de saint Augustin, p. 125-126), não é de desprezar. Noano 386, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> conversão metafísica de <strong>Agostinho</strong>, existia <strong>em</strong> Milão um meio neoplatónico deintelectuais, ao qual pertencia o próprio Ambrósio [ Cf. O. DU ROY, L’intelligence de la foi en la trinitéselon saint Augustin ( Paris 1966), p. 60-61; A. SOLIGNAC, “Il circolo neoplatonico Milanese al t<strong>em</strong>podella conversione di Agostino”, in Agostino a Milano. Il battesimo. Agostino nelle terre di Ambrogio, 22-24 Aprile 1987 (Palermo 1988), p. 43-56]. Por seu turno, é reconheci<strong>da</strong> a presença de Plotino nas obrasdo Bispo de Milão, nomea<strong>da</strong>mente no <strong>Ser</strong>mo De Isaac uel anima [ CSEL 32/1, (C. SCHENKL, 1897), p.73


dentro <strong>da</strong> Providência universal 97 . Omnipresente e omnipotente, a providência não podeanular o lugar do ser humano no conjunto do Universo. Com efeito, se só existisse aprovidência, na<strong>da</strong> mais existiria. Sobre que reali<strong>da</strong>des, então, haveria ela deprovidenciar? 98 Uma vez mais, a questão incide sobre o modelo de relação que seestabelece entre o Princípio Ordenador e as reali<strong>da</strong>des múltiplas que pululam oUniverso, tentando encontrar resposta para a exigência de racionali<strong>da</strong>de de um Universoque necessita integrar a diferença dentro do movimento que o constitui por natureza. Nocaso dos seres vivos - e, particularmente, no caso do ser humano -, <strong>da</strong>do que se mov<strong>em</strong>espontaneamente, pod<strong>em</strong> tender, por uma inclinação quase física, para o b<strong>em</strong> ou para omal 99 . Na óptica de Plotino, a providência seria um activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela Inteligência,soberana e divina, que, apesar <strong>da</strong> relativa imprevisibili<strong>da</strong>de do exercício de umaliber<strong>da</strong>de que se integra num universo onde reina a diversi<strong>da</strong>de, tudo reconduziria àord<strong>em</strong> e à harmonia convenientes.S<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, a hipótese é aparent<strong>em</strong>ente satisfatória <strong>da</strong>do que, neste contexto, arelação entre os humanos e Deus se resolve favoravelmente, para ambos os termos.Preservando a liber<strong>da</strong>de humana e contornando o fatalismo estóico, é <strong>da</strong>do aceder, aosseres humanos, por movimento próprio, à virtude ou ao vício. Em conformi<strong>da</strong>de com osactos deles, segu<strong>em</strong>-se o mérito ou o castigo. Assim, seja qual for a actuação <strong>da</strong>providência, ela é justa. A um t<strong>em</strong>po, ficam garanti<strong>da</strong>s a justiça de uma hipóstase641-700]. Este facto, contudo, não lança luz sobre o conteúdo dos libri Platonicorum. Sobre estes, Hadotanota que é hoje consensual o facto de neles se conter<strong>em</strong> textos de Porfírio e de Plotino (P. HADOT, Op.cit. p. 207, n. 30). Mas o acordo sobre que fontes e quais as principais influências sofri<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong>é assaz difícil. Assim, enquanto DU ROY afirma que Plotino “ est sans doute la principale source du néoplatonismed’Augustin” ( cf. op. cit, p 67), <strong>da</strong> expositio de HADOT sobre a presença de Plotino na obrade <strong>Agostinho</strong> conclui-se uma influência doutrinal, sendo impossível asseverar uma leitura <strong>da</strong>s Enneades,mesmo se traduzi<strong>da</strong>s por Victorinus. Com efeito, não é viável verificar o modo como a obra de Plotinoteria sido recebi<strong>da</strong> por este rector, cujo legado efectivo, no que aos escritos neoplatónicos diz respeito, seresume à tradução de algumas obras de Porfírio. Sobre a influência de Plotino <strong>em</strong> <strong>Agostinho</strong> mediante aleitura dos Platonicorum, Hadot conclui: « Il est donc difficile de dire si ce qu’Augustin lisait comme destraités de Plotin correspon<strong>da</strong>it exact<strong>em</strong>ent et littéral<strong>em</strong>ent à nos Ennéades actuelles » ( P. HADOT, Op.cit, p. 209).97 Cf. PLOTINO, Enn. III, 2, 7 (p. 32-33). O Alexandrino recolhe a frase de República X, 617e incluí<strong>da</strong>no relato platónico do mito de Er. A reencarnação <strong>da</strong>s almas, pela qual começa para elas um novo ciclomortal, depende do arbítrio <strong>da</strong>quelas.98 Cf. Id., Enn. III, 2, 9 (p. 36-37).99 Cf. Id., Enn. III, 3, 4 (p. 53-54).74


supr<strong>em</strong>a e a felici<strong>da</strong>de dos humanos, resultando esta do cumprimento <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>deprópria <strong>da</strong>quela outra. Ora, a justiça divina é eterna, o que significa que o ajuste deprémios e castigos também o é. Por isso, a felici<strong>da</strong>de humana, resultado destadistribuição, é um efeito necessário <strong>da</strong> justiça divina. O mesmo sucederá com o castigo.Note-se, contudo, que esta forma de posicionar a questão faz reverter o filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ao ponto de parti<strong>da</strong>: méritos e castigos estão predeterminados por uma RazãoUniversal e o determinismo causal entra <strong>em</strong> pleno no exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana.S<strong>em</strong> poder falar de uma efectiva responsabili<strong>da</strong>de pelos seus actos, o ser humano t<strong>em</strong>aquilo que lhe é devido. Mas tal justiça está determina<strong>da</strong> previamente e a activi<strong>da</strong>dehumana <strong>em</strong>erge como uma mera representação, uma encenação de uma peça escritadesde s<strong>em</strong>pre, na qual s<strong>em</strong>pre se obtém o fim intentado. É deste modo que a acçãohumana se inscreve na racionali<strong>da</strong>de universal regente do curso ordenado dosacontecimentos.Entre outros aspectos, de uma tal proposta resulta, na prática, uma relação de tipocomercial entre Deus e os seres humanos. É esse o modelo que gere, afinal, a activi<strong>da</strong>dehumana e o que envolve o exercício de virtudes como a pie<strong>da</strong>de ou a devoção. Aliber<strong>da</strong>de humana, no estreito horizonte que lhe cabe para se exercitar – o desenrolar dopapel que lhe foi atribuído no curso dos acontecimentos -, fá-lo por t<strong>em</strong>or ao castigo oupela paixão pelo b<strong>em</strong>. Sendo assim, não fará qualquer sentido considerar a natureza deum acto humano que <strong>em</strong>erge <strong>da</strong> pura gratui<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do que uma tal acção <strong>em</strong> na<strong>da</strong>contribuiria para a perfeição do indivíduo ou do Todo.Com efeito, a gratui<strong>da</strong>de é, para estas mundividências de cariz necessitarista, umaespécie de desperdício ontológico. Por isso, <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> breve verificará que, nãoobstante a solução neoplatónica para a relação entre a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e o Mundo ser razoável,harmónica e de cariz universal, ela é claramente parca de possibili<strong>da</strong>des noequacionamento <strong>da</strong> questão essencial: se Deus existe, qual a razão de ser do sofrimentoe de que modo o ser humano pode atingir a felici<strong>da</strong>de? Permanece por explicar a orig<strong>em</strong>do mal, sendo este atribuído quer à diferença que se estabelece entre o Mundo sensível eo Inteligível, quer a uma necessi<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a natureza que, para se formar, reclame ocontacto com a imperfeição <strong>da</strong> matéria.É ver<strong>da</strong>de que a noção de ord<strong>em</strong> proposta pelo neoplatonismo integra os bens e osmales e que tal noção se sobrepõe ao conflito entre estas duas reali<strong>da</strong>des. Nestecontexto, o Uno, hipóstase Soberana, situa-se acima <strong>da</strong> providência, sendo estaapresenta<strong>da</strong> como uma reali<strong>da</strong>de intermediária entre o Mundo e Deus. To<strong>da</strong>via, não se75


poderá falar aqui de uma ver<strong>da</strong>deira mediação, mas de uma espécie de prevenção, porparte do Uno, com o fim de não se imiscuir nas dificul<strong>da</strong>des que se geram no governodo Universo material. Assim se entende a insistência plotiniana na metáfora do Cosmosentendido como representação - o grande palco do mundo. Os conflitos - o sofrimento ea desord<strong>em</strong> – são, aí, meramente aparentes, uma vez que to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de intra-cósmica,tudo o que sucede neste mundo, mais não é do que figuração. O Universo é concebidocomo reali<strong>da</strong>de lúdico-dramática, no interior <strong>da</strong> qual ca<strong>da</strong> ente des<strong>em</strong>penha o seu papel,cuja função virá a conhecer e a compreender porventura apenas quando abandonar opalco e regressar aos bastidores, reunindo-se com o Princípio Uno, do qual retira a suaorig<strong>em</strong>.Tarefa por excelência confia<strong>da</strong> a esta providência é a de reorientar as imperfeiçõesdesse organismo a que se chama Mundo, de modo que a função de ca<strong>da</strong> m<strong>em</strong>bro sedesenrole, no teatro de operações, de acordo com a Inteligência Ordenadora. Aprovidência vai burilando e relimando as imperfeições, ajustando o real aos seus lugarespróprios. Há ord<strong>em</strong> quando ca<strong>da</strong> coisa está no lugar que lhe compete. Ora, só aInteligência Soberana conhece, efectivamente, esse posto, pois só ela possui visão deconjunto sobre a peça <strong>em</strong> execução. Para realizar tal tarefa de ajuste, a providêncianecessita do castigo - o sofrimento e o mal. Este surge como uma reali<strong>da</strong>de punitivaque permite à Inteligência Supr<strong>em</strong>a reconduzir tudo ao equilíbrio, <strong>da</strong>ndo a ca<strong>da</strong> umaquilo que lhe é devido.Contudo, o próprio Universo, o palanque onde se desenrola todo o teatro, estádotado de reali<strong>da</strong>de e consistência apenas relativas, já que contém <strong>em</strong> si amultiplici<strong>da</strong>de e a diferença. Integrando a activi<strong>da</strong>de espontânea – admita-se, mesmo,como faz Plotino, um certo espaço para a liber<strong>da</strong>de - dos seres que nele se geram ecorromp<strong>em</strong>, a reali<strong>da</strong>de do Universo não se esgota no cenário visível aos humanos,<strong>da</strong>do que este é pura figuração. O ver<strong>da</strong>deiro Mundo é aquele onde tudo é Uno e Bom, eonde, por definição, to<strong>da</strong> a diferença se anula. Por sua vez, nesse Mundo, a providênciatorna-se desnecessária. Na reali<strong>da</strong>de, onde tudo é bom, qualquer forma de ordenação,policiamento, organização ou governo é, simplesmente, dispensável. Para aqueleMundo Superior deve convergir a atenção e a inteligência do sábio, separando-se,progressivamente, de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de onde se mescle o visco <strong>da</strong> matéria.Se é ver<strong>da</strong>de que, neste contexto, a ord<strong>em</strong> é divina, to<strong>da</strong>via ela não é Deus. Se aord<strong>em</strong> está no Universo, ela não é universal. Com efeito, Plenitude e Divin<strong>da</strong>de sãoatributos do Uno transcendente, com o qual a alma do sábio deseja unir-se,76


abandonando este universo de aparências onde por to<strong>da</strong> a parte brotam os conflitos,consequência <strong>da</strong> dispersão do Uno no Múltiplo. Assim, se a providência <strong>em</strong>anadirectamente de Deus, to<strong>da</strong>via ela não é essencialmente divina. Aderir a ela de modoactivo, através do exercício <strong>da</strong>s virtudes, não significa, por conseguinte, identificar-secom Deus ou caminhar na direcção <strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança com o divino. Esta mira conseguirse-á,porventura, através <strong>da</strong> providência e certamente não se atingirá s<strong>em</strong> o seuconcurso. Porém, a alma do sábio deve orientar-se no sentido de superar a sua relaçãocom o Mundo e a ord<strong>em</strong>, anulando o desperdício de ser que se dá nas diferenças.Para compatibilizar a providência divina e o sofrimento humano parece restar umaterceira via, precisamente aquela que Mónica enunciara <strong>em</strong> De ordine: e se o mal foiintroduzido, no t<strong>em</strong>po e na história, pela liber<strong>da</strong>de humana, tendo sido, de imediato,reconduzido por Deus à ord<strong>em</strong>? 100 Se for possível encontrar razoabili<strong>da</strong>de para estatese, salvar-se-á, por um lado, a omnipotência divina: possibilitando o mal, recupera osenhorio sobre ele pela mediação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>; por outro lado, preservar-se-á a liber<strong>da</strong>dehumana que se torna, efectivamente, capaz de contrariar ou de favorecer o curso dosacontecimentos, intervindo activamente no t<strong>em</strong>po e na história. Na ver<strong>da</strong>de, para retirartodo o rendimento destes el<strong>em</strong>entos, que integram a metafísica bíblico-cristã <strong>da</strong>Criação, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessitará de encontrar racionali<strong>da</strong>de para a questão que elepróprio considera estar no âmago <strong>da</strong> Filosofia: o modo como se estabelece a relaçãoentre o Uno, divino, e a multiplici<strong>da</strong>de e diferenciação presentes, antes de mais, nopróprio seio <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de e, por conseguinte, também no Universo. Nesta totali<strong>da</strong>decósmica, que não esgota to<strong>da</strong>s as expressões de ser, inscreve-se o próprio ser humano,com a peculiar característica <strong>da</strong> sua forma de ser: o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.É um facto que <strong>Agostinho</strong> considera sofrível a proposta neoplatónica para acompreensão do real e adopta-a, retirando dela todo o benefício. Contudo, já <strong>em</strong>Cassicíaco, o filósofo t<strong>em</strong> consciência de que ela não é suficient<strong>em</strong>ente universal e <strong>em</strong>Confessionum aponta-lhe os limites 101 . Com efeito, não parece difícil estabelecerlugares paralelos, tanto no que se refere ao posicionamento do probl<strong>em</strong>a, quanto aoestilo literário e aos recursos metafóricos, entre o tratado plotiniano♓ ♓♋✂ e alguns passos de De ordine 102 . A concepção100 Cf. DO II, VII, 23 (CCL 29, p. 119-120).101 Cf. Conf. VII, IX, 13; VII, XX, 26; VIII, IX, 21 (CCL 27, p. 101; p. 109-110; p. 126-127).102 S<strong>em</strong> olvi<strong>da</strong>r quanto se disse na nota 97, importa to<strong>da</strong>via referir alguns estudos sobre a presença doneoplatonismo nas primeiras obras de <strong>Agostinho</strong> e nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De ordine. A. SOLIGNAC, <strong>em</strong>77


plotiniana de um ♑✂ que se interpõe entre o ✂ e a ␛♍♒ pareceser a chave de resolução <strong>da</strong>s aporias <strong>em</strong> que incorre a mente quando quer afirmar auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> providência e depara, a ca<strong>da</strong> instante, com a erupção do mal e <strong>da</strong>desord<strong>em</strong>. A solução plotiniana, altamente optimista, é, <strong>em</strong> muitos aspectos, do agradode Sto. <strong>Agostinho</strong>. Ela permite integrar, no Universo, a diferença e a multiplici<strong>da</strong>de,designando por ord<strong>em</strong>, congruência ou harmonia, o efeito cósmico que se gera nauni<strong>da</strong>de entre as diferenças. Desde esta óptica, o real já não será entendido <strong>em</strong> termosde um conflito no qual dois princípios divergentes pretend<strong>em</strong> anular-se mutuamente efazer valer a sua pretensa omnipotência.De facto, pelo menos numa primeira abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong>, o esqu<strong>em</strong>a plotiniano pareceservir inteiramente no combate augustiniano contra o dualismo maniqueísta. A Razão,acomo<strong>da</strong>ndo-se à matéria, integrando-a <strong>em</strong> si mesma, não deixa na<strong>da</strong> fora do Universo.Nesta proposta, não há nenhuma reali<strong>da</strong>de que esteja à mercê de uma irracionali<strong>da</strong>desubsistente. A Razão engloba todos os seres, mas preserva a diferença de ca<strong>da</strong> um. Porisso, na<strong>da</strong> pode ser mais belo do que este espectáculo de harmonia de diferentes 103 . Nãoé o encadeamento determinista <strong>da</strong>s causas que gera a beleza do Universo, mas a Razão,na qual se inclu<strong>em</strong> luzes e sombras, que tudo faz à sua maneira e de acordo com a suavontade. O Universo é, assim, entendido como uma imensa obra de arte e só o Artistasabe onde, como e por que motivo há-de colocar os contrastes, desse modo e não deoutro. Só a Razão contém to<strong>da</strong> a diversi<strong>da</strong>de dos inteligíveis, podendo, por isso, dispordeles adequa<strong>da</strong>mente, dispersando-os e unificando-os <strong>da</strong> melhor maneira. Para qu<strong>em</strong>ignore a arte <strong>da</strong> pintura, o Universo poderá apresentar-se como um quadro malesboçado, defeituosamente construído, até horrivelmente decorado. Porém, àquele queassim pense, faltar-lhe-á, acima de tudo, certamente por ignorância, sensibili<strong>da</strong>de“Réminiscences plotiniennes et porphyriennes <strong>da</strong>ns le début du De ordine de saint Augustin”, Archives dephilosophie 20 (1957), p. 446-455, sublinhou a influência, <strong>em</strong> particular sobre De ordine, dos tratados dePlotino ♓ ♋ e ♓ ♓♋✂ b<strong>em</strong> como <strong>da</strong> obra de Porfírio,♋♋♓ ✂ ♋ ♒♋ (11, 37, 40, 41, 42, 43). No seu artigo “LeDe ordine. Son déroul<strong>em</strong>ent, ses thèmes”. L’opera letteraria di Agostino tra Cassiciacum e Milano(Palermo 1986), p. 112-150, J. DOIGNON dá conta do estado <strong>da</strong> questão, fazendo um levantamento <strong>da</strong>smais recentes publicações de especiali<strong>da</strong>de dedica<strong>da</strong>s a estabelecer lugares paralelos e a identificar apresença <strong>da</strong>s fontes clássicas no De ordine.103 Cf. PLOTINO, Enn. III, 2, 12 (p. 39).78


estética. Encontrará, por isso, defeitos, exactamente onde se espelham os traços maisgeniais do artista 104 .A concepção plotiniana de ord<strong>em</strong>, tal como v<strong>em</strong> exposta no Tratado III <strong>da</strong>sEnneades, identifica-se com a Sabedoria supr<strong>em</strong>a e a ver<strong>da</strong>deira Justiça. Cont<strong>em</strong>plandoo espectáculo do Universo, é necessário supor que a ordo rerum se estende ao conjunto<strong>da</strong>s formas, mesmo ao menor detalhe. Arte admirável, ela não reina apenas nas coisasdivinas, mas alcança aquelas reali<strong>da</strong>des que, pela sua aparência de feal<strong>da</strong>de edisformi<strong>da</strong>de, a mente humana estaria tenta<strong>da</strong> a considerar desprezíveis e indignas deque delas se ocupe uma activi<strong>da</strong>de divina como a providência 105 . O que existe <strong>em</strong> todosos detalhes <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de – harmonia e congruência -, é espelho de uma InteligênciaSoberana, mais do que de uma lógica que se possa divisar com o esforço <strong>da</strong> dialécticahumana, s<strong>em</strong>pre exíguo e minguado 106 . É claro que tal ordenação, <strong>em</strong>bora se esten<strong>da</strong> ato<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, não o faz de acordo com aquilo que pareceria lógico à razão humana,pois esta t<strong>em</strong> uma tendência enorme a anular os contrastes e diferenças. Porém, sãoestes últimos os el<strong>em</strong>entos que contribu<strong>em</strong> para a beleza e justiça do Universo. Nessamedi<strong>da</strong>, eles não são apenas racionais mas consideram-se inclusivamente necessários,mesmo na sua expressão bélica e rixosa, para a harmonia do Todo 107 .A Razão Soberana é Princípio de Inteligibili<strong>da</strong>de. Ora, essa mesma Razão é Total.Por isso, tudo o que acontece no Mundo ordena-se e manifesta-se conforme a Razão.Mas Plotino vai mais longe e chega a afirmar, não apenas que os males estão contidosnesta ordenação e que reflect<strong>em</strong>, portanto, racionali<strong>da</strong>de e justiça, mas também que ascircunstâncias não são donas <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de humana 108 . Na ver<strong>da</strong>de, tal como um generalconhece o plano que o conduzirá à vitória, sendo os acontecimentos e os meios,humanos e logísticos, <strong>da</strong> batalha, meros instrumentos, assim também o curso dosacontecimentos está submetido a uma razão inexcedivelmente sabedora, cuja eficácia é104 Cf. Id., Enn. III, 1, 11 (p. 38-39).105 Cf. Id., Enn. III, 2, 13 (p. 40).106 Cf. Id., Enn., III, 2, 14 (p. 41).107 Cf. Id., Enn., III, 2, 16 (p. 45).108 Cf. Id., Enn. III, 2, 4. 15 ( p. 28 . 41).79


irrefragável. Mais ain<strong>da</strong>, o ser humano está dotado de um princípio livre, o qual seinclui e se sujeita à acção providencial <strong>da</strong> Razão soberana 109 .Uma leitura do conteúdo de Enneades III, ♓ ♓♋✂ nãopodia deixar de entusiasmar Sto. <strong>Agostinho</strong>, a ponto de o levar a tecer os maioreslouvores à ord<strong>em</strong>. Com efeito, nos escritos que suced<strong>em</strong> a conversão metafísica, oHiponense via no Logos de Plotino a configuração do Verbo Eterno, enunciado noPrólogo joanino 110 . Criador do Mundo, Princípio Universal de Inteligibili<strong>da</strong>de, tal Logosgarantiria a ordo rerum e faria que a existência dela confluisse de acordo com a lexdiuina. To<strong>da</strong>via, esta identificação entre o Verbo quod erat in principio apud Deum e aRazão universal, não é inócua. O logos plotiniano é uma reali<strong>da</strong>de intermédia entre duashipóstases, permitindo estabelecer, entre elas, uma relação dialógica. Porém, naexposição do Alexandrino não fica clara n<strong>em</strong> a natureza <strong>da</strong> alma humana, obriga<strong>da</strong> aentrar no ciclo <strong>da</strong>s reencarnações para cumprir a justiça do ✂, n<strong>em</strong> a distinçãoentre aquele ♑✂ ordenador e a própria Alma do Mundo. No grande palco doMundo, ca<strong>da</strong> ser des<strong>em</strong>penha uma função, mas a activi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um, <strong>em</strong>bora livre, éirrelevante para a perfeição do conjunto. Esta é preconcebi<strong>da</strong>, predetermina<strong>da</strong>, afinal,predestina<strong>da</strong>. Defendendo uma concepção cíclica e circular do t<strong>em</strong>po, a ca<strong>da</strong> ser, se nãose aperfeiçoar nesta sua vi<strong>da</strong> e sob o seu modo actual, há-de conferir-se, numa outravi<strong>da</strong> e sob outro modo de existência, um novo des<strong>em</strong>penho, a fim de que o Todoprossiga o seu curso e permaneça inalterável a sua perfeição.Neste contexto, cabe perguntar se haverá um <strong>em</strong>penho efectivo e umaresponsabili<strong>da</strong>de singular, mormente no que aos seres humanos diz respeito, naconquista <strong>da</strong> Sabedoria e na posse <strong>da</strong> Felici<strong>da</strong>de. Por seu turno, também não é níti<strong>da</strong> adiferença entre o ✂, segun<strong>da</strong> hipóstase plotiniana, e essa espécie de razãoprática universal, que é o ♑✂ ordenador, governante do mundo e dos homens.Afinal, qual a categoria ontológica desta razão governante? É ela um s<strong>em</strong>i-deus? Ouconstitui-se como uma degra<strong>da</strong>ção do Uno?Na tentativa de responder ao enigma <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e confrontado com as categoriasfilosóficas oriun<strong>da</strong>s quer do cristianismo, quer do neoplatonismo, Sto. <strong>Agostinho</strong> pareceestar suspenso entre a adopção <strong>da</strong> tese <strong>da</strong> harmonia do conjunto, corrobora<strong>da</strong> pela109 Cf. Id., Enn. III, 2, 10 (p. 38). O texto é contraditório pois afirma, a um t<strong>em</strong>po, que os humanos sãomaus apesar deles próprios, isto é, <strong>em</strong> função de uma predeterminação <strong>da</strong> Razão Supr<strong>em</strong>a, mas ag<strong>em</strong> porsi mesmos e por si mesmos comet<strong>em</strong> faltas.110 Cf. Conf. VII, IX, 13 ( CCL 27, p. 101).80


defesa de uma razão universal ordenadora, e a substituição deste conceito deprovidência por um outro universo de compreensão para a ideia de ord<strong>em</strong>, maisabrangente e comum, que integre as virtudes <strong>da</strong> proposta neoplatónica, mas que supereos seus limites.Com efeito, ordo e prouidentia, na óptica do Hiponense, não poderão identificarse.Já <strong>em</strong> De beata uita fora avança<strong>da</strong> uma nova interpretação para o conceito d<strong>em</strong>odus, que o deslocava desde o universo dos seres, ou mesmo de quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acçõeshumanas, para a categoria do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, Arquétipo de to<strong>da</strong> a ord<strong>em</strong>. <strong>Ser</strong>á a categoriaontológica de modus tão-só uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas, ou poder-se-á considerar umahierarquia, na partilha desta quali<strong>da</strong>de dos seres, cujo vértice é ocupado por umaMedi<strong>da</strong> superna? Neste caso, tal condição óptima conferirá à Medi<strong>da</strong> a característica,não já de equilíbrio de forças, como acontecia com o ideal greco-romano de virtude,mas de Plenitude.Na reali<strong>da</strong>de, a própria concepção de razão universal ou de Logos, na proposta doneoplatonismo, coloca algumas dificul<strong>da</strong>des a Sto. <strong>Agostinho</strong>. Para o Hiponense, aactivi<strong>da</strong>de do Verbo ou Razão divina não pode reduzir-se à de um espectador, atento aocurso dos acontecimentos, compondo a sinfonia à sua maneira e retirando dela aharmonia prevista, s<strong>em</strong> que a forma de ca<strong>da</strong> ser humano colabore, activa econscient<strong>em</strong>ente, na construção <strong>da</strong> harmonia. Assim, se o conteúdo dos Platonicorumcontribuía satisfatoriamente para superar o dualismo maniqueísta, só muitoartificialmente as principais teses do neoplatonismo poderiam explicar a participação deca<strong>da</strong> ser humano na construção do Mundo e na conquista ou na recusa <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>deprópria. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o Filósofo de Hipona t<strong>em</strong> consciência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de dearticular, na exposição do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, a existência de um Princípio, quecomprovara estar absolutamente ausente nos Libri Platonicorum, e que é eixo central namundividência bíblico-cristã. Trata-se <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de histórica <strong>da</strong> Incarnação do Verbo,transmiti<strong>da</strong> ao filósofo pela leitura e comentário do texto bíblico.Que significado teria, para a ordo rerum, que o Verbo se tenha revestido dehumani<strong>da</strong>de? O Mestre de Cassicíaco, o recém-convertido de Milão, necessitaria t<strong>em</strong>popara reflectir sobre tamanhas questões, do mesmo modo que, ao pôr à prova asconvicções de Licêncio, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De ordine, adverte o jov<strong>em</strong> quanto ao factode que a mente dele, por estar pouco nutri<strong>da</strong> de erudição, poderá ser incapaz desustentar tamanho Deus. De facto, o Filósofo de Hipona sabe que o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong>81


<strong>Ord<strong>em</strong></strong> só se soluciona ante uma noção de divin<strong>da</strong>de absolutamente sublime, cujaactivi<strong>da</strong>de abranja o <strong>Ser</strong> <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as suas manifestações.No conjunto <strong>da</strong> sua obra, Sto. <strong>Agostinho</strong> aspira construir uma mundividência queconduza à uera sophia, a qual considera que se obtém quando se enten<strong>da</strong>m os mistériosprofessados pela fé postula<strong>da</strong> pelo cristianismo. To<strong>da</strong>via, paradoxalmente, <strong>Agostinho</strong>está convicto de que só a Filosofia é capaz de entender tais mistérios de modoadequado. Trata-se de um imenso desafio, uma vez que, como se sintetiza <strong>em</strong> Deordine, consiste <strong>em</strong> explicar de que modo o Intelecto, proveniente de Deus, assumiu anatureza humana, e de que modo a natureza, Una e Imutável, de Deus, é Pai tripotente,Filho e Espírito <strong>Santo</strong>. Tão grande tarefa não pode esgotar-se <strong>em</strong> tão parco discurso,como aquele proferido <strong>em</strong> Cassicíaco e compilado <strong>em</strong> De ordine. Por isso, quer Deordine, quer os escritos que se lhe suced<strong>em</strong>, correspondentes ao período anterior àordenação episcopal do filósofo, não obstante conquistar<strong>em</strong> terreno paulatinamente, nosentido de alargar as coordena<strong>da</strong>s <strong>da</strong> articulação do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, detêm-se nacomprovação e na identificação <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, nas suas multiformesmanifestações, como num exercício propedêutico à activi<strong>da</strong>de filosófica. Deste tirocíniofaz parte o louvor <strong>da</strong> magnífica presença <strong>da</strong> ordo <strong>em</strong> todo o Universo e a exortação de<strong>Agostinho</strong> quer à dedicação <strong>da</strong> mente à erudição e ao estudo, quer à prática dos bonscostumes. Desta forma, haverá ord<strong>em</strong> na mente e na vi<strong>da</strong>, e só esta vi<strong>da</strong> racional,plenamente ordena<strong>da</strong>, conduz, afinal, ao vértice onde o Hiponense posiciona, desde oprimeiro momento, a resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa: a compreensão <strong>da</strong> essênciadivina e <strong>da</strong> relação que o ser humano com ela estabelece.Como faz notar Festugière, a in<strong>da</strong>gação filosófica acerca <strong>da</strong> providência resume-se<strong>em</strong> saber se existe um Deus e se ele está interessado nos seres humanos. Para tal,importa in<strong>da</strong>gar o que é a alma humana e entender o modo como ela se relaciona com oser divino 111 . Ora, o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> in<strong>da</strong>ga um horizonte mais amplo de questões.Atingindo o âmago <strong>da</strong> Filosofia, <strong>em</strong> causa está o esquadrinhamento, até onde sejapossível à razão humana, acerca <strong>da</strong> natureza de Deus e do modo como, na sua Uni<strong>da</strong>dee Eterni<strong>da</strong>de Soberanas, subsiste a Diferença, por um lado, e, por outro, o modo comoesta Enti<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deiramente sublime se relaciona com a multiplici<strong>da</strong>de et<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de dos seres que pululam o Universo. A razão de <strong>Agostinho</strong> só se deterá111 Cf. A. J. FESTUGIÈRE, L’idéal religieux des grècques et l’évangile ( Paris 2 1981), p. 99.82


quando encontrar uma leitura dota<strong>da</strong> de máximo sentido e significado para esta tessiturade questões, que admite estar<strong>em</strong> no cerne <strong>da</strong> Filosofia.Nos primórdios <strong>da</strong> construção deste itinerário, <strong>Agostinho</strong>, recém-convertido deum percurso de vi<strong>da</strong> conturbado, recolhe-se <strong>em</strong> preparação do seu baptismo. Nesserecolhimento, simplifica ain<strong>da</strong> mais as coordena<strong>da</strong>s do filosof<strong>em</strong>a, reduzindo-o a umaúnica questão, na qual considera que to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais virão a eluci<strong>da</strong>r-se: Deum etanimam scire cupio 112 .4. Providência. E liber<strong>da</strong>de?Efectivamente, a noção de providência, não obstante estar presente na obra de Sto.<strong>Agostinho</strong>, não ocupa, nela, um lugar central ou, dito de outro modo, irá ocupando,progressivamente, o lugar que lhe corresponde, numa mundividência que se sustenta naconcepção bíblico-cristã de <strong>Ser</strong>. Na reali<strong>da</strong>de, mais do que o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> existência, ounão, de uma providência divina e do alcance dela sobre reali<strong>da</strong>des boas e más, acima de112 Solil. I, II, 7 (CSEL 89, p. 11). Esta metodologia de análise, não obstante privilegiar um itinerário deacesso ao <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o mediante a atenção à activi<strong>da</strong>de do espírito humano, não significa, <strong>da</strong> parte doHiponense, um desprezo pelas reali<strong>da</strong>des materiais. Muitas são as justificações para esta opçãometodológica, entre as quais cabe evidenciar, por um lado, a descoberta que o filósofo faz, no momento<strong>da</strong> sua conversão metafísica, <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> espiritual humana, e, por outro, a influência doneoplatonismo, cujas teses acerca do movimento de ascese <strong>da</strong> alma para o Uno se harmonizavam com oapelo ao diálogo com Deus no interior <strong>da</strong> alma, presente nos textos de S. Paulo e S. João. Concretamente,<strong>em</strong> De moribus I, XXI, 38 (CSEL 90, p. 42-43), <strong>Agostinho</strong> declara a razão de ord<strong>em</strong> desta opção: os errosdos filósofos que, desconhecendo Deus, confund<strong>em</strong> o Absoluto com a mole material, investigando anatureza desta com uma curiosi<strong>da</strong>de quase mórbi<strong>da</strong> (curiosissime intentissimeque perquirant: De moribusI, XXI, 38: CSEL 90, p. 43). O filósofo considera que este facto inviabiliza a passag<strong>em</strong> do conhecimentodos corpos ao <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des incorpóreas. Fixando a mente apenas nas imagens corpóreas, os que segu<strong>em</strong>este caminho confund<strong>em</strong>-nas com as reali<strong>da</strong>des espirituais. Esta fora a experiência de <strong>Agostinho</strong> nos anospassados na seita maniqueísta. Contudo, importa sublinhar que a referi<strong>da</strong> opção metodológica não inibe ohorizonte mental do Hiponense, b<strong>em</strong> ao invés, amplia-o até desafiar um modo de percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>desensível e corpórea a partir do próprio Princípio Criador. Acrescente-se ain<strong>da</strong> que a diminuição do valorepist<strong>em</strong>ológico <strong>da</strong> cosmologia no acesso à essência do Absoluto se relaciona, na obra augustiniana, com ocarácter teúrgico associado aos saberes sobre o Mundo, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente conectados com a astrologia e asartes divinatórias.83


tudo o que estará <strong>em</strong> causa na concepção augustiniana de ord<strong>em</strong> é a explicação do modocomo se estabelece a relação entre o <strong>Ser</strong> e os seres, entre o Uno e o Múltiplo 113 .Como se viu, é hoje consensual entre os críticos que o Tratado III <strong>da</strong>s Enneades,no qual Plotino reflecte precisamente sobre a ideia de providência, se encontra entre osLibri platonicorum, aos quais Sto. <strong>Agostinho</strong> diz ter tido acesso, na versão latina deMário Vitorino 114 . Inversamente, do Filósofo de Hipona não se conhece nenhum escritoque aborde especificamente o t<strong>em</strong>a 115 , facto que se justifica porventura na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que, para <strong>Agostinho</strong>, não faz sentido um tratamento isolado <strong>da</strong>quela noção. Com efeito,a t<strong>em</strong>ática augustiniana <strong>da</strong> providência surge s<strong>em</strong>pre associa<strong>da</strong> ao filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,articulando a relação que o Princípio Supr<strong>em</strong>o de <strong>Ser</strong>, ou Deus, estabelece com oMundo e, muito <strong>em</strong> particular, com o ser humano, quer porque este tende naturalmenteà felici<strong>da</strong>de, rejeitando o sofrimento, quer porque, dotado de liber<strong>da</strong>de, ele é capaz deproduzir acções contrárias à ord<strong>em</strong>.113 Em DO II, XVII, 46 (CCL 29, p. 132), Sto. <strong>Agostinho</strong> fazia já um elenco, <strong>em</strong> amálgama, <strong>da</strong>sdiferentes possibili<strong>da</strong>des de conjugar o Princípio do Mundo e a orig<strong>em</strong> do mal.114 É um facto que <strong>Agostinho</strong> conhece a noção plotiniana de providência, como afirma <strong>em</strong> De ciu. dei X,XIV: "(...) De prouidentia certe plotinus platonicus disputat eamque a summo deo, cuius est intellegibilisatque ineffabilis pulchritudo, usque ad haec terrena et ima pertingere flosculorum atque foliorumpulchritudine conprobat; quae omnia quasi abiecta et uelocissime pereuntia decentissimos formarumsuarum numeros habere non posse confirmat, nisi inde formentur, ubi forma intellegibilis etincommutabilis simul habens omnia perseuerat." (CCL 47, p. 288). V., também, R. JOLIVET, "Plotin etsaint Augustin ou le problème du mal", in Essais sur les rapports entre la pensée grècque et la penséechrétienne, Paris 1933, pp. 88 ss., spec. p. 103; M. BETTETTINI, La misura delle cose. Strutture <strong>em</strong>odelli dell'universo secondo Agostino di Ippona (Milano 1994), spec. p. 36 e ss.; G. MADEC,“Thématique augustinienne de la providence” in Revue des études augustiniennes 41 ( 1995), p. 291-308.115 Em De diu. quaest. 83, a quaestio XXVII, intitula-se De prouidentia ( CCL 44A, p. 33-34) títuloratificado pelo Hiponense <strong>em</strong> Retract. I, XXVI ( CCL 57, p. 77). To<strong>da</strong>via, recorde-se o carácter <strong>da</strong>quelaobra, que resulta <strong>da</strong> recolha de apontamentos de assuntos tratados de modo disperso, ao fio <strong>da</strong>sinterrogações dos seus companheiros, <strong>em</strong> Tagaste. Assim, a q. 27 esgota-se numa dezena de linhas ondese mostra de que modo o mal e o b<strong>em</strong> estão sob domínio <strong>da</strong> providência divina. Na Ep. CCXXXI, 7(CSEL 57, p. 510), o filósofo refere o envio de um De prouidentia que, entre o espólio augustiniano, nãoé possível identificar. Existe, ain<strong>da</strong>, o <strong>Ser</strong>mo Dolbeau 29 [ segundo a classificação de G. MADEC, Revuedes études augustiniennes 38 (1992), p. 390-391. V. também, Id., 42 (1996), p. 336], publicado <strong>em</strong> Revuedes études augustiniennes 41 (1995), 281-289 sob o título De prouidentia dei. Na introdução, o A. colocaa hipótese de ser este o escrito indicado na Ep. CCXXXI, mas refere que não há forma de confirmar estatese (Cf. F. DOLBEAU, “<strong>Ser</strong>mon inédit sur la providence”, p. 268, n. 6; 276-277).84


Assim, se inicialmente a proposta do neoplatonismo para compreender a noção deprovidência parecera agra<strong>da</strong>r a Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma reflexão mais apura<strong>da</strong> faz que ofilósofo comprove que aquele posicionamento parte de um conjunto de pressupostosque não pode corroborar.Com efeito, a noção plotiniana de providência postula a necessi<strong>da</strong>de do mundosensível e a eterni<strong>da</strong>de dele 116 . ♓♋, para Plotino, significa um primadonoético do Logos sobre o mundo sensível. Esta priori<strong>da</strong>de não é meramentecronológica, mas ontológica, sendo o Logos o arquétipo e o modelo do qual o mundosensível é imag<strong>em</strong>. Este último existe e subsiste precisamente enquanto imag<strong>em</strong> do✂ primordial. Ora, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, do ✂, <strong>em</strong>ana eternamente aimag<strong>em</strong> de si, o mundo sensível é, igualmente, eterno e necessário 117 , pois se aeterni<strong>da</strong>de é atributo <strong>da</strong> hipóstase que fun<strong>da</strong>menta o mundo sensível, igualmente o será<strong>da</strong>quilo que tal Princípio fun<strong>da</strong> num movimento de similitude e por <strong>em</strong>anaçãonecessária.De outro modo, dever-se-ia admitir uma mu<strong>da</strong>nça no Princípio, uma passag<strong>em</strong> <strong>da</strong>não-produção à produção <strong>da</strong> sua imag<strong>em</strong>. Mas Plotino - ao invés <strong>da</strong> proposta de Platãono Timeu, explicitamente comenta<strong>da</strong> pelo Alexandrino 118 - não admite que o mundosensível seja resultado de uma tarefa divina. Para Plotino, não é o modelo de produçãoque preside à orig<strong>em</strong> do Mundo, mas sim o <strong>da</strong> imitação ou reprodução imagética, afinal,o modelo <strong>da</strong> representação. O Universo deriva necessariamente como imag<strong>em</strong> do seuarquétipo e <strong>em</strong> tudo imita o seu Princípio. Assim, <strong>da</strong>do que o arquétipo existe, é belo esubiste eternamente, o mesmo sucederá no mundo sensível.Considerar o Universo como efeito de um plano e de uma decisão do ✂implicaria, para Plotino, introduzir, na eterni<strong>da</strong>de do Princípio, a sucessão do raciocínioe o t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> decisão, corrompendo a natureza desse Princípio e transformando-o <strong>em</strong>116 Cf. PLOTINO, Enn. III, 2, 1 ( p. 24-25).117 Sobre a argumentação de Plotino <strong>em</strong> favor <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de do Mundo, cf. Enn. II, I, 2-4 (p. 7-10). Sobrea recusa <strong>da</strong>s teses que postulam um início t<strong>em</strong>poral, para o Mundo, cf. Enn. II, 9, 8 ( p. 120-121); IV 4,9 (p. 110); Enn. III, 7, 6 (p. 133-134). Sto. <strong>Agostinho</strong>, ao invés, após enunciar as hipóteses sobre a orig<strong>em</strong>do Mundo <strong>em</strong> De ciuitate dei [Cf. De ciu. dei X, XXXI; XI, IV-VI; XII, XIV-XXI (CCL 47, p. 308-309;CCL 48, p. 323-327; p. 368-379] afirma de modo inconcusso que o mundo não é eterno mas t<strong>em</strong> uminício t<strong>em</strong>poral. Sobre as teses augustiniana e plotiniana acerca <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de do Mundo v. JeanGUITTON, Le t<strong>em</strong>ps et l’éternité chez Plotin et saint Augustin (Paris 1971 4 ), p. 200-214.118 Cf. PLOTINO, Enn. III, 7, 4-7 ( p. 130-135).85


eali<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>iurgica. No entender de Plotino, é precisamente a partir de uma respostapara a génese do Mundo fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong> fabricação, como propôs Platão, que<strong>em</strong>erg<strong>em</strong> as dificul<strong>da</strong>des sobre a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, pois o Princípio ficaentregue ao arbítrio do raciocínio e <strong>da</strong> decisão de um deus menor 119 . Na propostaplotiniana, inversamente, não é possível n<strong>em</strong> desprezar este Mundo, n<strong>em</strong> incriminar acausa <strong>da</strong> sua existência. Com efeito, a harmonia entre o Princípio e a sua reproduçãoimagética é perfeita. To<strong>da</strong>via, tal perfeição subsiste à custa de anular o espaço efectivodo exercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des. O mundo sensível decorre necessariamente do ✂por <strong>em</strong>anação, como imag<strong>em</strong> sua e s<strong>em</strong> intervenção de qualquer vontade, a qualintroduziria a irracionali<strong>da</strong>de no processo. E, no mundo sensível, no mundorepresentação,o exercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des é também expressão <strong>da</strong>quele facto. Por isso,Plotino considera adequado o recurso à metáfora <strong>da</strong> dramatização para explicar o modocomo se integram, na ord<strong>em</strong>, as designa<strong>da</strong>s más acções. O Mundo derivanecessariamente de um Princípio superior que produz por natureza -♋♋ ♓ – uma reali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>elhante a ele 120 . A providência podedefinir-se, neste contexto, como a eterna conformi<strong>da</strong>de do mundo sensível com o✂, de que depende. Numa tal mundividência, não há lugar para o mal, mastambém não existe espaço para uma efectiva realização de liber<strong>da</strong>des.Precisamente a diferença ontológica entre o Mundo e o seu Princípio, b<strong>em</strong> como aintrodução <strong>da</strong> contingência no próprio universo sensível são os aspectos que repugnamao pensamento de Plotino. Inversamente, são estas as noções – diferença ontológica econtingência - que <strong>Agostinho</strong> quererá preservar. A gnose, efectivamente, encarara-ascomo degra<strong>da</strong>ção e, desta forma, permitia que se introduzisse a possibili<strong>da</strong>de de conferircategoria ontológica ao mal, sendo este o efeito <strong>da</strong> mistura entre o ✂ e amatéria. Por isso, já Plotino criticara uma tal concepção do Mundo, como o fará,também, Sto. <strong>Agostinho</strong>. Mas, para escapar às dificul<strong>da</strong>des inerentes à justificação <strong>da</strong>universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, Plotino faz incorrer a razão <strong>em</strong> um novo conjunto de apuros.É ver<strong>da</strong>de que, na mundividência plotiniana, o mundo sensível <strong>em</strong>erge comonecessi<strong>da</strong>de do ✂. Ele é, portanto, espelho de um Princípio Supr<strong>em</strong>o de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.To<strong>da</strong>via, no mundo sensível verificam-se to<strong>da</strong> a espécie de desordens. Ora, para eximir119 Em Enn. V, 8, 7 (p. 143-144), Plotino critica o modelo de fabricação do mundo a partir do plano ideal,concebido por um d<strong>em</strong>iurgo, na realização do melhor dos mundos possíveis.120 Cf. Id., Enn. III, 3, 3.5 (p. 51-52.55-56).86


o ✂ do contacto com as aporias inerentes à evidência <strong>em</strong>pírica do mal e <strong>da</strong>desord<strong>em</strong>, Plotino introduz, na sua mundividência, a mediação de uma terceirahipóstase, a Alma do Mundo, atribuindo-lhe precisamente a função de arbitrag<strong>em</strong> dosconflitos, de modo a que na<strong>da</strong> ocorra, no universo sensível, que o torne diss<strong>em</strong>elhanteao ✂. Mas <strong>em</strong> que consiste esta nova hipóstase? É ela uma necessi<strong>da</strong>de do✂? Nesse caso, é forçoso concluir que o Princípio soberano de inteligibili<strong>da</strong>deé impotente para gerir quanto dele depende necessariamente, a saber, o universosensível. Porém, se a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela hipóstase é garantir a s<strong>em</strong>elhança, até à perfeitaidenti<strong>da</strong>de, entre o mundo sensível e o Inteligível, de facto aquele primeiro surge apenascomo representação e s<strong>em</strong> consistência ontológica, o que permite afirmar que o mundosensível e o ✂ são, afinal, o mesmo.Sto. <strong>Agostinho</strong> quer afirmar a positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> diferença ontológica do Universo<strong>em</strong> relação ao seu Princípio, b<strong>em</strong> como a <strong>da</strong>s multíplices formas de ser que preench<strong>em</strong> omundo criado. O Hiponense quer, também, afirmar a contingência do Mundo e adependência dele <strong>em</strong> face de um Princípio Eterno de <strong>Ser</strong>. Para tal, socorrer-se-á <strong>da</strong>noção de Sabedoria, na qual se esclarecerá, <strong>em</strong> última instância, a t<strong>em</strong>ática augustiniana<strong>da</strong> providência 121 . Insistirá, também, na dependência <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sensível <strong>em</strong> face deuma Vontade omnipotente, causa de tudo quanto existe. E, não obstante o Hiponenseasseverar a eterni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong>, persistirá <strong>em</strong> afirmar que essa mesma quali<strong>da</strong>de radicalestará presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s formas existentes. Para sustentar esta tese, <strong>Agostinho</strong>121 O Mundo Antigo pudera pensar a trin<strong>da</strong>de de diversos modos. O esqu<strong>em</strong>a platónico e neoplatónico sãodisso test<strong>em</strong>unho, pela trin<strong>da</strong>de de hipóstases, e <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> reconhece-o, como se lê v. gr. <strong>em</strong> Conf.VII, IX, 13-14 ( CCL 27, p. 101-102). V., também, De ciu. dei VIII, V; VIII, IX ( CCL 47, p. 221-222; p.225-226). Porém, a uni<strong>da</strong>de na trin<strong>da</strong>de, essência do Princípio, que Sto. <strong>Agostinho</strong> quer tornar inteligível,é uma proposta inteiramente nova que obrigará a rever as categorias filosóficas <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de. No que serefere à noção de providência, Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> consciência de não poder afirmar, <strong>da</strong> essência divina,um conhecimento por analogia com o exercício humano <strong>da</strong> prudência, <strong>da</strong>do que este se sujeita ao t<strong>em</strong>po.O exercício <strong>da</strong> prouidentia humana dá-se sob forma de prudentia. Nesta medi<strong>da</strong>, depende <strong>da</strong> m<strong>em</strong>óriaenquanto guardiã <strong>da</strong> experiência de vi<strong>da</strong> e não de um conhecimento pleno <strong>da</strong> ordo rerum. Este factoexperimenta-se, v.gr., no exercício do canto ou <strong>da</strong> recitação. Assim, lê-se <strong>em</strong> DT XV, VII, 13: "(...) nisienim praeuider<strong>em</strong>us cogitatione quod sequitur, non utique dicer<strong>em</strong>us. Et tamen ut praeuider<strong>em</strong>us, nonprouidentia nos instruit, sed m<strong>em</strong>oria. Nam donec finiatur omne quod dicimus, siue canimus, nihil estquod non prouisum prospectumque proferatur (…) Et putamus nos utrum dei prouidentia ead<strong>em</strong> sit qua<strong>em</strong><strong>em</strong>oria et intellegentia qui non singula cogitando aspicit sed una, aeterna et immutabili atque ineffabiliuisione complectitur cuncta quae nouit, tanta mentis infirmitate posse comprehendere?" (CCL 50A, p.478 ).87


terá de encontrar uma justificação que garanta, <strong>em</strong> simultâneo, a presença do <strong>Ser</strong> nosseres e a diferença, abissal e absoluta, entre o essas duas instâncias.De igual modo, postulando a existência de uma Sabedoria eterna, regente de to<strong>da</strong>sas formas de ser e do curso dos acontecimentos no t<strong>em</strong>po, o Hiponense terá de encontrarmodo de, nela, integrar a eterni<strong>da</strong>de e imutabili<strong>da</strong>de, ao mesmo t<strong>em</strong>po que o lugar paraca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s expressões de ser, reais e possíveis. Por isso, o contexto no qual concebe aprovidência divina supera amplamente o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> compossibili<strong>da</strong>de entre aexistência de uma lei eterna e o exercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des. Esta questão não é,efectivamente, discuti<strong>da</strong> pelo Hiponense a propósito <strong>da</strong> providência divina, mas sim <strong>da</strong>presciência de Deus. Esta quali<strong>da</strong>de do ser supr<strong>em</strong>o, por sua vez, conjuga<strong>da</strong> com aconcepção augustiniana acerca do Princípio, revela-se uma falsa questão. O reptolançado ao Hiponense pelas categorias metafísicas que assumiu é b<strong>em</strong> mais au<strong>da</strong>cioso,pois supõe integrar na <strong>Ord<strong>em</strong></strong> – termo que é agora sinónimo <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de divina - e noâmbito <strong>da</strong> providência, não apenas bens e males, efeitos de liber<strong>da</strong>des, mas o próprioexercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des, naquilo que ele t<strong>em</strong> de imprevisto e condicionante. Para logrartal objectivo, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá de admitir, por um lado, um certo dinamismo naprópria Dei<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong> negar a imutabili<strong>da</strong>de e eterni<strong>da</strong>de do Princípio Supr<strong>em</strong>o, com oqual identifica, <strong>em</strong> última instância, a noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>; por outro lado, terá de afastar <strong>da</strong>sua mundividência to<strong>da</strong> a espécie de determinismo causal que, nos seus mais diversosenunciados - fortuna, acaso, destino, predestinação, presciência -, possa inviabilizar adinâmica <strong>da</strong> expansão do <strong>Ser</strong> mediante o exercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des.O filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, nos enunciados já referidos, equaciona a noção deprovidência divina, questionando precisamente a universali<strong>da</strong>de dela, pois não se vêcomo tal princípio possa cui<strong>da</strong>r dos assuntos humanos, quando tanta incúria se verificaneles. Se, inversamente, se quiser afirmar a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> providência, defendendoque ela atinge os assuntos humanos, então é-lhe adjudica<strong>da</strong> a causali<strong>da</strong>de do mal queabun<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> dos homens. A primeira possibili<strong>da</strong>de entrega ao acaso e à fortuna osassuntos humanos. Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita a tese dos que confer<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>aracionali<strong>da</strong>de à fortuna e ironiza, quando afirma que são os mesmos que a costumampintar cega. Porém, a primeira hipótese não afirma a malvadez do Princípio Supr<strong>em</strong>o,mas apenas a impotência Dele. Na segun<strong>da</strong> suposição, uma vez que o Universo estárecheado de sofrimento, de defeito, de infortúnio e morte, ao afirmar que a providênciadivina alcança todo este âmbito de reali<strong>da</strong>des, atribui-se-lhe, afinal, a causa de tamanha88


desord<strong>em</strong>. Por isso, esta posição é considera<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> como ain<strong>da</strong> mais <strong>da</strong>ninhado que aquela outra, no que à concepção de divin<strong>da</strong>de diz respeito.Nesta medi<strong>da</strong>, seja qual for a resolução que se conjecture para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>, nele se articula, necessária e indissociavelmente, uma in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong>essência de Deus e <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal. Em De libero arbitrio, <strong>Agostinho</strong> expõe oraciocínio onde manifesta como articula estes dois el<strong>em</strong>entos. Porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a direcçãoanti-maniqueísta desta obra, e ao contrário do que seria de esperar, De libero arbitrionão parte de uma contestação sobre o desarrazoado <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> duali<strong>da</strong>de desubstâncias no Princípio mas de uma perplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão que suplica compreender deque modo Deus não é autor do mal. Efectivamente, compreender a irracionali<strong>da</strong>de deuma visão do Mundo basea<strong>da</strong> na duali<strong>da</strong>de de substâncias no Princípio não seapresentava a <strong>Agostinho</strong> uma tarefa tão difícil quanto a de justificar o modo como Deusintegra, na ordo rerum, os bens e os males 122 . Aliás, esta é, justamente, a reformulaçãodo filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, tal como é enunciado <strong>em</strong> Retractationum 123 .Na reali<strong>da</strong>de, tendo compreendido que a natureza do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o é imutável eincorruptível, Sto. <strong>Agostinho</strong> ain<strong>da</strong> lograva admitir, ao t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> sua conversãometafísica, que tudo quanto existe depende de Deus e é por Ele conhecido 124 . É, defacto, a uma providência divina, que cui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coisas porque as conhece, fazendo-asdepender do seu ser por via noética que, <strong>em</strong> Confessionum, diz ter aderido, mediante ummovimento de conversão.A noção de ordo que Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> <strong>em</strong> mente na ocasião <strong>em</strong> que abandona omaniqueísmo <strong>em</strong> direcção a uma outra visão do mundo, está ain<strong>da</strong> b<strong>em</strong> próxima <strong>da</strong>autori<strong>da</strong>de dos Platonicorum, coincidindo com a ideia de uma arrumação dos seres que122 Cf. Conf. IV, III, 6: VII, II, 3: VII, VI, 8 ( CCL 27, p. 42-43; 93-94; 97-98). O argumento de Nebrídio,perante o qual Sto. <strong>Agostinho</strong> acabará por ceder, era convincente, desacreditando o dualismo maniqueísta.Porém, Nebrídio não explicava de que modo os males estão contidos na ord<strong>em</strong> e essa questão não <strong>da</strong>vadescanso ao espírito do Hiponense.123 Cf. Retract. I, III, 1 ( CCL 57, p. 12).124 Conf. VII, IV, 6: "(...) Et quid improuisum tibi, qui nosti omnia? Et nulla natura est, nisi quia nostieam." (CCL 27, p. 95). Um elenco <strong>da</strong>s crenças partilha<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de nosmomentos que anteced<strong>em</strong> a sua conversão pode ler-se <strong>em</strong> Conf. VII, VII, 11: "(...) Sed me non sinebasullis fluctibus cogitationis auferri ab ea fide, qua credebam et esse te et esse incommutabil<strong>em</strong> substantiamtuam et esse de hominibus curam et iudicium tuum et in christo, filio tuo, domino nostro, atque scripturissanctis, quas ecclesiae tuae catholicae commen<strong>da</strong>ret auctoritas, uiam te posuisse salutis humanae ad eamuitam, quae post hanc mort<strong>em</strong> futura est." ( CCL 27, p. 99-100).89


se a<strong>da</strong>ptam uns outros, gerando conveniência, beleza, congruência entre as partes e oTodo. A incapaci<strong>da</strong>de humana de percepcionar esta ordenação é atribuí<strong>da</strong> peloHiponense, na esteira <strong>da</strong> proposta neoplatónica, à insciência do espírito humano,d<strong>em</strong>asiado apegado e habituado a conviver com categorias materiais, e pouco treinadona ascese que lhe permitirá cont<strong>em</strong>plar ca<strong>da</strong> parcela de reali<strong>da</strong>de a partir do Todo. Daí oapelo para que o espírito humano se aplique <strong>em</strong> compreender a ordo disciplinarum, atéalcançar a união com o Intelecto. A partir desse cume, o espírito adquirirá a visão dolugar próprio de ca<strong>da</strong> ser e não mais criticará a lógica que preside ao Universo,deleitando-se, b<strong>em</strong> pelo contrário, na cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> beleza que nele reina.Com efeito, é esta a ideia de ord<strong>em</strong> que está presente nos primeiros escritos doFilósofo de Hipona. A ela está subjacente a adesão ao equacionamento de cariz estéticoproposto pelos neoplatónicos para compreender a relação entre Deus e o Mundo,justificando neste a presença do mal. Esta perspectiva será, porém, completa<strong>da</strong> - e, <strong>em</strong>alguns aspectos, essencialmente modifica<strong>da</strong> - pelo sucessivo aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> noçãode ord<strong>em</strong> por parte do Hiponense, quando confrontado com a metafísica <strong>da</strong> Criação,presente na proposta bíblica-cristã.Assim, se, ao momento do abandono <strong>da</strong>s posições de Mani <strong>em</strong> direcção àinteligibili<strong>da</strong>de do cristianismo, <strong>Agostinho</strong> refere o conhecimento de Deus sobre ascriaturas como causa <strong>da</strong> existência delas, a reflexão posterior do filósofo acerca <strong>da</strong>natureza do Princípio completará esta afirmação, s<strong>em</strong> a abandonar, acrescentando, àafirmação de Confessionum - nulla natura est nisi nosti eam -, a inconcussa certeza deque a causa <strong>da</strong>s criaturas é a vontade de Deus 125 . A partir do momento <strong>em</strong> que este factose torna evidente para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o modo como o filósofo encara a noção deprovidência sofre uma inflexão, tornando-se progressivamente mais claro queprouidentia e ordo não são noções sinónimas, não obstante caminhar<strong>em</strong> estreitamenteuni<strong>da</strong>s.Em De libero arbitrio, ao in<strong>da</strong>gar sobre se Deus é, ou não, a causa do mal, Sto.<strong>Agostinho</strong> assume já, como ponto de parti<strong>da</strong> assente na sua metafísica, a Uni<strong>da</strong>de doPrincípio. Contudo, n<strong>em</strong> por isso as dificul<strong>da</strong>des para a resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> decresc<strong>em</strong> significativamente, pois a segun<strong>da</strong> hipótese, coloca<strong>da</strong> no proémio de125 A ideia é recorrente, na obra do Hiponense e pode ler-se, sintetiza<strong>da</strong>, <strong>em</strong> De div. quaest. 83, q.XXVIII, intitula<strong>da</strong> Quare deum mundum facere uoluerit: "Qui quaerit quare uoluerit deus mundumfacere, causam quaerit uoluntatis dei." ( CCL 44A , p. 35).90


De ordine, brota com to<strong>da</strong> a pujança. Se Deus é causa de tudo quanto existe, e exist<strong>em</strong> omal e a desord<strong>em</strong>, então Ele será também causa destas reali<strong>da</strong>des. Por este motivo, oFilósofo de Hipona necessita afirmar, por um lado, uma e outra vez, que o mal não é,retirando-lhe todo o assomo de consistência ontológica, mas preservando o efectivoexercício <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des; por outro lado, obriga-se a insistir no facto de que, <strong>em</strong> to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de defeituosa ou <strong>em</strong> qualquer activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ninha que as criaturas espirituaispossam praticar, é o <strong>Ser</strong> que se manifesta. Nessa medi<strong>da</strong>, tal activi<strong>da</strong>de ou defeitosujeitar-se-á ao Princípio Supr<strong>em</strong>o, sendo uma e outro administrados pela providênciadivina. Apenas fica por explicar de que modo isso é possível.As respostas de Sto. <strong>Agostinho</strong>s são multiformes. Na ver<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong>s estas questõespod<strong>em</strong> ser encara<strong>da</strong>s a partir de diferente perspectivas, diversificando as respostas. Nocaso <strong>da</strong> investigação acerca <strong>da</strong> autoria do mal, o filósofo atribui ao Princípio Supr<strong>em</strong>ode <strong>Ser</strong> a causali<strong>da</strong>de do designado mal de pena. Esta justiça penal, exerci<strong>da</strong> por parte <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de, na<strong>da</strong> acrescenta ao acto criador, tratando-se de uma consequência lógica doacto mediante o qual o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o confere existência a formas determina<strong>da</strong>s. Asformas dos seres indicam a natureza deles – as suas quali<strong>da</strong>des e limitações - e, <strong>em</strong>consequência, determinam o lugar que eles ocupam na hierarquia ontológica.É nesta medi<strong>da</strong> que Sto. <strong>Agostinho</strong> fala de uma lei natural, pela qual os seres estãodeterminados no seu modo de participar do Princípio Único de <strong>Ser</strong>. Por meio dela, aactuação dos diferentes modos de ser conforma-se ao seu modo próprio, dentro do seugénero e no âmbito <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de atribuí<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> forma específica. A ordenaçãodetermina<strong>da</strong> para ca<strong>da</strong> forma é eterna, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de do Criador. Por isso, oHiponense insiste na submissão <strong>da</strong> lei natural à lei eterna, a qual - e <strong>em</strong> coerência com omodo de judicação humana, essencialmente valorativo - é reconheci<strong>da</strong> sob forma d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>to 126 . Qual, então, o conteúdo <strong>da</strong> lei eterna e que ordena ela? Precisamente que a126 Uma definição exacta destas duas leis, divina e humana, e do modo como se articulam, pode ler-se <strong>em</strong>Contra Faustum XXII, 27: "(...) lex uero aeterna est ratio diuina uel uoluntas dei ordin<strong>em</strong> natural<strong>em</strong>conseruari iubens, perturbari uetans." [ CSEL 25/1, p. 621]. Existe uma ord<strong>em</strong> natural que corresponde aoacto Criador de Deus. Esta ord<strong>em</strong>, conheci<strong>da</strong> pelo ser humano sob forma de man<strong>da</strong>to, impera que seconserve a Criação, respeitando o "lugar natural" de ca<strong>da</strong> um dos modos de ser que nela fulguram, poisesse é o melhor dos lugares para ca<strong>da</strong> espécie ou forma. Inversamente, tal ord<strong>em</strong> proíbe que se perturbe adisposição natural dos seres e <strong>da</strong>s funções determina<strong>da</strong>s para eles e conheci<strong>da</strong>s pela razão humana. Ocarácter proibitivo <strong>da</strong> lei é o reverso do juízo <strong>da</strong> recta razão quando reconhece que o Criador é melhor doque a criatura e que a ord<strong>em</strong> realiza<strong>da</strong> por Ele para a Criação é melhor do que a que a criatura possadesejar para a mesma obra divina.91


ord<strong>em</strong> natural não seja altera<strong>da</strong>. Ora, quando o ser humano o pretende fazer,imediatamente se degra<strong>da</strong>, arrastando, <strong>em</strong> uníssono com a decisão toma<strong>da</strong>, as reali<strong>da</strong>desde que faz uso, obtendo, para si e para elas, um grau inferior, na ord<strong>em</strong>, àquele que lhescorrespondia.Esta degra<strong>da</strong>ção é relativa, pois apenas se opera no interior <strong>da</strong> mente humana.Obviamente, a proposta de <strong>Agostinho</strong> afasta-se de uma teoria <strong>da</strong>s constantesmetamorfoses do ser humano ou <strong>da</strong>s formas dos seres com os quais ele interage,incompatível com a ideia augustiniana <strong>da</strong> criação, por parte do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, de ca<strong>da</strong>forma como uma identi<strong>da</strong>de. No entanto, aquela degra<strong>da</strong>ção perverte, efectivamente, aforma humana, conferindo-lhe uma menor comunhão no <strong>Ser</strong> e na Bon<strong>da</strong>de, comoconsequência de deixar por cumprir um conjunto de capaci<strong>da</strong>des inerentes ao modoespecífico do ser humano. Mediante o movimento de degra<strong>da</strong>ção, este afasta-seefectivamente <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> sua forma. Ao fazê-lo, aparta-se <strong>da</strong> consecussão do seufim último. Ao invés, a perfeição <strong>da</strong> forma humana ocorre quando o ser humano realiza,no interior de si mesmo, a máxima expressão de ser que lhe é possível, <strong>em</strong> função <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des que lhe são <strong>da</strong><strong>da</strong>s a cont<strong>em</strong>plar mediante o exercício <strong>da</strong> uera ratio.Realmente, na óptica de <strong>Agostinho</strong>, pode atribuir-se a Deus a causa <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção<strong>da</strong> forma do ser humano, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é Ele o Princípio de todos os seres eformas. A Dei<strong>da</strong>de é, por conseguinte, a derradeira enti<strong>da</strong>de responsável, tanto pelolugar que, na hierarquia ontológica, corresponde a ca<strong>da</strong> ser, como pela existência dolivre arbítrio, dimensão <strong>da</strong> vontade humana que viabiliza a possibili<strong>da</strong>de de escolha.Ora, é precisamente esta dimensão que permite que o ser humano, de b<strong>em</strong> médio setorne <strong>em</strong> b<strong>em</strong> inferior, sofrendo por este facto. To<strong>da</strong>via, considerado desde a sua causaeficiente, é necessário notar que este sofrimento, que <strong>Agostinho</strong> designa por mal depena, não é, efectivamente, na<strong>da</strong> que Deus cause. Trata-se, antes, do reverso <strong>da</strong> me<strong>da</strong>lhaque está <strong>em</strong> poder de uma <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s, a saber, o livre arbítrio <strong>da</strong> vontade,quando, num universo de possibili<strong>da</strong>des, opta <strong>em</strong> direcção contrária àquilo que vê quedeve fazer. Inversamente, quando o ser humano actua fazendo coincidir o ser e o dever– alcançando, assim, a rectidão <strong>da</strong> vontade -, ele aperfeiçoa a sua forma, tomando posse,progressivamente, do seu fim último.Esta é, afinal, a dimensão ontológica <strong>da</strong>quilo que, <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> coeva de Sto.<strong>Agostinho</strong> – a qual não perdeu actuali<strong>da</strong>de, manifestando a dificul<strong>da</strong>de que o serhumano t<strong>em</strong> de se libertar de uma interpretação comercial <strong>da</strong> categoria <strong>da</strong> relação - sedesigna por prémios e castigos de Deus. Este é, também, um dos aspectos <strong>da</strong> noção92


augustiniana de providência divina e do modo como ela exerce a justiça, reintegrandotudo na ordenação devi<strong>da</strong>, recolocando ca<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de no seu lugar, para que o conjuntodos seres resulte harmonioso. Efectivamente, enquanto exercício de uma justiçadistributiva por parte do ser divino, o conceito augustiniano de providência na<strong>da</strong>acrescentaria a quanto a tradição greco-romana dissertou sobre o assunto. Mas, de facto,não é disso que se trata. "Prémios" e "castigos" são, afinal, para o Hiponense, o efeito deuma opção do ser humano, a qual se exerce sobre uma outra, mais radical, a do serdivino, que não cria o real de forma arbitrária, mas de acordo com uma razão e vontadeeternas. Por isso, <strong>Agostinho</strong> celebra a autonomia <strong>da</strong> vontade humana e reitera que ca<strong>da</strong>ser humano é ver<strong>da</strong>deiro e próprio autor desta opção pelo corrompimento ou peloacréscimo do seu ser.A noção de providência sofre, assim, na obra do Hiponense, mais umaespecificação. Trata-se de saber <strong>em</strong> que medi<strong>da</strong> a escolha humana é, efectivamente,livre. Com efeito, por um lado, o filósofo não pode negar a presciência divina <strong>em</strong>relação a to<strong>da</strong>s as acções humanas, na dimensão t<strong>em</strong>poral a que estas se submet<strong>em</strong>. Aoatribuir a Deus a característica de noção supr<strong>em</strong>a - e tendo <strong>em</strong> conta a condiçãot<strong>em</strong>poral <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des humanas, também a de conhecer -, o conhecimento divino teráde ser eterno, coincidindo com a Ver<strong>da</strong>de. Ora, a necessária presciência de Deus poderiacomprometer o exercício livre <strong>da</strong> escolha humana, para qu<strong>em</strong> considere que oconhecimento divino <strong>da</strong>s acções futuras interfere na decisão humana que leva àrealização dessas mesmas acções. Para desenre<strong>da</strong>r esta objecção, Sto. <strong>Agostinho</strong>desvincula o conhecimento de presciência - tanto o humano, como o divino - e aintervenção do conhecimento, quer divino, quer humano, <strong>em</strong> qualquer liber<strong>da</strong>de alheia àde qu<strong>em</strong> exerce o seu livre arbítrio.To<strong>da</strong>via, o argumento mais radical - e, porventura, mais convincente - acerca <strong>da</strong>efectiva independência entre presciência divina e liber<strong>da</strong>de de escolha baseia-se, umavez mais, na eterna vontade de Deus, causa <strong>da</strong> Criação, mediante a qual to<strong>da</strong>s as formasexist<strong>em</strong> e actuam de acordo com a sua natureza específica. Assim, se o ser humanopossui uma vontade que se exerce no t<strong>em</strong>po mediante o livre arbítrio, e esse factocorresponde à expressão de uma vontade eterna do Criador, então o próprio Deushaveria de se contradizer se, mediante a Sua presciência, não permitisse o livreexercício <strong>da</strong> escolha humana. É precisamente porque o Criador t<strong>em</strong> presciência de umavontade humana, contingente e livre, que se garante que ela se exerce enquanto tal.Afinal, a presciência divina, associa<strong>da</strong> ao acto criador do ser supr<strong>em</strong>o, converte-se no93


argumento mais radical para não atribuir a Deus n<strong>em</strong> a causa, n<strong>em</strong> o efeito do livreexercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana.Com a discussão quer dos argumentos <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> presciência divina e <strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de humana, quer dos supra referidos, acerca <strong>da</strong> providência divina e do exercíciode uma justiça distributiva por parte de Deus, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste sobre um aspecto<strong>da</strong> essência divina que assume carácter de novi<strong>da</strong>de, quando contrastado com aspropostas filosóficas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de: a eterni<strong>da</strong>de do ser divino, coeterna com avontade divina, causa eficiente <strong>da</strong> Criação.De facto, acerca <strong>da</strong> noção de providência, a cultura antiga, mormente naspropostas neoplatónica e estóica, insistira, acima de tudo, na existência de uma RazãoUniversal que tudo domina, governando a reali<strong>da</strong>de com uma lógica tão supr<strong>em</strong>a quantoférrea. Sto. <strong>Agostinho</strong> introduz, no modo como concebe a relação entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o eos diferentes modos de existência, afinal, na relação entre o Uno e o Múltiplo, doisaspectos fun<strong>da</strong>mentais: a dependência ontológica dos seres <strong>em</strong> relação ao Uno e,deriva<strong>da</strong>mente, a r<strong>em</strong>issão <strong>da</strong> causa dos seres para uma Vontade de <strong>Ser</strong>, Soberana eGratuita. A noção de providência divina desloca-se, assim, do plano <strong>da</strong> razão pura, paraintegrar o domínio <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des, Incria<strong>da</strong> e cria<strong>da</strong>. Por este motivo, <strong>Agostinho</strong> terá deincluir, na ordo rerum, não apenas a racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação do livre arbítrio, mas opróprio efeito do exercício efectivo <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s. A noção augustiniana deord<strong>em</strong> será concebi<strong>da</strong> desde uma perspectiva dinâmica do ser e não a partir de umprincípio de harmonia preestabeleci<strong>da</strong>, do qual tudo parte e para o qual tudo converge.Todos estes factores, inerentes a uma compreensão racional <strong>da</strong> metafísica ju<strong>da</strong>icacristã <strong>da</strong> Criação, contribu<strong>em</strong> para complexificar os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> mundividênciaaugustiniana. Ao introduzir dinamismo na ord<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá de se precaverpara não negar a imutabili<strong>da</strong>de e omnipotência divinas, <strong>em</strong> face <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s,indicando os limites do poder destas vontades. Ao proclamar a positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> diferençaontológica, o filósofo terá de encontrar argumentos para fazer que ela permaneçaescatologicamente, a fim de não proclamar uma recondução de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de ao Unoindiferenciado. E, inscrevendo a acção divina no âmago <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de de todos os seres,garantido-lhes permanência, o Hiponense terá de justificar o modo como se dá talpresença do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o nos seres criados, preservando a diferença.Este último aspecto, a garantia <strong>da</strong> permanência de ca<strong>da</strong> forma no ser que lhe foiatribuído, parece indicar aquela acepção <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que melhor se conjuga com a noçãoaugustiniana de providência. De facto, tratando-se de uma activi<strong>da</strong>de do Uno sobre o94


múltiplo, e de acordo com os atributos que o Hiponense confere à própria essência doUno - Vi<strong>da</strong>, onde <strong>Ser</strong>, Inteligência e Vontade se dão <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de -, a providênciadivina não se pode dissociar desta tríplice activi<strong>da</strong>de, específica <strong>da</strong> essência de Deus,pois de outra forma poder-se-ia considerar uma criatura, uma reali<strong>da</strong>de intermédia,coloca<strong>da</strong> entre Deus e o Mundo, e não uma acção divina, eterna e cont<strong>em</strong>porânea <strong>da</strong>Criação.Admitamos que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, esta é a noção mais ampla de providência: apermanente vontade divina de conservar os seres no modo específico que foi <strong>da</strong>do aca<strong>da</strong> um, facto que exige, afinal, a presença permanente do <strong>Ser</strong> divino no ser <strong>da</strong>scriaturas. Esta activi<strong>da</strong>de de sustentação no ser é a que faz que as criaturas nãoregress<strong>em</strong> ao na<strong>da</strong>, o que aconteceria se o Criador lhes retirasse, pelo mais breveinstante, o alento <strong>da</strong> permanente presença delas <strong>em</strong> si mesmo 127 . Por sua vez, tal acçãopermanente do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o no ser criado revela, já de si, um cui<strong>da</strong>do essencial, dir-seiaque um nível básico, radical e ôntico, de atenção, por parte de Deus, <strong>em</strong> relação atodos os seres e, portanto, também <strong>em</strong> relação aos humanos. É neste sentido que a127 Em De diu. quaest. 83, q. XXIV, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que a providência divina não é outra reali<strong>da</strong>dediferente do B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, pelo qual to<strong>da</strong>s as criaturas são: " (...) Porro illud bonum, cuius participationesunt bona cetera quantumcumque sunt, non per aliud, sed per se ipsum bonum est, quam diuinam etiamprouidentiam uocamus." (CCL 44A, p. 29). Compreender a noção de prouidentia exige explicar de queforma o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, imutável e eterno, se dá a participar a to<strong>da</strong>s as formas boas, mas mutáveis. <strong>Ser</strong>ána análise <strong>da</strong> função criadora <strong>da</strong> Sabedoria divina, ou Verbo de Deus, que esta concepção <strong>da</strong> providênciase virá a esclarecer, sumindo-se na noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Sto. <strong>Agostinho</strong> começara a vislumbrar esta soluçãono confronto com a leitura do Livro <strong>da</strong> Sabedoria, a qual conjugará com a sua reflexão sobre a naturezado Verbo. Não obstante esta concepção plena de ord<strong>em</strong> só se desenvolver <strong>em</strong> obras de maturi<strong>da</strong>de, a ideiade uma manutenção <strong>da</strong>s criaturas no ser é já visível, v. gr., <strong>em</strong> Solil. I, I, 2, na invocação introdutória –«(...)deus per qu<strong>em</strong> omnia, quae per se non essent, tendunt esse» (CSEL 89, p. 4). Inversamente, comoescreve <strong>em</strong> De moribus II, VII, 9, a propósito <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s criaturas tender<strong>em</strong> ao não ser, a ord<strong>em</strong>cósmica é claramente limita<strong>da</strong> pela providência divina: «(...) Dictum est enim: nihil per diuinamprouidentiam ad id ut non sit peruenire permittitur » ( CSEL 90, p. 95). Porém, só uma análise <strong>da</strong> noçãode Sapientia Dei e <strong>da</strong> Criação In Principio poderá esclarecer o modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe estapermanência de Deus no íntimo de ca<strong>da</strong> forma e no conjunto do Universo. Note-se, ain<strong>da</strong>, que na obra doHiponense é frequente ver a noção de prouidentia associa<strong>da</strong> ao comentário <strong>da</strong> expressão de Io., 5: 7,«pater meus usque nunc operatur». Para o filósofo, compreender esta noção consiste <strong>em</strong> penetrar com amente no modo como o Criador faz que as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s particip<strong>em</strong> na perene eficácia <strong>da</strong> suaSabedoria, mediante a qual aquelas nasc<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> dia e subsist<strong>em</strong> nos seus t<strong>em</strong>pos.95


noção augustiniana de providência auxilia o equacionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,não obstante não esgotar todos os aspectos <strong>da</strong> questão.Ora, para que Sto. <strong>Agostinho</strong> possa afirmar que uma tal intervenção divina seencontra, de modo permanente e estável, no âmago <strong>da</strong>s criaturas, terá de resolver aquestão <strong>da</strong> mediação. Não o fará como Plotino, que instaura a Alma do Mundo comohipóstase que garante a harmonia cósmica, para que o mundo sensível jamais perca asua s<strong>em</strong>elhança com o ✂ arquetípico. Com esta hipóstase, Plotino não querresolver a questão <strong>da</strong> mediação entre o Uno e o Múltiplo, mas apenas preservar o✂ de uma degra<strong>da</strong>ção ontológica, que lhe adviria do contacto com a matéria.Por isso, o Alexandrino delega tal tarefa <strong>em</strong> uma outra hipóstase.Para justificar o modo de presença do <strong>Ser</strong> nos seres, Sto. <strong>Agostinho</strong> também nãoelege a proposta de Platão <strong>em</strong> Timeu, não obstante o encómio que tece ao Fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong>Acad<strong>em</strong>ia e à concepção platónica do Mundo, mormente à esboça<strong>da</strong> na referi<strong>da</strong> obra 128 .Com efeito, a mediação, aí proposta, é tarefa do d<strong>em</strong>iurgo, um deus menor que, fazendouso <strong>da</strong>s formas puras, as distribui por uma matéria predetermina<strong>da</strong>. Um tal ente produzos artefactos que compõ<strong>em</strong> o Universo, mas não lhes confere <strong>Ser</strong>. O d<strong>em</strong>iurgo platónicoé um bom fabricante, mas não cria efectivamente: não concede ser, mas distribuiformas, estabelecendo um hiato – que Sto. <strong>Agostinho</strong> anulará - entre estas duascategorias últimas. O d<strong>em</strong>iurgo não pode conferir <strong>Ser</strong>, pois o <strong>Ser</strong> não é atributoespecífico dele por essência. Inversamente, para <strong>Agostinho</strong>, o Criador de to<strong>da</strong>s asformas é Aquele que É. O d<strong>em</strong>iurgo não deixa, afinal, de ser uma figura mítica, produtode uma fabulação. Trata-se, efectivamente, de uma criação do espírito humano. Desde aperspectiva augustiniana, <strong>em</strong> última análise Platão socorre-se de um phantasma pararesponder à questão <strong>da</strong> relação entre o Uno e o Múltiplo, para a qual não fora capaz deencontrar melhor resposta.Para sustentar a acepção de providência como activi<strong>da</strong>de divina de conservaçãodos seres, realiza<strong>da</strong> quer ao nível singular, quer ao nível público, comunitário ehistórico, referente ao curso dos t<strong>em</strong>pos, <strong>em</strong> todos os aspectos e até ao detalhe maisínfimo, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá de solucionar o enigma que encerra uma tal relação,justificando o modo como o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, permanecendo <strong>em</strong> si mesmo imutável,eterno, absolutamente Outro, está, simultaneamente, presente nas criaturas, sustentandoasno ser, alentando-as no agir, administrando e regendo os acontecimentos humanos no128 Cf. De ciu. dei VIII, XI ( CCL 47, p. 228).96


curso <strong>da</strong> história. Afinal, a articulação racional do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> situa-se, paraSto. <strong>Agostinho</strong>, no cerne <strong>da</strong> Filosofia, pois identifica-se, precisamente, com a soluçãoque se apresente para a relação entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas dosseres, imersas no t<strong>em</strong>po.A eficácia <strong>da</strong> construção de um discurso, racional e coerente, que satisfaça ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, formulado na interrogação acerca do alcance do cui<strong>da</strong>do de Deussobre os assuntos humanos, assumirá, na obra do Hiponense, o rosto <strong>da</strong> interrogaçãosobre a mediação entre o Uno e o Múltiplo. Afinal, fora para esta questão que aspropostas filosóficas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de não encontraram uma razão satisfatória,suficient<strong>em</strong>ente ampla e universal, de forma a, s<strong>em</strong> deixar de afirmar a efectiva eAbsoluta Diferença do Uno, poder<strong>em</strong> sustentar, simultaneamente, a real presença Delenas suas obras e na infinita diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s expressões que elas pod<strong>em</strong> assumir. Umavez articulados os el<strong>em</strong>entos para vali<strong>da</strong>r esta relação, a noção de providência ocupará,na metafísica augustiniana, um lugar de somenos, sendo substituí<strong>da</strong> pela noção de<strong>Ord<strong>em</strong></strong>, no seu sentido mais pleno, ou seja, entendi<strong>da</strong> como Princípio que preserva aIdenti<strong>da</strong>de na Diferença – <strong>Relação</strong>.Por ora, e na indigência de outros el<strong>em</strong>entos que serão objecto de análiseposterior, nomea<strong>da</strong>mente acerca do modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe as noções deSabedoria divina e de Criação, cabe uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> de carácter intuitivo, para a qualpode servir de fio condutor uma pequena querela de âmbito filológico, levanta<strong>da</strong> por G.Madec, a propósito de uma breve passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> tradução de Retractationum, elabora<strong>da</strong>por G. Bardy 129 . Em causa está a tradução do enunciado filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> - utrumomnia bona et mala diuinae prouidentiae ordo contineat.Na reali<strong>da</strong>de, do ponto de vista filológico, são possíveis as duas interpretações,aponta<strong>da</strong>s por aquelas duas autori<strong>da</strong>des de referência, no estudo e comentário de Sto.<strong>Agostinho</strong>. É um facto que a rectificação de Madec sobre a tradução de Bardy confereclari<strong>da</strong>de ao referido passo de Retractationum. Porém, para além de não se ver, de modoimediato, de onde brotaria o escân<strong>da</strong>lo de que Madec acusa a afirmação que resulta <strong>da</strong>129 Retractationum, texto <strong>da</strong> ed. beneditina reproduzido <strong>em</strong> Bibliothèque augustinienne.Œuvres de saintAugustin 12, G. BARDY traduz: "l'ordre renferme-t-il tous les biens et les maux de la Providencedivine? ». G. MADEC levanta, com pertinência, um probl<strong>em</strong>a de tradução: "Ainsi posé, la question neserait-elle pas plus scan<strong>da</strong>leuse que la solution manichéene? Rectifions, donc la traduction: ' l'ordre de laProvidence divine englobe-t-il tous les biens et les maux?'" in "Thématique augustinienne de laprovidence" : Revue des études augustiniennes 41 (1995), p. 292.97


tradução proposta por Bardy, esta mesma poderia conduzir o raciocínio acerca <strong>da</strong> noçãoaugustiniana de ord<strong>em</strong> justamente na direcção que acabamos de enunciar.Com efeito, ao considerar a ord<strong>em</strong> como referência derradeira dos bens e dosmales <strong>da</strong> divina providência, a tradução de Bardy estabelece, implicitamente, umahierarquia entre a providência e a ord<strong>em</strong>, Princípio Supr<strong>em</strong>o, no qual tudo se resolveria.O escân<strong>da</strong>lo t<strong>em</strong>ido por Madec derivaria, porventura, do facto de se afirmar que bens <strong>em</strong>ales seriam proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> providência divina. Contudo, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma issomesmo, s<strong>em</strong> qualquer dificul<strong>da</strong>de. Tendo definido o mal como deficiência, e nãoolvi<strong>da</strong>ndo a convivência dos seres humanos com o sofrimento e a desord<strong>em</strong>, priuatioboni, o Hiponense admite - e o contrário seria abrir caminho ao dualismo de Mani - quebens e males são proprie<strong>da</strong>de, administração, regência <strong>da</strong> providência divina. A não serassim, onde estariam? Fora do alcance de Deus? Entregues ao domínio humano?Subsistentes, um e outro, abrindo a porta a um conflito, eterno e igualmente subsistente?Para o Hiponense, é ver<strong>da</strong>de que bens e males são <strong>da</strong> divina providência,invocando aqui um genitivo de posse. Tanto assim é que essa activi<strong>da</strong>de divina osadministra de modo absolutamente impenetrável para o entendimento humano e, até,desconcertante, <strong>em</strong>pregando uma lógica outra <strong>da</strong> humana e actuando de modo invisível,inacessível mesmo para as mentes purifica<strong>da</strong>s e sábias, <strong>da</strong><strong>da</strong>s à reflexão sobre simesmas, converti<strong>da</strong>s, forma<strong>da</strong>s na luz do Verbo. Aquilo que, <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> corrente, sedesigna por bens e males é, na metafísica augustiniana, posse <strong>da</strong> divina providência.Nesse mesmo facto se manifesta a função regente e administrativa <strong>da</strong> providência, <strong>da</strong>qual faz parte o exercício <strong>da</strong> justiça distributiva, nos moldes já descritos. To<strong>da</strong>via, étambém um facto que a orientação desta regência é insondável, para a mente humana 130 .130 Veja-se, por ex<strong>em</strong>plo, De diu. quaest. 83, q. XXVII onde se lê: " Fieri potest ut per malum homin<strong>em</strong>diuina prouidentia et puniat et opituletur. (...) It<strong>em</strong> fieri potest ut diuina prouidentia per homin<strong>em</strong> bonumet <strong>da</strong>mnet et adiuuet, sicut ait apostolus: aliis sumus odor uitae in uitam, aliis aut<strong>em</strong> odor mortis inmort<strong>em</strong>." ( CCL 44A, p. 33). Enquanto sinónimo de uma disposição t<strong>em</strong>poral <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de divina, fazendoque o curso dos t<strong>em</strong>pos se ordene à máxima expressão de bon<strong>da</strong>de, não obstante se ocultar<strong>em</strong> os meios eos modos, lê-se, v. gr., De div. quaest. 83, q. LXII: " (…) Vt aut<strong>em</strong> quae<strong>da</strong>m latenter, quae<strong>da</strong>m uero peruisibil<strong>em</strong> creaturam uisibiliter deus operetur, pertinet ad gubernation<strong>em</strong> prouidentiae, qua omnes diuinaeactiones locorum t<strong>em</strong>porumque ordines distinctione pulcherrima peraguntur, cum ipsa diuinitas necteneatur nec migret locis, nec ten<strong>da</strong>tur uarieturue t<strong>em</strong>poribus." (CCL 44A, p. 134). E, <strong>em</strong> De ciu. dei XI,XVII, depois de retomar os el<strong>em</strong>entos expostos <strong>em</strong> LA III, relativos à bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s naturezas e acorrupção que, sobre elas, exerce o vício, escreve: " (...) Deus, sicut naturarum bonarum optimus creator98


Se <strong>em</strong> De ordine a metodologia para alcançar a perspectiva de Totali<strong>da</strong>de ecompreender a ordo rerum era apresenta<strong>da</strong> como custosa, mas viável, reserva<strong>da</strong> a umaelite, mas possível, posteriormente, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> identificar <strong>Ord<strong>em</strong></strong> eSabedoria divina, as vere<strong>da</strong>s <strong>da</strong> providência, enquanto aspecto desta Sapiência supr<strong>em</strong>a,não mais estarão ao alcance do entendimento humano, pelo menos de modo íntegro ecabal 131 .Na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a concepção augustiniana de providência se identifica com umaspecto <strong>da</strong> Sapiência divina, exercendo-se na relação com o mundo criado, ela mergulhano horizonte <strong>da</strong> inefabili<strong>da</strong>de e a sua activi<strong>da</strong>de reveste-se de mistério. Esse facto éinerente à transcendência divina, por um lado e, por outro, à extensão <strong>da</strong> própriaprovidência, que abrange os entes singulares, desde a criatura mais sublime à expressãomais ínfima de reali<strong>da</strong>de. Ela percorre, assim, <strong>em</strong> simultâneo, todos os graus <strong>da</strong>hierarquia ontológica, os quais estão imersos no curso do t<strong>em</strong>pos. Inversamente, estaactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Sapiência é Eterna. Por isso, ela pode percorrer a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e ocurso dos t<strong>em</strong>pos : a fine usque ad fin<strong>em</strong> fortiter, disponit omnia suauiter, quae in s<strong>em</strong>anens, innouat omnia 132 .A acção <strong>da</strong> providência é inefável quando inclui os males e os devolve à ord<strong>em</strong>,de acordo com uma lei eterna que não permite que eles estejam onde não dev<strong>em</strong> 133 . Éinefável quando, exercendo a sua activi<strong>da</strong>de sanante, condena os que praticam o mal,est, ita malarum uoluntatum iustissimus ordinator ut, cum illae male utuntur naturis boni, ipse bene utaturetiam uoluntatibus malis ." (CCL 48, p. 336-337).131 Eis alguns aspectos de ord<strong>em</strong> cósmica, referidos por Sto. <strong>Agostinho</strong>, nos quais a acção <strong>da</strong> divinaprovidência escapa ao conhecimento humano. Cf. De div. quaest. 83, q. XXX ( CCL 44A, p. 38-40), ondese refere que a providência divina rege a utili<strong>da</strong>de dos bens criados, a qual pode não ser conheci<strong>da</strong> peloser humano. Com esta afirmação, o filósofo responde aos que perguntam pela utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s moscas,mosquitos, e outras formas de existência que, aparent<strong>em</strong>ente, são nocivas ou molestas para os humanos eque levantariam a suspeita acerca <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de universal <strong>da</strong> Criação ( cf. v. gr. De gen. cont. Manich. I,XVI, 25-26 : PL 34, 185-186; CSEL 91, p. 91-94; De gen. ad litt. III, 14 : CSEL 28/1, p. 79).132 VR XXV, 46: " (...) diuina prouidentia non solum singulis hominibus quasi priuatim, sed universogeneri humano tanquam publice consulit.” (CCL 32, p. 216). A providência sobre as reali<strong>da</strong>dessingulares, prossegue <strong>Agostinho</strong>, é conheci<strong>da</strong> por Deus e por aqueles seres dotados de razão sobre osquais recai a acção dela. Mas a acção divina sobre o género humano só pode ser conheci<strong>da</strong> mediante ahistória e a profecia, duas dimensões cognitivas que, pela sua relação com o curso dos t<strong>em</strong>pos, exig<strong>em</strong> oexercício <strong>da</strong> crença. Por isso, será necessário encontrar um critério para determinar <strong>em</strong> que homens elivros se deve acreditar, para prestar culto ao único Deus ver<strong>da</strong>deiro.133 Cf. DO II, IV, 11( CCL 29, p. 113).99


exercita os justos na virtude e aperfeiçoa os b<strong>em</strong>-aventurados 134 . É inefável quandoadministra os dois amores que se misturam no decurso t<strong>em</strong>poral do género humano econstró<strong>em</strong> as duas Ci<strong>da</strong>des 135 . Não obstante o desconcerto <strong>da</strong> mente humana perante oscontrastes e as aporias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana 136 , o recurso <strong>da</strong> inteligência à fé e à profeciapermite confiar na acção de uma Sabedoria supr<strong>em</strong>a. Esta não se limita a reconduzirca<strong>da</strong> coisa ao seu lugar mas, enquanto autora dos próprios seres e <strong>da</strong>s leis intrínsecasque reg<strong>em</strong> o Universo, orienta-os de modo excelente, <strong>em</strong>pregando, nessa activi<strong>da</strong>de,todos os recursos <strong>da</strong> sua omnipotência.Aderindo ao princípio metafísico <strong>da</strong> creatio bíblica, Sto. <strong>Agostinho</strong> mantém-seconvicto de que a providência divina é causa <strong>da</strong> beleza do Universo, ao garantir a suaíntima ordenação 137 . Platão e Plotino, recor<strong>da</strong> o Hiponense, associavam a providênciauniversal à beleza do Universo 138 . To<strong>da</strong>via, o conceito de ordo proposto pelo Filósofode Hipona, s<strong>em</strong> negar a existência de uma congruentia, ultrapassa amplamente a ideiade uma mera adequação entre as partes e o Todo ou do ajuste de uns seres a outros, porrazões de conveniência ou utili<strong>da</strong>de. De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> insere, na noção deord<strong>em</strong>, inclusivamente, aquilo que parece contrariar o curso natural dosacontecimentos 139 . Porém, o espírito humano só cont<strong>em</strong>pla esta beleza, esta harmonia e134 Cf. VR XXIII, 44 ( CCL 32, p. 214).135 De gen. ad litt. XI, 15: "(...) Hi duo amores (...) distinxerunt conditas in genere humano ciuitates duassub admirabili et ineffabili prouidentia dei cuncta, quae creat, administrantis et ordinantis, alteramiustorum, alteram iniquorum." ( CSEL 28/1, p. 347-348: it.n.).136 Os ex<strong>em</strong>plos de DO II, V, 14, descendo à casuística, são paradigma deste desconcerto: "(...) cur aliusoptet liberos habere nec habeat, alius uxoris nimia fecunditate torqueatur, egeat ille pecunia, qui largiriliberaliter multa paratus est, ei que defossae incubet macer et scabiosus fenerator, ampla patrimonialuxuries dispergat atque diffun<strong>da</strong>t, uix toto die lacrimans mendicus nummum impetret, alium honorextollat indignum, lucidi mores abscon<strong>da</strong>ntur in turba ." ( CCL 29, p. 115).137 Cf. De mus. VI, XVII, 56 ( PL 32, 1191); VR XXVIII, 51 ( CCL 32, p. 220-221); De diu. quaest. 83, q.XXXVI ( CCL 44A , p. 54-58).138 Cf. De ciu. dei X, XIV; X, XVII ( CCL 47, p. 288; p. 291-292).139 É o caso <strong>da</strong>quilo a que designa por milagres: um fenómeno que <strong>em</strong>erge, no Universo, praeter rerumordin<strong>em</strong>. Em In Iohan. Ev. Tract. XXIV, 1, encontra-se uma exposição exacta do que se quer aquienunciar: " (...) quia enim ille non est talis substantia quae uideri oculis possit, et miracula eius quibustotum mundum regit uniuersamque creaturam administrat, assiduitate uiluerunt, ita ut pene n<strong>em</strong>o digneturadtendere opera Dei mira et stupen<strong>da</strong> in quolibet s<strong>em</strong>inis grano; secundum ipsam suam misericordiamseruauit sibi quae<strong>da</strong>m, quae faceret opportuno t<strong>em</strong>pore praeter usitatum cursum ordin<strong>em</strong>que naturae, utnon maiora, sed insolita uidendo stuperent, quibus quotidiana uiluerant. Maius enim miraculum est100


congruência, quando é capaz de julgar o real, não segundo o seu próprio entendimento,estreito e defectível, mas segundo o entendimento de Deus 140 . Este fenómeno, que nãoidentifica a mente humana com a Sabedoria divina, mas tão-só faz entrar aquela <strong>em</strong>comunhão com esta, realiza-se, para o Hiponense, na mente humana ordena<strong>da</strong>. De facto,só nela mora a sabedoria.Entre os argumentos de Sto. <strong>Agostinho</strong> para equacionar a providência divina e ocui<strong>da</strong>do dos seres humanos insere-se, precisamente, a referência à Incarnação do Verbo.Este princípio metafísico, fulcral na articulação que ostenta para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,afasta decisivamente a concepção augustiniana de ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>quelas propostas que acultura antiga apresentara para a resolução <strong>da</strong>s aporias enuncia<strong>da</strong>s no filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong>causa.O <strong>Ser</strong>mão sobre a providência divina, cujo texto foi fixado por Dolbeau <strong>em</strong>1995 141 , sintetiza os aspectos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> noção augustiniana de providência.Comentando a atitude néscia dos que pensam que Deus não toma a seu cargo osassuntos humanos, o filósofo desafia-os a mostrar por que razão pensam desse modo eobtém como resposta a afirmação de que a providência divina necessariamente deve tertudo <strong>em</strong> ord<strong>em</strong>, o que não se verifica nas inúmeras perturbações a que está sujeita avivência humana. Os bons padec<strong>em</strong> males, os maus viv<strong>em</strong> felizes. Porém, <strong>Agostinho</strong>gubernatio totius mundi, quam saturatio quinque millium hominum de quinque panibus ; et tamne haecn<strong>em</strong>o mitatur ; illud mirantur hominum non quia maius est, sed quia rarum est." (CCL 36, p. 244). Ocarácter inusitado destes fenómenos justifica a afirmação de que se dão praeter ordin<strong>em</strong> serie. To<strong>da</strong>via,Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong> o conceito, explicando-o à luz <strong>da</strong> omnipotência divina e <strong>da</strong>s virtuali<strong>da</strong>des doser, as quais não se manifestam to<strong>da</strong>s simultaneamente, mas estão to<strong>da</strong>s potencialmente conti<strong>da</strong>s naord<strong>em</strong> do ser, não obstante se manifest<strong>em</strong>, no t<strong>em</strong>po, contra naturae usitatum cursum ( cf. De gen. ad litt.VI, 14: CSEL 28/1, p. 189). V., a este propósito, os estudos de G. BARDY & F. THONNARD, “L<strong>em</strong>iracle <strong>da</strong>ns la théologie augustinienne” in Bibliothèque augustinienne.Œuvres de saint Augustin 37,795-801, e de Chris GOUSMETT, “Creation Order and Miracle According to Augustine”: EvangelicalQuarterly 60 (1988) 217-240.140 A expressão é exactamente esta, tal como se pode ler <strong>em</strong> De diu. quaest. 83, q. XXX: " (...) Iudicataut<strong>em</strong> de omnibus quibus utitur; de solo deo non iudicat, quia secundum deum de ceteris iudicat." (CCL44A, p. 40). Aliás, trata-se de um corolário <strong>da</strong> identificação augustiniana entre Deus e a Ver<strong>da</strong>de,princípio de exercício de activi<strong>da</strong>de cognitiva, como também se lê <strong>em</strong> VR XXXI, 58: " (…) Vt enim noset omnes animae rationales secundum ueritat<strong>em</strong> de inferioribus recte iudicamus, sic de nobis, quandoeid<strong>em</strong> cohaer<strong>em</strong>us, sola ipsa ueritas iudicat. " ( CCL 32, p. 225).141 Cf. F. DOLBEAU, " Sérmon inédit de saint Augustin sur la providence divine" : Revue des étudesaugustiniennes 41 ( 1995), p. 268, n. 7.; V. , também CPL, p. 124.101


faz notar que também se verificam casos <strong>em</strong> que os bons viv<strong>em</strong> felizes e os maus sãocastigados. Ora, aqui reina a providência. Mas os que objectam contra a providênciaquer<strong>em</strong> que a própria injustiça seja um fenómeno universal e verificam que esta falta dejustiça an<strong>da</strong> mistura<strong>da</strong> e sujeita à inconstância dos t<strong>em</strong>pos.Depois de criticar a presunção dos que, por insciência, negam que a providênciadivina alcance as reali<strong>da</strong>des humanas, o Hiponense começa por apelar para o facto <strong>da</strong>Criação. É a Deus que o ser humano deve a existência, b<strong>em</strong> como a sua formaprópria 142 . Recor<strong>da</strong>ndo a perfeição <strong>da</strong> hierarquia ontológica, que procede do facto <strong>da</strong>Criação, e a perfeita realização dela no ser humano, constans ex anima et corpore, Sto.<strong>Agostinho</strong> passa a descrever aspectos <strong>da</strong> ordenação dos seres que se manifestam nosd<strong>em</strong>ais âmbitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e nos graus ínfimos de ser, segundo o modelo platónico dedisposição <strong>da</strong>s formas - os graus esse, uiuere, intellegere, ao qual o Hiponense recorrede modo habitual, quando quer referir a ord<strong>em</strong> como hierarquia 143 . O argumento básicopara defender a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> providência é, no <strong>Ser</strong>mo Dolbeau 29, a dependênciaontológica de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> função de uma acção do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o, Criador,mediante uma Sabedoria que <strong>Agostinho</strong> qualifica de magnifica et omnifica. Recor<strong>da</strong>ndoo passo bíblico de Sap. 8: 1, justifica a omni-abrangência desta providência pelo factode, à s<strong>em</strong>elhança do que acontece na execução de uma arte humana, na Sabedoria divinaestar<strong>em</strong> conti<strong>da</strong>s as razões imutáveis e invisíveis <strong>da</strong>s coisas mutáveis e visíveis 144 .Recorrendo ao princípio <strong>da</strong> permanência, no <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, <strong>da</strong>s rationes aeternaeque garant<strong>em</strong> o ser de to<strong>da</strong>s as criaturas, Sto. <strong>Agostinho</strong> justifica o alcance universal <strong>da</strong>providência divina, identifica<strong>da</strong> com a Sabedoria, artífice do Mundo 145 , através <strong>da</strong>142 Cf. <strong>Ser</strong>mo Dolbeau 29, 3 [Revue des études augustiniennes 41 (1995), p. 282].143 Cf. Ibid. §§ 4-7, p. 283-285.144 Ibid. § 7 : " Neque enim esset qualiscumque uita alicubi facta, si non eam fecisset uita non facta. Necin corpusculis animantium (...) ordo tam manifestius exsisteret nisi creante illo cuius magnifica et, si dicipotest, omnifica sapientia, continens in se tamquam inarte positas mutabilium uisibiliumque rerumimmutabiles inuisibilesque rationes, adtingit, sicut scriptum est, adtingit a fine usque ad fin<strong>em</strong> fortiter etsuauiter.” (p. 285).145 Esta tese é exposta <strong>em</strong> De diu. quaest. 83, q. XLVI, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> apresenta o modo comocompreende a relação entre os seres e as ideias particulares deles, <strong>em</strong> Deus ( CCL 44A, p. 70-73). Não setrata de encontrar fun<strong>da</strong>mento universal para a reali<strong>da</strong>de particular, mas de encontrar fun<strong>da</strong>mentoontológico para o ser <strong>da</strong>s coisas. Para o filósofo, as ideias, ou rationes aeternae, não são arquétipos <strong>da</strong>scoisas. Sobre a questão 46, De ideis, veja-se M. GRABMANN, “Des hl. Augustinus quaestio de ideis inihrer inhaltlichen und geschichtlichen Bedeutung”: Philosophisches Jahrbuch (1930) 297-307; A.102


eterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quelas razões. É mediante tais razões que se estabelece a conexão íntimaentre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e ca<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> e, também, entre o mesmo Princípio e todosos seres entre si, no decurso dos t<strong>em</strong>pos. Da<strong>da</strong> a relação entre a eterni<strong>da</strong>de destasrationes essendi e a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s criaturas, o Filósofo de Hipona pode afirmar que,à prouidentia, se confia a ord<strong>em</strong> e a administração de todos os acontecimentos not<strong>em</strong>po, ou seja, a disposição t<strong>em</strong>poral 146 . To<strong>da</strong>via, a noção de ordo, enquanto justifica amediação entre o Uno e o Múltiplo, entre o <strong>Ser</strong> e os seres, é mais ampla do que areferi<strong>da</strong> disposição.Na Epistula CLXVI, a propósito de uma verificação corrente, perante odesconcerto <strong>da</strong> per<strong>da</strong>, considera<strong>da</strong> ext<strong>em</strong>porânea, de uma vi<strong>da</strong> humana, - "Quare facitanimas eis, quos nouit cito moriturus?" -, questão que o espírito humano solevacriticando, a um t<strong>em</strong>po, presciência e providência divinas, Sto. <strong>Agostinho</strong> respondeapelando novamente para a inefabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Sabedoria divina. Só ela conhece de qu<strong>em</strong>odo a duração <strong>da</strong>s existências, maior ou menor, concorre para a harmonia do conjunto.A proposta de Sto. <strong>Agostinho</strong> para a compreensão, mesmo se limita<strong>da</strong>, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong><strong>da</strong>s coisas, exige que a mente humana possa penetrar na Eterni<strong>da</strong>de e aceder àcont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>s razões eternas. Para a inteligência humana fica o desafio dedescortinar a essência <strong>da</strong> ordo rerum, na qual a providência se inclui, e de encontrarforma de, mesmo de maneira ténue, captar o modo como as reali<strong>da</strong>des, mutáveis et<strong>em</strong>porais, são cria<strong>da</strong>s por uma omnipotência, estável e eterna, e não mediante novasdecisões e raciocínios do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o 147 . Esta era, com efeito, a essência <strong>da</strong> crítica dePlotino ao modelo de criação e, consequent<strong>em</strong>ente, de providência, proposto pelo Timeude Platão - o recurso, não à ♓♋ de uma Inteligência Supr<strong>em</strong>a, mas àprudentia ou prouidentia do d<strong>em</strong>iurgo. Sto. <strong>Agostinho</strong> mantém a providência nadependência de Deus, mediante o modelo <strong>da</strong> fabricação ou <strong>da</strong> obra de arte, de que seSOLIGNAC, “Analyse et sources de la Question ‘De Ideis’”, in Augustinus Magister (CongrèsInternational Augustinien, Paris 21-24 sept<strong>em</strong>bre 1954) I (Paris 1954) 307-315; J. PÉPIN, “ Augustin,Quaestio De ideis. Les affinités plotiniennes”, From Athens to Chartres. Neoplatonism and MedievalThought ( Leiden 1992) p. 117-134.146 Cf. Ep. CLXVI, V, 13 ( CSEL 44, p. 565).147 Na Ep. CCV, III, 17, sobre a dificul<strong>da</strong>de de compreender a acção providente de Deus, Sto. <strong>Agostinho</strong>escreve: "(…) Multum est aut<strong>em</strong> uel tenuiter sapere, quo modo commutabilia et t<strong>em</strong>poralia noncommutabilibis et t<strong>em</strong>poralibus creatoris motibus sed aeterna et stabili uirtute con<strong>da</strong>ntur." ( CSEL 57, p.388).103


socorre com frequência, mas anula a mediação do deus menor. De facto, é o Uno que serelaciona com o Múltiplo e não qualquer outra expressão degra<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong>quele Princípio.O Deus de <strong>Agostinho</strong>, a sua concepção de <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, é a de um <strong>Ser</strong> próximo, ade um Deus-connosco, que se une a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s expressões de ser. S<strong>em</strong> essa união, oUniverso não perderia apenas razoabili<strong>da</strong>de, não seria, tão-só, passível de derivar aoacaso ou de ser presa de uma enti<strong>da</strong>de malévola. S<strong>em</strong> essa união, pura e simplesmentenão haveria Universo, os seres não existiriam 148 .5. Quid et unde malum?A in<strong>da</strong>gação sobre o mal está directamente implica<strong>da</strong> no enunciado do filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Ora, o confronto de <strong>Agostinho</strong> com a questão do mal in<strong>da</strong>ga, antes de mais,acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> dele e circunscreve-se a uma probl<strong>em</strong>ática específica, a saber, a deidentificar a causa do mal presente nas acções humanas. Depois de anos de reflexãoatribula<strong>da</strong> sobre a enigmática questão - quid sit malum? -, o filósofo compreende que,para retirar ao mal a substanciali<strong>da</strong>de que o maniqueísmo irr<strong>em</strong>issivelmente lhe atribuía,o caminho é integrar o mal numa visão do mundo onde as existências sejam entendi<strong>da</strong>snão a partir <strong>da</strong> ideia de substância, mas <strong>da</strong> noção de relação. No caso do ser humano, aexistência dele caracteriza-se pela capaci<strong>da</strong>de de agir livr<strong>em</strong>ente. Por conseguinte, éreconduzindo o mal a uma quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções humanas que Sto. <strong>Agostinho</strong> logracompreender aquela reali<strong>da</strong>de à luz <strong>da</strong> noção de relação. Tal como a forma do serhumano, também as acções por ele realiza<strong>da</strong>s serão concebi<strong>da</strong>s por Sto. <strong>Agostinho</strong> combase numa estrutura relacional.A interrogação sobre a orig<strong>em</strong> do mal – unde malum? – recebe, por conseguinte,uma reformulação: quid sit male facere? As d<strong>em</strong>ais expressões de mal - catástrofes148 Já v<strong>em</strong> de DO II, XVII, 46 a contestação augustiniana, por irracionali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> <strong>em</strong>ergência de umanova vontade <strong>em</strong> Deus, como forma de justificar o aparecimento de novos seres ou o diferente curso dosacontecimentos: “ (…) In deo enim nouum extitisse consilium, ne dicam impium, ineptissimum estdicere.” (CCL 29, p. 132). Sto. <strong>Agostinho</strong> ratificará s<strong>em</strong>pre a eterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essência divina, sendo a acçãoprovidente de Deus uma expressão dessa eterni<strong>da</strong>de. Um passo de De ciu. dei, XXII, II pode ilustrar estefacto, sintetizando a doutrina augustiniana: "(…) Verum antequam ueniat t<strong>em</strong>pus, quo uoluit ut fieret,quod ante t<strong>em</strong>pora uniuersa praesciuit atque disposuit, dicimus: " Fiet quando Deus uoluerit"; si aut<strong>em</strong>non solum t<strong>em</strong>pus quo futurum est, uerum etiam utrum futurum sit ignoramus, dicimus: " Fiet, si deusuoluerit"; non quia Deus nouam uoluntat<strong>em</strong>, quam non habuit, tunc habebit; sed quia id, quod exaeternitate in eius inmutabili praeparatum est uoluntate, tunc erit." (CCL 48, p. 808).104


naturais, conflitos entre indivíduos, povos, ou nações, enfim, to<strong>da</strong>s as formas depadecimento - serão entendi<strong>da</strong>s à luz <strong>da</strong> resposta a esta questão, que Sto. <strong>Agostinho</strong>considera preponderante no equacionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>: unde malefaciamus? 149Ao colocar nestes termos a in<strong>da</strong>gação sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, o filósofocircunscreve a questão à análise <strong>da</strong> natureza dos actos humanos, considerando-os ummodus faciendi capaz de ser qualificado como bom ou mau. Por isso, a in<strong>da</strong>gaçãoaugustiniana sobre a orig<strong>em</strong> do mal exerce-se no sentido de encontrar o critério deaferição <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções humanas. Ao mesmo t<strong>em</strong>po - e porque o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> articula, efectivamente, estes dois pólos, b<strong>em</strong> e mal -, Sto. <strong>Agostinho</strong> vaiencontrar uma solução que exima Deus <strong>da</strong> prática de más acções, entre as quais secontaria uma, maximamente perversa, a de ter criado seres capacitados para fazer o mal.A proposta maniqueísta justificava a presença do mal <strong>em</strong> função de uma divin<strong>da</strong>d<strong>em</strong>aligna e identificava, como causa <strong>da</strong> existência do b<strong>em</strong>, a acção de uma divin<strong>da</strong>deboa. A reunião de ambos os princípios, b<strong>em</strong> e mal, nos diferentes modos de ser,resultaria de um combate supra-cósmico, a que os seres, presentes no Universo, sãoalheios, servindo estes, basicamente, de bode expiatório para uma rixa entre deuses. OUniverso <strong>em</strong>erge, assim, como palco de uma medição de forças que teria comoobjectivo separar as águas, restabelecer a harmonia entre b<strong>em</strong> e mal, resgatando quantoo Deus-bom permitiu, por debili<strong>da</strong>de de essência, que lhe fosse arrebatado pelo Deusmau,e fazendo recuar o Deus-mau ao domínio <strong>da</strong>s suas fronteiras. Neste combate dedeuses, o ser humano - lugar privilegiado para o conflito, pois nele se reún<strong>em</strong>inteligência e matéria, alma e corpo, luz e trevas - não é, de modo algum, responsávelpela quali<strong>da</strong>de dos seus actos, mas mero instrumento, campo de batalha cedido àsdivin<strong>da</strong>des <strong>em</strong> conflito.Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebeu-se do conjunto de contradições <strong>em</strong> que incorriam ospartidários <strong>da</strong> seita de Mani, ao proclamar s<strong>em</strong>elhante concepção do mundo e,mormente nas obras de teor marca<strong>da</strong>mente pol<strong>em</strong>ista, não poupa as críticas.Paralelamente ao discurso censor, inserido <strong>em</strong> contexto de controvérsia, o filósofo erigea sua própria forma de resolver o enigma, com base na interrogação: unde malefaciamus?149 Cf. LA I, II, 4 (CCL 29, p. 213).105


Ao assumir os princípios <strong>da</strong> metafísica cristã <strong>da</strong> Criação, Sto. <strong>Agostinho</strong> serácolocado perante um dil<strong>em</strong>a, cuja solução se reveste de alguma complexi<strong>da</strong>de. Terá deencontrar argumentos para mostrar que to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de depende, na sua existênciaespecífica, de um Princípio Único de <strong>Ser</strong>. Se o conseguir, contornará, efectivamente, agnose maniqueísta que defende a coexistência de uma duali<strong>da</strong>de primordial <strong>em</strong> conflito.No que se refere à in<strong>da</strong>gação sobre o mal, este momento <strong>da</strong> d<strong>em</strong>onstração não parece,para o Hiponense, de maior dificul<strong>da</strong>de e, inclusivamente, as expressões filosóficas <strong>da</strong>Antigui<strong>da</strong>de apresentavam-lhe categorias para explicar a redução <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de dosseres a um único Princípio.To<strong>da</strong>via, se desse Princípio provém tudo o que existe, e se o mal t<strong>em</strong> a sua orig<strong>em</strong>numa expressão de existência, a saber, a humana, o discurso acerca <strong>da</strong> condição óptima<strong>da</strong> noção Supr<strong>em</strong>a ensombra-se, novamente. De facto, como não atribuirdefectibili<strong>da</strong>de, porventura não tanto a Deus, mas às obras que ele faz? Ora, mesmointroduzindo a brecha <strong>da</strong> impotência divina apenas nas obras feitas por Deus, fica <strong>em</strong>xeque a perfeição sublime do Princípio: afinal, não podia Ele ter feito melhor? E, seDeus não é sublim<strong>em</strong>ente perfeito e omnipotente, no seu ser e no seu agir, torna-sevulnerável à acção de um outro, mais forte do que Ele, porque capaz de lhe fazer mal.Para solucionar tais dificul<strong>da</strong>des, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá de construir umamundividência onde Deus se constitua como absolutamente Outro, Princípio Soberanode <strong>Ser</strong>, invulnerável a todo o tipo de acção. Simultaneamente, necessita de garantir quetal Deus está presente nas obras que faz, de um modo tão intenso que não lhe permiteperder o controlo sobre o ser e o agir delas, pois Dele depend<strong>em</strong> todo o ser e agir intramun<strong>da</strong>nosCom efeito, se, tal como faz <strong>Agostinho</strong>, a compreensão <strong>da</strong> condição metafísica domal e <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> dele se r<strong>em</strong>ete para o domínio do exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana, surge,de imediato, um novo ror de questões: não será Deus, afinal, a causa r<strong>em</strong>ota do mal,uma vez que é responsável por tudo quanto existe e, portanto, também pela existênciade uma liber<strong>da</strong>de humana falível? De onde viria a Deus essa "intenção r<strong>em</strong>ota" depraticar o mal, ou, pelo menos, de permitir, para essa reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ninha, um espaço deacção? <strong>Ser</strong>á Ele, efectivamente, Supr<strong>em</strong>o e Bom? Admitamos que o é. Então, por querazão criou liber<strong>da</strong>des capazes de introduzir o mal e o sofrimento, num Universoexcelente, criado por Ele? Não seria preferível criar apenas necessi<strong>da</strong>des, to<strong>da</strong>s elasdirectamente orienta<strong>da</strong>s para a prática do b<strong>em</strong>? Ou será que Deus não terá sido106


suficient<strong>em</strong>ente poderoso para o fazer? 150 Perante este s<strong>em</strong>-fim de questões, Sto.<strong>Agostinho</strong> centrar-se-á, por um lado, na solução de um probl<strong>em</strong>a - quid sit male facere?- e, por outro, não deixará de afirmar que Deus é, efectivamente, responsável pelo malque se padece.Na elaboração de um equacionamento possível para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> queentre <strong>em</strong> contraste nomea<strong>da</strong>mente com a forma como o maniqueísmo estruturara oprobl<strong>em</strong>a, <strong>Agostinho</strong> não se debruçará, de modo imediato, sobre a natureza de Deus.Inversamente, é sobre uma análise do acto humano que o filósofo fará incidir a suaargumentação. Ao agir deste modo, cava um fosso entre a sua forma de conceber anocção de ord<strong>em</strong> e a maniqueísta, que não atribuía qualquer função à activi<strong>da</strong>de humanano dil<strong>em</strong>a do mal e na explicação <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>. É um facto que, associa<strong>da</strong> à análiseaugustiniana do acto humano, está uma determina<strong>da</strong> concepção de <strong>Ser</strong>, a qual não sepode desanexar de uma forma específica de compreender a natureza de Deus. Esta,porém, será entendi<strong>da</strong> com base na relação que tal <strong>Ser</strong> estabelece com o Mundo e,também, na relação que, afinal, constitui a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Como se verá, a formaque Sto. <strong>Agostinho</strong> adopta para alcançar, mediante a razão, a natureza do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o éprecisamente a análise <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, mostrando de que modo elas obedec<strong>em</strong> auma estrutura relacional.No caso ora <strong>em</strong> apreço - para esclarecer o que significa praticar o mal e paracompreender até que ponto a vontade humana intervém neste processo -, Sto. <strong>Agostinho</strong>analisa detalha<strong>da</strong>mente a natureza <strong>da</strong> vontade humana, s<strong>em</strong> a desintegrar de quanto arazão opera no ser humano. O mal, conclui o filósofo, depois de examinar os el<strong>em</strong>entosintervenientes na activi<strong>da</strong>de humana, coincide com a noção de desord<strong>em</strong>, isto é, com asubmissão de reali<strong>da</strong>des superiores a reali<strong>da</strong>des inferiores. No ser humano, tal desord<strong>em</strong>verifica-se quando as facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente se submet<strong>em</strong> aos bens efémeros.Ao investigar sobre a orig<strong>em</strong> do mal, o Hiponense não procurará d<strong>em</strong>onstrar queexiste uma vontade boa, <strong>em</strong> contraposição com uma outra, hipoteticamente má,limitando-se a argumentar a favor <strong>da</strong> condição <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente boa <strong>da</strong> vontade.Pretendendo aniquilar todo assomo de dualismo substancial, ao nível dos princípios quejustificam a condição fenomenológica dos seres, fá-lo-á quer reconduzindo to<strong>da</strong> a150 A questão está claramente enuncia<strong>da</strong> <strong>em</strong> LA I, II, 4: " (…) Credimus aut<strong>em</strong> ex uno deo esse omniaquae sunt, et tamen non esse peccatorum auctor<strong>em</strong> deum. Mouet aut<strong>em</strong> animum, si peccata ex hisanimabus sunt quas deus creauit, illae aut<strong>em</strong> animae ex deo, quomodo non paruo interuallo peccatareferantur in deum. " ( CCL 29, p. 213).107


manifestação de ser a um único Princípio, soberanamente bom, e introduzindo a vontadeentre os bens que dele depend<strong>em</strong>, quer sublinhando o facto de ser a vontade, entre osbens disponíveis à eleição humana, o b<strong>em</strong> mais próprio do ser humano.Nesta consideração do b<strong>em</strong> próprio do ser humano, Sto. <strong>Agostinho</strong> analisa doisaspectos <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana nos quais a vontade se manifesta, com o objectivo deverificar se, neles, reside a orig<strong>em</strong> do mal. <strong>Ser</strong>á precisamente o facto de um ser humanose mover por interesse próprio que identifica a malícia de uma acção? Em De liberoarbitrio, o filósofo discute esta possibili<strong>da</strong>de de modo subtil, analisando o móbil <strong>da</strong>sacções humanas. É neste contexto que nesse escrito atende à natureza de acçõesconsidera<strong>da</strong>s socialmente más, como é o caso do adultério ou do homicídio, ou sobreoutras, consuetudinariamente aceites como lícitas, servindo de ex<strong>em</strong>plo o homicídiopraticado <strong>em</strong> legítima defesa, de que a designa<strong>da</strong> guerra justa é apresenta<strong>da</strong> como umcaso particular. Em ambos os casos, adultério e homicídio, <strong>Agostinho</strong> conclui que omóbil <strong>da</strong> acção é o interesse próprio, pois <strong>em</strong> ambas as acções se trata de satisfazer umdesejo, no primeiro caso, de carácter sensual, no segundo, de sobrevivência. Num caso enoutro, o filósofo mostra que, <strong>em</strong> face de uma ordenação de bens, inconcussa eindependente <strong>da</strong> vontade, nenhum dos bens tomados <strong>em</strong> consideração - o prazer docorpo ou a preservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dele - constitui o b<strong>em</strong> próprio do ser humano.Deste modo, do ponto de vista do ser que pratica as acções supra referi<strong>da</strong>s, não sejustifica tomar tais objectivos como finali<strong>da</strong>de delas, uma vez que qu<strong>em</strong> opta por taisbens elege reali<strong>da</strong>des inferiores àquela que, especificamente, se a<strong>da</strong>pta ao lugar que oser humano ocupa na hierarquia ontológica. De facto, qu<strong>em</strong> pratica adultério ouhomicídio opta por bens corporais - o deleite corpóreo ou a conservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> -,quando a característica <strong>da</strong> forma do ser humano está conti<strong>da</strong> na definição: homo estanimale rationale constans ex anima et corpore.Por sua vez, considerando o âmbito social dos referidos actos, s<strong>em</strong>preindissociável <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana, no caso do adultério está <strong>em</strong> causa a apropriação deum b<strong>em</strong> alheio - a mulher do próximo. Ora, a mulher de outro não é um b<strong>em</strong> comum,não é universal, n<strong>em</strong> está disponível ao uso de todos e, portanto, não é justo usufruir,comummente, de tal b<strong>em</strong>. No caso do homicídio justificado por uma defesa considera<strong>da</strong>legítima, está <strong>em</strong> causa a morte do agressor, alega<strong>da</strong>mente injusto. Trata-se, aqui, desubstituir a vi<strong>da</strong> de um ser humano pela de outro e de optar pela preservação de um b<strong>em</strong>idêntico na hierarquia ontológica – a vi<strong>da</strong> própria não é uma mais-valia, <strong>em</strong> relação à108


vi<strong>da</strong> de outr<strong>em</strong> -, não se vendo qual a lei que, respeitando a disposição ordena<strong>da</strong> dosseres, possa legitimar a troca de uma vi<strong>da</strong> humana por outra.Sto. <strong>Agostinho</strong> conclui que o interesse próprio, s<strong>em</strong> deixar de interferir naquali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções, não é o móbil último que as determina. Igualmente não o é aconcuspiscentia 151 , domínio de paixão que se imiscui <strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s activi<strong>da</strong>desconsidera<strong>da</strong>s más. De facto, na análise que efectua do acto humano, o filósofo reconduzaquela noção a um movimento de carácter instintivo: appetere/ fugere, constatando queesse movimento é, enquanto tal, indiferenciado, intencionalmente indeterminado e não éespecífico <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana, uma vez que é comum aos seres humanos e aosanimais irracionais. Por isso, in<strong>da</strong>gando qual a manifestação efectivamente humanadeste movimento instintivo, o filósofo encontra-a no desejo.À luz desta análise do agir humano, o Hiponense estabelecerá o critério para abon<strong>da</strong>de ou malícia <strong>da</strong>s acções com base na ponderação dos bens aos quais a vontadeadere, considerando que a dimensão desiderativa é inerente a todo o acto humano. Nelase manifesta, afinal, a tendência do ser humano à posse de bens, coincidindo, neste caso,o desejo e a dimensão intencional <strong>da</strong> vontade. Por conseguinte, é fun<strong>da</strong>mentalmentetomando <strong>em</strong> atenção, não a dinâmica subjectiva do acto humano mas a disposição dosbens numa hierarquia, que Sto. <strong>Agostinho</strong> avalia a bon<strong>da</strong>de ou malícia <strong>da</strong> acçãohumana.Sendo assim, e para compreender <strong>em</strong> que consiste fazer o mal, o filósofo insiste<strong>em</strong> analisar a função volitiva <strong>da</strong> mente humana, distinguindo nela duas dimensões. Umaprimeira, tendencial e direcciona<strong>da</strong> para o <strong>Ser</strong>, identifica a condição criatural <strong>da</strong> vontadehumana. Enquanto direcciona<strong>da</strong> à posse de bens, a vontade é, por si mesma, não apenasum b<strong>em</strong>, como essencialmente boa 152 . Uma outra dimensão, potencial, que se inscreve151 A noção de concupiscentia adquire contornos diversificados, conforme o contexto. Esclarec<strong>em</strong> osentido deste termo, na obra do Hiponense, os artigos de Gerald BONNER “Concupiscentia” in C.MAYER (dir.), Augustinus-Lexikon 1 (1986-1994) 1113-1122 e “Cupiditas” in C. MAYER (dir.),Augustinus-Lexikon 2 (1996-2002) 166-172.152 Esta dimensão coincide com a definição augustiniana de bona uoluntas. Trata-se <strong>da</strong> vontade na suaforma de ser específica, enquanto manifesta um desiderato do Criador. Em LA III, XVIII, 52, o filósofoafirma analisar a vontade humana na sua condição originária, anterior à afecção deficitária sofri<strong>da</strong> pelouso do livre arbítrio, ou seja, a vontade segundo o plano originário de Deus para a criatura humana: “(…)Cum aut<strong>em</strong> de libera uoluntate recte faciendi loquimur, de illa scilicet in qua homo factus est loquimur.”(CCL 29, p. 306: it. n.). Tal facto supõe que Sto. <strong>Agostinho</strong> admite a possibili<strong>da</strong>de de a mente humanapenetrar no plano originário de Deus.109


sobre esta e, na prática, com ela se identifica, leva a efeito a escolha <strong>da</strong> vontade humanaquando confronta<strong>da</strong>, mediante a razão, com um universo de bens disponíveis,diferencia<strong>da</strong>mente posicionados numa hierarquia de valores.<strong>Agostinho</strong> designa esta última dimensão pelo termo liberum arbitrium. Enquantotal, ela é, efectivamente, um b<strong>em</strong>. To<strong>da</strong>via, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que do livre arbítrio <strong>da</strong>vontade depende o poder de escolha entre bens mais valiosos e menos valiosos – valorque se pondera <strong>em</strong> função <strong>da</strong> disposição dos seres numa hierarquia, determina<strong>da</strong> pelaforma específica de ca<strong>da</strong> um -, fazendo que o ser humano adira a eles, é igualmente dolivre arbítrio que depende, afinal, a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções humanas. Estas, por sua vez,designam-se, de modo habitual, por boas e más. To<strong>da</strong>via, <strong>da</strong>do que, quer a dimensãointencional <strong>da</strong> vontade, quer o resultado <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana se inser<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre dentro<strong>da</strong> disposição ordena<strong>da</strong> dos seres, tendo <strong>em</strong> conta estes el<strong>em</strong>entos de meta-antropologiaaugustiniana não é correcto falar de acções más, sendo preferível a designação deacções que, <strong>em</strong> face do poder de realização do ser humano, manifestam menos o ser doque quanto o poderiam fazer. Tais acções deveriam designar-se por menos boas.Esta é, então, a marg<strong>em</strong> deixa<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> para essa reali<strong>da</strong>de que sedesigna por mal: a d<strong>em</strong>issão, por parte <strong>da</strong> vontade humana, <strong>da</strong> realização de tudo quantoestava <strong>em</strong> seu poder, para levar a termo a execução e perfeição <strong>da</strong> sua forma própria.Dir-se-á, então, com acerto que na mundividência augustiniana o mal é essencialmenteuma reali<strong>da</strong>de omissiva, uma espécie de entrave a que o ser se manifesta tanto quantopoderia. Não obstante este entrave ter orig<strong>em</strong> numa dimensão <strong>da</strong> vontade humana, estaé proclama<strong>da</strong> pelo Hiponense como um b<strong>em</strong>, de forma clara e inconcussa. Tal como am<strong>em</strong>ória ou a inteligência, também a vontade é uma magna uis, à qual é confia<strong>da</strong> umatarefa absolutamente inalienável e insubstituível: a de realizar o ser próprio de ca<strong>da</strong>forma humana, fenómeno que ela própria levará a efeito usufruindo do B<strong>em</strong> Comum econtribuindo para a sua mais plena manifestação e realização.Esta bon<strong>da</strong>de intrínseca e radical <strong>da</strong> vontade humana deriva do facto de uma talfunção <strong>da</strong> mente ser efeito de uma acção excelente de um <strong>Ser</strong> excelente, a saber, <strong>da</strong>Criação do ser humano por parte de um Deus, soberanamente bom. A marca <strong>da</strong>dependência ontológica e <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o na vontade humana manifesta-se,efectivamente, na dimensão intencional <strong>da</strong>quela função: a tendência ao ser.Coloca<strong>da</strong> nestes termos, a questão acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal obriga a investigaçãoa incidir sobre o que se entende por vontade livre ou, dito de outro modo, sobre aespecifici<strong>da</strong>de dessa vontade que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera indubitavelmente um b<strong>em</strong>.110


Para o filósofo, e no âmbito <strong>da</strong> experiência de si como vi<strong>da</strong> racional, é irrefragável aafirmação <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> vontade, enquanto componente inalienável <strong>da</strong> existênciahumana 153 . Este âmbito próprio coincide, de certo modo, com a dimensão instintiva,desiderativa, <strong>da</strong> vontade, tal como se manifesta no interior <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana: comotendência a possuir bens, movimento claramente assumido pela função volitiva <strong>da</strong>mente. Enquanto tal, esta dimensão interage com a função cognitiva, ou razão, por meio<strong>da</strong> qual o ser humano reconhece, num mesmo acto, os bens e o valor deles na hierarquiaontológica. Esta tendência, fun<strong>da</strong>nte e primordial, <strong>da</strong> vontade <strong>em</strong> direcção ao ser, que seenuncia, de modo claro, na formulação do desejo universal de felici<strong>da</strong>de - omneshomines beatos esse uelle -, indica que o alcance do acto <strong>da</strong> vontade humana é o maisuniversal, pois se irmana com o próprio ser, proprie<strong>da</strong>de maximamente comum de tudoquanto existe.Este domínio de intencionali<strong>da</strong>de, que o ser humano, quando reflecte sobre a suavi<strong>da</strong> racional, reconhece inerente ao exercício <strong>da</strong> própria vontade, identifica o âmbitopossível de realização e de activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela mesma vontade. Enquanto tendência àposse do <strong>Ser</strong>, todos os bens cont<strong>em</strong>plados são, para a função volitiva <strong>da</strong> mente, umapossibili<strong>da</strong>de real.De facto, esta dimensão intencional <strong>da</strong> vontade é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, amanifestação mais patente de que a vontade é um b<strong>em</strong>. O filósofo identifica-a,inclusivamente, com o aspecto essencial do desejo universal de sabedoria, precisamenteaquele que fun<strong>da</strong>menta a universali<strong>da</strong>de de tal desiderato: esse uelle – querer ser. Estedomínio de volição é comum a todos os humanos, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que define a formadeles enquanto dotados de vi<strong>da</strong> racional. O ser humano caracteriza-se, efectivamente,pela vontade de ser, indissociável do exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de racional. Com efeito, nãoobstante a insistência inicial no caminho <strong>da</strong> ordo disciplinarum, o Hiponense nãoentrega a conquista <strong>da</strong> sabedoria à função judicativa <strong>da</strong> mente. Ao invés, na tarefa <strong>da</strong>busca <strong>da</strong> sabedoria é todo o ser humano que está comprometido, na triforme dinâmica<strong>da</strong>s suas facul<strong>da</strong>des - m<strong>em</strong>ória, inteligência e vontade – como na sua estruturaantropogenética, composta de corpo e espírito.Ao identificar a tendência <strong>da</strong> vontade ao ser como uma proprie<strong>da</strong>de inalienável <strong>da</strong>forma do ser humano, Sto. <strong>Agostinho</strong> fará radicar a orig<strong>em</strong> dela no acto criador de153 LA III, I, 3 : " (...) Non enim quidquam tam firme atque intime sentio, quam me habere uoluntat<strong>em</strong>,eaque me moueri ad aliquid fruendum (…)." ( CCL 29, p. 276).111


Deus. Precisamente por isso insiste na bon<strong>da</strong>de essencial <strong>da</strong> vontade humana. De modoparticular, é na percepção <strong>da</strong> dimensão intencional <strong>da</strong> vontade que se identifica, nela, amarca <strong>da</strong> dependência ontológica, a qual, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> natureza eterna do Princípio de<strong>Ser</strong>, é indelével. Nesta medi<strong>da</strong>, a tendência e orientação <strong>da</strong> vontade ao ser é irrefragávele permanente, verificando-se s<strong>em</strong>pre.Ao afirmar a intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, a direcção necessária <strong>da</strong> vontade ao ser,como marca do acto criador divino no interior <strong>da</strong> mente humana, enquanto dota<strong>da</strong> deliber<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> esclarece um aspecto acerca do fim último do ser humano.Para o filósofo, a forma humana caracteriza-se por querer s<strong>em</strong>pre ser mais do queaquilo que é, tendendo, não só a possuir coisas, mas a melhorar a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaprópria forma. Paradoxalmente, esta tendência a ser melhor é necessária, na formahumana, pois identifica, nela, a marca <strong>da</strong> presença de uma vontade eterna de ser, causaeficiente <strong>da</strong> Criação.Esta afirmação completa-se e esclarece-se quando conjuga<strong>da</strong> com os el<strong>em</strong>entosobtidos na análise augustiniana <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão. Com efeito, a razão humanaorienta-se para a percepção <strong>da</strong> noção excelente, aquela para além <strong>da</strong> qual na<strong>da</strong> mais há apensar. Esta orientação <strong>da</strong> razão para a máxima expressão de Inteligibili<strong>da</strong>de é tambémconsidera<strong>da</strong> como necessária, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que tal noção, que Sto. <strong>Agostinho</strong>identifica com a Ver<strong>da</strong>de, é causa <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de própria <strong>da</strong> razão. Dado que a razãohumana reconhece s<strong>em</strong>pre o ser sob forma de uma noção máxima e excelente, é aquelanoção – a própria Ver<strong>da</strong>de - que é apresenta<strong>da</strong> à função volitiva como o melhor dosbens. Esta, por seu turno, enquanto tende necessariamente para a máxima expressão deser - para o ser, na sua manifestação mais universal -, quer s<strong>em</strong>pre o b<strong>em</strong> que a razãolhe manifesta como supr<strong>em</strong>o.Nesta medi<strong>da</strong>, o ser humano manifesta-se como uma reali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>preontologicamente indigente e perfectível, tendendo a intensificar, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> acto humano,a densi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua própria forma de existência. Enquanto resulta de um peculiar modode comunhão com o ser supr<strong>em</strong>o, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera a vontade de ser, presente<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> ser humano, como o b<strong>em</strong> superior a todos os bens que se possam desejar. Ora,o ser é precisamente aquele b<strong>em</strong> cuja posse transcende o próprio poder, que não éobjecto de apropriação por parte de nenhuma outra enti<strong>da</strong>de, precisamente pela sua112


condição de superiori<strong>da</strong>de absoluta na hierarquia dos bens 154 . Por esse facto, a uoluntasbona é considera<strong>da</strong> pelo Hiponense como o maior dos dons 155 . Integra<strong>da</strong> na metafísicaaugustiniana <strong>da</strong> Criação que exige, para to<strong>da</strong> a forma de ser, a radical dependênciaontológica <strong>em</strong> face de um Princípio <strong>da</strong>dor de existência, a vontade humana, na suadimensão intencional, é o lugar privilegiado <strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> existência de ca<strong>da</strong> serhumano. A tendência <strong>da</strong> vontade ao ser é entendi<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> como expressãoinconcussa <strong>da</strong> relação de união que a Dei<strong>da</strong>de estabeleceu com os seres humanos. Talquali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade humana é, afinal, uma manifestação óbvia <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de entreDeus e os seres humanos.É a especifici<strong>da</strong>de desta relação de vontades, a divina e a humana – a primeira,<strong>da</strong>dora de existência, a segun<strong>da</strong>, tendendo a possuir a máxima expressão de ser, que éDeus - que garante a subsistência do ser humano como reali<strong>da</strong>de contingente,revelando-o, simultaneamente, como inquietação permanente. Nesta medi<strong>da</strong>, essarelação de união, que instaura o ser humano como existente, escapa, como decisão, aca<strong>da</strong> existência individual, pois tanto o facto de existir, como o facto de possuir umavontade livre, não está ao alcance de ca<strong>da</strong> um 156 . Esse domínio ôntico escapa ao poderdo arbítrio humano, estabelecendo o limite metafísico <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de volitiva. Talfacto significa que não compete ao ser humano decidir se quer, ou não, existir, e se quer,ou não, que o seu modo de ser seja este, precisamente determinado a expandir ca<strong>da</strong> vezmais a sua forma de ser e a fazê-lo através do exercício de inúmeras escolhas, nodecurso do t<strong>em</strong>po.Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste, assim, no imenso b<strong>em</strong> <strong>em</strong> que consiste o ser, <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s assuas manifestações mas, de modo particular, na forma humana de existência, dota<strong>da</strong> devontade e orienta<strong>da</strong> à fruição, não de qualquer b<strong>em</strong>, mas do próprio ser supr<strong>em</strong>o 157 .154 LA I, XII, 26 " (…) Quisquis aut<strong>em</strong> non habet, caret profecto illa re, quam praestantior<strong>em</strong> omnibusbonis potestate nostra non constituis, sola illa voluntas per seipsam <strong>da</strong>ret." ( CCL 29, p. 228).155 LA II, XVIII, 48: " Qu<strong>em</strong> ad modum ergo ista probas in corpore, et non intuens eos qui male hisutuntur, lau<strong>da</strong>s illum qui haec dedit bona: sic libera voluntat<strong>em</strong> sine qua n<strong>em</strong>o potest recte vivere, oportetet bonum, et divinitus <strong>da</strong>tum (...)." (CCL 29, p. 270).156 Cf. LA III, VII, 20 (CCL 29, p. 286-287). A existência escapa à vontade humana como objecto dedecisão, já que, antes de existir, não é possível eleger. A existência humana, tal como qualquer expressãode existência, supõe uma vontade prévia de ser, diferente do livre arbítrio. Daqui decorre o facto de olivre arbítrio não ter poder para agir sobre o domínio ôntico <strong>da</strong> existência humana.157 LA III, VII, 20: "Considera igitur, quantum potes, quam magnum bonum sit ipsum esse, quod et beatiet miseri uolunt." ( CCL 29, p. 287).113


Associa-se a esta afirmação - e uma vez que, na óptica do filósofo, to<strong>da</strong> a percepção doreal é axiológica – o enunciado mais simples, de carácter metafísico, e que é subjacentea to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de racional, a saber, aquele que determina, na hierarquia ontológica, oprimado do ser sobre o na<strong>da</strong>.O raciocínio que leva às últimas consequências esta concepção do ser humano e <strong>da</strong>inconcussa bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dimensão intencional <strong>da</strong> vontade é a análise augustiniana<strong>da</strong>quela activi<strong>da</strong>de humana na qual, aparent<strong>em</strong>ente, se revela um desejo de aniquilaçãode si: a natureza do suicídio 158 . Com efeito, <strong>em</strong> De libero arbitrio, o filósofo elaborauma argumentação por redução ao absurdo para mostrar que qu<strong>em</strong> se quer suici<strong>da</strong>r nãocoloca a intenção <strong>da</strong> sua vontade na aniquilação, ou no desejo de na<strong>da</strong>, mas move-se pordesejo de quietude.De facto, qu<strong>em</strong> procura voluntariamente a morte busca o fim do tormento e <strong>da</strong>intranquili<strong>da</strong>de. Aquilo que intenta é, afinal, a posse do repouso do seu ser, a paz, atranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dimensão desiderativa <strong>da</strong> vontade. Ora, a quietude, a paz, o repouso,são, precisamente, as proprie<strong>da</strong>des do ser supr<strong>em</strong>o. Aquele que É, na Eterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suaessência, não admite mu<strong>da</strong>nça n<strong>em</strong> instabili<strong>da</strong>de. Estes atributos correspond<strong>em</strong> à noçãoexcelente, Deus. Portanto, Sto. <strong>Agostinho</strong> conclui que qu<strong>em</strong> procura <strong>da</strong>r a morte a simesmo d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> e definitivamente, possuir Deus, o ser supr<strong>em</strong>o, ou a Vi<strong>da</strong>Eterna <strong>em</strong> Paz, afinal, a máxima expressão de ser, sendo essa a tendência que estáirreversivelmente impressa na vontade humana. Por isso, aquela acção humana nãoapenas não contraria a análise opera<strong>da</strong> sobre a natureza boa <strong>da</strong> vontade, direcciona<strong>da</strong> a<strong>Ser</strong>, mas até a confirma. Mesmo na situação-limite <strong>em</strong> que consiste o suicídio, acto que,de um ponto de vista meramente fenoménico, pareceria contrariar o raciocínioaugustiniano, se revela a tendência à posse do ser na sua máxima expressão.Neste contexto, que espaço reserva, efectivamente, a metafísica augustiniana, parao mal? Ignora-o, por completo? Deixa-o à mercê de reali<strong>da</strong>des ditas d<strong>em</strong>oníacas, nãoobstante as considerar submeti<strong>da</strong>s, na hierarquia ontológica, ao ser supr<strong>em</strong>o?Ingenuamente, coloca-o ao lado do b<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> que, entre ambas as noções, se estabeleçaqualquer diferenciação?158 Cf. LA III, VII ( CCL 29, p.286-287). Veja-se o contraste entre a concepção <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de grecoromanae a posição augustiniana ante a prática do suicídio e do homicído ( Cf. De ciu. dei I, cc. XVII-XXIX : CCL 47, p. 18-30).114


Tendo <strong>em</strong> conta a análise augustiniana <strong>da</strong> acção humana, no que se refere aohorizonte metafísico <strong>em</strong> que se insere a liber<strong>da</strong>de, pode concluir-se que o filósofo anulade raiz a possibili<strong>da</strong>de de uma subsistência do mal. De facto, to<strong>da</strong> a acção humana seinscreve numa estrutura relacional, onde a vontade tende ao b<strong>em</strong> e onde todo o b<strong>em</strong> éexpressão de ser.Na perspectiva augustiniana, para sustentar a existência do mal exigir-se-iaconceber a acção humana com base numa estrutura relacional cujos termos foss<strong>em</strong>nulos. Para tal, seria necessário considerar que a vontade humana é uma facul<strong>da</strong>deabsolutamente indetermina<strong>da</strong>, cujo impulso natural não se rege por uma finali<strong>da</strong>dedefini<strong>da</strong> pela própria forma do ser humano. Ora, a constituição de uma vontade comopura indeterminação equivaleria a uma vontade s<strong>em</strong> rumo, à deriva. Uma tal reali<strong>da</strong>de,concebi<strong>da</strong> fora <strong>da</strong> dependência ontológica <strong>em</strong> face de um princípio supr<strong>em</strong>o de ser,poderia erigir-se <strong>em</strong> princípio de universal malícia, actuando fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do ser 159 .To<strong>da</strong>via, esta expressão - fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do ser - não faz qualquer sentido, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, pois o ser é ord<strong>em</strong> e fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> há, precisamente, o na<strong>da</strong> - nihil. A noçãoaugustiniana de vontade, como qualquer outra forma de ser que se considere no interior<strong>da</strong> metafísica augustiniana, não pode, nunca, atingir o na<strong>da</strong>. No caso <strong>da</strong> vontadehumana, ela revela uma dupla dependência, a qual não deixa de estar envolta <strong>em</strong> algummistério. É um facto que o rumo derradeiro <strong>da</strong> vontade humana é, para o Hiponense, aposse do ser. Mas, inversamente, também o rumo do ser, na sua manifestação histórica et<strong>em</strong>poral, depende <strong>da</strong> vontade humana, razão pela qual esta noção ocupa um lugarpreponderante na metafísica augustiniana. Para o filósofo, a vontade humana e osefeitos dela ating<strong>em</strong> o ser no seu âmago, responsabilizando-se pela maior ou menorrealização <strong>da</strong>quela categoria supr<strong>em</strong>a 160 .159 O desejo de conquistar, para a vontade humana, uma dimensão de total indeterminação identifica-secom o projecto de a divinizar. Tal propósito supõe que se considere a vontade humana como omnipotente,mas <strong>em</strong> sentido negativo, isto é, como absoluta e total possibili<strong>da</strong>de de escolha. Porém, esta propostaequivale a considerar o na<strong>da</strong> como conteúdo intencional <strong>da</strong> vontade e supõe conferir consistênciaontológica a esta última noção. Esta concepção de vontade - a sua redução à vontade de poder, pelaanulação do fim intrínseco transcendente, equivalente à morte de Deus - não t<strong>em</strong> cabimento na metafísicaaugustiniana. A aniquilação <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de imanente à função volitiva <strong>da</strong> mente equivale, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, à aniquilação do ser humano, pois este é concebido como tendência a ser.160 A este propósito, veja-se o estudo de E. ZUM BRUNN, “Le dil<strong>em</strong>me de l’être et du néant. Despr<strong>em</strong>iers dialogues aux Confessions”: Recherches augustiniennes 6 (1969), p. 3-102, máxime p. 43-45.50-55.57-69.115


O suicídio é, neste contexto, a expressão negativa mais radical do desejo absolutode posse desse único b<strong>em</strong> que pode pôr termo à situação inquietante de um ser que, nasua contingência, é depositário de uma vocação de eterni<strong>da</strong>de 161 . Com efeito, queprocura aquele que, voluntariamente, quer pôr termo à sua existência? Ante odesconforto de uma vontade dispersa ad infinitum pela posse de uma multiplici<strong>da</strong>de debens, ante o desgarramento interior que produz a tentativa de procurar a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>mente na multiplici<strong>da</strong>de de bens é, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, a eterni<strong>da</strong>de, o ser imutável, aquiloque tal ser humano intenta, como o b<strong>em</strong> que deseja possuir para s<strong>em</strong>pre 162 . Sto.<strong>Agostinho</strong> insiste no facto de, na acção suici<strong>da</strong>, o ser humano buscar a eterni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>doque <strong>em</strong> tal acto procura o abandono de tudo o que é instabili<strong>da</strong>de, fonte de dispersão edesagregação, infelici<strong>da</strong>de e sofrimento. To<strong>da</strong>via, a vi<strong>da</strong> humana não reside, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, fun<strong>da</strong>mentalmente, na união entre o corpo e a alma – união à qual a mortecorporal põe, efectivamente, termo e, na óptica do Hiponense, apenas t<strong>em</strong>porariamente -mas na posse de uma vi<strong>da</strong> racional. Esta subsiste para além <strong>da</strong> união com o corpo e <strong>da</strong>afecção t<strong>em</strong>poral. Por isso, aquele b<strong>em</strong> que qu<strong>em</strong> deseja morrer procura é,precisamente, o repouso, identificando este com o afastamento de si de todos os motivosde desgarramento.A análise deste acto humano confirma de modo derradeiro, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, auniversali<strong>da</strong>de do desejo de felici<strong>da</strong>de, o qual apenas se sacia <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> ser humanoquando este possui o B<strong>em</strong> imutável. A posse de tal B<strong>em</strong> é, afinal, o fim último a quetende a existência humana. O desejo de morte, ilusoriamente presente no acto suici<strong>da</strong>, é,afinal, uma expressão do desejo de vi<strong>da</strong> eterna, manifestação incontestável <strong>da</strong> direcçãointencional <strong>da</strong> vontade a ser 163 . Aliás, num universo como o augustiniano, onde tudo éexpressão de ser e onde o ser se manifesta sob diferentes modos de relação, não há lugarpara uma expressão substancial do na<strong>da</strong>, de tal modo que este contra-valor possa161 VR XLVI, 88: " (…) Itaque ad pristinam perfectamque naturam nos ipsa ueritas uocans (...). Vocamuraut<strong>em</strong> ad perfectam naturam humanam." (CCL 32, p. 245). Neste texto, tal como na análise elabora<strong>da</strong> <strong>em</strong>De libero arbitrio ( cf. LA III, XXIV, 71: CCL 29, p. 317), Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica a perfeição <strong>da</strong>natureza com o estado do ser humano antes <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original.162 Cf. LA III, VII, 20-22 ( CCL 29, p. 286-288). Esta situação equivale a dirigir a vontade para a posse<strong>da</strong>quelas reali<strong>da</strong>des cujo começar a ser é idêntico ao caminhar para o não ser, isto é, à posse <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des mutáveis e t<strong>em</strong>porais, como são todos os bens, excepto o próprio Deus e as noções impressasna mente, as regula et lumina uirtutum.163 Cf. LA III, VI, 18 ( CCL 29, p. 285-286).116


apresentar-se como conteúdo intencional <strong>da</strong> vontade. O aparente desejo de aniquilação,enquanto efectivo desejo de eterni<strong>da</strong>de, mais não faz do que confirmar a relaçãoconatural que se estabelece, no interior <strong>da</strong> mente humana, entre a indigência dela,própria <strong>da</strong> sua condição de criatura, e a superabundância ontológica, específica <strong>da</strong>natureza de Deus, enquanto Criador de to<strong>da</strong>s as formas.Na análise <strong>da</strong> razão humana e <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> noção excelente que ela pode alcançar,Sto. <strong>Agostinho</strong> compreendeu o princípio de hierarquia que preside à disposição gradualdos seres. Ao verificar a imutabili<strong>da</strong>de e eterni<strong>da</strong>de do ser supr<strong>em</strong>o, o filósofo consideraque os seres estão distribuidos numa escala cuja perfeição ontológica se define <strong>em</strong>função <strong>da</strong> maior ou menor proximi<strong>da</strong>de que aqueles possu<strong>em</strong> com essa estabili<strong>da</strong>desoberana. No caso do ser humano, o princípio de estabili<strong>da</strong>de ou eterni<strong>da</strong>de é, para ca<strong>da</strong>uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, o seu conteúdo específico. Assim, para a razão humana, talprincípio designa-se por Ver<strong>da</strong>de; para a m<strong>em</strong>ória, denomina-se, enigmaticamente,Eterni<strong>da</strong>de; e, para a vontade, mostra-se como união de ambas, a fim de conquistar, paraa mente humana, a posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de como Eterni<strong>da</strong>de. O Filósofo de Hipona confia àfunção volitiva <strong>da</strong> mente a tarefa de granjear, para o ser humano, o repouso no ser. Porisso, o desejo de auto-aniquilação, o qual é, para o filósofo, metafisicamente inviável -com efeito, o domínio <strong>da</strong> acção volitiva não alcança o princípio <strong>da</strong> sua existência,limitando-se a recebê-la como dom -, mais não é do que a manifestação de que o desejode Eterni<strong>da</strong>de é inerente ao dom <strong>da</strong> existência e expressão plena desta 164 .Na análise augustiniana do suicídio manifesta-se, de modo incontestável, que avontade humana é uma função <strong>da</strong> mente direcciona<strong>da</strong> ao ser. Tal facto evidencia-se,antes de mais, por uma necessi<strong>da</strong>de lógica: o na<strong>da</strong> não pode, por definição, ser objectointencional do desejo 165 . Mais radicalmente, no plano ontológico, a natureza <strong>da</strong> vontadedo ser humano ratifica que a essência dele é liber<strong>da</strong>de, quali<strong>da</strong>de inerente à164 LA III, VII, 23: "Quod aut<strong>em</strong> quietum est, non est nihil; imo etiam magis est quam id quod inquietumest. Inquietudo enim uariat affectiones, ut alteram perimat; quis aut<strong>em</strong> habet constantiam, in qua maximeintelligitur quod dicitur Est. Omnis itaque ille adpetitus in uoluntate mortis, non ut qui moritur non sit, sedut requiescat intenditur. Ita cum errore cre<strong>da</strong>t non se futurum, natura tamen quietus esse, hoc est magisesse desiderat." ( CCL 29, p. 289).165 Cf. LA III, VIII, 22 ( CCL 29, p. 288). O na<strong>da</strong> não pode ser objecto intencional <strong>da</strong> vontade, a não serque alguém o considere como melhor do que o ser. Nesse caso, a noção de na<strong>da</strong> ocupa, na mente de qu<strong>em</strong>pensa poder elegê-la como objecto e conteúdo <strong>da</strong> vontade, o lugar <strong>da</strong>quilo que s<strong>em</strong>pre é. Na ver<strong>da</strong>de, oser é s<strong>em</strong>pre o objecto do desejo humano e, no contexto <strong>da</strong> argumentação agostiniana, é evidente que seequivoca qu<strong>em</strong> identifica o na<strong>da</strong> com o valor máximo: “quod aut<strong>em</strong> non est melius esse non potest.”117


especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> estrutura relacional <strong>da</strong> forma humana, já que a intencionali<strong>da</strong>deconstitutiva <strong>da</strong> vontade não é resultado de uma eleição de ca<strong>da</strong> hom<strong>em</strong> mas é, antes, aexpressão e o efeito de uma vontade específica do Absoluto: um querer específico doser supr<strong>em</strong>o que cria a forma do ser humano, dotando-a de vontade livre 166 .Nesta última afirmação é possível captar o alcance ontológico mais radical <strong>da</strong>noção augustiniana de vontade: to<strong>da</strong> a manifestação de ser, todo o efeito <strong>da</strong> Criação,precisamente na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é contingente, é expressão de uma liber<strong>da</strong>de que resultade um acto onde se conjugam dois aspectos de uma mesma vi<strong>da</strong> racional, específica doser supr<strong>em</strong>o: Ver<strong>da</strong>de e Vontade de <strong>Ser</strong>, ou Liber<strong>da</strong>de. Esta será, com efeito, ajustificação que Sto. <strong>Agostinho</strong> apresenta para o facto <strong>da</strong> Criação: a liberali<strong>da</strong>de dosoberano b<strong>em</strong>. Por conseguinte, é possível identificar os actos de <strong>Ser</strong> e Querer, no quese refere à causa eficiente <strong>da</strong> Criação. Este facto justifica e esclarece que Sto. <strong>Agostinho</strong>considere a bon<strong>da</strong>de como proprie<strong>da</strong>de comum de todos os seres. To<strong>da</strong> a Criação é umb<strong>em</strong> porque é expressão gratuita, racional e livre, de <strong>Ser</strong>: é dom 167 .Ora, o ser humano pode tornar-se particularmente consciente desta gratui<strong>da</strong>de, atécompreender que o seu modo específico de ser - expressão privilegia<strong>da</strong> do dom, porcoincidir com a essência do ser supr<strong>em</strong>o, que é liber<strong>da</strong>de - é, simultaneamente, umatarefa. Tal <strong>em</strong>preendimento leva consigo um compromisso com essa mesma VontadeAbsoluta de <strong>Ser</strong>, de cuja iniciativa depende a existência de ca<strong>da</strong> ser humano. Arealização do próprio ser como compromisso, a resposta à gratui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existênciahumana como liber<strong>da</strong>de, é manifestação de correspondência ao Dom - gratidão 168 -, que166 A natureza arbitrária <strong>da</strong> vontade é consequência de um querer específico de Deus. Portanto, ain<strong>da</strong> que,nas suas decisões, ela escape, de algum modo, à omnipotência divina, não escapa à vontade divina de ser,criadora. Por outra parte, <strong>da</strong>do que o universo dos possíveis está necessariamente contido na vontadecriadora de Deus, nela se integra, também, ca<strong>da</strong> decisão livre de ca<strong>da</strong> ser humano. Deste modo é possívelcompreender como o livre arbítrio se integra no horizonte <strong>da</strong> providência divina. É também a esta luz quese poderá compreender o lugar que ocupa a noção de praedestinatio, na metafísica augustiniana. Dealguma maneira, ela pode entender-se como a consideração, por parte <strong>da</strong> mente humana, <strong>da</strong> perfeitarealização <strong>da</strong> sua forma e, por alargamento, de to<strong>da</strong>s as formas cria<strong>da</strong>s, as quais subsist<strong>em</strong>, eternamenterealiza<strong>da</strong>s, na soberana essência do Criador.167 Cf. VR XI-XII ( CCL 32, p. 200-203); LA III, XVI, 45: " (…) Deus aut<strong>em</strong> nulli debet aliquid, quiaomnia gratuito praestat. Et si quisquam dicet ab illo aliquid deberi meritis suis, certe ut esset, nondebebatur. Non enim erat cui deberetur." (CCL 29, p. 302: it .n.).168 LA III, VI, 18: " (…) Age igitur gratias ex eo quod es uolens (...). Volens enim es, et miser inuitus es.Quod ingratus es in eo quod esse uis, iure cogeris esse quod non uis." ( CCL 29, p. 286).118


se realiza não como mera afecção subjectiva <strong>da</strong> alma, mas enquanto execução <strong>da</strong>tendência do ser humano a possuir aquilo que naturalmente quer: o melhor, a expressãomais plena de ser, isto é, a eterni<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica com a essência <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de.Por seu turno, a tensão – intentio animi - entre ser e dever, que o Hiponenseidentifica no interior <strong>da</strong> mente humana, permite-lhe verificar, na própria mente, umadimensão de ausência de ser. Esta consiste, precisamente, na distância entre os bensinferiores e médios, quando confrontados com aquele que a mente reconhece comonoção excelente. Tal ausência é percebi<strong>da</strong> pela razão no confronto de todos os bens coma Sabedoria.Já se referiu que a mente humana não é, para <strong>Agostinho</strong>, apenas razão –capaci<strong>da</strong>de de conhecer e julgar. Ela é, também, e indissociavelmente, capaci<strong>da</strong>de depossuir os bens cont<strong>em</strong>plados. O filósofo di-lo claramente ao definir a sabedoria, noçãosupr<strong>em</strong>a impressa na mente, como a Ver<strong>da</strong>de na qual não apenas se cont<strong>em</strong>pla mastambém se possui o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o 169 . É este o ideal que o Hiponense propugna para asabedoria humana. A noção augustiniana de uoluntas libera insere-se nesta dinâmica <strong>da</strong>mente, quando cont<strong>em</strong>pla a ord<strong>em</strong> dos bens e quando tende de modo inconcusso, <strong>em</strong>virtude <strong>da</strong> dimensão intencional <strong>da</strong> vontade, para aquela expressão de ser que cont<strong>em</strong>placomo Supr<strong>em</strong>a. Porém, nesta diferença entre o que a mente é e o que deve ser -diferença cuja percepção vai uni<strong>da</strong> ao desejo de colmatar esse hiato - <strong>em</strong>erge apossibili<strong>da</strong>de de uma ausência de B<strong>em</strong> a possuir, ou de ser a realizar pela mente, no uso169 Esta definição de sapientia - ueritas in qua cernitur et tenetur summum bonum - ocorre <strong>em</strong> De liberoarbitrio II, IX, 26 (CCL 29, p. 254); A entrega <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> sabedoria à função <strong>da</strong> vontade, comoaquela força que, no interior <strong>da</strong> mente, religa o b<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>plado, apropriando-se dele, é explicita<strong>da</strong> porSto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> DT XI, II, 5: " (…) Voluntas aut<strong>em</strong> tantam habet uim copulandi haec duo, ut etsensum formandum admoueat ei rei quae cernitur et in ea formatum teneat." (CCL 50, p. 339). A noçãode Sabedoria será, posteriormente, objecto de aprofun<strong>da</strong>mento por parte do filósofo, à medi<strong>da</strong> que reflectesobre a dinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente. Assim, pode ler-se <strong>em</strong> DT XIV, III, 5: "(…) Dici enim potest nonperire istam trinitat<strong>em</strong> etiam cum fides ipsa transierit quia sicut nunc eam et m<strong>em</strong>oria ten<strong>em</strong>us etcogitatione cernimus et uoluntate diligimus, ita etiam tunc cum eam nos habuisse m<strong>em</strong>oria tenebimus etrecol<strong>em</strong>us et hoc utrumque tertia uoluntate iung<strong>em</strong>us, ead<strong>em</strong> trinitas permanebit (quoniam si nullum innobis quasi uestigium transiens reliquerit, profecto nec in m<strong>em</strong>oria nostra eius aliquid habebimus quorecurramus eam praeteritam recor<strong>da</strong>ntes atque id utrumque intentione tertia copulantes, et quod eratscilicet in m<strong>em</strong>oria non inde cogitantibus nobis et quod inde cogitatione formatur)." ( CCL 50A, p. 426).119


<strong>da</strong>s suas funções. Nesta possibili<strong>da</strong>de de omissão ôntica, consagra<strong>da</strong> ao livre arbítrio <strong>da</strong>vontade humana, reside o espaço conferido pelo Hiponense para a desord<strong>em</strong> ou mal.Para integrar racionalmente o enigma <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, integrando-a, mediante umarelação de dependência, na ordo rerum, cuja condição de b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o é, na obraaugustiniana, objecto de uma ponderação progressiva; para que a desord<strong>em</strong> não volte a<strong>em</strong>ergir como uma reali<strong>da</strong>de independente ou substancial, mas incessant<strong>em</strong>ente seapresente na relativa dependência de um Princípio pleno e soberano, o filósofo insistirána dependência ontológica de to<strong>da</strong> a forma de existência <strong>em</strong> face do Princípio Soberanode <strong>Ser</strong>. Fá-lo-á esquadrinhando uma e outra vez os relatos bíblicos <strong>da</strong> Criação, s<strong>em</strong>pre<strong>em</strong> consonância com uma in<strong>da</strong>gação profun<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong> noção de forma. Além desteaspecto, e para abandonar to<strong>da</strong> a expressão de necessitarismo ou determinismo, oHiponense precisa de garantir o domínio efectivo do exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana narealização dos seus actos próprios. De outro modo não poderia atribuir ao ser humano acausa e orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>. Inversamente, se conseguir mostrar que assim é, uma vezque o ser humano é, também, uma expressão do ser, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá resolvido doisaspectos essenciais para o equacionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>: a contingência deto<strong>da</strong>s as formas de existência e a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, integrando esta naquelacontingência.Recor<strong>da</strong>ndo as hipóteses levanta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> De ordine para a questão do surgimentodo mal, a ardilosa solução que o filósofo explana <strong>em</strong> De libero arbitrio é umdesenvolvimento <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de então levanta<strong>da</strong> por Mónica. Naquele Diálogo, a Mãede <strong>Agostinho</strong> propunha que o mal tivesse tido um início t<strong>em</strong>poral, mas o b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>oe eterno, ao qual o próprio t<strong>em</strong>po está submetido, tê-lo-ia reconduzido imediatamente àord<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> qualquer intervalo entre o surgimento <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ninha e asujeição dela ao b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o 170 . De facto, o mal ou a desord<strong>em</strong> nunca esteve fora <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>, pois é na própria ord<strong>em</strong> que ele se manifesta, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre como expressãode ser e de bon<strong>da</strong>de. Porém, a solução de Mónica fora enuncia<strong>da</strong> intuitivamente. Caberáa Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrar-lhe os meandros de argumentação.Um dos aspectos que supõe a defesa de uma tal concepção de desord<strong>em</strong> é anecessi<strong>da</strong>de de justificar o carácter absolutamente singular e intransmissível <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de humana, a fim de responsabilizar ca<strong>da</strong> ser humano pelas suas acções. Por170 Cf. DO II, VII, 23 ( CCL 29, p. 120).120


isso, o filósofo insiste no carácter próprio <strong>da</strong>quelas funções <strong>da</strong> mente que, de modomais evidente, intervêm no acto humano: a razão e a vontade.Tal como acontece para a razão, também a vontade possui, no seu âmbito próprio,uma dupla dimensão: o facto de pertencer a ca<strong>da</strong> ser humano e o facto de, ela própria,<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um dos seus actos, se exercitar a si mesma, identificando-se, de uma formaimaterial e imanente, com os bens a que adere. Para estes dois aspectos <strong>da</strong> vontadeprópria, Sto. <strong>Agostinho</strong> apela à dimensão de potenciali<strong>da</strong>de. De facto, o que há decomum na vontade de todos os seres humanos é a sua dimensão intencional: querer ser,tender ao ser, na máxima expressão cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong>. Mas aquela dimensão que éinalienável de ca<strong>da</strong> ser humano e que fará ca<strong>da</strong> um responsável pelo aperfeiçoamento epela quali<strong>da</strong>de final <strong>da</strong> sua forma específica, a saber, pelo modo como comunga, <strong>em</strong>maior ou menor grau, com o ser supr<strong>em</strong>o, é confia<strong>da</strong> a uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade,pela qual se pode dizer que ela se encontra livre, no sentido fraco do termo: disponível,capaz de aderir a mais ser ou a menos ser 171 .Sto. <strong>Agostinho</strong> compreendeu que, para que o ser humano realize voluntariamentea sua forma específica, é necessário que possa querer ser aquilo que é 172 . Por isso, antesde possuir qualquer outro b<strong>em</strong>, e mesmo antes de exercitar a vontade <strong>em</strong> direcção àposse de bens, a vontade é o b<strong>em</strong> que o ser humano maximamente possui como próprio.Assim, quando faz uso <strong>da</strong> sua vontade, faz uso <strong>da</strong> sua própria forma de ser.Independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s suas opções concretas, realiza o modo que lhe foi confiado afim de contribuir na manifestação e expansão do ser. Porém, para que tal seja possível,o filósofo sublinha que ca<strong>da</strong> ser humano é dono de si mesmo, expressão que designa ofacto de ca<strong>da</strong> um ter domínio sobre as próprias capaci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua mente, podendousufruir delas livr<strong>em</strong>ente. Antes de mais, aquela reali<strong>da</strong>de que o ser humano t<strong>em</strong> à suadisposição é o conjunto <strong>da</strong>s próprias funções <strong>da</strong> mente.No caso <strong>da</strong> função volitiva, Sto. <strong>Agostinho</strong> compreendeu que, se não pudesseafirmar que a vontade humana t<strong>em</strong> ao seu dispor uma dimensão arbitrária, anular-se-ia apossibili<strong>da</strong>de do exercício <strong>da</strong> gratui<strong>da</strong>de, por parte do ser humano, e to<strong>da</strong> a expressão deser, efeito <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de, haveria de manifestar necessi<strong>da</strong>de. Ora, como o ser s<strong>em</strong>anifesta de diferentes modos e, também, sob a desconcertante forma designa<strong>da</strong> por171 Os termos uoluntas libera e liberum arbitrium uoluntatis são, nesta medi<strong>da</strong>, sinónimos.172 LA III, I, 3: " (…) quid aut<strong>em</strong> meum dicam, prorsus non inuenio, si uoluntas qua uolo et nolo non estmea." ( CCL 29, p. 276).121


desord<strong>em</strong>, esta <strong>em</strong>ergiria, novamente, como necessi<strong>da</strong>de do ser, mesmo se estivesse sobo controlo de um Princípio Supr<strong>em</strong>o de Bon<strong>da</strong>de. E recomeçariam as aporias.Por isso, o filósofo insiste <strong>em</strong> que a dimensão própria <strong>da</strong> vontade - liberumarbitrium - é precisamente aquele b<strong>em</strong> que está absolutamente <strong>em</strong> poder de ca<strong>da</strong> serhumano. Neste sentido, poder-se-ia dizer que, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, tal poder escapa,inclusivamente, no exercício <strong>da</strong>s suas decisões, à omnipotência de Deus, não obstanteaquelas se incluir<strong>em</strong> na presciência divina 173 . Se a vontade humana não estivesse <strong>em</strong>poder de ca<strong>da</strong> um, não seria possível falar de um exercício efectivo <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Comefeito, ninguém pode dispor livr<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>quilo que não está <strong>em</strong> seu poder de modoestável. Ora, só está disponível ao uso de ca<strong>da</strong> ser humano aquilo que efectivamente lhepertence e isso sucede, antes de mais, com a vontade, pela qual o ser humano pode usare fruir dos d<strong>em</strong>ais bens. Ela está <strong>em</strong> poder de ca<strong>da</strong> um, pois de outro modo não seriaprópria 174 . E é livre precisamente por ser aquele b<strong>em</strong> que está, s<strong>em</strong>pre e inteiramente, àdisposição de ca<strong>da</strong> ser humano, por se tratar, precisamente, <strong>da</strong>quele único b<strong>em</strong> onde odesejo e a posse coincid<strong>em</strong>. Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece a reflexivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade como,aliás, <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente. Por isso, no caso <strong>da</strong> vontade, basta que ela seexercite para que, de modo imediato, o ser humano possua, antes de mais, o b<strong>em</strong> que éela própria 175 .Em virtude desta condição potencial <strong>da</strong> vontade humana, o filósofo considera queo ser humano ocupa uma situação média na hierarquia ontológica. Indubitavelmente, a173 Sto. <strong>Agostinho</strong> discute a relação entre a presciência divina e a liber<strong>da</strong>de humana e exime a vontade deDeus de interferir no poder <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana. De facto, se o fizesse, a vontade divina haveria de secontradizer a si própria, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela mesma é causa <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> vontade humana, dota<strong>da</strong>de livre arbítrio. Ora, este facto permite considerar uma certa impotência <strong>da</strong> acção divina ante as decisões<strong>da</strong> vontade humana. To<strong>da</strong>via, como estas não têm alcance universal, pois depend<strong>em</strong>, tal como o serhumano, do Princípio Supr<strong>em</strong>o de <strong>Ser</strong>, circunscrevendo-se ao curso dos t<strong>em</strong>pos, o Hiponense podeintroduzir, aqui, a justificação para a afirmação segundo a qual Deus, não sendo causa do mal que alguémpratica, é, <strong>em</strong> última instância, a razão de ser do mal que se padece. Por outra parte, as acções humanas eos seus efeitos não são, mediante a omnipotência divina, irreparáveis, pois aquilo que alguém se d<strong>em</strong>itiude fazer pode Deus suprir, inclusivamente com maior plenitude, ou intervindo directamente na história oufazendo-o mediante a activi<strong>da</strong>de de alguma criatura.174 LA III, III, 8: " (…) Voluntas igitur nostra nec uoluntas esset, nisi esset in nostra potestate. Porro, quiaest in potestate, libera est nobis. Non enim est nobis liberum, quod in potestate non hab<strong>em</strong>us, aut potestnon esse quod hab<strong>em</strong>us ." ( CCL 29, p. 280).175 Cf. LA I, XII, 26 ( CCL 29, p. 228).122


vontade livre é um b<strong>em</strong>. Tal como to<strong>da</strong> a manifestação de ser, ela depende de umPrincípio de <strong>Ser</strong>, soberanamente bom. Esta condição de mediania – pela qual é atribuí<strong>da</strong>ao ser humano, também, uma condição de mediador entre os seres inferiores e o b<strong>em</strong>supr<strong>em</strong>o - deriva, precisamente, <strong>da</strong> condição de possibili<strong>da</strong>de relativa, inscrita naprópria vontade humana.Mediante a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inteligência, a vontade humana reconhece qual o b<strong>em</strong>supr<strong>em</strong>o a que tende, mas não tende a ele necessariamente. Para o possuir, progredindo<strong>em</strong> direcção à sabedoria, a vontade necessita de fazer girar, sobre o eixo do ser, ao qualtende com necessi<strong>da</strong>de de natureza, o gonzo do poder, identificando progressivamenteas duas dimensões 176 . To<strong>da</strong>via, igualmente por natureza, a vontade livre pode nãorealizar esta simultanei<strong>da</strong>de. Esta possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade introduz, no âmbito <strong>da</strong>mente humana, uma cisão entre o que ca<strong>da</strong> ser humano é e aquilo que pode vir a ser,tornando possível uma descoincidência, no cerne <strong>da</strong> forma humana, entre o domínio doser e do dever. Porém, o resultado dessa possível acção contraditória - pois se define,essencialmente, como omissiva, ou passiva; d<strong>em</strong>issionária, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que frustrauma ord<strong>em</strong> para a acção - é, ain<strong>da</strong>, alguma coisa, não obstante ser um b<strong>em</strong> menor,quando comparado com a perfeição que poderia ter atingido. Tal b<strong>em</strong> menor é, também,efeito de uma vontade cria<strong>da</strong>, a qual, <strong>em</strong> si mesma e independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s suasdecisões, manifesta a bon<strong>da</strong>de do Criador. Mais ain<strong>da</strong>, tal b<strong>em</strong> menor é efeito doexercício <strong>da</strong> forma segundo a qual foi cria<strong>da</strong> a vontade humana: livre, disponível paraacolher ou rejeitar o ser que cont<strong>em</strong>pla como um dever. Por isso, Sto. <strong>Agostinho</strong> não secansa de repetir ao longo <strong>da</strong> sua obra que mesmo a acção defectível manifesta ord<strong>em</strong>,inserindo-se na disposição dos seres ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre como uma expressão de ser e debon<strong>da</strong>de.Por seu turno, o movimento de conversão do b<strong>em</strong> próprio ao b<strong>em</strong> comum,mediante o qual a vontade humana realiza a tendência à máxima expressão de ser e se176 Cf. v. gr. LA III, I, 3 ( CCL 29, p. 276); De diu. quaest. 83, q. VIII ( CCL 44A, p. 15); Ep. CII, 26(CSEL 34/2, p. 567). A metáfora do gonzo é sugeri<strong>da</strong> pelo próprio Sto. <strong>Agostinho</strong>, referindo-se a ummovimento íntimo <strong>da</strong> vontade, de carácter imaterial, pela qual ela, b<strong>em</strong> médio, se converte ou aoSupr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, ou aos bens inferiores. Nestes últimos, o filósofo inclui a possibili<strong>da</strong>de de a mente seconverter a si mesma, como se fosse, para si mesma, o B<strong>em</strong> Comum. Este movimento é, afinal, a essênciade to<strong>da</strong> a adesão aos bens inferiores, <strong>em</strong> detrimento do b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o. Por isso, o par conceptualcomum/próprio, ao qual <strong>Agostinho</strong> recorre com alguma frequência, é esclarecedor na compreensão doque o filósofo entende por pecado ou movimento de degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> alma.123


efectiva como vontade recta, supõe, igualmente, o exercício do livre arbítrio <strong>da</strong> vontade,não podendo exercer-se s<strong>em</strong> aquela dimensão mais el<strong>em</strong>entar <strong>da</strong> vontade humana que sedesigna por uoluntas libera 177 .Por conseguinte, é ain<strong>da</strong> a natureza hierárquica do ser, a gra<strong>da</strong>ção ontológica quese estabelece entre o inferior e o superior, que permite compreender a razão pela qualSto. <strong>Agostinho</strong> afirma, de modo inconcusso, a bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade mesmo na suadimensão potencial, aquela pela qual cabe, no Universo, um domínio de desord<strong>em</strong>,certamente restrito <strong>em</strong> face <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de do b<strong>em</strong>, mas que assume, por vezes,dimensões avassaladoras. Este espaço de desord<strong>em</strong> é efeito, não <strong>da</strong> natureza dos bensdispostos pelo Criador, mas do uso que uma determina<strong>da</strong> forma de existência, a saber, ahumana, pode fazer de tais bens.Sto. <strong>Agostinho</strong> instaura uma clara distinção entre um uso recto e um usodepravado dos bens dispostos no Universo, estabelecendo como critério dediferenciação a maior ou menor manifestação de ser, de b<strong>em</strong> comum, presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong>acto humano e no conjunto dos actos de todos os seres humanos. Esta manifestação, porseu turno, mede-se pela orientação <strong>da</strong> vontade própria ao b<strong>em</strong> reconhecido comocomum. Se ambos coincid<strong>em</strong>, o ser humano cumpriu a sua missão, aperfeiçoou a suaforma. Caso contrário, introduziu, na condição dinâmica <strong>da</strong> ordenação dos seres, umabrecha, que Sto. <strong>Agostinho</strong> designa pela expressão priuatio boni. A esta privação deb<strong>em</strong> corresponde, no plano ontológico, a definição augustiniana de mal.Com frequência, o filósofo defronta esta concepção de uma privação de b<strong>em</strong> coma noção de uma total ausência de ser, a qual expressa do seguinte modo: quod omninonon est 178 . Por isso, para entender <strong>em</strong> que consiste o mal ou desord<strong>em</strong>, é necessárioverificar o contexto destes dois termos: privação e ausência de ser. Ao definir adesord<strong>em</strong> como priuatio boni, o Hiponense insiste no facto de ela ter como referência,como alicerce e pólo de relação, s<strong>em</strong>pre uma reali<strong>da</strong>de boa, própria de qualquernatureza ou substância cria<strong>da</strong>. Assim, a concepção augustiniana de desord<strong>em</strong>, quedepende do modo como o filósofo concebe o ser, não se entende s<strong>em</strong> a exigência <strong>da</strong>177 Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinha que s<strong>em</strong> a vontade livre ninguém pode viver com rectidão e faz derivar destefacto a bon<strong>da</strong>de intrínseca desta função <strong>da</strong> mente humana. Ora, o pleno alcance desta afirmação só secompreenderá na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se esclareça o modo como a vontade humana realiza a união <strong>da</strong> mentecom o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, contribuindo, assim, para uma efectiva concreção <strong>da</strong> ordo rerum.178 Veja-se, v. gr., a definição de mal apresenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> Conf. III, VII, 12 ( CCL 27, p. 33); Conf. XII, XI, 11( CCL 27, p. 221).124


dependência ontológica do ser humano <strong>em</strong> função do ser supr<strong>em</strong>o, impondo umareflexão sobre o modo como interpreta a noção bíblica cristã de creatio de nihilo.To<strong>da</strong>s as naturezas, formas ou modos de ser depend<strong>em</strong> do Princípio Supr<strong>em</strong>o de<strong>Ser</strong>. Este, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que dá o ser apenas por gratui<strong>da</strong>de - e não por necessi<strong>da</strong>de deexpansão de si, ou de auto-gnose, ou por qualquer outro motivo que o tenha a si mesmo,ser supr<strong>em</strong>o, como centro de atenção - é, igualmente, supr<strong>em</strong>a bon<strong>da</strong>de. Nesta medi<strong>da</strong>,tudo quanto existe é, essencial e intrinsecamente, expressão de b<strong>em</strong>. Concebendo dest<strong>em</strong>odo a diversi<strong>da</strong>de e plurali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas de existência, na metafísica augustiniananão há lugar para naturezas essencialmente más. To<strong>da</strong>via, o âmbito <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> -também ele, como os seres, infinitamente multiforme -, é do domínio factual e exigejustificação. Ao invocar um domínio de priuatio boni, Sto. <strong>Agostinho</strong> posiciona aquestão sobre o mal insistindo no referente último <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>: o b<strong>em</strong>, quali<strong>da</strong>depresente <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de existência.Sendo assim, por que razão uma natureza boa pode ser sujeito de privação? Sto.<strong>Agostinho</strong> responde apelando para a contingência <strong>da</strong>s naturezas cria<strong>da</strong>s, a qual s<strong>em</strong>anifesta no facto de to<strong>da</strong>s elas ser<strong>em</strong> mutáveis. Pod<strong>em</strong>, portanto, padecer privaçõespor causas diversas, de carácter físico - por ex<strong>em</strong>plo, quando, num corpo, está ausente asaúde -, ou de carácter imaterial, como quando alguém faz uso de qualquer nível dereali<strong>da</strong>de, não <strong>em</strong> função do b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o, mas aderindo a bens inferiores 179 . A malauoluntas <strong>em</strong>erge na orientação <strong>da</strong> vontade, cujo livre arbítrio pode fazer oscilar o graude comunhão <strong>da</strong> forma própria de ser no <strong>Ser</strong> de que depende, vibrando entre osextr<strong>em</strong>os <strong>em</strong> que o ser se manifesta na hierarquia ontológica - maius et minus esse.A uoluntas mala esgota o âmbito possível de desord<strong>em</strong> suporta<strong>da</strong> pelamundividência augustiniana. Não se trata de considerar a vontade como um mal mas deverificar que ela, como qualquer natureza mutável, se pode corromper s<strong>em</strong> por essefacto deixar de ser um b<strong>em</strong>. Mais ain<strong>da</strong>, o próprio facto de se poder corromper é, para o179 Em LA III, XIII, 36 ( CCL 29, p. 297), Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste na corruptibili<strong>da</strong>de de uma naturezacomo manifestação <strong>da</strong> sua perfeição. No que se refere à orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, reduzi<strong>da</strong> ao defeito <strong>da</strong>vontade, cf., v. gr, o passo de De ciu. dei XII, VI-VII, onde se resume claramente esta doutrina: " (…) siquid<strong>em</strong> a natura bona fit uoluntas mala. Quod unde fieri potest, ut natura bona, quamuis mutabilis,antequam habet uoluntat<strong>em</strong> malam, faciat aliquid mali, hoc est ipsa uoluntat<strong>em</strong> mal<strong>em</strong>? N<strong>em</strong>o igiturquaeret efficient<strong>em</strong> causam malae voluntatis; non enim est efficiens sed deficiens, quia nec illa effectiosed defectio. Deficere namque ab eo, quod summe est, ad id, quod minus est, hoc est incipere habereuoluntat<strong>em</strong> malam. " ( CCL 48, p. 362).125


Hiponense, manifestação clamorosa <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de dela, ao mesmo t<strong>em</strong>po que revela asituação mediana que a forma humana, dota<strong>da</strong> de livre arbítrio, ocupa, na ordenação dosseres. Por sua vez, <strong>da</strong>do que a corrupção não é sinónimo de aniquilação, uma vontadehumana, mesmo no limite máximo <strong>da</strong> corrupção de si mesma – como acontece quandoaquela prefere o b<strong>em</strong> próprio ao b<strong>em</strong> comum -, é, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, um b<strong>em</strong>, não obstantenão se poder designar já como bona uoluntas.Com efeito, a vontade cria<strong>da</strong> não é absolutamente perfeita, mas tão-só perfectível,precisamente por ser mutável. O mesmo sucede com to<strong>da</strong> a natureza cria<strong>da</strong>, qualquerque seja o grau de ser que se considere. A vontade humana livre - uoluntas libera - fazuso <strong>da</strong>s naturezas cria<strong>da</strong>s. De acordo com a reflexivi<strong>da</strong>de que possui tal função, antes d<strong>em</strong>ais, e por inerência, ela faz uso de si mesma. Ora, uma vez que há um domínio deperfectibili<strong>da</strong>de nas formas cria<strong>da</strong>s, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que to<strong>da</strong> a natureza é capaxbonitatis et capax malitiae. Porém, enquanto, ao adquirir bon<strong>da</strong>de e aperfeiçoar a suaforma, uma natureza se orienta na direcção <strong>da</strong> união com o b<strong>em</strong> e o ser supr<strong>em</strong>os, omesmo não se passa quando se torna capax malitiae, pois não há nenhuma reali<strong>da</strong>deessencialmente má, à qual ela se possa unir, misturando-se à natureza boa queefectivamente possui.A capaci<strong>da</strong>de de malícia advém <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de afastamento voluntário dosupr<strong>em</strong>o b<strong>em</strong>, do qual depende to<strong>da</strong> a natureza. Ora, considerando que a vontadehumana é, por um lado, causa deficiente <strong>da</strong>quele afastamento - pois a capax malitiaenão pode ter causa eficiente, sendo nulo o seu efeito; e considerando, por outro lado,que, ao agir, a vontade humana faz uso de si própria e dos bens disponíveis, deveadmitir-se que ela torna o Universo, por derivação <strong>da</strong> sua acção, capax malitiae.Contudo, a expressão não t<strong>em</strong> outro referente a não ser a omissão de reali<strong>da</strong>de: o mal épriuatio boni 180 . Não se trata, por conseguinte, de uma privação de forma, comoacontece com a noção de matéria informe. É um facto que <strong>Agostinho</strong> também define anoção de matéria como priuatio. Mas neste caso trata-se de uma privação radical quecoincide com a informitas. O filósofo define aquele princípio metafísico, a matéria180 Contra Iulianum I, VIII, 37: " (…) Quoniam natura est ipsa substantia et bonitatis et malitiae capax:bonitatis capax est, participatione boni a quo facta est: malitiam uero capit non participatione mali, sedpriuatione boni, id est, non cum miscetur naturae quae aliquod malum est, quia nulla natura in quantumnatura est, malum est; sed cum deficit a natura quae summum atque incommutabile est bonum; proptereaquia non de illa, sed de nihilo facta est." ( PL 44, 667).126


informe, como possibili<strong>da</strong>de de receber to<strong>da</strong>s as formas 181 , como disponibili<strong>da</strong>deabsoluta ao b<strong>em</strong>, e tendência, precisamente, a manifestá-lo, acolhendo as multímo<strong>da</strong>sexpressões de reali<strong>da</strong>de. Também neste aspecto, virtualmente dinâmico e projectivo, anoção augustiniana de matéria informe manifesta que este princípio depende do sersupr<strong>em</strong>o e não é, portanto, causa <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>.Se a noção de priuatio formae, adequa<strong>da</strong> à concepção augustiniana de matériainforme, é tendência à acção, inversamente, a noção de priuatio boni – que, no contexto<strong>da</strong> mundividência augustiniana, designa o domínio de reali<strong>da</strong>de possível para o mal - éreactiva, contrariando a tendência, naturalmente expansiva, do ser, que o filósofoverifica radicar, fun<strong>da</strong>mentalmente, na dimensão intencional <strong>da</strong> vontade. Esta privaçãoé qualifica<strong>da</strong> como má na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que cria, no Universo, um vazio de ser, deixandopor realizar a perfeição total conti<strong>da</strong> numa forma humana que fora confia<strong>da</strong> a uma <strong>da</strong><strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de, num determinado momento <strong>da</strong> história. É defectiva, porque d<strong>em</strong>issionária. Éreactiva, porque contraria a natureza do ser 182 . Contudo – e aqui reside a sua ineficáciasobre o b<strong>em</strong>, afinal, o seu carácter inofensivo -, não se lhe pode atribuir causa eficiente.Por isso, definitivamente, na perspectiva augustiniana, o mal não se pode designar comosendo coisa alguma.Em De moribus ecclesiae catholica et de moribus Manichaeorum, ao discutir asquatro asserções de mal, defendi<strong>da</strong>s pelos Maniqueus 183 , o filósofo insiste, uma vez181 Cf. Conf. XII, XII, 15; XII, XII. 22 ( CCL 27, p. 223; p. 226-227).182 LA III, XV, 44: "(...) In omnibus ergo defectibus aut non acceperunt ultra esse quae deficiunt et nullaculpa est - sicut etiam cum sunt, quia non acceperunt amplius esse quam sunt, nihilominus nulla culpa est-, aut nolunt esse, quod, si uellent, esse acceperunt, et quia bonum est, reatus est si nolint." (CCL 29, p.301-302). Sto. <strong>Agostinho</strong> define o vício e o mal como a corrupção de uma natureza. Trata-se, por isso, dealgo que, estando numa <strong>da</strong><strong>da</strong> substância e não subsistindo per se, vai contra ela. Deste modo, o filósofoinsiste na bon<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a substância, sendo o vício e o mal apenas uma alteração que nela sucede.Privando-a de uma expressão de ord<strong>em</strong> e de b<strong>em</strong>, o mal e o vício são sobretudo reali<strong>da</strong>des omissivas quepod<strong>em</strong> suceder numa natureza pela condição mutável e composta desta. Cf. LA III, XIII, 36; XIV, 41(CCL 29, p. 296-297; 299-300). Em De moribus II, V, 7-VI, 8 (CSEL 90, p. 93-95) serve-se doargumento para introduzir contradição na tese maniqueísta que postula a subsistência de duas naturezas<strong>em</strong> conflito.183 De moribus II, V, 7 (CSEL 90, p. 93): “ (…) Sed corruptio non est in seipsa, sed in aliqua substantiaquam corrumpit: non enim substantia est ipsa corruptio. » ; De nat. boni 4: « Proinde cum quaeritur, undesit malum, prius quaerendum est, quid sit malum. Quod nihil aliud est quam corruptio uel modi uelspeciei uel ordinis naturalis. » (CSEL 25/2, p. 857); De nat. boni 6: « Corruptio aut<strong>em</strong> si omn<strong>em</strong> modum,127


mais, na ausência de consistência ontológica do mal. Trata-se de um abandono <strong>da</strong>essência e de uma tendência ao não ser 184 . O movimento pelo qual todo o ser tende aonão ser é comum a qualquer natureza corruptível e mutável, é manifestação <strong>da</strong>contingência dos seres e revela, inclusivamente, ord<strong>em</strong> e beleza, pela sucessão <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des no t<strong>em</strong>po. Quando Sto. <strong>Agostinho</strong> postula, para o mal, esta tendência aona<strong>da</strong>, acrescenta à definição de mal o facto de se tratar de uma deficiência que residenuma essência ou forma. É neste aspecto que se identifica, precisamente, a desord<strong>em</strong> domal e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a impossibili<strong>da</strong>de de o definir, pois trata-se de uma reali<strong>da</strong>deomissa. Deficere ab essentia é, afinal, expressão sinónima do movimento de aversão ao<strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. Tal expressão, como se lê <strong>em</strong> De libero arbitrio, <strong>em</strong> na<strong>da</strong> consiste: nihilest. De facto, como atribuir consistência ontológica a um movimento <strong>da</strong> vontade cujadirecção, <strong>em</strong> vez de se orientar para o ser, tende ao na<strong>da</strong>? Por esse mesmo motivo, não épossível in<strong>da</strong>gar acerca do mal a não ser por contraste, aferindo-o com o dinamismo doser e <strong>da</strong> ordenação própria de ca<strong>da</strong> forma, no contexto de uma hierarquia.Já na Invocação à Dei<strong>da</strong>de que serve de proémio a Soliloquiorum, Sto. <strong>Agostinho</strong>atribui a um favor divino, reservado aos que procuram a Ver<strong>da</strong>de, o reconhecimento e acompreensão do que é o mal: quod nihil est 185 . Com efeito, conjugando as coordena<strong>da</strong>s<strong>da</strong> metafísica augustiniana, to<strong>da</strong> a manifestação de ser - para a qual o Hiponenseencontra, como designações sinónimas, os termos natureza, substância ou essência 186 - éum b<strong>em</strong>, na diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e graus. A bon<strong>da</strong>de do ser deriva, efectivamente, <strong>da</strong>dependência de tudo quanto é <strong>em</strong> relação a um Princípio Supr<strong>em</strong>o que, desinteressa<strong>da</strong> egratuitamente, quer que as coisas sejam. Por isso, a subsistência de uma determina<strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de é consequência do facto de comungar do ser, o que faz regredir a causa <strong>da</strong>permanência dos seres ao Princípio Supr<strong>em</strong>o, de cuja Vontade depend<strong>em</strong>. Assim, é aomn<strong>em</strong> speci<strong>em</strong> omn<strong>em</strong> ordin<strong>em</strong> rebus corruptibilibus auferat, nulla natura r<strong>em</strong>anebit.” (CSEL 25/2, p.857).184 De moribus II, II, 2: " (...) Idipsum ergo malum est (...) deficere ab essentia et ad id tendere ut non sit."(CSEL 90, p. 90).185 Solil. I, I, 2: " (…) Deus qui paucis ad id quod vere est refugientibus, ostendis malum nihil esse."(CSEL 89, p. 4).186 Cf. v. gr. De moribus II, I, 2 (CSEL 90, p. 89); VR VII, 12-13; XXIII, 44 ( CCL 32, p. 195-197; p.214-215) ; DT II, XVIII; VII, VI; XV, XIII; XV, XX ( CCL 50, p. 123-126; p.261-267; 50A, p. 494-495;p. 507-508); Ep. CXX, III, 17 ( CSEL 34/2, p. 719); Contra <strong>Ser</strong>mon<strong>em</strong> arrianorum XXXVI, 34 (PL 42,707; CSEL XCII, p. 110 ).128


elação dos seres a esse Princípio que justifica a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s essências, nãopodendo estas jamais ser conota<strong>da</strong>s com qualquer princípio subsistente de malícia.Por isso, ao analisar a orig<strong>em</strong> do mal, Sto. <strong>Agostinho</strong> começa por confinar estanoção ao domínio <strong>da</strong>s acções humanas, com a finali<strong>da</strong>de de inviabilizar uma in<strong>da</strong>gaçãoacerca <strong>da</strong> essência do mal, limitando o âmbito desta noção ao diferente valor edensi<strong>da</strong>de ontológica <strong>da</strong>s acções livres. Por seu turno, tendo r<strong>em</strong>etido a explicaçãocausal de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de e, portanto, também a <strong>da</strong> forma do ser humano, para umarelação entre uma máxima expressão de <strong>Ser</strong> e uma forma específica, contingente edependente, é para um domínio <strong>da</strong> forma do ser humano, que se exerce mediante o livrearbítrio <strong>da</strong> vontade, que o Hiponense reserva a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções defectíveis.Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui a orig<strong>em</strong> do mal ao livre arbítrio <strong>da</strong> vontade. Mas este nãose exerce s<strong>em</strong> a intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade humana. Por seu turno, a intencionali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> vontade significa a determinação dela <strong>em</strong> função de bens concretos. Ora, de acordocom os supostos <strong>da</strong> metafísica augustiniana, para que fosse possível conferirconsistência e substância ao mal, seria necessário que o livre arbítrio se pudesseindependentizar <strong>da</strong> dimensão intencional <strong>da</strong> vontade, a qual determina e limita asubordinação radical desta facul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação ao <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. Porém, o filósofoesclarece que a existência própria escapa ao livre arbítrio <strong>da</strong> vontade, mesmo no casolimite do desejo de auto-aniquilação. Se a vontade humana fosse pura indeterminação,puro poder absoluto de querer, s<strong>em</strong> qualquer dependência de nenhum outro princípio,seria possível, porventura, atribuir-lhe plenos poderes e considerá-la como puraindeterminação. Este é, de algum modo, o modelo de liber<strong>da</strong>de proposto, ao t<strong>em</strong>po de<strong>Agostinho</strong>, por Pelágio e, mais próximo de nós, pelos voluntarismos que se alicerçamna pura autonomia de vontade, esta considera<strong>da</strong> não como vontade de ser, mas de poder,e perfilhando, para a forma especificamente humana de ser, o ideal de super-hom<strong>em</strong>.To<strong>da</strong>via, tal proposta é, na perspectiva augustiniana, totalmente desprovi<strong>da</strong> desentido. Só um puro poder, capaz de aderir à pura perversão, faria <strong>em</strong>ergir uma relaçãototalmente negativa, onde o ser é poder e onde cabe a possibili<strong>da</strong>de de a vontadehumana se dirigir à posse de uma reali<strong>da</strong>de totalmente desordena<strong>da</strong>, porque uma e outrasão absolutamente disformes. Mas uma tal relação, mesmo se fosse possível, seriaestabeleci<strong>da</strong> entre dois pólos esvaziados de ser - um hipotético puro poder <strong>da</strong> vontade euma reali<strong>da</strong>de absolutamente informe, ou seja, um na<strong>da</strong> de reali<strong>da</strong>de. Só uma tal relaçãocorresponderia à subsistência do mal. Ora, desde a perspectiva de Sto. <strong>Agostinho</strong>, umarelação cujos termos se colocam à marg<strong>em</strong> do ser não t<strong>em</strong> suporte ontológico: nihil est.129


Com efeito, o filósofo analisa este desejo perverso de independência <strong>em</strong> face dob<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o e considera que um tal desejo está, até certo ponto, ao alcance do poder <strong>da</strong>vontade, designando-o por auaritia: o movimento pelo qual a mente humana pretendeser mais do que aquilo que lhe é devido, ambicionando dominar, não os bens queexist<strong>em</strong>, mas a própria causa <strong>da</strong> subsistência dos bens 187 . A mente avara quer ser o seupróprio poder ao invés de, possuindo tal poder, o colocar à disposição do <strong>Ser</strong>. Esta é, naessência, a definição de desord<strong>em</strong>, quando referencia<strong>da</strong> ao ser humano. Porém, afora aimpossibili<strong>da</strong>de metafísica deste movimento, <strong>da</strong>do o ser contingente <strong>da</strong> vontadehumana, este exercício de radical aversão ao b<strong>em</strong> comum é, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, ummovimento de adesão ao b<strong>em</strong>, não obstante o fazer a uma expressão raquítica ediminuta dele. Num universo como o augustiniano, onde tudo é expressão de bon<strong>da</strong>de ede ser e no qual a vontade livre se enquadra como expressão dessa mesma reali<strong>da</strong>de,não há lugar para uma subsistente malícia, mas apenas para relações deficientes,ontologicamente deficitárias, entre formas de seres. Por isso, o filósofo insistirá s<strong>em</strong>prena inconsistência ontológica do mal, não obstante esta noção mergulhar numa certaambivalência.Sto. <strong>Agostinho</strong> não nega a reali<strong>da</strong>de do sofrimento, <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, do conflito, detodo um conjunto de acontecimentos que ca<strong>em</strong>, na rotina do termo, sob a noção de mal.Tal ingenui<strong>da</strong>de não seria compatível com a experiência que o filósofo teve <strong>da</strong>desord<strong>em</strong>, não só no domínio <strong>da</strong> sua vivência pessoal, como descreve <strong>em</strong>Confessionum, mas também no âmbito comunitário e histórico, como é <strong>da</strong>do ver naabun<strong>da</strong>nte literatura produzi<strong>da</strong> <strong>em</strong> contexto de controvérsia e, inclusivamente, dealcance cósmico, se considerarmos a causa <strong>da</strong> feitura de De ciuitate dei - a invasão deRoma pelas tropas de Alarico, <strong>em</strong> 410, e o consequente derrubamento de to<strong>da</strong> umacivilização, perturbando a paz entre os povos com um conjunto de atroci<strong>da</strong>desatribuí<strong>da</strong>s, segundo os relatos <strong>da</strong> época, à passag<strong>em</strong> dos bárbaros, s<strong>em</strong> esquecer que édurante o cerco de Hipona que ocorre o passamento de <strong>Agostinho</strong>. Porém, se187 No <strong>Ser</strong>mo LXXXV, VI, 6 ( PL 38, 523), encontra-se uma definição breve e esclarecedora de auaritia:"(…) radix est enim omnium malorum avaritia. Avaritia est, velle esse divit<strong>em</strong>, non iam esse divit<strong>em</strong>.Ipsa est avaritia". Ver, também, a análise elabora<strong>da</strong> pelo Hiponense <strong>em</strong> LA III, VII, 48 ( CCL 29, p. 303-304) que se completa com a concepção paulina do termo, tal como a descreve, v. gr. <strong>em</strong> De gen ad litt.XI, 15: " (…) cui testimonio non inconuenienter aptatur etiam illud, quod apostolus ait: radix omniummalorum est auaritia, si auaritiam general<strong>em</strong> intellegamus, qua quisque adpetit aliquid amplius quamoportet propter excellentiam suam et quen<strong>da</strong>m propriae rei amor<strong>em</strong>." ( CSEL 28/1, p. 347).130


quiséss<strong>em</strong>os qualificar a reflexão augustiniana acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal e dosofrimento, afinal, <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, designá-la-íamos por uma metafísica do b<strong>em</strong> menor.De facto, o modo como o filósofo equaciona a noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, articulando-a coma proposta de uma efectiva Mediação entre o <strong>Ser</strong> e os seres, permite-lhe-á enquadrarto<strong>da</strong> a espécie de acontecimentos numa concepção essencialmente construtiva do <strong>Ser</strong> naqual, se é ver<strong>da</strong>de que há expressões diminutas e defectíveis dessa reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a,também o é que a elas não se confia a última palavra, na dinâmica <strong>da</strong> história, com aqual o próprio <strong>Ser</strong> está comprometido. Inversamente, tais expressões de b<strong>em</strong> menorintegram-se, como to<strong>da</strong>s as manifestações de ser, numa <strong>Ord<strong>em</strong></strong> Soberana, que supera amera consideração <strong>da</strong> disposição hierárquica dos seres. Totalmente dona do real, s<strong>em</strong>aniquilar as expressões de liber<strong>da</strong>de e os seus efeitos <strong>da</strong>ninhos, tal <strong>Ord<strong>em</strong></strong> supera-as <strong>em</strong>potência, não se deixando afectar por elas. Mais ain<strong>da</strong>, por caminhos ínvios - e,naturalmente, arcanos para a mente humana, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a própria <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,enquanto noção excelente, escapa à compreensão plena <strong>da</strong> razão do ser humano -, ela écapaz de fazer que o <strong>Ser</strong> cumpra a sua vocação essencial, manifestando-se plenamente.Por último, a própria ord<strong>em</strong> – noção agora entendi<strong>da</strong> como racionali<strong>da</strong>deintrínseca e inseparável de to<strong>da</strong> a expressão de ser - na<strong>da</strong> deixa fora do seu lugar, sendoeste o motivo pelo qual Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui a Deus a causa do mal que se padece,expressão que carece, também, de esclarecimento. O filósofo define o sofrimentorelacionando esta noção com a prática do mal, considerando-o uma consequênciaimediata <strong>da</strong> tentativa humana - frustra<strong>da</strong> à parti<strong>da</strong>, porque metafisicamente impossível -de estabelecer uma ruptura com a fonte do seu ser. Ora, este movimento <strong>da</strong> prepotência<strong>da</strong> vontade arrasta consigo, paradoxalmente, uma diminuição ou degra<strong>da</strong>ção, umdecaimento <strong>da</strong> forma humana na ord<strong>em</strong>, por deixar incumprido o man<strong>da</strong>to de ser. Nestamedi<strong>da</strong>, enquanto consequência de uma decisão voluntária, o sofrimento é <strong>da</strong> exclusivaresponsabili<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> ser humano. Porém, Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixa de atribuir aDeus a autoria do mal que se padece 188 , organizando-o <strong>em</strong> três categorias. Em primeirolugar, o mal que decorre <strong>da</strong> ausência de um b<strong>em</strong> devido no corpo, como sucede com aper<strong>da</strong> involuntária <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ou <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de corporal. To<strong>da</strong>via, nenhum destes bens é,efectivamente, posse do ser humano, razão pela qual se pod<strong>em</strong> perder contra a própria188 Cf. LA I, I, 1; III, XV, 44 ( CCL 29, p. 211; p. 301-302); De nat. boni 7 ( CSEL 25/2, p. 858).131


vontade, s<strong>em</strong> que tal facto afecte a essência humana 189 . Da sua per<strong>da</strong>, e <strong>em</strong> face <strong>da</strong>gra<strong>da</strong>ção ontológica, não advém, necessariamente, um domínio ôntico de sofrimento,podendo inclusivamente <strong>da</strong>í resultar uma maior plenitude de perfeição do serhumano 190 .Uma outra forma de padecimento decorre <strong>da</strong> ruptura de relações entre sereshumanos, as quais têm como referente el<strong>em</strong>entos que só extrinsecamente afectam aessência humana. É o caso <strong>da</strong> per<strong>da</strong> dos seres que sustentam uma relação de parentesco- paterni<strong>da</strong>de, filiação, fraterni<strong>da</strong>de - ou de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Ora, o elo de ligação entre estesseres referencia-se a uma união de carácter t<strong>em</strong>poral. Por isso, a per<strong>da</strong> destes bens nãoafecta essencialmente o interior de ca<strong>da</strong> ser humano e, por conseguinte, não disturba oseu lugar na disposição hierárquica. Deste modo, pelo carácter mutável do fun<strong>da</strong>mentodeste tipo de relações, elas não dev<strong>em</strong> ser queri<strong>da</strong>s como um fim. Isto não significa,esclarece o filósofo, a negação do sentido de humani<strong>da</strong>de que deve reger as relaçõeshumanas, n<strong>em</strong> sequer a ilicitude de sentimentos humanos nobres. B<strong>em</strong> pelo contrário,afirmá-lo é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, fazer apanágio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira razão <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de detais relações, evidenciando o carácter int<strong>em</strong>poral e eterno <strong>da</strong>quilo que nelas existe esublinhando que é nesse el<strong>em</strong>ento que radica to<strong>da</strong> a forma de relação humana 191 .Por último, o filósofo considera essa dimensão mais radical do mal de pena quedecorre <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do b<strong>em</strong> próprio do ser humano, o qual consiste na união <strong>da</strong> vontadehumana com o B<strong>em</strong> Comum. Essa per<strong>da</strong>, ao corromper, no âmago, a forma do serhumano, é a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> única acepção do mal, por ser a única que instaura,voluntariamente, no interior de uma relação essencial, uma desvirtuação ou indigênciaontológica. É neste nível que o sofrimento atinge o ser, como consequência de umadesord<strong>em</strong> <strong>da</strong> vontade que inverte o sentido <strong>da</strong> relação entre o ser humano e o <strong>Ser</strong>supr<strong>em</strong>o.189 Cf. LA I, II, 5 (CCL 29, p. 213). Também nesta ord<strong>em</strong> se integram as deficiências corporais de caráctercongénito, como pod<strong>em</strong> ser a carência de um m<strong>em</strong>bro ou de uma determina<strong>da</strong> função corpórea ( Cf. LAII, XVIII, 48: CCL 29, p. 269-270).190 É o caso <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> corporal, ou do padecimento voluntários, com vista à obtenção de um b<strong>em</strong>espiritual, como acontece com a morte <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> fé, de que é ex<strong>em</strong>plo a conduta dos mártires ( Cf. v.gr. VR III, 5: CCL 32, p. 191-192; De ciu. dei VIII, XIX: CCL 47, p. 236) ou o padecimento <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de, de que é ex<strong>em</strong>plo a fortaleza de Firmio ( Cf. De men<strong>da</strong>cio XIII, 23: CSEL 41, p. 442).191 Cf. LA I, XV, 32 ( CCL 29, p. 233); VR XLVI, 88: " (…) neque hoc cuiquam inhumanum uideri debet.Magis enim est inhumanum, non amare in homine quod homo est, sed amare quod filius est. Hoc est enimnon in eo amare illud quod ad Deum pertinet, sed amare illud quod ad se pertinet. " ( CCL 32, p. 245).132


Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que Deus é autor do mal de pena nestas três asserções.Porém, apenas a terceira satisfaz com completude a definição augustiniana de mal.Aparent<strong>em</strong>ente, esta afirmação faria <strong>em</strong>ergir, no seio <strong>da</strong> metafísica do Hiponense, aideia de um Deus castigador, policiando as acções humanas e regozijando-se com osofrimento <strong>da</strong>s suas criaturas, o qual t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong>, precisamente, numa capaci<strong>da</strong>de que aprópria Dei<strong>da</strong>de lhes atribui. Porém, esta concepção de divin<strong>da</strong>de, com sentimentospróximos do sadismo, não poderia corresponder à noção excelente que o Hiponensepropõe na sua obra como sendo a única adequa<strong>da</strong> à noção de Deus.Com efeito, o sofrimento é a consequência imediata de to<strong>da</strong> a acção do livrearbítrio que se oriente numa direcção contrária à tendência intrínseca <strong>da</strong> vontadehumana: <strong>Ser</strong>. Por isso, para o Hiponense, Deus é autor do mal de pena na exacta medi<strong>da</strong><strong>em</strong> que é responsável pela natureza específica <strong>da</strong> existência humana como vontade deser. Mas a desorientação <strong>da</strong> vontade, a acção desordena<strong>da</strong>, é <strong>da</strong> exclusiva autoria deca<strong>da</strong> ser humano, quando faz uso de si mesmo, mediante as funções <strong>da</strong> mente que lhesão próprias. Por isso, só indevi<strong>da</strong>mente se pode afirmar que o sofrimento, enquantoafecção <strong>da</strong> alma, é um mal. Na ver<strong>da</strong>de, de acordo com os pressupostos augustinianos,trata-se, ain<strong>da</strong>, de uma manifestação <strong>da</strong> supr<strong>em</strong>a bon<strong>da</strong>de de Deus: a existência de umamanifestação sensível, de um sentimento que, no domínio próprio e no plano íntimo <strong>da</strong>safecções do espírito, revela uma carência ontológica profun<strong>da</strong>, decorrente <strong>da</strong>descoincidência entre a vontade própria e o b<strong>em</strong> comum, entre a direcção do ser e a dodever, afinal, entre a alma e Deus. Trata-se, portanto, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, <strong>da</strong> manifestaçãode um impulso positivo na procura <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. O sofrimento humano é, na óptica doHiponense, uma forma de admonitio que se integra numa certa pe<strong>da</strong>gogia divina. Estateria por objectivo despertar o ser humano do seu torpor, recor<strong>da</strong>ndo-lhe que a dimensãointrínseca <strong>da</strong> sua vontade é a posse <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, fim que só atingirá mediante aorientação <strong>da</strong> vontade própria no sentido inverso - na aversão aos bens próprios e naconversão ao b<strong>em</strong> comum.À decisão voluntária pela posse de bens inferiores àqueles que são devidos segueseo sofrimento, afecção que evidencia ain<strong>da</strong> a essência amável <strong>da</strong> vontade providentede Deus. Esta afecção, ao registar-se no plano <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de - própria do grau uiuere,domínio instintivo integrado na natureza racional do ser humano -, faz que acompreensão de uma existência construí<strong>da</strong> sobre a desord<strong>em</strong> esteja ao alcance de todos,podendo ser ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> de consciência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de conversão.Por conseguinte, o próprio sofrimento humano - que, no nível psicológico, revela uma133


indigência ontológica, decorrente do facto de o ser humano não estar a coincidir com oseu lugar natural - é sinal de vi<strong>da</strong> e manifesta que a forma humana está direcciona<strong>da</strong> àposse do Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>.O que são os afectos na alma, afirma o filósofo, são os lugares nos corpos. A almamove-se pela vontade e os corpos pelo espaço 192 . Os afectos revelam à alma humana asua situação na escala dos seres. No plano <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, eles denunciam o conteúdointencional <strong>da</strong> vontade e indicam a situação de superiori<strong>da</strong>de ou de inferiori<strong>da</strong>de queaquela função <strong>da</strong> alma adquiriu. Sendo assim, o sofrimento t<strong>em</strong>, para o ser humano,uma função marca<strong>da</strong>mente pe<strong>da</strong>gógica. Revela à mente um estado de profun<strong>da</strong> cisãointerior, a presença de uma situação de ruptura no interior de si própria, de desunião,cuja superação está ao seu alcance. Nesta perspectiva, tornando-se instrumento <strong>da</strong>providência divina, o sofrimento não é mais do que uma manifestação íntima de umavontade amorosa de ser que, mesmo quando não se realiza, não deixa de estar presente,como contínuo apelo a uma rectificação do rumo <strong>da</strong> vontade.Inversamente, a vontade que se fixa no b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o, ascende na hierarquiaontológica e eleva consigo os bens de que faz uso: torna-se, de b<strong>em</strong> médio, <strong>em</strong> b<strong>em</strong>superior e, transcendendo os seus próprios limites, realiza, de algum modo, <strong>em</strong> simesma e na reali<strong>da</strong>de de que usufrui, o b<strong>em</strong> comum. Ao decidir pela posse dos benssuperiores, habita progressivamente, na alma de ca<strong>da</strong> ser humano, a felici<strong>da</strong>de,consequência <strong>da</strong> rectidão <strong>da</strong> vontade, à qual se segue uma coesão interior designa<strong>da</strong> porvirtude, cuja máxima expressão é a sabedoria.Para além desta dimensão, positiva e optimista, do sofrimento, cabe ain<strong>da</strong>considerar, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma outra. Com efeito, a afirmação de que osofrimento é o castigo de Deus <strong>em</strong> face de uma desobediência do hom<strong>em</strong> é reitera<strong>da</strong>pelo Hiponense. Porém, como essa afecção <strong>da</strong> alma é resultado de uma eleição humana,poder-se-ia dizer que o castigo de Deus é, afinal, fruto de uma decisão de ca<strong>da</strong> serhumano, a consequência de uma acção defeituosa cuja responsabili<strong>da</strong>de não podetributar-se ao Princípio de <strong>Ser</strong>, pois não t<strong>em</strong> Nele a sua orig<strong>em</strong>.De facto, pela acção providente de Deus, to<strong>da</strong>s as coisas se realizam na ord<strong>em</strong>,isto é, de acordo com o seu modo específico de ser. Quanto aos seres cujo movimentonatural é necessário - os que se inscrev<strong>em</strong> nos graus esse/uiuere -, essa integração dá-sede modo concomitante com a natureza deles, isto é, necessariamente. O mesmo192 Cf. VR XIV, 28 ( CCL 32, p. 204).134


acontece no ser humano, mas aí a situação torna-se probl<strong>em</strong>ática, pois a existênciahumana tolera um certo espaço de indeterminação, ao integrar, na vontade, o livrearbítrio: o natural, no ser humano, é poder escolher, facto que supõe não estardeterminado senão pela tendência ao ser.A fixação <strong>da</strong> vontade, b<strong>em</strong> intermédio, <strong>em</strong> bens inferiores, médios ou superiores,coloca ca<strong>da</strong> ser humano no lugar que lhe corresponde, na ordenação dos seres, <strong>em</strong>virtude <strong>da</strong> maior ou menor densi<strong>da</strong>de adquiri<strong>da</strong> ou, dito de outro modo, <strong>em</strong> função docalibre, do pondus adquirido pela sua vontade. Este, por sua vez, é definido pelo maiorou menor valor dos bens a que o ser humano adere. Sto. <strong>Agostinho</strong> evidencia, dest<strong>em</strong>odo, o alcance intrínseco <strong>da</strong> justiça divina, a qual, enquanto distribui prémios ecastigos, se situa, na obra do filósofo, num contexto d<strong>em</strong>asiado próximo <strong>da</strong> concepçãogreco-romana de justiça e corresponde a um sentido fraco de ord<strong>em</strong>, querendo significaro modo como se acomo<strong>da</strong>m, no conjunto dos seres, aqueles que, livr<strong>em</strong>ente, assumirama sua existência de modo d<strong>em</strong>issionário. To<strong>da</strong>via, sobretudo <strong>em</strong> obras de maturi<strong>da</strong>de,Sto. <strong>Agostinho</strong> reserva uma outra dimensão para o termo iustitia, que se articula com osentido pleno que assumirá a noção de ordo, na metafísica augustiniana.O designado prémio ou castigo de Deus resulta de uma decisão humana, pessoal eíntima. A vontade que se fixa <strong>em</strong> bens inferiores assume um lugar inferior na hierarquiados seres: degra<strong>da</strong>-se, porque quer. Coloca-se a si mesma <strong>em</strong> função de um lugarinferior que não corresponde à sua natureza específica. Transforma-se, assim, de b<strong>em</strong>intermédio, <strong>em</strong> b<strong>em</strong> inferior. Nessa medi<strong>da</strong>, é <strong>em</strong> consequência de uma decisãosingularíssima que a vontade de um ser humano se degra<strong>da</strong>. Esta degra<strong>da</strong>ção significaprecisamente uma desci<strong>da</strong> de grau na ordenação dos seres e acontece quando o serhumano quer ser aquilo que não é.Sto. <strong>Agostinho</strong> declara que a essa decisão se segue, com to<strong>da</strong> a justiça, odesconhecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, pois são precisamente esses benssupr<strong>em</strong>os – a Ver<strong>da</strong>de e a Liber<strong>da</strong>de - que o ser humano rejeita. Ora, se o conhecimento<strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de são características especificamente humanas, apresença destas noções supr<strong>em</strong>as degra<strong>da</strong>r-se-á naquele ser humano que,voluntariamente, nega a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua forma, contrariando o b<strong>em</strong> comum.Pelo alcance maximamente imanente desta lei de ord<strong>em</strong>, a ca<strong>da</strong> decisão humanaestá inerente, ius suum, o b<strong>em</strong> devido, aquele que ca<strong>da</strong> ser humano procurou, medianteo arbítrio <strong>da</strong> sua vontade. Portanto, um ser que decide por um b<strong>em</strong> inferior encontra,pela determinação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> dos bens, de modo imediato, o grau que sentenciou para a135


quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua vontade. É deste modo que a justiça divina o integra, nullo interuallo,na ordenação dos seres. De facto, ca<strong>da</strong> ser livre t<strong>em</strong> o que quer, e não seria justo - maisain<strong>da</strong>, seria contraditório com a acção do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, criadora de vontades livres –atribuisse, na hierarquia ontológica, a um <strong>da</strong>do ser humano, uma situação ontológicadiferente <strong>da</strong>quela que ele livr<strong>em</strong>ente escolheu. Deste modo, conferindo uma certaplastici<strong>da</strong>de à vontade humana livre, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz entrar <strong>em</strong> sintonia estes doisel<strong>em</strong>entos, aparent<strong>em</strong>ente de difícil conciliação: o alcance universal <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e adimensão arbitrária <strong>da</strong> vontade humana.136


CAPITULO IIO TODO E AS PARTES1. Pulchrum et aptumTendo-a percebido como proprie<strong>da</strong>de universal dos corpos, Sto. <strong>Agostinho</strong> relata,<strong>em</strong> contexto autobiográfico, a atracção que sobre ele próprio exercia a beleza. O seuprimeiro escrito, redigido <strong>em</strong> Cartago entre os anos 380/381, intitulava-se De pulchro etapto. Obra cedo extravia<strong>da</strong> por motivo que o seu autor não pôde explicar, fora elabora<strong>da</strong>quando <strong>Agostinho</strong> se encontrava imerso na seita maniqueísta.Atendendo ao relato de Confessionum, é possível situar as inquietações do jov<strong>em</strong>filósofo, à época <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção de De pulchro et apto, entre duas interrogações. Umaprimeira, acerca <strong>da</strong> causa do mal que se pratica, leva o filósofo, na busca de resposta, aconsultar os math<strong>em</strong>atici e a entregar-se, por si mesmo, ao estudo dos librigenethliacorum 193 . Uma outra, acerca <strong>da</strong> natureza do amor de amizade, tomaria comoponto de parti<strong>da</strong> a experiência <strong>da</strong> finitude desta dimensão antropológica, tragicamentesenti<strong>da</strong> com a morte de um dos amigos de infância.De facto, é na sequência de uma reflexão sobre o amor, nas suas multímo<strong>da</strong>sexpressões, que o filósofo se refere a De pulchro et apto 194 . Este aspecto não é dedesprezar, pois manifesta a matriz <strong>da</strong> reflexão augustiniana sobre a beleza, neste casoaquela que é percebi<strong>da</strong> nas formas corpóreas visíveis. Tal experiência é um reflexo <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>, sendo esta entendi<strong>da</strong> como congruência entre as partes e o Todo ou como umtecido harmónico que se gera na relação de conformi<strong>da</strong>de entre as diferentes formas dosseres. É a harmonia <strong>da</strong>s partes de um corpo entre si e deste <strong>em</strong> relação ao conjunto doscorpos que atrai a alma, fazendo que ela, por seu turno, se una às coisas belas, seconcilie com elas e se pacifique <strong>em</strong> tal cont<strong>em</strong>plação. Assim se justifica, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, a relação entre a alma humana e o conjunto dos seres, atraí<strong>da</strong> para elesmediante o decoro e a beleza que ca<strong>da</strong> um estabelece na relação com o conjunto.193 Cf. Conf. V, III, 4-5 ( CCL 27, p. 58-59).194 Conf. IV, XIII, 20: “(…) dicebam amicis meis: ‘Num amamus aliquid nisi pulchrum? Quid est ergopulchrum? Et quid est pulchritudo? Quid est quod allicit el conciliat rebus, quas amamus? Nisi enim essein eis decus et species, nullo modo nos ad se mouerent” ( CCL 27, p. 50-51).137


Não obstante confessar que fora o amor <strong>da</strong> lisonja que o levara a dedicar esteprimeiro escrito a Hiério, Romanae urbis orator<strong>em</strong>, o filósofo reconhece que o seuespírito se deleitava na cont<strong>em</strong>plação dessa mesma beleza e aptidão presente nos corposvisíveis, mesmo se não houvesse qu<strong>em</strong> louvasse o seu escrito 195 .Quanto resta, na obra de <strong>Agostinho</strong>, como test<strong>em</strong>unho deste escrito perdido,evidencia algumas linhas mestras <strong>da</strong> mundividência do futuro Bispo de Hipona. A suaprimitiva definição de beleza fun<strong>da</strong>-se na percepção visível e começa por distinguir,num corpo, aquilo que é a integri<strong>da</strong>de dele e o facto de ele constituir uma totali<strong>da</strong>de. Porseu turno, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que esse corpo se relaciona adequa<strong>da</strong>mente com outros, ouque, num mesmo corpo, e <strong>em</strong> função de uma determina<strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de, as partes sea<strong>da</strong>ptam à totali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que ele próprio consiste, dir-se-á que reside nele a aptidão,quali<strong>da</strong>de expressa pelo termo latino aptus 196 .Neste sentido, a beleza é, antes de mais, o efeito visível <strong>da</strong> harmonia pela qualsubsiste um todo ordenado. Tal quali<strong>da</strong>de dos seres resulta <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que subiste per se,enquanto a aptidão resulta <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que subsiste ad aliud, i.e., pela referência a outrosel<strong>em</strong>entos, sendo, por isso, um subconjunto <strong>da</strong> beleza 197 . De acordo com este modo deconceber o real – com base na relação entre pulchrum et aptum – é possível identificar,num mesmo corpo, um el<strong>em</strong>ento de carácter substancial, a beleza per se ipsa, e umoutro, que faz que tal corpo entre <strong>em</strong> relação com o conjunto: a aptidão, a acomo<strong>da</strong>ção aum el<strong>em</strong>ento extrínseco e alheio – ad aliud accomo<strong>da</strong>tum –, como a sandália ao pé, aparte de um corpo ao seu universo próprio, ou seja, à totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> qual ele é parte 198 .<strong>Ord<strong>em</strong></strong> é, neste contexto, a noção que a mente elabora quando, mediante os sentidos,percepciona, numa forma corpórea, a dialéctica que se estabelece entre beleza e aptidão.No momento <strong>em</strong> que redige De pulchro et apto não se operou ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> Sto.<strong>Agostinho</strong> n<strong>em</strong> a adesão à metafísica cristã <strong>da</strong> Criação, n<strong>em</strong> o abandono <strong>da</strong>s categoriasveicula<strong>da</strong>s pelo maniqueísmo, as quais é sabido que o filósofo confrontava com195 Conf. IV, XIV, 21 ( CCL 27, p. 51).196 Conf. IV, XIII, 20: “ (…) Et animaduertebam et uidebam in ipsis corporibus aliud esse quasi totum etideo pulchrum, aliud aut<strong>em</strong>, quod ideo deceret, quoniam apte accomo<strong>da</strong>retur alicui, sicut pars corporis aduniuersum suum aut calciamentum ad ped<strong>em</strong> et similia. ” ( CCL 27, p. 51).197 Conf. IV, XV, 24: “(…) pulchrum, quod per se ipsum, aptum aut<strong>em</strong>, quod ad aliud accomo<strong>da</strong>tumdeceret, definiebam et distinguebam et ex<strong>em</strong>plis corporeis astruebam.” ( CCL 27, p. 52).198 Conf. IV, XIII, 20 : “ (…) pars corporis ad uniuersum suum (…).” (CCL 27, p. 51).138


frequência, nesse período, com os escritos de muitos filósofos 199 . As reali<strong>da</strong>desaprendi<strong>da</strong>s, <strong>em</strong> estilo autodi<strong>da</strong>cta, junto dessas autori<strong>da</strong>des que fun<strong>da</strong>vam o seuconhecimento na observação <strong>da</strong>s criaturas e, articulando a mat<strong>em</strong>ática com aastronomia, obtinham resultados ver<strong>da</strong>deiros acerca do curso dos t<strong>em</strong>pos e <strong>da</strong>s estações,permitiram que Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhecesse, paulatinamente, o carácter fabuloso dodiscurso de Manés. Não obstante não ter iniciado, ain<strong>da</strong>, no período a que nosreferimos, a leitura dos Platonicorum, com os quais toma contacto posteriormente, já<strong>em</strong> Milão 200 , a presença do platonismo nas referências a De pulchro et apto não deixade ser notória, quer quanto à metodologia, quer quanto ao conteúdo, podendo justificarsede muitos modos 201 .De acordo com o test<strong>em</strong>unho do autor, a noção de beleza, exposta <strong>em</strong> De pulchroet apto, circunscrevia-se ao domínio <strong>da</strong> formosura corpórea visível, num universo ondeto<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de é entendi<strong>da</strong> como matéria e deriva de combinações materiais.Referindo-se ao conteúdo doutrinal <strong>da</strong>quele opúsculo, Sto. <strong>Agostinho</strong> explica que, apósaplicar as categorias de beleza e aptidão às naturezas corpóreas, se seguia uma reflexão199 Conf. V, III, 3: “(...) multa philosophorum legeram m<strong>em</strong>oriaeque man<strong>da</strong>ta retinebam, ex eis quae<strong>da</strong>mcomparabam illis Manichaeorum longis fabulis, et mihi probabiliora ista uidebantur (…).” (CCL 27, p.58). São consagra<strong>da</strong>s as passag<strong>em</strong> de Confessionum onde Sto. <strong>Agostinho</strong> refere as leituras queacompanharam o seu crescimento intelectual entre os 20 e 30 anos de i<strong>da</strong>de, período que coincidepraticamente com a sua adesão à seita maniqueísta. Assim, <strong>em</strong> Conf. IV, XVI, 28-31( CCL 27, p. 54-56),informa que: a) leu as Categorias de Aristóteles, as quais causaram efeito pernicioso no seu espírito,mormente na compreensão <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de como substrato dos seus próprios atributos, gerando, nela, amultiplici<strong>da</strong>de; b) leu todos os livros que pôde ler <strong>da</strong>s designa<strong>da</strong>s artes liberais, tendo-os entendido por sipróprio, especificando: “ de arte loquendi et disserendi, de dimensionibus figurarum et de musicis et denumeris”. Resumindo, leu um conjunto de livros enre<strong>da</strong>díssimos “ tot nodosissimi libri eno<strong>da</strong>ti”, sobrecujo proveito se interroga, transcorridos cerca de dezasseis anos.200 Cf. Conf. VII, IX; VII, XX; VIII, II ( CCL 27, p. 101-103; p. 109-110; p. 114-116).201 Paralelamente à relação entre a beleza e o amor, o filósofo propõe uma dialéctica ascendente que parte<strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> beleza corpórea para a natureza <strong>da</strong> alma e para uma aproximação racional à essência doPrincípio. Uma análise <strong>da</strong>s possíveis fontes de De pulchro et apto pode ler-se <strong>em</strong> K. SVOBODA,L’esthétique de saint Augustin et ses sources (Paris 1933), p. 10-16. V., também, o conjunto de estudosindicados <strong>em</strong> Bibligrafia B. II. 17. PVLCHRVM, dos quais se destacam, para a compreensão desteopúsculo perdido do Hiponense, as seguintes publicações: Donald A. CRESS, “Hierius & St. Augustine'sAccount of the Lost 'De pulchro et apto': ‘Confessions' IV,13-15”: Augustinian Studies 7 (1976) 153-163;Jean-Michel FONTANIER, “Sur le traité d'Augustin "De pulchro et apto": Convenance, beauté eta<strong>da</strong>ption”: Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques 73 (1989) 413-421 ; A. SOLIGNAC « Le«de pulchro et apto» » in Bibliothèque augustinienne.Œuvres de saint Augustin 14 (1996), 670-673.139


sobre a presença delas na natureza do espírito. Mas, como esclarece <strong>Agostinho</strong>, noreferido escrito o espírito era entendido <strong>em</strong> função de categorias igualmente materiais,sujeitando-se, por conseguinte, à divisão e corrupção. Da narrativa presente <strong>em</strong>Confessionum, ao aplicar a definição de pulchrum et aptum ao universo do espírito e ànatureza de Deus, resultaria uma visão do Mundo dualista, na qual dois reinosentrariam <strong>em</strong> conflito. De um lado, o reino <strong>da</strong> virtude, <strong>da</strong> paz e <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, ao qualcorresponderia a natureza <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e do supr<strong>em</strong>o b<strong>em</strong>, assim como a <strong>da</strong> menteracional, sendo esta última identifica<strong>da</strong> com aquelas duas noções supr<strong>em</strong>as, Ver<strong>da</strong>de eB<strong>em</strong>; de outro lado, o reino <strong>da</strong> discórdia, <strong>da</strong> divisão, do vício, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> irracional, ao qualcorresponderia o mal supr<strong>em</strong>o, orig<strong>em</strong> do erro e <strong>da</strong>s opiniões falsas 202 .Em suma, considerando as categorias que suportariam a concepção de belezaexposta <strong>em</strong> De pulchro et apto, entendi<strong>da</strong> como o instrumento privilegiado de acesso àcompreensão do real, Sto. <strong>Agostinho</strong> propunha uma visão do mundo dualista, na qual oUno e o Múltiplo, substancializados, se oporiam entre si, respectivamente, comoprincípios supr<strong>em</strong>os de B<strong>em</strong> e de Mal. Este conflito verificar-se-ia nos diferentes grausde reali<strong>da</strong>de: no nível corpóreo, pela oposição entre beleza e feal<strong>da</strong>de, entre o apto e oinepto; na reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, pela oposição entre virtude e vício, sendo este último denatureza estranha à racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma e <strong>em</strong>ergindo de uma vi<strong>da</strong> irracional, presentenaquela e dela distinta; por último, no grau supr<strong>em</strong>o de reali<strong>da</strong>de verificar-se-ia umaantinomia entre um princípio anónimo, indiferenciado, assexuado, monádico, e umoutro, múltiplo, essencialmente colérico, razão de to<strong>da</strong>s as dissenções, crimes e másacções espalhados pelo Mundo.Não obstante os escassos el<strong>em</strong>entos disponíveis sobre o tratado De pulchro etapto, é possível afirmar que a concepção de beleza, nesse escrito do jov<strong>em</strong> <strong>Agostinho</strong>,estava, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, imbuí<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua visão maniqueísta do mundo, mas elabora<strong>da</strong> d<strong>em</strong>odo original, por meio de um conjunto de doutrinas expostas sincreticamente, atravésde categorias devedoras de el<strong>em</strong>entos neopitagóricos e neoplatónicos 203 . Sto. <strong>Agostinho</strong>202 Cf. Conf. IV, XV, 24 ( CCL 27, p. 52-53).203 A metafísica augustiniana é assaz sugestiva no que se refere à categoria do belo. Porém, como recor<strong>da</strong>Fontanier, to<strong>da</strong> a reflexão <strong>em</strong> torno a De puchro et apto incide sobre uma lacuna. Este autor questiona adependência <strong>da</strong>quele escrito perdido <strong>em</strong> relação às categorias maniqueístas. Atenuando o peso destainfluência, insiste na subordinação <strong>da</strong> concepção de beleza veicula<strong>da</strong> naquela obra de <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> facedo dualismo inerente ao platonismo, b<strong>em</strong> como na dependência deste escrito <strong>em</strong> relação a Cícero. [Cf. J.-140


articularia, nesse seu primeiro escrito, as fabulações maniqueístas, por um lado, e ascategorias de Mónade e Díade, de tradição pitagórica, por outro, deixando sobressairuma visão, dual e conflituosa, do Universo e <strong>da</strong> ordenação do real 204 . Tal como seapresentaria <strong>em</strong> De pulchro et apto, a própria noção de beleza não se dissocia de umaconcepção de harmonia basea<strong>da</strong> <strong>em</strong> categorias mat<strong>em</strong>áticas e geométricas, como a <strong>da</strong>relação entre as partes e o Todo que gera a congruência <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de – o pulchrum per se-, à qual subjaz a relação de inclusão, <strong>da</strong>do que o aptum <strong>em</strong>erge, aí, como subconjuntodo pulchrum.Em espírito de auto-avaliação, ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> Confessionum o filósofo aponta duasdeficiências a esta sua primitiva concepção <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>: a defesa <strong>da</strong>substanciali<strong>da</strong>de do mal e a identificação entre Deus e a natureza humana ou menteracional 205 . Já <strong>em</strong> De pulchro et apto <strong>Agostinho</strong> tentara construir uma esca<strong>da</strong> que oelevasse <strong>da</strong>s formas corpóreas à cont<strong>em</strong>plação do b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o. Contudo, ele próprioreconhece que não possuía categorias capazes de o esclarecer<strong>em</strong> acerca <strong>da</strong> natureza doespírito humano, impedindo-o de superar uma mundividência fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre categoriasmateriais. Estas encontrava-as s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de quer no maniqueísmo, que entãoperfilhava, quer nos escritos filosóficos de Cícero, de filiação estóica 206 , quer nosel<strong>em</strong>entos de pitagorismo que poderia colher <strong>em</strong> fontes doxográficas, quer,M. FONTANIER, «Sur le traité d’Augustin De pulchro et apto: convenance, beauté et a<strong>da</strong>ptation”: Revuedes Sciences Philosophiques et Théologiques 73 (1989) p. 413-415].204 Conf. IV, XV, 24: “ (...) Et illam monad<strong>em</strong> appellabam tamquam sine ullo sexu ment<strong>em</strong>, hanc uerodyad<strong>em</strong>, iram in facinoribus, libid<strong>em</strong> in flagitiis, nesciens quid loquerer.” ( CCL 27, p. 52-53). Ainfluência de Pitágoras no conjunto <strong>da</strong> obra de Sto. <strong>Agostinho</strong> é notória e far-se-á sentir sobretudo nosprimeiros escritos. A. SOLIGNAC, no seu artigo “ Doxographies et manuels <strong>da</strong>ns la formationsphilosophique de saint Augustin" : Recherches augustiniennes 1 (1958), p. 113-148, espec. 133-137, s<strong>em</strong>desprezar a influência de Varrão como fonte <strong>da</strong> absorção do pitagorismo por Sto. <strong>Agostinho</strong>, faz notarque estaria <strong>em</strong> causa o escrito de Nicómaco de Gerasa, Introductio aritmethica (Nicomachos of Gerasa,Introduction to Arithmetic, Transl. by L. L. D’OOGE, with Studies on Greek Arithmetic by F.-E. Robbinsand L.-C. Karpunsky, Univ. of Michigan Studies, New-York, 1926), na versão latina de Apúleo. V.,também, A. SOLIGNAC, Oeuvres de saint Augustin. Les Confessions, Bibliothèque augustinienne 13, p.90-92.205 Cf. Conf. IV, XV, 26 ( CCL 27, p. 53).206 M. Testard nota que, na obra de Cícero, Sto. <strong>Agostinho</strong> poderia colher algumas noções sobre aimortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma e, inclusivamente, sobre escatologia. Mas escreve: “Précisons en effet, qu’autrechose est d’affirmer l’immortalité de l’esprit, autre d’en étudier la nature» ( M. TESTARD, SaintAugustin et Cicéron, p. 65. V., também, p. 62, n. 2 ).141


inclusivamente, nas Categorias de Aristóteles e na noção de substância proposta peloEstagirita.O neoplatonismo prodigalizava ao Hiponense os el<strong>em</strong>entos de mediação entre asformas corpóreas e a inteligibili<strong>da</strong>de do b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o, tanto no plano epistémico, aoanalisar os diferentes níveis de conhecimento, como no plano ontológico, estabelecendodiferentes formas de apreensão do real com base numa noção ord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> comodisposição gradual de seres. Esta hierarquização do real, por seu turno, aplicar-se-iaquer ao mundo sensível, onde os seres se dispõ<strong>em</strong> segundo a gra<strong>da</strong>ção esse-uiuereintellegere,quer ao mundo inteligível, onde a própria hierarquia afecta as hipóstases –Alma do Mundo, ✂, Uno. Articulando as categorias li<strong>da</strong>s nas fontesneoplatónicas, às quais <strong>Agostinho</strong> acrescenta os el<strong>em</strong>entos colhidos na meditação <strong>da</strong>Escritura, o filósofo apercebe-se de que uma justificação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> comocongruência entre as partes e o Todo que se fun<strong>da</strong>sse numa visão conflituosa do realredun<strong>da</strong>ria numa falsa concepção <strong>da</strong> relação entre o ser humano e o ser supr<strong>em</strong>o, poisambos ficariam submetidos ao combate entre duas substâncias opostas e subsumidos naomnipotência delas. O Hiponense compreende, ain<strong>da</strong>, que uma concepção como amaniqueísta não atinge o plano do ser, mas apenas o dos phantasma, o horizontepsicológico <strong>da</strong>s fabulações <strong>da</strong> mente, tornando-se, por isso, falsa e incapaz de explicar aestrutura do Universo, razão pela qual é ínvia para radicar a noção de ord<strong>em</strong> no domínioontológico e equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa 207 .Basicamente, os novos el<strong>em</strong>entos que Sto. <strong>Agostinho</strong> articula na sua concepção <strong>da</strong>beleza que por to<strong>da</strong> a parte se espelha no universo corpóreo - e que, nos primeirosescritos, servirá de argumento à afirmação <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong> - sãoaqueles que retém <strong>da</strong> leitura dos Platonicorum. Antes de mais, o filósofo de Hiponaassimila a metodologia neoplatónica que apela para a via <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de comocaminho para a compreensão <strong>da</strong> relação de congruência entre o Todo e as partes. A207 Em VR XX, 36-40 ( CCL 32, p. 209-212), Sto. <strong>Agostinho</strong> volta a insistir que a causa do mal não estánas formas dos corpos, n<strong>em</strong> <strong>em</strong> qualquer expressão de forma. O mal é uma afecção desordena<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma,fruto de um aspectus innordinatus sobre o real, de uma desord<strong>em</strong> introduzi<strong>da</strong> na própria percepção <strong>da</strong>beleza <strong>da</strong>s formas. Por isso, é s<strong>em</strong>pre no interior <strong>da</strong> mente que a desord<strong>em</strong> se instala, sendo a superstitiouma <strong>da</strong>s suas expressões mais perniciosas. Por meio dela, a imaginação forja um falso mundo, que t<strong>em</strong>por ver<strong>da</strong>deiro. A desord<strong>em</strong> ergue-se, assim, numa visão do mundo suficient<strong>em</strong>ente organiza<strong>da</strong> e produtode uma facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, pelo que se confunde facilmente com o Mundo Real.142


percepção hierarquiza<strong>da</strong> do real, por sua vez, na proposta plotiniana, centralizava acausa <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de universal na segun<strong>da</strong> hipóstase, o ✂, ou, na versão latinaa que o filósofo acede, o Verbo. É precisamente esta concepção do Verbo comoPrincípio de Inteligibili<strong>da</strong>de presente no universo material que lhe permite postular auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Paralelamente, a versão neoplatónica de um Mundo Inteligívelconfere-lhe a possibili<strong>da</strong>de de superar uma visão do real encerra<strong>da</strong> nos limites <strong>da</strong>scategorias materiais (extensão e finitude/ infinitude 208 ), que o impediam de ascender àvi<strong>da</strong> do espírito e às potenciali<strong>da</strong>des nela conti<strong>da</strong>s.Uma vez conquistados estes el<strong>em</strong>entos, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera-se na posse dosinstrumentos necessários para equacionar a magna quaestio acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. De facto,não deixará de insistir, quer nos seus primeiros escritos, quer nas obras de maturi<strong>da</strong>de,no carácter imaterial <strong>da</strong> beleza, o qual não depende <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de <strong>da</strong> massa queconstitui um corpo determinado, mas do Princípio de Racionali<strong>da</strong>de de que procede oseu ser 209 .208 Sto. <strong>Agostinho</strong> resume do seguinte modo a causa do erro inevitável que o prendia ao maniqueísmo:“(...) et quoniam cum de deo meo cogitare uell<strong>em</strong> cogitare nisi moles corporum non noueram – nequeenim uidebatur mihi esse quidquam, quod tale non esset – ea maxima et prope sola causa erat ineuitabiliserroris mei” ( Conf. V, X, 19: CCL 27, p. 68). E, <strong>em</strong> Conf. IV, VII, 12: CCL 27, p. 46): “ (...) non mihieras [domine] aliquid solidum et firmum, cum de te cogitabam. Non enim tu eras, sed uanam phantasmaet error meus erat deus meus.”209 Cf. v. gr. De immort. anim. VIII, 13 : “ Quod si non id, quod est mole corporis, sed id, quod in specie,facit corpus esse, quae sententia invictiore ratione adprobatur: tanto enim magis est corpus, quantospeciosus est atque pulchrius, tantoque minus est, quanto foedius ac deformius, quae defectio nonpraecisione molis, de qua in satis actum est, sed speciei privatione contingit (...) – quaerendum de hac rediligenter ac discutiendum est (...).” ( CSEL 89, p. 114); De nat. boni 23: “ (...) it<strong>em</strong> species mala uel incomparatione dicitur formosioris atque pulchrioris, quod ista sit minor species, illa maior, non mole, seddecore, aut quia non congruit huic rei, cui adhibita est, ut aliena et inconueniens uideatur: tanquam sinudus homo in foro deambulet, quod non offendit, si in balneo uideatur. Similiter et ordo tunc malusdicitur, cum minus ipse ordo seruatur: unde non ibi ordo, sed potius inordinatio mala est, cum aut minusordinatum est quam debuit, aut non sicut debuit.” (CSEL 25/2, p. 865). De ciu. dei XI, XXII:“[pulchritudo] ( ...) non mole constat, sed parilitate ac dimensione m<strong>em</strong>brorum” (CCL 48, p. 341); VRXLIII, 80: “(...) itaque omne granum milii suae parti tantae, quantam in hoc mundo nostrum corpus tenet,tam magnum esse, quam mundus est nobis, totumque istum mundum figurarum ratione pulchrum essenon mole, magnum aut<strong>em</strong> uideri non pro sua quantitate, sed pro breuitate nostra, id est animalium, quibusplenus est.” ( CCL 32, p. 240).143


Por seu turno, uma concepção de harmonia basea<strong>da</strong> na racionali<strong>da</strong>de numérica, deinfluência pitagórica, será preserva<strong>da</strong> como alicerce <strong>da</strong> mundividência augustiniana,alargando-se, inclusivamente, a outros domínios <strong>da</strong> metafísica que transcend<strong>em</strong> apercepção estética ou a reflexão augustiniana sobre o belo. De igual modo, na mente deSto. <strong>Agostinho</strong> persistirá uma concepção de beleza fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na articulação entrepulchrum et aptum, enquanto expressão <strong>da</strong> disposição ordena<strong>da</strong> do real e <strong>da</strong> harmónicaarticulação entre as partes e o Todo.To<strong>da</strong>via – não obstante as novas categorias a que adere e a defesa <strong>da</strong> cerra<strong>da</strong>metodologia <strong>da</strong> exercitatio animae, associa<strong>da</strong> ao cumprimento didáctico de umprograma de estudos rigoroso –, <strong>Agostinho</strong> necessita de superar alguns el<strong>em</strong>entosdúbios, contidos na mundividência neoplatónica. Entre eles encontram-se a dificul<strong>da</strong>dede identificar a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma humana e a redução <strong>da</strong> ideia de ord<strong>em</strong> à noção dehierarquia, entendendo ca<strong>da</strong> expressão do real como o efeito de uma sucessivadegra<strong>da</strong>ção do Uno. Para equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, o Hiponense necessita deesclarecer, acima de tudo, a questão que assume como matricial, para a sua concepçãode Sabedoria – a natureza de Deus e <strong>da</strong> alma e o modo como se estabelece a relaçãoentre ambas. O próprio filósofo confessa só ter conseguido esclarecer as dificul<strong>da</strong>desacerca <strong>da</strong> natureza do belo e ter compreendido o alcance fulcral <strong>da</strong> questão que oocupava <strong>em</strong> De pulchro et apto quando assumiu, como categoria axiomática <strong>da</strong> suametafísica, a noção bíblica de Criação, que exige conceber a omnipotência de umprincípio único, causa de todos os seres 210 .Inversamente, uma vez assumi<strong>da</strong> a radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proposta de uma dependênciaontológica dos seres <strong>em</strong> face de um ser supr<strong>em</strong>o, Sto. <strong>Agostinho</strong> pode defender apresença efectiva <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> todos os corporalia e <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de ser,conseguindo introduzir, na completa inacessibili<strong>da</strong>de e no absoluto alheamento do Unoplotiniano <strong>em</strong> face do Múltiplo, a categoria matricial de <strong>Ser</strong>. E, ao encontrar umametodologia que lhe permite compreender quer o modo como o <strong>Ser</strong> e o Uno serelacionam, quer a forma como ambos se dão a partilhar na multidão dos seres, ofilósofo exulta perante a infinita pulcritude do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e transcendente, a qual se210 Conf. IV, XV, 24: “ Sed tantae rei [pulchrum atque aptum] cardin<strong>em</strong> in arte tua nondum uidebam,omnipotens, ‘ qui facis mirabilia solus’ et ibat animus per formas corporeas. ” ( CCL 27, p. 52).144


espelha <strong>em</strong> todo o universo, onde quer que se manifeste uma ínfima expressão deforma 211 .<strong>Ser</strong>á, portanto, numa concepção <strong>da</strong> soberania do <strong>Ser</strong> que Sto. <strong>Agostinho</strong> farárepousar a fonte do deleite que frui qu<strong>em</strong> procura o belo, <strong>em</strong> qualquer <strong>da</strong>s suasmultiformes expressões. Por isso, na metafísica augustiniana, a beleza será, a par <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de, Bon<strong>da</strong>de e Uni<strong>da</strong>de, uma <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de 212 . Por suavez, o acesso <strong>da</strong> razão a um modo de compreender a ord<strong>em</strong> por meio <strong>da</strong> belezapercepciona<strong>da</strong> pelos sentidos, leva o filósofo a assumir a definição de beleza como acongruência entre as partes e o Todo. Efectivamente, esta é uma acepção <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> quederiva <strong>da</strong> apreciação estética do real. To<strong>da</strong>via, pela sua dependência <strong>em</strong> face <strong>da</strong>percepção sensível, o seu horizonte de sentido é restrito. Não obstante, Sto. <strong>Agostinho</strong>entrega-se a uma análise profusa <strong>da</strong> riqueza deste recurso na compreensão e no acesso àuniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Este facto justifica-se tanto por razões de caráctermetodológico, como por exigência de coerência interna <strong>da</strong> mundividência augustiniana.Com efeito, a concepção de ord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> como disposição gradual dos seresestá presente na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong> desde o seu primeiro opúsculo. Mesmotomando a concepção de uma substância material como limite do pensar, já <strong>em</strong> Depulchro et apto o filósofo distribuía a beleza por graus: o apto, o acomo<strong>da</strong>mento doscorpos entre si, de acordo com a utili<strong>da</strong>de; o belo, o que convém por si e respeita aoconjunto, à totali<strong>da</strong>de dos corpos. Estas duas categorias – aptidão e beleza – ter-se-iammostrado operativas na abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> dos diferentes graus de reali<strong>da</strong>de, tal como o jov<strong>em</strong>rector então os concebia: os corpos visíveis, o espírito humano e os dois princípiossupr<strong>em</strong>os de reali<strong>da</strong>de, Mónade e Díade 213 . Uma vez supera<strong>da</strong> a dificul<strong>da</strong>de que211 Conf. IV XI, 17: “ (...) Ita s<strong>em</strong>per omnia, quibus unum aliquid constat – et non sunt omnia simul ea,quibus constat – plus delectant omnia quam singula, si possint sentiri omnia. Sed longe his melior quifecit omnia, et ipse est deus noster, et non discedit, quia nec succeditur ei.” ( CCL 27, p. 49).212 Vejam-se, v. gr. <strong>em</strong> Confessionum, as seguintes expressões: “(...) mi pater summe bone, pulchritudopulchrorum omnium” ( Conf. III, VI, 10: CCL 27, p. 31); “ (...) tua pulchritudo tu ipse sis” ( Conf. IV, XI,29: CCL 27, p. 54). E o trecho famoso de Conf. X, XXVII, 38, que encerra a descrição do processo deconversão augustiniana: “ <strong>Ser</strong>o te amaui, pulchritudo tam antiqua et tam noua, sero te amaui! Et ecceintus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformis inruebam.” (CCL 27, p.175).213 M. Testard quer fazer depender a intervenção destes dois conceitos <strong>em</strong> De pulchro et apto, Mónade eDíade, <strong>da</strong> leitura de obras de Cícero, manifestando a influência estóica neste primeiro escrito de<strong>Agostinho</strong>, sendo um facto que, nos escritos de Marco Túlio, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontraria também a145


consistia <strong>em</strong> não conseguir ultrapassar uma compreensão do real para além dos limites<strong>da</strong> substância material, Sto. <strong>Agostinho</strong> conservará uma visão do Universo basea<strong>da</strong> nadisposição hierárquica dos seres, grata ao platonismo. Permanece, assim, na sua obra,após o abandono do maniqueísmo, a defesa de uma concepção hierarquiza<strong>da</strong> do real,onde os seres se dão de forma diferencia<strong>da</strong>, qualitativamente desigual, sendo, no caso<strong>em</strong> análise, uns mais belos do que outros. Fica, porém, por definir qual a causa <strong>da</strong>beleza <strong>da</strong>s formas e qual o efeito que ela produz, uma vez <strong>em</strong> contacto com o espíritohumano.O esclarecimento destas duas questões permitirá a Sto. <strong>Agostinho</strong> afirmar, desdeos níveis mais el<strong>em</strong>entares de reali<strong>da</strong>de, como são os corpos e os órgãos <strong>da</strong> sensaçãocorpórea, a presença universal <strong>da</strong> ordenação e <strong>da</strong> congruência do real, confirmando,nestes níveis ínfimos de percepção, a razoabili<strong>da</strong>de do real. Quando se detémd<strong>em</strong>ora<strong>da</strong>mente, de modo particular nos seus primeiros escritos, na análise <strong>da</strong> belezados corpos e <strong>da</strong> percepção sensível dessa mesma beleza, o filósofo proclama que to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de, desde a sua mais ínfima expressão e desde o modo mais ínfimo de a perceber,é espelho de congruência e ordenação, tornando-se, por isso, caminho para aceder àcompreensão <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.Na articulação deste processo de ascese e de compreensão <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> por meio <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des corpóreas, terá sido decisiva a descoberta <strong>da</strong> via <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de ou dométodo <strong>da</strong> inflexão do espírito sobre si mesmo. Na reali<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> aludeinúmeras vezes à necessi<strong>da</strong>de de o espírito humano reflectir sobre si próprio, afirmandoque, de contrário, ele não poderá aceder a uma visão de totali<strong>da</strong>de sobre o real,incorrendo na falácia de tomar a parte pelo Todo, dispersando-se na multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sformas. Inversamente, quando o espírito se recolhe sobre si mesmo, obtém, a um t<strong>em</strong>po,a visão de conjunto sobre a congruência do real e o acesso à Uni<strong>da</strong>de do Princípio dereali<strong>da</strong>de, permitindo deduzir, de imediato, que, para <strong>Agostinho</strong>, o Universal e o Unosão princípios convergentes. Dito de outro modo, na perspectiva augustiniana, aordenação do real não se sustenta na relação que a multiplici<strong>da</strong>de dos seres estabeleceentre si, mas na relação que o Universo celebra com um princípio qualificativo querealiza o elo de união entre todos os seres.presença de Pitágoras ( M. TESTARD, Saint Augustin …, p. 55, n. 2; 66). V., também, J. FONTANIER,“Le De pulchro et apto…”, p. 414-416.146


A necessi<strong>da</strong>de do regresso do espírito sobre ele mesmo para aceder à compreensãodo real é uma tese partilha<strong>da</strong> por autores como Plotino, Porfírio, Cícero ou Séneca,sendo reconheci<strong>da</strong> a influência quer do estoicismo, quer do neoplatonismo naconstituição <strong>da</strong> mundividência augustiniana 214 . Sto. <strong>Agostinho</strong> assume esse movimentona completude <strong>da</strong> sua dinâmica – do exterior para o interior, do interior para o Supr<strong>em</strong>o–, mas evidencia, dentro do acesso à noção supr<strong>em</strong>a, a transcendência desta e a sua totaldistinção face à alma que realiza o processo de ascese. <strong>Agostinho</strong> afasta-se, deste modo,<strong>da</strong> proposta neoplatónica que defendia a ideia de uma consubstanciali<strong>da</strong>de entre a almae o Uno.Na exploração <strong>da</strong>s vias de acesso à definição <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> como congruência entre aspartes e o Todo, o filósofo fará apelo à metodologia <strong>da</strong> auto-reflexão, concretamente pormeio <strong>da</strong>s distintas explanações <strong>em</strong> torno <strong>da</strong>s liberales artes. Não obstante n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pretornar clara, sobretudo nas exposições dos primeiros Diálogos, a transcendência dotermo de chega<strong>da</strong> desses processos de ascese <strong>da</strong> mente, o filósofo defende, to<strong>da</strong>via,s<strong>em</strong>pre e inexoravelmente, a efectiva diferença entre a alma e Deus, noção com a qualidentifica o Princípio Supr<strong>em</strong>o de Inteligibili<strong>da</strong>de.Ao assumir a metodologia do regressus animae, Sto. <strong>Agostinho</strong> inicia a busca <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de precisamente pela análise <strong>da</strong>quilo que, estando <strong>em</strong> contacto com a razão, lhe éinferior, de modo a respeitar um princípio de ordenação ontológica absolutamenteintangível, de acordo com o qual uma reali<strong>da</strong>de inferior não pode agir sobre uma outra,superior. Entendendo a noção de ord<strong>em</strong>, num primeiro momento, como a disposiçãohierárquica dos seres, a metodologia que parte do inferior para o superior parecegarantir o sucesso <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação racional do filosof<strong>em</strong>a 215 .214 Entre a profusão de estudos sobre as fontes neoplatónicas para a assunção <strong>da</strong> metodologia do regressusanimae, veja-se: A. SOLIGNAC, “Réminiscences…”, p. 455-464; J. DOIGNON, “Connaissance de soi etdispersion <strong>da</strong>ns les choses ( 1, 1, 2-2, 3) ” in Bibliothèque augustinienne.Œuvres de saint Augustin 4/2, p.332-333.215 Em De mus. VI, IV, 7, é com surpresa que o filósofo nota que pode haver uma reacção do inferiorsobre o superior : “ [magister] – Mirare potius quod facere aliquid in anima corpus potest.” ( PL 32,1166). Esta desord<strong>em</strong> não poderá, to<strong>da</strong>via, ter orig<strong>em</strong> na estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, n<strong>em</strong> mesmo nanatureza <strong>da</strong> razão, mas num terceiro princípio, cujo alcance será analisado pela primeira vez com d<strong>em</strong>ora<strong>em</strong> De libero arbitrio e que lançará Sto. <strong>Agostinho</strong> numa polémica que durará até ao final dos seus dias,na tentativa de justificar a relação entre três reali<strong>da</strong>des que interag<strong>em</strong> no ser humano: um princípio dedesord<strong>em</strong> ou concupiscentia, um princípio de possibili<strong>da</strong>de de escolha ou liberum arbitrium e umprincípio de sobreabundância de bon<strong>da</strong>de e ord<strong>em</strong>, ou gratia.147


Efectivamente, é na relação entre as reali<strong>da</strong>des corpóreas e a percepção sensívelque, primeiramente, se centra a análise do Filósofo de Hipona, na procura de construirum discurso capaz de garantir a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Ao fazê-lo, põe <strong>em</strong> prática aconvicção que defendera <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos e que manterá, coerent<strong>em</strong>ente, aolongo <strong>da</strong> sua obra: é possível aceder à Ver<strong>da</strong>de e a relação epistémica que se estabeleceentre o sensível e o seu órgão próprio não constitui um obstáculo, na consecução de talobjectivo. B<strong>em</strong> pelo contrário, esta relação é, no processo de acesso àquela noçãosupr<strong>em</strong>a, um instrumento tão imprescindível quanto fiável. De facto, qu<strong>em</strong> erra não ofaz por não percepcionar correctamente uma reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong>, mas porque o seu juiz – arazão – é falível, sendo este um factor que revela, também, o lugar que essa função <strong>da</strong>mente ocupa, na hierarquia ontológica.Os excursos de Sto. <strong>Agostinho</strong>s acerca <strong>da</strong> percepção sensível multiplicam-se aolongo <strong>da</strong> sua vasta produção, e não há nenhum dos conhecidíssimos sentidos que fiquepor tratar, no que diz respeito ao contributo que prestam no acesso <strong>da</strong> razão à ordorerum. To<strong>da</strong>via, é um facto que, na sequência de uma larga tradição, o filósofoprivilegia, no conjunto <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de sensível, a visão e a audição, exaurindo asvirtuali<strong>da</strong>des do recursos <strong>da</strong> vista e do ouvido, no que se refere à in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>.No caso dos corpos visíveis, o Hiponense percepciona a ordenação que oscaracteriza equacionando a uni<strong>da</strong>de, efeito <strong>da</strong> congruência entre as partes e o Todo, coma categoria do espaço, uma <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s <strong>da</strong> percepção sensível. Os ex<strong>em</strong>plos ondeidentifica tal ordenação são de diversa índole, mas é um facto que, para esta descrição<strong>da</strong> congruência <strong>da</strong>s partes a partir dos recursos <strong>da</strong> visão, Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> particularafeição pelos ensinamentos retirados <strong>da</strong> geometria. Com efeito, a principal virtuali<strong>da</strong>dedeste domínio de reali<strong>da</strong>des é o facto de poder conjugar a percepção <strong>da</strong> figura de umcorpo, recebi<strong>da</strong> por meio do órgão <strong>da</strong> visão, com o seu arquétipo, presente no espírito.Este paradigma inteligível está já imerso num grau superior, na hierarquia ontológica,garantindo que a percepção <strong>da</strong> forma corpórea leva<strong>da</strong> a efeito pela mente humana éuniversal e imutável. Ora, são precisamente estas as quali<strong>da</strong>des que o Filósofo deHipona pretende advogar para a noção de ord<strong>em</strong>.Nos primeiros escritos augustinianos, é possível identificar ex<strong>em</strong>plos retirados <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> quotidiana e do espectáculo <strong>da</strong> natureza, cui<strong>da</strong>dosamente seleccionados com base148


no princípio de harmonia, medi<strong>da</strong> ou modus 216 . O filósofo chega a designar esta últimacategoria, intrinsecamente uni<strong>da</strong> à percepção <strong>da</strong> beleza visível nas reali<strong>da</strong>des corpóreas,pela expressão pater ordinis 217 . O processo que realiza a ord<strong>em</strong> do real como aptidão econgruência é a transformação de um conjunto de el<strong>em</strong>entos, amorfos e s<strong>em</strong> sentido, <strong>da</strong>dispersão de estilhaços de reali<strong>da</strong>de à formação de um todo conexo. Desta congregatioresulta a união numa forma única e a <strong>em</strong>ergência, perante a mente humana, de umareali<strong>da</strong>de dota<strong>da</strong> de sentido. Este movimento de congregação entre as diversas parcelasdo real obedece a uma finali<strong>da</strong>de determina<strong>da</strong>, a qual permite, por seu turno, identificarprogressivos graus de reali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> função <strong>da</strong> participação deles na racionali<strong>da</strong>desubjacente à Totali<strong>da</strong>de. Assim, o trabalho <strong>da</strong> abelha ou <strong>da</strong> andorinha na tarefa deconstruir o seu ninho produz<strong>em</strong> quer a congruência dessa totali<strong>da</strong>de, que reuniu umconjunto de el<strong>em</strong>entos, antes dispersos, sobrevivendo isola<strong>da</strong>mente, s<strong>em</strong> sentido efinali<strong>da</strong>de específicos, quer um ninho apto para a sobrevivência <strong>da</strong> espécie 218 .Aptidão e congruência são, por conseguinte, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, condições derealização do modus, isto é, <strong>da</strong> disposição dos seres que compõ<strong>em</strong> o Universo. Taldisposição, por estar sujeita a uma mensura, confina-se a um limite e, por isso,apresenta-se à razão humana como uma reali<strong>da</strong>de configura<strong>da</strong>, podendo ser apreendi<strong>da</strong>sob forma de juízo estético. Contudo, os animais supra referidos – a abelha e aandorinha - produz<strong>em</strong> um todo harmónico s<strong>em</strong> o conhecimento <strong>da</strong> própria congruência.Faz<strong>em</strong>-no apenas por instinto de conservação <strong>da</strong> espécie ou <strong>em</strong> virtude de um hábitonatural de sobrevivência. Realizam a sua activi<strong>da</strong>de operante natura, manifestando,assim, que participam num grau de ser inferior ao <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de. Com efeito, seguese-lhe,na hierarquia ontológica, o grau de ser que se caracteriza pelo conhecimento <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de produzi<strong>da</strong>, concretamente através <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mesma. Talpercepção é específica <strong>da</strong> forma do ser humano: nouit quod facit 219 . A percepção <strong>da</strong>216 Veja-se <strong>em</strong> De ordine a referência ao espectáculo <strong>da</strong> luta de galos, <strong>em</strong> si mesmo ordenado, pois nele sepode verificar uma racionali<strong>da</strong>de intrínseca que equilibra as forças <strong>em</strong> combate e que faz que ele serealize <strong>em</strong> lugar adequado - um espaço rústico como a quinta de Cassicíaco. É a medi<strong>da</strong> - modus - acategoria que garante a uni<strong>da</strong>de dos diferentes el<strong>em</strong>entos deste espectáculo, estendendo-se à quali<strong>da</strong>d<strong>em</strong>oral de qu<strong>em</strong> observa, ela mesma devendo ser modera<strong>da</strong>, de forma a não lesar a ord<strong>em</strong> (cf. DO I, VIII,25-26; DO II, 4, 12: CCL 29, p. 101-102; p. 114).217 Cf. DO II, XIX, 50-51 ( CCL 29, p. 134-135).218 Cf. DO II, XIX, 49 (CCL 29, p. 134).219 Sto. <strong>Agostinho</strong> adopta o esqu<strong>em</strong>a neoplatónico <strong>da</strong> disposição <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong>s coisas mediante os grausesse-uiuere-intellegere. Os graus uiuere-intellegere causar-lhe-ão algumas dificul<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>do que,149


congruência implica o conhecimento <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> dimensão que preside ao ordenamentoentre as partes e o Todo, sendo descodifica<strong>da</strong> pela razão com base na categoria d<strong>em</strong>odus. O efeito desta harmonia – o belo inteligível que deleita o olhar do espírito –produz o agrado dos sentidos 220 . Assim, se Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe uma via de ascesepara alcançar a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> com base na percepção sensível, contudo é sobo signo <strong>da</strong> razão que ela se desenrola. Efectivamente, é a partir de uma definição deratio, claramente enuncia<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine – ratio est mentis motio ea, quae discuntur,distinguendi et conectandi potens 221 –, que o filósofo sustenta a procura <strong>da</strong> harmonianos recursos <strong>da</strong> percepção sensível.No caso <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s manifestações de ord<strong>em</strong> presentes nas reali<strong>da</strong>des audíveis,note-se a peculiar atenção presta<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> à scientia bene modulandi. Aoredigir De musica, mais uma vez assume como objectivo construir degraus para que arazão ace<strong>da</strong> à cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, simultaneamente íntima e excelsa, entre to<strong>da</strong>sas reali<strong>da</strong>des. Ca<strong>da</strong> degrau encontra-se na progressiva atenção <strong>da</strong> mente à presença deuma outra categoria ontológica, inseparável do modus - a categoria de numerus -,verifica<strong>da</strong> no som produzido pelas vozes, isto é, nas palavras proferi<strong>da</strong>s. É por ess<strong>em</strong>otivo que Sto. <strong>Agostinho</strong> se ocupa <strong>da</strong> música, e não <strong>da</strong> gramática, cujo objecto jádelimitara <strong>em</strong> De ordine. Com efeito, se a gramática ensina os nomes <strong>da</strong>s coisas, amúsica trata deles enquanto dotados de pés e batimentos - de ritmo ou numerositas. Nareali<strong>da</strong>de, como tantas vezes afirma, o Hiponense não quer discutir acerca de nomes,meras convenções. O objectivo <strong>da</strong> sua investigação, quando se trata de palavras, és<strong>em</strong>pre o de, pela mediação delas, alcançar o acordo de fundo, a Ver<strong>da</strong>de do real, pois ésubsistindo numa mesma forma, a do ser humano, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se torna fácil traçar a fronteira entre oconhecimento sensível e o conhecimento racional. Um dos textos onde esta questão é trata<strong>da</strong> de modomais explícito é precisamente De libero arbitrio I, VII, 16; II, III, 7 ( CCL 29, p. 221-222; p. 240).220 Em De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz des<strong>em</strong>bocar o discurso acerca <strong>da</strong>s opera naturae e <strong>da</strong>s operarationis numa explanatio sobre o deleite <strong>da</strong> razão na percepção <strong>da</strong> beleza inteligível, termo ad qu<strong>em</strong> <strong>da</strong>escala<strong>da</strong> <strong>da</strong> razão para a Uni<strong>da</strong>de. Por seu turno, a percepção <strong>da</strong> beleza e o deleite que ela produz na almaracional é inseparável de uma entrega unitiva, efeito de um desejo de posse. T<strong>em</strong>os, assim, o esqu<strong>em</strong>a <strong>da</strong>adesão à Sabedoria onde converg<strong>em</strong> a alma, a percepção do Belo e a adesão amorosa ao Uno (cf. DO II,XIX, 51: CCL 29, p. 135).221 DO II, XI, 30 ( CCL 29, p. 124).150


abraçando essa harmonia fun<strong>da</strong>nte que todos os que a buscam a pod<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>plarcomo património comum, entrando <strong>em</strong> concordância de razões 222 .Assim, para saber de que consta esta scientia bene modulandi, que corresponde àdefinição augustiniana de música, é necessário eluci<strong>da</strong>r a noção de modus - encontrandoo sentido próprio de uma ideia tão vasta que se pode, inclusivamente, aplicar areali<strong>da</strong>des tão vis como a pantomima de um histrião ou as representações teatrais -, atéencontrar a sua especifici<strong>da</strong>de quando aplicado à disciplina que, <strong>em</strong> De musica, adquiredireito de soberania. Para esclarecer a definição de modus, o Filósofo de Hipona analisaos seus três componentes: quid sit modulari; quid sit bene modulari; quod ibi scientiaposita est 223 .Antes de mais, a presença de modus nos corpos supõe a existência de umareali<strong>da</strong>de que se move. Porém, como to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des físicas são desse tipo,<strong>Agostinho</strong> considera necessário restringir o âmbito <strong>da</strong> definição. A música trataria,assim, dos movimentos que se procuram por si mesmos, isto é, <strong>da</strong>queles cujamodulação ordena<strong>da</strong> se considera como um fim. O objecto <strong>da</strong> scientia bene modulandinão é, portanto, qualquer movimento, mas apenas aquele que se observa nas reali<strong>da</strong>desmais perfeitas, isto é, aquelas que dominam sobre as d<strong>em</strong>ais, por ser<strong>em</strong> deseja<strong>da</strong>s por simesmas. É, portanto, uma razão de ord<strong>em</strong>, uni<strong>da</strong> a um telos específico, que determina,neste caso, o objecto <strong>da</strong> música, definindo o primado que ela ocupa entre as d<strong>em</strong>aisdisciplinas que se consagram às reali<strong>da</strong>des audíveis 224 . Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, omovimento que constitui objecto <strong>da</strong> música há-de ser executado propter se ipso e odeleite por ele produzido será, por esse motivo, puro e recto. A expressão scientiamodulandi é, portanto, sinónima de scientia bene mouendi. Mas se só é lícito falar d<strong>em</strong>odus quando se trata de um movimento b<strong>em</strong> executado, isto é, de um movimentorealizado propter se ipsum, por que razão se acrescenta, à definição de música, o222 De mus. I, I, 1: “ (...) sed etsi alia uocabula sunt imponen<strong>da</strong>, cum eiusd<strong>em</strong> dimensionis soni sunt, se<strong>da</strong>d grammaticos tamen non pertinent; quid mihi est de nominibus laborare, cum res aperta sit?” ( PL 32,1083). A expressão é recorrente. Res non uerba torna-se l<strong>em</strong>a constante de <strong>Agostinho</strong>, na<strong>da</strong> mais entrar<strong>em</strong> Filosofia, abandona<strong>da</strong> a profissão de rector. Não obstante afirmar que a atenção às palavras é caminhoprivilegiado para chegar a compreender a razão universal, esta última virá a identificar-se, já <strong>em</strong> D<strong>em</strong>usica, mas com maior evidência <strong>em</strong> obras como De libero arbitrio ou De magistro, com a Ver<strong>da</strong>de ouVerbo, ao qual se chega pela via <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de.223 Cf. De mus. I, II, 3 ( PL 32, 1084).224 De mus. I, II, 3: “M. - Quando ergo censes aliquam r<strong>em</strong> praestare et quasi dominari? cum propterseipsam, an cum propter aliud appetitur? D. - Quis negat cum propter seipsam?” ( PL 32, 1084).151


advérbio bene? De facto, uma vez que o modus adquire, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, estatutode categoria ontológica, se ele falta, não há enti<strong>da</strong>de, o que inviabiliza a constituição dequalquer saber.Ao esclarecer a noção de música, o filósofo faz convergir, por um lado, nacategoria de modus, a justiça, a congruência ou a aptidão, fazendo-as penetrar numdomínio ontológico; por outro lado, exige à numerositas ou dimensio, o sentido deoportuni<strong>da</strong>de, isto é, a a<strong>da</strong>ptação às circunstâncias de lugar e t<strong>em</strong>po. Ora, to<strong>da</strong>s estasreflexões são resultado <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> mente de <strong>Agostinho</strong> não já à cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des corpóreas mas, por meio delas, à estrutura <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de humana.Efectivamente, o filósofo não assume de modo fortuito a metodologia doregressus in ratione. Fá-lo com o objectivo de identificar a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>através do conhecimento <strong>da</strong> relação entre as partes e o todo, entre o ladrilho e a figurade fundo do mosaico, entre a circunferência e o seu centro, entre Deus e a alma, afinalentre o Uno e o Múltiplo. Tal metodologia obedece, também, a uma estratégia quepretende <strong>da</strong>r a conhecer a razão ao próprio ser humano, uma vez que, por estranho quepareça, ele a si mesmo se desconhece, sendo esta uma <strong>da</strong>s causas aponta<strong>da</strong>s para osdesvarios e ímpias opiniões dos humanos acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.Assim, <strong>da</strong>do que a razão se manifesta de modo privilegiado na aprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong>sartes, a ord<strong>em</strong> dos saberes é de extr<strong>em</strong>a importância neste trabalho de autoreconhecimentodo ser humano, mediante o qual ele alcançará a compreensão doordenamento do Universo. Indubitavelmente, Sto. <strong>Agostinho</strong> sofre, neste aspecto, ainfluência dos disciplinarum libri, de Varrão, e é todo o peso de uma cultura que s<strong>em</strong>anifesta nesta proposta de uma dedicação à erudição, entendi<strong>da</strong> como via privilegia<strong>da</strong>de acesso ao enigma <strong>da</strong> ordo rerum 225 . Porém, a romper a própria disciplina <strong>da</strong>s artes,há o factor surpresa, como o filósofo verifica nas intervenções perspicazes dos seusdiscípulos, na pequena escola de Cassicíaco e, sobretudo, nas desconcertantesintervenções de Mónica que, s<strong>em</strong> se ter dedicado a um estudo sist<strong>em</strong>ático dos dizeresdos homens sábios, <strong>em</strong>ite, as mais <strong>da</strong>s vezes, respostas de valor incalculável e de agu<strong>da</strong>penetração de espírito, no que se refere às questões que moram no coração <strong>da</strong>225 O po<strong>em</strong>a de Licêncio que Sto. <strong>Agostinho</strong> transcreve na Ep. XXVI, 6 (CSEL 34/1, p. 89) é uma <strong>da</strong>sfontes para determinar a presença do Nou<strong>em</strong> disciplinarum libri de Varrão como painel de fundo <strong>da</strong>expositio de <strong>Agostinho</strong> sobre a função <strong>da</strong>s disciplinas na aprendizag<strong>em</strong> e na formação do hom<strong>em</strong> sábio(cf. A. SOLIGNAC, “ Doxographies et manuels…” p. 120-124).152


Filosofia 226 . O Hiponense irá paulatinamente dissociando o sentido <strong>da</strong> erudição e a suaconcepção <strong>da</strong> uera sophia, num trajecto que caminha, <strong>em</strong> boa parte, a par dodesenvolvimento <strong>da</strong> sua gnosiologia s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, abandonar a disciplina de espírito,pois o exercício <strong>da</strong> Filosofia, enquanto especial forma de saber, vive <strong>da</strong>quela. De facto,a obra augustiniana é pródiga <strong>em</strong> exercitationes animae que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> quando menos seespera, para apurar um argumento na d<strong>em</strong>ora do raciocínio ou para preparar o espíritopara aceder a um domínio onde o raciocínio prescinde, <strong>em</strong> absoluto, <strong>da</strong> relação aoscorporalia.No caso <strong>da</strong> concepção augustiniana de beleza, a relação entre o espírito humano eos corporalia permite apresentar uma via de acesso à universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> por meio<strong>da</strong> análise <strong>da</strong> percepção sensível. A ascese <strong>da</strong> razão à harmonia inteligível mediante osrecursos dos sentidos é a mais acessível, não apenas porque é esse o nível de percepçãomais ínfimo e comum a todo o ser vivo, mas também pelo efeito imediato, epidérmico,deste nível de percepção <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, a delectatio 227 .226 O ideal de conquista <strong>da</strong> sabedoria por meio <strong>da</strong> dedicação <strong>da</strong> mente ao estudo <strong>da</strong>s designa<strong>da</strong>s artesliberais, tão patente nos primeiros escritos de Sto. <strong>Agostinho</strong>, sofrerá algumas inflexões, à medi<strong>da</strong> que oHiponense aprofun<strong>da</strong> a sua concepção de sabedoria. Também no epistolário é patente a ideia <strong>da</strong>dependência entre eruditio e sapientia, mas ir-se-á atenuando (vejam-se, v. gr, as Ep. CI, CVIII,CXXXVIII, nas quais a função dos saberes ditos “profanos” se vai diluindo). Em De doct. christ. II, XLI-XLII (CCL 32, p. 75-77), Sto. <strong>Agostinho</strong> deixa clara a subordinação de tais saberes entre si, <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> auma hermenêutica bíblica e ao princípio supr<strong>em</strong>o de reali<strong>da</strong>de, sendo a caritas, na sua dupla vertente –amor Dei et proximi – o princípio hermenêutico que alcança maior amplitude. Por razões deuniversali<strong>da</strong>de de sentido, o texto bíblico é aquele que deve ser objecto de reflexão por excelência e é acaritas - não a letra do texto, n<strong>em</strong> o seu esquadrinhamento à luz dos saberes profanos - o princípio deinterpretação que deve prevalecer. Sobre o sentido que <strong>Agostinho</strong> dá à eruditio <strong>em</strong> De doct. christ., vejaseMadeleine MOREAU, “Le juste usage de la culture”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saintAugustin 11/2, p. 529-546.227 De mus. VI, XI, 29: “ (…) Non ergo invideamus inferioribus quam nos sumus, nosque ipsos inter illaquae infra nos sunt, et illa quae supra nos sunt, ita Deo et Domino nostro opitulante ordin<strong>em</strong>us, utinferioribus non offen<strong>da</strong>mur, solis aut<strong>em</strong> superioribus delect<strong>em</strong>ur. Delactatio quippe quasi pondus estanimae. Delectatio ergo ordinat animam.Vbi enim erit thesaurus tuus, ibi erit et cor tuum (Mt. 6: 21): ubidelectatio, ibi thesaurus: ubi aut<strong>em</strong> cor, ibi beatitudo aut miseria.” (PL 32, 1179). O texto prosseguedefinindo a ordenação dos seres, a fim de que a alma saiba quais aqueles a que deve aderir, para que nelaresi<strong>da</strong> a ord<strong>em</strong>. Assim, as reali<strong>da</strong>des superiores são aquelas que permanec<strong>em</strong> na supr<strong>em</strong>a e inconcussaeterni<strong>da</strong>de, imutabili<strong>da</strong>de e igual<strong>da</strong>de, situando-se à marg<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> afecção t<strong>em</strong>poral, pois nelas não hámutação. A dispensação t<strong>em</strong>poral deriva desta <strong>Ord<strong>em</strong></strong> sublime e Eterna. Aquela, com efeito, constitui-se àimitação desta. Por esse facto, nela se reflecte a congruência e ordenação que se comprova no movimento153


Fun<strong>da</strong>do na percepção visual, o recurso à percepção <strong>da</strong> congruência <strong>da</strong>s partesdes<strong>em</strong>boca na experiência do belo 228 . Porém, se a análise <strong>da</strong> mente recair sobre orecurso <strong>da</strong> razoabili<strong>da</strong>de audível, o efeito é a suavi<strong>da</strong>de. Num caso e noutro, é acongruência entre as partes e o todo que está <strong>em</strong> causa, b<strong>em</strong> como a sua imediatareprodução num efeito de agrado sensível, ao alcance de todos os humanos, doutos ouignaros 229 . É um facto que, na beleza de um corpo, aquilo que atrai os sentidos é a cor,pois esta é, de modo estrito, o sensível próprio do órgão <strong>da</strong> visão. <strong>Agostinho</strong> sabe que éa cor que atrai o olhar para os corpos e que, permitindo captar o contorno <strong>da</strong> forma,produz agrado. Este facto permite-lhe definir, de modo estrito, <strong>em</strong> que consiste o agradoque produz a beleza de um corpo 230 . O filósofo encontra a congruência <strong>da</strong>s partes,percepciona<strong>da</strong> pela visão, quer no espectáculo <strong>da</strong> natureza, quer nas produções humanasque decorr<strong>em</strong> <strong>da</strong> transformação do real, como é o caso <strong>da</strong> construção de uma habitaçãoou de um aqueduto, quer naquelas outras formas de saber, de natureza maisespeculativa, como sucede com a geometria ou a astronomia, disciplinas que resultamde uma combinação de artes e de metodologias, v.gr. <strong>da</strong>quelas que associam aexperiência sensível e o cômputo.A percepção <strong>da</strong> relação entre as partes e o todo, de que resulta a congruência quedeleita a mente no belo, é, <strong>em</strong> qualquer dos casos, o resultado de uma proprie<strong>da</strong>decomum, inerente à racionali<strong>da</strong>de do real: a aequalitas ou iustitia. O modus, quali<strong>da</strong>dedos seres que expressa, no domínio estético, a ordenação do Universo ou a fun<strong>da</strong>mentaldos astros, no curso dos t<strong>em</strong>pos e <strong>da</strong>s estações do ano. Assim, as reali<strong>da</strong>des terrenas, submeti<strong>da</strong>s àscelestes mediante a categoria <strong>da</strong> numerositas, faz<strong>em</strong> que a ordenação do Universo se ass<strong>em</strong>elhe àmusicali<strong>da</strong>de de um po<strong>em</strong>a – quasi carmini uniuersitatis associant.228 DO II, XI, 33: “(...) Sed ad oculos quod pertinet, in quo congruentia partium rationabilis dicitur,pulchrum appellari solet (...). ” ( CCL 29, p. 126).229 Sobre o sentido do termo Delectatio na obra de <strong>Agostinho</strong> v. Cornelius Petrus MAYER, “Delectatio(delectare)” in C. MAYER (dir.), Augustinus-Lexikon 2 (1996-2002) 267-285.230 Cf. DO II, XI, 33 ( CCL 29, p. 126). A definição, ratifica<strong>da</strong> <strong>em</strong> Ep. III, 4: “ quid lau<strong>da</strong>ntur in corpore?nihil aliud quam pulchritudin<strong>em</strong>. Quid est corporis pulchritudo? congruentia partium cum qua<strong>da</strong>m colorissuauitate.” (CSEL 34/1, p. 8), prevalece <strong>em</strong> De ciu. dei XXII, XIX: “ (...) Omnis enim corporispulchritudo est partium congruentia cum qua<strong>da</strong>m coloris suauitate.” (CCL 48, p. 840). Ver, a estepropósito, o comentário de J. TSCHOLL, “Vom Wesen der körperlichen Schönheit zu Gott”,Augustiniana 15 (1965), p. 33 n. 4. Para a tradição estóica, cf. v. gr. os Frg. 278-279; 592, in Chrysippifragmenta moralia. Stoicorum ueterum fragmenta (ed. Von Arnim), t. III, p. 68; 154. Em Enn. I, 6, 1 (p.95-97), PLOTINO considera esta pretensa definição como consensual e evidencia a dificul<strong>da</strong>de de aaplicar às reali<strong>da</strong>des simples, como são as do Mundo Inteligível.154


eleza, sustenta-se numa categoria ontológica mais radical, cuja identificação s<strong>em</strong>ânticase diversifica, na obra de Sto.<strong>Agostinho</strong>, por termos como concordia, congruentia,iustitia, aequalitas. Estes vocábulos implicam s<strong>em</strong>pre a referência a um universo derelações, sendo um facto que a própria ordenação ou acordo entre as partes se obtém,precisamente, no equilíbrio e ajuste de tais relações, obedecendo a uma graduação: amais uni<strong>da</strong>de entre as partes de um todo corresponde uma maior congruência ou acordo<strong>da</strong>s partes, uma maior simetria ou equilíbrio, mais manifestação de ord<strong>em</strong>, deracionali<strong>da</strong>de e de beleza no Universo 231 .To<strong>da</strong>via, se a beleza dos corpos é meio para percepcionar a ordenação doUniverso como congruentia partium, a finali<strong>da</strong>de dela é a cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> belezainteligível, associa<strong>da</strong> à percepção do Uno Supr<strong>em</strong>o, e a <strong>da</strong> relação que a Uni<strong>da</strong>deestabelece com o Universo, através do deleite produzido na alma. A insistência nacont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> beleza corpórea é, portanto, essencialmente propedêutica. A almahumana avança por graus para a cont<strong>em</strong>plação do Uno, sendo a beleza dos corpos omais ínfimo de entre eles. Imprescindível ou, pelo menos, irrecusável, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que a congruência entre as partes e o todo se manifesta mesmo nesse grau diminuto eel<strong>em</strong>entar, tal degrau deve ser ultrapassado, <strong>da</strong>do que aquilo que a alma busca é a belezasimplex, a qual só pode ser cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> com o olhar do espírito.A alma que respeita a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> erudição eleva-se necessariamente, aproxima-seprogressivamente <strong>da</strong> visão espiritual <strong>da</strong> beleza. Nessa ascese, compreende que entre otermo de chega<strong>da</strong> e aquilo de que partiu há uma distância qualitativa, que corresponde auma imensa desigual<strong>da</strong>de de perfeição. Tal desigual<strong>da</strong>de decorre <strong>da</strong> discrepância entreum universo onde a diferença se harmoniza por congregação ou acordo de partes, e umoutro Mundo, onde a diferença reina por direito, na simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza do Uno.231 Os ex<strong>em</strong>plos proliferam na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>. A título meramente indicativo, recorde-se, <strong>em</strong> Deordine, a ratio presente na arquitectura dos balnea quando as janelas estão coloca<strong>da</strong>s de forma simétrica:de contrário, o olhar seria ferido pelo desequilíbrio e desajuste. Veja-se, <strong>em</strong> De quant. anim. VI, 10-XII,21 ( CSEL 89, p. 142-157); [máxime, para a perfeição do círculo e do ponto, De quant. anim. XII, 19:CSEL 89, p. 154], o longo excurso sobre a perfeição <strong>da</strong>s formas geométricas, sendo <strong>da</strong><strong>da</strong> preferência àperfeição do círculo, pela igual<strong>da</strong>de que reina entre qualquer ponto limite <strong>da</strong> circunferência e o centro <strong>da</strong>mesma. O paradigma do círculo como modelo de forma perfeita é grato na tradição neoplatónica e Sto.<strong>Agostinho</strong> não resiste a enunciá-lo na Dedicatio de De ordine, onde chega a sublinhar que, tal comoacontece na circunferência, onde o centro é um princípio que reina com igual<strong>da</strong>de de direito, também noUniverso há um princípio de uni<strong>da</strong>de que aí estabelece a justiça entre as diferentes partes, considera<strong>da</strong>s<strong>em</strong> conflito pela razão quando dela se ausenta o tirocínio <strong>da</strong>s disciplinas.155


Por isso, a alma que ascendeu até à beleza supr<strong>em</strong>a cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> na Uni<strong>da</strong>de Puraé, de algum modo, leva<strong>da</strong> a realizar a trajectória inversa: a de expurgar tudo quanto - namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que partiu dos sentidos – ela apreendeu acerca do belo e do uno,abandonando a informação dos corpos, que é falsa não porque a percepção que deles set<strong>em</strong>, mediante o deleite sensível, seja fonte de equívoco, mas porque o juízo que sobreeles se exerce é dissonante, quando comparado com a beleza interiormentecont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong>. Não é nos corpos que reside o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> beleza, mas na perfeição <strong>da</strong>beleza inteligível, <strong>da</strong> qual aqueles são um pálido reflexo. Se, inicialmente, a percepçãosensível e o deleite correspondente foram caminho no processo de ascese <strong>da</strong> alma para oUno, progressivamente eles tornam-se estorvo e el<strong>em</strong>ento de dispersão, pois a aspiraçãodo espírito é a de cont<strong>em</strong>plar a beleza sola et simplex. Estas duas quali<strong>da</strong>des não sãorealiza<strong>da</strong>s pelos corpos, uma vez que eles s<strong>em</strong>pre se associam à matéria, à divisibili<strong>da</strong>dee à corrupção. Por isso, neles a beleza só pode reinar mediante uma uni<strong>da</strong>de de algummodo extrínseca ou, pelo menos, não duradoura.Efectivamente, Sto. <strong>Agostinho</strong> proclama nos primeiros escritos, b<strong>em</strong> ao modoneoplatónico, que o cume <strong>da</strong> sagesa é alcançado no diálogo sossegado entre a alma e oUno. Este colóquio <strong>em</strong> recolhimento t<strong>em</strong> por finali<strong>da</strong>de a cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>queleprincípio supr<strong>em</strong>o na sua pureza, isto é, alheado <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de com a qual, noUniverso, a pureza do Uno inevitavelmente se mescla. Nessa relação privilegia<strong>da</strong> que seestabelece entre a alma e o Uno, mediante um processo de progressiva purificação <strong>da</strong>sinfluências que os el<strong>em</strong>entos decorrentes <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des corpóreas deixamna mente humana, é possível descortinar o modo como todo o real, também naquelassuas expressões aparent<strong>em</strong>ente disformes e t<strong>em</strong>pestuosas, converge para umafun<strong>da</strong>mental beleza e harmonia, onde os próprios contrastes concorr<strong>em</strong> para evidenciareuritmia e congruência. To<strong>da</strong>via, para que a congruência entre as partes e o todo serealize no plano universal, ela deve, antes de mais, realizar-se <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> nível dereali<strong>da</strong>de. Há, por isso, uma beleza própria de ca<strong>da</strong> forma, quando esta se realiza noacordo de ca<strong>da</strong> ser consigo mesmo, e há uma beleza específica do conjunto, quando,entre as formas, se estabelece uma efectiva uni<strong>da</strong>de e sintonia. Há um decoro próprio <strong>da</strong>constituição de ca<strong>da</strong> indivíduo de uma espécie, o qual resulta <strong>da</strong> posse <strong>da</strong>quela formaque lhe confere subsistência, garantindo-lhe o acordo de si consigo mesmo. E há umacordo na localização dos el<strong>em</strong>entos materiais, na disposição <strong>da</strong>s patas <strong>da</strong>s pulgas, nos156


órgãos do corpo de um animal <strong>da</strong>do, do mesmo modo que há uma concordância no serhumano, quando executa a activi<strong>da</strong>de que lhe é própria 232 .Ca<strong>da</strong> ser, pela sua forma, está dotado de beleza e de decoro – species et decor sãocategorias de que Sto. <strong>Agostinho</strong> se serve para <strong>da</strong>r conta desta concordância de siconsigo mesmo, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> ser e no grau que ele ocupa no conjunto. Também por essefacto é possível e, até, fácil, que a mente incorra <strong>em</strong> equívoco, tomando a parte pelotodo, isto é, fixando a atenção na beleza e no decoro <strong>da</strong> parte, s<strong>em</strong> a referenciar aoconjunto. A mente humana obtém, neste caso, uma interpretação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> definha<strong>da</strong> eesvazia<strong>da</strong> de sentido. To<strong>da</strong>via, este erro de percepção só é possível porque ca<strong>da</strong> parcelaestá dota<strong>da</strong> de congruência <strong>em</strong> si mesma, e não apenas ca<strong>da</strong> ser, mas ca<strong>da</strong> grau de serpossui a sua beleza própria, ordenando-se à harmonia do conjunto 233 .2. CongruentiaÉ um facto que, nos primeiros escritos, nomea<strong>da</strong>mente naqueles quecorrespond<strong>em</strong> ao período de estância <strong>em</strong> Cassicíaco, se nota um forte influxo <strong>da</strong>scategorias neoplatónicas, estóicas e pitagóricas, no que se refere à apresentação de umaconcepção de ord<strong>em</strong> estreitamente liga<strong>da</strong> à congruência <strong>da</strong>s partes, cujo efeito é odeleite na percepção <strong>da</strong> beleza. To<strong>da</strong>via, a exposição de Sto. <strong>Agostinho</strong>, ao tomar comoaxiomático o ordenamento hierárquico do real, desven<strong>da</strong> alguns dos aspectos queintegram esta congruência <strong>da</strong>s partes. Assim, se a influência dos Platonicorum se faznotar na concepção de beleza e de ord<strong>em</strong> presente nos primeiros escritos augustinianos,a seu t<strong>em</strong>po os el<strong>em</strong>entos colhidos nas fontes bíblicas irão completando etransformando esta noção de ord<strong>em</strong> como congruência <strong>da</strong>s partes, conferindo-lhe umnovo alcance. Num escrito como De ordine, a metodologia do regressus in ratione éclaramente devedora do neoplatonismo e a proposta <strong>da</strong> dedicação <strong>da</strong> mente ao exercício232 A activi<strong>da</strong>de própria do ser humano é agir conforme a razão, seja qual for a tarefa específica querealize. Há um modo de vi<strong>da</strong> apte congruenterque (Cf. DO II, VIII, 25: CCL 29, p. 121), que é pano defundo do discurso parenético que Sto. <strong>Agostinho</strong>, na esteira de Cícero e Séneca, dirige aos seus pupilos deCassicíaco, mormente <strong>em</strong> De ordine.233 É uma ideia recorrente na obra augustiniana. Veja-se, v. gr., De quant. anim. XXXIV, 78. “ (...)Namque illis omnibus gradibus inest distincta et propria pulchritudo, quos actos melius adpellamus.”(CSEL 89, p. 228).157


<strong>da</strong>s disciplinas an<strong>da</strong> próxima <strong>da</strong> concepção transmiti<strong>da</strong> por Varrão para o ideal dehom<strong>em</strong> sábio. Porém, <strong>em</strong> escritos como De quantitate animae ou De uera religione é jápossível verificar a introdução de novos el<strong>em</strong>entos na concepção augustiniana de ord<strong>em</strong>e na de beleza, que se lhe associa. A ascese <strong>da</strong> alma à Beleza Supr<strong>em</strong>a mantém-se comometa. Sto. <strong>Agostinho</strong> chega a assumir, como uma <strong>da</strong>s sínteses possíveis para os grausque a alma terá de percorrer para aceder ao Deus, Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, a categoria depulchrum.Em De quantitate animae, docendi causa, para tornar mais compreensíveis os setegraus que a alma necessita de escalar para efectivar as suas capaci<strong>da</strong>des, tornando-seconcorde consigo – de facto, ca<strong>da</strong> degrau é aí adesignado como acto <strong>da</strong> alma -, ofilósofo delineia um conjunto de activi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente que converg<strong>em</strong> para umaplenitude onde se cruzam, como num só e mesmo acto, a cont<strong>em</strong>platio, a permanênciaapud Deum e a realização <strong>da</strong> beleza própria junto <strong>da</strong> Beleza Supr<strong>em</strong>a – pulchre apudpulchritudin<strong>em</strong> 234 .Sendo um facto que, na obra do Hiponense, a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> conquista humana <strong>da</strong>sabedoria permanece coloca<strong>da</strong> na união <strong>da</strong> alma com Deus e na posse do supr<strong>em</strong>o b<strong>em</strong>,supr<strong>em</strong>a igual<strong>da</strong>de e uni<strong>da</strong>de, a noção que, <strong>em</strong> De quantitate animae, o filósofo delineiaquer <strong>da</strong> alma, quer do próprio soberano e pulquérrimo b<strong>em</strong>, sofreu alguns matizes,desde os escritos de Cassicíaco até àqueles outros, cuja <strong>da</strong>ta de composição se situa nodesignado segundo período romano.Analisando, por vezes quase com as mesmas palavras e ex<strong>em</strong>plos presentes nosescritos de Cassicíaco, a natureza do juízo humano acerca do belo, o filósofo procuraacentuar a subordinação <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão <strong>em</strong> face de uma norma supr<strong>em</strong>a dejudicação, cuja natureza faz convergir numa só reali<strong>da</strong>de: a supr<strong>em</strong>a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de 235 . A beleza e o agrado mantêm-se, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, como um efeito <strong>da</strong>conuenientia e <strong>da</strong> pulchritudo, sendo um facto que ambas as quali<strong>da</strong>des estão presentesno Universo, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, nele, se reflect<strong>em</strong> duas categorias ontológicas:aequalitas e unitas. Mas a possibili<strong>da</strong>de de julgar desta conveniência e desta uni<strong>da</strong>de, a234 De quant. anim. XXXV, 79: “ (...) Possunt et sic: pulchre de alio, pulchre per aliud, pulchre circaaliud, pulchre ad pulchrum, pulchre in pulchro, pulchre ad pulchritudin<strong>em</strong>, pulchre apud pulchritudin<strong>em</strong>.”(CSEL 89, p. 228).235 Cf. v. gr. VR XXX, 54 ( CCL 32, p. 222-223) onde Sto. <strong>Agostinho</strong> retoma o ex<strong>em</strong>plo, já presente <strong>em</strong>DO II, XI, 34 ( CCL 29, p. 126) <strong>da</strong> necessária simetria arquitectónica para que a percepção do belo nãoseja afecta<strong>da</strong>, no que se refere ao deleite.158


azão de ser última do juízo humano acerca <strong>da</strong> beleza, é claramente referencia<strong>da</strong> a umprincípio único de Ver<strong>da</strong>de que ilumina a razão e lhe permite – por comparação comuma norma interna de Ver<strong>da</strong>de e Uni<strong>da</strong>de, impressa na mente – avaliar o grau decongruentia que ca<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de corpórea possui, no conjunto dos corpos.Sto. <strong>Agostinho</strong> conserva a certeza inabalável quanto à função que a percepção <strong>da</strong>beleza corpórea ocupa no processo de ascese <strong>da</strong> alma para a cont<strong>em</strong>plação do Uno.Porém, o princípio que ilumina a percepção <strong>da</strong> beleza assume, agora, contornos maisdefinidos. Trata-se <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a qual é superior à mente, <strong>da</strong><strong>da</strong> a imutabili<strong>da</strong>de eincorruptibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele princípio, <strong>em</strong> contraste com as alterações de que a razãohumana é passível 236 .A percepção <strong>da</strong> beleza deleita, efectivamente, o espírito humano, tanto maisquanto ele compreende que a congruência e harmonia que encontra nos corpos évestígio e reflexo de uma supr<strong>em</strong>a beleza. Esta, por seu turno, é identifica<strong>da</strong> pelofilósofo com o próprio Deus 237 . Partindo de um facto incontestável – as formas doscorpos são belas e deleitam a visão -, as perguntas que o espírito teria de fazer a simesmo, se quisesse encontrar a causa <strong>da</strong> beleza, obedeceriam a este encadeamento:- Por que razão, para obter a beleza num edifício, se há-de obedecer às leis <strong>da</strong>simetria? Quia decet. É a resposta do artífice.- Qual a causa do deleite humano, quando observa a beleza <strong>da</strong> simetria? Os corposdeleitam porque são belos, ou são belos porque deleitam? [Delectant] quia pulchrasunt. É a resposta do hom<strong>em</strong> interior – uir intrinsecus oculatus.- Qual a causa <strong>da</strong> beleza? Quia rediguntur ad unam conuenientiam – é a respostado filósofo.236 VR XXX, 55: “ Et cum omnia, quae sensibiliter pulchra sunt siue natura edita siue artibus elaboratalocis et t<strong>em</strong>poribus pulchra sint ut corpus et corporis motus, illa aequalitas et unitas menti tantummodocognita, secundum quam de corporea pulchritudine sensu internuntio iudicatur, nec loco tumi<strong>da</strong> est necinstabilis t<strong>em</strong>pore.” (CCL 32, p. 223).237 Cf. VR XXXI, 57 (CCL 32, p. 224). Deus é a natureza imutável que está acima <strong>da</strong> alma racional. Nelese encontram a vi<strong>da</strong> primeira, a primeira essência e a Sabedoria primeva. Ele é a ver<strong>da</strong>de imutável a quese chama com justiça lei de to<strong>da</strong>s as artes e arte do artífice omnipotente. A ideia <strong>da</strong> Sabedoria divinaartifex mundi é também recorrente, na obra de <strong>Agostinho</strong>: LA III, XV, 42: “ Et si ars ipsa per quam factasunt omnia, hoc est summa et incommutabilis sapientia dei, uere summeque est, sicuti est, respice quoten<strong>da</strong>t quidquid ab illa discedit.” (CCL 29, p. 300). V., também, De diu. quaest. 83, q. LIX; LXXVIII:CCL 44A, p. 116-117; p. 223; DT VI, X ,11: CCL 50, p. 241.159


Efectivamente, é a uni<strong>da</strong>de inteligível, presente na forma de um corpo, que, nele,garante a congruência <strong>da</strong>s partes. A beleza é, por conseguinte, s<strong>em</strong>pre e <strong>em</strong> qualquercaso, reflexo de uni<strong>da</strong>de. Esta pode percepcionar-se <strong>em</strong> um corpo ou <strong>em</strong> reali<strong>da</strong>des decarácter espiritual. To<strong>da</strong>via, o efeito dessa percepção é o deleite, não do corpo mas doespírito, <strong>da</strong>do que, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> forma, corpórea ou espiritual, onde sepercepciona a beleza, é o espírito humano que a capta. É nesta direcção - insistindo noprimado ontológico <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de inteligível - que irá prosseguir a investigação apropósito <strong>da</strong> beleza dos corpos e, consequent<strong>em</strong>ente, a concepção de ord<strong>em</strong> que ofilósofo irá descortinando, ao longo <strong>da</strong> sua obra.Na reali<strong>da</strong>de, a concepção de ord<strong>em</strong> como congruência <strong>da</strong>s partes ouconveniência, já disponível nos livros dos doctissimi uiri, será entendi<strong>da</strong> por Sto.<strong>Agostinho</strong> como uma acepção fraca <strong>da</strong>quela noção, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é poucoabrangente, como aliás se comprova quando se procura solucionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> à luz de tal horizonte. O Filósofo de Hipona não recusa esta acepção de ord<strong>em</strong>,mas cedo se apercebe dos limites dela, para alicerçar a sua mundividência. Por isso, talacepção ficará como a expressão <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> circunscrita ao domínio <strong>da</strong> percepçãoestética e, mesmo assim, necessitará de ser revisita<strong>da</strong> e testa<strong>da</strong>, sobretudo à luz <strong>da</strong>definição de ser supr<strong>em</strong>o.Quando Sto. <strong>Agostinho</strong> esclarecer as características <strong>da</strong>quela enti<strong>da</strong>de que colocano topo <strong>da</strong> hierarquia ontológica, então a própria ord<strong>em</strong>, entendi<strong>da</strong> como harmonia, e apercepção e deleite do espírito na beleza supr<strong>em</strong>a farão pleno sentido, no interior <strong>da</strong> suaobra. Só à luz do princípio soberano de ser, colocado no vértice <strong>da</strong> hierarquiaontológica, se compreenderá o lugar que a noção de beleza ocupa na mundividênciaaugustiniana. De facto, é ao revisitar a noção de ser supr<strong>em</strong>o, confrontando-a com ascategorias disponíveis na Antigui<strong>da</strong>de, que o filósofo proclama que o amor pela belezaapenas se encontrará plenamente satisfeito na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que seja viabilizado por umacont<strong>em</strong>plação espiritual. A consciência, a um t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong> grandeza <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>desoberana e <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de dela <strong>em</strong> relação ao ser humano – interior intimo meo,superior summo meo – farão que o filósofo profira a consagra<strong>da</strong> exclamação deConfessionum: sero te amaui, pulchritudo tam antiqua et tam noua, sero te amaui.Assim, se é ver<strong>da</strong>de que a percepção augustiniana <strong>da</strong> beleza, a que corresponde aatitude estética, parte de um processo introspectivo, efeito <strong>da</strong> auto-reflexão <strong>da</strong> razão,to<strong>da</strong>via tal movimento não encerra a concepção do belo num subjectivismo insano. Pelocontrário, Sto. <strong>Agostinho</strong> assume esta via como uma trajectória para a transcendência,160


encontrando, no ser supr<strong>em</strong>o, a beleza realiza<strong>da</strong> de modo simples, à qual corresponderá,certamente, uma outra concepção de ord<strong>em</strong>, que ultrapassa, integrando-a, a acepção doordenamento dos seres ou <strong>da</strong> congruência entre as partes e o todo.Em De musica, <strong>Agostinho</strong> recupera a reflexão sobre o todo e a parte, sobre o Unoe o Múltiplo, centrando-se na análise <strong>da</strong> razão última, certamente inteligível, <strong>da</strong>modulatio que se revela na produção dos sons. A bona modulatio é aquela que respeitanão apenas as regras <strong>da</strong> composição – que geram um todo íntegro – mas também acongruência e a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> execução de tal arte 238 . Com efeito, a boa modulação éinseparável do uso que se faz do conhecimento <strong>da</strong>s dimensões e dos numeri que lheestão subjacentes. É assim que o filósofo estabelece uma distinção entre a modulatio e ascientia bene modulandi. À primeira pertence a acção de qualquer cantor ou poeta quenão se engane nas dimensões <strong>da</strong>s vozes e dos sons, prescindindo <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de para aqual as executa e <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> execução. Mas a bona modulatio é a que pertenceà música, entendi<strong>da</strong> como disciplina liberal, isto é, como a arte que procura a harmoniados numeri e <strong>da</strong>s dimensões como fim <strong>em</strong> si mesmos, prescindindo do deleite queproduz<strong>em</strong> nos sentidos 239 .Entendi<strong>da</strong> como categoria ontológica, a modulatio, que é objecto <strong>da</strong> música, serámais ou menos perfeita de acordo com o uso que dela se faça, pois é inalienável <strong>da</strong>música a activi<strong>da</strong>de humana de executar sons e de fruir do deleite produzido por eles noouvido 240 . Esta dupla inflexão será decisiva à hora de eluci<strong>da</strong>r por que razão a música se238 De mus. I, III, 4: “ (…) sed quia bene moveri jam dici potest, quidquid numerose servatis t<strong>em</strong>porumatque intervallorum dimensionibus movetur - jam enim delectat, et ob hoc modulatio non incongrue jamvocatur -; fieri aut<strong>em</strong> potest, ut ista numerositas atque dimensio delectet, quando non opus est; ut si quissuavissime canens, et pulchre saltans, velit eo ipso lascivire, cum res severitat<strong>em</strong> desiderat: non beneutique numerosa modulatione utitur; id est ea motione quae iam bona, ex eo quia numerosa est, dicipotest, male ille, id est incongruenter utitur.” ( PL 32, 1085).239 Cf. De mus. I, IV, 5 ( PL 32, 1085) ; DO II, V, 14 ( CCL 29, p. 115). O termo scientia é necessário nadefinição de musica pois n<strong>em</strong> to<strong>da</strong> a bona mudulatio é fruto de um exercício <strong>da</strong> razão. E só nesta medi<strong>da</strong>a música se converte <strong>em</strong> disciplina ou itinerário de ascese <strong>da</strong> mente para o Princípio, através doconhecimento e aplicação <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> numerologia. A este propósito, veja-se o artigo de A.QUACQUARELLI, “Le scienze e la numerologia” in Congresso Internazionale su S. Agostino nel XVIcentenario della conversione, Roma, 15-20 sett<strong>em</strong>bre 1986. Atti 1 (Roma 1987) 419-438 [ reed. <strong>em</strong>: “Lescienze e la numerologia in sant’Agostino”: Vetera Christianorum 25 (1988) 359-379].240 A radicali<strong>da</strong>de do par conceptual uti / frui que Sto. <strong>Agostinho</strong> explanará <strong>em</strong> diversos momentos <strong>da</strong> suaobra, dos quais se destaca o Livro I de De doct. christ. ( cf. De doct. christ. I, cc.III-IV: CCL 32, p. 8; v.,também, De diu. quaest. 83, q. XXX: CCL 44A, p. 38-40), ocupará uma função axial no esclarecimento161


inscreve entre as ciências. Tal facto não decorre apenas do carácter numeral dos seusel<strong>em</strong>entos, que faz<strong>em</strong> que ela se dirija à razão, permitindo designá-la por scientia oudisciplina, a ponto de a poder confundir, se não com a aritmética, pelo menos com aaritmologia. A música é scientia também pelo facto de, no seu exercício, se manifestar aord<strong>em</strong> de valores pela qual opta aquele que a executa, sendo esta mesma ordenaçãoreveladora de sabedoria naquele que a exerce.Se o advérbio bene era imprescindível para a definição de música, <strong>da</strong><strong>da</strong> a possívelintrodução de desarmonia através <strong>da</strong> mistura de uma paixão na arte, o termo scientianão pode dispensar-se, pois s<strong>em</strong> ele poder-se-ia considerar música a mera reproduçãodos sons, s<strong>em</strong> conhecimento <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> dimensão e do número que a sustentam. Comefeito, são incontáveis os ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que pode haver música - movimento b<strong>em</strong>modelado - s<strong>em</strong> ciência, desde a execução de movimentos ordenados por animaisadestrados, como acontece com os elefantes e os ursos no circo, ao canto <strong>da</strong>s aves e àexecução <strong>da</strong> arte de produzir sons harmoniosos por parte de seres humanos, nãomediante o <strong>em</strong>prego <strong>da</strong> razão mas apenas por recurso à imitação 241 , explorando umacerta aptidão natural 242 . Sto. <strong>Agostinho</strong> admite que se pode <strong>da</strong>r uma execuçãodo conceito augustiniano de ordo, nomea<strong>da</strong>mente no que diz respeito à introdução <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de no seio desta noção. Esta relação entre uso e fruição já se encontra esboça<strong>da</strong> nos primeirosDiálogos augustinianos, indiciando o estabelecimento de uma íntima relação entre a bon<strong>da</strong>de dos seres eo sentido impresso na activi<strong>da</strong>de humana que deles usufrui. A compreensão <strong>da</strong> ordo rerum terá deponderar s<strong>em</strong>pre estes dois factores que contribu<strong>em</strong> para evidenciar até que ponto a mundividênciaaugustiniana torna indissolúveis os domínios ético e ontológico <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana. Para o filósofo, adissociação destes dois domínios é desprovi<strong>da</strong> de sentido e os ulteriores desenvolvimentos <strong>da</strong> sua obramais não faz<strong>em</strong> do que reiterar esta intuição, aprofun<strong>da</strong>ndo as raízes dela e obtendo conclusões de alcanceca<strong>da</strong> vez mais universal para a noção de ord<strong>em</strong>.241 A discussão sobre o lugar <strong>da</strong> imitação na arte e a distinção entre arte, imitação e razão ocupa De mus.I, IV, 6. Nos seres humanos, a execução <strong>da</strong> arte suporia a destreza <strong>da</strong> imitação. Nisso consiste, noentender do Discípulo, a aprendizag<strong>em</strong>: “ (...) D. – Praebent enim se magistri ad imitandum, et hoc ipsumest quod vocant docere” (PL 32, 1086). Sto. <strong>Agostinho</strong> corrigirá paulatinamente, ao longo destesDiálogos, esta versão institucionaliza<strong>da</strong> do ensino, até fazer convergir a sua doutrina <strong>em</strong> De magistro,onde expõe os fun<strong>da</strong>mentos teóricos do modo como concebe a relação de aprendizag<strong>em</strong>.242 Cf. De mus. I, IV, 5 ( PL 32, 1085). Sto. <strong>Agostinho</strong> discute o mesmo probl<strong>em</strong>a com que, <strong>em</strong> Deordine, encerra o excurso sobre as disciplinas. O que faz de um arte expressão de razão é o facto de quequ<strong>em</strong> a executa conhece, por ela e através dela, a ord<strong>em</strong> inteligível, a proporção e a lei que nesta seespelha, a gera e sustenta. De facto, muitos animais executam movimentos onde se reflecte de modoextraordinário a numerositas e a dimensio. Portanto, não é por esse facto que o ser humano se lhes162


dimensiona<strong>da</strong>, suavíssima e ordena<strong>da</strong>, sine ratione ou mesmo contra ration<strong>em</strong>, quandose perverte o uso do prazer <strong>da</strong> audição 243 .A dificul<strong>da</strong>de de atribuir à música a pureza <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de racional deriva do factode que essa arte exige uma parte de execução técnica, a qual faria supor a necessáriaintervenção do corpo. Mas, se assim fosse, não poderia atribuir-se a esta arte o carácterde ciência, como quer a definição, pois a ciência apenas reside no espírito 244 . Ante asdificul<strong>da</strong>des coloca<strong>da</strong>s acerca <strong>da</strong>s condições epistémicas <strong>da</strong> música, a tarefa do filósofovai consistir <strong>em</strong> destituir os histriões, os tocadores de flauta e todo o género deprofissões afins do teatro e de outros espectáculos, ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong> socialmentedesconceituados, <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> ciência <strong>da</strong> música, fun<strong>da</strong>ndo o raciocínio no valor doconhecimento.sobrepõe, quando é capaz de construir casas ou aquedutos. A superiori<strong>da</strong>de do ser humano na hierarquiaontológica deriva do facto de ele estar dotado de razão, aquela facul<strong>da</strong>de que lhe permite descobrir a lei<strong>da</strong> harmonia (cf. DO II, XIX, 49: CCL 29, p. 134). To<strong>da</strong>via, como se lê <strong>em</strong> DO II, 19, 50 (CCL 29, p.134-135), o ser humano actuaria contra este princípio se, encontrando essa lei, a aplicasse apenas à suaactivi<strong>da</strong>de racional, deixando por ordenar a sua própria conduta.243 Mestre e Discípulo discut<strong>em</strong> o probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> De mus. I, IV, 5 e ss. De facto, como a grande maioriados que se dedicam à música não conhece a arte e o faz apenas por deleite, o Discípulo está <strong>em</strong> crer que amúsica é, afinal, fonte de int<strong>em</strong>perança no mundo. <strong>Agostinho</strong> é mais optimista e chega a afirmar que odeleite na música pode ter efeito, se não medicinal, pelo menos catártico. Mas quando alguém, <strong>em</strong> vez detomar o som se deixa tomar por ele, então sobrevém a desord<strong>em</strong> no uso: “(…) Quam interdum sic caper<strong>em</strong>odestissimum est; ab ea vero capi vel interdum, turpe atque indecorum est” (De mus. I, IV, 5: PL 32,1086). Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe, assim, um plano para o recto uso do prazer audível. Neste passo podeantever-se a resposta à n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre fácil conciliação entre o que o filósofo escreve <strong>em</strong> Conf. X, XXXIII,49-50 (CCL 27, p. 181-182), onde mostra o seu espírito vacilando entre o risco do prazer e a experiênciado b<strong>em</strong> que não mu<strong>da</strong>, e aqueles outros passos, onde afirma que a presença do canto na liturgia teve umpapel a des<strong>em</strong>penhar no seu percurso de conversão.244 De mus. I, IV, 8: “ (…) M. – Certe enim jam mihi dedisti in solo animo habitare scientiam “ (PL 32,1087). Não é fácil decidir quais as funções do ser humano que entram <strong>em</strong> jogo quando alguém se dedica àaprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong> disciplina que é a música. Sto. <strong>Agostinho</strong>, ultrapassando já a definição <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> Deordine, segundo a qual a música é filha do entendimento e <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, e não obstante considerar que oestudo <strong>da</strong> função <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, <strong>em</strong> concreto, deve aprofun<strong>da</strong>r-se noutro momento, <strong>em</strong> De musica nãoabdica de confiar esta aprendizag<strong>em</strong> apenas ao intelecto. Deste modo, o que faz<strong>em</strong> aqueles que nelamisturam o deleite, a técnica de execução e a imitação, ou tão-somente a natureza, alheia-se <strong>em</strong> absoluto<strong>da</strong>quela disciplina liberal.163


Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, n<strong>em</strong> todo o conhecimento possui igual valor. Por isso,quando alguém julga mal acerca de uma coisa, não se pode considerar que a conheça 245 .Ora, se a perfeição de um acto se avalia pela finali<strong>da</strong>de pela qual ele se realiza – defacto, o objectivo constitui o el<strong>em</strong>ento primordial (praestantius) <strong>da</strong> acção –, e se aposse <strong>da</strong> ciência é incompatível com a desvirtuação do fim <strong>da</strong> acção <strong>em</strong> vanglória, entãoos histriões, que actuam por amor aos aplausos do povo, não possu<strong>em</strong> ciência. Comefeito, eles julgam que o aplauso é melhor do que o canto. Tal facto revela odesconhecimento do valor do canto e, consequent<strong>em</strong>ente, a carência, <strong>em</strong> tais indivíduos,<strong>da</strong> respectiva ciência 246 .A ideia de uma configuração do Universo <strong>em</strong> termos de finali<strong>da</strong>de harmónica, oumusicali<strong>da</strong>de, presente nas reali<strong>da</strong>des naturais e nas acções humanas, percorre to<strong>da</strong> aobra do filósofo, evidenciando-se, de modo particular, nos dois eixos sobre os quais seergue a mundividência augustiniana, os quais se alicerçam precisamente sobre a noçãode ordo: a metafísica <strong>da</strong> Criação e a economia <strong>da</strong> Incarnação. Esta concepção de ord<strong>em</strong>,associa<strong>da</strong> a noção de uma teleologia que caminha para a harmonia ou união de todos osseres no <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o - preserva<strong>da</strong> a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um e a diferença entre todos ecom o Princípio deles - é regista<strong>da</strong> pelo Hiponense mediante a enunciação de inúmerosfactos, insistindo na noção de convergência, reunião, a<strong>da</strong>ptação ou sintonia de todos osseres. Tais factos, inscritos <strong>em</strong> distintos níveis de reali<strong>da</strong>de, converg<strong>em</strong> numa únicanoção que traduz uma categoria dos seres: coaptatio. De que modo – interroga-se<strong>Agostinho</strong> -, pode uma madeira curva a<strong>da</strong>ptar-se a uma superfície plana, ou a vontadedo pecador à vontade de Deus 247 ? De que modo as pedras vivas de um t<strong>em</strong>plo se entre-245 De mus. I, VI, 12: “ (...) M. - Quid? ille qui male de aliqua re judicat, videtur tibi eam scire? D. - Nullomodo, nisi forte quoquo modo corruptus. M. - Ergo qui vere putat melius esse aliquid quod deterius est,nullo dubitante scientia ejus caret. D. - Ita est.” ( PL 32, 1090).246 De facto, só <strong>em</strong> De libero arbitrio <strong>Agostinho</strong> criará as condições para a compreensão do que agoraafirma implicitamente. Contudo, nesta análise, já se supõe que há uma ord<strong>em</strong> de reali<strong>da</strong>des objectiva,independente <strong>da</strong>s convenções e do uso que dela possa ser feito. Fica também implícita a afirmaçãosegundo a qual a consideração <strong>da</strong> intenção como el<strong>em</strong>ento de mais-valia no interior <strong>da</strong> acção humana nãosubjectiviza o conhecimento. Igualmente, para alcançar a ordo rerum não se trata de julgar intenções. Defacto, o estatuto dos histriões era socialmente muito mal conceituado, mas <strong>em</strong> De mus. I, VI, 12 (PL 32,1089-1090) o Discípulo quer deixar lugar para o benefício <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, pois pode haver algum que actueconhecendo a arte e tendo-a como fim <strong>em</strong> si mesma. Então, falar-se-á de um histrião sábio.247 Cf. Enarr. in Ps. LXIV, 44: “ (...) Distortum ad rectum quando coniungis? collineari non potest.Tamquam si in pauimento aequali ponas lignum curuum; non adiungitur, non cohaeret, non coaptatur164


a<strong>da</strong>ptam para formar a estrutura do T<strong>em</strong>plo de Deus? 248 De que modo as peças de umpavimento se combinam para formar um mosaico belo? 249 De que modo, na Incarnação,a divin<strong>da</strong>de do Verbo se a<strong>da</strong>pta (se a<strong>da</strong>ptare / coaptare) à humani<strong>da</strong>de do ser humano,na pessoa de Cristo? 250Em De ciuitate dei, a noção grega de harmonia é entendi<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, comosinónimo de coaptatio, mas abrange a dimensão intrínseca dos próprios corpos,precisamente porque eles se reg<strong>em</strong>, no movimento intrínseco que os forma, pelas regras<strong>da</strong> aritmologia 251 . Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinha a íntima união entre harmonia e beleza oudecoro, a qual permanece mesmo para além <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de dos corpos e <strong>da</strong>s funções deles.A beleza é defini<strong>da</strong>, nesse contexto, como uma categoria ontológica associa<strong>da</strong> àeterni<strong>da</strong>de e, portanto, como uma proprie<strong>da</strong>de dos seres que prevalece no t<strong>em</strong>po que hádevir. Neste sentido, a coaptatio, mesmo aquela que está presente nos próprios corpos,é a revelação de uma presença escatológica inerente à própria ord<strong>em</strong> como categoriaontológica 252 . Como tal, a coaptatio sobrepõe-se à própria ideia de utili<strong>da</strong>de, pois háreali<strong>da</strong>des, mesmo corpóreas, cuja presença no Universo se pode dissociar de umafinali<strong>da</strong>de imediata.Nesta medi<strong>da</strong>, <strong>em</strong> De ciuitate dei como <strong>em</strong> tantas outras obras, Sto. <strong>Agostinho</strong>enaltece a beleza de to<strong>da</strong> a Criação a qual é, <strong>em</strong> si mesma, um b<strong>em</strong> e pode dissociar-sedo uso, sendo este dependente <strong>da</strong>quela 253 . Mas, a ser assim, a harmonia <strong>da</strong> Criaçãopauimento; pauimentum ubique aequale est; sed illud curuum est, non coaptatur aequali. Ergo deiuoluntas aequalis est, tua curua est; propterea tibi curua uidetur illa, quia tu illi coaptari non potes; dirigead illam te, ne illam uelis curuare ad te; quia non potes, frustra conaris: illa s<strong>em</strong>per directa est.” (CCL 38,p. 505).248 Cf. <strong>Ser</strong>mo XXVII, 1 : “ (...) concurrant ergo lapides uiui ad canticum nouum, concurrant et coaptenturin structuram t<strong>em</strong>pli dei.” (CCL 41, p. 361).249 Cf. DO I, I, 3 (CCL 29, p. 90).250 Cf. DT IV, X, 13 (CCL 50, p. 178-179); In Iohan. Ev. Tract. XLIX, 18; XCIX, 1 (CCL 36, p. 428-429;p. 582).251 Cf. De ciu. dei XXII, XXIV; XXII, XXX (CCL 48, p. 846-852; p. 862-866).252 De ciu. dei XXII, XXIV: “ (...) Transitura est quippe necessitas t<strong>em</strong>pusque uenturum, quando solainuic<strong>em</strong> pulchritudine sine ulla libidine perfruamur (...).” (CCL 48, p. 851).253 A leitura dos comentários de Sto. <strong>Agostinho</strong> ao conteúdo de De pulchro et apto conduz facilmente aestabelecer o paralelo e a articulação entre pulchrum (per se) e aptum (ad aliud) e aquela outra distinção,que será operativa na obra do Hiponense, sobretudo no esclarecimento de uma ordo amoris, entre frui /uti [cf. J. TSCHOLL, “Augustins Interesse für <strong>da</strong>s körperliche Schöne” in Augustiniana 14 (1964), p. 87].Porém, se o paralelo entre os primeiros el<strong>em</strong>entos – pulchrum / frui – não coloca dificul<strong>da</strong>de de maior,165


subsistiria mesmo se, sobre ela, o ser humano adoptasse uma atitude apenascont<strong>em</strong>plativa, e não pragmática, pois a cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> beleza é, afinal, uma atitudedo espírito que aplica, a um universo criado segundo regras de proporção – ordo,mensura, numerus –, a sua forma de nelas participar, isto é, as regras de belezaimpressas na própria mente.Estas três categorias – ordo, mensura, numerus – acompanham, s<strong>em</strong>pre, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, a forma de ca<strong>da</strong> criatura, e são indício, na dialéctica que tais categoriasestabelec<strong>em</strong> entre si, <strong>da</strong> presença nelas do ser supr<strong>em</strong>o. A tal ponto essas quali<strong>da</strong>des dosseres se encontram interrelaciona<strong>da</strong>s numa <strong>da</strong><strong>da</strong> forma de existência que, na ausência deuma delas, de modo algum há forma, ou presença de ser.Mensura e modus são categorias ontológicas que adquir<strong>em</strong> uma certa sinonímia,significando o limite, a determinação <strong>da</strong> forma, afinal, a circunscrição ou o confim deum ser. A categoria de numerus, por seu turno, dá conta essencialmente <strong>da</strong> condiçãomultíplice do real, do facto de ele não ser Uno, mas Múltiplo, divisível. É também <strong>em</strong>virtude do numerus que a forma de um ser é percepciona<strong>da</strong> pela mente humana comospeciosa, facto que evidencia a positivi<strong>da</strong>de atribuí<strong>da</strong> pelo Hiponense ao múltiplo.Expressão de uma lei interna de harmonia, a numerositas garante a condição ontológica<strong>da</strong> beleza <strong>da</strong> forma, independent<strong>em</strong>ente do juízo de gosto. É certo que a species severifica <strong>em</strong>piricamente e, portanto, é ela o objecto directo de uma percepção estética. Arelação entre species e numerositas dá-se pela mediação do juízo - neste caso estético -que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, supõe s<strong>em</strong>pre uma apreciação valorativa sobre o real.Por seu turno, a categoria de ordo é precisamente aquela cujo sentido é mais difícilde fixar. No contexto <strong>da</strong> dialéctica que estabelec<strong>em</strong> entre si as referi<strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des do<strong>da</strong>do que a Beleza deve fruir-se per se, à noção de aptum não corresponde, de modo algum, a concepçãodo bonum utile ( cf. De diu. quaest. 83, q. XXX: CCL 44A, p. 38-40), onde Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue obonum / pulchrum e o honestum, sendo este o que se refere a um fim. A concepção augustiniana decongruência ou aptidão não está direcciona<strong>da</strong> a uma finali<strong>da</strong>de funcional, mas precisamente a umaharmonia que subsiste per se, que se realiza e manifesta, progressivamente, no curso dos t<strong>em</strong>pos. A umamaior aptidão (coaptatio) corresponde uma maior expressão de ordo, no t<strong>em</strong>po. Nesta medi<strong>da</strong>, aplenitude <strong>da</strong> aptidão dá-se, precisamente, na Pessoa de Cristo, quando, na história, o t<strong>em</strong>po e a eterni<strong>da</strong>dese conjugam numa forma única e subsistente, revelando antecipa<strong>da</strong>mente o que será a congruênciaescatológica entre os seres, a perfeita harmonia que reinará entre as partes e o Todo e que se realiza nofinal dos t<strong>em</strong>pos. Este momento significará, no conjunto <strong>da</strong> Criação, o estabelecimento de uma harmoniaentre eterni<strong>da</strong>de e t<strong>em</strong>po, entre uni<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de, a qual não prescinde, antes exige, a condiçãomediadora do Homo christus Deus.166


ser - ordo, mensura, numerus -, o sentido de ordo completa-se com uma outra noção, ade pondus, e indica a finali<strong>da</strong>de de uma determina<strong>da</strong> forma, o seu lugar próprio. Aoconfiar à categoria de ordo o esclarecimento <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de de um ser, o filósofo deHipona inscreve nela a dinâmica do movimento. Tendendo para o repouso, éconquistando a sua ord<strong>em</strong> própria, o seu peso, a sua densi<strong>da</strong>de ontológica, que uma<strong>da</strong><strong>da</strong> forma atingirá o seu fim, de acordo com a sua natureza específica.Sto. <strong>Agostinho</strong> exige, para que a atitude estética se realize na plena acepção, odesinteresse, o respeito pela reali<strong>da</strong>de tal como ela é <strong>em</strong> si mesma, enquantomanifestação <strong>da</strong> acção de um ser supr<strong>em</strong>o, Criador. Tal perspectiva deve desprender-sedo aspecto funcional ou instrumental que, inerente a ca<strong>da</strong> forma de existência, lheconfere uma função de utili<strong>da</strong>de. Na mundividência augustiniana, o aspecto funcionalhá-de submeter-se e ordenar-se àquele primeiro, meramente cont<strong>em</strong>plativo ou defruição. Em todo o caso, não há, na obra do filósofo, uma correspondência entre o parconceptual, frui / uti – que t<strong>em</strong> por referência a activi<strong>da</strong>de humana - e aquele outro,pulchrum / aptum, que é proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas dos seres e, portanto, se exerceindependent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> acção humana. Por conseguinte, a categoria que, juntamente coma de pulchrum, compõe a harmonia de conjunto, não é o bonum utile, mas a coaptatio,ou seja, a congruência entre as partes e o todo que garante a integri<strong>da</strong>de de um ser.Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica - mediante a análise <strong>da</strong> percepção do belo enum nível primário e epidérmico, directamente dependente <strong>da</strong> experiência sensível - acompreensão <strong>da</strong> estrutura racional dos seres. A razão humana t<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, umitinerário a percorrer, desde esta percepção imediata, quase instintiva, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>,mediante a beleza, até à apreensão <strong>da</strong> estrutura ontológica que perpassa todo o real.Como se disse, este processo de ascese <strong>da</strong> mente até à beleza supr<strong>em</strong>a é propedêutico,na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que nele se revela a natureza relacional <strong>da</strong> razão, fazendo-a entrar <strong>em</strong>diálogo quer com o Mundo, quer com o Princípio Soberano de <strong>Ser</strong>. Na percepção doUniverso, entendido como congruência entre as partes e o todo, e mediante a percepçãodo belo, a razão humana revela-se a si mesma como el<strong>em</strong>ento de mediação entre o Unoe o Múltiplo.Entendi<strong>da</strong> como congruentia, a ordo rerum manifesta-se na beleza <strong>da</strong>s formas, aomesmo t<strong>em</strong>po que constitui um meio para justificar a presença <strong>da</strong> disformi<strong>da</strong>de. Esta é,para Sto. <strong>Agostinho</strong> e quando confina<strong>da</strong> ao domínio estético, o efeito de uma máinterpretação, de um erro de perspectiva que se esconde na falácia <strong>da</strong> razão quandotoma a parte pelo todo, obtendo uma compreensão redutora do real, cerra<strong>da</strong> à167


universali<strong>da</strong>de. A beleza está na convergência de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de para uma formosurauniforme, a qual só é <strong>da</strong><strong>da</strong> a cont<strong>em</strong>plar ao espírito que reflecte sobre si mesmo e sobreos seus conteúdos, avançando <strong>em</strong> direcção à transcendência que, nesse movimentointrospectivo, se lhe manifesta. O Filósofo de Hipona reconhece que há, de facto, umaordinatio, uma disposição absolutamente ordena<strong>da</strong> de todos os corpos, mesmo dos maisínfimos. Tal ordenação resulta do facto de todos eles depender<strong>em</strong>, no seu ser e na suaforma, de uma razão universal causadora de ser e não apenas garante de inteligibili<strong>da</strong>de.Aderindo à hierarquia ontológica proposta pelo neoplatonismo numa <strong>da</strong>s mais simplesformulações – esse, uiuere, intellegere -, e cuja operativi<strong>da</strong>de o filósofo nãoabandonará, não faria sentido que reali<strong>da</strong>des inferiores, como os m<strong>em</strong>bros de animaisinsignificantes tais que as pulgas ou as formigas, estivess<strong>em</strong> submetidos à racionali<strong>da</strong>dedo Verbo e que esta não abrangesse reali<strong>da</strong>des superiores, como as almas racionais e avi<strong>da</strong> dos humanos, no seu condicionamento histórico, onde as vicissitudes se entretec<strong>em</strong>com os momentos de calmaria.Para Sto. <strong>Agostinho</strong> é incontestável a presença desta ordenação, precisamente namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o seu princípio transcende a mente humana. Ela está, por conseguinte,inscrita no real como uma lei imutável. Ora, se a razão a rejeita, e encontra, noUniverso, disformi<strong>da</strong>de e contradição, tal facto não se poderá atribuir à debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> soberana, causadora de ser, mas sim a uma redutora e deficiente compreensão doreal por parte <strong>da</strong> mente humana, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> numa falha de percepção. Por isso, estacompreensão <strong>da</strong> beleza uniforme só é <strong>da</strong><strong>da</strong> às mentes que se dedicam à ord<strong>em</strong> dosestudos e que procuram, com afinco e por cima <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais preocupações desta vi<strong>da</strong>, auni<strong>da</strong>de perfeita e inteligível.To<strong>da</strong>via, se, inicialmente e com alguma insistência, Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe adedicação à ord<strong>em</strong> dos estudos como itinerário <strong>da</strong> mente para a alcançar a Uni<strong>da</strong>deSupr<strong>em</strong>a, tal metodologia v<strong>em</strong> a simplificar-se, concretizando-se na propostaaugustiniana <strong>da</strong> entrega <strong>da</strong> razão à análise dos seus próprios conteúdos. A única euniversal beleza resulta <strong>da</strong> congruência que existe entre as partes e o todo, pois o realestá desenhado segundo uma concordância universal que se manifesta de modoprivilegiado quando a razão atende à numerositas, ao ritmo ou harmonia interna quereina nas formas dos seres. Na estrutura do real subjaz uma musicali<strong>da</strong>de perfeitamenteharmónica, cuja estrutura inteligível é redutível à mesma ord<strong>em</strong> existente na sequêncianumérica. Por este motivo, o Universo <strong>em</strong>ite uma certa musicali<strong>da</strong>de, uma concertaçãouniversal <strong>da</strong>s formas, no relacionamento que estabelec<strong>em</strong> entre si – uniuersum rerum168


coaptatio atque concentum. A beleza universal, a ordenação subjacente <strong>em</strong> todo o real,a perfeita harmonia dessa musicali<strong>da</strong>de de fundo, a beleza <strong>da</strong> figura do mosaico estão lá,mas descobri-las exige um trabalho de purificação do olhar. A mesma exigência de umapurificação interior, necessária à cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de é, igualmente, postula<strong>da</strong>pela metodologia neoplatónica. A ascese para o Uno, termo final <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do sábio,só é possível por um sucessivo despojamento <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de sensível, <strong>em</strong> face <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des corpóreas e materiais 254 .A análise augustiniana acerca <strong>da</strong> categoria ontológica de pulchrum, entendi<strong>da</strong>como congruência entre as partes e o todo, integra-se, assim, num plano mais geral: o <strong>da</strong>percepção de uma racionali<strong>da</strong>de inerente a todos os âmbitos de reali<strong>da</strong>de, mesmo nasmais diminutas expressões. Por seu turno, como ficou dito, a compreensão dessaracionali<strong>da</strong>de articula-se, sobretudo nos seus primeiros escritos, com a proposta <strong>da</strong>dedicação <strong>da</strong> mente a um esforço dialéctico, reservado a uma parcela <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>deque dele necessita para alcançar a compreensão <strong>da</strong> harmonia entre o Uno e o Múltiplo.Neste contexto se desenvolve o discurso augustiniano sobre a natureza <strong>da</strong>s diferentesartes, a finali<strong>da</strong>de delas – a união entre a alma e o divino, ascendendo per corporalia adincorporalia - e as duas vias que concretizam tal projecto de sageza: a autori<strong>da</strong>de e arazão 255 . Num caso e noutro é a tarefa de aprendizag<strong>em</strong> que está <strong>em</strong> causa, a qualcaminha a par do progressivo descortinar de uma racionali<strong>da</strong>de universal. A meta é oacesso ao Princípio <strong>da</strong> Totali<strong>da</strong>de uma vez que, a partir dele, a mente humana haverá deavistar o lugar próprio que compete a ca<strong>da</strong> forma, no conjunto.Ao insistir na necessi<strong>da</strong>de de uma aprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong> razão, Sto. <strong>Agostinho</strong>sublinha, entre outros, um aspecto central <strong>da</strong> sua mundividência: a historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>própria racionali<strong>da</strong>de. Esta verifica-se, antes de mais, a nível individual, pois o próprio254 Plotino e Porfírio, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong>, insist<strong>em</strong> numa necessi<strong>da</strong>de de purificação interior, decatarse, para que a alma possa vir a cont<strong>em</strong>plar o Uno Simples, ass<strong>em</strong>elhando-se a ele. To<strong>da</strong>via, se oneoplatonismo faz incidir esse percurso na força <strong>da</strong> razão, no domínio que a alma humana pode exercersobre si mesma, a proposta augustiniana insistirá na acção purificadora <strong>da</strong> fé. Esta, s<strong>em</strong> deixar de ser umacto racional e humano, implica uma atitude de confiança no Outro: o Absoluto ou Deus. O fun<strong>da</strong>mento<strong>da</strong>quele acto transcende, portanto, a razão individual e alicerça-se na Eterni<strong>da</strong>de do Verbo, que se revelana história.255 J. Doignon, referenciando <strong>em</strong> particular Cícero e Séneca, faz notar que esta distinção não é inaugura<strong>da</strong>por Sto. <strong>Agostinho</strong>, sendo um el<strong>em</strong>ento clássico <strong>da</strong> filosofia latina ( Cf. J. DOIGNON, “De l’autorité à laraison: une pé<strong>da</strong>gogie classique de la beatitude”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saint Augustin4/2, p. 357-358).169


exercício do discurso exige a medi<strong>da</strong> do t<strong>em</strong>po, mediante a sucessão <strong>da</strong>s sílabas,indiciando que a razão se exerce na d<strong>em</strong>ora do raciocínio. Contudo, a dimensãohistórica <strong>da</strong> razão humana manifesta-se também a nível comunitário, mormente noplano do discurso. De facto, as palavras e o sentido que lhes é atribuído sãot<strong>em</strong>porários, caducam. Por sua vez, a razão universal, a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s razões, resulta <strong>da</strong>expressão <strong>da</strong> consonância dos diferentes verba e <strong>da</strong>s acções humanas que os sustentam,na sucessão e no curso dos t<strong>em</strong>pos.Assim, não obstante considerar que a beleza se apreende num nível epidérmico <strong>da</strong>relação dos sensibilia com os corporalia, a exposição augustiniana acerca do belointegra-se num plano mais geral do que o <strong>da</strong> mera análise <strong>da</strong> sensação. Partindo de umestudo apurado sobre este fenómeno psicossomático, o objectivo do filósofo édisponibilizar uma metodologia que sirva à mente humana para, gra<strong>da</strong>tim, ascender percorporalia ad incorporalia.Sto. <strong>Agostinho</strong> conhece as vias a que o ser humano pode recorrer para descortinaro mistério <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>: a autori<strong>da</strong>de, sendo esta de instituição divina ouhumana, e a razão. E reconhece que a via <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, na qual se refugia a grand<strong>em</strong>aioria dos humanos - não obstante não estar isenta de perigos –, é mais fácil depercorrer do que a <strong>da</strong> razão. To<strong>da</strong>via, há umas quantas mentes que não se satisfaz<strong>em</strong>com a adesão a argumentos alheios e exig<strong>em</strong> pô-los à prova, pela força <strong>da</strong> dialéctica. Aestes reserva-se o duro caminho <strong>da</strong> depuração <strong>da</strong> razão, a qual deve contrariar umcomércio, de algum modo natural, que a mente humana estabelece com o domínio <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des sensíveis e corporais, a fim de se confrontar com aquele universo <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des que correspond<strong>em</strong> à sua natureza própria: as inteligíveis. Assim, a função dossaberes ou artes na realização <strong>da</strong> ascese <strong>da</strong> razão está intrinsecamente uni<strong>da</strong> aoobjectivo de alcançar um desprendimento progressivo <strong>da</strong> razão humana <strong>da</strong> convicção <strong>da</strong>sua dependência <strong>em</strong> relação à activi<strong>da</strong>de sensível e ao mundo dos corporalia. A estepropósito, é paradigmática a expositio acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> dos saberes no processo deascese <strong>da</strong> mente à razão universal glosa<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine e fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, precisamente, napercepção do belo.Se a reflexão sobre o pulchrum – a que Sto. <strong>Agostinho</strong> associa termos comodecor, aptum, honestum, accomo<strong>da</strong>tum, conueniens, congruens e, mesmo, o termo ordo– ocupa, no que se refere à compreensão <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, um lugar pro<strong>em</strong>inente nosprimeiros escritos do filósofo, esse facto deve-se à insistência <strong>em</strong> identificar aquelanoção com a percepção de uma harmonia omnipresente. A via para tal desiderato seria170


dedicar-se a uma análise <strong>da</strong> sensação, privilegiando-a nos domínios visível e audível, afim de, por meio dela, comprovar a presença, no Universo, de proprie<strong>da</strong>des como aequi<strong>da</strong>de, a justiça, o equilíbrio e a simetria. Deste modo, se a razão humana conclui ocontrário, julgando estar <strong>em</strong> presença de um Universo onde reina o conflito, a oposiçãoe a injustiça, ela deve saber que incorre num grave erro, cuja causa é a ignorância quet<strong>em</strong> de si mesma e <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de própria. Desta estultícia resulta, como que porosmose, o desconhecimento <strong>da</strong> natureza do cosmos, no qual a razão humana se inserecomo parte integrante.O projecto de construção de uma enciclopédia de saberes conjugava, na intençãodo filósofo, estas três dinâmicas: servir de exercício do espírito, permitir um trabalho,progressivo e seguro, no acesso do espírito às reali<strong>da</strong>des supernas, e revelar,simultaneamente, o ser humano a si mesmo, <strong>da</strong>ndo-lhe a conhecer a sua naturezaespecífica e anunciando-lhe o lugar que ocupa na hierarquia ontológica.No que se atém à resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e à função mediadora queuma reflexão sobre o belo pode assumir no itinerário <strong>da</strong> razão para compreender aquelanoção supr<strong>em</strong>a, é notória a hábil articulação entre os três propósitos supra-referidos e aatenção de Sto. <strong>Agostinho</strong> a duas ciências ou artes <strong>em</strong> particular: a arquitectura e amúsica. Tome-se a arquitectura como ponto de referência. O filósofo indica que, no quese refere à percepção visível, aquilo que deleita o espírito e o faz reflectir sobre simesmo, <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de presente <strong>em</strong> uma obra sua, é a disposição <strong>da</strong>s partesque compõ<strong>em</strong> uma determina<strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de – no caso concreto apresentado <strong>em</strong> Deordine, o edifício dos balnea. As janelas, <strong>em</strong> número de três, estão dispostas paribusinteruallis, sendo esta disposição simétrica designa<strong>da</strong> pelos que se dedicam à artearquitectónica exactamente por ratio 256 .O critério de razoabili<strong>da</strong>de é, aqui, claramente enunciado como a concordância <strong>da</strong>spartes <strong>em</strong> prol de um todo que se dirá ordenado precisamente porque a percepção delenão fere o olhar, antes o deleita. De facto, o olhar é agredido s<strong>em</strong>pre que a beleza estáausente de uma reali<strong>da</strong>de. A concepção augustiniana de beleza como efeito doequilíbrio entre as partes e o todo comprova-se, igualmente, no ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça ou no<strong>da</strong> pantomina de um histrião. A <strong>da</strong>nça, enquanto activi<strong>da</strong>de humana que conjuga os256 DO II, XI, 34: “ (...) quod aut<strong>em</strong> intus tres fenestrae, una in medio, duae a lateribus paribus interuallissolio lumen infundunt, quam nos delectat diligentius intuentes quam que in se animum rapit! manifestares est nec multis uerbis uobis aperien<strong>da</strong>.” ( CCL 29, p. 126).171


m<strong>em</strong>bros do corpo, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o faz de acordo com a lei do equilíbrio ou <strong>da</strong>congruência é, <strong>em</strong> si mesma, bela, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>quilo que, através dela, setenha intenção de significar. To<strong>da</strong>via, no caso <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça, a harmonia dos movimentoscorpóreos t<strong>em</strong> por objectivo a representação. A sua finali<strong>da</strong>de é, portanto, acomunicação, sendo esta indissociável do significado dos movimentos. Ain<strong>da</strong> queagrade aos sentidos e deleite o olhar, uma reali<strong>da</strong>de pode não ser expressão de harmoniase agredir o espírito, o que sucede quando não se verifica nela um acordo entre os sinais<strong>da</strong>dos e aquilo que, mediante uma determina<strong>da</strong> acção, se pretende significar. Aointroduzir esta destrinça na análise que faz <strong>da</strong> sensação e <strong>em</strong> função <strong>da</strong> percepção dobelo, o filósofo estabelece a fronteira entre aquilo que o sentido capta e aquilo que eletransmite. Esta distinção constitui um marco importante para entender a relaçãoaugustiniana entre ordo e ratio 257 .A percepção <strong>da</strong> beleza visível estende-se, progressivamente, às reali<strong>da</strong>descircun<strong>da</strong>ntes. Se, de início, e para afastar qualquer suspeita sobre a razoabili<strong>da</strong>de deuma reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> detém a sua atenção sobre as obras humanas, umavez detectado sub-repticiamente o critério e a causa <strong>da</strong> beleza – o equilíbrio, a dimensãojusta, ou simetria entre as partes e o todo, cujo efeito é a dimensio – o olhar vai-sepaulatinamente alargando sobre as obras <strong>da</strong> natura, de que é ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> De ordine, aluta de galos – espectáculo harmónico, lugar adequado -, ou sobre os el<strong>em</strong>entosdispostos no Universo. Assim, tudo quanto há no céu ou na terra se torna objecto deatenção e de in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> congruência, para concluir que é belo quanto agra<strong>da</strong>naquelas reali<strong>da</strong>des e que a causa do agrado é a beleza <strong>da</strong>s figuras, dota<strong>da</strong>s dedimensões. Por seu turno, a razão logra reduzir as figuras e as formas à categoria denumerus. As dimensões <strong>da</strong>s figuras, alia<strong>da</strong>s à complexa noção de numerus, permit<strong>em</strong>que a razão aborde o movimento dos astros. Assim, o conjunto de deduções opera<strong>da</strong>ssobre esta observação, tais como o conhecimento <strong>da</strong>s estações do ano, a previsão deeclipses, de fases <strong>da</strong> lua e todo o conjunto de princípios referentes à astrologia, éresgatado por Sto. <strong>Agostinho</strong> ao âmbito <strong>da</strong> superstitio, inscrevendo-se no domínio <strong>da</strong>257 DO II, XI, 34: “ (...) Aliud ergo sensus, aliud per sensum.” (CCL 29, p. 126). Sto. <strong>Agostinho</strong>prossegue, aplicando esta lei quer à visão, quer à audição, pois no ser humano o facto de sentir e adescodificação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se sente estão intrinsecamente unidos. Também no Livro VI de D<strong>em</strong>usica, o filósofo detém-se na destrinça entre os órgãos dos sentidos e quanto, por meio deles, se capta,analisando detalha<strong>da</strong>mente a harmonia dos sons.172


acionali<strong>da</strong>de 258 . Tornando-se uma forma de saber, a astrologia integra-se no elenco <strong>da</strong>sdisciplinas, convertendo-se <strong>em</strong> scientia.Em De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> reconduz a percepção do belo que se capta persensum à disciplina que compreende a forma inteligível <strong>da</strong> aequalitas ou similitudo, asaber, a geometria, ciência que se equaciona directamente com a mat<strong>em</strong>ática. Ambos ossaberes se articulam sobre a noção de numerus e confrontam, portanto, a razão quepercorre gradualmente a escala<strong>da</strong> para o princípio de racionali<strong>da</strong>de universal, ouUni<strong>da</strong>de, como termo final desse percurso de ascese. Despoja<strong>da</strong> dos degraus, a razão258 Sto. <strong>Agostinho</strong> relata, <strong>em</strong> Confessionum, o seu apreço pela astrologia e formas de conhecimento afins.A questão reveste-se de alguma complexi<strong>da</strong>de. Por um lado, enquanto forma de saber que conjuga aobservação <strong>em</strong>pírica e a aritmologia, a astrologia é parte do conhecimento do cosmos e é útil <strong>em</strong> diversosdomínios <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana. Por outro lado, enquanto incide sobre reali<strong>da</strong>des considera<strong>da</strong>s pelossábios como divinas – as esferas celestes, o movimento circular dos astros – a penetração <strong>da</strong> razão <strong>em</strong> taisfenómenos aproximava, de alguma forma, homens e deuses, também pela capaci<strong>da</strong>de de previsão dealguns fenómenos, pouco frequentes ou periódicos, como o caso dos eclipses do Sol ou <strong>da</strong> Lua. Este facto- unido a uma concepção do mundo fort<strong>em</strong>ente domina<strong>da</strong> por uma ideia do divino intrinsecamenteassocia<strong>da</strong> às forças supra-celestes ou telúricas, e na qual os movimentos cíclicos dos astros ou <strong>da</strong> próprianatureza eram concebidos como materialização de um determinismo cósmico, onde a fortuna ou fatumjustificam as acções dos homens e dos t<strong>em</strong>pos – fazia <strong>da</strong> astrologia um saber facilmente vulnerável a umaproveitamento por parte de seitas e movimentos teosóficos, tais como o maniqueísmo ( e outrasexpressões gnósticas, com as quais Sto. <strong>Agostinho</strong> contactou de uma forma ou de outra, v. gr. opriscilianismo, ou o origenismo), ou por parte do puro charlatanismo. Em ambos os casos e de um modogeral, a astrologia an<strong>da</strong> liga<strong>da</strong>, ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong>, a práticas mágicas e divinatórias, favorecendo umculto de falsas divin<strong>da</strong>des e a confusão entre religião, pie<strong>da</strong>de e superstição. É um facto que, nos seusanos de maniqueísmo, o filósofo aderiu à vã curiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> adivinhação, como também é ver<strong>da</strong>de queprocurou respostas ao seu legítimo desejo de ver<strong>da</strong>de junto dos Maniqueus, interrogando-os acerca dosfenómenos astrais, tendo, ao respeito, comprovado a ignorância profun<strong>da</strong> dos mais altos dignatários <strong>da</strong>seita. S<strong>em</strong> deixar de afirmar a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> astrologia como ciência, Sto. <strong>Agostinho</strong> é crítico, desde oprimeiro momento <strong>em</strong> que desacredita para si mesmo as práticas mágicas e divinatórias ( cf. v. gr., DO I,VI, 15; II, IX, 27; II, XV, 42: CCL 29, p. 96; p. 122-123; p. 130; De doct. christ. II, XXIII-XXV: CCL32, p. 57-61), s<strong>em</strong>pre associa<strong>da</strong>s a uma interacção entre homens e <strong>da</strong><strong>em</strong>ones, e à activi<strong>da</strong>de dos fazedoresde horóscopos [os genethliaci que, como Sto. <strong>Agostinho</strong> informa <strong>em</strong> De doct. christ. II, XXI, 32 (CCL32, p. 54); De haer. LXX, 1 ( CCL 46, p. 334) se chamam vulgarmente math<strong>em</strong>atici], condenandoacerrimamente qualquer forma de superstição. No que se refere à astrologia, o filósofo reconhece a suarelação com as leis do cômputo, mas critica a forma como os que a ela se dedicam estabelec<strong>em</strong>, entre osastros e a vi<strong>da</strong> humana, nexos de um determinismo causal incondicionado, desrespeitando a hierarquiaontológica. Em síntese, a integração <strong>da</strong> astrologia entre as disciplinae não é questão inócua e a batalhaterá de ser trava<strong>da</strong> a diversos níveis.173


defronta-se apenas com estes dois el<strong>em</strong>entos: ela própria, na sua mutabili<strong>da</strong>de -verifica<strong>da</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, no próprio movimento de ascese -, e a Uni<strong>da</strong>de absolutamenteinteligível, orig<strong>em</strong> e fonte de to<strong>da</strong> a beleza. É para a cont<strong>em</strong>plação deste princípiosoberano que se direcciona a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong>s disciplinas 259 . No entender de Sto.<strong>Agostinho</strong>, a execução deste processo des<strong>em</strong>bocaria no exercício de uma prática de vi<strong>da</strong>ordena<strong>da</strong>, harmónica, ajusta<strong>da</strong> e bela, só ela capaz de cont<strong>em</strong>plar a fonte de onde <strong>em</strong>anaa Ver<strong>da</strong>de e, a partir desse princípio de universali<strong>da</strong>de, compreender de que modo to<strong>da</strong>sas aparentes contradições que assolam a vi<strong>da</strong> dos humanos concorr<strong>em</strong> para umaharmonia entre o todo e as partes que se compenetram, conjugando-se num imensopo<strong>em</strong>a sinfónico, a que se chama Universo. A cont<strong>em</strong>plação e a compreensão destaharmonia universal coincide com a beata uita e a disciplina que lhe corresponde é aFilosofia.Obviamente, esta exposição, que r<strong>em</strong>ete para uma compreensão <strong>da</strong> ordenação doUniverso com base numa estrutura de modelo mat<strong>em</strong>ático, onde a relação entrenumerus e unitas – afinal, a relação entre o Múltiplo e o Uno – é a forma última deexplicação do real, pouco t<strong>em</strong> de original. Ela é profun<strong>da</strong>mente devedora de quanto ofilósofo assimilara do pitagorismo veiculado pelos escritos de Varrão e <strong>da</strong>s doutrinaspresentes, também, <strong>em</strong> outras fontes manusea<strong>da</strong>s pelo Hiponense. Esta influência <strong>da</strong>sdoutrinas pitagóricas nos primeiros escritos de Sto. <strong>Agostinho</strong> não é de desprezar. Estápatente de modo explícito <strong>em</strong> obras como De ordine, De musica ou mesmo <strong>em</strong> Dequantitate animae onde, in<strong>da</strong>gando sobre a natureza do fenómeno vital que é a almahumana, o filósofo não hesita <strong>em</strong> procurar entender a presença dela no ser humano moregeometrico.Na ver<strong>da</strong>de, o recurso à aritimologia pitagórica para equacionar a in<strong>da</strong>gação sobrea universali<strong>da</strong>de de ord<strong>em</strong> é uma opção inteligente. To<strong>da</strong>via, é necessário não perder devista que as doutrinas do Filósofo de Samos estão presentes, na obra do Hiponense,apenas de modo indirecto, <strong>da</strong>do que foi assim que elas puderam ser li<strong>da</strong>s, a saber,impregna<strong>da</strong>s de influência neoplatónica, combinação que parece ajustar-s<strong>em</strong>agnificamente às preocupações de um <strong>Agostinho</strong> recém-convertido, <strong>em</strong> busca <strong>da</strong>259 Cf. DO II, XVI, 44 ( CCL 29, p. 131). A este hom<strong>em</strong>, erudito e sábio, resta acrescentar uma vi<strong>da</strong>ordena<strong>da</strong>: “ (...) Gra<strong>da</strong>tim enim se et ad mores uitamque optimam non iam sola fide, sed certa rationeperducit.” (DO II, XIX, 50: CCL 29, p. 134).174


inteligência de uma infini<strong>da</strong>de de questões que, desde cedo, se apresentaram no seuirrequieto espírito.No que se refere à natureza e universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> enfrenta-secom algumas soluções possíveis na tradição cultural de que é devedor. Boa parte delas édiscuti<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine e v<strong>em</strong> imbuí<strong>da</strong> <strong>da</strong>s categorias estóicas que parec<strong>em</strong> ter criadoraiz na mente dos interlocutores do filósofo, tornando difícil suplantar uma solução porefeito de contrários ou a redução <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de de todos os fenómenos do Universo aocego determinismo cósmico.É certo que o neoplatonismo disponibilizava ao Filósofo de Hipona umaconcepção do mundo optimista <strong>em</strong> extr<strong>em</strong>o, defendendo a presença de uma razãouniversal que conjuga os fenómenos cósmicos numa lógica outra que a humana esuperior a esta, integrando os contrários, as contradições e as contrarie<strong>da</strong>des numaharmonia mundi que só ao sábio é <strong>da</strong>do descortinar. To<strong>da</strong>via, se, para Plotino, tambéma vontade humana livre e as decisões dela têm lugar nessa lógica, sublime e divina,contornando, assim, o determinismo e fatalismo cósmicos dos estóicos, a diferença e amultiplici<strong>da</strong>de não deixam de <strong>em</strong>ergir, na obra do Alexandrino, como efeito de umadegra<strong>da</strong>ção do Uno, sendo a matéria conota<strong>da</strong> com o princípio <strong>da</strong> malícia enegativi<strong>da</strong>de, indiciando uma certa subsistência desse princípio de corrupção.Se, no confronto com a mundividência estóica, Sto. <strong>Agostinho</strong> teria de batalharcontra uma visão materialista do real e contra o fatalismo cósmico, a mundividêncianeoplatónica facilmente abria passo a um novo dualismo, fantasma que o filósofo querafastar definitivamente do seu horizonte intelectual. O pitagorismo, que ron<strong>da</strong>ra Depulchro et apto <strong>em</strong> estranha conciliação com algumas teses caras à gnose maniqueísta,surge agora como uma solução plausível para equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Comefeito, trata-se de conceber a relação entre o Uno e o Múltiplo com base <strong>em</strong> deduções decarácter puramente inteligível. E se esta relação pode ser reconduzi<strong>da</strong> à sedeprivilegia<strong>da</strong> onde o real é compreendido, ou seja, à natureza <strong>da</strong> razão, libertando-se,progressivamente, <strong>da</strong> sua aplicação directa à compreensão dos corporalia, então elapode tornar-se extraordinariamente fecun<strong>da</strong> na intelecção <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de que Sto.<strong>Agostinho</strong> considera ser o objecto privilegiado <strong>da</strong> filosofia – a relação entre Deus e aalma.A hermenêutica augustiniana não é nunca servil <strong>em</strong> face <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des com asquais dialoga. A influência pitagórica, mais patente nos seus primeiros escritos, diluirse-ácom o passar dos anos e ao ritmo <strong>da</strong> maturação dos el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> a175


metafísica augustiniana. To<strong>da</strong>via, a intuição essencial do pitagorismo, o modo deconceber a relação entre o Uno e o Múltiplo, preservando simultaneamente a diferença eexigindo a mútua implicação, virá a erigir-se num el<strong>em</strong>ento-chave para oesclarecimento <strong>da</strong> noção augustiniana de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> 260 .Com efeito, a noção de ord<strong>em</strong> a que Sto. Agostino t<strong>em</strong> acesso mediante estaascese por meio dos uisibilia, mais do que uma definição, com características deuniversali<strong>da</strong>de, alcança o deleite estético. Mediante os diferentes percursos graduais, aalma ascende ao Princípio <strong>da</strong> Totali<strong>da</strong>de que se identifica com o Uno inteligível puro.Na esteira de Plotino, também Sto. <strong>Agostinho</strong> admite que, a partir de uma peculiarforma de comunhão entre a alma e o inteligível, é possível compreender a totali<strong>da</strong>de e,desta forma, também o lugar que ca<strong>da</strong> ser ocupa na hierarquia ontológica. Estacompreensão só é possível supondo que no Uno estão Todos os inteligíveis. Porém, omodo como Sto. <strong>Agostinho</strong> e Plotino compreend<strong>em</strong> a relação entre o Uno e a forma dosseres é radicalmente diferente.A percepção que a alma t<strong>em</strong> do real é a <strong>da</strong> harmonia. O todo e as partessintonizam, acomo<strong>da</strong>m-se mutuamente, convêm entre si. Esta percepção faz o deleite <strong>da</strong>alma e permite-lhe afirmar o decoro e a adequação de ca<strong>da</strong> forma a uma justezafun<strong>da</strong>mental de tudo quanto sucede no interior do cosmos. A ord<strong>em</strong> ou harmonia,mesmo quando expandi<strong>da</strong> a todos os domínios de reali<strong>da</strong>de, não pode ser entendi<strong>da</strong>mais do que como congruência e acomo<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s partes entre si, s<strong>em</strong>pre num âmbitointra-mun<strong>da</strong>no, onde há partes e totali<strong>da</strong>des e onde a reali<strong>da</strong>de se sujeita, de algummodo, à tridimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria, à qual Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste <strong>em</strong> acrescer aquarta dimensão, a <strong>da</strong> sucessão t<strong>em</strong>poral. Mesmo atribuindo alcance ontológico aoprincípio universal <strong>da</strong> congruência, designado por ordo – isto é, mesmo entendendo aordo rerum como categoria ontológica -, o domínio <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> nãoultrapassa, neste contexto, o horizonte do cosmos, pois a percepção que resulta <strong>da</strong>cont<strong>em</strong>plação desta harmonia é de carácter estético, s<strong>em</strong> que a razão consiga justificarpor que motivo o Universo se reveste desse acordo de fundo.260 Em Retract. I, III, 3 ( CCL 57, p. 13), critica os excessivos encómios que, <strong>em</strong> De ordine, tecera aPitágoras. Esta rectificação é feita com o sentido <strong>da</strong> história que caracteriza o Filósofo de Hipona. Comefeito, não quer que qu<strong>em</strong> leia ou ouça falar futuramente no que ficou registado <strong>em</strong> De ordine venha asupor que <strong>Agostinho</strong> não encontra qualquer deficiência nas doutrinas de Pitágoras, sendo elas muitas e deimportância capital.176


Afinal, um acesso à noção de ord<strong>em</strong> mediante aquele nível de percepção que sepode designar por uma estética inferior – que se cinge à relação entre os corporalia e ossentidos <strong>da</strong> visão ou audição -, faz prevalecer a interrogação do filósofo <strong>em</strong> De ordine:cur ita est? Se é ver<strong>da</strong>de que, através <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> congruência ou <strong>da</strong> harmonia entreas partes e o Todo, é possível aceder, gra<strong>da</strong>tim, à beleza supr<strong>em</strong>a, também é um factoque tal percurso não corresponde à interrogação sobre o modo como se dá esta relaçãoentre a alma e o Uno, por um lado e, por outro, entre o Uno e to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> qual aalma é apenas uma expressão. Neste âmbito de in<strong>da</strong>gação, a única certeza que Sto.<strong>Agostinho</strong> parece ter e que reitera com frequência nos seus primeiros escritos, é a <strong>da</strong>divergência de naturezas que separa a alma humana <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a.Ensaiando uma primeira resolução para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, o filósofo centrasena identificação <strong>da</strong>quelas obras humanas onde é possível verificar a congruênciaentre as partes, o equilíbrio, o modus e a equi<strong>da</strong>de que nelas produz o decoro. Baseandonesta busca a identificação de uma racionali<strong>da</strong>de universal, o optimismo de <strong>Agostinho</strong> égeneralizado. Da<strong>da</strong> a estrutura absolutamente congruente do real, basea<strong>da</strong> num tecidode relações de carácter mat<strong>em</strong>ático que, no caso <strong>da</strong>s obras visíveis, é tambémgeométrico, na<strong>da</strong> escapa a essa textura, imutável e universal, que converge para as leisdo cálculo. Estas não só se exim<strong>em</strong> à corrupção do t<strong>em</strong>po, como também reservam parasi a medi<strong>da</strong> imutável e eterna do próprio t<strong>em</strong>po. Paralelamente, nas leis <strong>da</strong> geometriaarticulam-se as normas imutáveis <strong>da</strong> disposição dos corpos no espaço. É por isso queSto. <strong>Agostinho</strong> insiste que é a simetria que deve reinar na arquitectura. Do mesmomodo, nas reali<strong>da</strong>des naturais, uma aparente imperfeição deve ser reconduzi<strong>da</strong> ereencontra<strong>da</strong> na figura perfeita, puramente inteligível, que a mente busca e para cujaracionali<strong>da</strong>de um <strong>da</strong>do fenómeno, visível corporalmente, apela, na sua condiçãovestigial. Os corporalia – artefacta ou naturalia - recor<strong>da</strong>m, efectivamente a medi<strong>da</strong>, omodus inteligível que configura o espaço, sendo esta a categoria à qual a mente humanapode aceder num plano de pura integibili<strong>da</strong>de. É assim que o filósofo apresenta aequi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes que deve reinar na disposição de uma casa. É também assim que sedeve apreciar a rotunditas de uma noz, a qual se aproxima <strong>da</strong> perfeição ideal do círculo,s<strong>em</strong> que tal se lhe possa exigir, <strong>da</strong><strong>da</strong> a natureza corpórea desse fruto 261 .261 Erra a mente humana, pois busca a perfeição inteligível fora do seu lugar próprio, que é o <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des espirituais: LA III, V, 14: “In eo plerique homines errant, quia meliora cum menteconspexerint, non in sedibus congruis ea oculis quaerunt, uelut si quisquam perfectam rotunditat<strong>em</strong>177


Há beleza e decoro onde reina uma congruência perfeitamente ajusta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s partes.Nenhum domínio <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de pode escapar a esta ordenação, <strong>da</strong>do que – como Sto.<strong>Agostinho</strong> insinua nos primeiros escritos e procura mostrar ao longo <strong>da</strong> sua obra - aestrutura subjacente a to<strong>da</strong> a orgânica do mundo é de teor mat<strong>em</strong>ático, pois nela aaequalitas numerosa s<strong>em</strong>pre se verifica. Este seu optimismo radical, celebradosobretudo nos primeiros escritos, baseia-se, efectivamente, na convicção de que épossível compreender o real à luz <strong>da</strong> matriz mat<strong>em</strong>ática que suporta a sua ver<strong>da</strong>deiraestrutura. Ascendendo a este plano de racionali<strong>da</strong>de, verifica-se que to<strong>da</strong>s ascontradições gera<strong>da</strong>s na mente humana quando procura compreender a ordo rerum<strong>em</strong>anam de um erro de cálculo, cuja causa pode ser multiforme, variando desde aignorância <strong>da</strong>s leis aritmológicas até à preguiça ou inépcia do espírito para percorrer,atenta e cui<strong>da</strong>dosamente, os degraus dos saberes.Sto. <strong>Agostinho</strong> está convicto <strong>da</strong> harmonia matricial que rege o Universo e tudoquanto nele se insere, quer no plano <strong>da</strong> natureza – ao nível <strong>da</strong>s espécies, dos géneros e<strong>da</strong> interacção dos el<strong>em</strong>entos cósmicos -, quer no plano <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana, individualou social e cívica, na sua manifestação extrínseca ou no recolhimento de âmbitopuramente imanente, do qual <strong>em</strong>erge. Recorre, por isso, e com alguma frequência, àmetáfora do Universo como feito arquitectónico, obra de arte, onde a aequalitas estápresente, não obstante de modo silencioso e oculto a uma percepção imediata, exigindo,portanto, uma peculiar atenção do espírito. Há uma estrutura de fundo, um alicerce paratudo quanto existe que, se nos primeiros escritos do Hiponense não t<strong>em</strong> um rosto b<strong>em</strong>definido – sendo referido como lex diuina ou numerositas – paulatinamente, à medi<strong>da</strong>que a relação entre o Artífice e a sua obra se vai esclarecendo na mente do filósofo, sevirá a identificar com a Sapientia dei. Esta, por seu turno, insere-se no seio do PrincípioCriador, Deus-Trin<strong>da</strong>de, e identifica-se com o Verbo Eterno ou Virtude Divina.Falar de uma matriz mat<strong>em</strong>ática do cosmos, forma<strong>da</strong> de diferentes combinaçõesnuméricas com base na perfeição dos números primordiais, Mónade e Díade, e nasmúltiplas aplicações destes às leis do cômputo – aplicáveis às diferentes disciplinascomo forma de dominação <strong>da</strong> mente humana sobre o real circun<strong>da</strong>nte, a fim de instauraruma superiori<strong>da</strong>de, quase divina, do ser humano sobre os d<strong>em</strong>ais e sobre o cosmos nassuas diferentes expressões -, não permitiria a Sto. <strong>Agostinho</strong>, como não permitiu aratione conprehendens stomachetur quod tal<strong>em</strong> nuc<strong>em</strong> non inuenit, si nullum umquam rotundum corpuspraeter huiusce modi poma conspexit.” ( CCL 29, p. 283).178


Pitágoras e às diferentes escolas pitagóricas, ascender ao Princípio s<strong>em</strong> princípio dereali<strong>da</strong>de. Este desiderato último <strong>da</strong> sabedoria exige descentralizar o enfoque metafísicoderradeiro tanto de um princípio el<strong>em</strong>entar de carácter material – mesmo se sublime edeificado, como ocorre na mundividência estóica que assume o Fogo como el<strong>em</strong>entocósmico, simultaneamente primordial e escatológico –, como do próprio ser humanoque, julgando-se na posse dos segredos do Universo, facilmente se considera igual aDeus, apropriando-se do real e usando-o <strong>em</strong> função de si mesmo e não do B<strong>em</strong> Comum.O hom<strong>em</strong> sábio é, no horizonte de tais propostas, um entre os doctissimi uiri et paenediuini, aos quais Sto. <strong>Agostinho</strong> alude nos primeiros escritos, lamentandoposteriormente, tanto <strong>em</strong> Retractationum como <strong>em</strong> outros textos de maturi<strong>da</strong>de, este seuencómio e divinização dos humanos.Ao r<strong>em</strong>eter para a responsabili<strong>da</strong>de de um Artífice Supr<strong>em</strong>o a causa final <strong>da</strong>construção de um Universo onde as leis imutáveis <strong>da</strong> aritmologia garant<strong>em</strong> a perpétuaintegração entre as partes e o Todo, <strong>da</strong> qual resulta a beleza fun<strong>da</strong>mental e a harmoniaradical do cosmos, Sto. <strong>Agostinho</strong> parece aderir à proposta platónica de Timeu,atribuindo funções d<strong>em</strong>iúrgicas ao Princípio Soberano, causador do ser. Assim, quandose atende aos esforços <strong>da</strong> razão augustiniana por encontrar caminhos para umacompreensão <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>quelas dimensões do real ondese assegura razoabili<strong>da</strong>de, torna-se patente a debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> resposta para auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela noção. Neste contexto, a ord<strong>em</strong> restringe-se ao plano <strong>da</strong>justificação do real através <strong>da</strong> percepção estética, identificando-se com as noções deharmonia ou congruência <strong>da</strong>s partes, quer estas se consider<strong>em</strong> mediante a aptidão, quertal euritmia resulte do ajuste de el<strong>em</strong>entos antagónicos. To<strong>da</strong>via, o saldo dos excursosaugustinianos, tanto sobre a racionali<strong>da</strong>de presente nas disciplinas como acerca <strong>da</strong>quelapresença na activi<strong>da</strong>de sensível humana é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, positivo, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> quepermite verificar o alcance e o limite <strong>da</strong>s teses disponíveis na cultura antiga paraequacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Sto. <strong>Agostinho</strong> não desdenhará os grandes princípios condutores do seu primitivodiscurso sobre a ord<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> os el<strong>em</strong>entos que, nos primeiros escritos, considerou comover<strong>da</strong>deiros e razoáveis. Não abandonará, sequer, na maior parte dos casos, a mesmaterminologia, para se referir a uma ord<strong>em</strong> do Universo que se espelha na harmonia e napulcritude de todos os seres, mesmo nos mais ínfimos e aparent<strong>em</strong>ente abjectos, inúteisou, inclusivamente, tidos como molestos para a vi<strong>da</strong> dos humanos. To<strong>da</strong>via, a noção debeleza que, nos primeiros escritos, parece ser aquela para onde converge a noção179


augustiniana de ord<strong>em</strong>, virá a integrar-se num horizonte de compreensão mais amplo,regido por categorias mais universais do que aquelas que se pod<strong>em</strong> colher na percepçãosensível do real, mesmo se, por meio dela, se pretende ascender à cont<strong>em</strong>plação de umPrincípio Supr<strong>em</strong>o, Uno e Inteligível. Ampliando quanto de positivo as primeirascategorias haviam conquistado no esclarecimento <strong>da</strong> ordo rerum e <strong>da</strong> condiçãouniversal deste Princípio, Sto. <strong>Agostinho</strong> avançará para uma identificação, ao nível <strong>da</strong>noção supr<strong>em</strong>a, entre <strong>Ser</strong>, Ver<strong>da</strong>de e Uni<strong>da</strong>de, distanciando-se definitivamente dosmodelos filosóficos <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de.O Hiponense não deixará de identificar e de louvar a harmonia fun<strong>da</strong>mental doUniverso e, não obstante as críticas que tece à poesia e a determina<strong>da</strong>s formas deliteratura, referir-se-á inclusivamente ao cosmos na sua condição histórica como a umgrande po<strong>em</strong>a, hieraquicamente ordenado por um ineffabilis modelator 262 , na processãodo t<strong>em</strong>po para a eterni<strong>da</strong>de. Porém, a razão desta harmonia será a Sabedoria do Verbo,per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt. Este princípio de ser e de inteligibili<strong>da</strong>de garantirá osignificado <strong>da</strong> forma de ca<strong>da</strong> existência, enquanto participante do <strong>Ser</strong> <strong>da</strong> FormaSupr<strong>em</strong>a e enquanto integra<strong>da</strong> numa imensa sinfonia cósmica, indissociável do cursoritmado dos t<strong>em</strong>pos. A harmonia deste conjunto será garanti<strong>da</strong> pela dependênciaontológica de to<strong>da</strong>s as formas dos seres <strong>em</strong> relação ao Verbo de Deus. Este PrincípioSupr<strong>em</strong>o, que Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixa de designar por Artífice Divino, justifica oprincípio, a evolução, o progresso e o decurso, b<strong>em</strong> como a chega<strong>da</strong> a termo ouaperfeiçoamento – a realização do fim -, <strong>da</strong> Criação de to<strong>da</strong>s as formas, sendo um factoque o próprio curso dos t<strong>em</strong>pos, na sua dinâmica, significará um acréscimo <strong>da</strong>densi<strong>da</strong>de ontológica do Universo e, portanto, também uma progressiva intensificação<strong>da</strong> ordo rerum, entendi<strong>da</strong> como categoria matricial dos seres na sua condição histórica.3. NumerositasO conceito de numerositas, de que depende, <strong>em</strong> última instância, a noçãoaugustiniana de harmonia, pode entender-se <strong>em</strong> sentido lato como aquele géneroparticular de ord<strong>em</strong> que resulta do concerto ou congruência entre as diferentes partes deum ser e os diferentes seres entre si, fazendo-os concorrer, numa feliz combinação, para262 Cf. Ep. CXXXVIII, 5 ( CSEL 44, p. 130).180


um mesmo efeito de conjunto. Sto. <strong>Agostinho</strong> recorre poucas vezes à formulação gregado termo (♋♓♋), a qual se pode notificar <strong>em</strong> De genesi ad litteram 263 ,<strong>em</strong> De trinitate 264 ou <strong>em</strong> De ciuitate dei 265 , surgindo nos três casos como sinónimo decoaptatio 266 . Destas três referências, o texto de De trinitate é eloquente, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que estabelece explicitamente a relação entre Deus e o ser humano com base no modelonumérico <strong>da</strong> relação entre o Simples e o Duplo, ou seja, entre o Uno e o múltiplo. Nesseescrito, o filósofo aplica a noção de numerositas ou harmonia num contexto s<strong>em</strong>ânticoque supera o domínio <strong>da</strong> compreensão do modo como se relacionam os seres e o <strong>Ser</strong>. Anoção de uma harmonia de base aritmológica é aí coloca<strong>da</strong> ao serviço do esclarecimento<strong>da</strong> justiça intrínseca que se reflecte na economia <strong>da</strong> salvação, opera<strong>da</strong> pela mediação deCristo, Verbo Incarnado 267 .É <strong>em</strong> De musica que o Hiponense expõe pela primeira vez com algumasist<strong>em</strong>atici<strong>da</strong>de a sua aritmologia, facto que levou a que, consensualmente, sedesignasse a segun<strong>da</strong> parte do Livro primeiro <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> obra pela expressãointroductio aritmethica. Na ver<strong>da</strong>de, o filósofo recolhe aí os princípios pitagóricos sobrea natureza dos números. Caberia in<strong>da</strong>gar legitimamente a razão pela qual Sto.<strong>Agostinho</strong>, ao propor-se redigir um tratado sobre a numerositas a fim de atribuirestatuto ontológico a esta noção, não optou por uma exposição <strong>da</strong>quelas artes que maisdirectamente incid<strong>em</strong> sobre a natureza do numerus, como seriam o caso <strong>da</strong> mat<strong>em</strong>ática,<strong>da</strong> astronomia ou mesmo <strong>da</strong> geometria, uma vez que esta última articula o número com263 Cf. De gen. ad litt. X, 21, (CSEL 28/1, p. 325).264 Cf. DT IV, II, 4 ( CCL 50, p. 164).265 Cf. De ciu. dei XXII, XXIV (CCL 48, p. 850).266 Nomea<strong>da</strong>mente, <strong>em</strong> De gen. ad litt. X, 21 ( CSEL 28/1, p. 325), o termo é <strong>em</strong>pregue para negar que aalma humana seja harmonia, isto é, aliqua corporea qualitate siue coaptatione. Sto. <strong>Agostinho</strong> aplicaaqui o termo grego ♋☺♓♋ <strong>em</strong> sentido estrito de organização <strong>da</strong>s partes de um corpo e negao<strong>da</strong> alma, reali<strong>da</strong>de espiritual. Sobre a crítica de Plotino a este sentido de harmonia entre a alma e ocorpo, v. PLOTINO, Enn. III, VI, 4, 41-52 ( p. 99-100); IV, 7, 84 ( p. 202). PORFÍRIO,♋♋♓18 [ed. E. Lamberz, Teubner, Leibzig 1975 ( Bibliotheca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana), p. 9].267DT IV, II, 4: “ (...) Haec enim congruentia (siue conuenientia, uel concinentia, uel consonantia, uelquid comodius dicitur, quod unum est ad duo), in omni compaginatione, uel, si melius dicitur, ualteplurimum. Hanc enim coaptation<strong>em</strong>, sicut mihi nunc occurrit, dicere uolui, quam Graeci coaptationecreaturae ♋☺♓♋ uocant (...). ” ( CCL 50, p. 164). Os termos concinentia e consonantiaexpressam precisamente a harmonia do canto ou <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des audíveis.181


a categoria de espaço. Esta interrogação encontraria, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, resposta razoável nofacto de Sto. <strong>Agostinho</strong>, como rector, saber mais de gramática do que de aritmética.Assim, ser-lhe-ia naturalmente mais fácil construir um discurso fun<strong>da</strong>do na análise <strong>da</strong>spalavras do que na dos números. To<strong>da</strong>via, é possível avançar um argumento de críticainterna, capaz de criar um horizonte de sentido mais amplo para este facto, o qual nãodeixa de causar alguma perplexi<strong>da</strong>de.Efectivamente, a música é uma <strong>da</strong>s quatro disciplinas mat<strong>em</strong>áticas que,juntamente com a aritmética, a geometria e a astronomia, viria a integrar, futuramente,as artes do quadriuium. Exceptuando a aritmética, cujo objecto de estudo são osnúmeros e as relações que, entre eles, se estabelec<strong>em</strong> – e que, portanto, se poderiaentender como ciência mater, <strong>da</strong> qual as d<strong>em</strong>ais são apenas aplicações – Sto. <strong>Agostinho</strong>poderia ter optado por redigir um tratado de astronomia. A razão atenderia, nesse caso,de modo particular, ao movimento <strong>da</strong>s esferas celestes. Porém, uma <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des deredigir um estudo neutro e desapaixonado acerca <strong>da</strong> manifestação e presença <strong>da</strong> ordorerum no curso dos astros reside na associação directa que a mentali<strong>da</strong>de coeva dofilósofo estabelecia entre a observação dos astros e uma certa forma de religiosi<strong>da</strong>deque não é separável <strong>da</strong> superstição e <strong>da</strong> crendice. O próprio <strong>Agostinho</strong> possuiria algunsconhecimentos de cosmografia que lera nos escritos dos filósofos e armazenara nam<strong>em</strong>ória. Estes homens, através <strong>da</strong> observação dos astros, puderam reconhecer as leisdo espaço sideral e transmiti-las à posteri<strong>da</strong>de. Deste modo, por meio <strong>da</strong>quilo que osescritos dos filósofos transmit<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> admite ser possível um certoconhecimento <strong>da</strong> Criação e <strong>da</strong>s criaturas, não obstante o carácter ténue e vestigial destainformação, por ausência de referência ao Verbo ou Sabedoria de Deus 268 .O Hiponense reconhece que as descobertas feitas ao seu t<strong>em</strong>po no domínio <strong>da</strong>astronomia admit<strong>em</strong> uma certa previsibili<strong>da</strong>de sobre os acontecimentos referentes aoespaço sidéreo 269 . Com base neste facto, to<strong>da</strong>via, a superstição e a vã curiosi<strong>da</strong>de dospovos facilmente atribuíam poderes divinos aos homens que prediz<strong>em</strong> taisacontecimentos. A astronomia e os que a exerc<strong>em</strong> confundiam-se, por conseguinte, comos magos e futurólogos. Esta exploração <strong>da</strong> credibili<strong>da</strong>de humana era prática comumentre as seitas e <strong>Agostinho</strong> conhecera de perto o seu carácter pernicioso, nos anos quepassou como auditor na seita maniqueísta, a qual recheia de cultos astrais tanto os seus268 Cf. Conf. V, III, 5-6 ( CCL 27, p. 59-60).269 Cf. Conf. V, III, 3-4 ( CCL 27, p. 58-59).182


discursos como as suas práticas, s<strong>em</strong> de modo algum possuir o conhecimento <strong>da</strong>s leisdos movimentos dos astros 270 . Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece que durante muito t<strong>em</strong>po seinteressou avi<strong>da</strong>mente pelo estudo dos astros, não tanto para aceder à compreensão dosUno inteligível, mas para descortinar, por um afã de segurança e de curiosi<strong>da</strong>de insanas,os desígnios acerca do seu futuro, a tal ponto estava convencido de que um nexo derelação causal se estabelecia necessariamente entre o curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e oan<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s esferas celestes. De facto, a transformação cultural do conceito d<strong>em</strong>ath<strong>em</strong>atici que gera, ao t<strong>em</strong>po, a ambigui<strong>da</strong>de <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> astronomia, ron<strong>da</strong>ndo entrea ciência e superstição, é claramente denuncia<strong>da</strong> pelo filósofo <strong>em</strong> De diuersisquaestiones 83 271 .Por seu turno, a geometria an<strong>da</strong> associa<strong>da</strong> à concepção do inteligível,equacionando-o com o espaço no qual se inscreve a extensão <strong>da</strong> matéria. Para oconsiderar, a mente não pode abstrair dos phantasmata dos produtos <strong>da</strong> imaginação quetanto aprisionaram a mente de <strong>Agostinho</strong>, nas suas tentativas de compreensão <strong>da</strong>natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de 272 . O filósofo concede à geometria a virtude de apresentar, aosolhos do corpo, a harmonia que reina na igual<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s figuras, isto é, na lei <strong>da</strong> simetria.E quando pretender iniciar o seu percurso de conhecimento de Deus e <strong>da</strong> alma, nãodescurará investigar De quantitate animae, in<strong>da</strong>gando a relação entre esse princípiovital e o espaço: o modo como, na alma, se geram as figuras geométricas e como,através delas, se pode chegar a conceber a inteligibili<strong>da</strong>de do princípio. To<strong>da</strong>via, o saldo<strong>da</strong>quele Diálogo parece ser a aplicação do “espaço <strong>da</strong> alma” à maior ou menor270 Cf. Conf. III, VI, 10; V, III, 6 ( CCL 27 p. 31-32 ; 59-60).271 De diu. quaest. 83. q. XLV: “ Non eos appellarunt math<strong>em</strong>aticos ueteres, qui nunc appellantur; sedillos qui t<strong>em</strong>porum numeros motu caeli ac siderum peruestigarunt (...).” (CCL 44A, p. 67). SOLIGNAC, ea despeito <strong>da</strong> opinião de MARROU, comenta: “(…) Il est d’ailleur deux domaines où les connaissancesd’Augustin dépassèrent une pseudo-culture livresque et imprécise : ce sont la science des astres et lascience des nombres, l’astronomie et l’aritméthique ! » [A. SOLIGNAC, Oeuvres de saint Augustin, LesConfessions, Bibliothèque augustinienne 13 (Paris 1998) p. 89].272 Conf. VII, I, 1: CCL 27, p. 92) : “ (…) Clamabat uiolenter cor meum aduersus omnia phantasmata mea(...).” O texto resume a noção de divin<strong>da</strong>de que <strong>Agostinho</strong> podia então conceber, a qual articulava com acategoria de espaço: deus, um infinito espacial, espécie de vácuo (spatiosum nihil), ou a negação doespaço, para que se lhe pudesse atribuir a infinitude. A noção de Dei<strong>da</strong>de que a mente do filósofo podiaentão acolher, equacionando matéria e espaço, assumia características de uma enti<strong>da</strong>de estranha e quas<strong>em</strong>onstruosa, inviável a uma relação pessoal, antes gerando, no coração, aquele estranho sentimento que oHiponense descreve mediante a expressão incrassatus cor ( cf. Conf. VII, I, 2; CCL 27, p. 92).183


capaci<strong>da</strong>de que ela t<strong>em</strong> de acolher e equacionar o sentido <strong>da</strong>s coisas: grandeza de alma,numa palavra, é, para <strong>Agostinho</strong>, sinónimo de magnanimi<strong>da</strong>de, abertura <strong>da</strong> dimensãoracional do espírito humano a to<strong>da</strong>s as dimensões do real, na riqueza de diversi<strong>da</strong>de queo caracteriza.Um argumento que porventura pode contribuir para compreender por que razão oHiponense prefere a música à astronomia ou à geometria, entre as ciências de matrizmat<strong>em</strong>ática, é o facto de, auxiliado pelos Libri Platonicorum, desde os primeirosmomentos <strong>da</strong> sua conversão metafísica o filósofo ter descoberto como lei irrecusável doreal que, no processo de procura <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a mente humana, invisível, se há-depreferir aos objectos corpóreos, visíveis. Ora, Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe que as palavras sãoproduto <strong>da</strong> mente ou, pelo menos, com ela se relacionam de modo directo – razão pelaqual a dialéctica e a ciência dos números estabelec<strong>em</strong> tão estreito vínculo -, nãoobstante o filósofo não ter explicado n<strong>em</strong> discutido, <strong>em</strong> De musica, a orig<strong>em</strong> e anatureza <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana 273 .Os excursos do Filósofo de Hipona sobre a percepção <strong>da</strong> harmonia através <strong>da</strong>dedicação do espírito às liberales artes levaram-no a distinguir dois domínios dereali<strong>da</strong>des: o plano dos sentidos e o <strong>da</strong>quilo que eles captam. Uma reflexão sobre estesdois domínios <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de sensitiva haveria de permitir estabelecer, entre eles, umarelação de priori<strong>da</strong>de. Igualmente, tal reflexão tornaria possível determinar a naturezaharmónica <strong>da</strong> própria sensibili<strong>da</strong>de humana e de quanto, por meio dela, é percebido pelamente, s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, perder de vista o horizonte de todo este esforço especulativo –construir um caminho seguro para que a razão progri<strong>da</strong>, gra<strong>da</strong>tim, per corporalia adincorporalia.Para reflectir sobre a estrutura mat<strong>em</strong>ática do real e, nela, encontrar a causaderradeira <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> beleza do universo, Sto. <strong>Agostinho</strong> parte <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>experiência do movimento 274 . Este facto não é aleatório para esclarecer a noção de273 A t<strong>em</strong>ática será discuti<strong>da</strong> <strong>em</strong> De magistro e completa<strong>da</strong>, não apenas no que à linguag<strong>em</strong> se refere masna totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s disciplinas, <strong>em</strong> De doctrina christiana ( v., sobretudo, De doct. christ. II, XIX, 29-XXVIII, 44: CCL 32, p. 53-63). O probl<strong>em</strong>a fun<strong>da</strong>mental no uso <strong>da</strong>s ciências é a distinção <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>,divina ou humana, dos sinais <strong>em</strong>pregues no discurso. Não obstante o carácter relativo que, na referi<strong>da</strong>obra, atribui às designa<strong>da</strong>s ciências profanas, <strong>Agostinho</strong> dificilmente dispensa a numerologia. Extraindolheto<strong>da</strong> a força simbólica, <strong>em</strong>prega-a com frequência na sua exegese bíblica.274 Escreve Guitton, a propósito <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de deste estudo sobre o movimento na obra do Hiponense:“(…) C’est que la musique est essenciell<strong>em</strong>ent la science du mouv<strong>em</strong>ent, et plus que tout autre discipline184


ord<strong>em</strong>, quando entendi<strong>da</strong> como a congruência entre as partes e o todo. A relação entre ofenómeno do movimento e a ordo rerum é posiciona<strong>da</strong> desde os primeiros Diálogos de<strong>Agostinho</strong> a partir de uma dupla perspectiva. Com efeito, o filósofo reflecte sobre omovimento como reali<strong>da</strong>de universal que afecta todos os seres dotados de corporei<strong>da</strong>de,assim como todos aqueles que são afectado pela duração, mesmo se a sua não é umaestrutura corpórea. Em suma, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que o movimento afecta to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de que não é eterna. Mas, se assim é, o movimento não se restringe a umaafecção <strong>da</strong> matéria, sendo possível falar de um motus animi e deduzir que to<strong>da</strong> anima e,mais <strong>em</strong> concreto, todo animus 275 - todo o princípio vital no qual resi<strong>da</strong> a razão comoreali<strong>da</strong>de espiritual -, não obstante ser imortal, não é eterno. Por sua vez, considerandoa hierarquia ontológica, cabe afirmar que to<strong>da</strong> a alma é superior a qualquer corpo,mesmo aos corpos mais subtis e perfeitos. Perante este facto, o Hiponense considerapossível analisar, à luz <strong>da</strong> própria noção de movimento, a ordenação que se estabeleceentre a alma, princípio de vi<strong>da</strong>, e qualquer corpo. O objecto desta análise incide sobreaquele fenómeno que se designa de modo habitual por sensação.Para garantir que todo o movimento está submisso a uma lei de ord<strong>em</strong>, eterna eimutável, Sto. <strong>Agostinho</strong> radicará a sua interpretação <strong>da</strong>quele fenómeno na noção deritmo ou numerus. Na consecução de tal objectivo encontrará, nas tradições filosóficasplatónica, pitagórica e neo-pitagórica, el<strong>em</strong>entos que lhe permitirão firmar no domínioontológico a própria noção de numerus. Neste contexto, é sobretudo aquele movimentoque escapa à vontade humana que se converte no horizonte <strong>da</strong> reflexão augustiniana,uma vez que se trata de garantir racionali<strong>da</strong>de a todo o real, desde as expressões maissublimes de ser, até às mais pequenas e ínfimas.Ao aprofun<strong>da</strong>r a noção de numerus, o filósofo procura garantir que to<strong>da</strong> aexpressão de reali<strong>da</strong>de - mesmo a aparent<strong>em</strong>ente irracional, mesmo a que escapa aodomínio <strong>da</strong> inteligência ou <strong>da</strong> vontade humanas - se gere pelas leis <strong>da</strong> proporção econgruência. Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista conquistar um conjunto de normas quejustifiqu<strong>em</strong> a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>pre entendendo esta noção como sinónimoelle permet de saisir avec précision l’accord de l’immuable avec le muable » ( J. GUITTON, Le t<strong>em</strong>ps etl’éternité..., p. 153). A música é, afinal, a arte por meio <strong>da</strong> qual a razão pode aproximar-se de umaconcepção <strong>da</strong> real relação entre o Uno e o múltiplo, mesmo partindo <strong>da</strong> análise de uma experiênciasensível, como é a <strong>da</strong> audição.275 Para o significado que estes termos assum<strong>em</strong> na obra do Hiponense, v. Gerard J.P. O'DALY, “Anima,animus” in Augustinus-Lexikon 1 (1986-1994) 315-340.185


de congruência. Através <strong>da</strong> análise do movimento, procura um princípio deimutabili<strong>da</strong>de que seja, simultaneamente, um factor de estabili<strong>da</strong>de e de unificação doreal, a fim de garantir a relativa firmeza <strong>da</strong> contingência e <strong>da</strong> mutabili<strong>da</strong>de quecaracteriza to<strong>da</strong>s as formas de existência. Ora, tal princípio parece estar presente naproporção numérica que a aritmologia, de filiação pitagórica, explanavaadequa<strong>da</strong>mente.Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que, se for possível mostrar que tudo quanto se move éregido por uma razoabili<strong>da</strong>de universal e eterna, então será fácil garantir auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. De igual modo, sendo este princípio <strong>em</strong> si mesmo dotado deharmonia, ou seja, de igual<strong>da</strong>de e equilíbrio, uma vez encontrado tal primórdio, ter-se-áachado, também, a razão pela qual os corpos, na sua infinita varie<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de,atra<strong>em</strong> os sentidos e geram, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> os cont<strong>em</strong>pla, a percepção do belo.Neste contexto, causa menos estranheza que o filósofo inicie a sua introductioarithmetica, <strong>em</strong> De musica, com o propósito de esclarecer a noção de ritmo mediante orecurso à experiência do movimento local e <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. De facto, as reflexõesaugustinianas a este propósito, anteriores a De musica, convergiam já nesta direcção. Deordine e De immortalitate animae são, porventura, os escritos de juventude maispródigos <strong>em</strong> contributos sobre estas inquietações. Em De ordine, o filósofo não cessa derecor<strong>da</strong>r a harmonia reinante nos corpos dos animais, mesmo dos mais pequenos, a qualse manifesta na disposição, adequa<strong>da</strong> e congruente, dos seus m<strong>em</strong>bros e, até, <strong>da</strong>actuação <strong>da</strong> natureza deles, como se pode verificar nos movimentos, quase rituais,efectuados para propagação <strong>da</strong> espécie, ou naqueles outros realizados para conservação<strong>da</strong> mesma. Também no movimento dos próprios corpos inanimados, como os astros, oFilósofo de Hipona descobre a lei de proporção numérica. Inclusivamente, os sinais deinstituição humana, de que são ex<strong>em</strong>plo a linguag<strong>em</strong>, na sua expressão oral ou escrita, a<strong>da</strong>nça e os d<strong>em</strong>ais el<strong>em</strong>entos convencionados para estabelecer comunicação entre oshumanos, estão regidos pela lei <strong>da</strong> proporção numérica.Não obstante o movimento ser um fenómeno que afecta tudo quanto existe,verificando-se <strong>em</strong> reali<strong>da</strong>des substanciais, <strong>em</strong> De immortalitate animae Sto. <strong>Agostinho</strong>faz notar que tal reali<strong>da</strong>de não subsiste por si 276 . Dado o carácter enigmático <strong>da</strong> natureza276 De immort. anim. III, 3 : « (...) Nullus aut<strong>em</strong> motus sine substantia; et omnia substantia aut vivit autnon vivit ; atque omne, quod non vivit, exanime est, nec est ulla exanimis actio. Illud igitur, quod itamovet, ut non mutetur, non potes esse nisi viva substantia. » ( CSEL 89, p. 103-104).186


do movimento e a sua interferência na in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> relação entre aalma e Deus, inscreve-o entre os el<strong>em</strong>entos cuja compreensão compete à Filosofia.To<strong>da</strong>via, tratando-se de um fenómeno indissociável <strong>da</strong>s categorias de espaço e t<strong>em</strong>po, énecessário encontrar uma medi<strong>da</strong> que torne inteligível aquela reali<strong>da</strong>de. <strong>Agostinho</strong>encontrá-la-á no ritmo ou numerus, integrando numa única categoria aquelas duasdimensões, espaço e t<strong>em</strong>po. O movimento é, afinal, a difusão de um corpo no espaço eno t<strong>em</strong>po, e a categoria de numerus abarca ambas as dimensões 277 .Por seu turno, a recondução do espaço e do t<strong>em</strong>po – que envolv<strong>em</strong> todos os corpose também a percepção humana, enquanto activi<strong>da</strong>de pertencente a uma parcela docosmos – a um conjunto de leis universais, eternas e imutáveis, dissocia o real e a suaestrutura última <strong>da</strong> própria mutabili<strong>da</strong>de que afecta, também, a percepção humana. Sto.<strong>Agostinho</strong> refere com frequência que o movimento é causa <strong>da</strong>s ilusões de óptica, comoo engano que ocorre, a qu<strong>em</strong> navega, quando percepciona uma deslocação aparente <strong>da</strong>storres, fixas <strong>em</strong> terra. No caso do movimento <strong>da</strong> sucessão silábica, que constitui aexpressão física <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana, a pronúncia pode <strong>da</strong>r orig<strong>em</strong> a equívocos. Comefeito, se, ao fazer uso do termo latino hominibus, não se aspira o “h” inicial, confundeseum substantivo com um adjectivo e a comunicação oral torna-se deficiente. Assim, acompreensão <strong>da</strong> lei universal que rege quer a deslocação no espaço, quer a enunciaçãono t<strong>em</strong>po é, também, um modo de contornar o cepticismo gnosiológico e de colocar oreal na sua devi<strong>da</strong> disposição, sabendo que a instituição humana e os seus sinais sesubmet<strong>em</strong> a uma outra lei, mais universal, imutável e eterna.A exposição do final do Livro primeiro de De musica é pródiga <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos paraexplicitar esta convicção augustiniana. Incidindo sobre a natureza <strong>da</strong> duração, o filósofoparte de uma primeira distinção entre motus rationalis e motus irrationalis 278 . Oprimeiro género respeita a norma de igual<strong>da</strong>de, pois t<strong>em</strong> <strong>em</strong> comum uma mesmauni<strong>da</strong>de de medi<strong>da</strong>, princípio que não é respeitado pelo segundo. Sto. <strong>Agostinho</strong>estabelece, assim, uma priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de sobre a dispari<strong>da</strong>de. Por conseguinte, aanálise do ritmo prossegue no sentido de encontrar aqueles movimentos que respeit<strong>em</strong> aperfeição <strong>da</strong> razão, ou seja, a pari<strong>da</strong>de ou proporção no t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> enunciação.277 O recurso do Hiponense à tradição pitagórica é, a este respeito, eloquente. De facto, a aritmologiapitagórica associava, ao número, a disposição espacial, utilizando, para a representação do número, umasérie de seixos, ou representando-o por meio de um conjunto de pontos, dispostos geometricamente.278 De mus. I, IX, 15: “ (...) [ magister] illud etiam, ut opinor, intelligis, omn<strong>em</strong> mensuram et modumimmoderationi et infinitati recte anteponi.” ( PL 32, 1092).187


No plano <strong>da</strong>s relações racionais abr<strong>em</strong>-se, por seu turno, duas possibili<strong>da</strong>des: oudois movimentos têm duração igual, ou dois movimentos têm duração desigual. Emcaso de desigual<strong>da</strong>de, cab<strong>em</strong>, ain<strong>da</strong>, três hipóteses: a) ou o movimento maior contémum número exacto de vezes o movimento menor ( o ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong>do é a proporção de 4para 2, com base na identi<strong>da</strong>de, já aritmológica, segundo a qual 4 = 2+2); b) ou onúmero maior ultrapassa o menor, com uma relação de partes alíquotas ( é o caso <strong>da</strong>relação de 6 para 4, na qual o número seis contém três vezes o número dois, que estácontido, por seu turno, duas vezes no número quatro); c) ou o número maior nãoestabelece qualquer relação alíquota com o menor, não sendo possível estabelecer a leide proporção n<strong>em</strong> a diferença entre eles.Para simplificar, <strong>Agostinho</strong> atribui nomes a estas relações. Surg<strong>em</strong>, assim, osnumeri connumerati, para designar as hipóteses a) e b), supra menciona<strong>da</strong>s; e os numeridinumerati, para identificar a hipótese c). Posteriormente, os numeri connumerati hãodeadmitir duas divisões: a) os numeri complicati ou múltiplos, nos quais o menorconstitui uma parte alíquota do maior; b) os numeri sesquati, nos quais a parte alíquotado maior é o seu excesso ou diferença <strong>em</strong> relação ao menor 279 .Da dedicação de Sto. <strong>Agostinho</strong> a este exercício do espírito evidencia-se oestabelecimento de uma hierarquia na qual a reali<strong>da</strong>de mais perfeita é aquela que gozade igual<strong>da</strong>de e proporção. Nesta reside a ratio e o seu contrário é irrationalis. Porém, oirracional é, também, ininteligível. O filósofo reconduzirá, então, este conjunto deapreciações – que incide directamente sobre o ritmo e a métrica, isto é, sobre as normasde enunciação poética -, a princípios mais genéricos, onde to<strong>da</strong> a expressão de reali<strong>da</strong>depossa ter cabimento. Se for possível encontrar uma lei de igual<strong>da</strong>de e de proporção ques<strong>em</strong>pre se verifique, seja qual for a forma <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sobre a qual se aplique, então279 Esta complexa divisão pode ler-se <strong>em</strong> De mus. I, IX, 15-17 ( PL 32, 1192-1193). O esqu<strong>em</strong>a, presentenos Livros dois a cinco, é eficaz sobretudo na aplicação à secção rítmica-métrica deste escrito,fornecendo, com base nas leis dos números, uma grelha de compreensão para a complexa divisão silábica<strong>da</strong> métrica clássica, nas suas multíplices combinações de sílabas longas e breves. Para o estado <strong>da</strong>investigação acerca <strong>da</strong>s fontes que Sto. <strong>Agostinho</strong> terá <strong>em</strong>pregue na obtenção do referido esqu<strong>em</strong>a, b<strong>em</strong>como para a influência do mesmo na tradição musicológica posterior, veja-se Ubaldo PIZZANI, “La"Musica disciplina" tra Agostino e Boezio” in G. A. PRIVITERA (ed.), Paideia cristiana. Studi in onoredi Mario Naldini, Scritti in onore 2. (Roma 1994) 347-364; E. CASTRO CARIDAD, “De san Agustín aBe<strong>da</strong>: La estética de la poesía rítmica”: Cuadernos de Filología Clásica-Estudios Latinos 13 (1997) 91-106.188


poder-se-á afirmar que todo o real se ergue sobre uma ratio ou lei de ord<strong>em</strong>, imutável eomnicompreensiva.É neste contexto que surge a exposição <strong>da</strong> estrutura e <strong>da</strong> génese do número dez,enuncia<strong>da</strong>, pela primeira vez, <strong>em</strong> De musica, no contexto de uma análise do ritmo, e<strong>em</strong>pregue posteriormente com abundância na obra de <strong>Agostinho</strong>. O filósofo atribui-lheuma tal eficácia que não mais abandonará os princípios e corolários expostos naquelaobra. Analisando a distinção entre números pares – illi qui potest in duas partesaequales diuidi - , e ímpares – illi quod non potest -, a razão exige que se encontre oprimeiro dos números pares, já que essa sequência há-de ter, também, um princípio.Entre os números divisíveis <strong>em</strong> partes iguais, o número dois surge com direito deci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, igualmente considerado como uma reali<strong>da</strong>de íntegra e perfeita, indivisívelenquanto par e princípio de uma sequência, número que carece de meio, característicaque partilha com o número um. Desta forma, Sto. <strong>Agostinho</strong> obtém, no interior docômputo decimal, os dois princípios platónicos de perfeição do Universo: a Móna<strong>da</strong> e aDíade 280 .Esta conclusão, que coloca a duali<strong>da</strong>de no princípio <strong>da</strong> sequência numérica, causaalguma perturbação. Com efeito, uma mundividência que assuma a numerositas comocategoria ontológica e que admita um princípio de igual<strong>da</strong>de entre os números um edois, abre passo a uma concepção dualista <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Contudo, o filósofo contornaesta dificul<strong>da</strong>de, mediante uma solução de compromisso entre as propostas pitagórica eneoplatónica 281 . Efectivamente, seria de recear que se colocasse, no princípio de280 <strong>Agostinho</strong> refere-se a estes princípios na Ep. III, reflectindo com Nebrídio acerca <strong>da</strong> infinitude doimperfeito e <strong>da</strong> finitude/limite <strong>da</strong> perfeição. Preocupado com a infinita divisibili<strong>da</strong>de dos corpos,plenamente imerso nas categorias neoplatónicas acerca do Uno e do Múltiplo, o filósofo distingue umnúmero sensível, próximo <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de e, com ela, do infinito, de um outro, inteligível, perfeito eredutível à Uni<strong>da</strong>de ( cf. Ep. III, 2: CSEL 34/1, p. 6-7) .281 Aristóteles, <strong>em</strong> Metafísica I, 5-6, resume a filosofia pitagórica e a platónica, aproximando-as <strong>em</strong>alguns aspectos. Para os pitagóricos, diz o Estagirita, o ilimitado e o Uno são substâncias <strong>da</strong>s coisas e, porisso, o Número surge como princípio essencial de composição do real (cf. Ibid. 987ª, 15-30). Platão teriaadoptado esta doutrina, mas acrescentara-lhe coisas próprias (cf. Ibid. 987b-988ª). De acordo com oAristóteles, Pitágoras considerava o Número como parte <strong>da</strong> substância sensível, enquanto Platão colocavaos Números como reali<strong>da</strong>des intermédias, situa<strong>da</strong>s fora <strong>da</strong>s coisas. Os pitagóricos consideravam a díadeLimitado-Ilimitado, Par-Ímpar como princípios constitutivos dos Números. O carácter primordial dosNúmeros, abrangendo também a matéria e a extensão no espaço, inscrevia-os no plano <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>dessensíveis. Platão, inversamente, estabelece uma diferença entre os números ideais, representantes <strong>da</strong>s189


explicação de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, uma duali<strong>da</strong>de deriva<strong>da</strong> de uma estrutura essencialmentebélica e entendi<strong>da</strong> como condição intrínseca dos seres, os quais subsistiriam ex aduerso.Porém, ao concluir, pela análise <strong>da</strong> sequência numérica de um a dez, que existe umprincípio comum entre o Uno e o Múltiplo, <strong>Agostinho</strong> afasta-se de qualquer concepçãodualista do real. Todos os números derivam, de facto, do Uno primordial e o segundoprincípio, o número dois, depende ontologicamente do primeiro. Dito de outro modo, oMúltiplo depende do Uno e este é princípio absoluto, não dependendo de nenhum outro.Aliás, como se verifica na operação numérica <strong>da</strong> adição/ multiplicação, o número doisnão é senão o resultado do somatório de um e um, constituindo-se, de algum modo,como uma reiteração do Princípio 282 . Assim, o número dois é, a um t<strong>em</strong>po, o princípiode multiplici<strong>da</strong>de e a primeira expressão do múltiplo.Nesta conclusão, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrará um el<strong>em</strong>ento de fecundi<strong>da</strong>de para aconstituição <strong>da</strong> sua mundividência. Antes de mais, afasta-se <strong>da</strong> posição pitagórica queconsiderava o Um e o Dois, entes mat<strong>em</strong>áticos, como princípio de reali<strong>da</strong>de, nãoobstante o próprio Hiponense ter partilhado dessa concepção <strong>em</strong> De pulchro et apto. Domesmo modo, a concepção augustiniana de unitas e de numerus - esboça<strong>da</strong> nasexplanações sobre a génese do número dez, presentes, com grande paralelismo, quer noprimeiro Livro de De musica, quer no Livro segundo de De libero arbitrio - permitirlhe-áconceber a relação ontológica radical - a saber, aquela que se estabelece entre oUno e o Múltiplo.Não obstante o cunho marca<strong>da</strong>mente platónico desta concepção augustinianaacerca <strong>da</strong> relação entre Uni<strong>da</strong>de e Multiplici<strong>da</strong>de, ela separa-se subtilmente <strong>da</strong>s teses doFun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Acad<strong>em</strong>ia. De facto, de acordo com Aristóteles, Platão distancia-se <strong>da</strong>escola pitagórica, pois não identifica de imediato as Formas Supr<strong>em</strong>as e os entesmat<strong>em</strong>áticos. Estes serviriam de mediação para aceder àquelas, imóveis e eternas,Formas originárias ou Ideias, e os entes mat<strong>em</strong>áticos. Os primeiros são paradigma <strong>da</strong> estrutura sintéticade uni<strong>da</strong>de na multiplici<strong>da</strong>de que caracteriza qualquer plano do real, comum a to<strong>da</strong>s as existências, sejaqual for o nível de reali<strong>da</strong>de considerado. <strong>Agostinho</strong>, por seu turno, entende o Uno e a Díade como doisprincípios dos números, sendo estas as reali<strong>da</strong>des descobertas pela razão quando atende à ord<strong>em</strong> douniverso. Uno e Díade, Uno e Múltiplo, recolh<strong>em</strong>-se num só princípio supr<strong>em</strong>o que é a ordo rerum, aharmonia ou congruência, noções com as quais, mormente nos primeiro escritos, se identifica a noçãoaugustiniana de Deus.282 De mus. I, XII, 21: “ (…) nunc aut<strong>em</strong> hoc alterum principium de illo primo est, ut illud a nullo sit , hocvero ab illo: unum enim et unum duo sunt, et principia ita sunt ambo, ut omnes numeri quid<strong>em</strong> ab unosint.” ( PL 32, 1096).190


análogas do universo sensível, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que admit<strong>em</strong> a diferença dentro <strong>da</strong> mesmaespécie, suportando a multiplici<strong>da</strong>de. Por seu turno, <strong>da</strong><strong>da</strong> a vertente aritmosófica doneopitagorismo, este acaba por sublinhar a priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Mónade sobre a Díade, pois sódesse modo pode conceber uma escatologia na qual a alma tende, como ao estado d<strong>em</strong>áxima perfeição, a dissolver a sua identi<strong>da</strong>de na Uni<strong>da</strong>de do Princípio.Ain<strong>da</strong> com base na relação numérica entre o Uno e o Múltiplo – entre o Um e osnúmeros dele derivados, no interior <strong>da</strong> sequência decimal – Sto. <strong>Agostinho</strong> deduz asprimeiras regras dos números, princípios imutáveis e eternos onde quer que s<strong>em</strong>anifest<strong>em</strong>, entendendo-as como leis constitutivas do real, geradoras de ord<strong>em</strong> eharmonia. Com elas, a razão humana estabelece uma peculiar <strong>em</strong>patia, pois podedescobri-las para onde quer que se dirija. Na óptica do Hiponense, a razão fá-lo-á d<strong>em</strong>odo peculiarmente eficaz se prestar atenção à numerositas inerente ao discursopoético.Ao debruçar a atenção <strong>da</strong> razão sobre a lógica intrínseca que subsiste na sequênciadecimal, o filósofo deduz que a tendência à uni<strong>da</strong>de é a regra mais universal <strong>da</strong> próprianumeração. Ex pluribus unum transforma-se, efectivamente, num mote <strong>da</strong>mundividência augustiniana que irá adquirindo diferentes matizes à medi<strong>da</strong> que oHiponense o explana, enriquecendo-o com novas leituras e reinterpretando-osucessivamente 283 . Com efeito, trata-se de analisar a sequência numérica à luz dosprincípios de junção e ordenação 284 . Tais princípios estão virtualmente contidos nosdois primeiros el<strong>em</strong>entos de to<strong>da</strong> a sequência numérica, a saber, os números Um e Dois.O mesmo é afirmar que estão contidos no número Um e na soma <strong>da</strong> multiplicação destenúmero por si mesmo. Quando se juntam, um e dois realizam um número completo,com princípio, meio e fim, que é o número três. De igual modo, o número três segue-seaos dois referidos números, na ord<strong>em</strong> do cômputo.283 De mus. I, XII, 24: “ (…) [magister] quid? Illud nulla ne consideratione dignum putas, quod istaconcordia quanto est arctior atque coninctior, tanto magis in unitat<strong>em</strong> quam<strong>da</strong>m tendit, et unum quid<strong>da</strong>mde pluribus efficit? (…) conuenerat quippe inter nos superius, tunc ex pluribus unum aliquid maxime fieri,cum extr<strong>em</strong>is media, et mediis extr<strong>em</strong>a consentiunt (…)” [PL 32, 1096-1097; V. também, Conf. IV, VIII,13 ( CCL 27, p. 46-47); Enarr. in Ps. CXXXIIII, 3; CL, 2 ( CCL 40, p. 1937 ; p. 2192); DT VI, III: CCL50, p. 231-233].284 Cf. De mus. I, XII, 22 ( PL 32, 1096). A tarefa é a de collocare in ordine ou de copulare in ordine, d<strong>em</strong>odo a encontrar um número acabado e perfeito, íntegro.191


Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que este fenómeno – o facto de que os dois números quese un<strong>em</strong> na enumeração criar<strong>em</strong> aquele que se lhes segue – não acontece <strong>em</strong> maisnenhum número. Por isso, a tríade inicial é perfeita e nela se manifesta uma imensaconcórdia 285 . Esta harmonia ou concórdia revela-se na estreita união que se estabeleceentre estes três primeiros números. Ela resulta do facto de que um número se faça umasó coisa a partir de muitas – unum de pluribus efficit. Tal união e conexão – que severifica de modo perfeito na tríade com que se inicia a sequência numérica, mas que seestende aos primeiros dez numerais – tornar-se-ão mais evidentes, à medi<strong>da</strong> que a razãopenetra na relação que os números estabelec<strong>em</strong> entre si.De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> define a coesão como o acordo entre o meio e osextr<strong>em</strong>os, sendo o número quatro o paradigma desta forma de união. Quando secomparam os três primeiros números, verifica-se que o número dois supera tantas vezeso número um quantas o número três supera aquele outro, isto é, acrescentando s<strong>em</strong>preum. Por seu turno, quando a razão avança de um para dois e de dois para três, enunciaduas vezes o número dois, resultado que, <strong>em</strong> adição, se designa por quatro. Daí que aproporção que se percebe nesta relação atinja uma imensa concórdia e espelh<strong>em</strong>aximamente a beleza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> 286 . Aplicando esta regra de progressão numérica aosd<strong>em</strong>ais números, verifica-se que a maior perfeição, <strong>em</strong> termos de sequência, se encontranesta primeira sucessão de quatro números, pois é ela que detém, de modo peculiar, aforça <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de entre o múltiplo.Duas parec<strong>em</strong> ser, neste sentido, as preocupações do Hiponense. Por um lado, ocui<strong>da</strong>do de colocar, a par <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> proporção, a Uni<strong>da</strong>de, como princípio detodo o real, sendo a relação entre a sequência numérica e o plano metafísico <strong>da</strong>numerositas legitima<strong>da</strong> pelo facto de tal sequência se obter através <strong>da</strong> consideraçãoracional do movimento 287 . Por outro lado, sublinha a importância <strong>da</strong> finitude e dolimite, princípios s<strong>em</strong> os quais o real se tornaria irracional 288 e, portanto, ininteligível 289 .285 De mus. I, XII, 22: “(…) [magister] – Magna haec concordia est in prioribus tribus numeris: unumenim et duo et tria dicimus, quibus nihil interponi potes, unum aut<strong>em</strong> duo, ipsa sunt tria.” ( PL 32, 1096).286 <strong>Agostinho</strong> esclarece que o estudo <strong>da</strong> proporção – aquilo que os gregos designam por analogia - nãopertence à música. Mas a harmonia que se produz na sequência de um a quatro é reflexo privilegiado <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> dos números, pela qual se rege o Universo. Assim, lê-se <strong>em</strong> De mus. I, XII, 23: “(…) Unum, duo,tria, quator sit amicissime copulata progressio numerorum.” ( PL 32, 1097).287 De mus. I, XI, 19: “ (...) [ magister] quoniam de numerosis motibus agimus, utrum ipsos debeamusconsulere numeros, ut quas nobis leges certas fixasque monstraverint, eas in illis motivus192


De facto, a sequência dos números é infinita se não in dicendo certamente namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a uis numerorum é intrinsecamente indissociável <strong>da</strong> multiplicação 290 .Sendo assim, se não se encontrasse a razão que limita uma tal sequência, a própriasequência numérica tornar-se-ia irracional, pois é o limite que estabelece a regra <strong>da</strong> suaracionali<strong>da</strong>de intrínseca. Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra esta regra ou ratio numerorum nasequência decimal, motivo pelo qual ergue tal sequência <strong>em</strong> norma que rege todo equalquer número e to<strong>da</strong> a relação entre os números 291 , articulando s<strong>em</strong>pre a sucessãonumérica com a perfeição <strong>da</strong>s formas dos seres, e indica o número três como princípioque contém a perfeição do real e o limita, enquanto totali<strong>da</strong>de. Para que uma forma sejaanimadverten<strong>da</strong>s observan<strong>da</strong>sque judic<strong>em</strong>us. [ discipulus] Placet vero: non enim quidquam ordinatus fieriposse arbitror.” (PL 32, 1094). Esta recondução do ritmo à aritmologia t<strong>em</strong> por objectivo encontrar aestrutura mat<strong>em</strong>ática do juízo estético. Para tal, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita de identificar o el<strong>em</strong>entoqualitativo <strong>da</strong> própria regra <strong>da</strong> sucessão numérica. Esse passo dá-se quando se confere, ao número, acategoria de Princípio de Reali<strong>da</strong>de. Já <strong>em</strong> De ordine a razão, ousando d<strong>em</strong>onstrar a sua imortali<strong>da</strong>de,considera a possibili<strong>da</strong>de de ser, ela própria, o número e, se tal não for passível de d<strong>em</strong>onstração, pelomenos será o número o princípio pelo qual ela poderá compreender to<strong>da</strong> a estrutura do real.288 Já o fizera <strong>em</strong> De ordine na descrição <strong>da</strong> ars poeticae, ao recor<strong>da</strong>r que o verso é precisamente amedi<strong>da</strong> do discurso poético, submetendo-se ao esqu<strong>em</strong>a divisório dos pés métricos. Esta medi<strong>da</strong> exige-separa que o discurso não progri<strong>da</strong> para além <strong>da</strong>quilo que a razão pode suportar, afirmação que,implicitamente, designa que a razão não capta, no caso concreto, um discurso infinito e ilimitado,desmesurado.289 Conforme o test<strong>em</strong>unho de Filolau, a fixação do limite no número 10 é de orig<strong>em</strong> pitagórica ( cf.Diels-Kranz 44, A 13: p. 400-402). Sobre a importância do número dez, veja-se o texto atribuído aJÂMBLICO, Theologoumena arithmetica [ The Theology of Arithmetic. On the Mystical, Math<strong>em</strong>athicaland Cosmological Symbolism of the First Ten Numbers. Attribuited to Iamblichus. Trans. from the Greekby R. Waterfield, with a foreward by K. Critchlow, Grand Rapids, Michigan, 1988. Veja-se, também, deJÂMBLICO, Il numero e il divino. F. Romano, ed. (Milano, 1995)]. A hipótese de uma influência directade Jâmblico <strong>em</strong> Sto. <strong>Agostinho</strong> foi, porém, afasta<strong>da</strong> por O’MEARA, <strong>em</strong> Pytagoras revived. Math<strong>em</strong>aticsand Phylosophy in Late Antiquity (Oxford, 1989), p. 60-85.290 De mus. I, XI, 18: “ (…) Namque ista vis numero inest, ut omnis dictus finitus sit, non dictus aut<strong>em</strong>infinitus.” ( PL 32, 1094).291 De mus. I, XII, 20: “ (…) hoc ergo quantum diligenter possumus perscrut<strong>em</strong>ur, quaenam sit ratio, ut abuno usque ad dec<strong>em</strong> progressus, et inde ad unum reditus fiat” ( PL 32, 1095). Estas considerações sobre adezena, sobre os princípios dos números e sobre os números perfeitos não são originais de <strong>Agostinho</strong>.SOLIGNAC <strong>em</strong> “Doxologie et mannuels…”, p. 132-133, aponta VARRÃO como fonte principal destaexpositio, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De principiis numerorum e De arithmetica, obras que integrariam os Nou<strong>em</strong>disciplinarum libri e nas quais se retomariam as teorias helénico-pitagóricas sobre o número.193


perfeita, exige-se que tenha princípio, meio e fim. Ora, é precisamente a estrutura donúmero três a que recolhe esta perfeição <strong>da</strong>s formas 292 .Acerca deste facto – a atribuição de perfeição ao número três – cabe tecer algumasreflexões. Note-se que este recurso de Sto. <strong>Agostinho</strong> à sequência de Um a Trêssublinha a importância <strong>da</strong> mediação na perfeição de um ente ou de qualquer totali<strong>da</strong>de.De facto, para o Hiponense, não há perfeição s<strong>em</strong> mediação. Este convencimentotornar-se-á ca<strong>da</strong> vez mais evidente ao longo <strong>da</strong> sua obra, até se converter num el<strong>em</strong>entodecisivo para compreender a noção augustiniana de ord<strong>em</strong>. É também nesta perspectivaque o filósofo analisa o modo como nasce a sequência dos números, reflectindo sobre aescala decimal, comprovando que, não obstante a possibili<strong>da</strong>de de contar ser infinita,ela está delimita<strong>da</strong> pela numeração decimal. Esta, por seu turno, constitui como queuma escala, à qual to<strong>da</strong> a contag<strong>em</strong> numérica reverte permanent<strong>em</strong>ente, como ao seuPrincípio 293 . Para compreender a razão de ser desta escala, Sto. <strong>Agostinho</strong> discorresobre a própria noção de Princípio e, com ela, sobre a de Totali<strong>da</strong>de. A noção dePrincípio exige considerar que alguma coisa dele procede, do mesmo modo que a noçãode Fim requer o termo de uma reali<strong>da</strong>de, a perfeição dela. Implícito neste movimentoestá o “meio” isto é, uma terceira reali<strong>da</strong>de, exigi<strong>da</strong> para que a integri<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> aforma seja perfeita. Por isso, na sequência numérica, o número três é o primeiro númerointegral, isto é, aquele que possui princípio, meio e fim 294 , aquela cifra que surge, s<strong>em</strong>necessi<strong>da</strong>de de maior reflexão, como uni<strong>da</strong>de perfeita.<strong>Ser</strong>ia fácil articular esta explanação acerca <strong>da</strong> perfeição do número três com aconcepção de divin<strong>da</strong>de, de natureza trinitária, que Sto. <strong>Agostinho</strong> postula desde osprimeiros Diálogos e à qual dedicará todo um Tratado. Tal concepção de divin<strong>da</strong>de éinalienável <strong>da</strong> noção augustiniana de <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o, Princípio de to<strong>da</strong> a forma. Poder-seiaigualmente supor que o filósofo aproveitasse esta intuição acerca <strong>da</strong> mediação parajustificar a presença do Mediador, essencial no seio <strong>da</strong> sua mundividência. To<strong>da</strong>via,<strong>Agostinho</strong> não aplicará nesta direcção, pelo menos de modo explícito, os el<strong>em</strong>entosobtidos na exposição artimológica de De musica.292 De mus. I, XII, 20: « (…) Vt totus aliquid sit, principio et medio et fine constat. In ternario numerumest quan<strong>da</strong>m perfection<strong>em</strong>, quia totus est : habet enim principium, medium et fin<strong>em</strong> » ( PL 32, 1095).293 De mus. I, XI, 19: “ (…) In numerando enim progredimur ab uno usque ad dec<strong>em</strong>, atque inde ad unumrevertimur (…). Vides certe quos artículos dicam, quorum prima regula denario numero praescribitur”.(PL 32, 1094).294 Cf. De mus. I, XII, 21 (PL 32, 1095).194


Efectivamente, <strong>em</strong> De trinitate é possível encontrar uma r<strong>em</strong>iniscência destagenealogia do número 295 . Ela vai estar presente, certamente, um pouco por to<strong>da</strong> a obrado Hiponense, quase s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> contexto exegético, surgindo, com alguma insistência,na interpretação alegórica de passagens bíblicas, frequent<strong>em</strong>ente veterotestamentárias,<strong>em</strong>bora não exclusivamente, onde ocorr<strong>em</strong> referências de carácter numérico. Porém, ainflexão sofri<strong>da</strong> na obra augustiniana verificar-se-á, sobretudo, na aplicação dosresultados obtidos nesta in<strong>da</strong>gação de carácter aritmológico ao universo de reali<strong>da</strong>desespirituais, onde a Uni<strong>da</strong>de se identifica com a indivisibili<strong>da</strong>de. Aí, a própria relaçãoentre a mente humana e a Ver<strong>da</strong>de é compreendi<strong>da</strong> <strong>em</strong> termos de Uni<strong>da</strong>de/multiplici<strong>da</strong>de, como acontece na ascese <strong>da</strong> razão para Deus, noção supr<strong>em</strong>a, tal como éexposta, v. gr., <strong>em</strong> De libero arbitrio. E a própria divin<strong>da</strong>de - inerente à inteligibili<strong>da</strong>dedo cristianismo, que a proclama como Princípio Uno e trino - é entendi<strong>da</strong> como simplexet multiplex, como se lê <strong>em</strong> Confessionum. Mas estas expressões estão já fora de umcontexto de análise aritmológica, como se Sto. <strong>Agostinho</strong> se limitasse a fazer uso deconclusões obti<strong>da</strong>s, aplicando-as a um novo universo de reali<strong>da</strong>des onde se querexplanar, mormente aquele horizonte onde o filósofo pode entender a relação entre aalma humana e o ser supr<strong>em</strong>o.No contexto destas descrições aritmológicas, a perfeição do número três pareceter, acima de tudo, a função de reconduzir to<strong>da</strong> a sequência numérica à duali<strong>da</strong>depar/ímpar e esta, por seu turno, à Uni<strong>da</strong>de e Indivisibili<strong>da</strong>de do Princípio, summusmodus, afastando definitivamente desta noção supr<strong>em</strong>a o espectro <strong>da</strong> Duali<strong>da</strong>de.Em De musica, o número Um surge como princípio dos d<strong>em</strong>ais, precisamente pornão ter n<strong>em</strong> meio n<strong>em</strong> fim. Note-se, efectivamente, que, não obstante o ponto de parti<strong>da</strong><strong>da</strong> reflexão ter sido a reali<strong>da</strong>de do movimento que afecta os corpos, a noção de uni<strong>da</strong>deque está aqui <strong>em</strong> causa não é já a <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de ou congruência de um corpo, mas a <strong>da</strong>indivisibili<strong>da</strong>de ou simplici<strong>da</strong>de específica de reali<strong>da</strong>des puramente inteligíveis, comosão os números.A referência à perfeição do número três como primeiro número perfeito servirá,ain<strong>da</strong>, para que o filósofo introduza, na sua mundividência, a doutrina pitagórica dospares e dos ímpares. Identificando os números pares com o ilimitado e os ímpares como limite, e uma vez que os números têm s<strong>em</strong>pre, à excepção do Um e do Dois, uma295 DT IV, IV, 7: “ Haec aut<strong>em</strong> ratio simpli ad duplum oritur quid<strong>em</strong> a ternario numero; unum quippe adduo tria sunt.” ( CCL 50, p.169).195


dimensão par e outra ímpar, esta atribuição de perfeição ao número três implica,também, por um lado, a convicção de que o ilimitado, na sucessão numérica, estáconfinado a um limite 296 e, por outro, a negação <strong>da</strong> existência de uma reali<strong>da</strong>depuramente indetermina<strong>da</strong> 297 .Considerando quaisquer reali<strong>da</strong>des comensuráveis, é s<strong>em</strong>pre possível examinar asrelações numéricas que entre elas se estabelec<strong>em</strong>. Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, tudo o que élimitado, tudo o que está dotado de mensura e modus, é preferível à irracionali<strong>da</strong>de<strong>da</strong>quilo que é indefinido e ilimitado 298 . Por esse motivo, na óptica do Hiponense, todo omovimento que pode ser compreendido com base numa dimensão exacta é preferível aqualquer outro, falho desse princípio de comensurabili<strong>da</strong>de 299 . Assim, são preferíveis osmovimentos dotados de modus, ordo e numerus porque se pod<strong>em</strong> ligar entre si,permitindo realizar operações como a adição/ multiplicação ou a divisão 300 . To<strong>da</strong>via, namundividência augustiniana não há qualquer movimento alheio àquelas três categoriasontológicas, <strong>da</strong>do que, à marg<strong>em</strong> delas, não subsiste qualquer forma. Ora, s<strong>em</strong> forma,não há ser, mas antes o na<strong>da</strong>. O único movimento de onde tais categorias estão ausentesé o movimento defectível <strong>da</strong> vontade humana, que coincide com a definição296 A ideia de infinitude não é aquela que melhor identifica a concepção augustiniana de Dei<strong>da</strong>de.Infinitude significa negação <strong>da</strong> finitude, ou seja, <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de humana de compreender uma sequêncianumérica, não <strong>da</strong> existência de um limite para tal sequência. Por isso, a infinitude é, ain<strong>da</strong>, para oHiponense, um atributo que se articula com a matéria. Este aspecto <strong>da</strong> noção augustiniana de divin<strong>da</strong>defoi objecto de estudo por Leo SWEENEY <strong>em</strong> “Divine Attributes in De doctrina christiana: Why doesAugustine not list "Infinity"?” in D.W.H. ARNOLD & P. BRIGHT (ed.), De doctrina christiana. AClassic of Western Culture (Notre Dame/London 1995) 195-204; Id., “Augustine and Gregory of Nyssa:Is the Triune God Infinite in Being?” in J.T. LIENHARD & E.C. MULLER & R. J. TESKE (ed.),Collectanea Augustiniana. Augustine: Presbyter Factus Sum (New York 1993) 497-516.297 Cf. De mus. I, XII, 20-21 ( PL 32, 1095).298 Cf. De mus. I, VIII, 14 ( PL 32, 1091). Esta afirmação supõe já um juízo de valor, neste caso aplicadoà sequência numérica: o limitado é preferível ao ilimitado e a extensão infinita, proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria,ocupará, portanto, um grau ínfimo de ser, na hierarquia ontológica. Com efeito, a metafísica doHiponense defende o primado <strong>da</strong> forma, que restringe e configura a existência, sobre a matéria, puraindeterminação.299 Cf. De mus. I, IX, 15 ( PL 32, 1092). A reali<strong>da</strong>de numerável é preferível àquela onde o numerus ou adimensio se ausentam, gerando uma reali<strong>da</strong>de disforme.300 De mus. I, IX, 15: “( …) [ discipulus] – Et hoc manifestum est atque consequens: illos enim certusqui<strong>da</strong>m modus, atque mensura quae in numeris est, sibimet copulat, qua qui carent, non utique sibi aliquaratione junguntur. » ( PL 32, 1092).196


augustiniana de mal. Porém, como ficou dito, precisamente por ausência de consistênciaontológica, este movimento na<strong>da</strong> é, cifrando-se, apenas, numa decadência de grau queafecta a forma humana, fazendo-a entrar <strong>em</strong> declínio, <strong>em</strong> relação ao lugar que lhecorresponde na hierarquia ontológica.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, as proprie<strong>da</strong>des do real, manifestas nas três referi<strong>da</strong>scategorias – ordo, mensura, numerus – revelam uma perfeição essencial <strong>da</strong>s coisas, asaber, a tendência de ca<strong>da</strong> forma a estabelecer conexões, a entrar <strong>em</strong> relação com outrasformas, com vista a celebrar uni<strong>da</strong>des possíveis, certamente mais perfeitas do que oisolamento de ca<strong>da</strong> uma delas ou a dispersão delas numa multiplici<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong>.Destas considerações feitas nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De musica, nasce a divisão, estabeleci<strong>da</strong>pelo filósofo, entre números racionais (aqueles que pod<strong>em</strong> constituir, entre si,dimensões exactas), e números irracionais (aqueles que carec<strong>em</strong> de dimensões exactasentre si), sendo os primeiros preferíveis aos segundos, precisamente <strong>em</strong> função <strong>da</strong>unificação a que tend<strong>em</strong>.Uma vez identifica<strong>da</strong>s as sequências numéricas nas quais a racionali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>anifesta preferent<strong>em</strong>ente, Sto. <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>ga sobre o próprio limite <strong>da</strong> sequênciados números, tendo <strong>em</strong> conta que um dos critérios el<strong>em</strong>entares na descoberta <strong>da</strong> forçados números é a capaci<strong>da</strong>de que eles têm de confinar o real, tornando-o inteligível. Comefeito, a categoria ontológica de numerus necessita, também ela, de medi<strong>da</strong> e forma –modus formaque -, que a constranja e a faça regressar à sua condição racional,d<strong>em</strong>arcando a própria substância numérica 301 . Em De musica, o filósofo analisa a formaou medi<strong>da</strong> do número a partir <strong>da</strong> dicção ou, melhor dito, <strong>da</strong> pronunciação de um somsignificante, afirmando que a força do número, s<strong>em</strong>pre váli<strong>da</strong>, reside neste facto:quando é dito, o número torna-se finito, limitado por uma forma, identificado numamedi<strong>da</strong>, pois imediatamente o afectam as coordena<strong>da</strong>s de espaço e t<strong>em</strong>po que o tornamcomensurável. Fora destas coordena<strong>da</strong>s, o número permanece infinito, como infinita é asequência numérica 302 . O filósofo justifica, assim, que a investigação acerca dos301 Cf. De mus. I, XI, 18 ( PL 32, 1094).302 Cf. De mus. I, XI, 18 ( PL 32, 1094). No elenco de escritos de PLOTINO que Sto. <strong>Agostinho</strong> terá lido,A. SOLIGNAC e O. DU ROY inclu<strong>em</strong> a Enn. VI, 6, ♓ ♋♓ Não é difícilencontrar este paralelismo <strong>em</strong> De musica, entre outros passos, justamente com a discussão plotinianaacerca dos números infinitos, aí considerados como contradição nos termos (Enn. VI, 6, 2: p. 18). Ocarácter numerável exige a delimitação e, pela estreita relação entre número e ser, é a série numérica quedomestica, inviabilizando-a, a introdução do acaso no curso do t<strong>em</strong>po e no movimento dos seres (cf. Enn.197


números seja feita a partir <strong>da</strong> palavra, incidindo sobre aquela parte <strong>da</strong> gramática que é apoética e encontrando-se, no ritmo e no verso – e, no plano <strong>da</strong>s intenções, <strong>em</strong> obranunca concretiza<strong>da</strong>, também na análise <strong>da</strong> melodia 303 . Deste modo, Sto. <strong>Agostinho</strong>encontra a lei <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que rege o Universo inclusivamente no próprioconvencionalismo <strong>da</strong>s palavras, inseparável de uma imensa contingência, sujeito a um<strong>em</strong>prego esvaziado de conteúdo, meramente retórico, o qual é, tantas vezes, objecto decrítica por parte do Hiponense 304 . Por isso, s<strong>em</strong>pre que a razão encontre vestígios deuni<strong>da</strong>de, deverá deter-se de modo particular e prestar atenção a essa presença.<strong>Agostinho</strong> insiste, ain<strong>da</strong>, num outro privilégio de número um sobre os d<strong>em</strong>ais. Éum facto que o resultado <strong>da</strong> multiplicação de qualquer número por outro excede s<strong>em</strong>preo primeiro, anulando-o de algum modo. Porém, a multiplicação de qualquer númeropelo número um reafirma a uni<strong>da</strong>de própria do número <strong>em</strong> causa, como se a uni<strong>da</strong>de,nele conti<strong>da</strong>, fosse a garantia <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>quela multiplici<strong>da</strong>de numérica. Naigual<strong>da</strong>de <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de mat<strong>em</strong>ática late, para o filósofo, a uni<strong>da</strong>de do ser supr<strong>em</strong>o,princípio de ord<strong>em</strong> e de racionali<strong>da</strong>de. Por isso, a razão pode ascender com segurançapelos vestígios de uni<strong>da</strong>de deixados no real sensível, até àquele princípio de uni<strong>da</strong>de,totalmente inteligível e imutável, que se identifica com a Dei<strong>da</strong>de. De facto, na EpístolaCI, Sto. <strong>Agostinho</strong> oferece uma síntese esclarecedora dos objectivos que se propusera,ao redigir De musica: a sua convicção de que, nos movimentos <strong>da</strong>s coisas, quando seVI, 6, 10: p. 27). A preocupação de PLOTINO, que <strong>Agostinho</strong> perfilha <strong>em</strong> De musica, <strong>em</strong> afastar oinfinito e o indeterminado <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do ser, t<strong>em</strong>, por isso, estreita ligação com a t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, poissó a série numérica – reduzi<strong>da</strong> na perfeição <strong>da</strong> dezena e esta, por sua vez, redutível ao predomínio donúmero um – garante a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.303 Ep. CI, 3: “ (...) initio nostri otii, cum a curis maioribus magisque necessariis uacabat animus, uolui perista, quae a nobis desiderasti, scripta proludere, quando conscripsi de solo rhythmo sex libros et de meloscribere alios forsitan sex, fateor, disponebam, cum mihi otium futurum sperabam.” ( CSEL 34/2, p. 542).304 De facto, na Ep. CI, 3 ( CSEL 34/2 , p. 541), Sto. <strong>Agostinho</strong> diz a M<strong>em</strong>orius que as palavras/vozes sãoo melhor meio para atingir a Ver<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a e íntima. Em DO II, XIV, 40, a propósito <strong>da</strong> etimologia deuersus, escreve <strong>Agostinho</strong>: “ (…) ne longius pedum cursus poruolueretur, quam eius iudicium possetsustinere, modum statuit, unde reuerteretur, et ab ipso uersum uocauit.” ( CCL 29, p. 129). E, a propósito<strong>da</strong> etimologia do termo ritmo, escreve, no parágrafo seguinte: “ (...) Quod aut<strong>em</strong> non esset certo fin<strong>em</strong>oderatum sed tamen rationabiliter ordinatis pedibus surreret, rythmi nomine notauit, qui latine nihilaliud quam numerus dici potuit » ( DO II, 14, 40 : CCL 29, p. 129). <strong>Agostinho</strong> dedica os Livros II-IV deDe musica a analisar a estrutura métrica do verso, de acordo com as normas impostas por uma tradiçãofun<strong>da</strong><strong>da</strong> na autori<strong>da</strong>de humana, frequent<strong>em</strong>ente não manifestando mais razoabili<strong>da</strong>de do que a <strong>da</strong> força docostume.198


quer saber qual o poder dos números é mais fácil considerá-lo nas vozes. Aconsideração dos números presentes na enunciação implica, por parte <strong>da</strong> razão, aconfiança num caminho, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> gradual, mas seguro, para alcançar a Ver<strong>da</strong>deíntima e superna. Neste trajecto, a Sabedoria mostra-se aprazível e <strong>em</strong> tudo aprovidência sai ao encontro <strong>da</strong>queles que a amam 305 .A música que, na expressão litúrgica do canto, comovia <strong>Agostinho</strong> até àslágrimas, nos dias de Milão - não s<strong>em</strong> lhe suscitar, posteriormente, sentimentoscontraditórios 306 -, torna-se instrumento de investigação acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>,por ser um lugar privilegiado onde a razão – através <strong>da</strong> enunciação poética, na suaalternância de sons e silêncios – entra <strong>em</strong> diálogo com um mundo ordenado, no qual ointeligível reina sobre o sensível, garantindo-lhe racionali<strong>da</strong>de e harmonia.4. Da percepção do belo à ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> razãoComo ficou exposto, é possível identificar, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>, umaprimeira forma de equacionamento para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que situa a análise desteconceito no nível epidérmico do fenómeno, ou seja, no âmbito <strong>da</strong> percepção sensível.To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de aparece, na diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas formas, sob a razão de totali<strong>da</strong>deorganiza<strong>da</strong>, mesmo sendo ver<strong>da</strong>de que esta harmonia, reinante no Universo, contrastacom a ausência de felici<strong>da</strong>de, experimenta<strong>da</strong> pela maioria dos humanos. Se tal paradoxoé um fenómeno epidérmico, contudo o questionamento <strong>da</strong> causa de tal facto e a suaconstituição como filosof<strong>em</strong>a - cur ita esset? - pode não ocorrer a to<strong>da</strong>s as menteshumanas. Na ver<strong>da</strong>de, não obstante o desejo de felici<strong>da</strong>de ser universal e a felici<strong>da</strong>de seencontrar, apenas, na posse <strong>da</strong> sabedoria, o filósofo verifica que escasseiam os humanosque se consideram sábios e felizes. Além do mais, para complexificar a questão, sãodiversos os objectos que ca<strong>da</strong> um considera como termo <strong>da</strong> sabedoria.Equacionado desta forma – por que razão há uma ord<strong>em</strong> no Universo, mas osseres humanos são infelizes? -, o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> surge, antes de mais, como305 Ep. CI, 3 “ (…) Verum quia in omnibus rerum motibus quid numeri ualeant, facilius consideratur invocibus, eaque consideratio quibus<strong>da</strong>m quasi gra<strong>da</strong>tis itineribus nititur ad superna et intima veritatis, inquibus viis ostendit se sapientia hilariter, et in omni providentia occurit amantibus (Sap. 6: 17)” ( CSEL34/2, p. 541-542).306 Cf. Conf. IX, VI, 14; X, XXXIII, 50 ( CCL 27, p. 140-141; p. 181-182).199


probl<strong>em</strong>a epistémico. De facto, é como tal que ele é discutido por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>Contra Acad<strong>em</strong>icos 307 . A solidez dos argumentos aí apresentados é discutível e seráapura<strong>da</strong> <strong>em</strong> obras posteriores. To<strong>da</strong>via, não deixa de ser compreensível que a primeiraobra que redige, após a sua conversão metafísica, verse, precisamente, sobre a posiçãoepistémica dos Académicos.Tal facto justificar-se-ia do ponto de vista meramente autobiográfico, avaliando aexperiência de cepticismo pela qual Sto. <strong>Agostinho</strong> se deixara afectar, pouco antes <strong>da</strong>sua conversão 308 . Justificar-se-ia, igualmente, pela forte influência <strong>da</strong> Nova Acad<strong>em</strong>iana socie<strong>da</strong>de coeva, pelo menos na Ítala e nos círculos frequentados pelo Filósofo deHipona, quer <strong>em</strong> Roma, quer <strong>em</strong> Milão. De facto, dos intervenientes nos designadosDiálogos de Cassicíaco, apenas Mónica parece desconhecer qu<strong>em</strong> são os Académicos.No entanto, a questão t<strong>em</strong> um alcance mais fundo, já que a conversão metafísicaopera<strong>da</strong> <strong>em</strong> Sto. <strong>Agostinho</strong> fá-lo considerar a íntima relação entre a posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de ea obtenção <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.Tal convicção coincide, efectivamente, com o processo de conversão descrito <strong>em</strong>Confessionum e consiste, no momento <strong>em</strong> que Sto. <strong>Agostinho</strong> regista por escrito adisputatio de que resulta Contra Acad<strong>em</strong>icos, <strong>em</strong> boa parte, numa atitude de adesãofiducial à Ver<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, para avançar no equacionamento <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des teóricasinerentes ao filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, que está convicto poder vir a compreender, oHiponense admite que necessita de superar a posição dos Académicos. Esta, na atituderadical de Arcesilau, <strong>da</strong><strong>da</strong> a incomunicabili<strong>da</strong>de entre o mundo sensível e o mundointeligível, afirmava ser impossível obter qualquer assomo de ver<strong>da</strong>de, pois to<strong>da</strong> ela seoculta no Inteligível, sendo o mundo sensível apenas aparência e falsi<strong>da</strong>de. E, na versãomitiga<strong>da</strong> defendi<strong>da</strong> pelo neo-acad<strong>em</strong>ismo, seria possível estabelecer que a probabili<strong>da</strong>deé critério de ver<strong>da</strong>de, mas de modo algum a Ver<strong>da</strong>de estaria ao alcance <strong>da</strong> mentehumana.Em Contra Acad<strong>em</strong>icos, Sto. <strong>Agostinho</strong> discute as teses disponíveis, articulandoas,à maneira de Cícero, com a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Filosofia e, afinal, <strong>da</strong>307 O Livro III de Contra Acad<strong>em</strong>icos, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> sintetiza os seus argumentos contra ocepticismo académico, cruza-se, na ord<strong>em</strong> cronológica de composição e de acordo com a pesquisa de O.PERLER, com o final de De ordine ( cf. O. PERLER, " Recherches sur les Dialogues et le site deCassiciacum", Augustinus 13 (1968), p. 347-348; O. PERLER & Jean-Louis MAIER, Les voyages desaint Augustin, Paris, 1969, p. 190-191).308 Cf. Conf. V, X, 18; V, XIV, 25 ( CCL 27, p. 67-68; p. 71-72).200


existência humana, tal como, desde cedo, apreendera na leitura de Hortensius: aconquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos, <strong>Agostinho</strong> recorre, também, aargumentos retirados <strong>da</strong>s posições filosóficas acerca <strong>da</strong> constituição do Universo,conheci<strong>da</strong>s na Antigui<strong>da</strong>de, fazendo notar que, mesmo discutindo a existência <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong>s divergências de âmbito cosmológico subsistentes nas diferentesposições dos filósofos, e independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> posição que se assuma <strong>em</strong> face <strong>da</strong>questão <strong>da</strong> natureza do cosmos, não deixa de ser ver<strong>da</strong>de que o ser humano percepcionareali<strong>da</strong>des através dos sentidos corpóreos e que essa totali<strong>da</strong>de apreendi<strong>da</strong> se designapor “Mundo” 309 . Este facto é inegável, mesmo se o modo de aparição do fenómeno“Mundo” for discutível. Com o fim de chancelar a existência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, Sto.<strong>Agostinho</strong> junta àquele facto uma outra evidência: a <strong>da</strong> necessária ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sproposições disjuntivas. Recorrendo aos conhecimentos de cosmologia que diz possuir,mostra como a alternativa entre teses opostas é s<strong>em</strong>pre ver<strong>da</strong>deira, mesmo no caso denão se poder, ou não se querer, decidir por uma delas 310 . Ora, como o conhecimento <strong>da</strong>steses alternativas é parte <strong>da</strong> Filosofia, pois in<strong>da</strong>ga sobre o Mundo e a natureza dele,então é possível alcançar a Ver<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> Filosofia.Em obras posteriores a Contra Acad<strong>em</strong>icos, Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong>ráimensamente a sua gnosiologia. Apurará a sua teoria <strong>da</strong> sensação e <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a suaanálise sobre a natureza <strong>da</strong> mente humana e sobre as condições de possibili<strong>da</strong>de dojuízo ver<strong>da</strong>deiro. Por ora, os el<strong>em</strong>entos supra-referidos, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> frágeis, satisfaz<strong>em</strong>o filósofo, que os considera suficientes para avançar na reflexão sobre a natureza <strong>da</strong>ordo rerum. O Hiponense admite, por conseguinte, a condição factíca do real e apossibili<strong>da</strong>de de o perceber com ver<strong>da</strong>de. Esta atitude permite-lhe aderir à possibili<strong>da</strong>dede encontrar alguma ver<strong>da</strong>de de carácter filosófico, avançando, assim, na construção deuma articulação racional para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Penetrando na construção do reala partir <strong>da</strong> percepção sensível, o filósofo admite a irrevogabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des que nãodepend<strong>em</strong> dos sentidos, como acontece com as proposições de carácter mat<strong>em</strong>ático 311 .309 CA III, XI, 24: " Vnde, inquit, [Carneades] scis esse istum mundum, si sensus falluntur? Numquamrationes uestrae ita uim sensuum refellere potuerunt, ut conuinceres nobis nihil uideri, nec omninoaliquando ista tentare (…)." ( CCL 29, p. 48). A aceitação do carácter fenoménico do cosmos é pacífica.Não assim a <strong>da</strong> sua adequa<strong>da</strong> percepção através dos sentidos.310 Cf. CA III, XI, 24 ( CCL 29, p. 48-49).311 Cf. CA III, XI, 25; III, XIII, 29 ( CCL 29, p. 49; 51-52). Recorrendo à ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proposições dedisjunção exclusiva, Sto <strong>Agostinho</strong> afasta, dos três domínios <strong>da</strong> divisão clássica de Filosofia - natural,201


Sto. <strong>Agostinho</strong> considera a ord<strong>em</strong> cósmica como um fenómeno <strong>em</strong>pírico,omnicompreensível. Ante o espectáculo do mundo, cabe a admiração, a atracção pelobelo, a rejeição <strong>da</strong> feal<strong>da</strong>de, o desejo de fruição, o desagrado ante a dor e a indigência, acapaci<strong>da</strong>de de compreensão <strong>da</strong> causa de alguns fenómenos, físicos, biológicos,psicológicos, antropológicos e a admissão do horizonte de mistério que envolve tantosoutros. To<strong>da</strong>via, se a possibili<strong>da</strong>de de apreensão sensível de tais fenómenos é universal,desde que os órgãos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de não padeçam defeito natural, o mesmo não ocorrecom a capaci<strong>da</strong>de que a inteligência humana possui de os integrar numa visão do mundotão ampla quanto possível, reduzindo o âmbito de obscuri<strong>da</strong>de e de aporia que envolveo filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.<strong>Agostinho</strong> afirma que na<strong>da</strong> é mais evidente do que a presença <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, pois s<strong>em</strong>ela o Universo careceria de inteligibili<strong>da</strong>de. Simultaneamente, na<strong>da</strong> parece mais difícilde apreender e de verter <strong>em</strong> discurso ver<strong>da</strong>deiro, ocultando-se à inteligência humana,<strong>da</strong><strong>da</strong> a versatili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção <strong>em</strong> causa e o horizonte de aporia onde a razão incorrequando busca soluções para as angústias que o filosof<strong>em</strong>a integra.ética e lógica -, a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> perene. Este artifício dialéctico consiste, afinal, na afirmação <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de do princípio de não-contradição. Deste modo, o filósofo contorna o carácter subjectivointroduzido pelos cépticos no âmbito <strong>da</strong> percepção, fixando-se na ver<strong>da</strong>de de uma operação lógica eencontrando, nela, uma nota de universali<strong>da</strong>de. Em CA III, XIV, 30 (CCL 29, p. 52-53) apresenta-se umargumento que contém, <strong>em</strong>brionariamente, a intuição augustiniana acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> razão humana.Segundo um test<strong>em</strong>unho explícito de Hortensius, os Académicos discut<strong>em</strong> acerca <strong>da</strong> natureza do sábio.Ora, o sábio presta o seu assentimento à sabedoria quando a procura, quando não adere às proposiçõesque depend<strong>em</strong> <strong>da</strong> percepção sensível, ou quando suspende o juízo, como se lê <strong>em</strong> CA III, XIV, 32: " (...)Ergo arbitror ego sapienti certam esse sapientiam, id est sapient<strong>em</strong> percepisse sapientiam et ob hoc nonopinari, cum adsentitur sapientiae: adsentitur enim ei rei quam si non percepisset sapiens non esset."(CCL 29, p. 54). Na afirmação <strong>da</strong> perene busca <strong>da</strong> sabedoria está implícito o conhecimento <strong>da</strong>quilo que sebusca, o qual de nenhum modo depende dos sentidos. Sto. <strong>Agostinho</strong> desenvolverá esta intuição <strong>em</strong> Detrinitate, ao explanar o conhecimento implícito que a mente t<strong>em</strong> de si mesma. Em Contra Acad<strong>em</strong>icos, osargumentos de crítica às teses <strong>da</strong> probabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> verosimilhança parec<strong>em</strong> mais débeis, não obstante sefun<strong>da</strong>r<strong>em</strong> num certo conceito de “razão prática”, que o Filósofo de Hipona tanto valoriza. Na obra <strong>em</strong>causa, aquelas posições dos Académicos são condena<strong>da</strong>s sobretudo por introduzir<strong>em</strong> o relativismo naconstituição <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, no direito e na moral. Inviabilizando a vali<strong>da</strong>de do juízo de valor, tais tesestornam indiferente a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções humanas. Se a substanciali<strong>da</strong>de do mal é critica<strong>da</strong> por<strong>Agostinho</strong> no maniqueísmo, pois desresponsabiliza o agente, aqui é a própria acção humana quesubmerge na indiferença, sendo não o seu princípio, mas o seu fim determinado por critérios deconveniência, no que respeita à bon<strong>da</strong>de ou malícia (cf. CA III, XVI, 36: CCL 29, p. 56-57).202


Esta mesma dificul<strong>da</strong>de de articular a dimensão <strong>em</strong>pírica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e oequacionamento racional do filosof<strong>em</strong>a é regista<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine. Nessa obra, o filósofoinsiste sobre um primeiro nível de apreensão <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, de carácter <strong>em</strong>pírico,precisamente ao tomar como ponto de parti<strong>da</strong> de reflexão os acontecimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>quotidiana na uilla de Cassicíaco. O curso desigual <strong>da</strong>s águas do rio, a que<strong>da</strong> <strong>da</strong>s folhas<strong>da</strong>s árvores, o espectáculo de galos, entre outros factos <strong>da</strong> mesma natureza, tornam-se aíobjecto de inquirição.Se a interrogação sobre a ordo rerum se elabora pela atenção que a mente dispensaa fenómenos <strong>em</strong>píricos, a articulação do filosof<strong>em</strong>a terá de se fun<strong>da</strong>r na experiênciacognitiva. Esta resulta <strong>da</strong> apreensão <strong>da</strong>queles fenómenos, por um lado e, por outro, <strong>da</strong>reflexão sobre a causa deles. Porém, a construção de uma mundividência que parte <strong>da</strong>percepção sensível dos factos e avança para a compreensão <strong>da</strong>s causas materiais delesnão alcança o ser <strong>da</strong>s coisas. Na d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> de um horizonte de compreensão para a noçãode ord<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> quererá superar os limites de uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> de âmbitocosmológico, criticando to<strong>da</strong>s as teses que, de um modo ou de outro - quer reduzindo oPrimeiro Princípio a um el<strong>em</strong>ento material, como o fizeram D<strong>em</strong>ócrito, Anaximandro,Anaxímenes 312 , quer considerando que o <strong>Ser</strong> é matéria e extensão material <strong>em</strong> eternoconflito, como afirma o mito maniqueu –, encerram aquela noção supr<strong>em</strong>a numa visãodo mundo onde Razão e Matéria se identificam.Esta é, porventura, a razão principal que leva Sto. <strong>Agostinho</strong> a in<strong>da</strong>gar a natureza<strong>da</strong> ord<strong>em</strong> mediante uma análise <strong>da</strong> dinâmica do racionali<strong>da</strong>de humana. De facto, asresoluções do filosof<strong>em</strong>a centra<strong>da</strong>s <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos de âmbito essencialmentecosmológico variavam entre a perspectiva dualista do platonismo, tal como éapresenta<strong>da</strong> no Timeu 313 , e a doutrina <strong>da</strong> dependência <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des sublunares <strong>em</strong> face<strong>da</strong>s esferas siderais, que r<strong>em</strong>ete a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> para odomínio <strong>da</strong> astrologia e, mesmo, <strong>da</strong> adivinhação.Se, porém, a atitude de qu<strong>em</strong> in<strong>da</strong>gue sobre a noção de ord<strong>em</strong> vier a incidir sobrea natureza <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitiva, <strong>da</strong>do que é ela que permite uma compreensão312 Cf. De ciu. dei, VIII, 2; VIII, 5; XVIII, 37 ( CCL 47, p. 217-218; p. 221-222; p. 632-633).313 Questão assaz discuti<strong>da</strong> entre os estudiosos é a de saber qual a versão do Timeu que utilizou Sto.<strong>Agostinho</strong>, nas breves referências que faz a essa obra de Platão. P. COURCELLE <strong>em</strong> Les lettres grècquesen Occident de Macrobe à Cassiodore (Paris 1943), p. 156-159, mostra que o Hiponense não tinha à suadisposição o texto grego dos Diálogos de Platão. Na opinião deste A., as citações feitas por <strong>Agostinho</strong> doTimeu teriam por referência a tradução de Cícero e não a de Calcídio.203


acional do fenómeno, dois vícios são possíveis. Um primeiro, identifica os planosmetafísico com o gnosiológico, senão mesmo com o psicológico, nos casos <strong>em</strong> que arazão não logre abandonar o horizonte <strong>da</strong> representação fantástica e mitológica que elaprópria cria. Um outro vício, consequência deste, faz que a razão identifique o sersupr<strong>em</strong>o com uma <strong>da</strong>s suas manifestações, a saber, a do ser humano, enquantoindivíduo dotado de capaci<strong>da</strong>de discursiva. Naquele primeiro conjunto poder-se-iamintegrar to<strong>da</strong>s as construções míticas e fabulosas, contra as quais o Filósofo de Hiponajamais deixará de se insurgir <strong>em</strong> variadíssimos textos e diferentes contextos. Nestesegundo conjunto, incluir-se-iam as filosofias <strong>da</strong> gnose, que exacerbam o poder <strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de cognitiva <strong>da</strong> alma e, ain<strong>da</strong>, num outro extr<strong>em</strong>o do mesmo vício, as teses quedesacreditam a potência cognitiva, como sucede com to<strong>da</strong>s as expressões de cepticismo.Da verificação <strong>em</strong>pírica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do cosmos deduz-se, igualmente, o facto de, notratamento do filosof<strong>em</strong>a, se articular<strong>em</strong>, de modo imediato e indissociável, trêsel<strong>em</strong>entos que, por si só, constitu<strong>em</strong> objecto de análise. São eles o Mundo - assuma-secomo váli<strong>da</strong> a definição apresenta<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos 314 -, aAlma e o Princípio ou Causa Supr<strong>em</strong>a de tudo quanto se move no Universo.Nos seus primeiros escritos, o Hiponense procura equacionar uma solução para ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> esclarecendo, sobretudo, ca<strong>da</strong> um dos referidos el<strong>em</strong>entos e omodelo de relação que entre eles se estabelece. Do horizonte <strong>da</strong> sua argumentaçãoexclui, à parti<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> a mundividência que se baseie numa identi<strong>da</strong>de entre <strong>Ser</strong> eMatéria e entre <strong>Ser</strong> e Duali<strong>da</strong>de. Rejeita, por conseguinte, a solução estóica para aordenação cósmica, basea<strong>da</strong> num princípio el<strong>em</strong>entar ígneo e na concepção circular dot<strong>em</strong>po, justifica<strong>da</strong> por um terno retorno. Sto. <strong>Agostinho</strong> afastar-se-á, igualmente, <strong>da</strong>concepção estóica de natura que entrega a causa de todos os fenómenos a um nexomaterial irrevogável. Desviará, também, do seu horizonte intelectual, sobretudo quandoprocura entender o lugar <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, todo o laivo de dualismo maniqueu. To<strong>da</strong>via,como ficou dito, o filósofo assume a noção de providência, cara ao estoicismo e aoneoplatonismo, e não despreza a concepção estóica <strong>da</strong> presença de uma lei eterna,ocultissima ratio que perpassa todo o real, garantindo-lhe inteligibili<strong>da</strong>de e unificandoo.314 CA III, XI, 24: “ (...) Ego itaque hoc totum, qualecumque est, quod nos continet atque alit, hoc,inquam, quod oculis meis apparet a meque sentitur habere terram et caelum aut quasi terram et quasicaelum, mundum uoco.” ( CCL 29, p. 48-49).204


Nos seus primeiros escritos assiste-se a uma discussão acerca de alguns el<strong>em</strong>entosprincipais que integram o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, quando equacionado com a ideia de umcosmos organizado: o mistério do movimento, <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de dosseres; o enigma do princípio ou causa do Universo, <strong>em</strong> confronto com o desejouniversal de felici<strong>da</strong>de e com a reali<strong>da</strong>de indefectível do sofrimento e do mal; ainterrogação sobre a natureza do conhecimento, uni<strong>da</strong> à <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> alma humana e àquestão <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> sabedoria. Sto. <strong>Agostinho</strong> procurará responder as estasdificul<strong>da</strong>des articulando sincreticamente algumas categorias assimila<strong>da</strong>s doneoplatonismo, do neopitagorismo e do cristianismo, não obstante ser a inteligibili<strong>da</strong>dedeste último que procura. Progressivamente, <strong>da</strong>r-se-á conta <strong>da</strong> estreiteza <strong>da</strong>s categoriasfilosóficas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de, incapazes de responder à amplitude e à universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>razão conti<strong>da</strong> na metafísica cristã, sendo estas as características que o filósofo procurapara uma articulação racional do filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa. Esse facto, porém, não o levará aabandonar a tradição cultural <strong>em</strong> que se insere. A posição de Sto. <strong>Agostinho</strong> será, antes,a de um distanciamento crítico <strong>em</strong> relação à cultura antiga, o qual se verifica facilmente<strong>em</strong> inúmeros passos de Retractationum ou, de modo expositivo e argumentativo, noconfronto de culturas que se evidencia <strong>em</strong> De ciuitate dei. A par desta consciênciacrítica, assiste-se, no curso <strong>da</strong> obra do Hiponense, a um aprofun<strong>da</strong>mento do textobíblico, que conciliará com a reflexão pessoal, fazendo des<strong>em</strong>bocar o fruto <strong>da</strong>construção <strong>da</strong>s suas respostas numa mundividência própria, coerent<strong>em</strong>ente assumi<strong>da</strong>.Mesmo superando a dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interrogação acerca do mal, <strong>da</strong> natureza eorig<strong>em</strong> dele, persiste um <strong>em</strong>baraço na construção de uma resposta para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>: o <strong>da</strong> integração <strong>da</strong> diferença, antes de mais a <strong>da</strong>quela que se verifica nadiversi<strong>da</strong>de de formas dos seres que repletam o Universo. A resposta a esta reali<strong>da</strong>dearticula, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>, dois el<strong>em</strong>entos. Por um lado, a apreciação estéticado real, que resulta de uma verificação <strong>da</strong> harmonia existente entre as partes e o Todo;por outro lado, a consideração <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> como disposição gradual de seres, onde adiferença <strong>da</strong>s formas é agrupa<strong>da</strong> no Universo de acordo com o maior ou menor alcancede activi<strong>da</strong>de, inerente a ca<strong>da</strong> forma. Uni<strong>da</strong> à pr<strong>em</strong>ência de uma reflexão sobre adiferença, estará, portanto, a consideração do movimento, proprie<strong>da</strong>de indissociável <strong>da</strong>dimensão t<strong>em</strong>poral que afecta to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de corpórea.Nos primeiros escritos augustinianos, a resposta à questão <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong>multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas é <strong>da</strong><strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> mediante a adesão, se não ao conjunto<strong>da</strong> mundividência neoplatónica, pelo menos à dimensão estética <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, presente no205


neoplatonismo, a qual admite a necessi<strong>da</strong>de do diferente e do múltiplo e, até, doantitético, b<strong>em</strong> como <strong>da</strong> própria feal<strong>da</strong>de, física ou moral, para equacionar a perfeição ebeleza do conjunto. Por isso, torna-se pertinente deter a atenção nos fun<strong>da</strong>mentos<strong>da</strong>quilo que se poderia designar por uma estética negativa. A proximi<strong>da</strong>de de conteúdosentre as noções de beleza e de ord<strong>em</strong> presentes nos primeiros escritos de Sto. <strong>Agostinho</strong>e as teses plotinianas expostas <strong>em</strong> Enneades I e III torna possível considerar que,também na obra do Hiponense, se possa encontrar uma justificação estética do mal, aque se refere Tresmontant comentando a posição plotiniana ante o enigma <strong>da</strong>desord<strong>em</strong> 315 .Para Plotino, o mal sucede à alma pelo acréscimo de algo que lhe é alheio, a saber,o corpo. Por isso, to<strong>da</strong> a relação entre os corporalia e a alma é conota<strong>da</strong> como maléfica,reclamando uma purgação obti<strong>da</strong> por separação. Note-se que a <strong>em</strong>patia que a estepropósito se pode verificar entre os primeiros diálogos filosóficos de <strong>Agostinho</strong> e estaposição de Plotino se justifica <strong>em</strong> boa parte porque a solução augustiniana acerca <strong>da</strong>orig<strong>em</strong> e natureza do mal não está, ain<strong>da</strong>, claramente delinea<strong>da</strong>, e não porque oHiponense considere reali<strong>da</strong>des malévolas o corpo, ou a matéria que o compõe.Por isso, é necessário mitigar uma certa tradição de comentário que nega a Sto.<strong>Agostinho</strong> uma concepção positiva <strong>da</strong> matéria, dos corporalia e <strong>da</strong> própria natureza <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de, b<strong>em</strong> como do uso que se possa fazer destas reali<strong>da</strong>des. No sentido deatribuir uma certa negativi<strong>da</strong>de à concepção augustininana do belo e <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de, enquadra-se a leitura que faz Manferdini <strong>da</strong> estética augustiniana, indo aoencontro de uma determina<strong>da</strong> tradição de comentário que quer ver, na obra de<strong>Agostinho</strong>, uma nova leitura dualista do real, mais pérfi<strong>da</strong> do que a maniqueísta, poisatribuiria a Deus, não já causa do mal, mas a divisão do Universo entre seres humanossantos e pecadores perversos. Estes últimos estariam condenados à infelici<strong>da</strong>de desde oinício <strong>da</strong> sua existência terrena, <strong>em</strong> virtude de uma predestinação divina, que oscastigaria irrevogavelmente desde o próprio instante <strong>da</strong> Criação, ao saber, porpresciência, que entregariam as suas obras à eficácia do princípio de concuspiscentia,cuja presença num <strong>da</strong>do ser humano n<strong>em</strong> lhe seria, <strong>em</strong> última análise, totalmenteimputável.315 « Dans la perspective plotinienne, c’est plutôt d’une hygiène qu’il faudrait parler. L’âme s’est salie,elle s’est <strong>em</strong>bourbée, encrassée, mêlée, il suffit de la séparer, de la purifier, pour qu’elle retrouve sa véritéet son être (...) » [C. TRESMONTANT, La métaphysique du christianisme et la naissance de laphilosophie chrétienne ( Paris 1961), p. 360].206


Manferdini recusa ao Filósofo de Hipona a constituição <strong>da</strong>quilo que designa poruma estética religiosa, a qual exigiria a inclusão <strong>da</strong> sensação e <strong>da</strong> intervenção do própriocorpo, nomea<strong>da</strong>mente no que respeita à relação entre o ser humano e Deus. Tal crítica écompreensível no seio de uma determina<strong>da</strong> concepção de estética que exige a presençado deleite corpóreo, procurando integrá-lo, também, na relação com o divino. Comefeito, a exclusão <strong>da</strong>quele parece, desde esta óptica, uma amputação, na relação com odivino, <strong>da</strong> completude do ser humano, <strong>da</strong><strong>da</strong> a estrutura psicossomática dele.A discussão entre estas duas formas de interpretar a metafísica augustiniana pareceeternizar-se. Em oposição enfrentam-se, por um lado, uma hermenêutica que nega àobra augustiniana a defesa <strong>da</strong> positivi<strong>da</strong>de do corpo e <strong>da</strong> matéria e, por outro, a queafirma que tal positivi<strong>da</strong>de se mantém, considerando que, s<strong>em</strong> ela, to<strong>da</strong> a metafísica doHiponense cai por terra. Nesta querela, cabe assinalar que são inúmeros os textosaugustinianos que concorr<strong>em</strong> a favor quer de uma positivi<strong>da</strong>de dos corporalia, quer <strong>da</strong>própria percepção sensível. Esta abundância de textos, por seu turno, enquadra-se <strong>em</strong>contextos diversos. Assim, quando o filósofo visa sublinhar a positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matériaprimeira, fala de uma tendência à forma e insiste na criação desse princípio metafísicopor parte de um Deus soberanamente bom. Quando quer afastar de to<strong>da</strong>s as formas deexistência qualquer assomo de malícia, o filósofo insiste na beleza, na harmonia, nacongruência de ca<strong>da</strong> forma de ser, to<strong>da</strong>s elas dota<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quela trilogia – ordo, mensura,numerus –, que faz delas um vestígio <strong>da</strong> própria trin<strong>da</strong>de divina. Essa harmonia ouconsonância cresce qualitativamente, na medi<strong>da</strong> e proporção <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relaçãoque as formas dos seres estabelec<strong>em</strong> entre si.Por sua vez, na análise <strong>da</strong> percepção sensível, <strong>Agostinho</strong> faz notar que é a próprianoção de numerositas que rege a relação entre os corporalia e os sentidos do corpo. Ossentidos, ca<strong>da</strong> um deles, e o que eles captam, que serve de deleite ao ser humano, estãodotados de racionali<strong>da</strong>de, de beleza e de ord<strong>em</strong> 316 . A própria metodologia augustiniana316 Não deixa de ser interessante o comentário de Manferdini, para qu<strong>em</strong>, no contexto do que se poderiadesignar por História <strong>da</strong> Estética Medieval, S. Boaventura teria sido o primeiro a ressaltar a positivi<strong>da</strong>dedos sentidos na ascese <strong>da</strong> mente para Deus. Porém, é reconheci<strong>da</strong> a influência de Sto. <strong>Agostinho</strong> na obrado Doutor <strong>Ser</strong>áfico. Os textos que Manferdini traz a colacção – Itinerarium mentis in Deum II, 5; I Sent.,d. I, a III, q. II; De reductione artium ad theologiam, n. 10 - dão test<strong>em</strong>unho disso mesmo [Cf. T.MANFERDINI, Comunicazione ed estetica in Sant’Agostino (Bologna 1995), p. 210-212 ]. Mais do quepara entrar numa querela estéril, este comentário serve para verificar novamente a versatili<strong>da</strong>de doconteúdo <strong>da</strong> obra augustiniana, a qual se presta a hermenêuticas multiformes, muitas vezes direcciona<strong>da</strong>s207


de ascese <strong>da</strong> alma para Deus insiste na positivi<strong>da</strong>de, mais ain<strong>da</strong>, na condiçãoimprescindível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de corpórea e, afinal, de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>, comoitinerário <strong>da</strong> mente para a união com o ser supr<strong>em</strong>o. E, ante a perfeição do real, comoante aquilo que o ser humano, por inépcia, considera ser a disformi<strong>da</strong>de dele, Sto.<strong>Agostinho</strong> insta na função <strong>da</strong> regra lau<strong>da</strong>tória, pois é essa a atitude humana que mais seajusta à de qu<strong>em</strong>, tendo de si um conhecimento coerente, se reconhece como um ser <strong>em</strong>dependência, ocupando, na hierarquia ontológica, um lugar inferior ao do ser supr<strong>em</strong>o.De facto, no horizonte <strong>da</strong> metafísica augustiniana, pode afirmar-se, s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>eri<strong>da</strong>de, quepor to<strong>da</strong> a parte o Universo espelha ord<strong>em</strong> e beleza, etiam in peccata. Os próprios actoshumanos ontologicamente deficitários, b<strong>em</strong> como o sofrimento e a morte, domínios decontra-reali<strong>da</strong>de que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> no cosmos através <strong>da</strong> vontade humana, serv<strong>em</strong> ao serhumano, também, de itinerário para que a mente ascen<strong>da</strong> per corporalia adincorporalia. Afinal, outra não fora a experiência de conversão do próprio Hiponense.É ver<strong>da</strong>de que a proporção e harmonia, presentes na estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, sãojustifica<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong> à maneira neoplatónica, pela superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma racional<strong>em</strong> relação ao corpo. Mas tal facto não permite transformar o Hiponense numintelectualista avant-la-lettre. Com efeito, é precisamente esta noção – a ordo rerum,entendi<strong>da</strong> como hierarquia – que permite compreender os el<strong>em</strong>entos que, na sua obra, sepoderiam enquadrar numa concepção estética do real. É também esta concepção domundo, basea<strong>da</strong> no escalonamento ordenado dos seres e <strong>da</strong>s formas, que dá a entender olugar que <strong>Agostinho</strong> confere às diferentes manifestações do real, to<strong>da</strong>s elas considera<strong>da</strong>scomo dota<strong>da</strong>s de beleza e de racionali<strong>da</strong>de.Assim, a perspectiva de uma justificação estética do mal é supera<strong>da</strong> à luz dosel<strong>em</strong>entos que defin<strong>em</strong> a posição augustiniana ante aquele enigma. Em obras como Delibero arbitrio, De uera religione ou De quantitate animae, tal superação é já notória.<strong>em</strong> sentidos opostos, criando aparentes contradições no interior <strong>da</strong>quela. Assim, uma interpretação <strong>da</strong>estética augustiniana <strong>em</strong> sentido oposto ao de Manferdini pode ler-se v. gr. <strong>em</strong> J. TSCHOLL, Gott und<strong>da</strong>s Schöne beim hl. Augustinus (Herverlee-Leuven, 1967), cujo último capítulo é dedicado à permanenteactuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> concepção augustiniana sobre as relações entre o Belo e o Sacro. Esta divergência deinterpretações, além de uma saudável manifestação de diferença, apela à necesi<strong>da</strong>de de um regresso àleitura do texto de <strong>Agostinho</strong> interpretado, tanto quanto possível, dentro do contexto historiográfico <strong>em</strong>que se insere, sendo um facto que a centrali<strong>da</strong>de que a noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ocupa na sua obra pode lançar luzsobre estes aspectos <strong>da</strong> doutrina do Hiponense.208


Em De libero arbitrio, o filósofo debate explicitamente a objecção de qu<strong>em</strong>considere que o pecado é necessário para que brilh<strong>em</strong> a justiça e a ord<strong>em</strong> divinas,contornando a dificul<strong>da</strong>de por via positiva. Nesse escrito faz notar que não é a reali<strong>da</strong>dedefectível, que se designa por pecado, a que faz resplandecer a justiça do Criador, masas reali<strong>da</strong>des espirituais por Ele cria<strong>da</strong>s, enquanto substâncias dota<strong>da</strong>s de racionali<strong>da</strong>dee de possibili<strong>da</strong>de de escolha 317 . Em De quantitate animae, encerrando o excurso acercados graus de beleza que a alma monta <strong>em</strong> direcção à supr<strong>em</strong>a pulcritude, o filósofoinsiste no facto de o livre arbítrio <strong>da</strong> vontade ter sido confiado à alma humana, nãoobstante a cegueira de muitos se esforçar por negar uma tal reali<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, estacapaci<strong>da</strong>de de escolha foi conferi<strong>da</strong> ao ser humano <strong>em</strong> condições tais que as acções delenão pod<strong>em</strong> perturbar nenhuma parte <strong>da</strong> ordo ou diuina lex 318 . Em De uera religione, porsua vez, a alma humana é considera<strong>da</strong>, <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as situações e disposições, como umb<strong>em</strong> superior a todo o corpo, inserindo-se numa ordenação bela, quer mediante afelici<strong>da</strong>de de que goza, quer através dos castigos de que padece 319 .Assim, s<strong>em</strong> abandonar a sua sensibili<strong>da</strong>de e atracção pelo belo, que caminhará apar dos desenvolvimentos do Hiponense sobre a estrutura relacional do ser, o horizontede um discurso estético como solução para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> vai sendoprogressivamente superado. Dito de outro modo, a estética augustiniana é,paulatinamente, assumi<strong>da</strong> por uma metafísica, integrando-se nela. De facto, é possívelverificar, gradualmente, a identi<strong>da</strong>de entre as categorias de pulchrum e esse,estabelecendo-se uma efectiva comunhão entre estes dois transcendentais, sendoultrapassa<strong>da</strong> pelo filósofo uma concepção de beleza como efeito de uma afecção doespírito humano quando acede, de modo privilegiado, à cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> harmonia que,no Universo, reina entre as partes e o Todo.317 Cf. LA III, IX, 27 ( CCL 29, p. 291). Sto. <strong>Agostinho</strong> refere-se ao castigo devido ao escravo que, porseu pecado, se torna digno de lavar cloacas. Mas o Hiponense agora argumenta por via positiva. Mesmose o escravo não pecasse, tal serviço seria realizado, pois é necessário ao b<strong>em</strong> comum. Não assim opecado do escravo.318 De quant. anim. XXXVI, 80 (CSEL 89, p. 229-230). Note-se que só a partir <strong>da</strong> uera religio, ou seja, apartir de uma compreensão ver<strong>da</strong>deira <strong>da</strong> relação entre o <strong>Ser</strong> e os seres, se pod<strong>em</strong> entender estasreali<strong>da</strong>des.319 Cf. VR XLI, 77 (CCL 32, p. 237-238). A ideia é recorrente na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>. Mas estacondição penal deve entender-se no contexto de quanto ficou dito sobre ela, no Cap. 1, 4: Quid et und<strong>em</strong>alum.209


A designa<strong>da</strong> justificação estética do mal, que assoma nas primeiras soluçõestenta<strong>da</strong>s para equacionar os el<strong>em</strong>entos que integram o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, serádefinitivamente aboli<strong>da</strong> quando Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong>r as noções de forma especies, intimamente associa<strong>da</strong>s ao conceito de beleza. A categoria ontológica <strong>da</strong> formaé crucial, na concepção bíblica <strong>da</strong> Criação, assumi<strong>da</strong> pelo filósofo desde a suaconversão metafísica 320 . É pela noção de forma que explicitará a absoluta contingência<strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de do real e, portanto, a total desnecessi<strong>da</strong>de do Universo e de ca<strong>da</strong> umdos seres que nele se manifestam. Sendo assim, o Hiponense afastar-se-áderradeiramente de to<strong>da</strong> a concepção necessitarista ou determinista sobre a orig<strong>em</strong> doMundo e dos acontecimentos de diversa índole que nele ocorr<strong>em</strong>.A defesa <strong>da</strong> total contingência <strong>da</strong> forma dos seres exigirá que Sto. <strong>Agostinho</strong>sustente a permanência eterna <strong>da</strong> forma junto de um Princípio de <strong>Ser</strong> e de Ver<strong>da</strong>de,identificado com o Verbo ou Sabedoria divina. A metafísica cristã <strong>da</strong> Criação constróise,precisamente, na obra de <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> torno do ensaio de compreensão do modocomo se relacionam o Verbo Eterno, Princípio per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt, e o seres quepreench<strong>em</strong> o Universo. Uma vez que a forma de ca<strong>da</strong> ser é entendi<strong>da</strong> comomanifestação <strong>da</strong> presença de uma sabedoria superna e divina, nenhuma expressão deforma é desprezível e to<strong>da</strong>s são capazes de conduzir a razão que sobre elas reflicta aoprincípio de Uni<strong>da</strong>de que sustenta ca<strong>da</strong> forma no ser e no agir.320 Com esta expressão quer<strong>em</strong>os designar o facto de todo o ser de <strong>Agostinho</strong> ter sido submetido a umaefectiva mu<strong>da</strong>nça, e não apenas o conjunto de categorias mentais que identificava como o Absoluto, noperíodo de adesão quer ao maniqueísmo, quer ao cepticismo. Este facto – a convulsão <strong>da</strong> própriaexistência, operado no ser de <strong>Agostinho</strong> – fica patente pela leitura de Confessionum. O termo conuersiopara designar esse processo de mutação é precisamente uma <strong>da</strong>s pedras de toque <strong>da</strong> metafísicaaugustiniana que o coloca <strong>em</strong> directa relação com a noção de formatio. Estes dois cardinais integram,ain<strong>da</strong>, o t<strong>em</strong>po e a historici<strong>da</strong>de, indissociáveis <strong>da</strong> condição criatural, permitindo falar de uma reformatio<strong>da</strong> existência humana. A.-M. VANNIER estudou o carácter axial <strong>da</strong> trilogia creatio, conuersio, formatio,o qual se pode aplicar também ao percurso biográfico de <strong>Agostinho</strong>. A leitura de Hadot sugere o sentidode uma conversão cabal <strong>da</strong> existência, identifica<strong>da</strong> com a prática <strong>da</strong> uera sophia, ao estabelecer uma clarafronteira entre o efeito de conversão operado <strong>em</strong> <strong>Agostinho</strong> pela leitura dos Platonicorum e aquele outro,realizado pela leitura de S. Paulo: “(...) [ la lecture des libri platonicorum] ne suffit à lui donner l’énergi<strong>em</strong>orale nécessaire pour vivre d’une vie vraiment philosophique. Seule la lecture de saint Paul et laconversion que la suivra réaliseront cette transformation de son être. » ( P. HADOT, MariusVictorinus…., p. 202).210


Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>pregará com frequência o termo uestigia para referir a presençado Verbo Eterno nas formas corpóreas, enquanto para referir a relação deste princípiocom a forma humana reservará a condição de imago Dei. Porém, <strong>da</strong>do que adependência ontológica de ca<strong>da</strong> forma significa que ela está mais presente no PrincípioCriador do que este está presente nela, a mente humana, para aceder a uma compreensãode ca<strong>da</strong> forma, deve perspectivar a reali<strong>da</strong>de não a partir de si mesma, mas a partir dopróprio Verbo Eterno, Sabedoria Artífice do Universo. Só desde esse horizonte deuniversali<strong>da</strong>de é <strong>da</strong>do ao ser humano entender ca<strong>da</strong> forma e a harmonia que, entre elas,se entretece, compreendendo o lugar próprio de ca<strong>da</strong> uma na hierarquia ontológica. Só apartir deste conhecimento íntimo <strong>da</strong> estrutura do Universo ca<strong>da</strong> ser humano poderá agirrectamente sobre o Mundo e louvar a beleza do conjunto, construindo a sua própriaforma de modo ordenado.Se <strong>em</strong> De ordine a concepção augustiniana de harmonia está ain<strong>da</strong> d<strong>em</strong>asiadopróxima de um sentido de ord<strong>em</strong> que identifica esta noção com a arrumação de seres,princípio extrínseco à forma de ca<strong>da</strong> um deles e à relação que eles estabelec<strong>em</strong> com oPrincípio de <strong>Ser</strong>, num escrito como De uera religione é já possível falar de uma estéticapositiva ou, na expressão de H. U. Von Balthasar, mais ajusta<strong>da</strong> à concepçãoaugustiniana de beleza, de uma estética superior que dialoga com uma estéticainferior 321 . Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera ser possível aceder à cont<strong>em</strong>plação doCriador por meio dos uestigia. Porém, o filósofo não privilegiará este percurso, n<strong>em</strong> noseu itinerário para a dedução <strong>da</strong> existência de um princípio de ser e de inteligibili<strong>da</strong>desuperior à razão e transcendente ao Mundo, n<strong>em</strong> na sua concepção <strong>da</strong> fruição do Belo,como termo <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do sábio. To<strong>da</strong>via, não nega a legitimi<strong>da</strong>de de uma tal321 Esta distinção de Hans Urs Von Balthasar, basea<strong>da</strong> na diferença estabeleci<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> entre umapulchritudo ima/summa, é adequa<strong>da</strong> à concepção augustiniana de beleza, a qual se integra numa visão domundo onde os seres se dispõ<strong>em</strong> hierarquicamente: “ Der Weg Augustins, den manseine Bekehrung nenntund der viele Stadien umfaβt, ist weniger als alle übrigen paradigmatischen “Wendungen” eine solchevom “Ästhetischen” zum “Religiösen”, vielmehr in ihrer entscheidenden Artikulation eine solche von derniedern zu höchste Äesthetik” [Cf. U. VON BALTHASAR, Herrlichkeit. Eine theologische Äesthetik.Band II. Teil 1 (Einsiedeln 1984), p. 97]. Em De uera religione tal concepção de beleza e <strong>da</strong> percepçãoestética do Universo comprova-se facilmente. Sto. <strong>Agostinho</strong> declara a dependência ontológica dos seres<strong>em</strong> relação ao <strong>Ser</strong> mediante a Sabedoria, Artífice do Universo, que é o Verbo Eterno de Deus. Por isso, asinúmeras referência à beleza do Universo surg<strong>em</strong> <strong>em</strong> directa conexão com aquele Princípio de Reali<strong>da</strong>de.Há beleza nas reali<strong>da</strong>des ínfimas e nas mais eleva<strong>da</strong>s. Entre estas, destaca-se a mente do homo interior.Porém, este considerará justamente que <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as manifestações de ser é a ord<strong>em</strong> que garante a beleza.211


trajectória, mais ain<strong>da</strong>, sublinha-a, recorrendo à autori<strong>da</strong>de de S. Paulo, sobretudo àhora de recor<strong>da</strong>r que a Uni<strong>da</strong>de do Princípio é irrefragável e inerente a to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>decognitiva, motivo pelo qual é totalmente desprovi<strong>da</strong> de sentido a atitude politeísta,própria <strong>da</strong> gentili<strong>da</strong>de.A expressão paulina per ea quae facta sunt intellecta conspicitur, retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>Epístola aos Romanos 1, 20, torna-se um refrão nos escritos augustinianos, s<strong>em</strong>pre queo filósofo se propõe construir um itinerário possível <strong>da</strong> mente para Deus. A mesmaexpressão parece ter feito parte do momento <strong>da</strong> conversão metafísica de <strong>Agostinho</strong>, talcomo é relatado <strong>em</strong> Confessionum 322 . Na óptica do Hiponense não é outra a causa queinviabiliza o acesso <strong>da</strong> mente a uma estética religiosa ou a uma relação com a Dei<strong>da</strong>de<strong>da</strong> qual não se ausenta a percepção <strong>da</strong> beleza: a perversão do coração, a adesão dele àspaixões carnais, não pela essencial malícia <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de corpórea, mas pela intrínsecadesord<strong>em</strong> gera<strong>da</strong> quando a mente adere a uma reali<strong>da</strong>de que lhe é inferior. De facto,n<strong>em</strong> o coração, sede do amor, também considerado na sua dimensão afectiva, n<strong>em</strong> ocorpo e a carne, são, <strong>em</strong> si mesmos, malévolos. Para <strong>Agostinho</strong>, o que inviabiliza umapercepção <strong>da</strong> beleza supr<strong>em</strong>a e a comunhão plena do ser humano, como um todo,também com o seu corpo e os afectos <strong>da</strong> sua alma, com o ser divino, é a paixão oucorrupção <strong>da</strong> mente: a desord<strong>em</strong> ou auaritia <strong>da</strong> vontade 323 .Na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>, a passag<strong>em</strong> de uma estética inferior a uma estéticasuperior é cont<strong>em</strong>porânea <strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong> função privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente humana na viade acesso à compreensão <strong>da</strong> relação entre o Uno e o Múltiplo, ou entre Deus e a alma,pela qual o filósofo considera ser possível alcançar de forma efectiva o conhecimento <strong>da</strong>322 Conf. VII, X, 16: « (...) Et audiui, sicut auditur in corde, et non erat prorsus, unde dubitar<strong>em</strong>faciliusque dubitar<strong>em</strong> uiuere me quam non esse ueritat<strong>em</strong>, quae per ea, quae facta sunt, intellectaconspicitur. » (CCL 27, p. 104).323 Para além de proclamar a bon<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as criaturas, sobretudo alongando os seus comentários àexpressão de Genesis ‘bona ualde’, mesmo <strong>em</strong> contexto de controvérsia é possível encontrar Sto.<strong>Agostinho</strong> indicando um caminho para o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, no seio <strong>da</strong>quilo que considera erro, desde que àmarg<strong>em</strong> <strong>da</strong> perversão do coração, como se lê, v. gr., <strong>em</strong> Contra Faustum XXI, 6: “ (...) si ergo cor nonperuersum atque corruptum uanis fabulis haberetis, inuisibilia enim eius etiam per ista, quae in hac infimaet carnali creatura facta sunt, intellecta conspiceretis.” (CSEL 25/1, p. 575); ou, evidenciando novamentea causa de não ascender à cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des supernas e, portanto, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> - a qual t<strong>em</strong> a suaexpressão mais sublime na compreensão <strong>da</strong> essência Una e Trina <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de -, <strong>em</strong> Contra Maximinum II,3: “ (...) corruption<strong>em</strong> de medio tollite, passiones carnales a lumine mentis abiicite, et inuisibilia dei, perea quae facta sunt, intellecta conspicite.” (PL 42, 772 ).212


elação que as formas corpóreas estabelec<strong>em</strong> com o Princípio do qual depend<strong>em</strong>. Estefacto evidencia-se <strong>em</strong> De quantitate animae 324 . Aí, tal como <strong>em</strong> De ordine, mas, agora,num contexto <strong>em</strong> que o ensino é analisado como um acto <strong>da</strong> alma – e não apenasreferido na sua dimensão extrínseca, como um ror de disciplinas a cuja ordenação amente se há-de dedicar –, enumeram-se degraus que a alma deve superar na elevaçãopara Deus <strong>em</strong> função de uma aprendizag<strong>em</strong> que, afinal, t<strong>em</strong> por objectivo o próprio sersupr<strong>em</strong>o, neste caso enquanto ápice de beleza. Por isso, tal ascese é analisa<strong>da</strong> desdeuma perspectiva estética que se executa ou mediante uma tarefa progressiva deinteriorização, ou mediante a percepção do belo, sendo as duas vias sinónimas. Oregressus animae aqui proposto é idêntico a um percurso de ascese de uma beleza ima auma pulcritude supr<strong>em</strong>a 325 .Sto. <strong>Agostinho</strong> não pode deixar de considerar a beleza imensa do Universo que,justamente por ser obra do Verbo Eterno, está absorto na mais plena inteligibili<strong>da</strong>de ereflecte uma ordenação absolutamente magnífica, devendo encarar-se o conjunto dosseres uelut magnum carmen: como um imenso po<strong>em</strong>a, dotado de sentido e d<strong>em</strong>usicali<strong>da</strong>de. A atitude humana que entra <strong>em</strong> consonância com esta plenitude de ord<strong>em</strong>é o louvor, regra de pleno acerto na compreensão <strong>da</strong> forma dos entes, namultiplici<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de que os caracterizam e <strong>da</strong> recta disposição deles nahierarquia ontológica 326 .Desde a perspectiva augustiniana, é a própria estrutura do cosmos, na diversi<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s suas formas, que apela à percepção <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de, a qual é indissociável <strong>da</strong> apreciação324 Cf. De quant. anim. XXXVI, 79 (CSEL 89, p. 228-229).325 Uma vez mais, também neste aspecto é certeira a interpretação de Von Balthasar: “ Gewiβ wir<strong>da</strong>ugustinu auch aus der Schönheit und Ordnung der Welt aufsteigen zur ewigen Schönheit. Aber liebernoch sieht er im Lichte der Schönheit Gottes die Schönheit der Welt, die sich d<strong>em</strong>, der Gott lieb,enthülllt”. ( H. U. VON BALTHASAR, op. cit., p. 102). O A. cita o texto de LA II, XLV, onde Sto.<strong>Agostinho</strong> refere o encontro que se realiza entre a mente humana e a Sabedoria divina, mediante estadescoberta <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ou Beleza divina na ord<strong>em</strong> do cosmos. Assim se evidencia como, para o Hiponense,a multiplici<strong>da</strong>de do Mundo não se pode compreender s<strong>em</strong> a Uni<strong>da</strong>de de Deus e a Luz <strong>em</strong>ana<strong>da</strong> do <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, através do Verbo Eterno, per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt.326 Em De libero arbitrio encontra-se como estribilho o apelo a uma regra lau<strong>da</strong>tória. Veja-se, v. gr., LAIII, XVI, 46: « (...) Si enim iuste defenditur, non est peccator; lau<strong>da</strong> ergo creator<strong>em</strong>; si aut<strong>em</strong> defendi nonpotest, in tantum peccator est in quantum a creatore se auertit; lau<strong>da</strong> ergo creator<strong>em</strong>. » (CCL 29, p. 302-303); V., também, VR XLI, 77 ( CCL 32, p. 237-238); De gen. cont. Manich. I, XVI, 26 ( PL 34, 186:CSEL 91, p. 92-94).213


<strong>da</strong> beleza <strong>da</strong>quelas. Efectivamente, na obra do Hiponense é notória a insistência narecondução do princípio de <strong>Ser</strong> e de Inteligibili<strong>da</strong>de desde o Múltiplo até à Uni<strong>da</strong>de,sendo adoptado, para compreensão <strong>da</strong> hierarquia ontológica, o princípio neoplatónico <strong>da</strong>seriação dos seres segundo graus de vi<strong>da</strong> ou activi<strong>da</strong>de: esse, uiuere, intellegere. O graude vi<strong>da</strong> onde se encontra a convergência dos três - a saber, a alma racional -merece aespecial atenção de Sto. <strong>Agostinho</strong>, precisamente pela excelência que tal forma ocupana hierarquia ontológica. Mesmo quando o filósofo procura identificar, nas suasprimeiras obras, as proprie<strong>da</strong>des e a essência <strong>da</strong> alma racional – interrogando sobre aimortali<strong>da</strong>de dela, a relação que estabelece com o corpo e com a estrutura <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de –, é a tendência à Uni<strong>da</strong>de que s<strong>em</strong>pre surge reforça<strong>da</strong>.Esta aparente obsessão de Sto. <strong>Agostinho</strong> pela Uni<strong>da</strong>de é compreensível, <strong>da</strong><strong>da</strong> aconsciência que o Hiponense t<strong>em</strong> do carácter redutor, pernicioso para a mente eabsurdo, porque perverso <strong>em</strong> face <strong>da</strong> estrutura do real, <strong>da</strong>quilo que, com frequência,designa por fabulações maniqueístas. Com efeito, de um modo ou de outro, é o espectrodo dualismo maniqueu que se identifica como pano de fundo de obras como De liberoarbitrio, De uera religione, De moribus ecclesiae catholicae et de moribusManichaeorum ou De genesi contra Manichaeos 327 . Mas a mesma tendência,alimenta<strong>da</strong> pela proposta neoplatónica de identificação entre a alma e o Uno através deum movimento de interiorização, regressivo e catártico, já se encontra presente quer nosescritos do período de Cassicíaco, quer naqueles do designado segundo período romano,no qual se integra a feitura, parcelar ou na íntegra, de algumas <strong>da</strong>s cinco obras supramenciona<strong>da</strong>s.De facto, logo na Dedicatio de De ordine, <strong>Agostinho</strong> apela à própria etimologiado termo uniuersum: assim se designa pela presença do unum, para o qual tende tudo oque nele existe 328 . Ora, a compreensão do concerto e ord<strong>em</strong> universais exigirá umesforço adequado <strong>da</strong> mente, que corresponde a um labor direccionado <strong>em</strong> função <strong>da</strong>327 S. Paulino de NOLA, que recebera de Alípio estes cinco escritos, refere-se-lhes com a expressivadesignação de "pentateuco anti-maniqueu": “(...) ideoque cum hoc Pentateucho tuo contra Manichaeosme satis armaueris, si qua in alios quoque hostes catholicae fidei munimina comparasti, quia hostis noster,cui mille nocendi artes, tam uariis expugnandus est telis, quam oppugnat insidiis, quaeso promere mihi dearmamentario tuo et conferre non abnuas arma iustitiae.” [ Ep IIII, 2: CSEL 29, p. 21 ( Guilelmus DEHARTEL, 1994); Ep. 25, 2 Aug:CSEL 34/1, p. 79: it.n.].328 Cf. DO I, I-III ( CCL 29, p. 89-90). V., também, De gen. cont. Manich. I, XXI, 32 ( PL 34, 189 ;CSEL 91, 100-101).214


uni<strong>da</strong>de, onde quer que ela se manifeste. Se a mente o fizer, ser-lhe-á <strong>da</strong>do cont<strong>em</strong>plar abeleza supr<strong>em</strong>a. Pelo contrário, se, incapaz de atingir o cume <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de, se ficar pelaparte e a confundir com o Todo, a mente humana erra e desfeia a sua própria natureza.To<strong>da</strong>via, a pulcritude do conjunto permanece intacta.O Hiponense insistirá nesta adesão <strong>da</strong> mente à Uni<strong>da</strong>de do Todo e à compreensãodo Mundo como totali<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong>, como forma de uma primeira via de apreensão<strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ordo rerum, porventura a mais acessível à totali<strong>da</strong>de dos sereshumanos, <strong>da</strong><strong>da</strong> a dependência deste percurso <strong>em</strong> relação à percepção <strong>da</strong>s formas doscorpos, a qual é adequa<strong>da</strong> à estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de humana. A proposta neoplatónicadisponibilizava um conjunto de categorias favorável a esta justificação do Múltiplo <strong>em</strong>função de um princípio de Uni<strong>da</strong>de, e Sto. <strong>Agostinho</strong> aproveita-o. Porém, o modo comoo neoplatonismo considera a natureza <strong>da</strong>s hipóstases, integrando-as na hierarquiaontológica, não lhe permite que possa estabelecer, com base <strong>em</strong> tais categorias, aidenti<strong>da</strong>de entre o Uno, o <strong>Ser</strong> e o Inteligível. O filósofo apercebe-se de que estaidenti<strong>da</strong>de é imprescindível para justificar a dependência ontológica do Múltiplo <strong>em</strong>relação ao Uno, preservando a diferença entre ambos os níveis ônticos. A construção deum conjunto de argumentos que aponte nesta direcção será progressiva, na sua obra, nãoobstante o filósofo a tomar como ver<strong>da</strong>deira já <strong>em</strong> De quantitate animae, ao afirmar queDeus é Criador e Governador soberano, não abandonando, <strong>em</strong> nenhum dos seus actos,as reali<strong>da</strong>des por ele cria<strong>da</strong>s, n<strong>em</strong> no castigo, n<strong>em</strong> no prémio, tendo instaurado amultiplici<strong>da</strong>de dos modos de ser e a diversi<strong>da</strong>de deles como el<strong>em</strong>entos que concorr<strong>em</strong>precisamente para que, a um olhar de conjunto, seja impossível encontrar, no Universo,qualquer disformi<strong>da</strong>de 329 .Assim, progressivamente, a designa<strong>da</strong> justificação estética do mal que, <strong>em</strong> Deordine, se apresenta com carácter inconcusso, vai sendo substituí<strong>da</strong> por uma submissãodo mal à mesma ord<strong>em</strong> à qual se sujeitam to<strong>da</strong>s as formas de ser. O mal é adisformi<strong>da</strong>de e essa enigmática noção corresponde, afinal, a uma expressão menor debeleza, forma, ou ord<strong>em</strong>. Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebe-se de que o critério estético de329 De quant. anim. XXXVI, 80 : « Deus igitur summus et verus lege inviolabili et incorrupta, qua omnequod condidit regit, subicit animae corpus, animam sibi et sic omnia sibi neque in ullo actu eam deseritsive paena sive pra<strong>em</strong>io. Id enim iudicavit esse pulcherrimum, ut esset, quicquid est, quomodo est, et itanaturae gradibus ordinaretur, ut considerantes universitat<strong>em</strong> nulla offenderet ex ulla parte deformitasomnisque animae poena et omnium pra<strong>em</strong>ium conferret s<strong>em</strong>per aliquid proportione iustae pulchritudinidispositionique rerum omnium (…). » (CSEL 89, p. 229).215


justificação do mal é consequência de uma hermenêutica do Universo centra<strong>da</strong> no serhumano e na capaci<strong>da</strong>de que este t<strong>em</strong> de compreender o cosmos, por meio <strong>da</strong>sfacul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente. O fun<strong>da</strong>mento de uma tal mundividência é a estrutura <strong>da</strong> almahumana enquanto capaz de elaborar um sist<strong>em</strong>a de compreensão a partir <strong>da</strong> percepçãosensível.Plotino entendia a modo de representação a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e a relaçãoque elas estabelec<strong>em</strong> com o Universo, apresentando-se este como um espectáculo noqual são artistas todos os seres onde a matéria se mescla. O grande espectador é a Almado Mundo, Princípio no qual a razão universal delega a organização do mundo material.Tal Princípio, à maneira de um encenador de marionetas, utiliza a diferença entre asformas para produzir um espectáculo belo e harmonioso, mesmo se o diferente é um serdotado de liber<strong>da</strong>de e capaz de produzir contrastes. Os contrastes e conflitos tornam-se,assim, necessários para a perfeição do conjunto, não obstante a lei dessa necessi<strong>da</strong>detranscender a capaci<strong>da</strong>de de compreensão que dela possam ter as razões individuais. Noesforço por fazer compreender esta sua forma de conceber o Mundo comorepresentação, Plotino socorre-se de metáforas. Entre outras, encontra-se, na obra doAlexandrino, a imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de personagens como o carrasco ou asprostitutas para o concurso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de b<strong>em</strong> ordena<strong>da</strong>, assim como o recurso ànecessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cor negra no quadro, que torna possível a percepção <strong>da</strong> figura e equilibraa harmonia pictórica mediante o jogo de luz e sombras.Sto. <strong>Agostinho</strong>, por seu turno, se adere às metáforas, altera-lhes a fun<strong>da</strong>mentaçãoe, com ela, o sentido. Tal como a cor negra numa pintura se faz bela no conjunto, assimtambém todo o combate que o ser humano trava está regulado pela providência divina,que distribui funções diferentes aos que realizam diferentes papéis no conjunto. OHiponense procurará, acima de tudo, justificar a presença do mal no Mundo,identificando-lhe a causa: o pecado ou decaimento no ser, corresponde ao afastamentovoluntário do ser humano ab summa essentia.Assim, se há s<strong>em</strong>elhança entre Plotino e <strong>Agostinho</strong> no <strong>em</strong>prego <strong>da</strong>s metáforas, ocontexto, mormente para a justificação do mal e <strong>da</strong> forma dos entes, é inteiramenteoutro. Se, para Plotino, a própria multiplici<strong>da</strong>de era entendi<strong>da</strong> como decadência edefeito, a metafísica augustiniana proclama o louvor <strong>da</strong> diferença e do múltiplo,qualquer que seja a sua expressão. To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de é <strong>em</strong> si mesma boa, enquantomanifestação de ser, não estando ao alcance de nenhuma substância cria<strong>da</strong> a aniquilação<strong>da</strong> existência. Por isso, o vício e o pecado são integrados e relativizados <strong>em</strong> face de um216


mundo que é plenitude de bon<strong>da</strong>de, sendo esta s<strong>em</strong>pre excedente. A Criação não éque<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> degra<strong>da</strong>ção, n<strong>em</strong> pecado. Este dá-se, efectivamente, no âmbito <strong>da</strong> Criação,como um fenómeno posterior à manifestação de uma nova forma de ser e s<strong>em</strong>pre sujeitoao Princípio Único de ser e de bon<strong>da</strong>de, nunca afectando, portanto, a totali<strong>da</strong>de dosseres, mas apenas aquele ser <strong>em</strong> particular que se afasta, voluntariamente, <strong>da</strong> essênciasupr<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> direcção a uma outra essência a qual, compara<strong>da</strong> com aquela, serácertamente ínfima, mas nunca nula. Em De ciuitate dei, a metáfora volta a estarpresente, mas desta vez para sublinhar a feal<strong>da</strong>de do pecado, <strong>em</strong> si mesmoconsiderado 330 . To<strong>da</strong>via, pela situação do mal, s<strong>em</strong>pre relativa e dependente, quandoconfronta<strong>da</strong> com um princípio Uno de <strong>Ser</strong> e de Ver<strong>da</strong>de, a beleza e a ordenação doconjunto não é afecta<strong>da</strong>.O Filósofo de Hipona cedo se apercebe de que a beleza está indissociavelmenteuni<strong>da</strong> à estrutura dos seres e integra<strong>da</strong> na ord<strong>em</strong>, sendo esta entendi<strong>da</strong> na expressão –ain<strong>da</strong> débil, para revelar to<strong>da</strong> a força <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong> – <strong>da</strong> congruênciaentre as partes e o Todo. Dependendo, no ser e no agir, de um Princípio Uno que, nãoobstante transcender to<strong>da</strong>s as formas, está presente, de modo imanente, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> umadelas, a beleza será distribuí<strong>da</strong> gradualmente pelos distintos modos de ser 331 . Maior é a330 Cf. De ciu. dei XI, XXIII ( CCL 48 p. 341-343).331 Em De genesi ad litteram libri XII, Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong>, numa exposição complexa, estapermanência do ser divino <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s. Imutável <strong>em</strong> si mesma, a Sabedoria divina estápresente <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as suas obras, mantendo-as no ser (cf. De gen. ad litt. V, XX, 40: CSEL 28/1, p. 163-165), activi<strong>da</strong>de que, na criatura espiritual, assume a forma de um chamamento a realizar um movimentode conversão e de formação ( cf. De gen. ad litt. I, V: CSEL 28/1, p. 8-10). Ao contrário de outrasconcepções de Deus-Artífice presentes na Antigui<strong>da</strong>de - que Sto. <strong>Agostinho</strong> resume, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> Degen. ad litt. V, XX -XXII ( CSEL 28/1, p. 164-167) - a especifici<strong>da</strong>de deste Deus é <strong>da</strong>r ser. Por esse facto,caso ele retirasse a sua presença <strong>da</strong>s criaturas, estas reverteriam ao na<strong>da</strong>: “ (...) Vnde aut<strong>em</strong> ista penitusdetraxeris, nihil omnino r<strong>em</strong>anebit, quia etsi r<strong>em</strong>anserit aliqua formae alicuius inchoatio, ubi nequ<strong>em</strong>ensuram neque numerum neque ordin<strong>em</strong> inuenias - quia ubicumque ista sunt forma perfecta est -,oportet auferas etiam ipsam inchoation<strong>em</strong> formae, quae tamquam materies ad perficiendum subiacereuidetur artifici.” ( LA II, XX, 54: CCL 29, p. 273). O fun<strong>da</strong>mento do ser, <strong>da</strong> beleza, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de é, precisamente, esta acção divina permanente, a presença continua<strong>da</strong> do <strong>Ser</strong> divino nas obraspor ele mesmo realiza<strong>da</strong>s s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, com elas se identificar ou, com elas, se tornar mutável. Talpermanência compreende-se, de algum modo, através <strong>da</strong> noção augustiniana de rationes causales e <strong>da</strong>função mediadora do Verbo, na Criação. A todo o custo, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita de ratificar esta relaçãode presença eterna do <strong>Ser</strong> nos seres, por exigência dos supostos <strong>da</strong> sua metafísica. O ser <strong>da</strong>s criaturas édom divino, absolutamente contingente e desnecessário, como se lê <strong>em</strong> De gen. ad litt. I, 5, 11: “ (...)217


eleza dos seres dotados de mais perfeição, a saber, a <strong>da</strong>s substâncias racionais, esupr<strong>em</strong>a a beleza de Deus. Ínfima é a beleza de to<strong>da</strong>s as formas corpóreas, mesmo asdos seres mais pequeninos e, inclusivamente, a <strong>da</strong>s expressões de ser atómicas e maisel<strong>em</strong>entares.Sto. <strong>Agostinho</strong> baliza a sua metafísica entre o <strong>Ser</strong> que maximamente é – o Uno,ou, melhor dito, a Uni<strong>da</strong>de -, e tudo quanto dele depende: as múltiplas formas deexistência. Não havendo lugar para a subsistência <strong>da</strong>s trevas ou para a consistência deum princípio de reali<strong>da</strong>de intrinsecamente malévolo – o summum malum, que oHiponense refere <strong>em</strong> Contra Epistulam Manichaei quam uocant Fun<strong>da</strong>menti e que, nainest enim deo benignitas summa et sancta et iusta et qui<strong>da</strong>m non ex indigentia, sed ex beneficientiaueniens amor in opera sua.” ( CSEL 28/1, p. 9). V. também, I, 8; I, 18: CSEL 28/1, p. 11; p. 26-27). Se oPrincípio de <strong>Ser</strong> lhes retirasse o alento, seriam reconduzi<strong>da</strong>s ao na<strong>da</strong>: “ (...) Sic ergo cre<strong>da</strong>mus uel, sipossumus, etiam intellegamus usque nunc operari Deum, ut, si conditis ab eo rebus operatio eiussubtrahatur, interci<strong>da</strong>nt” ( De gen. ad litt. V, 20: CSEL 28/ 1, p. 163). Sobre a complexa noção deprouidentia, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a concebe à luz <strong>da</strong> sua interpretação do Genesis, v. A. SOLIGNAC“ Administratio: motion divine et providence”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saint Augustin48, p. 676-680. A questão articula-se com a noção augustiniana de Sapientia-Artifex, como se lê v.gr. <strong>em</strong>De octo quaest. ex ueterii testamento I: “(...) Sic omnis creatura et ipse homo qui eiusd<strong>em</strong> sapientiaepersonam mystice et inenarrabili susceptione gestaturus erat, in ipsa sapientia tamquam dei artes<strong>em</strong>piterna s<strong>em</strong>per erat, quamuis suis quaeque t<strong>em</strong>poribus efficiat, quae pertendit a fine usque ad fin<strong>em</strong>fortiter et disponit omnia suauiter, quae in se manens innouat omnia.” ( CCL 33, p. 469). A feitura douniverso por Deus supõe a subsistência dele na Vi<strong>da</strong> Eterna de Deus, tal como o artista que pinta umquadro transporta <strong>em</strong> si mesmo a obra realiza<strong>da</strong>, apenas necessitando do t<strong>em</strong>po oportuno para a executar.A mesma ideia de uma presença com anteriori<strong>da</strong>de e superiori<strong>da</strong>de ontológicas sobre a existênciacorpórea e visível pode ler-se <strong>em</strong> In Iohan. Ev. Tract. I, 17: “ (…) Sic ergo, fratres carissimi, quiasapientia dei, per quam facta sunt omnia, secundum art<strong>em</strong> continet omnia, antequam fabricet omnia; hincquae fiunt per ipsam art<strong>em</strong>, non continuo uita sunt, sed quidquid factum est, uita in illo est. Terram uides:est in arte terra; caelum uides: est in arte caelum. Sol<strong>em</strong> et lunam uides: sunt et ista in arte. Sed foriscorpora sunt; in arte uita sunt.” ( CCL 36, p. 10). Ibid. III, 4: “(...) quod factum est, non est uita; sed inarte, hoc est, in sapientia dei, antequam fieret, uita erat.” (CCL 36, p. 22). Por isso, o conhecimento destaperfeição <strong>da</strong> obra na Vi<strong>da</strong> Divina é mais perfeito do que o conhecimento <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des tal como sãopercepciona<strong>da</strong>s pelos sentidos ou mesmo pelo exercício especulativo, próprio <strong>da</strong> scientia [De ciu. dei XI,VII: “ (...) Cognitio quippe creaturae in se ipsa decoloratior est, ut ita dicam, quam cum in Dei sapientiacognoscitur, uelut in arte qua facta est.”: CCL 48, p. 327. V. também, XI, XXIX: CCL 48, p. 349]. Só amente humana, no seu ápice, enquanto imago Dei e na relação que pode estabelecer com a sapiênciadivina, mediante o Verbo, pode alcançar uma perspectiva recta sobre a ordo rerum. Por conseguinte, énesse gume <strong>da</strong> mente que se descortina o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, de modo enigmático no curso dos t<strong>em</strong>pose de modo pleno na uisio dei, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> coloca a fasquia <strong>da</strong> sabedoria humana.218


mundividência maniqueísta, é considerado como a enti<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>dora do Múltiplo 332 –,to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de está dota<strong>da</strong> de beleza e bon<strong>da</strong>de, pois <strong>em</strong> tudo se manifestam os trêsel<strong>em</strong>entos que garant<strong>em</strong> a presença vestigial do Princípio: ordo, mensura, numerus, e asd<strong>em</strong>ais variantes desta trilogia, que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> na sua obra 333 .To<strong>da</strong>via, pela íntima articulação entre estas duas categorias ontológicas, a beleza ea bon<strong>da</strong>de, e as facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente humana - no caso, a inteligência e a vontade –, obelo torna-se objecto de desejo. Tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a concebe, a hierarquiaontológica anula, precisamente, a indiferença entre os seres, estabelecendo umavaloração qualitativa para as formas deles; e <strong>da</strong>do que a mente humana ocupa, nagra<strong>da</strong>ção dos seres, um lugar intermédio, e que a beleza dela é superior à do corpo, queela própria rege, a mente humana participará ou <strong>da</strong> beleza superior, ou <strong>da</strong> ínfima, deacordo com as reali<strong>da</strong>des a que entregar o seu desejo de posse. Em função do modocomo exerce a sua vontade própria, o ser humano será, então, colocado no lugar que lhecorresponde na disposição dos seres, de acordo com as reali<strong>da</strong>des a que adere mediantea sua vontade livre. Por isso, a ordenação do Universo nunca é afecta<strong>da</strong> pela feal<strong>da</strong>de oudisformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente racional que decide amar reali<strong>da</strong>des inferiores ao seu própriomodo de ser, identificando-se, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, com elas. De modo imediato, tal menteé r<strong>em</strong>eti<strong>da</strong> para o seu lugar próprio na ord<strong>em</strong>, não ferindo n<strong>em</strong> a harmonia do conjunto,n<strong>em</strong> a beleza do universo.332 Cf. v. gr., Contra Ep. Fund. XXVII ( CSEL 25/1, p. 226-228).333 Sto. <strong>Agostinho</strong> assimila esta trilogia à sua metafísica a partir do versículo bíblico de Sap. 11: 21:“Omnia in mensura, numero, pondere disposuisti”. Pode consultar-se, a este respeito, a tabela sinópticaorganiza<strong>da</strong> por A.-M. LA BONNARDIÈRE, <strong>em</strong> Biblia augustiniana, A. T., Le livre de la Sagesse. (Paris1970), p. 295-297. Esta tríade é de recurso frequente na obra do Hiponense ou nesta exacta formulação,ou <strong>em</strong> outras que lhe são sinónimas. O Hiponense serve-se deste versículo - e <strong>da</strong>s variantes que elepróprio elabora sobre o texto bíblico – para assinalar a criação do Mundo por parte de um Deus- Artífice,insinuando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a natureza trinitária dele. Um esforço de esqu<strong>em</strong>atização destas trilogias naobra do Hiponense pode ler-se <strong>em</strong> M. BETTETTINI, La misura delle cosa. Struttura e modelidell’universo secondo Agostino d’Iponna (Milano, 1994), p. 127-146. A obra DE O. DU ROY,L’intelligence de la foi <strong>da</strong>ns la Trinité..., p. 279-297 ; p. 380-388, não obstante fixar o limite <strong>da</strong>investigação no ano 391, apresenta os el<strong>em</strong>entos essenciais deste passo bíblico na relação com osulteriores desenvolvimentos <strong>da</strong> metafísica augustiniana, sobretudo no que se refere à noção de Trin<strong>da</strong>de.V., também, o artigo de W. BEIERWALTES, “Augustins Interpretations von Sapientia 11, 21”: Revuedes études augustiniennes 15 (1969), 51-61.219


Assim, <strong>em</strong> parte alguma de um universo criado por um ser que é beleza supernapod<strong>em</strong> existir el<strong>em</strong>entos de absoluta feal<strong>da</strong>de, mesmo se a mente humana não é capazde captar tal beleza ou de compreender a utili<strong>da</strong>de que, nesse conjunto, está à belezaínfima 334 . A integração <strong>da</strong> estética na metafísica do Hiponense ro<strong>da</strong>, pois, sobre o eixo<strong>da</strong> concepção bíblica-cristã de creatio. Os pares pulchrum/ aptum que, já <strong>em</strong> De pulchroet apto, não eram considerados antinómicos, mas compl<strong>em</strong>entares <strong>em</strong> face de umabeleza do Todo são, à luz <strong>da</strong> noção bíblica de Criação, integrados numa concepção maisampla de ord<strong>em</strong>.Assim, nos comentários de Sto. <strong>Agostinho</strong> ao Livro do Génesis, tal como surg<strong>em</strong>,por ex<strong>em</strong>plo, nos últimos Livros de Confessionum, <strong>em</strong> De Genesi contra Manicheos ou<strong>em</strong> De Genesi ad litteram duodecim libri, o filósofo exalta a relação entre as partes e oTodo, entre o belo e o apto, de tal forma que este é entendido como um subconjunto <strong>da</strong>beleza, garantindo a congruência de ca<strong>da</strong> forma, na sua integri<strong>da</strong>de. Esta, por sua vez,uni<strong>da</strong> às d<strong>em</strong>ais formas que pululam o Universo, gera uma imensa obra de arte, ondebon<strong>da</strong>de e beleza conflu<strong>em</strong> <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de 335 . Assim, se um el<strong>em</strong>ento é, <strong>em</strong> si mesmo,334 Em De gen. cont. Manich. I, VI, 26 ( PL 34, 185; CSEL 91, p. 92), Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma desconhecera utili<strong>da</strong>de, no conjunto <strong>da</strong> criação, de ratos e rãs, de moscas ou vermes. Porém, confessa reconhecer abeleza de to<strong>da</strong>s estas formas de existência, precisamente porque <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma encontra as três categoriasque identificam a forma de um ser: ordo, mensura, numerus: “ Ego vero fateor me nescire mures et ranaequare creatae sint, aut muscae aut vermiculi: video tamen omnia in suo genere pulchra esse, quamvispropter peccata nostra multa nobis videantur adversa. Non enim animalis alicuijus corpus et m<strong>em</strong>braconsidero, ubi non mensuras et numeros et ordin<strong>em</strong> inveniam ad unitat<strong>em</strong> concordiae pertinere.” Nãoobstante ignorar a utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles seres, e atribuindo essa insciência à condição pós-lapsária do serhumano, o filósofo reconhece neles a Sabedoria do Artífice divino. Numa crítica aberta à atitud<strong>em</strong>aniqueísta, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que é a visão estreita que os maniqueus têm do real - centrando no serhumano e nas conveniências dele o sentido do Universo -, que conduz às críticas desrazoa<strong>da</strong>s que tec<strong>em</strong> àCriação. Como o filósofo proclama, apelando a uma hermenêutica centra<strong>da</strong> no próprio Verbo, o Universoé maior do que a casa de ca<strong>da</strong> um. E Deus sabe como governa a sua casa.335 Veja-se, v. gr., entre os comentários do Hiponense a Gen 1: 31, o texto de Conf. XIII, XXVIII, 43:“(...) Nam singula tantum bona erant, simul aut<strong>em</strong> omnia et bona et ualde. Hoc dicunt etiam quaequepulchra corpora, quia longe multo pulchrius est corpus, quam ipsa m<strong>em</strong>bra singula, quorum ordinatissimoconuentu conpletur uniuersum, quamuis et illa etiam singillatim pulchra sint”. ( CCL 27, p. 268); De gen.cont. Manich. I, XXI, 32: “(...) Si enim singula opera dei cum considerantur a prudentibus, inveniunturhabere lau<strong>da</strong>biles mensuras et numeros et ordines in suo quaeque genere constituta, quanto magis omniasimul, id est ipsa universitas, quae istis singulis in unum collectis impletur?” ( PL 34, 188; CSEL 91, p.100).220


tomado como belo, pois nele se manisfesta o aptum, uma vez <strong>em</strong> diálogo com oconjunto, ele test<strong>em</strong>unha e faz brilhar uma beleza maior. De igual modo, uma reali<strong>da</strong>d<strong>em</strong>al-pareci<strong>da</strong> – como, no facto <strong>da</strong> luta de galos considera<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine, acontece coma condição do galo vencido, com as penas arranca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cabeça, disforme na voz e nomovimento –, encontra o seu lugar quando confronta<strong>da</strong> com a constituição de umabeleza universal. Contudo, por essa feal<strong>da</strong>de corresponder à condição do derrotado, taldisformi<strong>da</strong>de torna-se bela e harmónica quando integra<strong>da</strong> num conjunto, neste caso, alei <strong>da</strong> natureza. De facto, a reali<strong>da</strong>de que, toma<strong>da</strong> à parte, parece horren<strong>da</strong>, in totumtorna-se agradável à apreciação dos sentidos, porque a mente humana descobre nela arelação que se estabelece entre os contrários e o princípio de Uni<strong>da</strong>de 336 .A percepção <strong>da</strong> beleza, uni<strong>da</strong> a uma concepção de ord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> comosinónimo de congruentia partium, coaptatio ou outros termos que assum<strong>em</strong> idênticosignificado, estará s<strong>em</strong>pre presente no horizonte mental do filósofo, não obstante venhaa ser integra<strong>da</strong> <strong>em</strong> sentidos mais amplos encontrados progressivamente para a noção deord<strong>em</strong>. A partir <strong>da</strong> noção de pulchrum obtém-se já um el<strong>em</strong>ento de importância para acompreensão <strong>da</strong> mundividência augustiniana. Trata-se <strong>da</strong> condição indecomponível <strong>da</strong>forma dos seres, entendi<strong>da</strong> como el<strong>em</strong>ento que os diferencia irrevogavelmente,cunhando a presença de ca<strong>da</strong> um deles no Universo.To<strong>da</strong> a beleza, to<strong>da</strong> a ord<strong>em</strong>, exige congruência e partes. A beleza é s<strong>em</strong>pre oresultado de uma união, de um acomo<strong>da</strong>mento de formas diferentes as quais, desde umaperspectiva estética – a saber, enquanto concorr<strong>em</strong> para o deleite do espírito humano –,subsist<strong>em</strong> <strong>em</strong> função <strong>da</strong> aptidão <strong>da</strong>s partes que a compõ<strong>em</strong> e <strong>da</strong> coaptatio delas <strong>em</strong>relação ao todo. Por isso, na perspectiva augustiniana, a captação <strong>da</strong> diferença, uni<strong>da</strong> auma outra categoria, a numerositas, são subjacentes à percepção estética. A percepçãodo belo presente nos sensibilia é acompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> compreensão de que a união entre336 Cf. VR XL, 76 ( CCL 32, p. 237). A mente humana é, já neste passo, a mente do homo interior, aqueleque vive de acordo com a Ver<strong>da</strong>de que nele se revela. Tal mente é capaz de apreciar a ord<strong>em</strong> oucongruência que existe nas reali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s quais vive o homo exterior: a conuenientia <strong>da</strong> corrupção doscorpos, s<strong>em</strong> a qual não haveria alimentação humana; a aptidão do movimento de assimilação <strong>da</strong> parte aptaao crescimento, que se converte no próprio corpo, e <strong>da</strong>quela outra, que não lhe é apta e, por isso, é por eleescoa<strong>da</strong> de diversos modos pelo próprio organismo vivo; a coaptatio do movimento de propagação <strong>da</strong>espécie. O homo interior não despreza a beleza, a congruentia, a coaptatio destes movimentos. To<strong>da</strong>via,sabe que eles faz<strong>em</strong> parte de uma ima pulchritudo, quando comparados com a reali<strong>da</strong>de percepciona<strong>da</strong> evivi<strong>da</strong> pela dimensão superior <strong>da</strong> razão. Por isso, aqueles bens não dev<strong>em</strong> tomar-se por Beleza Supr<strong>em</strong>a.221


formas corpóreas não pode prosseguir para além desta coaptatio partium, exigi<strong>da</strong> pelaestrutura material <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des <strong>em</strong> causa. Assim, se há um nível superior de beleza,nele a união ou coaptatio há-de realizar-se de outro modo, mais íntimo e profundo, porex<strong>em</strong>plo, aquele que se dá na relação de amizade. E se há uma beleza superna, cab<strong>em</strong>duas possibli<strong>da</strong>des: ou nela não há diferença - e, então, não se vê como possa <strong>da</strong>r-secoaptatio -, ou a diferença, nela, exige uma tal forma de união que supera to<strong>da</strong>s asd<strong>em</strong>ais a qual, s<strong>em</strong> anular tal diferença, permitirá falar de uma só substância, de umaUni<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a, sumamente bela e congruente. Esta segun<strong>da</strong> hipótese será a que Sto.<strong>Agostinho</strong> apresenta e que corresponderá à natureza do ser supr<strong>em</strong>o e à plenitude <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> 337 . Porém, para construir, para ela, uma estrutura explicativa, o filósofopercorrerá inúmeras vias, per corporalia ad incorporalia, tendo s<strong>em</strong>pre presente adependência ontológica <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s <strong>em</strong> relação à forma supr<strong>em</strong>a.Esta beleza presente nos corporalia é percebi<strong>da</strong> mediante os órgãos do corpo,numa relação que o filósofo explica que se dá in sensibus, ou seja, numa dimensão queultrapassa a própria materiali<strong>da</strong>de quer do corpo, quer do órgão corpóreo, inscrevendose,já, no grau de ser que é a vi<strong>da</strong>. Por isso, na própria relação <strong>em</strong> que consiste apercepção sensível, Sto. <strong>Agostinho</strong> regista uma presença de racionali<strong>da</strong>de ou proporção,a qual deriva <strong>da</strong>quela proprie<strong>da</strong>de dos seres que se designou por numerositas. Por estefacto, o filósofo estabelece uma estreita conexão entre a análise <strong>da</strong> percepção sensível ea proporcionali<strong>da</strong>de existente na sequência numérica, convicto de que esta esclarece anatureza, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente racional, <strong>da</strong>quela outra.A virtuali<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinha na sequência numérica, na qual fazresidir a razão de ser <strong>da</strong> beleza que se cont<strong>em</strong>pla no Universo é, precisamente, aconcórdia ou proporção (♋♋♑♓♋). De facto, no Livro VI de De musica,questiona a fronteira entre os sensibilia e o próprio órgão do sentido, como assunto queterá de ser solucionado para que a mente humana possa transitar, na percepção do Uno,do universo corpóreo para o incorpóreo, do sensível para o inteligível. Uma vez que, nareferi<strong>da</strong> obra, tratou anteriormente do numerus ou ritmo, por entender que tal categoriaé via privilegia<strong>da</strong> para alcançar a percepção <strong>da</strong> harmonia, será precisamente a partir de337 A beleza do Inteligível per se, Deus, admiravelmente simples, exclui to<strong>da</strong> a concepção de aptum, poiso Princípio Supr<strong>em</strong>o de <strong>Ser</strong> alheia-se <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s de espaço e t<strong>em</strong>po: “ (...) ubique totus es, etnusquam locorum es (...).” ( Conf. VI, III, 4: CCL 27, p. 76). No Universo criado, a congruentia partiumindica uma quase totali<strong>da</strong>de, mas só Deus contém, numa simultanei<strong>da</strong>de que é presença eterna, aTotali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s Formas, s<strong>em</strong> que a natureza Dele deixe de ser Simplex per se.222


um verso que o filósofo discutirá onde passa a fronteira entre o domínio <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de e o <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, a escolha do verso que servirá de base nestaanálise não é selecciona<strong>da</strong> de entre a literatura profana, mas sim de entre a liturgiaambrosiana 338 .Em De musica, a eleição do verso Deus creator omnium como ponto de parti<strong>da</strong>para a análise do ritmo e <strong>da</strong> métrica, poderá, porventura, ser aleatória, <strong>da</strong>do que, nessaobra, Sto. <strong>Agostinho</strong> dissociou os aspectos s<strong>em</strong>ântico e rítmico. To<strong>da</strong>via, uma vez queambos os aspectos se encontram intrinsecamente unidos, é certo que a apresentação doverso ambrosiano desde a abertura do itinerário per corporalia ad incorporalia sugere,de imediato, uma ascese <strong>da</strong> mente para o Criador, a partir <strong>da</strong>s criaturas: per ea quaefacta sunt intellecta conspicitur. A própria noção de Deus, creator omnium, indicandouma dependência de todo o real <strong>em</strong> face desse Princípio, prepara o espírito, se não paraum entendimento <strong>da</strong> noção de creatio – tal como a propõe a metafísica cristã, napeculiar interpretação que <strong>Agostinho</strong> dela faz –, certamente para o enquadramento <strong>da</strong>análise <strong>da</strong> estrutura cognitiva humana que o Hiponense quer levar a efeito.Assim, a partir do verso ambrosiano Deus creator omnium, a in<strong>da</strong>gação acerca doritmo é posiciona<strong>da</strong>, <strong>em</strong> De musica, do seguinte modo: onde se encontram os dozet<strong>em</strong>pos que compõ<strong>em</strong> este verso? No som que se ouve? No sentido <strong>da</strong> audição? No actode qu<strong>em</strong> o pronuncia? Na m<strong>em</strong>ória que o retém? A posição a que <strong>Agostinho</strong> adere, eque quererá d<strong>em</strong>onstrar, responde que o ritmo está, afinal, <strong>em</strong> todos estes el<strong>em</strong>entos e<strong>em</strong> mais algum, se se considerar que existe uma força, a um t<strong>em</strong>po interior e superior,<strong>da</strong> qual proced<strong>em</strong> os doze t<strong>em</strong>pos do verso e que permite que ele seja enunciado.A proposta de existência de uma uis interior et superior, orig<strong>em</strong> de todo o ser e deto<strong>da</strong> a harmonia, recor<strong>da</strong>, de imediato, a noção augustiniana de divin<strong>da</strong>de 339 .Paralelamente, a subi<strong>da</strong> per corporalia ad incorporalia respeita a antinomia foris/ intus,que Sto. <strong>Agostinho</strong> assume como momento de um processo de in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong>338 Sto. AMBRÓSIO, Hymnus 4, str. 1, v.1-12 : « Deus creator omnium / polique rector, uestiens / di<strong>em</strong>decoro lumine, / noct<strong>em</strong> soporis gratia, / artus solutos ut quies /red<strong>da</strong>t laboris usui, /mentesque fessasalleuet, /luctusque soluat anxios, /grates peracto iam die /et noctis exortu preces, /uoti reos ut adiuues,hymnum canentes soluimus.” [Ambroise de Milan.Hymnes. J. Fontaine (dir), (Paris 1992), p. 237].339 Cf. LA II, VI, 13- II, XII, 34 (CCL 29, p. 245-261); Conf. VII, VII, 11; VII, X, 16 (CCL 27, p. 99-100;p. 167-168) ; Conf. X, XXVII, 38: “(...) <strong>Ser</strong>o te amaui, pulchritudo tam antiqua et tam noua, sero teamaui! et ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformisinruebam.” (CCL 27, p. 175).223


Ver<strong>da</strong>de, desenvolvendo-a <strong>em</strong> diferentes contextos. Aplicando esta antinomia àestrutura do conhecimento humano, ela estabelece, tal como o antagonismo inferior/superior, precisamente a priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des interiores, presentes no espíritohumano, sobre as reali<strong>da</strong>des corpóreas. No caso <strong>em</strong> análise, determina-se, portanto, asuperiori<strong>da</strong>de dos sentidos, que são a via para a penetração do universo exterior nomundo interior, e a inferiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de corpórea, s<strong>em</strong>pre extrínseca e recebi<strong>da</strong>por meio dos sentidos.Para identificar a harmonia ou ord<strong>em</strong> do real, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera a noção denumerus como a mais eficaz. Porém, este facto só pode comprovar-se mediante umaprogressiva captação do real e através de uma ca<strong>da</strong> vez maior interiorização dele porparte do ser humano. Neste processo, a percepção sensível situa-se no primeiro degrau.A noção de numerus será, portanto, não apenas uma categoria que afecte o real exteriorque se percepciona – o universo dos corporalia –, mas presidirá à própria estruturacognitiva, já neste primeiro degrau que corresponde à percepção sensível.Porém, na obra do filósofo, a categoria de numerus é, também ela, polissémica,podendo referir-se tanto aos entes mat<strong>em</strong>áticos, como ao ritmo, poético ou musical.Assim sucede nos primeiros livros de De musica, onde a <strong>da</strong>nça surge dota<strong>da</strong> denumerositas, ao relacionar os corpos que se mov<strong>em</strong> harmonicamente apenas com o fimde deleitar. Numa acepção mais ampla do termo, a noção de numerositas assoma, porvezes, para identificar a harmonia entre as partes do movimento de todos os seres intramun<strong>da</strong>nos.Estes admit<strong>em</strong>, <strong>da</strong> parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma divisão <strong>em</strong> duas espécies: ocorpo e a vi<strong>da</strong>, sendo esta última sensitiva ou intelectual. No ser humano, a reali<strong>da</strong>de domovimento envolve não apenas o corpo, mas também as activi<strong>da</strong>des sensíveis eintelectuais. Estas, por seu turno, verificam-se quer no plano racional, quer no volitivo,e traduz<strong>em</strong>-se na prática <strong>da</strong>s virtudes. Por sua vez, o próprio ser supr<strong>em</strong>o, na suaunici<strong>da</strong>de, não se alheia totalmente <strong>da</strong> numerositas. Enquanto Sabedoria, Artífice doMundo, o Uno inteligível é Uni<strong>da</strong>de, contendo virtualmente as leis mat<strong>em</strong>áticas, abeleza dos ritmos e to<strong>da</strong>s as harmonias que se expand<strong>em</strong>, de modo gradual ediferenciado, no Universo de que aquele Princípio é Autor.Este mesmo processo de ascese para o Uno mediante a noção de numerusevidencia-se na análise <strong>da</strong> sensação que o filósofo faz a partir <strong>da</strong> experiência do ritmo.A harmonia realiza-se, efectivamente, nos corpos e entre os corpos, podendo verificarse,de modo muito particular, na música. Para além <strong>da</strong>s referências explícitas sobre a224


elação entre a harmonia e a música 340 , os próprios étimos <strong>em</strong>pregues pelo Hiponensecomo sinónimos do termo grego suger<strong>em</strong> a harmonia dos ritmos 341 . To<strong>da</strong>via, porque aintenção do percurso augustiniano é a ascese per corporalia ad incorporalia, o filósofositua progressivamente, nas reali<strong>da</strong>des supernas, imutáveis e eternas, as suasconsiderações acerca <strong>da</strong> harmonia. A alma torna-se melhor despojando-se dos ritmos ouharmonias que lhe vêm dos corpos, voltando-se dos sentidos <strong>da</strong> carne para umareformação progressiva, de acordo com a Sabedoria, Artífice do Mundo, cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong>no interior <strong>da</strong> mente. De facto, é a própria natureza <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de humana que exigeeste movimento de conversão, pois ela mesma, ao estabelecer uma distinção entre asharmonias dos corpos e a sua própria harmonia, repara que o faz pela comparação deambas com uma harmonia superior, para a qual o espírito humano tende, arrastandoconsigo, pela singular composição psicossomática que o constitui, também a própriacorporei<strong>da</strong>de.Em De musica, Sto. <strong>Agostinho</strong> desenvolve to<strong>da</strong> uma teoria <strong>da</strong> sensação basea<strong>da</strong>na noção de numerus. É certo que nessa obra está <strong>em</strong> causa o esforço por compreendero fenómeno sensação desde uma perspectiva essencialmente psicológica. O filósofoatende a um esclarecimento <strong>da</strong> relação entre a alma e o corpo e do modo como areali<strong>da</strong>de corpórea afecta e influi na própria vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma, produzindo prazer ou dor.To<strong>da</strong>via, uma vez que esta análise se integra no âmbito <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> percepçãoauditiva, específica <strong>da</strong> arte poética, ela estende-se a um horizonte mais amplo,nomea<strong>da</strong>mente quando o Hiponense a articula com a m<strong>em</strong>ória e a percepção <strong>da</strong>duração, e quando estabelece a interdependência entre os diferentes níveis de presençasdos numeri.A triag<strong>em</strong> entre os domínios de numerositas atribuídos ao corpo e à alma étambém objecto de particular atenção <strong>em</strong> De musica. Os numeri sonantes enquadram-senuma categoria mais ampla, a dos numeri corporales. Por seu turno, os numeriiudicales, confiados à alma, subdivid<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> rationales e sensuales. Dado que Sto.<strong>Agostinho</strong> estabelece o primado <strong>da</strong> alma sobre o corpo, na hierarquia ontológica, a340 Cf. De immort. anim. II, 2 (CSEL 89, p. 102-103); <strong>Ser</strong>mo CCXLIII, 4 ( PL 38, 1145 ); De ciu. dei II,XXI; XVII, XIV( CCL 47, p. 52-55; CCL 48, p. 578-580).341 Recorde-se a sequência <strong>da</strong> sinonímia, <strong>em</strong> DT IV, II, 4: “(...) congruentia siue conuenientia uelconcinentia uel consonantia” (CCL 50, p. 164). O <strong>em</strong>prego que Sto. <strong>Agostinho</strong> fará de termos comoconcinere ou consonare será, desde esta perspectiva, quase s<strong>em</strong>pre metafórico e aplica-se a um campos<strong>em</strong>ântico extr<strong>em</strong>amente lato.225


atenção do filósofo recairá sobre os numeri rationales nos quais, <strong>em</strong> De musica, delegao juízo de valor, reservando para os sensuales o juízo estético, inseparável do gozo ouprazer do belo. Porém, o próprio juízo estético é, já de si, indissociável de umapercepção qualitativa do real, pois para Sto. <strong>Agostinho</strong> esse é o modelo intrínseco ànatureza do juízo humano. O deleite no belo, o prazer estético é, deste modo, oresultado <strong>da</strong> percepção - s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> confia<strong>da</strong> à razão - <strong>da</strong> harmonia que reina numcorpo, pela disposição <strong>da</strong>s suas partes num todo onde a norma <strong>da</strong> aequalitas épreserva<strong>da</strong>. Num plano mais geral, poder-se-á afirmar que tal deleite é efeito <strong>da</strong>percepção <strong>da</strong> harmonia que reina na relação dos corpos entre si, dispostos no Universo.R<strong>em</strong>etendo o domínio <strong>da</strong> apreciação estética para uma capaci<strong>da</strong>de judicativa <strong>da</strong>razão quando incide sobre a conveniência e a acomo<strong>da</strong>ção de uma determina<strong>da</strong>sensação ao corpo que a percepciona, Sto. <strong>Agostinho</strong> resgata a apreciação estética a umplano meramente instintivo ou natural, não obstante reconhecer que este também estápresente no ser humano. Com efeito, para responder à questão “por que razão homensignorantes <strong>em</strong> música são capazes de se agra<strong>da</strong>r por sons harmónicos e de rejeitaraqueles que o não são?” ou “por que razão homens que ignoram a scientia ben<strong>em</strong>odulandi são capazes de produzir sons harmónicos por meio de instrumentos como acítara e o címbalo?”, o filósofo recorre, tanto <strong>em</strong> De ordine como <strong>em</strong> De musica, a umaresposta que poderia r<strong>em</strong>eter o plano do deleite do ser humano no belo para o domíniodo instinto natural, aparent<strong>em</strong>ente entregue à arbitrarie<strong>da</strong>de.De facto, não é assim. Por um lado, se existe um instinto natural, Sto. <strong>Agostinho</strong>considera que ele é ordenado, pois nele se espelha a numerositas, tal como acontece naactivi<strong>da</strong>de do rouxinol, quando canta, ou <strong>da</strong> abelha, quando constrói a sua casa. Poroutro lado, no ser humano, a própria dimensão instintiva estará naturalmente submeti<strong>da</strong>à razão, uma vez que é a alma racional que anima o corpo e age sobre ele, a fim de quetal corpo realize as suas funções próprias. Em todo o caso, o filósofo resgata o deleitesobre o belo ao domínio instintivo, quando r<strong>em</strong>ete o prazer estético para um modelo dejuízo – aquele que percepciona a numerositas presente nos corporalia – e, maisclaramente, ao afirmar que as condições de possibili<strong>da</strong>de de um juízo sobre o beloresid<strong>em</strong> nas regulae pulchritudinis, as quais são absolutamente inteligíveis e estãoimpressas na mente 342 .342 Cf. De mus. VI, IX, 24 ( PL 32, 1177).226


Em busca do critério definitivo para o juízo estético, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrá-lo-ána participação <strong>da</strong> razão humana nas rationes s<strong>em</strong>piternae, ou seja, na Sabedoriadivina 343 . A função anagógica que a aritmologia ocupa neste processo evidencia-sequando o Hiponense encontra na regra de igual<strong>da</strong>de o princípio para aceder àcompreensão <strong>da</strong> harmonia do Universo e, partindo <strong>da</strong>quela, <strong>em</strong>prega-a como meio paraaceder à regra supr<strong>em</strong>a <strong>da</strong> harmonia mundi, que é a própria Sabedoria de Deus 344 .Ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> De musica, depois de considerar a causa do deleite provocado peloscorpos, a razão reflecte sobre a causa do deleite sensível <strong>da</strong> alma e encontra o critériopara, de entre os numeri iudiciales, conferir primado aos rationales. De facto, o prazercarnal <strong>da</strong> alma – expressão que não deixa de se apresentar como paradoxal -, gera-sepela percepção <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, pois só ela é causa de deleite 345 . To<strong>da</strong>via, não obstante tal343 Cf. De mus. VI, II, 3 (PL 32, 1164). A propósito desta “uis naturalis quasi iudiciaria”, Manferdini falade uma espécie de a priori do sentimento, que pertenceria à própria estrutura <strong>da</strong> potência sensitiva,independent<strong>em</strong>ente do conteúdo sensível, no caso concreto, o som recebido pelo ouvido ( cf. T.MANFERDINI, Comunicazione ed estetica in Sant’Agostino, p. 162). U. Pizzani, não obstante consideraresta interpretação sugestiva, apela para o facto de ela poder abrir passo a uma dissociação entresensibili<strong>da</strong>de e razão, alheia à psicologia augustiniana <strong>da</strong> sensação: “ Per l’Ipponense, infatti, ilgodimento che l’anima trae <strong>da</strong>i ritmi è di natura <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente intellettuale, senza alcuna connessionecon la sfera del sentimento (…)”. Para Pizzani, o facto de Sto. <strong>Agostinho</strong> r<strong>em</strong>eter a perfeição do juízo <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de para a razão fornece “ (...) la chiara riprova che non era negli intendimenti di Agostino,almeno nel t<strong>em</strong>po in cui componeva il De musica, fare alcuna concessione in positivo ad un momento<strong>em</strong>ozionale ed irrazionale “ ( U. PIZZANI, “ Il De musica…”, p. 72, n. 37). Apesar <strong>da</strong> pertinência doprobl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa, não parece haver desacordo entre as posições dos dois estudiosos. Manferdinidefende que Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra na alma uma uis sensitiua que lhe confere uma capaci<strong>da</strong>de naturalpara apreciar a quali<strong>da</strong>de e o valor dos conteúdos de uma percepção estética. Este facto “ (...) equivale a<strong>da</strong>ffermare che all’io appartiene ab origine il senso estetico: questo soprattutto è il significato delle nozioneagostiniana dei numeri iudiciales” (MANFERDINI, Op. cit., p. 163). É certo que a autora defende aexistência de uma uis sensitiua <strong>em</strong> Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> si mesma predisposta para a percepção do belo.Mas não defende a dissociação desta face ao juízo <strong>da</strong> razão, desenvolvendo, inversamente, a teoriaestética do filósofo até encontrar, nas rationes incorporales et s<strong>em</strong>piternae, o critério augustiniano dojuízo sobre o belo. Não se vê, por isso, que a posição de Manferdini dê azo à defesa de uma <strong>em</strong>ergênciado irracional na teoria estética de <strong>Agostinho</strong>.344 Cf. De mus. VI, cc. X-XII (PL 32, 1179-1183). Retoma-se a questão inicial - quid sit bonamodulatione? – e encontra-se uma formulação satisfatória, descoberta pela força <strong>da</strong> razão.345 Cf. De mus. VI, X, 28 ( PL 32, 1179). O que impele a razão a interrogar a harmonia deste movimento éo facto de ele parecer contraditório. Trata-se de um prazer carnal <strong>da</strong> alma e Sto. <strong>Agostinho</strong> pretendelegitimá-lo. Está <strong>em</strong> causa a percepção do belo que reside nos corpos e no movimento deles e não227


prazer se encontrar <strong>em</strong> íntima conexão com a razão, ele não é capaz, por si próprio, dediscernir a causa <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de de que a alma frui. Não conhecendo a regra de igual<strong>da</strong>d<strong>em</strong>as apenas desfrutando dela, o deleite pode enganar e levar a que a mente se recreie <strong>em</strong>movimentos desarmónicos. A delectatio será, no caso do juízo estético, o critério deordenação <strong>da</strong> alma, dependendo o peso dela do objecto de deleite, ficando, assim,entregue ao prazer sensível a determinação do lugar que a alma ocupará na hierarquiaontológica 346 .No plano <strong>da</strong> anagogia de De musica, e considerando a capaci<strong>da</strong>de que a alma t<strong>em</strong>de se aperfeiçoar, Sto. <strong>Agostinho</strong> analisará o progressivo acréscimo do deleite e doamor, na alma, e glosará os diferentes modos de ser aos quais a alma pode aderir, paraneles se deleitar e fruir <strong>da</strong> beleza. Antes de mais, a razão descobre que a harmonia, oritmo, a congruência do espaço e do t<strong>em</strong>po, ou qualquer que seja a sinonímia que seatribua ao termo numerus, é um fenómeno comum a to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de mutável e,também, à própria alma racional. É na percepção <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, do equilíbrio e <strong>da</strong>justeza, reinante nas formas corpóreas, afinal na congruência, que a razão descobre acausa <strong>da</strong> harmonia. A congruentia é, portanto, aquela categoria que a mente comprovará<strong>em</strong> tudo quanto se move, no céu e na terra, desde o movimento dos astros até àdisposição exacta <strong>da</strong>s patas <strong>da</strong>s pulgas. Esta lei de harmonia é universal e cósmica. Pormeio dela, rege-se a própria sucessão dos t<strong>em</strong>pos, sendo ela perfeitamente justa eordena<strong>da</strong>, mesmo no processo de geração e corrupção que lhe é subjacente. Há umt<strong>em</strong>po para ca<strong>da</strong> modo de ser e o seu termo deve <strong>da</strong>r lugar à sucessão <strong>da</strong>s formas, nadiversi<strong>da</strong>de que lhes é própria, indissociável <strong>da</strong> sua contingência e finitude.necessariamente a presença de um prazer desordenado (uoluptatio ou concupiscentia ). Na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que esse movimento imita a igual<strong>da</strong>de, ele possui alguma ord<strong>em</strong> e é belo no seu género: “ (...) Numnegari potest, fieri posse, cum haec delectatio ipsa non sentiat, et inaequalitate quid turpius? (…) et tamenin quantum imitantur, pulchra esse in suo genere et ordine suo, negare non possumus.” ( De mus. VI, X,28: PL 32, 1179). O amor dos numeri sensuales é prova do amor <strong>da</strong> alma pela ord<strong>em</strong>, se b<strong>em</strong> que <strong>em</strong> grauínfimo. V., também, De mus. VI, XIII, 39 ( PL 32, 1184): os numeri sensuales são causa <strong>da</strong> inquietude <strong>da</strong>alma porque geram nela o desejo de se voltar para o exterior, promovendo a curiositas, e de se dispersarna multiplici<strong>da</strong>de.346 De mus. VI, XI, 29: “ (...) Non ergo inuidiamus inferioribus quam nos sumus, nosque ipsos inter illaquae infra nos sunt, et illa quae supra nos sunt, ita Deo et Domino nostro opitulante ordin<strong>em</strong>us, utinferioribus non offen<strong>da</strong>mur, solis aut<strong>em</strong> superioribus delect<strong>em</strong>ur. Delectatio quippe quasi pondus estanimam. Delectatio ergo ordinat animam.” ( PL 32, 1179).228


Esta sucessão ritma<strong>da</strong> contribui exactamente para a perfeição do Universo. Defacto, a duração finita dos seres - que se manifesta no processo de geração e corrupção aque está sujeita to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de dota<strong>da</strong> de corporei<strong>da</strong>de - está, também, regi<strong>da</strong> por umamusicali<strong>da</strong>de e harmonia, própria <strong>da</strong> Sabedoria divina. Assim, a comparação doUniverso com um grande po<strong>em</strong>a adquire um sentido mais pleno quando confronta<strong>da</strong>com a concepção augustiniana <strong>da</strong> Criação 347 . To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de está suspensa, no ser e noagir, <strong>da</strong> Palavra Eterna que é o Verbo de Deus. Este facto –legitimado por um complexoprocesso de análise <strong>da</strong> natureza deste Verbo Criador, leva<strong>da</strong> a efeito pelo Hiponense -garante a inteligibili<strong>da</strong>de de todo o real, entendido como Universo ou conjunto deformas uni<strong>da</strong>s mediante a consonância universal que se gera pela relação que, entre elas,se estabelece. Mas, se é ver<strong>da</strong>de que o Todo é dotado de sentido e de inteligibili<strong>da</strong>de,também o é ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s partes, não obstante a aparente dissonância ou disformi<strong>da</strong>dede algum el<strong>em</strong>ento. Desta forma, quando interrogado sobre a morte ext<strong>em</strong>porânea deum ser humano, como acontece com o caso <strong>da</strong> morte precoce e, até, imprevista, decrianças de tenra i<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> não t<strong>em</strong> justificação para o facto. Encontraargumentos de conveniência, que se pod<strong>em</strong> ler v. gr. <strong>em</strong> De libero arbitrio 348 . Mas nãoprescinde, de modo algum, <strong>da</strong> razoabili<strong>da</strong>de e do sentido desse fenómeno, <strong>em</strong> si mesmoe face ao conjunto. De facto, é <strong>da</strong> sucessão <strong>da</strong>s sílabas, <strong>da</strong> “morte” de umas, para <strong>da</strong>rlugar às seguintes, que se obtém o sentido <strong>da</strong> frase. Pela decadência sucessiva <strong>da</strong>sfrases, manifesta-se, por seu turno, progressivamente, o sentido do po<strong>em</strong>a. Sto.<strong>Agostinho</strong> designa, assim, o ser supr<strong>em</strong>o, como poeta divino. Só Ele possui e conhecetodo o sentido <strong>da</strong> história, porque arreca<strong>da</strong> o conhecimento antecipado <strong>da</strong> modulatio e,347 Ep. CXXXVIII, 1, 5: “(...) aliud enim praecepit, quod huic t<strong>em</strong>pori aptum esset, qui multo magis quamhomo nouit, quid cuique t<strong>em</strong>pori accommo<strong>da</strong>te adhibeatur, quid quando impertiat, ad<strong>da</strong>t, auferat,detrahat, augeat minuatue inmutabilis mutabilium sicut creator ita moderator, donec uniuersi saeculipulchritudo, cuius particulae sunt, quae suis quibusque t<strong>em</strong>poribus apta sunt, uelut magnum carmencuius<strong>da</strong>m ineffabilis modulatoris excurrat atque inde transeant in aeternam cont<strong>em</strong>plation<strong>em</strong> speciei, quideum rite colunt, etiam cum t<strong>em</strong>pus est fidei.” ( CSEL 44, p. 130); Ep. CLXVI, 5, 13: “ (...) unde si homofaciendi artifex carminis nouit, quas quibus moras uocibus tribuat, ut illud, quod canitur, decedentibus acsuccedentibus sonis pulcherrime currat et transeat, quanto magis deus, cuius sapientia, per quam fecitomnia, longe omnibus artibus praeferen<strong>da</strong> est, nulla in naturis nascentibus et occidentibus t<strong>em</strong>porumspatia, quae tamquam syllabae ac uerba ad particulas huius saeculi pertinent, in hoc labentium rerumtamquam mirabili cantico uel breuius uel productius, quam modulatio praecognita et praefinita deposcit,praeterire permittit.” ( CSEL 44, p. 565).348 Cf. LA III, XXIII, 68-69 ( CCL 29, p. 315-316).229


<strong>em</strong> função <strong>da</strong>quele sentido, fixa o limite do curso dos t<strong>em</strong>pos e dos acontecimentos.Recorrendo à noção de modus, o filósofo insiste na bon<strong>da</strong>de e beleza, na própria ord<strong>em</strong>intrínseca à finitude dos seres. De facto, é a própria finitude ordena<strong>da</strong> <strong>da</strong>s formas que élouva<strong>da</strong>, pois ela permite não apenas o curso ordenado dos t<strong>em</strong>pos, mas também opercurso evolutivo <strong>da</strong>s formas e o acréscimo de perfeição do próprio Universo.No encómio que Sto. <strong>Agostinho</strong> faz, ao longo <strong>da</strong> sua obra, <strong>da</strong> harmonia mundi,quer sublinhar a beleza <strong>da</strong> finitude e <strong>da</strong> contingência <strong>da</strong>s formas, a positivi<strong>da</strong>de dopróprio movimento e do curso dos t<strong>em</strong>pos. Ao fazê-lo, quer também evidenciar adiferença que separa este mundo sensível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de imutável que o sustenta, e que écausa de to<strong>da</strong> esta harmonia.Com efeito, se é a Eterni<strong>da</strong>de que a alma procura, Sto. <strong>Agostinho</strong> adverte, dest<strong>em</strong>odo, que ela escusa de a procurar no mundo dotado de movimento. A razão humanaterá, mesmo, de o transcender, uma vez que, enquanto parte desse mesmo Todo <strong>em</strong>omento de uma sucessão, a razão não pode entender a harmonia universal. To<strong>da</strong>via,esse é o desejo <strong>da</strong> alma e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, essa é a única via para compreender auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ordo rerum. Não obstante as dificul<strong>da</strong>des, há itinerários e Sto.<strong>Agostinho</strong> não se cansa de os apontar. Como poderá, então, a alma humana descobrirque é na imutabili<strong>da</strong>de que encontra a igual<strong>da</strong>de soberana? O Hiponense apela, de novo,à reflexão sobre o ritmo ou movimento <strong>da</strong>s palavras, recor<strong>da</strong>ndo a condição,convencional e arbitrária, que as caracteriza. Assim, v. gr., a primeira sílaba do termolatino Italia que, outrora, pro uoluntate quorun<strong>da</strong>m hominium, era breve, agora, prouoluntate aliorum, é longa. Porém, a regra que estabelece essa harmonia é imutável, nãoé de instituição humana e reside na alma como medi<strong>da</strong> do movimento de enunciação. Aalma humana só encontrará o deleite imutável, para o qual tende, na cont<strong>em</strong>plação dessaharmonia superna, pois só nesse patamar ela experimenta a plenitude <strong>da</strong> beleza.Desta reflexão sobre a ord<strong>em</strong> como harmonia ou congruência entre as partes e oTodo - que levou Sto. <strong>Agostinho</strong> a analisar a experiência estética - <strong>em</strong>erge uma questãoessencial, de carácter metafísico: como garantir, a um t<strong>em</strong>po, tanto a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>regra de harmonia e a sua total diferença <strong>em</strong> relação ao Universo, como a presença destaharmonia supr<strong>em</strong>a no coração do real, de forma a acautelar a relativa permanência eestabili<strong>da</strong>de dele? O mesmo é perguntar de que modo Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe a relaçãoentre o Princípio de Uni<strong>da</strong>de e os diferentes modos de ser, de si mesmos multíplices. Aresposta a esta questão esclarecerá, igualmente, o modo como concebe a hierarquiaontológica, a disposição gradual dos seres segundo a sua forma própria.230


To<strong>da</strong> a trajectória augustiniana para a consideração <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de partirádo recurso <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, assentando na perspectiva bíblica <strong>da</strong> Criação. Porém,desde este modo de conceber o ser, o critério de ord<strong>em</strong> universal não se satisfaz já como nível estético de percepção dos corporalia, n<strong>em</strong> se fun<strong>da</strong>menta numa percepçãopsicologista do real. Por isso, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>, o domínio estético integra-se atal ponto na dimensão metafísica que o filósofo, <strong>em</strong> Retractationum, se vê forçado acorrigir a dissociação, estabeleci<strong>da</strong> nas primeiras obras, entre Filosofia e Filocalia. Defacto, tratando-se do amor ao Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, a ele se segue a fruição <strong>da</strong> soberanabeleza. Esse é o cume <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do sábio, aquela que realiza o fim supr<strong>em</strong>o do serhumano e à qual se segue a posse <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.231


CAPÍTULO IIIORDEM E SER HUMANO1. Deum et animam scire cupioA justificação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> por meio <strong>da</strong> percepção do belo como forma supr<strong>em</strong>a dereali<strong>da</strong>de significa, efectivamente, por parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, a adesão a umahermenêutica do real basea<strong>da</strong> numa superação do plano cognitivo meramentepsicológico. No domínio inteligível, a forma supr<strong>em</strong>a já não é capta<strong>da</strong> pela mentehumana mediante imagens. To<strong>da</strong>via, fica por explicar o modo como a mente serelaciona com essa forma supr<strong>em</strong>a e que tipo de percepção é essa, que supera o domíniopsicológico <strong>da</strong>s representações imagéticas. Assim, na sua obra, um dos momentosculminantes que identificam a superação de uma percepção estética <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> para umametafísica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> consiste precisamente na análise <strong>da</strong> natureza e funções <strong>da</strong> mentehumana.Na conheci<strong>da</strong> síntese que Sto. <strong>Agostinho</strong> opera acerca do objecto que consideraestar no cerne <strong>da</strong> metafísica - Deum et animam scire cupio -, assume, como ponto departi<strong>da</strong> para a compreensão do Universo e <strong>da</strong> posição que o ser humano nele ocupaenquanto parte de um todo, a análise <strong>da</strong> mente humana. É pela análise dessa complexaestrutura que o Hiponense se propõe alcançar uma compreensão quer <strong>da</strong> natureza do <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, quer <strong>da</strong> natureza do Mundo.A opção t<strong>em</strong> razão de ser. Por um lado, no entender de <strong>Agostinho</strong>, o ser humanoocupa, na hierarquia ontológica, o lugar supr<strong>em</strong>o, entre as criaturas anima<strong>da</strong>s. Por outro,a opção pela ascese ao princípio de ser por meio dos uestigia – sendo acessível à razãoe, até, referi<strong>da</strong> pela autori<strong>da</strong>de do apóstolo Paulo como argumento contra a subsistênciado paganismo –, é arrisca<strong>da</strong>, pois a mente sujeita-se a não superar o domínio dosphantasmatae, ou a fixar-se naquilo que também S. Paulo apeli<strong>da</strong> de vãs filosofias.Sto. <strong>Agostinho</strong> acolhe a proposta paulina - aceder aos inuisibilia Dei per ea quaefacta sunt – afirmando irrefragavelmente que é possível aceder ao Criador através <strong>da</strong>scriaturas. Tal como o Apóstolo dos Gentios, Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece que este foi ocaminho seguido pelos filósofos <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de, não tendo estes, contudo, alcançado otermo natural deste processo: o conhecimento do Deus Uno. Por isso, tal como S. Paulo,também <strong>Agostinho</strong> considera inescusável esta permanência na ignorância <strong>da</strong> uera232


eligio 349 . Multiplicando as divin<strong>da</strong>des, os filósofos pagãos constró<strong>em</strong> mundividênciasvãs, não acedendo a cont<strong>em</strong>plar, mediante os uestigia dei, o Princípio de que eles sãoindício. Na ver<strong>da</strong>de, esse movimento de ascese supõe que a inteligência se dirija aoPrincípio Eterno cujo vestígio se encontra impresso nas criaturas. Trata-se de investigaras reali<strong>da</strong>des que se ocultam, mediante aquelas que são manifestas 350 . O termo desteitinerário é necessariamente, na perspectiva de <strong>Agostinho</strong> como na de S. Paulo, oachamento desse Princípio que desde s<strong>em</strong>pre preside a constituição do mundo: o VerboEterno ou Sabedoria, artifex mundi. Este Verbo é universal, não se compadecendo coma multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s línguas, e é, também, Um só, não obstante comungar, <strong>em</strong>identi<strong>da</strong>de de substância, <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> trinitária. Ora, quando os filósofosantigos, seguindo os uestigia dei, alcançam uma multiplici<strong>da</strong>de de deuses ou constró<strong>em</strong>mundividências que, não obstante considerar<strong>em</strong> uma estrutura ternária para o Princípio,introduz<strong>em</strong> cisões de graus entre as hipóstases, <strong>Agostinho</strong> apeli<strong>da</strong> estas construçõesmentais de fabulosas e vãs. Na ver<strong>da</strong>de, elas não alcançam o princípio invisível deinteligibili<strong>da</strong>de do real, mas fixam-se no domínio psicológico <strong>da</strong>s produções <strong>da</strong> mente,nos phantasmatae por ela fabricados, através <strong>da</strong> percepção dos uestigia.A via <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> mente humana para aceder à natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>permite, também, que Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinhe a posição intermédia do ser humano nahierarquia ontológica, definindo o lugar que ele ocupa na ordenação dos seres. Se, entreas criaturas dota<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong>, a forma do ser humano é superior, to<strong>da</strong>via ela ain<strong>da</strong> se349 É um facto que <strong>Agostinho</strong> cita o texto paulino de Rom. 1: 20, onde se afirma que a ignorância dosgentios é inexpiável, completando-o, por vezes, como discurso de S. Paulo aos atenienenses ( cf. v. gr.De ciu. dei VIII, 1; VIII, 10: CCL 47, p. 216-217; p. 226-227; <strong>Ser</strong>mones: LXVIII, II, 3 (MiAug., p. 361);CXLI, II, 2: PL 38, 776; CL, VIII, 9: PL 38, 813), reiterando a convicção paulina de uma revelação divinaaos gentios, que a rejeitaram, negando-se a reconhecer a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, e s<strong>em</strong> entrar <strong>em</strong>contradição com o carácter voluntário <strong>da</strong> insipiência dos filósofos pagãos – que, como guias cegos,ensinam a outros s<strong>em</strong> se instruír<strong>em</strong> a si mesmos ( cf. Ep. CXCIV, 6: CSEL 57, p. 195) - <strong>em</strong> DT XIII,XIX, 24 Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui esta ignorância à ausência do ver<strong>da</strong>deiro mediador: “(...) Illi aut<strong>em</strong>praecipui gentium philosophi qui inuisibilia dei per ea quae facta sunt intellecta conspicere potuerunt,tamen quia sine mediatore, id est sine homine Christo philosophati sunt, qu<strong>em</strong> nec uenturum prophetisnec uenisse apostolis crediderunt, ueritat<strong>em</strong> detinuerunt sicut de illis dictum est in iniquitate.” ( CCL50A, p. 416).350 <strong>Ser</strong>mo VIII, 1: “ Domino deo nostro, cuius cultores sumus, in laude dictum est quo<strong>da</strong>m scripturarumloco: Omnia in mesura et numero et pondere disposuisti. Deinde apostolica doctrina edoc<strong>em</strong>ur inuisibiliadei per ea quae facta sunt intellecta conspicere, et ea quae latent per manifesta inuestigare.” (CCL 41, p.79).233


submete àquelas reali<strong>da</strong>des que escapam ao espaço e ao t<strong>em</strong>po, usufruindo deeterni<strong>da</strong>de. Reunindo <strong>em</strong> si os três graus de existência – esse, uiuere, intellegere –, o serhumano está imerso no Mundo e na matéria pelos dois primeiros graus de ser de queparticipa e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, transcende-a, pelo facto de estar dotado de uma mensrationalis. Este fenómeno será objecto <strong>da</strong> reflexão do filósofo, que não deixa de s<strong>em</strong>aravilhar ante o facto de a matéria se ter unido ao espírito, a fim de originar um modode ser, absolutamente único e diferente, designado por homo.Tal expressão de ser comunga com o universo dos corpos na mesma corporei<strong>da</strong>d<strong>em</strong>as, porque dota<strong>da</strong> de razão, pode compreender a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles e de si mesma noseio de uma totali<strong>da</strong>de, designa<strong>da</strong> por uniuersum, quando, mediante a activi<strong>da</strong>de do seuespírito, entra <strong>em</strong> contacto com o princípio ordenador e <strong>da</strong>dor de ser. O ser humanopode, por isso, não apenas compreender a ordenação dos seres, mas alcançar oconhecimento <strong>da</strong> própria ord<strong>em</strong>, colaborando na realização dela e do sentido que estanoção, princípio supr<strong>em</strong>o de reali<strong>da</strong>de, imprime ao conjunto dos seres. Com efeito, Sto.<strong>Agostinho</strong> não concebe o divórcio entre a cosmologia e a interrogação sobre o sentido<strong>da</strong> existência humana, esclarecendo-o à luz <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de de uma tal forma deexistência. É um facto que, na metafísica augustiniana, não é a forma humana que ocupao lugar central, no Universo, pois ela não explica a razão de ser do Mundo. Contudo, elaé solidária com o Universo e Sto. <strong>Agostinho</strong> não concebe o sentido do ser humanodissociado n<strong>em</strong> do curso dos t<strong>em</strong>pos, n<strong>em</strong> do destino <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais formas nelesubsistentes.S<strong>em</strong> perder de vista a dimensão estética <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, ela será,progressivamente, integra<strong>da</strong> pelo filósofo numa hermenêutica onde tal noção éperspectiva<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> relação que a mente humana estabelece com o princípio de ser.Para designar este princípio, <strong>Agostinho</strong> adopta diferentes denominações, entre as quaisse conta a de forma supr<strong>em</strong>a imutável. Com efeito, será mediante a noção de forma quese poderão articular, na obra do Hiponense, de modo mais fecundo, as interpretaçõesestética e metafísica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, pois s<strong>em</strong> forma não há ser, e é pela forma que to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de resplandece beleza e positivi<strong>da</strong>de. Por seu turno, Sto. <strong>Agostinho</strong> integra afruição humana do belo na realização <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. Sendo esta última a efectivação <strong>da</strong>forma específica do ser humano, o esclarecimento prestado pelo filósofo acerca <strong>da</strong>noção de ord<strong>em</strong> permite compreender a raiz metafísica <strong>da</strong>s dimensões ética, estética eantropológica <strong>da</strong> obra do Hiponense.234


Assim, no sentido de esclarecer a noção de ord<strong>em</strong>, as primeiras propostas que seencontram nos escritos augustinianos, muito próximas <strong>da</strong> mundividência neoplatónica,sofrerão sucessivos aprofun<strong>da</strong>mentos. Neles converg<strong>em</strong>, de modo progressivament<strong>em</strong>ais claro, tanto o questionamento acerca <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de humana - pois a desord<strong>em</strong> éfun<strong>da</strong>mentalmente o sofrimento de que padece todo o ser humano-, como a in<strong>da</strong>gaçãoacerca <strong>da</strong> efectiva possibili<strong>da</strong>de de relação de todos os seres, na diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suasformas, com o ser supr<strong>em</strong>o.Ao formular o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> - de que modo, sendo Deus bom, há tantaperversi<strong>da</strong>de espalha<strong>da</strong> nos assuntos humanos -, Sto. <strong>Agostinho</strong> inscreve, no âmago <strong>da</strong>questão, a interrogação sobre a essência de Deus e sobre a relação entre essa enti<strong>da</strong>desupr<strong>em</strong>a e o ser humano. A própria formulação do filosof<strong>em</strong>a incide sobre aqueles doisel<strong>em</strong>entos que o Hiponense considera estar<strong>em</strong> situados no cerne <strong>da</strong> Filosofia, e <strong>em</strong> cujacompreensão condensa a tarefa do sábio. Deus e a alma são os objectos que oHiponense reconhece merecer<strong>em</strong> atenção privilegia<strong>da</strong> por parte <strong>da</strong> mente que aspira àsabedoria. É certo que este apuramento do objecto <strong>da</strong> investigação filosófica se explica,no caso particular de Sto. <strong>Agostinho</strong>, pelo peculiar trajecto vivenciado <strong>em</strong> direcção àsabedoria. Tal perspectiva prende-se, por conseguinte, com o cansaço de uma mente queprocurara, entre o designado "mundo sensível" – reali<strong>da</strong>de corpórea, com a qual oHiponense identificara, antes do contacto com os Libri platonicorum, to<strong>da</strong> a expressãode ser –, a compreensão do enigma do mal e do fim último do ser humano.Esta opção preferencial pela análise <strong>da</strong> relação entre a mente humana e o sersupr<strong>em</strong>o está, também, intrinsecamente uni<strong>da</strong> com a consciência que <strong>Agostinho</strong>adquire, ao abandonar a seita de Mani, de que um discurso fun<strong>da</strong>do sobre o cosmostornaria difícil uma argumentação acerca do Princípio, decisiva para derrubar asfabulações maniqueístas, contornando as resoluções dos genetlíacos e elevando odiscurso para além dos phantasmatae. E, <strong>em</strong> última análise, tal opção prende-se com ofacto de o filósofo considerar que, na hierarquia ontológica - e não obstante a aparentecontradição com um determinado âmbito de evidência <strong>em</strong>pírica que leva, precisamente,ao equacionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> –, o ser humano é aquela forma quecomunga de uma maior proximi<strong>da</strong>de com o <strong>Ser</strong> divino.Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrara no neoplatonismo - mormente no apelo à metodologiado regresso <strong>da</strong> razão sobre si mesma e na determinação de uma reali<strong>da</strong>de puramenteinteligível como terminus ad qu<strong>em</strong> <strong>da</strong> conquista do esforço dialéctico levado a efeitopela razão - uma proposta satisfatória para construir a sua mundividência. Além disso,235


esta decisão por centralizar o estabelecimento <strong>da</strong> sua metafísica na inteligência do modocomo se relacionam Deus e a alma humana, não padece, por parte do Hiponense, dequalquer restrição mental ou redução de universo de apreensão. B<strong>em</strong> pelo contrário, talmetodologia obedece, antes de mais, ao princípio el<strong>em</strong>entar de ord<strong>em</strong>, a saber, a opçãopelo melhor, sendo esta noção identifica<strong>da</strong> com aquela expressão de reali<strong>da</strong>de quealcance maior grau de universali<strong>da</strong>de.Na opção augustiniana por centralizar a sua mundividência na análise <strong>da</strong> relaçãoque se estabelece entre a alma humana e o ser supr<strong>em</strong>o está a convicção de que a mentehumana é uma efectiva mais valia no processo de apreensão <strong>da</strong> ordo rerum. De facto,quando a razão discursiva centra a sua atenção na análise <strong>da</strong> alma humana, efectuandoum percurso ascendente <strong>em</strong> relação ao outro termo <strong>da</strong> relação – o ser supr<strong>em</strong>o, ou Deus-, ela parte de um termo que contém <strong>em</strong> si, por natureza específica, os três graus de serpresentes no Universo, designados de acordo com a trilogia de tradição platónica: esseuiuere-intellegere.Sto. <strong>Agostinho</strong> adere, neste aspecto, ao projecto neoplatónicosegundo o qual a alma contém <strong>em</strong> si to<strong>da</strong>s as expressões de reali<strong>da</strong>de, bastando, porisso, compreender a natureza dela para descortinar, <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong>de e intensi<strong>da</strong>de, aessência do cosmos.Com efeito, são essas as proprie<strong>da</strong>des que o filósofo atribui à sabedoria –profundi<strong>da</strong>de, inteligibili<strong>da</strong>de, intensi<strong>da</strong>de –, e não a extensão, cujo entendimento arazão humana confia a outras disciplinas. Inversamente, seguindo a propostaneoplatónica, <strong>Agostinho</strong> admite que se a razão se situar no próprio princípio s<strong>em</strong>princípio e, partindo de lá, cont<strong>em</strong>plar as d<strong>em</strong>ais expressões de reali<strong>da</strong>de, num processodescendente, então ela terá atingido a plenitude <strong>da</strong> Sabedoria, de modo mais directo eeficaz do que diss<strong>em</strong>inando a sua atenção no conjunto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des corpóreas eanalisando a estrutura delas. De facto, a orientação do objecto <strong>da</strong> Filosofia para estasduas expressões de reali<strong>da</strong>de, Deus e a alma, não só não se apresenta como redutora,mas surge inclusivamente, na obra de <strong>Agostinho</strong>, como potenciadora de uma visão doMundo mais ampla, porque construí<strong>da</strong> a partir do Todo, e mais sóli<strong>da</strong>, porque elabora<strong>da</strong>pela mente que ultrapassou o plano dos phantasmatae e <strong>da</strong>s imagens corpóreas.A própria amplitude t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> obra do Hiponense é reveladora de que estapolarização do âmbito <strong>da</strong> metafísica na relação entre Deus e a alma potencia umdiscurso que abarcará todos os domínios de reali<strong>da</strong>de. Não obstante não respeitar asist<strong>em</strong>atici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tripartição <strong>da</strong> Filosofia <strong>em</strong> disciplinas, como a física a ética e alógica – divisão cuja orig<strong>em</strong> <strong>Agostinho</strong>, referindo a opinião de alguns antiquii, atribui a236


Platão 351 -, a obra do Hiponense abrange todos os aspectos destas três disciplinas,superando-os amplamente, também no que à t<strong>em</strong>ática se refere, tendo <strong>em</strong> conta, v. gr.,os escritos de âmbito polémico e pastoral, e a sua contextualização histórica.Na ver<strong>da</strong>de, a concentração do objecto <strong>da</strong> Filosofia na análise <strong>da</strong> relação entreDeus e a alma poderia legitimar a crítica de quantos consideraram que Sto. <strong>Agostinho</strong>desvaloriza a reflexão sobre o cosmos, subjectiviza o âmbito <strong>da</strong> Filosofia, escraviza-a àteologia, converte, inclusivamente, o discurso metafísico numa mística s<strong>em</strong> qualquervalor universal. Independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> descontextualização, histórica e hermenêutica,que está na orig<strong>em</strong> de tais comentários, ela torna-se particularmente injusta no que serefere à reflexão sobre o cosmos, horizonte permanente de referência para <strong>Agostinho</strong>,que reflecte copiosamente sobre a questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, sobre a natureza enigmática dot<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> matéria e, até, sobre a própria noção de evolução 352 . Inversamente, aocentrar a construção <strong>da</strong> sua mundividência numa análise <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> mente humanae <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des que a caracterizam, o discurso filosófico augustiniano atingirá níveisde máxima universali<strong>da</strong>de.Na in<strong>da</strong>gação acerca dos dois pólos desta relação, Deus e a alma humana, ofilósofo procede ordena<strong>da</strong>mente, do inferior para o superior, ou seja, <strong>da</strong> razão para aintelecção do ser supr<strong>em</strong>o. Este facto pressupõe o convencimento de que a reali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>anifesta segundo uma disposição ordena<strong>da</strong> de formas e de que o intelecto humanopode progredir no conhecimento dos seres, percorrendo ca<strong>da</strong> um dos graus. Estaconvicção augustiniana fica clara já <strong>em</strong> De ordine, quando, como via para aceder àmisteriosa e volátil noção, o filósofo aconselha seguir a ord<strong>em</strong> dos estudos. Sto.351 Cf. De ciu. dei VIII, 4 ( CCL 47, p. 220-221); XI, XXV ( CCL 47, p. 344-345). A este propósito, vejasev. gr. o artigo de Michele CUTINO, “Filosofia tripartita e trinità cristiana nei Dialogi di Agostino”:Revue des études augustiniennes 44 (1998) 77-100, onde o A. procura mostrar que a tripartição do saberfilosófico, presente nos primeiros escritos de <strong>Agostinho</strong> e apresenta<strong>da</strong> como a base <strong>da</strong> própria disciplinaphilosophica, se articula intimamente com a dinâmica <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé.352 Não deixa de ser curiosa a inquietação que <strong>Agostinho</strong> expressa <strong>em</strong> Retractationum acerca <strong>da</strong> naturezado Universo. Completamente alheio às futuras discussões escolásticas sobre os universais, para oHiponense o Universo é uma reali<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>asiado rica e complexa, cuja natureza não acaba decompreender. Por isso lhe permanece a dúvi<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong> existência, ou não, de uma anima mundi: oUniverso é, ou não, um ser vivo? Efectivamente, a dúvi<strong>da</strong> só pode permanecer na mente de qu<strong>em</strong>, como oHiponense, não reduziu a complexi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que o ser humano está inserido e s<strong>em</strong> a qual não vive, a ummero conceito vazio e anónimo, tornando-o passível de sofrer to<strong>da</strong> a forma de manipulação, entregue aosdesignados progressos <strong>da</strong>s ciências e <strong>da</strong>s tecnologias, uma vez aniquilado o princípio <strong>da</strong> uera ratio.237


<strong>Agostinho</strong> é fiel à ideia de que o real se manifesta gra<strong>da</strong>tim, não apenas ao projectar are<strong>da</strong>cção de uma enciclopédia de saberes, que serviria de palestra do espírito para que oentendimento mais facilmente captasse a estrutura <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de subjacente noUniverso - projecto que, como é sabido, o filósofo não levou a bom termo 353 -, mastambém nos inúmeros excursos que abun<strong>da</strong>m na sua obra, insistindo no percurso <strong>da</strong>razão per corporalia ad incorporalia, mais frequentes nos primeiros escritos, e, ain<strong>da</strong>,na insistência <strong>em</strong> uma percepção valorativa do real, por parte <strong>da</strong> mente humana. Comefeito, esta última torna-se recurso habitual <strong>da</strong> argumentação augustiniana quer no planoconstrutivo <strong>da</strong> sua mundividência 354 , quer <strong>em</strong> contexto de controvérsia 355 , quer <strong>em</strong>escritos de natureza exegética 356 ou mesmo parenética 357 .353 Cf. Retract. I, VI ( CCL 52, p. 17).354 V. gr., na análise augustiniana <strong>da</strong> ascese <strong>da</strong> razão para Deus, tal como é exposta <strong>em</strong> De libero arbitrio,onde fica patente que a forma própria <strong>da</strong> razão humana exige o carácter axiológico do juízo. Os ex<strong>em</strong>plos,na obra do Hiponense, são múltiplos e aplicam-se aos mais diversos contextos. Veja-se, v. gr. DO II,XIX, 51 ( CCL 29, p. 135); De immort. anim. XV, 24 ( CSEL 89, p. 126-127) ; De quant. anim. IX, 14 ;XIV, 23 ( CSEL 89, p. 158-159); De mus. VI, IV, 7-V, 8 ( PL 32, 116-118); LA II, V-VI; III, V; III, VII;III, XXIV (CCL 29, p. 244-247; p. 282-285, p. 286-287 ; p. 317-319); VR LV ( CCL 32, p. 256-260); InIohan. Ep. ad Parthos II, 12 ( PL 35, 1995-1996); De nat. boni 5 ( CSEL 25/2, p. 857).355 A título de ex<strong>em</strong>plo, sobre a heresia de Jovaniano: Retract. II, XXII, 1: “ Iouiniani haeresis sacrarumuirginum meritum aequando pudicitiae coniugali tantum ualuit in urbe roma, ut nonnullas etiamsanctimoniales, de quarum pudicitia suspicio nulla praecesserat, deiecisse in nuptias diceretur, hocmaxime argumento cum eas urgeret dicens: tu ergo melior quam sarra, melior quam susanna siue anna?”(CCL 57, p. 107). De onde se compreende o tipo de argumentação de De bono coniugali XXIII, 28: "(...)Res ergo ipsas si compar<strong>em</strong>us, nullo modo dubitandum est melior<strong>em</strong> esse castitat<strong>em</strong> continentiae quamcastitat<strong>em</strong> nuptial<strong>em</strong>, cum tamen utrumque sit bonum; homines uero cum comparamus, ille est melior,qui bonum amplius quam alius habet." ( CSEL 41, p. 223-224).356 V. gr. In Iohan. Ev. Tract. III, 4: " (...) si ergo ideo [ homo ] melior pecore, quia habes ment<strong>em</strong> quaintellegas, quod non potest pecus intellegere; inde aut<strong>em</strong> homo, quia melior pecore, lux hominum est luxmentium. " ( CCL 36, p. 22).357 V. gr. Speculum XXIII : " (...) melior est pauper sanus et fortis uiribus quam diues inbecillis etflagellatus malitia.(...) salus animae in sanctitate iustitiae et melior omni auro et argento, et corpusualidum quam census inmensus.(...) melior est mors quam uita amara et requies aeterna quam languorperseuerans.(...) melior est homo, qui abscondit stultitiam suam, quam homo, qui abscondit sapientiam."(CSEL 12, p. 144). Sobre a autentici<strong>da</strong>de do Speculum quis ignorat v. A-M. LA BONNARDIÈRE, BibliaAugustiniana: A. T., Le Livre de La Sagesse (Paris, 1970), p. 229-232. V. também, CPL ( E. DEKKER,3 1995), p. 107.238


A opção do filósofo por atender à relação entre Deus e a alma humana é, <strong>em</strong> largamedi<strong>da</strong>, consequência do choque libertador 358 <strong>em</strong> que consistiu, essencialmente, omovimento de resgate do espírito 359 , correspondente ao momento <strong>da</strong> conversãoaugustiniana. Ambas as expressões incid<strong>em</strong> no aspecto crucial do movimento <strong>da</strong>conversão do Hiponense, tal como ele próprio o descreve <strong>em</strong> Confessionum. De acordocom esse relato autobiográfico, a dificul<strong>da</strong>de de encontrar uma solução que conjugasse,a um t<strong>em</strong>po, a essência de Deus e a reali<strong>da</strong>de do mal, incidia no facto de não ser <strong>da</strong>dopensar a <strong>Agostinho</strong> a condição relativa deste último, n<strong>em</strong> a natureza imaterial doprincípio supr<strong>em</strong>o. Assim, a solução <strong>da</strong> duali<strong>da</strong>de de substâncias <strong>em</strong> conflito pareciaaceitável e, mesmo uma vez ultrapassa<strong>da</strong> esta 360 , permanecia a razoabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>identificação <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de com a noção de uma substância materialinfinitamente extensa 361 .O momento crucial descrito por Sto. <strong>Agostinho</strong> para o equacionamento dofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> dá-se quando o filósofo, admoestado pela leitura dos libriPlatonicorum, aplica a si mesmo o método <strong>da</strong> auto-reflexão e ascende, por meio doolhar <strong>da</strong> alma, às reali<strong>da</strong>des que se situam acima <strong>da</strong> mente 362 . Tal como o filósofo o358 A expressão é sugeri<strong>da</strong> por P. HENRY, Plotin et l’Occident. Firmicus Maternus, Marius Victorinus,saint Augustin et Macrobe (Louvain 1934), p. 78.359 Cf. G. MADEC " La délivrance de l'ésprit " in Le Confessioni di Agostino d'Ippona (Palermo 1985), p.45-69. V. , também, Id.., Petites Études Augustiniennes (Paris 1994), p. 129.360 Com o auxílio dos argumentos de Nebrídio, Sto. <strong>Agostinho</strong> superara aqueles que esgrimia paradefender a condição mutável e corruptível <strong>da</strong> essência divina (cf. Conf. VII, II, 3: CCL 27, p. 93-94).To<strong>da</strong>via, antes de considerar o primado do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o como reali<strong>da</strong>de absolutamente espiritual, ofilósofo admite a existência de uma reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a incorruptível, inviolável e imutável, identificandoacom a Totali<strong>da</strong>de, o Mundo ou Cosmos, afinal, com a matéria <strong>em</strong> expansão, perfilhando as tesesestóicas sobre a essência do Princípio (cf. Conf. VII, V, 7: CCL 27, p. 96-97). V., a este propósito, oartigo de Ch. BAGUETTE, " Une période stoïcienne <strong>da</strong>ns l'évolution de la pensée de saint Augustin" :Revue des études augustiniennes 16 ( 1970 ), p. 47-77.361 Cf. Conf. VII, IX, 13 (CCL 27, p. 101). V., também, o estudo de A. TRAPÈ, « S. Agostino. Dalmutabile all’imutabile o la filosofia dell’Ipsum esse” : Studi tomistici 26, 1985, p. 46-58. Sobre o modocomo a noção de infinitude, atribuí<strong>da</strong> à Dei<strong>da</strong>de, se articula na ontologia augustiniana, v. D. DUBARLE,“ Essai sur l’ontologie théologale de saint Augustin”, Recherches augustiniennes 16 (1981), p. 212-215;218-220; 247-250.362 Conf. VII, X, 16: " Et inde admonitus redire ad m<strong>em</strong>et ipsum intraui in intima mea duce te et potui,quoniam factus es adiutor meus. intraui et uidi qualicumque oculo animae meae supra eund<strong>em</strong> oculumanimae meae, supra ment<strong>em</strong> meam luc<strong>em</strong> incommutabil<strong>em</strong>, non hanc uulgar<strong>em</strong> et conspicuam omni carni239


descreve, o termo deste processo é a descoberta de Deus, Ver<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, a saber, oachamento <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de que ilumina a mente, que é princípio <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de dela eque lhe permite conhecer as d<strong>em</strong>ais formas de ser, encontrando-se, portanto, suprament<strong>em</strong>. A uma tal noção não pode faltar o ser, também <strong>em</strong> supr<strong>em</strong>acia na hierarquiaontológica. Este movimento não se realiza por meio dos olhos do corpo mas atravésdos oculi animae. Trata-se, por isso, de uma ascese <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente espiritual.Na reali<strong>da</strong>de, a t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> designa<strong>da</strong> conversão de Sto. <strong>Agostinho</strong>, objecto dein<strong>da</strong>gação que t<strong>em</strong> como el<strong>em</strong>ento axial de referência a análise do Livro VII deConfessionum, t<strong>em</strong> feito correr uma literatura por d<strong>em</strong>ais abun<strong>da</strong>nte entre os estudiosos.Em 1989, Madec fez um ponto <strong>da</strong> situação sobre esta t<strong>em</strong>ática 363 . Baseando-se <strong>em</strong>el<strong>em</strong>entos de crítica externa, interroga a natureza <strong>da</strong> conversão de <strong>Agostinho</strong> doseguinte modo - estar<strong>em</strong>os perante uma conversão ao cristianismo (identifica<strong>da</strong> por umaclara consciência, por parte do Hiponense, <strong>da</strong> diferença entre cristianismo e filosofias, aqual se pode expressar na interpretação feita pelo Hiponense a propósito do passobíblico do espólio feito pelo povo hebreu sobre o "ouro dos egípcios"; e por uma claraconsciência <strong>da</strong> contradição interna inerente ao neoplatonismo, pois tal filosofiaconfunde o conhecimento de Deus com os phantasmata do espírito) – ou apenas de umaadesão a uma filosofia de cariz espiritualista, como é a neoplatónica? De facto, tambémo neoplatonismo defende os mesmos princípios aos quais Sto. <strong>Agostinho</strong> diz aderir,mediante a sua conversão, nomea<strong>da</strong>mente a trin<strong>da</strong>de de hipóstases, contra o dualismomaniqueísta, e a condição espiritual do Princípio Supr<strong>em</strong>o, ou Uno; ou não será, ain<strong>da</strong>,que Sto. <strong>Agostinho</strong> se limita a cristianizar o neoplatonismo, <strong>em</strong>pregando as categoriasassimila<strong>da</strong>s desta mundividência e esgrimindo-as com uma finali<strong>da</strong>de essencialmenteapologética? Outros estudiosos in<strong>da</strong>gam a obra do Hiponense, e de modo particular omomento <strong>da</strong> sua conversão, fixando-se maxime nos aspectos de tradição filológica.Estes deparam com uma uexata quaestio: a que obras se refere Sto. <strong>Agostinho</strong> mediantea designação “quae<strong>da</strong>m platonicorum libri”? Os estudos proliferam, nesta direcção,sendo impossível decidir com absoluta certeza a que escritos se refere <strong>Agostinho</strong>. Nestaimpossibili<strong>da</strong>de, os el<strong>em</strong>entos decisivos para compreender a conuersio augustiniananec quasi ex eod<strong>em</strong> genere grandior erat, tamquam si ista multo multoque clarius claresceret totumqueoccuparet magnitudine." ( CCL 27, p.103).363 G. MADEC, “Le neoplatonisme <strong>da</strong>ns la conversion d’Augustin. Etat d’une question centenaire », inInternationales Symposium über den Stand der Augustinus-Forschung 12-16 April (Würzburg 1989), p.9-25. [ Reed. <strong>em</strong> Petites études augustiniennes (Paris 1994), 51-69].240


esid<strong>em</strong> na articulação interna dos argumentos presentes na obra do Hiponense, compeculiar relevância para os textos onde o Hiponense faz referência ao momento <strong>da</strong> suaconversão. Em nosso entender, a essência do processo de conversão, na mente doHiponense, consiste no momento incisivo no qual antevê a solução para uma resoluçãodo filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, ou seja, para o enigma <strong>da</strong> relação entre o Uno e o Múltiplo,resolvendo, assim, a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de entre Deus e os assuntoshumanos. Por isso, será desde esta óptica que analisar<strong>em</strong>os os textos que completam eesclarec<strong>em</strong> a referi<strong>da</strong> passag<strong>em</strong> de Confessionum.De facto, a este propósito é eloquente o trecho de Confessionum VII, 10, 16, poisencerra o longo processo <strong>da</strong> designa<strong>da</strong> conversão augustiniana, para a qual cooperam asleituras dos Platonicorum e os escritos bíblicos, cujo conteúdo <strong>Agostinho</strong> articula numasimbiose quase perfeita. Efectivamente, se fora a questão sobre a orig<strong>em</strong> do mal a queprevalecera, segundo o relato de Sto. <strong>Agostinho</strong>, e o fizera aplicar a si mesmo o métododo regressus animae, é a descoberta <strong>da</strong> natureza do ser supr<strong>em</strong>o como Ver<strong>da</strong>de quepermite ao Hiponense recobrar a liber<strong>da</strong>de primitiva de investigar, indissociável doamor inueniendi ueri, que tão fort<strong>em</strong>ente lhe inculcara, na juventude, a leitura doHortensius de Cícero.É este processo de recuperação de liber<strong>da</strong>de pela descoberta <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, por meio<strong>da</strong> análise <strong>da</strong> mente, que Sto. <strong>Agostinho</strong> declara partilhar <strong>em</strong> De libero arbitrio com oseu interlocutor. Mas esta obra, na qual, de modo sist<strong>em</strong>ático e analítico, o filósofoexpõe aquilo que, <strong>em</strong> síntese, deixa dito <strong>em</strong> Confessionum a propósito <strong>da</strong> suaconversão 364 , é antecedi<strong>da</strong> por outros escritos. Neles, a intuição inicial - a admonitiodeixa<strong>da</strong> pelos Platonicorum na mente de <strong>Agostinho</strong> -, é já coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> acto peloHiponense: Deus e a alma são objecto privilegiado <strong>da</strong> sabedoria.Em De ordine Sto. <strong>Agostinho</strong> traçara o plano para a Filosofia, afirmando tratar-se<strong>da</strong>quela disciplina que se ergue como resultado de uma convergência entre a ciência dosNúmeros e a Dialéctica 365 . Descrevendo o seu conteúdo, apresenta-o como uma magnasilua rerum. Ora, o elenco dos t<strong>em</strong>as a tratar pela Filosofia aproxima-se <strong>da</strong>queleconjunto de questões que <strong>Agostinho</strong> lhe atribui <strong>em</strong> Confessionum 366 . Num caso enoutro, o Hiponense assume que a resolução <strong>da</strong>s aporias e enigmas acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> se364 Cf. Conf. VII, X, 16-VII, XVI, 22 ( CCL 27, p. 103-106).365 Cf. DO II, XVIII, 47 ( CCL 29, p. 132-133).366 Cf. Conf. VII, II, 3; VII, V, 7 ( CCL 27, p. 93-94; p. 96-97).241


esolverá pelo mesmo método: animus sibi redditus, até ascender ao Princípio s<strong>em</strong>Princípio de to<strong>da</strong>s as coisas. A esta luz, é possível sintetizar a referi<strong>da</strong> imensa florestade coisas num único objecto para a Filosofia, afinal, na análise <strong>da</strong> relação queestabelec<strong>em</strong> duas reali<strong>da</strong>des espirituais: Deus e a alma.Soliloquiorum libri duo é a primeira obra onde, directa e exclusivamente, Sto.<strong>Agostinho</strong> se propõe abor<strong>da</strong>r aquele objecto específico. A possibili<strong>da</strong>de de alcançar umsaber sobre aquelas duas reali<strong>da</strong>des <strong>em</strong> estreita relação é condição prévia do avanço dodiscurso, sendo disso test<strong>em</strong>unho, no Livro I e no que ao conhecimento de Deus serefere, o <strong>em</strong>prego do modelo de ciências como a geometria para o tipo de certeza que sequer obter acerca do divino. O mesmo é dito <strong>em</strong> De ordine, quando <strong>Agostinho</strong> prometealcançar, para as reali<strong>da</strong>des como Deus e a alma, um tipo de evidência superior ao <strong>da</strong>soma dos números 367 . Com efeito, encontrar um modo de identificar o conhecimento deDeus, uma vez atingido tal saber, é uma dificul<strong>da</strong>de que interpela a razão e exigereflexão.A discussão entre a Razão e <strong>Agostinho</strong>, que abre um escrito como Soliloquiorum,permite antever, desde logo, que a definição de Deus será identifica<strong>da</strong> com a reali<strong>da</strong>deSupr<strong>em</strong>a e Única, <strong>da</strong>do que não há possibili<strong>da</strong>de de encontrar um conhecimento que seass<strong>em</strong>elhe ao do divino. Por outra parte, este mesmo facto faz perigar a ver<strong>da</strong>de doconhecimento acerca de Deus, r<strong>em</strong>etendo-o para o domínio <strong>da</strong> probabili<strong>da</strong>de.Proposições deriva<strong>da</strong>s do domínio de ciências como a geometria, pod<strong>em</strong> server<strong>da</strong>deiras, pois são imutáveis e certas. Mas o conhecimento de Deus não t<strong>em</strong> referenten<strong>em</strong> na mente humana, n<strong>em</strong> no Universo material, <strong>da</strong>do que supera ambos os domíniosde reali<strong>da</strong>de. Como, então, afirmar a ver<strong>da</strong>de de tal conhecimento, se é que ele épossível?Ao colocar esta questão, situando-a no nível epistémico, Sto. <strong>Agostinho</strong> nãosubscreve, novamente, a posição dos Académicos, que distinguiu e ultrapassousofrivelmente <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos. A questão que ora se coloca é outra, inerente àinefabili<strong>da</strong>de do ser divino, já explicitamente declara<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine – Deus é aquelareali<strong>da</strong>de que mais se conhece desconhecendo. Trata-se, antes, de tomar posição perantea possibili<strong>da</strong>de de conjugar a situação de reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, que se quer atribuir a Deus,367 Cf. DO II, VII, 24 (CCL 29, p. 120), denota, sobretudo, o tipo de evidência que Sto. <strong>Agostinho</strong>pretende para as reali<strong>da</strong>des que estão no âmago <strong>da</strong> Filosofia e, concretamente, para a relação entre a almae Deus.242


com a <strong>da</strong> cognoscibili<strong>da</strong>de desse Princípio. Se tal ser está acima de tudo e, também, <strong>da</strong>mente humana, de que modo pode esta conhecê-lo? Estará Deus, porventura, acima <strong>da</strong>própria inteligibili<strong>da</strong>de, sendo-lhe esta nega<strong>da</strong>, como acontecia quer com a noçãoplotiniana de Uno, quer com a ideia platónica de B<strong>em</strong>? Sto. <strong>Agostinho</strong> quererá conciliaro primado de Deus na hierarquia dos entes e o atributo <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, também porantonomásia, na divin<strong>da</strong>de, tarefa que levará a termo <strong>em</strong> De libero arbitrio. EmSoliloquiorum a razão exige, ain<strong>da</strong>, uma adesão de tipo fiducial àquela convicção de<strong>Agostinho</strong>, pois o argumento falha, substituindo-se pelo recurso à metáfora que coloca apar as três dimensões <strong>da</strong> luz solar - ser, brilhar, iluminar – e a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>dedivina – ser, ser inteligível, e conferir inteligibili<strong>da</strong>de a todo o real 368 .To<strong>da</strong>via, se <strong>em</strong> Soliloquiorum o conhecimento que o filósofo adquiriu de Deus sóatingiu o grau de probabili<strong>da</strong>de, inversamente, no que à alma se refere, a possibili<strong>da</strong>dede auto-conhecimento fica patente, quando se afirma que o pensamento – noçãoidentifica<strong>da</strong>, no referido escrito, com o exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitiva, expressa peloverbo cogitare - é critério e fun<strong>da</strong>mento indubitável de ver<strong>da</strong>de 369 . Ora, precisamenteesta diferença de adesão <strong>da</strong> mente ao objecto conhecido - probabili<strong>da</strong>de, no caso deDeus, ver<strong>da</strong>de, no caso do acto de pensar -, é indicadora <strong>da</strong> discrepância substancialcom que se apresentam à mente as duas reali<strong>da</strong>des <strong>em</strong> questão. Investigar acerca deDeus e investigar acerca <strong>da</strong> mente são in<strong>da</strong>gações que obrigam a razão humana a situarse<strong>em</strong> distintos planos na hierarquia ontológica, perspectivando a questão desdediferentes prismas.Com efeito, a natureza de Deus é infinita, enquanto finita é a <strong>da</strong> mente.Igualmente, procurar conhecer Deus é uma activi<strong>da</strong>de diferente <strong>da</strong> que in<strong>da</strong>ga acerca desi próprio. Assim, por um lado, é um facto que o movimento de ascese <strong>da</strong> razão paraDeus exige que a mente se ultrapasse a si mesma, d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>ndo a elevação dela <strong>em</strong>368 Cf. Solil. I, VIII, 15 (CSEL 89, p 23-24).369 Solil. II, I, 1: “ (...) R. Cogitare te scis? A. Scio. R. Ergo verum est cogitare te." ( CSEL 89, p. 45). Aúnica certeza que a Razão admite é a <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do pensamento, tendo sido coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> seevidência do desejo de auto-conhecimento depende, ou não, <strong>da</strong> razão. « (…) R. Tu qui vis te nosse, scisesse te? A. Scio. R. Vnde scis? A. Nescio." ( CSEL 89, p. 44). Posteriormente, <strong>em</strong> De libero arbitrio, Sto.<strong>Agostinho</strong> <strong>da</strong>rá um passo decisivo na direcção do conhecimento <strong>da</strong> razão, afirmando que, no exercício <strong>da</strong>sua activi<strong>da</strong>de, ela contém implicitamente a certeza <strong>da</strong> existência, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e do entendimento, de tal modoque o próprio acto <strong>da</strong> vontade assenta na essência <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de humana, estando, por isso,impregnado de ord<strong>em</strong>. Esta manifesta-se nesse movimento primordial de tensão do espírito <strong>em</strong> direcçãoao saber.243


direcção a uma reali<strong>da</strong>de que lhe é superior. Por esta razão, uma tal forma deconhecimento não pode ter, na própria mente, a sua justificação última 370 . Por outrolado, é também um facto, absolutamente coerente com a lógica de uma concepção domundo onde os seres se dispõ<strong>em</strong> segundo uma maior ou menor participação nos grausesse-uiuere-intellegere, que o auto conhecimento será perfeito quando a mentecompreender a relação que ela própria estabelece com o princípio <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de, asaber, a Supr<strong>em</strong>a Ver<strong>da</strong>de. De facto, só então a alma humana terá, de si mesma, comode to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de sobre a qual inci<strong>da</strong> o seu raciocínio, uma concepção universal, umaperspectiva comum, trans-subjectiva, característica <strong>da</strong> sabedoria.A percepção <strong>da</strong> summa conuenientia é o objectivo último <strong>da</strong> análise augustiniana<strong>da</strong> relação entre Deus e a alma. Ora, tal apreensão é idêntica ao conhecimento <strong>da</strong>perfeita ord<strong>em</strong> e harmonia dos seres, aquela que resulta <strong>da</strong> adequação <strong>da</strong>s formas dosseres, na sua diversi<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de, ao lugar próprio de ca<strong>da</strong> um, suposta abon<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as expressões de existência. To<strong>da</strong>via, antes de alcançar estafinali<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> vai arreca<strong>da</strong>ndo el<strong>em</strong>entos que se aproximam do núcleo <strong>da</strong>argumentação, ao mesmo t<strong>em</strong>po que afastam dificul<strong>da</strong>des. Assim, um dos principaiscontributos de Soliloquiorum para equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> é a reafirmação <strong>da</strong>existência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de como condição de possibili<strong>da</strong>de de todo o juízo e, <strong>em</strong> particular,como princípio subjacente ao conhecimento de Deus e <strong>da</strong> alma, sendo aquela opatrimónio comum de to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de raciocinante 371 . Deste modo, é fácil antever que,quando o filósofo se propuser mostrar a evidência de uma noção supr<strong>em</strong>a, que designapor Deus, o fará estabelecendo uma identi<strong>da</strong>de entre tal noção e a Ver<strong>da</strong>de 372 .Também <strong>em</strong> Soliloquiorum Sto. <strong>Agostinho</strong> prepara a mente para aderir àidenti<strong>da</strong>de entre Ver<strong>da</strong>de e <strong>Ser</strong> quando, distinguindo proprie<strong>da</strong>des de proposições, comosão o ver<strong>da</strong>deiro e o falso, sublinha que a Ver<strong>da</strong>de, condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>370 VR XXXIX, 72: “(...) Recognosce igitur quae sit summa conuenientia. Noli foras ire, in teipsum redi;in interiore homine habitat ueritas. Et si tuam naturam mutabil<strong>em</strong> inueniris, transcende et teipsum. Sedm<strong>em</strong>ento cum te transcendis, ratiocinant<strong>em</strong> animam te transcendere." (CCL 32, p. 234). A mesmaexpressão - "totum transcende, te ipsum transcende" - <strong>em</strong> <strong>Ser</strong>mo CCXXIII A , 3 ( = Denis II: MiAug 1, p.14).371 Solil. I, XV, 27: “ (...) R. Animam te certe dicis et deum velle cognoscere? A. Hoc est totum negotiummeum. (...) R. Quid? veritat<strong>em</strong> non vis comprehendere? A. Quasi vero possim haec nisi per illamcognoscere.” ( CSEL 89, p. 40).372 LA II, XV, 39: "(…) Si enim est aliquid excellentius ille potius deus est; si aut<strong>em</strong> non est, iam ipsaueritas deus est." ( CCL 29, p. 263-264).244


predicação, é, também, na mesma medi<strong>da</strong>, condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de predica<strong>da</strong> 373 . O objectivo do filósofo é, neste caso, evidenciar a condiçãoimortal e eterna <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, e o argumento é próximo <strong>da</strong>quele que expusera <strong>em</strong> ContraAcad<strong>em</strong>icos, torneando o cepticismo radical de Carneades, pela afirmação <strong>da</strong> pereneveraci<strong>da</strong>de dos predicados de disjunção exclusiva 374 .O entendimento desta exposição de Soliloquiorum completa-se com o argumentode Contra Acad<strong>em</strong>icos, onde se afirma a anteriori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação às d<strong>em</strong>aisreali<strong>da</strong>des, nos diferentes modos de manifestação. To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de só pode serpercebi<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que dela participa. Assim, a Ver<strong>da</strong>de éapresenta<strong>da</strong> com priori<strong>da</strong>de não apenas lógica, mas ontológica, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> queaquele princípio supr<strong>em</strong>o se apresenta como condição de possibili<strong>da</strong>de não só <strong>da</strong>percepção de um <strong>da</strong>do objecto, mas também <strong>da</strong> sustentação do seu ser. Esta priori<strong>da</strong>deontológica, que o filósofo legitimará ulteriormente, constitui, do ponto de vistametodológico, o argumento decisivo contra o cepticismo, pois dissocia, definitivamente,o ser <strong>da</strong>s coisas e a percepção <strong>da</strong>s mesmas. O princípio que garante a existência de umadetermina<strong>da</strong> forma de ser não é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a percepção dessa forma, mas aVer<strong>da</strong>de, que permite predicar, de uma determina<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, o seu ser ver<strong>da</strong>deiro oufalso.Com efeito, ao analisar a relação entre Deus e a alma - assumindo-a como objectoprincipal <strong>da</strong> Filosofia, o qual irá adquirindo complexi<strong>da</strong>de, não apenas porque seampliará, mas porque, no referente à t<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> causa, irá contrair formas aporéticas -,Sto. <strong>Agostinho</strong> pretende trazer a claro as virtuali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> metodologia neoplatónica doregressus animae. Entre elas, destaca-se o contributo para contornar a dúvi<strong>da</strong>373 Solil. I, XV, 28: "(…) R. (…) Quamvis enim non cre<strong>da</strong>s sensibus possisque respondere ignorare teprorsus, utrum arbor sit, tamen illud non negabis, ut opinor, veram esse arbor<strong>em</strong>, si arbor est ; non enimhoc sensu, sed intellegentia iudicatur. Si enim falsa arbor est, non est arbor; si aut<strong>em</strong> arbor est, vera sitnecesse est." (CSEL 89, p. 41-42).374 Solil. II, II, 2 : “ (...) R. Si manebit s<strong>em</strong>per mundum iste, verum est mundum s<strong>em</strong>per mansurum esse?A. Quis hoc dubitet? R. Quid ? si non manebit, nonne ita verum est mundum esse mansurum? A. Nihilresisto.” ( CSEL 89, p. 48). V. também CA III, X, 23 – XI, 24 ( CCL 29, p. 48-49). O mesmo raciocíniopode aplicar-se, ain<strong>da</strong>, à própria noção de Ver<strong>da</strong>de, como prossegue o texto de Solil. II, II, 2: “R. Quid ?si ipsa veritas occi<strong>da</strong>t, nonne verum erit veritat<strong>em</strong> occidisse? A. Et istud quis negat ?” (CSEL 89, p. 48).Esta proposição entra <strong>em</strong> contradição com a pereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>em</strong> Soliloquiorum Sto. <strong>Agostinho</strong>servir-se-á desse facto para mostrar a subsistência eterna ou a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ueritas.245


epist<strong>em</strong>ológica que incide sobre a falibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> percepção sensível, ficando porcontornar o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> falsificação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de percebi<strong>da</strong>.Outra quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela metodologia reside na percepção <strong>da</strong> própria existência apartir <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, sublinhando o primado <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de sobre o ser, facto que, <strong>em</strong>si, na<strong>da</strong> acrescenta de inovador ao modo como o neoplatonismo entende que o real seconstitui. Porém, partindo <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> mente o filósofo vai mais além e conclui aidentificação entre Ver<strong>da</strong>de e <strong>Ser</strong>, quer no plano, imutável e eterno, do PrincípioSupr<strong>em</strong>o de Reali<strong>da</strong>de, quer naquele outro, contingente e sujeito ao t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong>s infinitasformas que depend<strong>em</strong> do Princípio 375 .Em última instância, a fronteira que d<strong>em</strong>arcará a diferença entre a mundividênciaplatónica e a metafísica augustiniana será delinea<strong>da</strong> pela noção bíblica de creatio, a qualimplica uma revisão e um aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> categoria ontológica <strong>da</strong> relação, no caso aque se estabelece entre Deus e a alma. Assim, se é possível encontrar passagensparalelas às de Soliloquiorum <strong>em</strong> escritos posteriores, dos quais alguns passos de Deuera religione são paradigmáticos, as categorias filosóficas que suportam este discursosofreram, efectivamente, um aprofun<strong>da</strong>mento por parte de <strong>Agostinho</strong> 376 .É um facto que o filósofo não fun<strong>da</strong>menta, nestes primeiros escritos, a razão <strong>da</strong>dependência do ser <strong>da</strong>s coisas <strong>em</strong> relação à Ver<strong>da</strong>de. Na reali<strong>da</strong>de, o neoplatonismopermitia fazer depender <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> hipóstase a inteligibili<strong>da</strong>de do real, mas é discutívelse, <strong>em</strong> alguma versão, chegara a defender uma dependência no ser. Em qualquer caso, epor maior que possa ser a aproximação entre cristianismo e platonismo, o Hiponenset<strong>em</strong> consciência <strong>da</strong> diferença, pois mesmo supondo, ao nível <strong>da</strong>s hipóstases supr<strong>em</strong>as, adependência entre <strong>Ser</strong> e Inteligibili<strong>da</strong>de, tratar-se-iam de hipóstases onde a identi<strong>da</strong>dede essência não se verifica. Inversamente, <strong>Agostinho</strong> quer afirmar a Uni<strong>da</strong>de naTrin<strong>da</strong>de, no que à natureza do Princípio se refere. Por isso, a dedução do fun<strong>da</strong>mentodo ser <strong>da</strong>s coisas na Ver<strong>da</strong>de exigirá, por um lado, a afirmação <strong>da</strong> dependência375 VR XXXVI, 66: “ Sed cui salt<strong>em</strong> illud manifestum est falsitat<strong>em</strong> esse, qua id putatur esse, quod nonest, intellegit eam esse ueritat<strong>em</strong>, quae ostendit id quod est. (…) Si enim falsitas ex his est, quae imitanturunum, non in quantum id imitantur, sed in quantum implere non possunt, illa est ueritas, quae id implerepotuit et id esse, quod illud est.” ( CCL 32, p. 230).376 VR XXXIX, 73: “(…) Omnis ergo, qui utrum sit ueritas dubitat, in se ipso habet uerum, unde nondubitet, nec ullum uerum nisi ueritate uerum est.” ( CCL 32, p. 235); VR XL, 76:” (…)Verum enimnostrum iudicium, siue de toto siue de parte iudicet, pulchrum est, uniuerso quippe mundo superfertur necalicui parti eius, in quantum uerum iudicamus, adhaer<strong>em</strong>us.” ( CCL 32, p. 237).246


ontológica dos seres <strong>em</strong> face de um Princípio que É por essência e, por outro, aidentificação, nesse Princípio, entre <strong>Ser</strong> e Ver<strong>da</strong>de. Este passo será <strong>da</strong>do com ainsistência de Sto. <strong>Agostinho</strong> na dependência de to<strong>da</strong>s as formas de existência <strong>em</strong> facede um Princípio Criador que é Suma Inteligibili<strong>da</strong>de, o Verbo Eterno. Tal dedução t<strong>em</strong>fun<strong>da</strong>mento bíblico, mas o filósofo afirma que ela é conciliável com aquilo que lera nosescritos dos Platónicos. Porém, a insistência <strong>em</strong> asseverar, na essência <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, aidenti<strong>da</strong>de de natureza <strong>da</strong>s três hipóstases, princípio que a leitura <strong>da</strong> Bíblia anunciaria aoHiponense, hão-de separar claramente a mundividência augustiniana <strong>da</strong>quela expostanos Platonicorum Libri. Entre outros, este é um el<strong>em</strong>ento que as dissocia: a trin<strong>da</strong>deplatónica supõe subordinação de hipóstases <strong>em</strong> Deus, factor que <strong>Agostinho</strong> s<strong>em</strong>prerejeitará.No que se refere à relação entre Deus e a alma, <strong>em</strong> Soliloquiorum <strong>Agostinho</strong>obteve já alguns el<strong>em</strong>entos úteis, não obstante a identificação entre aquela noção e aVer<strong>da</strong>de permanecer implícita, até à consagra<strong>da</strong> argumentação do Livro II de De liberoarbitrio. Na obra supra referi<strong>da</strong>, o filósofo conquista para a noção de Ver<strong>da</strong>defun<strong>da</strong>mentalmente dois atributos: a incorruptibili<strong>da</strong>de e a não ubicação. Espaço e t<strong>em</strong>posão categorias a que aquela noção é alheia. Assim, já <strong>em</strong> Soliloquiorum <strong>Agostinho</strong>admite, como único conhecimento ver<strong>da</strong>deiro, a certeza acerca do acto de pensar, noqual implica, desde logo, o conhecimento de si como o de uma natureza que existe evive. Este será o fun<strong>da</strong>mento para a construção de uma via indubitável de conhecimento<strong>da</strong> alma e de Deus. Se <strong>em</strong> Soliloquiorum a única ver<strong>da</strong>de que <strong>Agostinho</strong> admite é acerteza, experimenta<strong>da</strong> no próprio acto de pensar, de que a existência humana é dota<strong>da</strong>de vi<strong>da</strong> racional, é natural que o discurso inci<strong>da</strong>, de imediato, na análise <strong>da</strong> razão, comose não houvesse mais mediações entre a razão e aquela noção supr<strong>em</strong>a. Assim, nãoobstante o filósofo pretender um argumento que lhe garanta a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, <strong>em</strong>Soliloquiorum não atinge o objectivo proposto. Com efeito, o filósofo perde-se <strong>em</strong>considerações sobre a natureza <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong>de e v<strong>em</strong> a incidir, novamente,sobre a eruditio, el<strong>em</strong>ento extrínseco à relação ontológica que se estabelece entre Deuse a alma 377 .377 Em Retract. I, IV, 1, Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece não ter alcançado o objectivo proposto para o Livro IIde Soliloquiorum, a saber, d<strong>em</strong>onstrar a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma: “ (...) In secundo aut<strong>em</strong> de immortalitateanimae diu res agitur et non peragitur.” ( CCL 57, p. 14).247


Tal como <strong>em</strong> De ordine uma resposta para as aporias que a mente enfrenta quandoquer compreender a coexistência entre um Princípio supr<strong>em</strong>o de Bon<strong>da</strong>de e a existênciado mal é r<strong>em</strong>eti<strong>da</strong> para a dedicação <strong>da</strong> mente à ord<strong>em</strong> dos estudos, também <strong>em</strong>Soliloquiorum o filósofo não vislumbra uma outra solução para deduzir a imortali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> alma fora <strong>da</strong> própria natureza do saber, sendo este considerado imortal. Se o saberreside na alma, esta será igualmente imperecedoura 378 .Porém, tais respostas, que recorr<strong>em</strong> a argumentos extrínsecos ao esclarecimento<strong>da</strong> relação pretendi<strong>da</strong>, não ating<strong>em</strong> universali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do que, na conclusão <strong>em</strong> análise,só o hom<strong>em</strong> erudito e sábio possuiria uma alma imortal. Neste contexto, <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> deimediato quer a dificul<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de definir qu<strong>em</strong> é o hom<strong>em</strong> sábio,quer a restrição do alcance <strong>da</strong> sabedoria, precisamente por parte do sujeito <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> elareside 379 . Ora, este facto contradiz a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas, pois faz que uma reali<strong>da</strong>deinferior – a alma e as suas quali<strong>da</strong>des – limite uma outra, Superior – Deus, na suainfinitude. Com efeito, é esta a tese defendi<strong>da</strong> pelo neoplatonismo, como aliás por to<strong>da</strong>sas gnoses, entre as quais se conta o próprio maniqueísmo. A sabedoria reserva-se a umgrupo de eleitos, do mesmo modo que só a eles será <strong>da</strong>do compreender o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> e possuir uma vi<strong>da</strong> boa e pacata. Sendo assim, a imortali<strong>da</strong>de também a eles serestringe, não sendo possível afirmar que ela é uma quali<strong>da</strong>de intrínseca <strong>da</strong> almahumana, mas apenas o resultado de uma conquista do esforço <strong>da</strong> razão.As soluções acha<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong> para a natureza <strong>da</strong> alma e para a imortali<strong>da</strong>dedela, nomea<strong>da</strong>mente nos escritos redigidos ain<strong>da</strong> na Ítala, não satisfaz<strong>em</strong> a exigência deuniversali<strong>da</strong>de, almeja<strong>da</strong> pelo filósofo. Por isso, o Hiponense prossegue a busca,concretamente <strong>em</strong> De immortalitate animae, opúsculo que ele próprio considera378 O mesmo raciocínio transita para De immort. anim. I, 1 : “ (...) Omne aut<strong>em</strong>, quod scit animus, in sesehabet nec ullam r<strong>em</strong> scientia complectitur, nisi quae ad aliquam pertineat disciplinam. Est enim disciplinaquarumcumque rerum scientia. S<strong>em</strong>per igitur animus humanus vivit.” ( CSEL 89, p. 102). V. também,Ep. III, 4, a Nebrídio ( CSEL 34/1, p. 8).379 A rectificação é feita explicitamente <strong>em</strong> Retract. I, IV, 4 (CCL 57, p. 15) com uma referência àdivergência de posições – a de <strong>Agostinho</strong> e a dos Platónicos –, a qual é comenta<strong>da</strong> pelo Hiponense v. gr.<strong>em</strong> DT XII, XV, 24 ( CCL 50A, p. 377-379). Sobre a mesma adopção inicial, por parte de <strong>Agostinho</strong>, <strong>da</strong>teoria platónica <strong>da</strong> r<strong>em</strong>iniscência, cf. De quant. animae XX, 34; XXVIII, 54-55 (CSEL 89, p. 173-174; p.200-202); Ep. VII, 1, a Nebrídio ( CSEL 34/1, p.13-14). E a respectiva rectificação, v. gr. <strong>em</strong> Retract. I,VIII, 2 (CCL 57, p. 22).248


envolvido <strong>em</strong> obscuri<strong>da</strong>de 380 , e num outro escrito, De quantitate animae, cujacomposição se r<strong>em</strong>ete já ao segundo período <strong>da</strong> estância romana, coincidindo, portanto,com o início <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção de outras obras, <strong>da</strong>s quais se destacam, para a questão <strong>em</strong>apreço, De libero arbitrio e De uera religione.Sobre a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, <strong>em</strong> síntese, o raciocínio prossegue na mesma linhade Soliloquiorum: se é eterno aquilo que permanece, de modo estável, num sujeito <strong>da</strong>do,então esse mesmo sujeito permanece para s<strong>em</strong>pre 381 . Se a ciência é eterna e permanecena alma, então a alma é eterna, pois se perecesse a alma, com ela morreria a própriaVer<strong>da</strong>de. Com efeito, ela é condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ciência, que se define comointellegentia ueritatis 382 .Efectivamente, <strong>em</strong> De immortalitate animae, mais do que uma reflexão sobreDeus e a alma, Sto. <strong>Agostinho</strong> debruça-se sobre a relação entre corpo e alma, paramostrar a diferença de naturezas entre ambos. Se o corpo é corruptível e mortal, dotadode movimento e sujeito ao t<strong>em</strong>po, a alma possui as proprie<strong>da</strong>des inversas, sendoimutável e eterna 383 . O argumento não colhe, pois continua ausente uma definição dotermo animus, que permita distinguir esta noção do conceito de anima, b<strong>em</strong> comoestabelecer a diferença entre essas duas noções e a própria ideia de ratio.<strong>Agostinho</strong> apercebe-se <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de determinar fronteiras para estesconceitos, pois já se confrontara com ela de modo explícito <strong>em</strong> De ordine 384 ,enfrentando-a de novo <strong>em</strong> De immortalitate animae 385 . Neste escrito, o filósofoestabelece, para o termo ratio, três definições possíveis – aspectus animae; uericont<strong>em</strong>platio; ipsum uerum 386 –, a partir <strong>da</strong>s quais ensaiará uma hipótese ded<strong>em</strong>onstração <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma.380 Cf. Retract. I, V, 1 (CCL 57, p. 15-16). O opúsculo deveria completar Soliloquiorum “ (...) quaeimperfecta r<strong>em</strong>anserant”. A leitura torna-se obscura, pois o texto parece mais um conjunto deapontamentos, onde a equivoci<strong>da</strong>de dos termos é frequente, pela ausência de mediações.381 Cf. Solil. II, XIII, 24 (CSEL 89, p. 78-79).382 Cf. Ep. III, 4: ( CSEL 34/1, p. 8).383 Cf. De immort. anim. III, 3 ( CSEL 89, p 103-104).384 DO II, XI, 30 : “Ratio est mentis motio ea, quae discuntur, distinguendi et conectendi potens, qua duceuti ad deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usque quaque est animam rarissimum omninogenus hominum potest non ob aliud, nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in s<strong>em</strong>etipsum cuique difficile est.” ( CCL 29, p. 124).385 De immort. anim. II, 2 : « (…) Ratio profecto aut animus est, aut in animo. » ( CSEL 89, p. 102).386 Cf. De immort. anim. VI, 10 ( CSEL 89, p. 110-111).249


No primeiro caso, a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma concluir-se-ia a partir <strong>da</strong> imutabili<strong>da</strong>de<strong>da</strong> razão, sendo entendi<strong>da</strong> como um aspecto dela. Mas a dificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong>erge quando seconsidera que a alma é princípio de movimento do corpo, agindo sobre ele, pois não sevê de que modo se estabelece a união entre estas duas reali<strong>da</strong>des de natureza divergente,corpo e alma. O mesmo raciocínio é preservado <strong>em</strong> De musica, quando Sto. <strong>Agostinho</strong>analisa a estrutura <strong>da</strong> sensação. De facto, o filósofo não pode prescindir facilmente dest<strong>em</strong>odo de pensar acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> razão, <strong>da</strong>do que ele assenta sobre um princípio decarácter ontológico, a saber, a gra<strong>da</strong>ção dos seres, dispostos <strong>em</strong> função <strong>da</strong> maior oumenor proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas deles <strong>em</strong> relação ao ser supr<strong>em</strong>o – factor que determinaa disposição <strong>da</strong>s formas <strong>em</strong> maius et minus esse -, e a impossibili<strong>da</strong>de de o inferior agirsobre o superior. A alma, superior ao corpo, não pode sofrer a activi<strong>da</strong>de deste sobre siprópria. Não pode, por conseguinte, ser sujeito de afecções corpóreas, ou sensações. Assensações serão entendi<strong>da</strong>s por Sto. <strong>Agostinho</strong> como efeito <strong>da</strong> atenção <strong>da</strong> alma àquiloque se passa no corpo, ao “choque” de outras reali<strong>da</strong>des, os corporalia, que <strong>em</strong>bat<strong>em</strong>nos órgãos corpóreos, alertando, assim, a alma para a presença de uma reali<strong>da</strong>deestranha a si mesma. Nesta medi<strong>da</strong>, não é ver<strong>da</strong>de que a alma seja imutável, pois é elaque anima o corpo, agindo sobre ele 387 .Atendendo à outra definição de ratio, enuncia<strong>da</strong> <strong>em</strong> De immortalitate animae, ofilósofo reincidirá sobre o argumento <strong>da</strong> subsistência do saber na alma do hom<strong>em</strong>erudito mediante o exercício <strong>da</strong>s liberales artes. Se, na alma, e por meio <strong>da</strong> razão,resid<strong>em</strong> as rationes numerorum e os d<strong>em</strong>ais saberes, to<strong>da</strong>s eles imutáveis, então a almadeve ser imutável, como o são tais saberes. To<strong>da</strong>via, cabe aqui considerar, ain<strong>da</strong>, umnível de “mutação”, a saber, aquele que deriva <strong>da</strong> ignorância ou do esquecimento. <strong>Ser</strong>áque estas circunstâncias do entendimento, associa<strong>da</strong>s à condição progressiva <strong>da</strong>aprendizag<strong>em</strong>, de que a própria activi<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica dá test<strong>em</strong>unho, deixam imuneeste argumento <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma? A resposta do Hiponense é negativa, pois osfenómenos do esquecimento e <strong>da</strong> ignorância são, no caso do conteúdo <strong>da</strong>s disciplinas,episódios t<strong>em</strong>porais, elaborados acerca de reali<strong>da</strong>des eternas. Assim, a passag<strong>em</strong> doesquecimento à recor<strong>da</strong>ção e <strong>da</strong> ignorância ao saber são efeitos <strong>da</strong> aplicação do métodomaiêutico, quer realizado por intervenção de terceiros, quer no confronto <strong>da</strong> almaconsigo mesma, tendo como resultado a descoberta, nela, dos princípios eternos de387 Fica por esclarecer o modo de relação entre o corpo e a alma. Sto. <strong>Agostinho</strong> r<strong>em</strong>ete o raciocínio paraa ideia de harmonia, ou congruentia partium. Veja-se, neste Cap., o § 2 – Innefabilis permixtio.250


ciências como a mat<strong>em</strong>ática ou a geometria. <strong>Agostinho</strong> adopta, neste caso particular <strong>da</strong>dedução <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, o esqu<strong>em</strong>a platónico para o conhecimento,assumindo, igualmente, o argumento <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de de essências entre a alma e asreali<strong>da</strong>des eternas.Por meio <strong>da</strong> dialéctica, a alma encontra <strong>em</strong> si reali<strong>da</strong>des eternas. Por isso, mesmose, por esquecimento ou por ignorância, parece não as possuir, a ver<strong>da</strong>de é que ela é tãoimortal quanto essas noções que <strong>em</strong> si mesma descobre, porquanto tais ver<strong>da</strong>des s<strong>em</strong>prelá estiveram presentes, sendo apenas t<strong>em</strong>poral o momento <strong>em</strong> que a alma assumeconsciência de tal presença. Não obstante a filiação platónica deste argumento, este éprecisamente um dos pontos de divergência entre <strong>Agostinho</strong> e os mestres <strong>da</strong>Antigui<strong>da</strong>de. Com efeito, <strong>em</strong>bora a alma descubra a Ver<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong> introspecçãoe <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, tal facto não significa que a natureza <strong>da</strong> alma seja essencialmenteidêntica à <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, ficando por explicar por que razão e de que modo ambas serelacionam. Em boa medi<strong>da</strong>, o raciocínio que evidencia a existência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de comonoção supr<strong>em</strong>a, exposto pelo filósofo <strong>em</strong> De libero arbitrio, t<strong>em</strong> por objectivo mostrarclaramente a diferença entre a natureza de tal noção e a <strong>da</strong> razão, que a descobre.To<strong>da</strong>via, se a referi<strong>da</strong> exposição deixará a claro a natureza <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, ela desampara oargumento <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, pois a não identi<strong>da</strong>de de natureza entre ambas,Ver<strong>da</strong>de e alma, será s<strong>em</strong>pre declara<strong>da</strong> pelo Hiponense.Em De immortalitate animae, a hipótese <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de entre as noções de ratio euerum é considera<strong>da</strong>, precisamente, a magna quaestio 388 . Nos dois primeiros casos,atendendo à definição de ratio, garante-se a relação entre animus e uerum. Mas, quantoà terceira possibili<strong>da</strong>de, a questão incide sobre a natureza do uerum. Em que consiste?Trata-se de uma reali<strong>da</strong>de subsistente per se ipsa, diferente <strong>da</strong> alma, existenteindependent<strong>em</strong>ente dela, não necessitando, portanto, dela, para subsistir? Neste caso, oargumento para a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, assente na filiação desta no uerum, recomeça aperigar.S<strong>em</strong> avançar na explanação do modo como a razão e o uerum se relacionam,<strong>Agostinho</strong> insiste na união entre animus e ratio. Na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a alma não estásepara<strong>da</strong> <strong>da</strong> razão e permanece uni<strong>da</strong> a ela, a alma subsiste e vive. Centrando o388 De immort. anim. VI, 10: “ (...) Ratio est aspectus animi, quo per seipsum, non per corpus verumintuetur; aut ipsa veri cont<strong>em</strong>platio, non per corpus; aut ipsum verum quod cont<strong>em</strong>platur. De tertio magnaquaestio est, utrum verum illud, quod sine instrumento corporis animus intuetur, sit per seipsum et non sitin animo aut possitne esse sine animo.” ( CSEL 89, p. 110: it. n).251


argumento <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma na relação entre ratio e uerum, o filósofo insta nosmodos de relação entre animus e ratio, investigando como se poderiam separar. Assim,tomando s<strong>em</strong>pre como horizonte a hierarquia ontológica e o princípio <strong>da</strong>impossibili<strong>da</strong>de de o inferior agir sobre o superior, Sto. <strong>Agostinho</strong> exclui apossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> separação entre ratio e animus quer mediante a influência de uma forçacorpórea, quer pela acção de outra alma, quer pela intervenção <strong>da</strong> própria razão 389 .Mesmo a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma na ignorância, que manifesta uma tendência ao na<strong>da</strong>, à morte, ede que resulta uma diminuição de ser, não conduz à aniquilação <strong>da</strong> alma 390 . A alma é,por definição, vi<strong>da</strong>, e não pode perder aquilo que é s<strong>em</strong> deixar de ser alma. Quando seconsidera a existência humana, não se avalia a forma de um ser dotado de vi<strong>da</strong>, masconsidera-se a vi<strong>da</strong>, que é princípio de vitali<strong>da</strong>de no ser que a possui 391 . Se à almapertence a vi<strong>da</strong>, a alma racional depende, por sua vez, <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de 392 . Tal factomanifesta-se mesmo na imperfeição e limitação próprias do exercício <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de.Deste modo, <strong>Agostinho</strong> considera que o próprio erro é, para a alma dota<strong>da</strong> de razão,uma manifestação e uma garantia, mesmo se diminuí<strong>da</strong> e imperfeita, <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong>de que acaracteriza.Ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> De immortalitate animae o filósofo enuncia as linhas essenciais doargumento no qual irá basear, posteriormente, o esclarecimento <strong>da</strong> relação entre Deus ea alma. Se a Ver<strong>da</strong>de é o ser supr<strong>em</strong>o e óptimo, que não t<strong>em</strong> contrário; se a alma obtémo seu ser a partir <strong>da</strong>quela Supr<strong>em</strong>a Essência s<strong>em</strong> contrário, então não há nenhuma outrareali<strong>da</strong>de que possa arrebatar à alma aquilo que ela possui, pois nenhuma reali<strong>da</strong>de écontrária ao <strong>Ser</strong> <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong> qual a alma recebeu o que possui. Aalma estará, portanto, s<strong>em</strong>pre segura do seu próprio ser 393 . Curiosamente, Sto.389 Cf. De immort. anim. VI, 11 (CSEL 89, p. 111).390 Cf. De immort. anim. VII, 12 – VIII, 15 ( CSEL 89, p. 113-117).391 Cf. De immort. anim. IX, 16- X, 17 ( CSEL 89, p. 117-119). A alma não é apenas a harmonia de doisel<strong>em</strong>entos, corpus et animus, mas uma proprie<strong>da</strong>de intrínseca de um modo específico de ser.392 Cf. De immort. anim. XI, 18 (CSEL 89, p. 119-121).393 Cf. De immort. anim. XII, 19 ( CSEL 89, p. 121-122). Ain<strong>da</strong> ficam por discutir alguns argumentos. Sea alma pode degra<strong>da</strong>r-se <strong>em</strong> corpo, voluntariamente ou pela força; se isso poderia acontecer durante osono ou pela influência de algum outro corpo, sendo a resposta negativa, <strong>em</strong> ambos os casos (Cf. Deimmort. anim. XIII, 20-XVI,25: CSEL 89, p. 122-128). Em outras obras, o Hiponense deixa fora dedúvi<strong>da</strong> a consistência ontológica <strong>da</strong> forma <strong>da</strong> alma humana, na qual se verifica uma união, absolutamenteindissociável, entre o corpo e a alma. Tal união só acidental e t<strong>em</strong>poralmente é quebra<strong>da</strong>, pelo fenómeno252


<strong>Agostinho</strong> afirmara querer saber acerca de Deus e <strong>da</strong> alma. Mas, quer <strong>em</strong>Soliloquiorum, quer <strong>em</strong> De immortalitate animae, a questão sobre Deus dissolve-se. Écerto que ela está oculta sob o termo Veritas, mas tal <strong>da</strong>do só será adquirido após aexposição de De libero arbitrio.Quanto a Soliloquiorum, não obstante a expressão inicial de um desideratofun<strong>da</strong>mental – Deum et animam scire cupio -, o filósofo acabaria por se centrar nascondições para o conhecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e na relação <strong>da</strong> razão com a ver<strong>da</strong>de oufalsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proposições. Em De immortalitate animae, Sto. <strong>Agostinho</strong> centrou-se,efectivamente, na relação entre ratio e animus, s<strong>em</strong> conseguir esclarecer n<strong>em</strong> o âmbitodestes dois princípios activos, n<strong>em</strong> a relação de ambas as noções com o corpo. Por isso,o opúsculo necessita de algumas rectificações, pois quanto aí é dito esfuma o horizonte<strong>da</strong> hierarquia ontológica e a referência ao <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Em Retractationum, o filósofojulga necessário revali<strong>da</strong>r um conjunto de afirmações expressas naquele escrito, pois sãoinadequa<strong>da</strong>s à natureza de Deus e ao modo como o Hiponense - transcorridos sobre osprimeiros escritos cerca de quarenta anos de reflexão - compreende a relação que aDei<strong>da</strong>de estabelece quer com a alma humana, quer com o Mundo 394 .Por sua vez, <strong>em</strong> De quantitate animae, ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> busca de compreender a relaçãoentre a alma e Deus, Sto. <strong>Agostinho</strong> discute com Evódio acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> alma.Muitas são as interrogações que aí <strong>em</strong>erg<strong>em</strong>: unde sit, qualis sit, quanta sit, curcorporis fuit <strong>da</strong>ta, cum ad corporis uenerit qualis efficiatur, qualis cum abscesserit 395 .Mas, nessa obra, trata-se principalmente de reflectir sobre uma <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong>alma: sendo grande, não o é <strong>em</strong> quanti<strong>da</strong>de, como se fosse um corpo, e, por isso, aqueleprincípio vital não que se deixa afectar pela extensão.A questão surge na continui<strong>da</strong>de do esforço de <strong>Agostinho</strong> por penetrar ness<strong>em</strong>undo de reali<strong>da</strong>des inteligíveis, dos quais faz<strong>em</strong> parte Deus e a alma. Efectivamente,se, na mente do filósofo, fora virtude <strong>da</strong> leitura dos Platonicorum a descoberta <strong>da</strong>possibili<strong>da</strong>de de pensar Deus, dissociando esta noção <strong>da</strong> ideia de uma substânciamaterial, o Hiponense necessitava prosseguir na mesma linha e encontrar, para a alma, amesma proprie<strong>da</strong>de. Ora, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> união íntima deste princípio com o corpo, atarefa carecia de algumas dificul<strong>da</strong>des. O esforço do filósofo consiste, então, <strong>em</strong> boacontra natura vulgarmente designado por morte. No que se refere à natureza <strong>da</strong> alma, Sto. <strong>Agostinho</strong>afirma que ela é alheia a todo o processo de corrupção, metamorfose, ou met<strong>em</strong>psicose.394 Cf. Retract. I, V, 2-3 (CCL 57, p. 16-17).395 Cf. Retract. I, VIII, 1 (CCL 57, p. 21-22); De quant. anim. XX, 34 ( CSEL 89, p. 173-174).253


parte, <strong>em</strong> mostrar como a percepção do espaço e <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des com ele conecta<strong>da</strong>s,como são a extensão e a distância, é de carácter imaterial, e confia-se, por isso, àm<strong>em</strong>ória, à imaginação, ao entendimento, ou a relações entre estas facul<strong>da</strong>des 396 .<strong>Agostinho</strong> quisera reflectir sobre Deus e a alma. To<strong>da</strong>via, nos escritos referidos, areflexão incide, sobretudo, sobre a relação entre a alma e o ver<strong>da</strong>deiro, por um lado, esobre a relação entre a alma e o corpo, por outro. No primeiro caso, trata-se de saberqual a fonte e a orig<strong>em</strong> do conhecimento, que se manifesta no discurso humano. Nosegundo, trata-se de analisar a estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de e o modo como o corpoestabelece relação quer com outros objectos, quer com a alma.Numa e noutra direcção, as conclusões que Sto. <strong>Agostinho</strong> obtém nos primeirosescritos levantam probl<strong>em</strong>as, antes de mais ao próprio Hiponense. Se é um facto que asdificul<strong>da</strong>des sobre a natureza e orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma hão-de persistir ao longo <strong>da</strong> suaprodução filosófica, contudo, ao analisar a natureza <strong>da</strong> mente humana, o Hiponenseesclarecerá, <strong>em</strong> boa parte, quer as dificul<strong>da</strong>des acerca a essência do conhecimento,expressas nos primeiros Diálogos, quer a relação entre a alma e a Ver<strong>da</strong>de e o lugar que,neste processo, ocupam a sensibili<strong>da</strong>de e a própria corporei<strong>da</strong>de humanas.2. Innefabilis permixtio 397Ao momento <strong>da</strong> sua conversão metafísica Sto. <strong>Agostinho</strong> tinha perante si,basicamente, duas formas de conceber a estrutura psicossomática humana. Ou odualismo, de cariz materialista, associado à concepção maniqueísta do Mundo – teseque o Hiponense quer rejeitar –, ou o dualismo, de s<strong>em</strong>blante platónico, entre o Mundosensível, no qual se integraria o corpo, e o Mundo inteligível, mora<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma. Se omaniqueísmo concebia o ser humano como a sede provisória de um grande combateentre dois princípios substanciais – deixando, afinal, inteiramente por justificar aexistência humana, enquanto tal –, o platonismo dificultava o posicionamento <strong>da</strong>questão: porquê a união psicossomática? Apenas porque o ser tende à união? Mas que396 Cf. De quant. anim. V, 8-VI, 10 ( CSEL 89, p. 140-143). O raciocínio prossegue com um longoexercício do espírito sobre reali<strong>da</strong>des geométricas, cuja finali<strong>da</strong>de é mostrar não tanto a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>alma, mas a imateriali<strong>da</strong>de dela, isto é, o seu carácter espiritual.397 Cf. De gen ad litt. III, 16 ( CSEL 28/1, p. 81-82).254


izarra <strong>em</strong>patia entre duas reali<strong>da</strong>des a tal ponto diss<strong>em</strong>elhantes poderia justificar estaincarnação <strong>da</strong> alma?A metafísica bíblica <strong>da</strong> Criação, por seu turno, também não era pródiga <strong>em</strong>justificações para o fenómeno. O recurso à metáfora – finxit deus homin<strong>em</strong> de limoterrae, et insufflauit in faci<strong>em</strong> eius flatum uitae, et factus est homo in animamuiuent<strong>em</strong> 398 –, não obstante identificar dois princípios, um Criador, outro criado, eestabelecer a dependência do segundo <strong>em</strong> face do primeiro, to<strong>da</strong>via não superava opróprio dualismo antropológico. De facto, ao afirmar a feitura do ser humano de limoterrae, o relato genesíaco acrescenta, a esta acção divina e ain<strong>da</strong> enquanto acção divina,o sopro do espírito. Só desta conjugação de dois el<strong>em</strong>entos, o corpo formado de limoterrae, e o espírito, insuflado por Deus naquela massa original, resultaria um ser vivo,designado por humano. Assim, o próprio relato do Livro do Génesis não superaclaramente o dualismo antropológico, já presente quer na tradição grega, quer no mitomaniqueísta, não obstante a divergência radical dos pressupostos perfilhados por estastrês posições.A in<strong>da</strong>gação acerca do modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> posiciona e tenta resolver aquestão <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste o ser humano é assaz complexa. Como conclusãodos esforços augustinianos por compreender esta união, verificar-se-á que a estrutura <strong>da</strong>corporei<strong>da</strong>de humana, enquanto tal e isola<strong>da</strong>mente, não é objecto de análise, por partedo filósofo 399 . Dito de um modo mais mitigado, pode comprovar-se, na obra doHiponense, a ausência, ou, pelo menos, a indigência de uma especulação <strong>em</strong> torno dofenómeno humano, na tentativa de justificar por que razão alma e corpo se un<strong>em</strong> numamesma substância designa<strong>da</strong> por homo. A estrutura psicossomática humana é, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, um facto, uma reali<strong>da</strong>de irrefragável 400 . Porém, a dificul<strong>da</strong>de senti<strong>da</strong> pelo398 Cf. De gen. cont. Manich. II, VII, 8-9 (PL 34, 200-201; CSEL 91, p. 127-128); De gen. ad litt. VI, 5-6;VII, 28 ( CSEL 28/1, p. 174-178; p. 226). V., também, todo o Livro X <strong>da</strong> mesma obra, onde a magnaquaestio acerca <strong>da</strong>s almas é encara<strong>da</strong> desde o ponto de vista <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> e <strong>da</strong> preexistência delas,questionando a relação de sucessão de umas almas <strong>em</strong> relação às outras.399 Sobre a noção augustiniana de corpus e a sua integração no composto humano, v. , sobretudo: RuthMargaret MILES, “Corpus” in Augustinus-Lexikon 2 (1996-2002) 6-20; Rosanna ANSANI, “Lacorporeità in Agostino”: Rivista di teologia morale 22 (1990) 333-336; G. MADEC, “’Caro christiana’.Saint Augustin et la corporalité” in Lectures Augustiniennes (Paris 2001) 257-270; E. MASSUTI, Ilprobl<strong>em</strong>a del corpo in sant’Agostino ( Roma 1989), máxime p. 97-108.400 <strong>Agostinho</strong> presta alguma atenção à estrutura corpórea do ser humano, <strong>em</strong> termos anatómicos. Combase no teor desses textos, alguns estudiosos dedicaram-se e in<strong>da</strong>gar as fontes dos designados255


Hiponense de encontrar uma justificação última para a causa <strong>da</strong> união entre o corpo e aalma, não permite concluir que o filósofo desvalorize a corporei<strong>da</strong>de humana, mas tãosóconsente deduzir que, quando considera o ser humano, o Hiponense enfrenta-o comototali<strong>da</strong>de, para a qual é váli<strong>da</strong> a já analisa<strong>da</strong> relação entre congruentia et aptitudo. Combase nesta relação, também para compreender o composto humano Sto. <strong>Agostinho</strong>atende ao princípio de ordenação dos seres, regra de ouro <strong>da</strong> estrutura do real, segundo aqual o superior deve reger o inferior ou agir sobre ele.Acerca <strong>da</strong> estrutura antropológica do ser humano, algumas indicações <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelofilósofo, que assum<strong>em</strong>, por vezes, carácter assertório, são peculiarmente significativas.Assim, no <strong>Ser</strong>mo XXX pode ler-se uma apreciação de carácter fenoménico, onde<strong>Agostinho</strong> evidencia o s<strong>em</strong>blante de totali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste o ser humano,independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> polémica <strong>em</strong> torno do modo como se constitui esse todo 401 . Éeste totum humano que o Hiponense defenderá s<strong>em</strong>pre, nas suas obras. É <strong>em</strong> funçãodele que discorre sobre a noção de ord<strong>em</strong> e que reflecte sobre o finis optimus. Afinal, étendo como horizonte o ser humano que Sto. <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>ga sobre a sabedoria e aposse dela, situação <strong>da</strong> qual resulta a felici<strong>da</strong>de. Ora, na estrutura psicossomáticahumana o filósofo valoriza aquilo que é superior - a mente espiritual, ou alma racional -s<strong>em</strong> que tal facto signifique adoptar uma concepção depreciativa <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de ouuma desvalorização <strong>da</strong> mesma. Na ver<strong>da</strong>de, ao assumir os princípios <strong>da</strong> metafísica cristã<strong>da</strong> Criação, Sto. <strong>Agostinho</strong> proclamará s<strong>em</strong>pre a bon<strong>da</strong>de essencial <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de, <strong>em</strong>to<strong>da</strong>s as suas manifestações e sob todos os aspectos, pois onde há forma, há expressãoconhecimentos médicos de <strong>Agostinho</strong> e a analisar o conteúdo deles. To<strong>da</strong>via, no plano antropológico, oHiponense não dissocia, sequer, os estados de enfermi<strong>da</strong>de e saúde, <strong>da</strong> união íntima que consideraestabelecer-se entre corpo e alma ( cf. De mus. VI; De gen. ad litt. VII). Sobre a ciência médica de Sto.<strong>Agostinho</strong> v. P. AGAËSSE/ A. SOLIGNAC, “Augustin et la science médicale” in Bibliothèqueaugustinienne. Œuvres de saint Augustin 48, p. 710-714.401 <strong>Ser</strong>mo XXX, 4: “ (...) Totum sanum sit uolo, quia totus sum ego. Nolo a me caro mea, tanquamextranea, in aeternum separetur, sed ut mecum tota sanetur.” (CCL 41, 384). A totali<strong>da</strong>de é, neste sermo,evidencia<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> rixa experimenta<strong>da</strong> pelo ser humano, entre o corpo e a alma, por meio do desejo<strong>da</strong>quele se antepor a esta. A doutrina do sermo XXX t<strong>em</strong> como horizonte de fundo a controvérsiapelagiana, discutindo se é, ou não, possível o ser humano fazer aquilo que quer. Esse non quod uolo ago éjustificado por Sto. <strong>Agostinho</strong> a partir <strong>da</strong> cisão entre corpo e alma introduzi<strong>da</strong> na estruturaantropogenética do ser humano pela decadência do primitus homo. Esse combate não implica dualismo desubstâncias <strong>em</strong> conflito, mas irrequietude ontológica introduzi<strong>da</strong> na intentio animi – tendendo à uni<strong>da</strong>de,o ser humano encontra, no seio <strong>da</strong> mesma uni<strong>da</strong>de que ele é, o conflito.256


de ser, de ord<strong>em</strong>, de bon<strong>da</strong>de e harmonia. Se há perversão, no caso, no ser humano,certamente ela não decorre <strong>da</strong> natureza de uma tal forma de ser, mas <strong>da</strong> corrupção que,sobre ela, exerce a vontade humana.Duas definições <strong>da</strong> estrutura do ser humano caminham a par, na obra doHiponense. Uma primeira segue a definição dos Antigos - sicut ueteres definierunt – eafirma que o ser humano é um animal racional mortal. Esta definição ocorre pelaprimeira vez <strong>em</strong> De ordine 402 e surge com constância nos primeiros escritos de Sto.<strong>Agostinho</strong> e nas obras do designado segundo período romano 403 . To<strong>da</strong>via, ela superaamplamente este período e transita, com o filósofo, novamente para África, ondeocorrerá <strong>em</strong> obras como De magistro, ou o Livro III de De libero arbitrio 404 . É ain<strong>da</strong>esta definição dos ueteri que se pode ler <strong>em</strong> De ciuitate dei 405 ou <strong>em</strong> De trinitate 406 ,b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> alguns trechos do Epistolário 407 , a denotar que Sto. <strong>Agostinho</strong> não aabandona, como se pertencesse a um universo cultural ultrapassado e inoperante,indiferente para a constituição <strong>da</strong> metafísica do Hiponense 408 .Uma outra definição – que aparece com insistência na obra do Hiponense e quepode ler-se, também, já <strong>em</strong> De ordine 409 – é aquela segundo a qual o ser humano éentendido como substância racional que consta de alma e corpo - homo est substantia402 Cf. DO II, XI, 31 “ Ac primum uideamus, ubi hoc uerbum, quod ratio uocatur, frequentari solet; namillud nos mouere maxime debet, quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est: homo est animalrationale mortale.” (CCL 29, p. 124).403 Cf. v. gr. De quant. anim. XXV, 47 (CSEL 89, p. 190); De moribus I, XXVII, 52 ( CSEL 90, p. 55).404 Cf. v. gr. De mag. VIII ( CCL 29, p. 180-184); LA III, 10, 30 ( CCL 29, p. 108).405 De ciu. dei XVI, VIII; XIX, XIII (CCL 48, p. 509; p. 679), onde se pode ler o ideal augustiniano <strong>da</strong>Paz e de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, termos aí <strong>em</strong> perfeita sinonímia, subjacentes a to<strong>da</strong> a metafísica do filósofo: “ (…) paxhominis mortalis et Dei [est] ordinata in fide sub aeterna lege oboedientia (…).”406 Cf. DT VII, IV, 7 ( CCL 50, p. 255); XV, VII, 11 (CCL 50A, p. 474).407 Cf. Ep. CLXVI, VI ( CSEL 44, p. 569).408 Este breve levantamento, não exaustivo, <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> definição dos ueteri – homo est animalrationale mortale – foi-nos suscitado por uma afirmação de E. Massuti, <strong>da</strong> qual nos distanciamos, porobscurecer a já difícil questão <strong>em</strong> análise. Com efeito, escreve o A.: “ (…) la difficoltà per un’adeguataconcezione dell’unità dell’uomo diviene evidente una volta che Agostino ha abbandonato l’unitàsostanziale aristotelicamente intesa” (E. MASSUTI, Il probl<strong>em</strong>a del corpo ..., p. 100; p. 100, n. 82). O A.fun<strong>da</strong>menta esta dependência aristotélica <strong>da</strong> definição de homo <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> DO II, 11, 31 a partir <strong>da</strong> leiturade COUTURIER, “ La structure métaphysique de l’homme d’après saint Augustin” in AugustinusMagister I, p. 543.409 Cf. DO II, II, 6 ( CCL 29, p. 109).257


ationalis constans ex anima et corpore 410 . Obviamente, uma <strong>da</strong>s anotações que Sto.<strong>Agostinho</strong> necessita de acrescentar de modo imediato é o facto de estar <strong>em</strong> causa umaalma racional, pois s<strong>em</strong> esta adjectivação a diferença específica não se acentuaria, e oser humano seria equiparado aos animais irracionais. Estas definições exigirão, <strong>da</strong> partedo Hiponense, pequenos ajustes, mas os seus componentes centrais estão já definidos. Oser humano é substância, isto é, totali<strong>da</strong>de, integri<strong>da</strong>de subsistente, que consta de umcorpo e de uma alma. Dotado de um corpo mortal e corruptível, o ser humano tende,contudo, à felici<strong>da</strong>de imperecedoura.Acerca <strong>da</strong>s referi<strong>da</strong>s definições <strong>da</strong> complexa estrutura humana, evidencia-se ofacto de elas se fundir<strong>em</strong> na obra do filósofo e se compl<strong>em</strong>entar<strong>em</strong>. Destacompl<strong>em</strong>entari<strong>da</strong>de dá conta de modo patente o <strong>Ser</strong>mo CL. Nele, Sto. <strong>Agostinho</strong> insistena superiori<strong>da</strong>de do ser humano <strong>em</strong> face dos d<strong>em</strong>ais seres vivos que, possuindo umaestrutura corpórea anima<strong>da</strong>, não são humanos. A alma, de que o ser humano consta, éum princípio de vi<strong>da</strong> racional, que se une a uma carne mortal. Além do mais – e esteaspecto é central nesta questão -, o ser humano, com a sua alma racional e a sua carn<strong>em</strong>ortal, essa totali<strong>da</strong>de enigmática que não se deixa abarcar <strong>em</strong> nenhuma definição,dirige-se a um telos determinado, o qual não se pode arre<strong>da</strong>r <strong>da</strong> sua estruturaantropológica : quaerit beata uita 411 .A definição do ser humano, substância – ou, como <strong>Agostinho</strong> chega a referir no<strong>Ser</strong>mo CL, persona 412 - que consta de alma racional e corpo mortal, funde a primeiradefinição numa outra, mais completa. To<strong>da</strong>via, <strong>em</strong> ambas subsiste o enigma: por querazão se une uma alma a um corpo, para formar um ser humano? Este enigma, por seuturno, desdobra-se <strong>em</strong> múltiplas interrogações. Umas diz<strong>em</strong> respeito à natureza docorpo, outras à orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma, outras, ain<strong>da</strong>, à razão de ser desta união.No que se refere à natureza do corpo, desde que adopta as categorias específicas<strong>da</strong> metafísica cristã <strong>da</strong> Criação, o Hiponense não t<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>: o corpo humano, comoto<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, depende do princípio supr<strong>em</strong>o de ser, ou Deus, <strong>em</strong> todos os aspectos410 Cf. DT XV, VII, 11 ( CCL 50A, p. 474).411 <strong>Ser</strong>mo CL, IV, 5 : “ (…) homo, inquam, id est, res ista non parua, praecedens omnia pecora, omniauolatilia, omnia et natatilia, et quidquid carn<strong>em</strong> gerit et homo non est: homo ergo constans ex anima etcorpore; sed non qualicumque anima, nam et pecus constat ex anima et corpore: homo ergo constans exanima rationali et carne mortali, quaerit beatam uitam.” ( PL 38, 810 ).412 <strong>Ser</strong>mo CL, IV, 5: “ (...) substantia ista, res ista, persona ista quae homo dicitur, beatam uitam quaerit:et hoc nostis; nec insto ut cre<strong>da</strong>tis, sed admoneo ut agnoscatis.” (PL 38, 810: it. n. ).258


<strong>da</strong> dialéctica triádica <strong>da</strong>s categorias ontológicas nele presente - ordo, mensura, numerus413 .No que se refere à orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma, Sto. <strong>Agostinho</strong> hesita e não toma posiçãodefini<strong>da</strong>, apenas <strong>em</strong>itindo, ao longo <strong>da</strong> sua obra, um juízo de probabili<strong>da</strong>de, umainterpretação pessoal que faz sentido no contexto <strong>da</strong> sua visão do mundo, não obstante ofilósofo reconhecer que a sua proposta não é n<strong>em</strong> exclusiva, n<strong>em</strong> definitiva, n<strong>em</strong> deâmbito universal. Porém, no que diz respeito à união entre estas duas reali<strong>da</strong>des, corpomortal e alma racional, não obstante a dificul<strong>da</strong>de, o Filósofo de Hipona avança algunsel<strong>em</strong>entos, de carácter quase meramente indicativo, <strong>da</strong>do que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, omistério prevalecerá s<strong>em</strong>pre digno de admiração e s<strong>em</strong> resolução cabal. Com efeito, aunião de uma reali<strong>da</strong>de superior, como é a alma espiritual e racional, com uma reali<strong>da</strong>deinferior, como é o corpo material, mais ain<strong>da</strong> estando este sujeito à morte e à corrupção,parec<strong>em</strong> infringir a própria ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas, <strong>da</strong>do que o inferior é assumido –activamente, e não apenas como mero instrumento - pelo superior 414 .No que se refere à estrutura psicossomática do ser humano, o filósofo não reflecteassaz sobre a própria corporei<strong>da</strong>de. Considera-a como uma <strong>da</strong>s expressões de matéria,entre as d<strong>em</strong>ais, e aplica-lhe tudo quanto é comum à análise que faz dos corporalia <strong>em</strong>geral. Quando muito, <strong>em</strong> contexto exegético é possível detectar, nomea<strong>da</strong>mente nocomentário augustiniano à Obra dos Seis Dias, uma reflexão específica sobre aformação do corpo humano e, <strong>em</strong> particular, do corpo de Adão 415 . Estas reflexõesencontram-se dispersas nos escritos de <strong>Agostinho</strong> e assum<strong>em</strong> alguma sist<strong>em</strong>atici<strong>da</strong>de<strong>em</strong> De genesi ad litteram libri duodecim.À pergunta “de que modo Deus modelou o corpo humano de limo terrae?”, oHiponense rejeita to<strong>da</strong> a interpretação antropomórfica do divino que atribua a Deus acorporei<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mãos e o <strong>em</strong>prego delas para modelar uma qualquer matéria.413 Mesmo quando corrobora a expressão de Porfírio segundo a qual se deve desprezar todo o corpo, poisele é um estorvo para a alma; mesmo quando recor<strong>da</strong>, com S. Paulo, que o corpo, el<strong>em</strong>ento de corrupção,é um peso para a alma, e ironiza acerca dos filósofos que colocam, no corpo ou nas reencarnações dele, afelici<strong>da</strong>de que buscam como termo <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixa de salvaguar<strong>da</strong>r a belezado corpo humano e de assinalar que os el<strong>em</strong>entos que o compõ<strong>em</strong> são objecto de admiração.414 De ciu. dei XXI, X: “ (…) quia et iste modus, quo corporibus adhaerent spiritus et animalia fiunt,omnino mirus est, nec comprehendi ab homine potest, et hoc ipse homo est.” ( CCL 48, p. 776).415 Sobre a estrutura antropológica de Adão, v. Gerald BONNER, “A<strong>da</strong>m” in C. MAYER (ed.),Augustinus-Lexikon 1 (1986-1994) 63-87.259


Basicamente, a interpretação augustiniana incidirá no espírito do texto, querendoevidenciar tanto o primado do ser humano sobre as d<strong>em</strong>ais formas de existência, como ofacto de esta supr<strong>em</strong>acia não residir no corpo, n<strong>em</strong> no modo de formação dele por partede Deus, mas na mente humana, imago dei. To<strong>da</strong>via, tal como, <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des corpóreas, Sto. <strong>Agostinho</strong> vê umindício ou vestígio <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, também no corpo humano, nomea<strong>da</strong>mente na posiçãovertical dele, o filósofo encontra um indício de similitude, não obstante longínqua, comDeus 416 .Quanto à especifici<strong>da</strong>de do modo de criação do corpo de Adão, a reflexão de Sto.<strong>Agostinho</strong> ron<strong>da</strong> <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> corruptibili<strong>da</strong>de do corpo do ser humano, enquantofenómeno universal ou, dito de outro modo, <strong>da</strong>quele el<strong>em</strong>ento que entra na definiçãodos Antigos e que afirma, acerca <strong>da</strong> estrutura humana, a união entre a vi<strong>da</strong> racional e amorte do corpo. O Filósofo de Hipona quer in<strong>da</strong>gar, antes de mais, se, de acordo com orelato genesíaco, o corpo de Adão, no seu estado originário e antes <strong>da</strong> corrupção neleintroduzi<strong>da</strong> pelo pecado, era espiritual ou corporal/mortal 417 . A resposta é complexa,mas introduz, desde já, um el<strong>em</strong>ento de meta-antropologia, que será fulcral nacompreensão <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>: a ideia, aparent<strong>em</strong>ente paradoxal, de umcorpo espiritual.De facto, <strong>em</strong> De genesi ad litteram XII, a conclusão do filósofo a este respeito écorrobora<strong>da</strong> por recurso a mais uma referência bíblica, integra<strong>da</strong> já na metafísicaaugustiniana <strong>em</strong> obras de composição anterior à referi<strong>da</strong>: o texto de 1 Cor. 15, 44-49,onde se lê que o primeiro hom<strong>em</strong> foi um hom<strong>em</strong> terrestre e por isso o seu corpo sópodia ser corruptível. Na referi<strong>da</strong> obra, a explanação augustiniana complexifica-se ain<strong>da</strong>mais. A interpretação do Hiponense encaminha-se no sentido de atribuir a416 De gen. ad litt. VI, 12: « (…) quamquam et in ipso corpore habeat quan<strong>da</strong>m proprietat<strong>em</strong>, quae hocindicet, quod erecta statura factus est, ut hoc ipso admoneretur non sibi terrena esse sectan<strong>da</strong>, uelutpecora, quorum uoluptas omnis ex terra est: unde in aluum cuncta prona atque prostrata sunt. » ( CSEL28/1, p. 187). Esta proprie<strong>da</strong>de do corpo humano, a verticali<strong>da</strong>de, é indício e admonição para quereconheça a sua destinação às reali<strong>da</strong>des supr<strong>em</strong>as. Cf. De diu. quaest. 83, q. LI (CCL 44A, p. 78-82);DT XI, I, 1 ( CCL 50, p. 333-334). O t<strong>em</strong>a r<strong>em</strong>onta a uma antiga tradição e pode encontrar-se, v. gr., <strong>em</strong>ANAXÁGORAS [Diels-Kranz, Fragmente der Vorsokratiker 46 A 30: II ( Dublin/ Zürich, 1970), p. 5]ou ARISTÓTELES, Protréptico, referindo a doutrina de Anaxágoras [ fr. 11., W II: ed. W. D. ROSS,Oxford 1971, 5ª reimp., p. 45].417 Cf. De gen. ad litt. VI, 19 ( CSEL 28/1, p. 192-193).260


corruptibili<strong>da</strong>de do corpo não a um estado de natureza, mas ao efeito de uma decisãolivre. Assim, a afirmação ou negação <strong>da</strong> corruptibili<strong>da</strong>de do corpo de Adão estariadependente <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de, ou não, deste primitus homo à vontade divina, <strong>da</strong>do que esta,enquanto causa eficiente <strong>da</strong> Criação, determina as condições metafísicas <strong>da</strong> formahumana. A resposta do Hiponense integra aquele aspecto que permite, precisamente,vislumbrar o enquadramento desta questão, de cariz antropológico, no contexto <strong>da</strong>metafísica augustiniana: a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Assim, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, do ponto de vistametafísico, a situação do primeiro hom<strong>em</strong> conjugava, a um t<strong>em</strong>po, a imortali<strong>da</strong>de e amortali<strong>da</strong>de, aquela como dom, esta como possibili<strong>da</strong>de de uma existência dota<strong>da</strong> delivre arbítrio. O filósofo analisa, então, a noção de morte do ponto de vista metafísico eintroduz uma tríplice distinção: há reali<strong>da</strong>des que não pod<strong>em</strong> morrer, há outras quepod<strong>em</strong> morrer, e há outras que pod<strong>em</strong> não morrer. Neste terceiro caso estaria o corpo deAdão, na situação originária <strong>em</strong> que foi criado 418 .Do ponto de vista <strong>da</strong> estrutura antropológica humana, Sto. <strong>Agostinho</strong> não se ocupado corpo mais do que para considerar que, <strong>em</strong> si mesmo, enquanto unido à alma, ele ébelo e expressão de bon<strong>da</strong>de, e que, por si só e separado <strong>da</strong>quela, se reduz à condição decadáver. Este, não obstante já não se poder considerar um ser humano, merece, ain<strong>da</strong> es<strong>em</strong>pre, o afecto <strong>da</strong> alma 419 . Porém, tal facto não significa que o filósofo descure a418 De gen. ad litt. VI, 25: “ (…) aliud est enim non posse mori, sicut quas<strong>da</strong>m naturas inmortales creauitdeus; aliud est aut<strong>em</strong> posse non mori, secundum qu<strong>em</strong> modum primus homo creatus est inmortalis, quodei praestabatur de ligno uitae, non de constitutione naturae: a quo ligno separatus est, cum peccasset, utposset mori, qui nisi peccasset posset non mori.” (CSEL 28/1, p. 197). Em “ Les prérogatives du corpsd’A<strong>da</strong>m”, introduz-se um comentário esclarecedor, fazendo notar que Sto. <strong>Agostinho</strong> exclui uma quartapossibili<strong>da</strong>de, a qual corresponderia à situação non posse non mori. Esta caracteriza a condição do homoanimal rationale mortale, tal como a impossibili<strong>da</strong>de de morte - non posse mori – identifica a condiçãoangélica. “C’est entre cette limite inférieur et cette limite supérieure qui se situe la condition de l’hommea<strong>da</strong>mique ; elle se caractérise par une ambivalence : il porte en lui deux possibilitées, l’une tient à sanature, l’autre à la condition de son corps animal, immortel en raison du privilège qu’il reçoit duCréateur. » ( P. AGAËSSE/ A. SOLIGNAC, in Bibliothèque augustinienne. Œuvres de saint Augustin 48,p. 692). Esta ambivalência permite que a criatura espiritual possa d<strong>em</strong>onstrar a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua vontade,a qual manifesta, a um t<strong>em</strong>po, o condicionamento e a autonomia <strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de. A quarta hipótese éexluí<strong>da</strong>, pois Sto. <strong>Agostinho</strong> relata a Criação In Principio, na sua condição ontológica radical, e antes <strong>da</strong>intervenção <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana sobre a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>.419 Não deixa de ser significativo o facto de Sto. <strong>Agostinho</strong> ter dedicado um dos seus escritos ao cui<strong>da</strong>do ater com os mortos De cura pro mortuis geren<strong>da</strong> ad Paulinum. V. , v. gr., cap. VII, 9 ( CSEL 41, p. 634-636), onde Sto. <strong>Agostinho</strong> explica que há um afecto natural do ser humano pelo seu corpo, o qual justifica261


atenção à estrutura psicossomática do ser humano. To<strong>da</strong>via, fá-lo desde a óptica que elepróprio privilegia, a saber, a noção de ord<strong>em</strong> e o acesso a uma compreensão do mundomediante o primado, sobre as d<strong>em</strong>ais expressões de reali<strong>da</strong>de, de uma estrutura racionalque se revela de modo privilegiado na natureza <strong>da</strong> mente humana. Sendo assim, éporventura através de uma análise <strong>da</strong> alma humana que se pode aceder a umacompreensão do modo como <strong>Agostinho</strong> concebe a relação entre o corpo e a alma 420 .To<strong>da</strong>via, como a questão envolve um s<strong>em</strong>-fim de complexi<strong>da</strong>des, procurar-se-ãoidentificar tão-só aqueles el<strong>em</strong>entos que o filósofo admite e integra na suamundividência s<strong>em</strong> lhes conceder qualquer assomo de dúvi<strong>da</strong>.É a partir <strong>da</strong> refutação de duas teses que considera erróneas que Sto. <strong>Agostinho</strong>afirma as suas certezas acerca <strong>da</strong> natureza e constituição <strong>da</strong> alma humana. Uma primeiraidentifica a alma humana e a essência divina. Uma outra, afirma a materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>alma. No primeiro caso, admite-se que a alma é divina 421 . No segundo, atribui-se-lhe acondição de corpo. No primeiro caso, fere-se a hierarquia ontológica, por excesso; nosegundo, tal facto sucede por defeito. O <strong>em</strong>baraço reside justamente <strong>em</strong> legitimar aunião de duas reali<strong>da</strong>des de natureza oposta, corpo e alma, numa mesma substância queconstitui o ser humano. As duas concepções enuncia<strong>da</strong>s acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> almaparec<strong>em</strong> <strong>em</strong>ergir precisamente <strong>da</strong>quele impasse. Num caso, reconduz-se a alma ànatureza divina e fica por explicar a presença dela no corpo. No outro caso, identifica-sea preocupação dos vivos pelo corpo dos mortos e o consequente desejo de cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>quele. Em todo ocaso, o cui<strong>da</strong>do do corpo t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista a quali<strong>da</strong>de do espírito e é esta que deve prevalecer sobre aquele,quer à hora de sepultar os mortos, quer no momento de cui<strong>da</strong>r do corpo dos vivos, como parte do man<strong>da</strong>tode amar o próximo ( cf. para este último aspecto, v. gr. De moribus I, XXVII, 52-54: CSEL 90, p. 55-57).420 Sobre a relação corpo /alma na obra do Hiponense, são esclarecedores os estudos de Vernon J.BOURKE, “The Body-Soul Relation in the Early Augustine. Quid ergo sum, deus meus? Quae naturasum (Confessiones X, XVI, 25)” in J.C. SCHNAUBELT/F. VAN FLETEREN (ed.), Augustine: "SecondFounder of the Faith" (New York 1990) 435-450; Gareth B. MATTHEWS, “Internalist Reasoning inAugustine for Mind-Body Dualism” in J.P. WRIGHT & P. POTTER (ed.), Psyche and Soma. Physiciansand Metaphysicians on the Mind-Body Probl<strong>em</strong> from Antiquity to Enlightenment (Oxford 2000) 133-145.421 Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeitará s<strong>em</strong>pre a tese <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de entre a substância divina e a alma humana. Vejase,v. gr., Ep. CXLIII, 7: “ (...) contra quos me non defendo, quod recte faciam in hac quaestionecunctari, cum omnino non dubit<strong>em</strong> et inmortal<strong>em</strong> esse animam non ita ut deus, qui solus habetinmortalitat<strong>em</strong>, sed modo quo<strong>da</strong>m sui generis et eam esse creaturam, non substantiam creatoris et si qui<strong>da</strong>liud de natura eius certissimus teneo.” (CSEL 44, p. 257).262


a alma com a corporei<strong>da</strong>de e rejeita-se que haja qualquer composição na forma humana:ela é, apenas, uma outra expressão de matéria.Contra estas posições, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que a alma não é parte <strong>da</strong> substânciadivina, <strong>da</strong>do que ela não é imutável. Ela é imortal, mas não eterna. E é incorpórea, pelomenos na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que escapa à tridimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria, mas sujeita-se aot<strong>em</strong>po. Assumindo os princípios <strong>da</strong> metafísica cristã <strong>da</strong> Criação, Sto. <strong>Agostinho</strong> sópoderia conceber que a alma fosse dota<strong>da</strong> de corporei<strong>da</strong>de se ela fosse cria<strong>da</strong> a partir deuma matéria preexistente. Mas, no relato genesíaco, só ao corpo humano é atribuí<strong>da</strong>essa proprie<strong>da</strong>de, sendo a alma o resultado de um sopro divino, cria<strong>da</strong>, portanto, denihilo. Em De genesi ad litteram libri XII o filósofo acrescenta, a esta análise acerca <strong>da</strong>alma humana, dois el<strong>em</strong>entos. Por um lado, a alma conhece-se a si mesmanecessariamente, no exercício <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de. Trata-se, aqui, <strong>da</strong> referência aomovimento de auto gnose implícito <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de cognitiva humana, fenómenoao qual Sto. <strong>Agostinho</strong> dedicará peculiar atenção nos livros VIII-XI de De trinitate. Poroutro lado, este processo realiza-se não só com total independência <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>decorpórea, mas também se alheia <strong>da</strong> ideia de que a alma possui, de si mesma, qualquerel<strong>em</strong>ento que se aproxime <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria 422 . Por último, Sto. <strong>Agostinho</strong>insiste na total diss<strong>em</strong>elhança entre a alma e o corpo, ao qual aquela está íntima eenigmaticamente uni<strong>da</strong> 423 .Tomando como ponto de referência, entre os copiosos comentários augustinianosao Livro do Génesis, o texto de De genesi ad litteram libri duodecim, é <strong>da</strong>do comprovarque o raciocínio do Hiponense a respeito <strong>da</strong> relação alma-corpo se baseia, mais umavez, na noção de ord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> como hierarquia, ou ordenação dos seres segundo asua perfeição própria 424 . A alma humana, quando se conhece a si mesma ou quandoconhece as reali<strong>da</strong>des inteligíveis, realiza estas activi<strong>da</strong>des – afinal, as que <strong>Agostinho</strong>considera que lhe são próprias -, s<strong>em</strong> qualquer concurso do corpo. Por isso, ela é,efectivamente, uma outra reali<strong>da</strong>de, diferente do corpo. Mais ain<strong>da</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong>422 Cf. De gen. ad litt. VII, 21 ( CSEL 28/1, p. 218).423 DT XV, VII, 11: “(…) Quod si etiam sic definiamus homin<strong>em</strong>, ut dicamus: 'Homo est substantiarationalis constans ex anima et corpore', non est dubium homin<strong>em</strong> habere animam quae non est corpus,habere corpus quod non est anima.” (CCL 50A, p. 474). Ver, também, De gen. ad litt. VII, 12-21 (CSEL28/1, p. 211-219).424 De gen. ad litt. VII, 19: “ (…) sicut enim deus omn<strong>em</strong> creaturam, sic anima omn<strong>em</strong> corporeamcreaturam naturae dignitate praecellit” ( CSEL 28/1, p. 215).263


declara que não é mediante a luz corporal que a alma conhece as reali<strong>da</strong>des inteligíveis,entre as quais ela própria se conta. De facto, o conhecimento gradual per corporalia adincorporalia não alcança a dimensão mais fun<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente, na qual, s<strong>em</strong> intermédio denenhuma outra criatura, a alma humana se relaciona com a Ver<strong>da</strong>de. Nesse plano énecessária uma lux sui generis, à qual Sto. <strong>Agostinho</strong> se refere explicitamente <strong>em</strong> Detrinitate 425 .Ora, quando se considera a disposição gradual dos seres, é s<strong>em</strong>pre possívelatender à ordenação deles na dupla dinâmica, ascendente e descendente, dessadisposição. Assim, desde as reali<strong>da</strong>des inferiores para as superiores, desde os corpospara a alma, com vista a uma ascese para Deus, término ad qu<strong>em</strong> <strong>da</strong> escala<strong>da</strong>, verificaseuma ord<strong>em</strong> de dependência e de ministério. Na ver<strong>da</strong>de, o corpo está ao serviço <strong>da</strong>alma e esta ao serviço de Deus. No plano descendente, Deus sobrepõe-se aos d<strong>em</strong>aisníveis de reali<strong>da</strong>de, com uma excelência de domínio. Atendendo à ord<strong>em</strong> ascendente,descobre-se, nesta disposição gradual dos seres, a dependência ontológica deles <strong>em</strong> facedo Princípio de ser, por um lado, e, por outro, a diferença ontológica deles quer noplano vertical, onde se regista uma diferença absoluta, quer no plano horizontal, onde adiferença designa, acima de tudo, diversificação. Atendendo à ord<strong>em</strong> descendente, ahierarquia ontológica caracteriza-se por ter como ponto de parti<strong>da</strong> e causa eficiente atotal gratui<strong>da</strong>de e liberali<strong>da</strong>de do Criador, <strong>da</strong> qual <strong>em</strong>erge a absoluta diferença entre Elee as obras feitas por Ele.Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve o Universo como uma plenitude de ord<strong>em</strong>, deorganização e de hierarquia. Assim, mesmo no plano horizontal, considerando osdiferentes corpos, o Hiponense verifica uma graduação, pois n<strong>em</strong> todos os corpos são <strong>da</strong>mesma natureza. Há uns onde a matéria parece mais presente do que <strong>em</strong> outros, comosucede com a diferença que se pode estabelecer entre a terra e o fogo, por um lado, e aluz corpórea e o ar, por outro. O filósofo considera que estes dois últimos el<strong>em</strong>entosmateriais, luz e ar, estão mais próximos <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des incorpóreas, por neles severificar uma certa subtileza. Ora, estes el<strong>em</strong>entos entram <strong>em</strong> estreita conexão com aestrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, naqueles dois órgãos dos sentidos que Sto. <strong>Agostinho</strong>privilegia: a vista e o ouvido. Obtém-se, assim, <strong>em</strong> função <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma –mediante a qual se poderá, num momento posterior, aceder a Deus –, uma gra<strong>da</strong>ção dos425 Cf. DT XII, XV, 24 ( CCL 50, p. 378).264


el<strong>em</strong>entos do Universo. O ar e a luz estão mais próximos do ouvido e <strong>da</strong> visão 426 . Estes,por seu turno, captam a reali<strong>da</strong>de corpórea e entregam-na à alma, para que esta julgue<strong>da</strong> sua aptidão, antes de mais quando confronta<strong>da</strong> com o próprio órgão do sentido.Assim, é mediante os corporalia e o órgão corporal que a alma recebe informaçãoacerca do exterior e do próprio corpo, cuja regência lhe compete e no qual habita,constituindo, com ele, uma substância íntegra e insubstituível.Em De genesi ad litteram, como já <strong>em</strong> De musica, pode falar-se de uma certacumplici<strong>da</strong>de, postula<strong>da</strong> pelo Hiponense, entre o corpo e a alma, a qual se verificasobretudo no nível de percepção sensível. Alma e corpo são princípios a um t<strong>em</strong>poactivos e passivos, não obstante o termo patere assumir um sentido peculiar, quandoSto. <strong>Agostinho</strong> o aplica à alma racional. Porém, se existe esta cumplici<strong>da</strong>de entre corpoe alma, a fim de encontrar a harmonia psicossomática do ser humano, ca<strong>da</strong> um destesel<strong>em</strong>entos exerce esta dupla dimensão – acção (ou reacção) / paixão –, de acordo com oseu modo específico de ser, com as funções que lhe estão confia<strong>da</strong>s e com o grau queocupa, na hierarquia ontológica. Deste modo, é sobretudo no âmbito psicológico -domínio onde se insere a análise augustiniana do fenómeno <strong>da</strong> sensação - que se pod<strong>em</strong>obter alguns el<strong>em</strong>entos sobre a forma como o Hiponense concebe a estruturapsicossomática humana.Ao analisar o fenómeno sensação, Sto. <strong>Agostinho</strong> toma como ponto de parti<strong>da</strong>,uma vez mais, a disposição hierárquica do real. No grau uiuere, onde se integra aquelefenómeno, o Hiponense admite, ain<strong>da</strong>, a tripartição entre a vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual está ausente arelação entre sentido e sensível – como é o caso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vegetativa –, a vi<strong>da</strong> irracional ea vi<strong>da</strong> específica <strong>da</strong> alma humana, dota<strong>da</strong> de razão. Em De musica, Sto. <strong>Agostinho</strong>detém-se de modo peculiar na análise deste fenómeno. Procurando uma definição desensação, toma como ex<strong>em</strong>plo a relação entre o som e o órgão <strong>da</strong> audição. Ora, nãoobstante o fenómeno <strong>da</strong> audição se exprimir mediante um verbo – audire –significando, por isso, acção, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que a sensação não pode resultarde um movimento de um corpo sobre a alma, pois esta é superior àquele. Se não fosseassim, poder-se-ia considerar a impassibili<strong>da</strong>de dos vegetais como um índice <strong>da</strong>superiori<strong>da</strong>de destes <strong>em</strong> relação à alma humana, pois esta seria passível <strong>da</strong> influência dereali<strong>da</strong>des inferiores, facto que não se verificaria na vi<strong>da</strong> vegetal.426 Cf. De gen. ad litt. VII, 13-14 ( CSEL 28/1, p. 212-213).265


No que se refere ao ser humano, e para compreender a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sensação, Sto.<strong>Agostinho</strong> exige que se aten<strong>da</strong> a um conjunto de princípios. Antes de mais, a almahumana não pode estar sujeita a sofrer qualquer acção do corpo, como se ela fosse amatéria do corpo 427 . Em segundo lugar, é preciso considerar que a alma nunca é inferiorao corpo. A substância dela é, por natureza, e independent<strong>em</strong>ente do seu estado deperfeição, superior ao corpo 428 . Ora, a alma seria inferior ao corpo se qualquer harmoniaque nela existe fosse produzi<strong>da</strong> pelo corpo. Portanto, as harmonias sonoras - caso <strong>em</strong>análise <strong>em</strong> De musica - não suced<strong>em</strong> na alma tendo orig<strong>em</strong> naquelas harmonias que sãoconheci<strong>da</strong>s nos corpos 429 . Ora, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de ontológica de a alma serafecta<strong>da</strong>, passivamente, por uma reali<strong>da</strong>de inferior, que é o corpo, fica por justificar anatureza <strong>da</strong> sensação. De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> não admite uma relação de causali<strong>da</strong>deeficiente entre a impressão recebi<strong>da</strong> no órgão corpóreo pelos corporalia próprios 430 , eessa acção <strong>da</strong> alma que indica o verbo sentire.Assim, é mediante o recurso a uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma classifica<strong>da</strong> como intentioque Sto. <strong>Agostinho</strong> explica a natureza <strong>da</strong> sensação. Mediante este termo, o Hiponense427 De mus. VI, V, 8: “ (...) Sed perabsurdum est fabricatori corpori materiam quoquo modo animamsubdere. Nunquam enim anima est corpore decterior; et omnis materia fabricatore deterior. Nullo modoigitur anima fabricatori corpori est subjecta materies. Esset aut<strong>em</strong>, si aliquos in ea numeros corpusoperaretur.” (PL 32, 1167-1168). Em De gen. ad litt. XII, 18-19 discute-se, precisamente, a tese dos queconsideram que a alma resulta de composições de el<strong>em</strong>entos corpóreos, concretamente do ar, que é oel<strong>em</strong>ento subtil, mediante o qual se produz<strong>em</strong> as harmonias sonoras ( CSEL 28/1, p. 215-216). Esta teseestende-se à hermenêutica do passo bíblico onde se lê que a alma resulta de um sopro de Deus sobre olimus terrae – o corpo. A in<strong>da</strong>gação enquadra-se, portanto, neste contexto: se a alma não resulta n<strong>em</strong> deel<strong>em</strong>entos corpóreos, n<strong>em</strong> de uma alma irracional, “unde anima flatu Dei facta est?” ( cf. De gen. ad litt.VII, 18: CSEL 28/1, p. 215).428 Esta é, também, uma ideia recorrente, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong>. A alma do último pecador é superioraos corpos celestes mais perfeitos. Por seu turno, os graus de ser não admit<strong>em</strong> metamorfoses: De gen. adlitt. VII, 12: “ Omne quippe corpus in omne corpus posse mutari non defuerunt qui adsererent; corpusaut<strong>em</strong> aliquod, siue terrenum siue caeleste, conuerti in animam fierique naturam incorpoream necqu<strong>em</strong>quam sensisse scio nec fides habet.” ( CSEL 28/1, p. 212).429 De mus. VI, II, 3: « (…) Nam et si sentient<strong>em</strong> corporis locum digito tangas, quotieslibet tangitur, totiessentitur tactu ille numerus: et cum sentitur, non eo caret sentiens: sed utrum insit etiam tangente nullo,non sensus ille, sed numerus, similiter quaeritur. » ( PL 32, 1164). A categoria de numerus é aqui<strong>em</strong>pregue para identificar a harmonia ou congruência entre os sons recebidos no corpo e os que sãopercebidos pela alma.430 Para a relação entre os sensibilia propria et communia, cf. LA II, IV-II, VII ( CCL 29, p. 243-250).266


designa um dinamismo de atenção <strong>da</strong> alma, a qual, a partir <strong>da</strong> sua condição intermédiana ord<strong>em</strong> dos seres, se dirige, quer para os <strong>em</strong>bates nela recebidos através dos órgãos docorpo, quer para o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, cuja posse progressiva vai adquirindo, quandorespeita a ord<strong>em</strong> específica <strong>da</strong> sua natureza. Ora, não querendo abandonar esse b<strong>em</strong> quejá possui com segurança, mas que está, ain<strong>da</strong>, sujeito ao curso do t<strong>em</strong>po, a alma torna-sevigilante e coloca-se <strong>em</strong> estado de tensão, <strong>em</strong> relação ao b<strong>em</strong> possuído, numa atitude desentinela, a fim de afastar tudo o que lhe possa arrebatar o b<strong>em</strong> conquistado.Não obstante a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção augustiniana de intentio, ela ocupa umlugar central, na obra do Hiponense, no que se refere à compreensão <strong>da</strong> natureza do serhumano e, de modo particular, <strong>da</strong> estrutura racional que o especifica 431 . Mediante oesclarecimento <strong>da</strong> noção de intentio animi e do modo como ela se articula com anatureza <strong>da</strong> mente humana tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a concebe, é possível aceder ànoção de ord<strong>em</strong> e descortinar, progressivamente, os el<strong>em</strong>entos do filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa.De um modo geral, pode dizer-se que a noção de intentio designa, na obra doHiponense, o dinamismo <strong>da</strong> alma, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela se dirige para reali<strong>da</strong>desexteriores através do choque que os corporalia <strong>em</strong>it<strong>em</strong> nos órgãos dos sentidos, ou <strong>em</strong>direcção a si mesma, no movimento reflexivo que é intrínseco a to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>decognitiva, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sobre a qual verse 432 . Nesse segundomovimento, a intentio animi pode incidir quer sobre os el<strong>em</strong>entos recebidos dos corpos– este é já, com efeito, um domínio de reflectivi<strong>da</strong>de do espírito –, quer sobre o próprioacto de reflectir, isto é, sobre a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, <strong>em</strong> si mesma. Intentio significa, porconseguinte, para o espírito humano, a sua tendência inexorável à posse de bens. Tal431 V., a este propósito, os estudos de Carla DI MARTINO, “Il ruolo della intentio nell’evoluzione dellapsicología di Agostino: <strong>da</strong>l De libero arbitrio al De Trinitate”: Revue des études augustiniennes 46(2000) 173-198. Neste estudo, cuja t<strong>em</strong>ática é sugestiva e pertinente, a A. aproxima, s<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>mentar, aconcepção augustiniana de intentio, sobretudo no que se refere à percepção sensível, <strong>da</strong> teoria aristotélicaexposta <strong>em</strong> De anima ( Ibid., p. 173-174), facto que não deixa de causar perplexi<strong>da</strong>de ; John M. RIST,“Augustine: Freedom, Love and Intention” in L. ALICI (dir.), Il mistero del male e la libertà possibile.Atti dell'VIII S<strong>em</strong>inario del Centro Studi Agostiniani di Perugia (Roma 1997) 7-21.432 Cf. De mus. VI, 8, 21 (PL 32, 1174-1175); De gen. ad litt. VII, 19-20 (CSEL 28/1, p. 215-217). J.ROHMER mostrou a dependência deste conceito de intentio, <strong>em</strong> <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> face <strong>da</strong>s noções estóicasde ♋♓✂ e de ♓♒♓✂ ♓♒ ( Cf. J. ROHMER “ L’intentionalitédes sensations chez Augustin”, in Augustinus Magister I, p. 491-498). Uma análise esclarecedora <strong>da</strong>noção de intentio com vista a esclarecer o equacionamento entre cogito e ordo pode ler-se <strong>em</strong> E.BERMON, Le cogito <strong>da</strong>ns la pensée de saint Augustin (Paris 2001), spec. p. 199-202.267


como se viu, <strong>em</strong> relação à vontade humana, que ela tende ao ser, esta tendência à possede bens caracteriza-se, também, por uma certa indeterminação, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que todosos bens disponíveis na hierarquia ontológica pod<strong>em</strong> ser possuídos por ela. To<strong>da</strong>via, noser humano esta intentio animi reside numa mens rationalis, a qual percebe s<strong>em</strong>pre oreal qualificado segundo uma ord<strong>em</strong> – maius et minus esse. Por isso, no ser humano estaintentio animi caracteriza-se pela tendência a possuir o melhor dos bens cont<strong>em</strong>pladose, <strong>em</strong> última instância, o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o. De facto, só na posse deste ela se unifica epacifica. Em função do Princípio criador, só o soberano b<strong>em</strong> é adequado à tensãointerior do espírito humano.Nesta medi<strong>da</strong>, pode observar-se, também, o estabelecimento de uma hierarquia,por parte do Hiponense, na própria activi<strong>da</strong>de designa<strong>da</strong> por intentio animi, a qualprogride para o interior <strong>da</strong> mente e t<strong>em</strong> por objectivo estabelecer relação com aquilo quenela há de superior. Esta reali<strong>da</strong>de superna, que o filósofo identifica com a Ver<strong>da</strong>de, ouDeus, revela a alma a si mesma, na sua natureza essencialmente intencional, <strong>da</strong>do que arelação, <strong>em</strong> que consiste a natureza do animus ou spiritus humano, se constitui pelaradical diferença ontológica entre a mutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma e a imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de.Por seu turno, nessa luz sui generis que ilumina o espírito humano e que não é corpórea,n<strong>em</strong> idêntica ao próprio espírito, a Ver<strong>da</strong>de, mediante a qual a razão humana seconhece, b<strong>em</strong> como aos seus próprios conteúdos, é reconheci<strong>da</strong> como o finis optimus <strong>da</strong>forma humana, aquele término de existência que realiza um dos el<strong>em</strong>entos essenciais <strong>da</strong>definição do ser humano: ‘animal rationale mortale, constans ex anima et corpus,quaerens beata uita’.Nesta dupla dimensão <strong>da</strong> intentio animi - que pode aplicar-se tanto à relação <strong>da</strong>alma com o exterior, como ao movimento dela para o interior de si mesma, e,finalmente, para aquela reali<strong>da</strong>de que a transcende - esclarece-se a concepçãoaugustiniana <strong>da</strong> sensação e o modo com o Hiponense concebe a estruturapsicossomática do ser humano.Recusando definitivamente a corporei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera queo corpo é animado por ela mediante um movimento de intentio 433 . A alma age sobre o433 A influência de Porfírio, sobretudo <strong>em</strong> ♋♋♓ na antropologia augustiniana pareceincontestável. No referido escrito, o Biógrafo de Plotino descreve a corporei<strong>da</strong>de <strong>em</strong> função <strong>da</strong> dimensãoespacial e, portanto, <strong>da</strong> divisibili<strong>da</strong>de. Ambas as proprie<strong>da</strong>des estão ausentes <strong>da</strong> alma. Sto. <strong>Agostinho</strong><strong>em</strong>prega um argumento similar já <strong>em</strong> De quantitate animae, o qual é reiterado <strong>em</strong> De gen. ad litt. VII, 19-20 ( CSEL 28/1, p. 215-217). A influência de Porfírio na concepção augustiniana de alma foi trata<strong>da</strong>268


corpo e está uni<strong>da</strong> a ele por uma ord<strong>em</strong> divina 434 . Contudo, é possível falar de umaconivência entre estes dois el<strong>em</strong>entos de que consta o ser humano, alma e corpo, pois aalma move-se com maior ou menor facili<strong>da</strong>de de acordo com o impacto que o corpoexerce sobre ela 435 . Para este fenómeno, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra duas justificações,situa<strong>da</strong>s <strong>em</strong> diferentes âmbitos de reali<strong>da</strong>de. Ou esse facto ocorre pelos méritos <strong>da</strong> alma,ou ele t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> na maior ou menor adequação entre as harmonias dos corporalia,recebi<strong>da</strong>s pelos órgãos do corpo, e as harmonias <strong>da</strong> alma. No primeiro caso, adificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma parece advir de uma quali<strong>da</strong>de ontológica desta, do seu pondus,categoria que, na obra do Hiponense, articula, ain<strong>da</strong>, o estado de d<strong>em</strong>érito, consequente<strong>da</strong> que<strong>da</strong> original, e o estado <strong>da</strong> alma humana individual, uni<strong>da</strong> a um corpo numdeterminado momento <strong>da</strong> história do cosmos e <strong>da</strong> evolução pessoal do ser humano. Nosegundo caso, trata-se de uma dificul<strong>da</strong>de inerente à estrutura somática do próprio serhumano, à harmonia que estabelec<strong>em</strong>, entre si, as partes desse todo, que se designa porcorpo humano.O primeiro aspecto refere o padecimento <strong>da</strong> alma <strong>em</strong> função dos méritos dela. Aeste propósito, Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica uma situação de ignorância e dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong>alma humana in statu via. Só nesta medi<strong>da</strong> o filósofo admite que se possa verificar umpadecimento <strong>da</strong> alma. To<strong>da</strong>via, é claro que tal dimensão passiva - que permitecompreender <strong>em</strong> que sentido o Hiponense se refere a uma situação penal, atribuí<strong>da</strong> aoser humano, e ao próprio sofrimento como efeito <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma - não depende dequalquer acção que o corpo exerça sobre a alma. A própria concupiscentia é, nestecontexto, considera<strong>da</strong> como uma acção ou movimento desordenado, um vício, masapenas <strong>da</strong> alma, e não se relaciona com uma qualquer hipotética malícia que se possaatribuir às formas corpóreas ou aos órgãos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de humana.detalha<strong>da</strong>mente, sobretudo tomando como referência De immortalitate animae e o livro IX de Detrinitate, por J. PÉPIN, “Une nouvelle source de saint Augustin : Le ♒♒♋ de Porphyre surl’union de l’âme et du corps” in Revue des études anciennes 86 (1964), p. 53-107.434 De mus. VI, V, 9 : “ (...) ego enim ab anima hoc corpus animari non puto, nisi intentione facientis. Necab isto quidquam illam pati arbitror, sed facere de illo et in illo tanquam subiecto diuinitus dominationisuae: aliquando tamen cum facilitate, aliquando cum difficultate operari, quanto pro eius meritis magisminusve illi cedit natura corporea.” ( PL 32, 1168).435 A propósito desta cumplici<strong>da</strong>de que revela, afinal, uma estreita interacção entre a alma e o corpo,escreve Sto. <strong>Agostinho</strong>: “(…) aliquando cum facilitate (…) aliquando cum difficultate operari, quanto proeius meritis magis minusue illi cedit natura corporea.” ( De mus. VI, V, 9: PL 32, 1168 ).269


O segundo aspecto onde a intentio animi pode experimentar facili<strong>da</strong>de oudificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> agir sobre as harmonias do corpo diz respeito ao estado de saúde ou dedoença, de harmonia entre as partes desse todo ou de desintegração desses el<strong>em</strong>entos,ou, numa situação limite, à total corrupção ou rescisão <strong>da</strong> própria harmonia. Noprocesso cujo termo se designa por sensação, Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica to<strong>da</strong> umahierarquia de activi<strong>da</strong>des. Antes de mais, o ponto de parti<strong>da</strong> é a forma dos corporalia,que actuam sobre o corpo humano. Segui<strong>da</strong>mente, as harmonias produzi<strong>da</strong>s nestarelação primária são apresenta<strong>da</strong>s à alma, mediante um movimento do corpo <strong>em</strong>direcção a ela. Por último, a atitude <strong>da</strong> alma não é a de mero receptáculo, mas a deatenção activa à harmonia que o corpo lhe apresenta. No caso <strong>da</strong> alma racional, e namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que possui o el<strong>em</strong>ento pelo qual se distingue dos outros animalia, ela <strong>em</strong>ite,de modo imediato, um juízo implícito sobre a adequação, ou não, dessa harmonia, ànatureza <strong>da</strong> própria alma.Se a harmonia se dá, então a alma t<strong>em</strong> facili<strong>da</strong>de <strong>em</strong> agir sobre o corpo, uma vezque, nele e naquilo que ele padece, na<strong>da</strong> há que exija, <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> alma, o investimentode uma peculiar atenção. Assim, a conuenientia ou harmonia é já, no interior <strong>da</strong> almahumana, uma reali<strong>da</strong>de racional, expressão de ord<strong>em</strong>, tal como nas reali<strong>da</strong>des corpóreasa conuenientia manifesta a presença de uma razão mais universal, princípio de tudoquanto existe. Com efeito, na perspectiva augustiniana nenhuma expressão deconuenientia pode ter a sua causa eficiente no corpo, n<strong>em</strong> ficar a cargo dele. Note-se,também, que a avaliação <strong>da</strong> conuenientia, a assunção dela ou a sua rejeição, implica jáuma eleição por parte <strong>da</strong> alma ou, pelo menos, um movimento el<strong>em</strong>entar de carácterdesiderativo. A harmonia de um corpo é ou não conveniente para a alma, <strong>em</strong> função deuma determina<strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de que só ela, enquanto alma dota<strong>da</strong> de razão, pode conhecer eestabelecer. O mesmo esforço intencional <strong>da</strong> alma é exigido na ausência de um b<strong>em</strong>necessário, na presença do supérfluo, ou ante a dor e a morte 436 .436 No caso <strong>da</strong> dor e <strong>da</strong> morte, é esclarecedora a exposição de De gen. ad litt. VII, 19 ( CSEL 28/1, p. 215-216). Se a dor exige, por parte <strong>da</strong> alma, uma atenção que a perturba e lhe rouba a tranquili<strong>da</strong>de à qualtende por natureza, quando ela ocorre os sentidos deixam de cumprir a função primordial de mensageirose intérpretes primeiros <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de corpórea. Quando, por desagregação dos el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong>essa totali<strong>da</strong>de que é o corpo humano, os sentidos se d<strong>em</strong>it<strong>em</strong> <strong>em</strong> absoluto <strong>da</strong> sua missão, a alma retirase,pois na<strong>da</strong> mais t<strong>em</strong> a fazer naquela massa corpórea: já não pode executar a sua missão de aperfeiçoar aforma humana, conduzindo-a per corporalia ad incorporalia, per ea quae facta sunt, ad intellecta. Oestado do corpo humano, na ausência <strong>da</strong> alma, designa-se por cadáver. Este estado alcança-se mediante o270


Alma e corpo são reali<strong>da</strong>des diss<strong>em</strong>elhantes. Algumas vezes, Sto. <strong>Agostinho</strong>recorre à tradicional metáfora do senhor e do servo para fazer entender a relação que seestabelece entre o corpo e a alma, insistindo no carácter instrumental deste último, nãoobstante não considerar que, nesta função, se esgote ou, sequer, se justifique de modoúltimo, a forma de relação entre o corpo e a alma 437 . Com base nestes el<strong>em</strong>entos, ofilósofo define o que entende por sentire: a atenção <strong>da</strong> alma às paixões sofri<strong>da</strong>s pelocorpo, as quais nunca se lhe ocultam 438 .Porém, não obstante o esforço do Filósofo de Hipona, mediante uma análise <strong>da</strong>sensação, evidenciar a relação que a alma estabelece com o corpo, permanec<strong>em</strong> de péto<strong>da</strong>s as enigmáticas questões acerca <strong>da</strong> estrutura psicossomática do ser humano. Qual aorig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma? De que modo e por que motivo ela se une ao corpo, sendo um factoque se trata de dois el<strong>em</strong>entos de natureza diss<strong>em</strong>elhante? Admita-se que Deus criou oser humano desde o Princípio. Assuma-se que o corpo é matéria e que a alma éincorpórea. Sendo assim, ela não é retira<strong>da</strong> a partir do corpo. Porém, é ela feita do na<strong>da</strong>,exigindo, de Deus, uma intervenção nova, ca<strong>da</strong> vez que surge uma nova vi<strong>da</strong> humana?Mas, se é assim, como justificar a universali<strong>da</strong>de do pecado original e a necessi<strong>da</strong>de defenómeno designado por morte. Da<strong>da</strong>s as condições <strong>da</strong> forma dele resultante, perante o cadáver não sepode falar já de ser humano. V. também, v. gr. De ciu. dei XIII, VI ( CCL 48, p. 389); Ep. CXXXVII, 3(CSEL 44, p. 102).437 Cf. De mus. VI, V, 10. 13 ( PL 32, 1169. 1170); De gen. ad litt. VII, 20: “ Namque aliud esse ipsam,aliud haec eius corporalia ministeria, uel uasa uel organa uel si quid aptius dici possunt, hinc euidenterelucet, quod plerumque se ueh<strong>em</strong>enti cogitationis intentione auertit ab omnibus, ut prae oculis patentibusrecteque ualentibus multa posita nesciat et, si maior intentio est, dum ambulabat, repente subsistat,auertens utique imperandi nutum a ministerio motionis, qua pedes agebantur; si aut<strong>em</strong> non tanta estcogitationis intentio, ut figat ambulant<strong>em</strong> loco, sed tamen tanta est, ut part<strong>em</strong> illam cerebri mediamnuntiant<strong>em</strong> corporis motus non uacet aduertere, obliuiscitur aliquando et unde ueniat et quo eat, et transitinprudens uillam, quo tendebat, natura sui corporis sana, sed sua in aliud auocata.” (CSEL 28/1, p. 216-217).438 De mus. V, V, 10: “Anima cum sentit in corpore non ab illo aliquid pati, sed in eius passionibusattentius ager<strong>em</strong> et has actiones siue faciles propter convenientiam, siue difficiles propterinconvenientiam, non eam latere.” ( PL 32, 1169). V., também: Solil. II, IV, 6 (CSEL 89, p. 53-54), ondese mostra que só a alma pode sentir; DO II, II, 5-6 ( CCL 29, p. 108-109); De quant. anim. XXIV, 45.XXIX, 57 ( CSEL 89, p. 187. 203 ): onde se afirma que sentir e conhecer não são o mesmo, e que aexperiência e a ciência são reali<strong>da</strong>des diferentes; De quant. anim. XXIV, 46. XXX, 59 ( CSEL 89, p. 188.206), onde se afirma a relação entre os órgãos dos sentidos e a experiência por eles recolhi<strong>da</strong>, e a alma, àqual essa experiência não se oculta.271


uma Redenção, também ela de âmbito universal? Ou será que a alma é retira<strong>da</strong> dealguma matéria ou quási matéria, cria<strong>da</strong> por Deus, a qual Deus, insuflando o seuespírito, vivifica? Ou a alma preexiste, desde s<strong>em</strong>pre, junto de Deus, e v<strong>em</strong> ao corpo porvontade do ser supr<strong>em</strong>o? Ou virá por sua própria vontade, espontaneamente? Porém,com que finali<strong>da</strong>de o fará, <strong>da</strong>do que, por esse movimento, ela se une a uma reali<strong>da</strong>deque lhe é inferior?Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece que não t<strong>em</strong> resposta para to<strong>da</strong>s estas dificul<strong>da</strong>des, asquais se prend<strong>em</strong> com o posicionamento <strong>da</strong> questão acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas e com omodo de entender a estrutura psicossomática do ser humano her<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> culturaclássica e presentes, também, <strong>em</strong> autores cristãos que antecederam o Hiponense.To<strong>da</strong>via, no interior <strong>da</strong> obra augustiniana, é possível integrar esta discussão numhorizonte mais amplo, no seio de uma meta-antropologia, e verificar que oposicionamento do filósofo acerca do ser humano é outro, <strong>em</strong> relação ao qual o domínioantes tratado se torna periférico, quando confrontado com a questão central que ocupa amente de <strong>Agostinho</strong>, a saber, o esclarecimento <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>.Ao considerar a relação entre o corpo e a alma humanos, o Hiponense fala de umaclara colaboração entre acção e paixão, e não de uma relação de oposição entre estesdois princípios. Uma vez mais, é à luz <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, entendi<strong>da</strong> como harmonia oucongruência, que tal relação é entendi<strong>da</strong>. Em todo o caso, quer o ser humano goze desaúde - caso <strong>em</strong> que a alma está <strong>em</strong> consonância com o corpo e não lhe presta maisatenção do que a de o vivificar -, quer se verifique, nele, qualquer perturbação,comummente designa<strong>da</strong> por enfermi<strong>da</strong>de, a alma é s<strong>em</strong>pre princípio activo de atençãoou intentio. Ora, esta função activa eleva o próprio corpo, fazendo-o participar, dealgum modo, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma. Eleva o grau inferior de perfeição, no qual o corpose integra, à perfeição própria do grau de ser <strong>da</strong> alma humana. Este é o movimento querealiza a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas.To<strong>da</strong>via, o movimento inverso também é possível. A própria alma pode degra<strong>da</strong>rsena hierarquia, descendo à condição ontológica do corpo, s<strong>em</strong>, contudo, se transformar<strong>em</strong> corporei<strong>da</strong>de. Este movimento de desord<strong>em</strong> só pode ter orig<strong>em</strong> na vontade humana.Quando este processo de degra<strong>da</strong>ção se instaura, a alma humana é afecta<strong>da</strong> por umadesord<strong>em</strong> intrínseca. De facto, quando ela opta por aderir às harmonias do corpo, <strong>em</strong>função do prazer que estas lhe causam, falsifica a sua natureza. A intentio animi orientase,neste caso, assumindo-o como o seu fim último, para a posse de uma reali<strong>da</strong>de queela não é, n<strong>em</strong> pode vir a ser: matéria, corporei<strong>da</strong>de. Com base nestes el<strong>em</strong>entos,272


introduzindo a relação de antropogénese defendi<strong>da</strong> pelo Hiponense, e articulando-a comos el<strong>em</strong>entos que integram a meta-antropologia augustiniana, pode compreender-se aestrutura do ser humano e o sentido metafísico de um corpo espiritual, meta que ofilósofo projecta escatologicamente para a corporei<strong>da</strong>de humana.Nesta análise, Sto. <strong>Agostinho</strong> parte de um facto: o ser humano é um animalracional, composto de alma e corpo, mortal, que tende à felici<strong>da</strong>de. Esta definição, queo filósofo colhe dos antiquii, a<strong>da</strong>pta-se perfeitamente à concepção paulina de serhumano e à distinção, também estabeleci<strong>da</strong> pelo Apóstolo, entre o hom<strong>em</strong> terreno ecarnal, e o hom<strong>em</strong> celeste e espiritual. Acrescente-se a estes <strong>da</strong>dos a concepção bíblica<strong>da</strong> condição adâmica do ser humano. A dúvi<strong>da</strong> hermenêutica é coloca<strong>da</strong> por Sto.<strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> natureza do corpo de Adão: criado com corpo espiritual ou comcorpo animal? Criado mortal ou imortal? Quanto à primeira questão, o filósofo prefereadmitir que esse primitus homo possuía um corpo animal, dotado de racionali<strong>da</strong>de. Acondição de corpo espiritual seria conquista<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po pelo próprio ser humano, sevivesse de acordo com a ord<strong>em</strong> nele impressa pelo ser divino. Quanto à segun<strong>da</strong>questão, articulando-a com a sua peculiar concepção de Criação, que integra doismomentos, sendo simultânea e sucessiva, Sto. <strong>Agostinho</strong> admite as duas possibili<strong>da</strong>des.O primitus homo fora criado imortal, mas com um corpo capaz de morte e corrupção. Aharmonia entre o corpo e a alma imortal dependeria, igualmente, <strong>da</strong> preservação, ounão, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Criador.Assim, é indissociável <strong>da</strong> antropologia augustiniana a noção de t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e acompreensão do modo como este factor afecta a conquista <strong>da</strong> forma humana. Comefeito, perspectivando a questão na sua essência – à marg<strong>em</strong>, portanto, <strong>da</strong>s controvérsiase enigmas acerca <strong>da</strong> estrutura psicossomática do ser humano –, só se pode compreendera relação entre o corpo e a alma à luz de um aperfeiçoamento efectivado no inferior pelosuperior, no caso, no corpo, pela alma. Assim, à interrogação “por que razão há umareali<strong>da</strong>de onde se un<strong>em</strong> o corpo e o espírito?”, de acordo com a noção augustiniana deord<strong>em</strong>, entendi<strong>da</strong> como disposição hierárquica de formas, responder-se-á: para que ocorpo, enquanto totali<strong>da</strong>de congruente de partes, bela e harmónica, se possa aperfeiçoarmediante as acções <strong>da</strong> alma, a que se uniu, e elevar a sua condição à <strong>da</strong>quela. De facto,é este o fun<strong>da</strong>mento metafísico <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de de uma perfeição do corpo humano,projecta<strong>da</strong> escatologicamente, enquanto corpo espiritual, à qual Sto. <strong>Agostinho</strong> aludecom frequência e que faz parte integrante <strong>da</strong> sua mundividência.273


Neste sentido, a concepção paulina de um hom<strong>em</strong> animal/carnal, que tende,mediante a vontade e não s<strong>em</strong> o auxílio divino, à perfeição do hom<strong>em</strong> espiritual,integra-se perfeitamente neste projecto de aperfeiçoamento, não já de ca<strong>da</strong> ser humano,mas de to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de. De facto, unido ao enigma <strong>da</strong> condição adâmica, está, naperspectiva augustiniana, a afirmação de uma antropogénese – Adão significa,virtualmente, tudo quanto a humani<strong>da</strong>de, no curso dos t<strong>em</strong>pos, pode <strong>da</strong>r, no sentido <strong>da</strong>maior e mais plena manifestação de ord<strong>em</strong>. Se agir ao invés desta ord<strong>em</strong>, o ser humanotorna-se, efectivamente, sujeito passivo desse princípio de regência universal: <strong>em</strong> vez deconstruir a ord<strong>em</strong>, é construído por ela; <strong>em</strong> vez de agir de acordo com a lei, é-lheaplica<strong>da</strong> a lei, s<strong>em</strong> o concurso <strong>da</strong> sua vontade 439 .Por sua vez, para o Hiponense, uma compreensão <strong>da</strong> estrutura do ser humano nãose resolverá n<strong>em</strong> no âmbito de uma psicologia racional, n<strong>em</strong> mesmo de umaantropologia, mas de uma meta-antropologia. Desde esta perspectiva, o ser humano éentendido como uma forma específica de existência, dota<strong>da</strong> de corporei<strong>da</strong>de, pela qualse une ao universo dos sensibilia, e de espirituali<strong>da</strong>de, pela qual tende ao mundo <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des inteligíveis. Só na posse delas, com efeito, o ser humano alcança a suamáxima perfeição. Ao fazê-lo, realizando plenamente a sua forma específica, tomaposse <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.Quanto transcen<strong>da</strong> e se alheie deste projecto deve ser entendido à luz <strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de humana de morte e de defectibili<strong>da</strong>de, a qual deriva do livre arbítrio <strong>da</strong>vontade. É neste contexto que se compreend<strong>em</strong> as afirmações de Sto. <strong>Agostinho</strong> acerca<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de, absolutamente desconcertante, de que uma reali<strong>da</strong>de inferior actuesobre outra, superior, ou seja, de que o corpo aflija a alma e a perturbe, na consecução<strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de a que tende essa complexa totali<strong>da</strong>de designa<strong>da</strong> por homo. Neste contexto,a morte torna-se, efectivamente, uma reali<strong>da</strong>de estranha e enigmática, mais difícil decompreender e de justificar do que a própria vi<strong>da</strong> humana. O próprio facto <strong>da</strong> corrupçãodo corpo humano é enigmático e motivo de in<strong>da</strong>gação, pois a natureza dele, na sua439 De mus. VI, XI, 30: “ (...) Turpis enim factus est voluntate, universum amittendo quod dei praeceptisobt<strong>em</strong>perans possidebat, et ordinatus in parte est, ut qui leg<strong>em</strong> agere noluit, a lege agatur.” ( PL 32,1180). E <strong>em</strong> De mus. VI, XIV, 46, lê-se: “ (...) (magister) non igitur numeri qui sunt infra ration<strong>em</strong> et insuo genere pulchri sunt, sed amor inferioris pulchritudinis animam polluit: quae cum in illa non modoaequalitat<strong>em</strong>, de qua pro suscepto opere satis dictum est, sed etiam ordin<strong>em</strong> diligat, amisit ipsa ordin<strong>em</strong>suum; nec tamen excessit ordin<strong>em</strong> rerum, quandoquid<strong>em</strong> ibi est, et ita est, ubi esse, et quomodo essetales, ordinatissimum est. Aliud enim est tenere ordin<strong>em</strong>, aliud ordine teneri” ( PL 32, 1187: it.n.).274


união com a alma racional, tenderia a imortalizar-se, a espiritualizar-se, como ela. Porisso, cabe interrogar por que razão o corpo se corrompe, <strong>em</strong> vez de progredir e de seaperfeiçoar no sentido e na direcção para onde a alma o atrai e dinamiza.A resposta de Sto. <strong>Agostinho</strong> orientar-se-á no sentido de fazer compreender aintrodução <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> corrupção, no curso dos t<strong>em</strong>pos e na estrutura antropológica,<strong>em</strong> virtude de uma que<strong>da</strong> originária. Neste contexto se compreende a expressão bíblica,que o filósofo adopta, acerca do corpo, que pesa, agrava, oprime, deprime a alma.Porém, mais uma vez este facto não indicia desprezo pela corporei<strong>da</strong>de, mas denota aclara consciência que o Hiponense possui de que o corpo humano – na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> queas harmonias dele e as <strong>da</strong> alma não estão, as mais <strong>da</strong>s vezes, <strong>em</strong> consonância – obriga aalma a uma excessiva atitude de vigilância e atenção sobre ele, não permitindooptimizar to<strong>da</strong>s as energias dela na direcção <strong>da</strong>quela tensão interior do espírito que aeleva: a atenção ao B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o e a escolha dos meios para o conquistar e possuir.Assim, se é ver<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> define a sua doutrina <strong>da</strong> sensação através<strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, <strong>da</strong> atenção dela quer ao domínio <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des inferiores, querao <strong>da</strong>s superiores, pois é nesta tensão que vive o próprio ser humano, também é umfacto que o Hiponense reconhece um certo condicionamento <strong>da</strong> alma por parte do corpo.O efeito desta interacção é a transformação <strong>da</strong> tendência <strong>da</strong> alma à obtenção <strong>da</strong> paz,pelo movimento progressivo de posse do B<strong>em</strong> Eterno, numa irrequietude causa<strong>da</strong> pelassucessivas solicitações dos sentidos. Assim, a intentio animi, que é essencial na almahumana e inseparável <strong>da</strong> natureza dela, transforma-se numa inquietude insana, contráriaà tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, fim ao qual tende o ser humano, como to<strong>da</strong> a expressão de serque se realiza na Paz. Ora tal condicionamento <strong>da</strong> alma pelos corporalia – de que sãoexpressão a doença, a fadiga, e as próprias perturbações <strong>da</strong> alma, efeito <strong>da</strong> imaginação e<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória – subestima a ord<strong>em</strong> dos seres e fere, <strong>em</strong> certa medi<strong>da</strong>, a hierarquiaontológica. Por isso, ele não pode pertencer à disposição natural dos seres, de acordocom a acção sumamente boa do Criador. Sto. <strong>Agostinho</strong> justifica-o <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong>desord<strong>em</strong> introduzi<strong>da</strong> na alma humana pela que<strong>da</strong> original, ao mesmo t<strong>em</strong>po quepostula, para o próprio ser humano, uma nova ord<strong>em</strong>, pois o primado do B<strong>em</strong> há-depreponderar no plano metafísico, sobre essa frincha de desord<strong>em</strong>, provisória et<strong>em</strong>poralmente introduzi<strong>da</strong> na hierarquia ontológica.To<strong>da</strong>via, a recondução <strong>da</strong> causa <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> que se verifica na relação entre ocorpo e a alma à que<strong>da</strong> adâmica é, até certo ponto, circular, pelo menos no que dizrespeito ao esclarecimento <strong>da</strong> estrutura antropológica do ser humano. Com efeito, um tal275


posicionamento obriga, novamente, a in<strong>da</strong>gar a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma e a situaçãoantropológica do ser humano antes <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original, ao mesmo t<strong>em</strong>po que exigeinterrogar sobre a transmissão do pecado, o surgimento de ca<strong>da</strong> nova alma que animaum novo corpo e a quali<strong>da</strong>de moral dessa mesma alma. Sto. <strong>Agostinho</strong> vai ao encontrodos que o consultam a propósito destas questões intrinca<strong>da</strong>s, e são incontáveis osescritos de carácter epistolar, polémico ou pastoral, onde elas são debati<strong>da</strong>s. Contudo,tal universo de questões apresenta-se ao Hiponense <strong>em</strong> si mesmo insolúvel, porventura<strong>em</strong> razão de um posicionamento desfocado. De facto, qu<strong>em</strong> interroga sobre a orig<strong>em</strong><strong>da</strong>s almas in<strong>da</strong>ga acerca de um passado, não enquanto acontecimento histórico, masenquanto fenómeno ôntico ou reali<strong>da</strong>de existencial de máxima radicali<strong>da</strong>de. Ora, nestedomínio, nenhum ser humano pode regressar ao momento <strong>em</strong> que não era ecompreender o seu modo de ser a partir desse instante ontologicamente nulo. Por isso,não obstante o carácter intuitivo, a resposta mais clara <strong>da</strong><strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> a esterespeito será porventura aquela que se pode ler <strong>em</strong> De libero arbitrio. Aí, o filósofoafirma desinteressar-se desta acepção de passado, por considerar mais fecundo oconhecimento <strong>da</strong> sua situação actual, preferindo interessar-se por aquilo que a suaexistência pode potenciar face ao futuro. Com efeito, é a dimensão intencional <strong>da</strong>existência que contém, virtualmente, tudo quanto a alma de ca<strong>da</strong> um poderá vir arealizar <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.3. A alma humana e a desord<strong>em</strong>O momento <strong>em</strong> que Sto. <strong>Agostinho</strong> acede à compreensão de uma reali<strong>da</strong>deimaterial e a sua mente se torna capaz de penetrar num mundo inteligível éconcomitante com o início <strong>da</strong> procura de uma argumentação contra os princípios queanteriormente perfilhara acerca <strong>da</strong>quelas reali<strong>da</strong>des cuja natureza insere agora numanova visão do mundo. Obviamente, <strong>em</strong> causa está, de modo directo e tal como oHiponense posiciona a t<strong>em</strong>ática, o esclarecimento <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> relação entre a alma eDeus. Porém, o horizonte de in<strong>da</strong>gação dessa t<strong>em</strong>ática é mais radical, pois envolve acompreensão <strong>da</strong> estrutura do ser humano e <strong>da</strong> natureza específica dos seus actos.A propósito <strong>da</strong> noção de alma, o filósofo propõe-se alcançar dois objectivos:conhecer a natureza dela e descortinar a sua orig<strong>em</strong>. No que se refere à interrogaçãosobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma, o probl<strong>em</strong>a não se apresenta a <strong>Agostinho</strong> com necessi<strong>da</strong>de276


intrínseca para a fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> sua mundividência. Trata-se de uma questãoperiférica, a cuja in<strong>da</strong>gação o filósofo se lança, confrontado com soluções para aquestão que são incompatíveis com os princípios sobre os quais quer equacionar ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Assim, não obstante n<strong>em</strong> todos os escritos que incid<strong>em</strong> de modoexplícito sobre o ensaio de esclarecimento do enigma <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas se inserir<strong>em</strong>,directamente, no âmbito <strong>da</strong> literatura de controvérsia, é um facto que a in<strong>da</strong>gaçãoaugustiniana sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas <strong>em</strong>erge, fun<strong>da</strong>mentalmente, do confronto comformas de conceber o Mundo avessas àquela que <strong>Agostinho</strong> quer fun<strong>da</strong>mentarracionalmente.Na essência <strong>da</strong> crítica que o filósofo tece a estas concepções <strong>da</strong> alma humana,está, precisamente, a mesma dificul<strong>da</strong>de que aprisionara o seu espírito e o fizera cair noerro dos Maniqueus: a incapaci<strong>da</strong>de de conceber uma natureza incorpórea.Efectivamente, seja qual for a proveniência <strong>da</strong>s teses com que se defronta – maniqueuse outras concepções que designa pelo termo genérico gentium philosophi 440 , ou, mesmo,posições oriun<strong>da</strong>s de meios cristãos, como é o caso de Tertuliano 441 ou de VicenteVítor 442 -, Sto. <strong>Agostinho</strong> excluirá s<strong>em</strong>pre a possibili<strong>da</strong>de de a alma ser uma reali<strong>da</strong>decorpórea.Integrando a investigação leva<strong>da</strong> a cabo pelo Hiponense sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almasno seu contexto histórico e hermenêutico, cresce a convicção de que o próprio filósofot<strong>em</strong> consciência de se tratar de uma questão de algum modo alheia à reflexão, por seencontrar para lá <strong>da</strong>s efectivas possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> razão. To<strong>da</strong>via, <strong>Agostinho</strong> não podeignorar uma série de interrogações que se cruzam com esta obscurissima quaestio 443 eimpel<strong>em</strong> a uma explicitação racional.Efectivamente, a in<strong>da</strong>gação sobre a orig<strong>em</strong>, fazendo r<strong>em</strong>ontar a um passado cujaacessibili<strong>da</strong>de não é <strong>da</strong><strong>da</strong> à razão, apresenta-se a <strong>Agostinho</strong> como questão alheia àintencionali<strong>da</strong>de intrínseca aos el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> mundividência que se propõe erguer,alicerça<strong>da</strong> na relação entre Deus e a alma. Assim, <strong>em</strong> De libero arbitrio, o filósofo440 Cf. De gen. ad litt. VII, 11 e ss ( CSEL 28/1, p. 210-212); Ep. CXVIII, 4 ( CSEL 34/2, p. 686-693),onde Sto. <strong>Agostinho</strong> critica as filosofias de cariz materialista, como o atomismo ou o estoicismo,evidenciando os apor<strong>em</strong>as sobre a concepção <strong>da</strong> alma humana <strong>em</strong> que incorr<strong>em</strong>.441 Cf. De gen. ad litt. X, 25-26 ( CSEL 28/1, p. 328-332); De haer. LXXXVI ( CCL 46, p. 338); De nat.et orig. anim. II, V, 9 ( CSEL 60, p. 342-343).442 De nat. et orig. anim. IV, XVII, 25-XVIII, 28 ( CSEL 60, p. 404-408).443 Cf. Ep. CLXIII, XI ; Ep. CLIX, I ( CSEL 44, p. 261; p. 498).277


declara que a questão sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas é pouco digna de relevo, uma vez quepara o conhecimento que o ser humano pode adquirir sobre si próprio não importa tantosaber o que outrora foi, mas o que agora é, e aquilo que pode vir a ser 444 . É estadinâmica projecta<strong>da</strong> para o futuro que pulsa na obra do Hiponense, para qu<strong>em</strong> o passadonão aproveita por si, mas tão-somente enquanto esclarece um presente e potencia umfuturo. Como se verá, a própria reflexão augustiniana – insistente, aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, deti<strong>da</strong> -acerca <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória e <strong>da</strong> tarefa que está a seu cargo, quer no interior <strong>da</strong> mente humana,quer no conjunto <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong>s funções, não t<strong>em</strong> por objectivo esquadrinhar umpretérito, mas atender a um presente que sustenta as d<strong>em</strong>ais dimensões <strong>da</strong>t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e do movimento, precisamente porque a sua activi<strong>da</strong>de se situa para alémdestas duas expressões de reali<strong>da</strong>de.É um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> se interroga sobre o Princípio. Mais ain<strong>da</strong>, é noconhecimento do Princípio s<strong>em</strong> princípio de to<strong>da</strong>s as coisas que o filósofo fará residir,para o ser humano, a posse <strong>da</strong> sabedoria. Porém, tanto a natureza do Princípio, quecorresponderá à noção de Deus, como a <strong>da</strong> sabedoria humana, que corresponderá àquali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma ordena<strong>da</strong>, são essencialmente dinâmicas e, no entender doHiponense, interag<strong>em</strong> no curso do t<strong>em</strong>po, a fim de potenciar a máxima expressão de <strong>Ser</strong>e de realizar, de modo mais pleno, a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, atributo primordial <strong>da</strong>quela noção supr<strong>em</strong>a.Na reali<strong>da</strong>de, a interrogação sobre o Princípio e aquela outra, sobre a orig<strong>em</strong>, não seidentificam, na obra de <strong>Agostinho</strong>, e <strong>em</strong>erg<strong>em</strong>, até, de universos diferentes, tanto doponto de vista cultural como metafísico. Este facto é perceptível na investigaçãoaugustiniana acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas 445 .Contudo, para o Hiponense é evidente que a resposta acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> almas searticula com a d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> sobre a noção de ord<strong>em</strong>. Tal articulação verifica-se desde a444 Cf. LA III, XXI, 61 ( CCL 29, p. 311-312). V. também, v. gr., Ep. CCII A , VII, 16-VIII, 17 ( CSEL 57,p. 312-313), onde o filósofo, invocando o Salmo 38 :5 – «Notum mihi fac, domine, fin<strong>em</strong> meum » -,declara que o conhecimento do fim para que tende o ser humano é mais importante do que o do enigma<strong>da</strong> orig<strong>em</strong>.445 É visível que Sto. <strong>Agostinho</strong> sente um certo desconforto ante esta in<strong>da</strong>gação, afirmando, por vezes,que a discussão ultrapassa a possibili<strong>da</strong>de humana de resposta. Esta posição é acentua<strong>da</strong> explicitamentena correspondência troca<strong>da</strong> com Optato, bispo católico, de sede desconheci<strong>da</strong>, defensor do criacionismo,<strong>da</strong> qual se conservam as Ep. CXC e CCII A , sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas. Em ambas as epístolas, Sto.<strong>Agostinho</strong> insiste no carácter insondável <strong>da</strong> questão e na desnecessi<strong>da</strong>de de a solucionar, para asustentação do aspecto central <strong>da</strong> sua metafísica: a necessi<strong>da</strong>de do Mediador, para restaurar a ord<strong>em</strong> esuperar a defectivi<strong>da</strong>de introduzi<strong>da</strong> no Mundo pela defectibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade humana.278


primeira exposição sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas apresenta<strong>da</strong> pelo filósofo com algumasist<strong>em</strong>atici<strong>da</strong>de, a qual se pode ler <strong>em</strong> De libero arbitrio, quando, no termo de umamplo discurso sobre o modo como se integram, na ord<strong>em</strong> e justiça do Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>,os efeitos <strong>da</strong>s más acções, o Hiponense traz a colação uma contradita de homens <strong>da</strong>dosa murmúrio. Não obstante estes não estar<strong>em</strong> identificados no texto <strong>em</strong> causa, e tendo <strong>em</strong>conta a direcção anti-maniqueísta do referido Diálogo, não é difícil reconhecer, nestareferência, os discípulos de Mani. De facto, eles não se quer<strong>em</strong> responsabilizar pelassuas más acções, por um lado, e, por outro, não aceitam o Antigo Testamento, onde,para além <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de do Princípio, se relata o efeito de uma decadência originária,afectando a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade de todos os seres humanos 446 .É sabido que o filósofo não conhecia, à <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> obra, aposição pelagiana 447 . O surgimento desta controvérsia é, efectivamente, posterior àre<strong>da</strong>cção de De libero arbitrio. To<strong>da</strong>via, esta obra poder-se-ia ajustar, s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de,aos argumentos de defesa de <strong>Agostinho</strong> contra as objecções do pelagianismo, facto qu<strong>em</strong>anifesta a impossibili<strong>da</strong>de de manipular, como fizera Pelágio, os argumentos neleexpostos pelo Hiponense, fazendo-os reverter a favor <strong>da</strong> doutrina de umaimpecabili<strong>da</strong>de original e de uma plena autonomia <strong>da</strong> vontade do agente humano.A objecção que Sto. <strong>Agostinho</strong> põe nos lábios de homens murmuradores é, afinal,uma contestação corrente, de sentido comum, que se coloca à concepção cristã depecado original, fazendo-a entrar <strong>em</strong> colisão com a suposta bon<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a doCriador e com a justiça Dele. Com efeito, uma coisa é afirmar que um conjunto de sereshumanos – admita-se, mesmo, que se trata de um primitus homo, identificado com o paroriginal do relato genesíaco, Adão e Eva – tenha sido responsável pelos seus actos esofrido a pena correspondente, termo que, na metafísica augustiniana, é sinónimo dedecaimento na ord<strong>em</strong> do ser; outra reali<strong>da</strong>de, b<strong>em</strong> distinta, e objecto de contestação, épostular que ca<strong>da</strong> ser humano tenha sido afectado por esse fenómeno, sofrendo aconsequência de actos que não praticou.É precisamente neste aspecto que colid<strong>em</strong>, de modo directo, a in<strong>da</strong>gação sobre aorig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas e a resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. De facto, as quatro tesespropostas por Sto. <strong>Agostinho</strong> para explicar a vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma a um corpo, são enuncia<strong>da</strong>s,446 Cf. LA III, XXI, 59 ( CCL 29, p. 309-310); Cf. Retract. I, IX, 6 ( CCL 57, p. 28-29).447 Cf. Retract. I, IX, 4-6 ( CCL 57, p. 26-29).279


pela primeira vez, <strong>em</strong> De libero arbitrio 448 . O mesmo elenco é retomado na Ep. CLXVIe sobre ele é silenciado qualquer comentário <strong>em</strong> Retractationum I, IX e II, LVI,confirmando-se o assentimento do Hiponense sobre a plausibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s hipóteses.Porém, as quatro hipóteses, que começam por ser articula<strong>da</strong>s contra o maniqueísmo,serão, progressivamente, questiona<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong>, que se virá a inclinar,gradualmente, para a suposição <strong>da</strong> transmissão <strong>da</strong> alma humana por propagação, no actode génese de um novo ser, mesmo se não é possível, fácil, ou acessível à razão decifraro modo como se dá tal processo.A in<strong>da</strong>gação augustiniana acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas e a insistência do filósofonesta reflexão esclarece-se não apenas por el<strong>em</strong>entos de crítica interna, mas tambémpelo enquadramento histórico, no qual se insere a discussão <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> causa.Quanto ao primeiro aspecto, <strong>Agostinho</strong> necessitava de manter a coerência <strong>da</strong> articulaçãodos principais pilares <strong>da</strong> sua mundividência, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> face quer domaniqueísmo, quer do pelagianismo. Estas formas de interpretação do mundo, por seuturno, viriam a funcionar como forças adversas que desafiam a razão augustiniana aprocurar respostas, impulsiona<strong>da</strong> quer por iniciativa própria e por inerência d<strong>em</strong>inistério, quer pelas multíplices solicitações que dão orig<strong>em</strong> a um fecundo e prolixovaivém epistolar. Assim, há registo <strong>da</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>, por parte do Hiponense, de argumentosplausíveis para sustentar os pilares <strong>da</strong> sua mundividência, entre os quais se contam aafirmação <strong>da</strong> essencial bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade humana, pela dependência ontológica do serhumano <strong>em</strong> relação ao Criador, a par <strong>da</strong> atribuição <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal ao livre arbítrio <strong>da</strong>vontade, responsabilizando ca<strong>da</strong> criatura humana pelas suas más acções. Os doisaspectos enunciados constitu<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> clara oposição ao maniqueísmo. Por suavez, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma, de modo concreto contra as teses pelagianas, o facto de oser humano ter contraído, de modo histórico e universal, um defeito ou debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>vontade. Estas proprie<strong>da</strong>des deficitárias incrustam-se no âmago do género humano,afectando ca<strong>da</strong> um dos seres que participam <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.Este último el<strong>em</strong>ento, curiosamente, é já um <strong>da</strong>do adquirido quando <strong>Agostinho</strong>enuncia pela primeira vez as referi<strong>da</strong>s quatro hipóteses acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas.Com efeito, é <strong>da</strong> verificação de um estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de que <strong>Agostinho</strong>448 LA III, XXI, 59: "Harum aut<strong>em</strong> quatuor de anima sententiarum, utrum de propagine ueniant an insingulis quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittanturdiuinitus uel sua sponte labantur, nullam t<strong>em</strong>ere adfirmare oportebit." ( CCL 29, p. 309).280


parte, mesmo quando, <strong>em</strong> De libero arbitrio, contra os Maniqueus, quer argumentar afavor <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de do ser humano, dotado de uma boa vontade, na qual se integra o poderde escolha. Este aspecto não é irrelevante, <strong>da</strong>do que, no decurso <strong>da</strong> argumentação, oHiponense mostra que o estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de é uma reali<strong>da</strong>de factual, aqual se pode verificar, por ex<strong>em</strong>plo, na condição progressiva <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> e nolabor inerente a tal activi<strong>da</strong>de.Ao in<strong>da</strong>gar sobre a natureza e orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que,acima de tudo, estão <strong>em</strong> causa dois aspectos constitutivos do ser humano. São eles abon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criatura humana tal como ela se manifesta no mundo e de acordo com ahieraquia ontológica, e a condição inferior <strong>da</strong> razão <strong>em</strong> face do Princípio de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> eSabedoria, por meio do qual a razão humana é capaz de formular proposições e deavaliar a quali<strong>da</strong>de dos seres. Desta forma, o Filósofo de Hipona assume como tarefamostrar que a evidência do próprio estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de, que a razãocomprova no processo de aprendizag<strong>em</strong>, ratifica as teses centrais do seu discurso 449 . Defacto, há um Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, orig<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de. Por conseguinte, <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s assuas expressões, a reali<strong>da</strong>de é manifestação de bon<strong>da</strong>de. Ora, a mente humana, com assuas funções que lhe são próprias, entre as quais se conta a própria vontade, é,efectivamente, um b<strong>em</strong>. Assim, quer a inteligência humana, mesmo ignorante e anecessitar de esforço para conquistar a ciência e a sabedoria, quer a vontade humana,mesmo debilita<strong>da</strong> e inclina<strong>da</strong> para a desord<strong>em</strong>, evidenciam bon<strong>da</strong>de e ser, pela formaespecífica que possu<strong>em</strong>. Mediante elas, manifesta-se no mundo um conjunto quaseinfinito de possibili<strong>da</strong>des de ser, sendo a presença desta multiforme exuberânciaontológica sustenta<strong>da</strong> por aquela supr<strong>em</strong>a bon<strong>da</strong>de que lhes garante existência.Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong> confirma que a mente humana é um b<strong>em</strong>, mesmo noestado actual de ignorância e dificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que o ser humano a experiencia 450 . Esta449 Cf. LA III, XVIII, 52; XX, 55 (CCL 29, p. 305-306; p. 307). Neste estado, Sto. <strong>Agostinho</strong> inclui aresistência <strong>da</strong> carne à acção do espírito, consequência <strong>da</strong> violência mortal que irrompeu no génerohumano pela auaritia, distorção <strong>da</strong> vontade que está na essência <strong>da</strong> corrupção do estado original do serhumano.450 Cf. LA III, XIX, 54 ( CCL 29, p. 306-307). O estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de é diferente do estadonatural do ser humano, no qual foi criado primeiramente no seu género, s<strong>em</strong> culpa. Aquele estadocorresponde, na óptica de Sto. <strong>Agostinho</strong>, a uma justa punição, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> rejeição voluntária, porparte do ser humano, <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na qual foi criado. Assim, tal forma de ser tornou-se possuidora de umavontade perversa, que se caracteriza por querer possuir mais não apenas do que aquilo que deve, mas doque pode. Outra não é, para <strong>Agostinho</strong>, a definição de auaritia (Cf. LA III, XVII, 48: CCL 29, p. 303).281


debili<strong>da</strong>de, não obstante revelar o ser humano numa forma inferior à <strong>da</strong> condiçãoprimordial que a vontade dele possuía, não deixa de ser um b<strong>em</strong>. Assim, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que ele se esforça por superar esse estado, o ser humano exercita a sua possibili<strong>da</strong>de deescolha <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> à aquisição <strong>da</strong> sabedoria. E, ao tender progressivamente para aconquista desta quali<strong>da</strong>de, que constitui o fim próprio <strong>da</strong> forma humana, nela s<strong>em</strong>anifesta o cui<strong>da</strong>do de Deus sobre os assuntos humanos. Com efeito, para eximir Deusde to<strong>da</strong> a mal<strong>da</strong>de e incoerência, é necessário admitir que Ele coloca ao alcance do serhumano todos os meios necessários e convenientes para ultrapassar aquele estado,sendo a mediação de Cristo o cerne deste processo.No contexto desta argumentação, de pendor claramente anti-maniqueísta, como searticulam as hipóteses considera<strong>da</strong>s por Sto. <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas?A primeira suposição admite que a alma advém ao corpo por propagação, isto é,sendo transmiti<strong>da</strong> no acto de geração. Neste caso, a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma vincula-se, directa eintrinsecamente, ao acto de cópula, ao qual segue o surgimento de uma nova vi<strong>da</strong> 451 . Seexistiu uma desqualificação <strong>da</strong> vontade do par originário, então a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas – oprincípio de ordenação segundo o qual uma reali<strong>da</strong>de inferior não pode <strong>da</strong>r orig<strong>em</strong> auma superior – exige que to<strong>da</strong> a alma que vivifique qualquer efeito <strong>da</strong> cópula desseprimeiro par, do qual venha a proceder o surgimento de uma nova vi<strong>da</strong> humana,participe, igualmente, <strong>da</strong> mesma quali<strong>da</strong>de e perfeição ontológica possuí<strong>da</strong> pela situaçãoantropológica <strong>da</strong>quele primitus homo, de qu<strong>em</strong> depende, na sua orig<strong>em</strong> histórica, ca<strong>da</strong>forma humana. Ora, a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma humana do par originário está afecta<strong>da</strong> pelaignorância e dificul<strong>da</strong>de, sendo esta situação correspondente ao estado de degra<strong>da</strong>çãoEsta perversão manifesta-se na impossibili<strong>da</strong>de de fazer coincidir, de modo imediato e s<strong>em</strong> esforço, asduas dimensões essenciais <strong>da</strong> vontade humana: querer e dever. Esta situação de debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade écontrária à natureza primitiva do ser humano e caracteriza-se pela descoincidência entre estes trêsmomentos do acto livre: conhecer o dever, querer aderir a ele, e não poder. Aqui passa a fronteira entre asposições augustiniana e pelagiana face ao modo de conceber a natureza e a bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade humana.Para <strong>Agostinho</strong>, no estado actual <strong>da</strong> vontade, querer não é poder. Para Pelágio e seus sequazes, não hádiferença entre um estado actual e um estado original e, por conseguinte, não há conflito interno, navontade humana, entre querer e poder.451 A hipótese não contraria a hierarquia ontológica, não obstante tornar extr<strong>em</strong>amente difícil para opróprio <strong>Agostinho</strong> a compreensão do modo como se realizaria a transmissão <strong>da</strong> alma, de forma apreservar dois aspectos fun<strong>da</strong>mentais na metafísica do Hiponense: a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma sobre o corpo,que supõe a diferença de ambas as substâncias, e a íntima união entre o processo biológico <strong>da</strong> transmissão<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma.282


que os primeiros progenitores alcançaram, por vontade própria. Esta degra<strong>da</strong>ção afectaa condição geral <strong>da</strong> vontade e o estado actual <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza dela, porcontrariar o projecto inicial do Criador para o ser humano. Da<strong>da</strong> a funçãoantropogenética que Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui ao primitus homo, a degra<strong>da</strong>ção que sepropaga afecta, no entender do filósofo, o domínio comum <strong>da</strong> vontade humana, ou seja,o âmbito dessa facul<strong>da</strong>de humana enquanto genericamente identifica<strong>da</strong> no modohumano de ser. Ora, se esta afirmação faz correr sobre a humani<strong>da</strong>de um sombrio véude decadência, ela salvaguar<strong>da</strong>, simultaneamente, de uma herança de degra<strong>da</strong>ção, odomínio próprio <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana, confiado ao livre arbítrio <strong>da</strong> vontade. De facto,como o Hiponense não cessa de repetir, ca<strong>da</strong> ser humano é ver<strong>da</strong>deiro e próprio autorquer <strong>da</strong>s suas más acções, quer <strong>da</strong>s boas.No entender do filósofo, esta hipótese para a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> alma humana, segundo aqual a alma advém ao corpo por propagação, respeita a ordo rerum e confirma abon<strong>da</strong>de e a justiça do Criador. Retira<strong>da</strong> a felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> posse do B<strong>em</strong> Comum, não seretira, ao ser humano, a fecundi<strong>da</strong>de, inerente à expansão do género, precisamenteporque, por meio <strong>da</strong> multiplicação dos seres humanos, outras liber<strong>da</strong>des poderão vir aconquistar a felici<strong>da</strong>de, aderindo ao B<strong>em</strong> Comum e contribuindo, assim, para aprossecução e para a realização do projecto de edificação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do Universo 452 .452 Cf. LA III, XX, 55 (CCL 29, p. 307). Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinha o facto de a descendência do primeiropar original e a multiplicação dos seres humanos, mesmo afecta<strong>da</strong> pela defectibili<strong>da</strong>de do pecado e,portanto, tendo-se tornado carnal e mortal, poder ser algo de belo no seu género e adornar a face <strong>da</strong> Terra.O argumento é válido essencialmente contra o maniqueísmo que considerava perversa a multiplicação deseres humanos, enquanto acto diss<strong>em</strong>inador <strong>da</strong> presença do mal no mundo (cf. v. gr. De moribus II,XVIII, 65- XX, 75 ( CSEL 90, p. 146-156); De nat. boni 47 ( CSEL 25/2, p. 886-887). É convicção <strong>da</strong>seita maniqueísta que a propagação <strong>da</strong> espécie humana diss<strong>em</strong>ina, no cosmos, a matéria, essencialment<strong>em</strong>aligna e orig<strong>em</strong> do mal, e entrava o processo de libertação do espírito <strong>em</strong> relação ao princípio de mal.Daí o apelo feito, entre os seus auditores, à continência, a qual, na prática, se resumia ao recurso aprocessos anti-conceptivos ou abortivos. Note-se que a proposta maniqueísta de "continência" não advémde uma concepção <strong>da</strong> multiplicação do mal através <strong>da</strong> propagação <strong>da</strong>s almas, sujeitas às condições doestado pós-lapsário, discurso ao qual a seita nega vali<strong>da</strong>de, por rejeitar o Antigo Testamento e a versão depecado original aí veicula<strong>da</strong>. É a propagação <strong>da</strong> matéria e o consequente aprisionamento do espírito queos Maniqueus quer<strong>em</strong> "evitar", ao proclamar a malícia <strong>da</strong> propagação <strong>da</strong> espécie humana. Assim, lê-se<strong>em</strong> De moribus II, XVIII, 65: "(...) Quae cum magna uoce et magna indignatione dixeritis, ego uos leniusinterrogabo ad hunc modum: nonne uos estis qui filios gignere, eo quod animae ligentur in carne, grauiusputatis esse peccatum, quam ipsum concubitum? Nonne uos estis qui nos soletis monere, ut quantum fieri283


Acerca <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> hipótese para a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas – a criação de uma alma paraca<strong>da</strong> nova criatura humana que nasce –, o Hiponense afirma que tal possibili<strong>da</strong>de não sórespeita a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s coisas, como manifesta, com to<strong>da</strong> a evidência, a congruência entreo facto <strong>da</strong> desqualificação <strong>da</strong> vontade do primeiro hom<strong>em</strong> e o <strong>da</strong> criação de novasalmas, permanecendo estas <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de de mérito com o estado <strong>da</strong>quela primeira 453 .É um facto que <strong>Agostinho</strong> interpreta o sentido <strong>da</strong> potenciação do género humanona criação do primeiro par original, que a tradição bíblica identifica com o nome deAdão e Eva. Em boa medi<strong>da</strong>, a reflexão <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong> pelo Hiponense sobre aprobl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> criação do género humano é impulsiona<strong>da</strong> pela crítica teci<strong>da</strong> aomaniqueísmo, como é <strong>da</strong>do ver pelo contexto de controvérsia de onde <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> osprincipais escritos de comentário ao relato <strong>da</strong> Obra dos Seis Dias. Ao adoptar aconcepção bíblica como justificação para a criação do ser humano, Sto. <strong>Agostinho</strong> écoerente com o princípio de intencionali<strong>da</strong>de, el<strong>em</strong>ento essencial <strong>da</strong> acção divina, quevislumbra por detrás de to<strong>da</strong> a manifestação de ser. Em função <strong>da</strong> natureza imanente <strong>da</strong>sfunções <strong>da</strong> mente humana, a quali<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as acções do ser humano define oestado de maior ou menor perfeição delas, na hierarquia ontológica. No caso <strong>da</strong>s acçõesdo primitus homo e pelo facto de ele conter, como destinação intencional do exercício<strong>da</strong> sua vontade livre, a quali<strong>da</strong>de de todos os seres nele potenciados – e uma vez que orelato bíblico <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original descreve uma acção na qual, claramente, o ser é avessoao dever –, o Hiponense considera que essa condição de decadência se propagou a ca<strong>da</strong>um dos seres humanos.Esta interpretação que, leva<strong>da</strong> ao extr<strong>em</strong>o, conduzirá o filósofo, <strong>em</strong> contexto decontrovérsia, a proclamar a existência de uma massa <strong>da</strong>mnata - conceito tantas vezesobjecto de crítica e horizonte hermenêutico ao qual não poucas vezes se quis reduzir amundividência augustiniana, como se para ele convergiss<strong>em</strong> necessária eexclusivamente os seus supostos -, surge a <strong>Agostinho</strong> como a melhor <strong>da</strong>s versões paraexplicar aquilo que designa por estado de ignorância, dificul<strong>da</strong>de e mortali<strong>da</strong>de, o qualentende ser uma experiência universal e comum a todo o ser humano.Com efeito, ao fazer depender a perfeição do conjunto <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção deum só par original, na qual estariam condensa<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as expressões de humani<strong>da</strong>deposset, obseruar<strong>em</strong>us t<strong>em</strong>pus quo ad conceptum mulier post genitalium uiscerum purgation<strong>em</strong> apta esseteoque t<strong>em</strong>pore a concubitu t<strong>em</strong>perar<strong>em</strong>us, ne carni anima implicaretur?” ( CSEL 90, p. 146-147).453 Cf. v. gr., LA III, XX, 56 ( CCL 29, p. 307-308).284


projecta<strong>da</strong>s no curso dos t<strong>em</strong>pos, o relato genesíaco insiste na intrínseca união entre oser humano e a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação - afinal, na comunhão indissociável entre oshumanos e o cosmos - ante a qual aquele se situa não apenas como mero espectador,mas como directo interveniente na condução de ca<strong>da</strong> domínio de reali<strong>da</strong>de para omáximo exponente de ser que ela pode alcançar no seu género. Ora, se aintencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção humana, potencia<strong>da</strong> no primitus homo, assume essa dimensão<strong>em</strong> face dos outros seres que lhe são inferiores <strong>em</strong> género, ela manifestar-se-á,obviamente, também <strong>em</strong> face <strong>da</strong>queles que pertenc<strong>em</strong> a uma mesma natureza, tornandosecapaz de construir, no interior de si mesma, a paz ou a discórdia. Assim, se o paroriginal, primórdio <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, optou pela discórdia, e se ele é responsável pelaquali<strong>da</strong>de do género, então a discórdia está s<strong>em</strong>ea<strong>da</strong> no género humano, por propagação<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong>quele homo primevo.Esta interpretação do relato bíblico <strong>da</strong>s Origens, que Sto. <strong>Agostinho</strong> explanarásobretudo <strong>em</strong> De genesi ad litteram libri duodecim, insiste no comprometimento do serhumano <strong>em</strong> face do B<strong>em</strong> Comum, não apenas enquanto indivíduo, mas enquanto coresponsávelcom a realização histórica de um modo peculiar de ser. Tal compromissoconecta to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de entre si, precisamente através <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções queca<strong>da</strong> ser humano realiza. E, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o ser humano está inicialmentevocacionado à multiplicação de si – a fim de vivificar a Orbe pela presença, nela, de ummodo de ser livre e racional, capaz de compreender e realizar o aperfeiçoamento <strong>da</strong>spotenciali<strong>da</strong>des dos outros modos de ser –, ele conecta, de modo inconcusso edefinitivo, a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção humana e to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de sobre a qual o ser humanoexerça a sua activi<strong>da</strong>de. Ora, é precisamente <strong>em</strong> prol de uma concepção positiva do ser,<strong>da</strong> matéria, <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> própria multiplicação <strong>da</strong> espécie, dos actos que a elaestão unidos e, enfim, de uma concepção dinâmica de B<strong>em</strong> Comum cuja construção éindissociável de uma ideia de comuni<strong>da</strong>de humana, que o Hiponense insiste napropagação <strong>da</strong> espécie humana a partir de um só hom<strong>em</strong> – ex homine uno. Assim, éigualmente <strong>em</strong> função <strong>da</strong> apologia destes mesmos valores - não obstante tal facto não seevidenciar s<strong>em</strong> uma análise profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra augustiniana - que o filósofo defende apropagação <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de defectível <strong>da</strong> alma a partir de um primitus homo.Nas suposições apresenta<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong> para compreender a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas,o que está <strong>em</strong> discussão não é a discórdia que se manifesta na existência do ser humanoe se evidencia no exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de dele. A condição discorde que, no interior doser humano, manifesta o desequilíbrio entre as tendências do corpo e a do espírito, é de285


domínio factual, e nela estão de acordo maniqueus, pelagianos e cristãos 454 . O objectode disputa acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas incide sobre o modo como tal facto terá sucedidoe como ca<strong>da</strong> alma integra a estrutura psicossomática do ser humano. Por parte de<strong>Agostinho</strong>, a in<strong>da</strong>gação a este propósito reveste-se de suma cautela, pois as fontes deautori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua referência - tradição e Escritura - na<strong>da</strong> diz<strong>em</strong> ao respeito 455 , e oentendimento, quando discorre sobre as diferentes soluções, vê-se a braços cominúmeras dificul<strong>da</strong>des.No que se refere à tese que se veio a designar por criacionista, <strong>em</strong> De liberoarbitrio Sto. <strong>Agostinho</strong> louva-a e considera-a sustentável. Efectivamente, apenas omaniqueísmo surgia, então, no espectro <strong>da</strong> controvérsia. Ora, se as almas depend<strong>em</strong> deum único Princípio, Sumamente bom, e se ca<strong>da</strong> alma é cria<strong>da</strong> boa no seu género poresse mesmo Princípio, ca<strong>da</strong> vez que há geração de um novo ser humano <strong>da</strong>r-se-ia,segundo esta hipótese, uma nova intervenção do Princípio <strong>em</strong> direcção ao Mundo e, d<strong>em</strong>odo peculiar, <strong>em</strong> relação ao ser humano. Assim, ao abrigo desta hipótese, tudoconverge para a afirmação <strong>da</strong> plena bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação, de ca<strong>da</strong> forma no seu género e454 <strong>Agostinho</strong> afirma-o claramente <strong>em</strong> Contra Iulian. opus imperf. III, 178: " (…) Proinde paulisperattende; discordiam carnis et spiritus, de qua scriptum est: scio, quia non habitat in me, hoc est in carn<strong>em</strong>meam bonum; uelle enim adiacet mihi, perficere aut<strong>em</strong> bonum non et cetera huiusmodi atque illud multomanifestius: caro concupiscit aduersus spiritum, spiritus aut<strong>em</strong> aduersus carn<strong>em</strong>; haec enim inuic<strong>em</strong>aduersantur, ut non ea quae uultis faciatis, esse in hominibus nec nos dubitamus nec uos nec manichei;sed unde sit in homine uno ista discordia, inde dissensio est et tres proferuntur in hac dissensionesententiae, una nostra, uestra altera, tertia manicheorum." ( CSEL 85/1, p. 479: it. n. ). É sabido que esta éa última obra que se conserva de <strong>Agostinho</strong>, a qual não pode completar, supreendido pela morte. Nela sediscute o mesmo probl<strong>em</strong>a, a orig<strong>em</strong> desta discórdia no ser humano, nela se confrontam as principaisteses que <strong>Agostinho</strong> enfrentou, adversárias <strong>da</strong> sua, e nela, também, <strong>Agostinho</strong> se socorre amplamente dequanto a tradição escreveu ao respeito: S. Cipriano, S. Basílio, Sto. Ambrósio, Sto. Hilário, S. Gregório,aparec<strong>em</strong> aí abun<strong>da</strong>nt<strong>em</strong>ente citados.455 Pelo menos, assim se queixa <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> De libero arbitrio III. Posteriormente, vai reconhecendoargumentos de autori<strong>da</strong>de não encontrando, to<strong>da</strong>via, nenhum passo <strong>da</strong> Escritura cuja interpretação lhepermita decidir por uma tese <strong>em</strong> particular. Paralelamente, o filósofo vai apontando caminhos na direcção<strong>da</strong> convergência entre a tradição e a Escritura, no que a este assunto peculiar diz respeito, s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, sedecidir por nenhum deles. Nos textos que mais directamente incid<strong>em</strong> sobre este assunto, há um espécie deconvicção de fundo, <strong>da</strong> parte do Hiponense, de que o probl<strong>em</strong>a escapa à razão, e de que esse facto se deveou a um desígnio divino ou à própria posição do probl<strong>em</strong>a, a qual, afinal, degenera <strong>em</strong> discussões tantasvezes inúteis e estéreis que acabam por se converter <strong>em</strong> manobras de diversão, dispensáveis para oesclarecimento de outros aspectos centrais envolvidos no filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.286


<strong>da</strong> própria propagação <strong>da</strong> espécie. A tese do surgimento de ca<strong>da</strong> nova alma para ca<strong>da</strong>novo ser não colide com a imutabili<strong>da</strong>de divina e é, inclusivamente, corrobora<strong>da</strong> pelaEscritura 456 . Com efeito, para Sto. <strong>Agostinho</strong> esta é uma interpretação coerente quercom aquilo que conhece acerca <strong>da</strong> natureza do ser humano, quer com alguns passosbíblicos, desde que se aceite quanto anteriormente ficou dito: que há uma relaçãoontológica entre a humani<strong>da</strong>de no seu conjunto e o indivíduo, sendo indissociável aquali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade pela qual o género optou desde o primeiro hom<strong>em</strong>, e a quali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> vontade de ca<strong>da</strong> novo ser humano que surge sobre o Universo. Mais ain<strong>da</strong>, a hipótese<strong>em</strong> apreço é plenamente congruente com a noção de ord<strong>em</strong>. Com efeito, a ausência d<strong>em</strong>érito do primeiro hom<strong>em</strong> corresponderá à natureza do que lhe sucedeu, s<strong>em</strong> que issoafecte a bon<strong>da</strong>de essencial <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> alma, cria<strong>da</strong> de novo, e não obstante adefectibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade. Por este facto, to<strong>da</strong> a nova vi<strong>da</strong> humana, como, aliás, to<strong>da</strong> amanifestação de ser, dev<strong>em</strong> ser louvados amplamente, convite que Sto. <strong>Agostinho</strong>reitera incansavelmente, ao longo <strong>da</strong> sua obra.Porém, se este argumento servia perante as objecções maniqueístas – e nãoobstante ele se integrar numa espécie de diálogo de surdos, <strong>da</strong><strong>da</strong> a divergência depontos de parti<strong>da</strong> entre a concepção do mundo, transmiti<strong>da</strong> pelos escritos de Mani, eaquela transmiti<strong>da</strong> pela Escrituras –, a hipótese criacionista causaria enormesprobl<strong>em</strong>as, quando confronta<strong>da</strong> com as dificul<strong>da</strong>des oriun<strong>da</strong>s dos pressupostos dePelágio e seus sequazes. Com efeito, estes part<strong>em</strong> <strong>da</strong> concepção de uma bon<strong>da</strong>deoriginal <strong>da</strong> vontade humana e não admit<strong>em</strong> qualquer conexão entre uma defectibili<strong>da</strong>degenérica, historicamente contraí<strong>da</strong> pela humani<strong>da</strong>de no primeiro hom<strong>em</strong>, e oaparecimento de uma nova vi<strong>da</strong> humana.De facto, <strong>em</strong> De libero arbitrio, <strong>Agostinho</strong> analisa a livre vontade humana de agircom rectidão e explicita que o faz referindo-se àquela vontade <strong>em</strong> que o ser humano foicriado 457 . Mas, na referi<strong>da</strong> obra, o filósofo também examina a vontade humana no queela t<strong>em</strong> de desconcertante e desarrazoado, naquilo que, nela, escapa à justificaçãoracional, porque a sua causa é defectiva. Neste domínio integram-se to<strong>da</strong>s as acçõesmanifestas quando alguém erra contra vontade, ou não consegue que o seu próprio456 S. Jerónimo escolhe, <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> tese, a passag<strong>em</strong> de Io. 5,17: pater meus usque nunc operatur. Doponto de vista metafísico, ela t<strong>em</strong> raízes mais fun<strong>da</strong>s, que exig<strong>em</strong> a distinção entre movimento eactivi<strong>da</strong>de, negando aquele e admitindo esta na essência divina ( cf. Ep. CLXVI, IV,8. V, 11: CSEL 44, p.557-558; p. 562).457 Cf. LA III, XVIII, 52 ( CCL 29, p. 305-306).287


arbítrio impere sobre a paixão do corpo, produzindo-se a acção – ininteligível, porqueessencialmente desordena<strong>da</strong> –, de uma reali<strong>da</strong>de inferior sobre outra superior, ainteracção do corpo sobre a alma.Sto. <strong>Agostinho</strong> parte, assim, <strong>da</strong> experiência de uma descoincidência tendencial, nointerior <strong>da</strong> vontade humana, entre o acto de querer e o facto de poder. Estadescoincidência não pertence n<strong>em</strong> à natureza <strong>da</strong> alma, n<strong>em</strong> à <strong>da</strong> vontade, <strong>da</strong>do queambas, enquanto dimensões <strong>da</strong> criatura humana, manifestam a bon<strong>da</strong>de do ser.Contudo, tal cisão no ser humano é do domínio factual, fenoménico, e Sto. <strong>Agostinho</strong>explica-o <strong>em</strong> função <strong>da</strong> contracção de um defeito <strong>da</strong> vontade dos primeiros sereshumanos que dela usufruíram.Pelágio, por seu turno, recusa aceitar este facto histórico e responsabiliza ca<strong>da</strong>indivíduo pela debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua vontade. Mais ain<strong>da</strong>, denega admitir que a alma e asfacul<strong>da</strong>des dela sejam afecta<strong>da</strong>s por qualquer debili<strong>da</strong>de, a qual, se existe, apenas sedeve à relação que a alma estabelece com o corpo. Ora esta promiscui<strong>da</strong>de é atribuí<strong>da</strong>,na perspectiva pelagiana, apenas a uma atitude permissiva, por parte <strong>da</strong> vontade de ca<strong>da</strong>ser humano 458 . De modo chão, desde esta óptica, o mal, ou desord<strong>em</strong> <strong>da</strong> vontade,corresponde a uma ausência de força de vontade, de carácter psicológico – uma espéciede falta de personali<strong>da</strong>de –, que torna a vontade humana incapaz de imperar sobre ocorpo. A responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> é atribuí<strong>da</strong> pelo pelagianismo a uma vontadedébil e permissiva de ca<strong>da</strong> ser humano. Estando <strong>em</strong> seu poder, de modo incontroverso,vencer aquele desequilíbrio, a vontade humana não o quis fazer. Em última análise, naóptica pelagiana, a causa <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> advém <strong>da</strong> matéria, à qual está uni<strong>da</strong> a alma, nocomposto humano, tese que v<strong>em</strong> a aproximar o maniqueísmo e o pelagianismo, no quese refere à questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal 459 .458 Um resumo <strong>da</strong> perspectiva pelagiana é <strong>da</strong>do por Sto. <strong>Agostinho</strong>, na Ep. CXC, VI: “‘Si anima’, inquit[Pelagius] – ‘ex traduce non est, sed sola caro tantum habet traduc<strong>em</strong> peccati, sola ergo poenam meretur.Iniustum est enim, ut hodie nata anima non ex massa A<strong>da</strong>e tam antiquum peccatum portet alienum, quianulla ratione conceditur, ut deus, qui propria peccata dimittit, unum inputet alienum.’” (CSEL 57, p. 158).459 Cf. Contra Iulian. opus imperf. III, 178 ( CSEL 85/1, p. 479). Sobre a controvérsia pelagiana V. Ep.CLXXV e Ep. CLXXVI, referentes aos concílios de Cartago e Milevo, a.D. 416, cujas conclusões foramconfirma<strong>da</strong>s pelo papa Inocêncio: cf. Ep. CLXXXI e CLXXXII. A Ep. CLXXXIV A apresenta uma síntese<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des <strong>em</strong> causa. Em Maio de 418, um novo Concílio de Cartago volta a condenar opelagianismo e é referen<strong>da</strong>do, nas suas conclusões, pelo papa Zózimo. V., também, Retract. II, L (CCL57, p. 129).288


Ora, quanto à t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, a hipótese que defenderia a criaçãode ca<strong>da</strong> alma para ca<strong>da</strong> novo ser humano gerado ia <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> posição pelagiana acercado estado de impecabili<strong>da</strong>de original de ca<strong>da</strong> vontade humana cria<strong>da</strong>. Para além de umcerto individualismo, inerente à conquista <strong>da</strong> perfeição, que <strong>em</strong>erge, de modo natural,<strong>da</strong> antropologia pelagiana, diluindo o sentido de uma responsabili<strong>da</strong>de comunitária naconstrução intra-histórica do próprio B<strong>em</strong> Comum – <strong>da</strong>do que o pelagianismo confia aconquista <strong>da</strong> perfeição à autonomia <strong>da</strong> vontade humana individual –, a essência <strong>da</strong>perversi<strong>da</strong>de desta concepção do ser humano deriva, para <strong>Agostinho</strong>, do facto de ela sepropor dispensar uma intervenção sanante do Mediador, na conquista do lugar própriode ca<strong>da</strong> ser humano na ord<strong>em</strong> 460 .O rumo de argumentação de Sto. <strong>Agostinho</strong> na luta contra o pelagianismo virá aincidir, sobretudo, na análise <strong>da</strong>s três noções fulcrais, <strong>em</strong> discussão: a natureza, a graçae o livre arbítrio. Nomea<strong>da</strong>mente no que se refere à questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, Sto.<strong>Agostinho</strong> repisa, antes de mais, a ideia <strong>da</strong> vinculação <strong>da</strong> alma humana ao estado póslapsárioe a necessária intervenção de uma enti<strong>da</strong>de com função sanante, para esteestado, a qual <strong>em</strong>ergiria na história pela Incarnação do Verbo. Ora, esta argumentaçãoorienta-se a contestar a tese pelagiana que, depreciando aquela situação originária do serhumano, tornaria desnecessária a função soteriológica <strong>da</strong> Incarnação. Porém, se éver<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste neste aspecto, uma análise descontextualiza<strong>da</strong> destaposição do Hiponense poderia fazer concluir que a função soteriológica do VerboIncarnado é, para o filósofo, a missão principal, se não mesmo exclusiva, <strong>da</strong> Incarnação,subsumindo as d<strong>em</strong>ais missões deste facto histórico. Esta interpretação seria,efectivamente, redutora, pois ao não esclarecer to<strong>da</strong> a incumbência que <strong>Agostinho</strong>confere ao Mediador na construção <strong>da</strong> ordo rerum, inviabilizaria eluci<strong>da</strong>r o modo comoo Hiponense soluciona o filosof<strong>em</strong>a <strong>em</strong> causa.Na argumentação contra o pelagianismo, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirmará, de modoinconcusso, a necessi<strong>da</strong>de do recurso aos ritos de purificação baptismal, para alcançaraquela felici<strong>da</strong>de que realiza o finis optimus de todo o ser humano: s<strong>em</strong> a recepção dorito baptismal não há acesso à Mediação e, s<strong>em</strong> esta, não há possibili<strong>da</strong>de de construir460 Veja-se a síntese <strong>da</strong> doutrina promulga<strong>da</strong> por Pelágio, <strong>da</strong> redução <strong>da</strong> graça à natureza e <strong>da</strong> condiçãocomum <strong>da</strong> graça, outorga<strong>da</strong> a todos os homens, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s condições subjectivas deaceitação desse dom, na Ep. CLXXXVI, a Paulino de Nola. Sto. <strong>Agostinho</strong> expõe a doutrina cristã <strong>da</strong>graça que Pelágio, confundindo gratia et natura, identifica com o donum naturae por meio do qual Deuscria ca<strong>da</strong> natureza e a conserva no ser.289


elação entre Deus e os humanos, inviabilizando-se a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Por seuturno, s<strong>em</strong> esta relação, fun<strong>da</strong>mento metafísico <strong>da</strong> forma humana e de to<strong>da</strong> a formaexistente, inviabiliza-se a ord<strong>em</strong> do Universo, pois a Uni<strong>da</strong>de do Princípio ficadesvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas, e as categorias racionais decompreensão do Mundo reca<strong>em</strong> nas diferentes expressões de antagonismo dualista que,instaurando a incomunicabili<strong>da</strong>de entre o Uno e o Múltiplo, mergulham o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong> na aporia.O enigma <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas não pode, portanto, afastar-se <strong>da</strong> mente de<strong>Agostinho</strong>, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que colide directamente quer com o exercício do seu munuspastoral, quer com os el<strong>em</strong>entos que, no exercício <strong>da</strong> sua produção filosófica, foiarreca<strong>da</strong>ndo como evidentes. No que diz respeito ao primeiro aspecto, confrontado como estabelecimento de um elo causal vinculativo entre o baptismo e o acesso à felici<strong>da</strong>deeterna, um s<strong>em</strong>-fim de questões se colocam ao Bispo de Hipona. Assim, assiste-se auma multiplicação <strong>da</strong>s obras de controvérsia <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do baptismo paraa regeneração, <strong>da</strong> suficiência de um único baptismo, contra o sectarismo dos donatistase, s<strong>em</strong>pre, à insistência, por parte de <strong>Agostinho</strong>, na impossibili<strong>da</strong>de dos neonatos queperec<strong>em</strong> s<strong>em</strong> baptismo aceder<strong>em</strong> ao estado de beatitude 461 .Como <strong>em</strong> tantos outros casos, mormente no que se refere aos textos de carizpolémico ou pastoral, o condicionamento <strong>da</strong>s circunstâncias históricas parecedeterminar, <strong>em</strong> larga medi<strong>da</strong>, as posições de Sto. <strong>Agostinho</strong>, enuncia<strong>da</strong>s quer acerca <strong>da</strong>função sanatória <strong>da</strong> Incarnação do Verbo, quer <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do ritual de purificaçãobaptismal para aceder à eficácia <strong>da</strong> Mediação. Para ponderar rectamente estas posiçõesdo Bispo de Hipona, torna-se necessário considerar, por um lado, o peso de umadetermina<strong>da</strong> tradição eclesial que, na época de <strong>Agostinho</strong>, vincula, com necessi<strong>da</strong>de defim, a carência de regeneração, por parte <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, e o rito de purificaçãobaptismal 462 .461 Articulando a questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas e do baptismo <strong>da</strong>s crianças, enfrentado a tese criacionista,Sto. <strong>Agostinho</strong> formula o probl<strong>em</strong>a com clareza, na Ep. CLXXXII, II, a Oceano: " [ sed merito quaeritur,si uerum est nouas ex nihilo animas singulas singulis nascentibus fieri] quo modo tam innumerabilesanimae paruulorum, quas deo certum est ante rationales annos, antequam quicquam iustum iniustumuesapere uel capere possint, sine baptismo de corporibus exituras, iuste in <strong>da</strong>mnation<strong>em</strong> dentur ab illoutique, apud qu<strong>em</strong> non est iniquitas." ( CSEL 44, p. 698).462 Na Ep. CXLVI, VIII, 24, o Hiponense apela ao costume <strong>da</strong> Igreja, absolutamente fun<strong>da</strong>do, deadministrar o baptismo às crianças de modo t<strong>em</strong>porão e de o não administrar aos mortos, pois não é o290


Igualmente, importa não perder de vista que o pelagianismo proclamava, paratodos os homens, um estado de graça ou de bon<strong>da</strong>de natural, inerente ao génerohumano, sendo aquela bon<strong>da</strong>de original, obviamente, a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong>scrianças recém-nasci<strong>da</strong>s. Este estado, além do mais, derivando <strong>da</strong> natureza, logicamentehaveria de estender-se a todos os humanos, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> raça, cultura oucredo. Nesta medi<strong>da</strong>, <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> à obtenção <strong>da</strong> plena felici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> realização do serhumano, uma tal condição antropológica dispensaria qualquer outra intervenção porparte de Deus, na história humana, para além <strong>da</strong> Criação. Esta espécie de Deus exmachina não necessitaria de estar próximo dos assuntos humanos e, inversamente, oshumanos não necessitariam desta relação, permanente e ôntica, com o ser supr<strong>em</strong>o.Anulando, também, o conceito de pecado original, o pelagianismo deixa s<strong>em</strong> sentido anecessi<strong>da</strong>de de uma regeneração espiritual e olvi<strong>da</strong> qualquer perversão <strong>da</strong> naturezahumana que escape ao controlo <strong>da</strong> vontade própria. Por isso, noções comoconcupiscentia e uoluptas alia<strong>da</strong>s a uma debilitação <strong>da</strong> vontade humana, estão fora doléxico pelagiano, sendo arre<strong>da</strong><strong>da</strong> a hipótese de qualquer interferência de uma dimensãopassional ou <strong>da</strong> presença de um substrato tendencialmente reactivo, por parte <strong>da</strong>vontade, que influa na realização dos actos humanos.No enfrentamento de uma tal concepção antropológica, <strong>Agostinho</strong> vê-se a braçoscom probl<strong>em</strong>as de diversa índole. Por um lado, não pode desvincular a Incarnação doVerbo e a função soteriológica deste movimento sublime <strong>da</strong> gratui<strong>da</strong>de de Deus <strong>em</strong>direcção à criatura humana e ao cosmos, s<strong>em</strong> fazer abortar uma <strong>da</strong>s principais intuiçõesque o levaram a compreender a supr<strong>em</strong>acia <strong>da</strong> metafísica cristã, no caso concreto e aot<strong>em</strong>po <strong>da</strong> sua conversão, sobre o neoplatonismo. Para o Hiponense, a Incarnação doVerbo é a Via que os Platónicos, tendo alcançado um conhecimento <strong>da</strong> Pátria,procuraram, s<strong>em</strong> vislumbrar. Enfraquecê-la, abolindo a função mediadora <strong>da</strong>corpo que necessita de regeneração, mas o espírito (CSEL 44, 579-580). A Ep. CXC, VI é, também,eloquente acerca dos costumes e doutrina eclesiásticas, ao citar um longo fragmento <strong>da</strong> EpistulaTractatoria do papa Zózimo, que referen<strong>da</strong>va as condenações do Concílio de Cartago (a.D. 418), sobre aheresia pelagiana: "(...) nam, ut iam uerbis utar, quae in ipsa epistula beatissimi antistitis zosimi leguntur,fidelis dominus in uerbis suis eius que baptismus re ac uerbis, id est opere, confessione et r<strong>em</strong>issione uerapeccatorum in omni sexu, aetate, condicione generis humani eand<strong>em</strong> plenitudin<strong>em</strong> tenet.(...) per ipsum[Christum] enim renascimur spiritaliter, per ipsum crucifigimur mundo, ipsius morte mortis ab a<strong>da</strong>momnibus nobis introductae atque transmissae uniuersae animae illud propagatione contractumchirographum rumpitur, in quo nullus omnino natorum, antequam per baptismum liberetur, non teneturobnoxius.” (CSEL 57, p. 159). Desacreditar esta prática, escreve <strong>Agostinho</strong>, nefas est.291


Incarnação, seria cortar cerce a essência <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>. De facto, fora <strong>da</strong> Mediaçãode Cristo, Sto. <strong>Agostinho</strong> não vê forma mais universal e omnicompreensiva decompreender a relação que se estabelece entre o Princípio de <strong>Ser</strong> e as múltiplas formasde participação Nele. Este é, com efeito, o aspecto central <strong>da</strong> polémica do Hiponensecontra os pelagianos: a insistência, por parte de <strong>Agostinho</strong>, na necessi<strong>da</strong>de do Mediador.Contudo, para além deste aspecto, mesmo afirmando a bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação e de to<strong>da</strong> aacção do Criador, <strong>em</strong> si mesma e no que se refere à relação com o Universo, o filósofonão pode anular o conceito de pecado original, não apenas s<strong>em</strong> truncar as Escrituras,como faz<strong>em</strong>, de um modo ou de outro, as posições com as quais se confronta, mastambém s<strong>em</strong> deixar por justificar a experiência <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> intrínseca <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>dehumana: a descoincidência entre querer e poder, vivencia<strong>da</strong> pelo ser humano comofenómeno universal que se manifesta tanto a nível pessoal como comunitário.Quanto a este conjunto de dificul<strong>da</strong>des, é possível verificar uma insistência, porparte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, no aspecto sombrio do pecado que a humani<strong>da</strong>de carrega. Naobra do Hiponense começam a surgir expressões, de inspiração bíblica, que designam oagravo que o corpo confere à alma, sendo este considerado um peso para ela, poisaparent<strong>em</strong>ente é na interacção do corpo sobre o espírito que se manifesta a lei <strong>da</strong>desord<strong>em</strong> 463 . Posteriormente, sublinhando o carácter universal deste facto, <strong>em</strong> ambientede controvérsia com o pelagianismo, o Hiponense <strong>em</strong>prega a expressão massa463 É no Livro <strong>da</strong> Sabedoria 9:15 que Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra a expressão "corpus quod corrumpitur,aggrauat animam, et deprimit terrena inhabitatio sensum multa cogitant<strong>em</strong>". Ela é cita<strong>da</strong> já <strong>em</strong> Conf. VII,XVII, 23 (CCL 27, p.107) para indicar que a corporei<strong>da</strong>de humana é um obstáculo ao conhecimento <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des espirituais e à ascese do ser humano para o Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, cume <strong>da</strong> Sabedoria. A alusão a esteagravo do corpo sobre a alma ocorre na sequência <strong>da</strong> referência ao estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de queimpede a ascese <strong>da</strong> alma. Esta depressão que o corpo causa na alma não significa necessariamente umavaloração negativa <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de, enquanto tal, n<strong>em</strong> a atribuição de uma qualquer condição maléfica àsreali<strong>da</strong>des corpóreas, cuja bon<strong>da</strong>de Sto. <strong>Agostinho</strong> ratifica neste mesmo passo de Confessionum. A ideiade uma discórdia estabeleci<strong>da</strong> entre corpo e alma, de uma desarmonia entre estes dois componentes docomposto humano, causa<strong>da</strong> pela contracção de uma defectibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, integra-seprogressivamente na antropologia augustiniana. Assim, se de início a citação de Sap. 9:15 é introduzi<strong>da</strong>timi<strong>da</strong>mente na obra do Hiponense, verificando-se apenas <strong>em</strong> VR XXI ( CCL 32, p. 212-213) e <strong>em</strong> Degen. cont. Manich. II, XX, 30 ( PL 34, 211; CSEL 91, p. 152), ela <strong>em</strong>erge <strong>em</strong> obras posteriores comorecurso habitual, v. gr. <strong>em</strong> Enarr. in Ps. e no <strong>Ser</strong>monário, quer <strong>em</strong> contexto pastoral, quer na literatura decontrovérsia, nomea<strong>da</strong>mente com Juliano de Eclana.292


<strong>da</strong>mnata 464 , para identificar a condição <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de no estado pós-lapsário. De facto,esta ideia de uma mole humana condena<strong>da</strong> à infelici<strong>da</strong>de, carrega<strong>da</strong> de negativi<strong>da</strong>de,parece contradizer o canto de louvor e o apelo à regra lau<strong>da</strong>tória que caracterizam tantosescritos do filósofo. Acresce a este facto a necessi<strong>da</strong>de de insistência na funçãosoteriológica <strong>da</strong> graça, que leva Sto. <strong>Agostinho</strong> a identificar, <strong>em</strong> uníssono com atradição eclesiástica que recebera, os meios e os fins, os ritos de purificação e anecessi<strong>da</strong>de de regeneração.To<strong>da</strong>via, o Hiponense não deixa de se confrontar com os estranhos desígnios <strong>da</strong>providência, a qual se manifesta também neste aspecto particular. Do mesmo modo quea discórdia entre corpo e alma é um facto, também o é a experiência de que,independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> vontade própria, n<strong>em</strong> todos os seres humanos têm acesso aosritos de purificação. No caso do perecimento pr<strong>em</strong>aturo dos neonatos, tal facto significaa privação <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de realizar o fim <strong>da</strong> natureza humana, a saber, a posse deuma felici<strong>da</strong>de eterna. Ora, a apologia desta necessi<strong>da</strong>de de fim aplica<strong>da</strong> ao rito depurificação baptismal, postula<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>, colide com o reconhecimento, tantasvezes reiterado na obra do Hiponense, <strong>da</strong> dimensão universal <strong>da</strong> missão regeneradora doVerbo Incarnado.Irreversivelmente, não é possível admitir a existência de uma alma humana que,na ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> natureza, não padeça as consequências do estado de aversão a Deus, que aune ao género. Porém, e considerando os supostos <strong>da</strong> metafísica augustiniana, não éfácil compreender por que razão v<strong>em</strong> à existência um ser humano que não pode exercero seu livre arbítrio, abortando a possibili<strong>da</strong>de de adensar a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua vontade ede conquistar a sua forma específica mediante um processo de conversão ao Criador.Sto. <strong>Agostinho</strong> dirá que, do ponto de vista ontológico, t<strong>em</strong> mais valor uma alma priva<strong>da</strong><strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de eterna do que um corpo inanimado, <strong>da</strong>do que, na ordenação dos seres, aprimeira é melhor do que o segundo. To<strong>da</strong>via, é legítimo in<strong>da</strong>gar até que ponto não ficacomprometi<strong>da</strong> a bon<strong>da</strong>de do Criador, quando a inteligência humana se confronta com acriação de um ser ao qual não são <strong>da</strong><strong>da</strong>s, igualmente, as condições de cumprimento <strong>da</strong>sua finali<strong>da</strong>de específica, uma vez que o Hiponense condiciona a conquista <strong>da</strong>464 A expressão encontra-se, principalmente, nas Ep. CXC, CXCIV, <strong>em</strong> De ciu. dei, nos escritos sobre agraça ( máxime De natura et gratia e De gratia Christi et de peccato originali ) e, sobretudo, nas obras deconfronto com Juliano de Eclana ( Contra Iulianum e Contra Iulianum opus imperfectum).293


felici<strong>da</strong>de à interacção entre o livre arbítrio <strong>da</strong> vontade e o acesso a um auxílio sanante,sendo o acesso a este necessariamente condicionado pela recepção do rito baptismal 465 .Tal proposta entra <strong>em</strong> contradição com outros aspectos, mais radicais, <strong>da</strong>metafísica augustiniana, como sejam a noção de forma humana e a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>categoria <strong>da</strong> relação, quer para o indivíduo, quer para o conjunto <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Porseu turno, é compreensível que se encontr<strong>em</strong>, na extensão e diversi<strong>da</strong>de de matizesmanifestos na obra augustiniana, aspectos aparent<strong>em</strong>ente contraditórios, como pareceser o caso. Com efeito, não se entende que o projecto criador de um Princípio Soberanode bon<strong>da</strong>de, Omnipotente e Omnipresente, sujeite a sua activi<strong>da</strong>de, para a regeneraçãodo género, a um rito de purificação. E é também compreensível que uma leitura parcial,trunca<strong>da</strong>, distorci<strong>da</strong>, inclusivamente manipula<strong>da</strong> ou condiciona<strong>da</strong> por circunstânciashistóricas determina<strong>da</strong>s, possa ter assimilado, do pensamento do Hiponense, estesaspectos mais sombrios, s<strong>em</strong> procurar integrar, tanto quanto possível de formaharmónica, estas aparentes contradições. To<strong>da</strong>via, não por esse facto a metafísicaaugustiniana deverá carregar este ónus <strong>da</strong> história.Restam por analisar a terceira e quarta hipóteses enuncia<strong>da</strong>s pelo filósofo parajustificar a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, as quais, <strong>em</strong> si mesmas, não traz<strong>em</strong> qualqueresclarecimento à t<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> causa. S<strong>em</strong>pre supondo a dependência ontológica <strong>da</strong>salmas <strong>em</strong> relação ao Princípio Criador, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera a possibili<strong>da</strong>de de umacerta preexistência <strong>da</strong>s almas, algures, onde esperam o momento de advir ao corpo,facto que sucede ou por imperativo de Deus, ou por própria iniciativa - sponte. Ora estasduas suposições apenas acrescentam às primeiras a ideia de preexistência. Sto.<strong>Agostinho</strong> abandonará ambas as teses, considerando que - mesmo suposta a criação por465 Na Ep. CXCIV, VII, 31-33 ( CSEL 57, p. 200-203), coloca-se exactamente esta questão, trazi<strong>da</strong> àcolação por exigência <strong>da</strong> controvérsia pelagiana. O Hiponense insiste na exigência do baptismo para aregeneração, mas faz notar que não há mérito algum que antece<strong>da</strong> a recepção dessa graça. Com efeito, opelagianismo defendia que a felici<strong>da</strong>de eterna era conquista<strong>da</strong> por mérito próprio. Não se poderia falar,portanto, <strong>em</strong> sentido próprio, de gratui<strong>da</strong>de, de um Dom, mas apenas do exercício de uma justiçadistributiva, por parte <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar, por um lado, que a recepção do baptismo <strong>da</strong>scrianças é absolutamente gratuita, pois não há mérito que a antece<strong>da</strong> e, por outro lado, sublinha que estagraça não é universal, n<strong>em</strong> a sua distribuição se rege por qualquer critério de lógica humana. Igualmente,ela não pode ser fruto de um acaso ou <strong>da</strong> sorte. Esta distribuição <strong>da</strong> graça corresponde a uma dimensão <strong>da</strong>providência divina que consiste, precisamente, na gratui<strong>da</strong>de, sendo este o modo de agir <strong>da</strong>quele princípiouniversal de ord<strong>em</strong>.294


parte de Deus, assegura<strong>da</strong> a dependência ontológica e a unici<strong>da</strong>de do Princípio -, <strong>em</strong>na<strong>da</strong> tais propostas esclarec<strong>em</strong> a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, mais a confundindo 466 .Com efeito, a ideia de uma preexistência <strong>da</strong>s almas era familiar a <strong>Agostinho</strong>, namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a perfilhavam platónicos e maniqueus, associando-a ao postulado <strong>da</strong>reincarnação e <strong>da</strong> transmigração <strong>da</strong>s almas. A este propósito, o debate do Hiponensecom o platonismo pode ler-se, fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>em</strong> De ciuitate dei, onde a questão <strong>da</strong>orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas se articula, sobretudo, com a possibili<strong>da</strong>de de alcançar a felici<strong>da</strong>de.Considerando o corpo como cárcere <strong>da</strong> alma e a libertação pela morte como via para afelici<strong>da</strong>de, que sentido faz que a alma humana, finalmente sábia e na posse do b<strong>em</strong>desejado, regresse ao cárcere e volte a suportar as misérias de uma vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> união com ocorpo? Platão justificaria este desejo de reincarnação <strong>da</strong> alma sábia pelo olvido dospadecimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> união com o corpo, facto que legitimaria o processo inverso, asaber, o <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> sabedoria por via de r<strong>em</strong>iniscência. <strong>Agostinho</strong> rejeita esta tese,<strong>em</strong> última análise - e para além <strong>da</strong>s reitera<strong>da</strong>s críticas teci<strong>da</strong>s à doutrina platónica <strong>da</strong>r<strong>em</strong>iniscência -, porque ela introduz uma permanente irrequietude na alma, a qualdenota que a relação dela com o Princípio de Bon<strong>da</strong>de não atinge o plano ontológico,revelando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, que as quali<strong>da</strong>des adquiri<strong>da</strong>s pela alma não permanec<strong>em</strong>nela, n<strong>em</strong> aperfeiçoam, efectivamente, a sua forma específica 467 . Ora a ord<strong>em</strong> é defini<strong>da</strong>pelo Hiponense essencialmente como paz, tranquili<strong>da</strong>de e repouso no <strong>Ser</strong>,características contraria<strong>da</strong>s por to<strong>da</strong> a mundividência que postule, para a alma humana,movimentos de met<strong>em</strong>psicose, metamorfose, ou reincarnação.À luz destas categorias platónicas, o assunto humano por excelência, a conquistado finis optimus ou <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, o descanso no B<strong>em</strong>, não fica, no entender de<strong>Agostinho</strong>, sofrivelmente resolvido, criando dificul<strong>da</strong>des para o esclarecimento dofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Em De ciuitate dei, o filósofo critica esta ideia do corpo como466 Cf., v. gr, a Ep. CLXVI, V ( CSEL 44, p. 561-565): por que razão vêm a este corpo, e não a outro? Emque espécie de armazém de Deus estarão arruma<strong>da</strong>s? Se não são corpo, como pensar num lugar <strong>da</strong> suapreexistência? Como compatibilizar a tese criacionista, defendi<strong>da</strong> por Jerónimo, e a transmissão de umavontade, defectível na orig<strong>em</strong>, a todos os seres humanos?467 Sto. <strong>Agostinho</strong> aprova, neste aspecto, a agudeza de Porfírio que, ao aperceber-se <strong>da</strong> falta derazoabili<strong>da</strong>de do sist<strong>em</strong>a platónico neste domínio, defendeu que a alma do sábio escapa definitivamenteao ciclo <strong>da</strong>s reincarnações ( cf. De ciu. dei X, XXIX : CCL 47, p. 304-307; XIII, 19: CCL 48, p. 401-402).295


cárcere <strong>da</strong> alma 468 , por lhe parecer incongruente com outros princípios do platonismo, asaber, a necessi<strong>da</strong>de do ciclo de incarnações 469 , que integra o do próprio movimento d<strong>em</strong>ortali<strong>da</strong>de/ imortali<strong>da</strong>de nos seres vivos, para realizar a perfeição e a bon<strong>da</strong>de doUniverso 470 . Esta tese não condiz, igualmente, com a bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção fabricadora dod<strong>em</strong>iurgo, quando, na óptica de Platão, essa enti<strong>da</strong>de mediadora produz o corpo doshomens 471 . Afinal, a tese platónica acerca <strong>da</strong>s almas r<strong>em</strong>ete para uma concepção de umaharmonia cósmica preestabeleci<strong>da</strong>, sujeita à perfeição do eterno retorno, s<strong>em</strong>pre idênticae incapaz de se abrir à novi<strong>da</strong>de, postulados que Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita claramente, nãoobstante a simpatia que mostrou por esta identi<strong>da</strong>de entre a noção de ord<strong>em</strong> e umaharmonia cósmica quando, máxime nas suas obras de juventude, justificava a integração<strong>da</strong> desord<strong>em</strong> no cosmos pela necessi<strong>da</strong>de de conquista de uma consonância através <strong>da</strong>coexistência de reali<strong>da</strong>des destoantes.Com efeito, a justificação do processo de incarnação <strong>da</strong>s almas através do carácterpunitivo para as acções torpes realiza<strong>da</strong>s por elas numa vi<strong>da</strong> preexistente é comum àsconcepções <strong>da</strong> alma provenientes de universos filiados no platonismo. O mundo doscorpos é visto, desde esta perspectiva, como lugar de condenação, e a reali<strong>da</strong>de humana– essa estranha estrutura onde se misturam matéria e espírito – assume carácter penal eexpiatório. <strong>Agostinho</strong> rejeitará s<strong>em</strong>pre esta tese, pois ela abre brechas na compreensãoquer <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal, quer <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação, r<strong>em</strong>etendo os seres mutáveis e acausa do mal para um horizonte de existência eterna e, até, de eventual coexistênciacom Deus, facilitando a reincidência <strong>em</strong> formas dualistas de equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Em estreita conexão com a teoria <strong>da</strong> reincarnação <strong>da</strong>s almas está a tese <strong>da</strong>met<strong>em</strong>psicose, que o Hiponense igualmente rejeita. Ao carácter punitivo <strong>da</strong> incarnação<strong>da</strong>s almas, tese cara sobretudo às teosofias orientais, a met<strong>em</strong>psicose acrescenta a ideiade uma expiação gradual dos pecados <strong>da</strong> alma, a qual justificaria um ciclo deincarnações <strong>em</strong> corpos de seres que ocupam um lugar de maior ou menor perfeição nahierarquia ontológica, correspondente ao estádio de purificação atingido pela alma <strong>em</strong>ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s.468 Cf. v. gr., PLATÃO, Fedon 62b [Platonis Opera I, Tetralogia I ( Oxonii, 1958, 5ª reimp.), I.].469 Ibid., 82e.470 Cf. PLATÃO, Timaeus 30d; 92b/c [Platonis Opera IV, Tetralogia VIII (Oxonii, 1949, 7ª reimp.), III.].De ciu. dei XII, XX ( CCL 48, p. 376)471 Cf. PLATÃO, Timaeus 41a- e; 69c; De ciu. dei XII, XXV-XXVII ( CCL 48, p. 381-384).296


A este propósito, note-se que, nas diferentes concepções do mundo defensoras <strong>da</strong>met<strong>em</strong>psicose, a própria ideia de hierarquia ontológica é articula<strong>da</strong> de forma divergente.Tome-se como ex<strong>em</strong>plo a discrepância entre a proposta de maniqueus e platónicos. Paraos primeiros, a vi<strong>da</strong> humana é a expressão de ser mais contamina<strong>da</strong> e na qual o malmais se manifesta. De facto, na confusão <strong>da</strong>s fábulas e mitos <strong>em</strong> que expõ<strong>em</strong> as suasconvicções, o maior grau de perfeição é atribuído à vi<strong>da</strong> vegetal. Os platónicos, por suavez, defend<strong>em</strong> uma graduação dos seres de acordo com o modelo esse-uiuereintellegere,e o destino de uma alma <strong>em</strong> transmigração ocuparia formas de serintegra<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um destes graus, <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>de com o seu estado de purificação.Evidencia-se, neste processo, a posição de Porfírio, por defender a impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>transmigração <strong>da</strong> alma humana <strong>em</strong> direcção a seres pertencentes a outro nívelontológico, assunto que chega a conquistar, para o Biógrafo de Plotino, o louvor de Sto.<strong>Agostinho</strong> 472 .O Hiponense rejeita estas teorias, considerando-as mais ou menos fabulosas eimpregna<strong>da</strong>s de contradições. Efectivamente, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que tais modos de concebera orig<strong>em</strong> e a natureza <strong>da</strong> alma e, afinal, a relação que ela estabelece com o Princípio,obscurec<strong>em</strong> quer o carácter substancial do ser humano, quer o lugar que ele ocupa nahierarquia ontológica, quer, ain<strong>da</strong>, o sentido <strong>da</strong> existência de um tal modo de ser,precisamente ao deixar por esclarecer a relação que tal princípio vital estabelece com oPrincípio de <strong>Ser</strong> e de Agir, eles <strong>em</strong> na<strong>da</strong> contribu<strong>em</strong> para esclarecer, na essência, ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> consciência de que um modo de conceber a natureza <strong>da</strong> almafun<strong>da</strong>do <strong>em</strong> processos de reincarnação e transmigração manifesta, afinal, a debili<strong>da</strong>dedo Princípio, incapaz de ter mão nas almas e, a admitir que as tenha criado, revelando-seinepto para lhes conferir um estado de felici<strong>da</strong>de perpétua e estável. Ora, esta debili<strong>da</strong>dedo Princípio de B<strong>em</strong> torna-o, por um lado, vulnerável à acção de qualquer outraenti<strong>da</strong>de, porventura maligna: é a tese defendi<strong>da</strong> por maniqueístas que, partindo de uma472 Cf. De ciu. dei X, XXX ( CCL 47, p. 307-308). Em De gen. ad litt. VII, 10 – 11 (CSEL 28/1, p. 208-211), Sto. <strong>Agostinho</strong> enfrenta esta teoria, pois com ela se pretenderia explicar determinados fenómenos deforo psicológico, tais como a pretensa recor<strong>da</strong>ção de ter estado no corpo de um animal ou outras formasde sugestão fantástica, b<strong>em</strong> como a s<strong>em</strong>elhança, fisionómica ou comportamental, que, por vezes, severifica entre alguns seres humanos e espécies animais.297


concepção débil de Deus, não s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de constró<strong>em</strong> um mundo paralelo, d<strong>em</strong>alícia 473 .Pondere-se a proposta platónica para o ciclo de transmigração e reincarnação <strong>da</strong>salmas. Considerando que tal ciclo é eterno, ele manifesta a imperfeição <strong>da</strong>s almas e anecessi<strong>da</strong>de de purificação que elas têm. Neste caso, poder-se-ia considerar uma certaeterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imperfeição e do mal, inerente a este processo, mesmo que tal ciclo nãointerfira com a intangibili<strong>da</strong>de e supr<strong>em</strong>acia do B<strong>em</strong>, Princípio inacessível e jamaisenvolto nas lides <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des sensíveis e mun<strong>da</strong>nas.Resta a função atribuí<strong>da</strong> ao d<strong>em</strong>iurgo que, se fez almas boas e corpos bons, teráperdido o controlo sobre as suas obras, pois, no que respeita às almas, elas degra<strong>da</strong>m-see necessitam regeneração, sendo o corpo efeito de uma matéria eterna que se movimentanum ciclo, também eterno, de assunção de inúmeras formas. Nestas condições, od<strong>em</strong>iurgo não pode tomar a seu cargo os assuntos humanos, afirmação que é coerentecom a sua situação de deus menor.Sobra, como solução para a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, a racionali<strong>da</strong>de intrínseca aoprocesso vi<strong>da</strong>-morte-vi<strong>da</strong>, atribuí<strong>da</strong> a um ♑✂ impessoal, defendi<strong>da</strong> peloestoicismo. Porém, neste caso não é possível decidir se tal lógica é princípio domovimento, efeito dele, ou determinação necessária <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de deste processodialéctico, imanente ao cosmos e indissociável de um determinismo fatalista, ondefortuna e casus são senhores <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de humana.Independent<strong>em</strong>ente do facto de ter deixado o enigma irresolúvel e <strong>da</strong>scontradições que, no <strong>em</strong>aranhado <strong>da</strong>s controvérsias, se pod<strong>em</strong> verificar, na obra doHiponense, <strong>em</strong> algumas articulações concretas que envolv<strong>em</strong> esta t<strong>em</strong>ática, note-se queo modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> enfrenta o mistério recôndito <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almasmanifesta uma atitude salutar de busca de ver<strong>da</strong>de e de coerência interna, princípios quecaracterizam a sua produção intelectual. Neste caso particular, o filósofo parece falar473 A escatologia maniqueísta não deixa de ser curiosa, ao procura fugir ao ciclo <strong>da</strong>s reincarnações,apontado para um término do combate e para uma derradeira libertação do Logos preso na matéria. Nestacosmovisão, o Princípio seria vulnerável no início, mas não o seria no final do processo. Porém, não é<strong>da</strong><strong>da</strong> a razão deste fenómeno. Terá sido a luta, o combate, a discórdia, que o fortaleceu? Mas nesse casoteria fortalecido, também, o princípio maligno e cabe, até, a possibili<strong>da</strong>de de considerar que a ausência deluta diminua de novo o primado conquistado pelo B<strong>em</strong>. Assim, não se vê como, partindo de umaduali<strong>da</strong>de de Princípios e de um conflito no qual o Mal triunfa sobre o B<strong>em</strong>, se venha, no final, a inverteresta posição e a afirmar a superiori<strong>da</strong>de deste sobre aquele.298


mais alto do que o Pastor e, s<strong>em</strong> dissociar ambas prerrogativas, fá-lo <strong>em</strong> defesa dos quese lhe confiam, na procura <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de. Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe quais os aspectos <strong>em</strong> quenão pode transigir s<strong>em</strong> incorrer <strong>em</strong> contradição com os alicerces <strong>da</strong> sua mundividência,mas, pelas razões já aduzi<strong>da</strong>s, não toma posição sobre a incógnita.Efectivamente, no que respeita ao enigma <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, o filósofo limitasea inventariar aquilo que sabe, s<strong>em</strong> se pronunciar sobre aquilo que ignora. Sabe, pois,que a alma não está no corpo por actos dignos de punição realizados antes de, paraformar um ser humano, se unir com a respectiva substância material. Sabe que acondição histórica do ser humano está afecta<strong>da</strong> por uma tendência à degra<strong>da</strong>ção e que,na série t<strong>em</strong>poral <strong>da</strong> geração humana, nenhum ser está imune a essa dialéctica reinanteentre corpo e alma, a qual, por vezes, assume características agonísticas e dedissonância. Por isso, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste <strong>em</strong> dois el<strong>em</strong>entos, que consideraessenciais: por um lado, a necessi<strong>da</strong>de, por parte de todo o ser humano, <strong>da</strong> libertaçãoque lhe advém pelo Mediador entre Deus e os homens, como via para reconquistar o seulugar na ord<strong>em</strong>; por outro lado, o carácter instrumental, com necessi<strong>da</strong>de de fim,específico do ritual baptismal, para aceder àquela libertação ou regeneração.Sto. <strong>Agostinho</strong> admite, também, que, deste conjunto de ver<strong>da</strong>des, umas asreconhece por ciência, outras por fé, s<strong>em</strong> que estas últimas, e por esse facto, deix<strong>em</strong> deser conhecimento. Sabe, ain<strong>da</strong>, que as almas são cria<strong>da</strong>s por Deus. Mas não sabe se, nosseres humanos, o Princípio Criador as traz à existência por propagação ou s<strong>em</strong> ela.Sobre este aspecto enigmático, antes que afirmar t<strong>em</strong>erariamente algo que não conhece,o filósofo prefere permanecer na dúvi<strong>da</strong>, na qual, efectivamente, persistirá até à morte,s<strong>em</strong> que esse facto afecte a coerência interna <strong>da</strong> proposta que <strong>Agostinho</strong> gradualmenteconstrói para equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.4. Cogitare te scis?A reflexão de Sto. <strong>Agostinho</strong> sobre a natureza e a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas permitiu aofilósofo identificar a presença, no ser humano, de um princípio imaterial, e apresentar,conjuntamente, alguns pressupostos a propósito <strong>da</strong> natureza do composto humano. Doponto de vista <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, entendi<strong>da</strong> como hierarquia ou disposição gradual <strong>da</strong>sformas dos seres, mediante a referi<strong>da</strong> análise o Hiponense reafirmou a inferiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>299


natureza do corpo sobre a <strong>da</strong> alma e anotou a consequente estranheza quanto ao facto <strong>da</strong>união de ambos, no ser humano.Porém, não obstante as prerrogativas conquista<strong>da</strong>s pelo filósofo sobre a natureza<strong>da</strong> alma, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita explicar, ain<strong>da</strong>, o modo como o ser humano acede,por meio dela, ao conhecimento de si mesmo e ao de Deus. A máxima proferi<strong>da</strong> <strong>em</strong>Soliloquiorum - nouerim me, nouerim Te - define, de modo inconcusso, o âmbito deconstituição <strong>da</strong> metafísica augustiniana. O modo como este projecto esclarece ofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> exige, contudo, um exame não parco de mediações e, se parecerialógico adentrar a análise, de modo directo, pelos textos onde o Hiponense investiga amente e as funções dela, caso <strong>em</strong> que De trinitate se tornaria obra de referênciaprincipal, correr-se-ia, to<strong>da</strong>via, o risco de ignorar um conjunto de el<strong>em</strong>entos obtidospelo filósofo <strong>em</strong> obras anteriores, os quais são indispensáveis para compreender o modocomo resolve a relação entre a Bon<strong>da</strong>de do Princípio e a existência do mal ou desord<strong>em</strong>.Por sua vez, o próprio conceito augustiniano de mens não é de fácil determinação,no conjunto <strong>da</strong> obra do Hiponense, gozando <strong>da</strong> poliss<strong>em</strong>ia que caracteriza a escrita dofilósofo. Assim, uma análise dos conteúdos <strong>da</strong> mens tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a definenuma obra de maturi<strong>da</strong>de como De trinitate, permitirá compreender não apenas ofuncionamento <strong>da</strong> mente, mas a relação estreita que o Hiponense estabelece entre adinâmica <strong>da</strong>s funções dela e a natureza <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de, ao passo que obras anterioresàquela esclarec<strong>em</strong> a natureza racional do ser humano e os seus actos próprios com basenuma análise específica <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de pensante. Deste modo, s<strong>em</strong> olvi<strong>da</strong>r o escopotraçado por <strong>Agostinho</strong> - nouerim Te, nouerim me -, importa considerar os escritos ondeo Hiponense insiste sobre o movimento de auto gnose, esclarecendo o lugar que o serhumano ocupa na hierarquia ontológica por natureza, isto é, abstraindo, por momentos,<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de dos actos por ele praticados e <strong>da</strong> elevação ou degra<strong>da</strong>ção que, atravésdeles, pode conquistar.Ora, o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> - para além de se arvorar <strong>em</strong> questão central, nãoapenas <strong>da</strong> proposta augustiniana, mas de to<strong>da</strong> a metafísica, <strong>da</strong>do que, no seio <strong>da</strong>articulação racional que se elabora para ele, lateja a interpelação acerca <strong>da</strong> relação entreo Uno e o Múltiplo - foi questionado por Sto. <strong>Agostinho</strong> de modo particularmentepessoal e próximo, num processo que vinculou o pensar e as atitudes vivenciais. Porisso, como o próprio Hiponenese confirma, a sua biografia, integrando um peculiarmovimento de conversão metafísica, é indissociável <strong>da</strong> descoberta dos el<strong>em</strong>entos queconstitu<strong>em</strong> o ponto cardeal <strong>da</strong> resolução do filosof<strong>em</strong>a.300


Para encontrar uma justificação para o enigma <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong>investigará a natureza <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> e a relação que o ser humano estabelece com oPrincípio a partir <strong>da</strong> resolução de três interrogações fun<strong>da</strong>mentais: se Deus existe, se Eleé autor de todos os bens e se o livre arbítrio – dimensão <strong>da</strong> vontade mediante a qual oser humano pode acrescentar ou diminuir densi<strong>da</strong>de ontológica à própria forma - é umb<strong>em</strong>. A resposta à primeira proposição é, porventura, a de maior consenso entre osfilósofos seus coetâneos, mas a réplica às duas seguintes separa decisivamente ametafísica augustiniana <strong>da</strong>s mundividências com as quais o Hiponense maisproximamente dialogou. Deste modo, e na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que cr<strong>em</strong>os ser possível - numprimeiro momento e seguindo a lógica interna <strong>da</strong> investigação augustiniana - aceder auma compreensão <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> razão ou <strong>da</strong> natureza do acto de pensar s<strong>em</strong> recorrer aosprincípios adoptados por Sto. <strong>Agostinho</strong> concretamente acerca <strong>da</strong> noção bíblica deimago dei, fará sentido prosseguir tal análise com base nas obras onde o Hiponenseanalisa a natureza <strong>da</strong> razão humana no processo de conhecimento de Deus. Manifestarse-á,assim, a proximi<strong>da</strong>de dos argumentos do Filósofo de Hipona, no caso concreto <strong>em</strong>relação às categorias neoplatónicas, ao mesmo t<strong>em</strong>po que se esclarece, sobretudo, omodo como <strong>Agostinho</strong> entende o lugar do ser humano no Universo, eluci<strong>da</strong>ndo o seuhabitat natural e a especifici<strong>da</strong>de do seu ethos.Efectivamente, a definição do lugar próprio do ser humano na hierarquiaontológica, não obstante não constituir o sentido mais pleno que, para a noção deord<strong>em</strong>, se pode vislumbrar na obra de <strong>Agostinho</strong> já desde os primeiros escritos, to<strong>da</strong>viavirá a integra-se nessa plenitude de sentido que, a seu t<strong>em</strong>po, se evidenciará.Inversamente, s<strong>em</strong> um esclarecimento deste aspecto <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, enquanto disposição deseres iguais e desiguais, ca<strong>da</strong> um ocupando o seu lugar, como se lê <strong>em</strong> De ciuitate dei,não será possível compreender alguns paradoxos inerentes ao modo como o filósofoarticula a noção <strong>em</strong> causa, escapando o sentido pleno do conceito de Pax, para o qualconverge, <strong>em</strong> última instância, a proposta augustiniana para a noção <strong>em</strong> análise.Como ficou dito, para compreender o lugar que o ser humano ocupa na hierarquiaontológica, Sto. <strong>Agostinho</strong> propusera-se seguir o método neoplatónico do regressusanimae que, na prática, se virá a concretizar por uma análise <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitiva, aqual mais não é do que uma afinação <strong>da</strong> metodologia neoplatónica de ascese para o Unoper corporalia ad incorporalia. Com efeito, <strong>da</strong>do que <strong>Agostinho</strong> concebe o ser humanocomo uma união íntima entre o corpo e a alma, ao analisar a natureza do acto de pensarnão poderá abdicar, por um lado, <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do corpo, sendo forçado, por outro lado,301


a reflectir sobre o el<strong>em</strong>ento que delineia a diferença entre a alma humana e a dos d<strong>em</strong>aisseres vivos, a fim de descortinar o motivo pelo qual a forma do ser humano se sobrepõeàqueles na hierarquia ontológica.Este aspecto é relativamente linear, para <strong>Agostinho</strong>, que adopta a definiçãoclássica de ser humano: homo animal rationale mortale est 474 . A divergência entre aposição do Hiponense e a tradição filosófica que o antecede incidirá, neste aspectopeculiar, sobretudo no modo de conceber quer a causa <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, quer a natureza<strong>da</strong> razão.Quando Sto. <strong>Agostinho</strong> se propõe construir a sua mundividência com base nareflexão <strong>da</strong> razão sobre si mesma, encontra, antes de mais, como objecto de análise, opróprio acto <strong>da</strong> razão e define-o pelo verbo latino cogitare. Este acto que, para ofilósofo, se impõe com evidência apodíctica a todo aquele que pensa, permite-lheidentificar uma reali<strong>da</strong>de cuja ver<strong>da</strong>de fica ao abrigo de to<strong>da</strong> a dúvi<strong>da</strong>, seja qual for aforma que ela queira assumir, apresentando-se sob fácies céptico, metodológico oupsicológico. Em Soliloquiorum pode ler-se o modelo de raciocínio que irá pautar oprocesso augustiniano de auto gnose. O princípio que move o acto de investigação é odesejo de conhecimento de si – scire cupio - <strong>da</strong>do que, nele, fica implícita a primeiraver<strong>da</strong>de que surge à razão com evidência apodíctica - sei que existo -, a qual éindissociável <strong>da</strong>s condições sob as quais a existência humana é percepciona<strong>da</strong>: a vi<strong>da</strong>,dota<strong>da</strong> de razão 475 .Como é <strong>da</strong>do ver, a expressão ‘cogito augustiniano’ para designar uma t<strong>em</strong>áticaespecífica trata<strong>da</strong> pelo Hiponenese, a saber, a análise <strong>da</strong> mente humana, padece de474 Cf., v. gr., DO II, XI, 31 ( CCL 29, p. 124); De quant. anim. XXV, 47-49 (CSEL 89, p. 190-194) ; D<strong>em</strong>ag. VIII ( CCL 29, p. 180-184); De ciu. dei XVI, VIII ( CCL 48, p. 508); DT VII, IV, 7 ( CCL 50, p.255); XV, VII, 11 ( CCL 50A, p. 474).475 Solil. II, I, 1: " R. Tu qui uis te nosse, scis esse te? A. Scio. " (CSEL 89, p. 45: it. n. ). Esta antecipaçãodo desejo sobre a investigação direcciona<strong>da</strong> ao saber é reitera<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> ao longo <strong>da</strong> sua obra.A conexão destes três domínios de activi<strong>da</strong>de, esse-uelle-scire, antecipa, por seu turno, um concepção deser humano que se distancia <strong>da</strong> dos Platonicorum, basea<strong>da</strong> no modelo de hierarquia pautado pela escalaesse-vivere-intellegere. É um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> parte desta última para obter, previamente, aver<strong>da</strong>de inconcussa que se contém no acto de pensar e sobre a qual irá construir o seu itineráriomostrativo <strong>da</strong> existência de Deus. Note-se, contudo, que a primeira trilogia indica<strong>da</strong> é já aespecificamente augustiniana, aquela que o filósofo revela ter <strong>em</strong> mente e pretender esclarecer quandoinvestiga sobre o lugar que o ser humano ocupa na ordenação dos seres e sobre a natureza do acto depensar.302


anacronismo, <strong>da</strong>do que é a partir de Descartes que a expressão - cogito – se consagra nahistória <strong>da</strong> Filosofia. Não obstante Sto. <strong>Agostinho</strong> ser claro a respeito quer do queconsidera ser a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de filosófica – conhecer Deus e a alma –, quer doitinerário que privilegia na conquista dessa tarefa, não se pode designar a filosofiaaugustiniana como uma filosofia do cogito ou, sequer, como uma filosofia <strong>da</strong> mentes<strong>em</strong> incorrer <strong>em</strong> anacronismo. É por isso que o cerne desta investigação incide nãosobre o lugar que ocupa, na obra do Hiponense, a ideia de cogito, mas sobre a noção deord<strong>em</strong>, pois é esta que o filósofo pondera como característica essencial de to<strong>da</strong> aexpressão de ser e, de modo particular, do ser humano na sua relação com o divino. Porseu turno, seguindo atentamente o esclarecimento augustiniano prestado ao filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, a convergência entre a noção de ord<strong>em</strong> e a racionali<strong>da</strong>de, de que o cogitohumano é uma expressão, tornar-se-á ca<strong>da</strong> vez mais evidente, na obra do Hiponense.Por conseguinte, há, certamente, um entendimento, por parte do Hiponense, doque seja o cogito, e há, também, uma centrali<strong>da</strong>de inegável conferi<strong>da</strong> pelo filósofo àanálise <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente humana no processo de conhecimento de Deus e, também,no conhecimento <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> alma humana. Porém, <strong>da</strong>do o entendimento, por partede Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>da</strong> mútua implicação dos termos <strong>da</strong> relação que se estabelece entreDeus e a alma, pode concluir-se que a in<strong>da</strong>gação augustiniana acerca do cogito não visao conhecimento de nenhum dos pólos <strong>da</strong>quela relação, mas aponta para a compreensãode um terceiro el<strong>em</strong>ento, efectivamente outro, que consiste na natureza <strong>da</strong> própriarelação estabeleci<strong>da</strong> entre tais termos. Ora, é precisamente o esclarecimento desteterceiro el<strong>em</strong>ento que permite descortinar o sentido mais amplo atribuído peloHiponense à noção de ord<strong>em</strong>, b<strong>em</strong> como compreender a dimensão fulcral que talconceito ocupa na mundividência augustiniana.Ao abor<strong>da</strong>r a dinâmica do cogito, um primeiro aspecto que se evidencia na obra de<strong>Agostinho</strong> é o facto de se verificar uma certa progressão no modo como o filósofoentende esse acto humano. Seguindo esse movimento, é possível verificar como talconceito adquire uma ca<strong>da</strong> vez maior extensão e profundi<strong>da</strong>de.Tal como propunha Varrão, e numa explicitação de carácter retórico, Sto.<strong>Agostinho</strong> vale-se <strong>da</strong> análise etimológica e faz derivar o termo cogito de cogo, comoagito de ago e facio de factito 476 . O sentido etimológico de cogito expande-se, deste476 M. T. VARRO, De Lingua Latina VI, 41-43. 78: “ Actio ab agitatu facta (…). Cogitare a cogendodictum: mens plura in unum cogito, unde eligere possit. (…) Proprie nomine dicitur facere a facei, qui rei303


modo, naquele que corresponde ao verbo cogitare e significa uma activi<strong>da</strong>de complexado espírito humano, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que nela conflu<strong>em</strong> e se <strong>em</strong>penham to<strong>da</strong>s as funções<strong>da</strong> mente.Por sua vez, o verbo cogitare designa, na obra do Hiponense, o acto de pensar, oqual é indissociável <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de judicativa e não se realiza, por conseguinte, s<strong>em</strong> aintervenção <strong>da</strong> razão humana. Nesta medi<strong>da</strong>, o termo cogito pode entender-se como asede de uma tal activi<strong>da</strong>de, estendendo-se esta a um imenso domínio de reali<strong>da</strong>des. Comefeito, to<strong>da</strong> a forma existente, todo o ser no qual se reúnam as três proprie<strong>da</strong>destranscendentais – na trilogia ordo, mensura, numerus, ou nas d<strong>em</strong>ais combinaçõespropostas pelo Hiponense – é passível de se tornar objecto de cognição, <strong>da</strong>do que <strong>em</strong> talforma de ser se reflecte, efectivamente, a presença de uma inteligência criadora. Nestamedi<strong>da</strong>, é possível considerar uma progressão ou gra<strong>da</strong>ção na quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cogniçõeshumanas, <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> ao fim que Sto. <strong>Agostinho</strong> estabeleceu para a in<strong>da</strong>gação filosófica:conhecer Deus e a alma. Neste processo, a alma pode conhecer as reali<strong>da</strong>des corpóreaspercebi<strong>da</strong>s pelos sentidos, ou as reali<strong>da</strong>des conti<strong>da</strong>s na m<strong>em</strong>ória, ou aquelas forja<strong>da</strong>spela imaginação ou, ain<strong>da</strong>, as reali<strong>da</strong>des que se percepcionam por meio de uma ueraratio. Todos este níveis de cognição pod<strong>em</strong> <strong>da</strong>r-se, na perspectiva do Hiponense, apropósito de qualquer objecto tomado <strong>em</strong> consideração pela mente e, portanto, tambéma propósito de Deus ou <strong>da</strong> própria alma. Contudo, só mediante a uera ratio se dá,efectivamente, o recto conhecimento de qualquer expressão de reali<strong>da</strong>de e, porconseguinte, também dos el<strong>em</strong>entos que envolv<strong>em</strong> aquela relação enuncia<strong>da</strong>.Este aspecto, que articula o acto cognitivo e a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> rectidão – afinal, arazão, a ver<strong>da</strong>de e a justiça –, evidencia-se, de modo particular, no Livro terceiro de Delibero arbitrio. Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste, nesse texto, no facto de o juízo humano acerca <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> e <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as formas de existência só ser ajustado quandocoincide com o exercício <strong>da</strong> uera ratio 477 . Com efeito, o juízo humano só pode avaliar ajusteza de ca<strong>da</strong> forma quando ele próprio respeitar e reflectir a razão de ord<strong>em</strong> do real.Assim sendo, e uma vez mostra<strong>da</strong> a superiori<strong>da</strong>de de Deus sobre a razão humana,na<strong>da</strong> há que esta possa considerar deficiente ou disforme no conjunto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>desquam facit imponit faci<strong>em</strong>” (ed. Roland G. KENT, London 1958, 2ª reimp., Vol. II, p.210-212. 244).Augustinus Hipponensis, Conf. X, XI, 18: “ (...) Nam cogo et cogito sic est, ut ago et agito, facio etfactito. Verum tamen sibi animus hoc uerbum proprie uindicauit, ut non quod alibi, sed quod in animocoligit, id est cogitur, cogitare porprie iam dicatur.” ( CCL 27, p. 164).477 V. , sobretudo, LA III, V, 12-17 ( CCL 29, p. 282-285).304


cria<strong>da</strong>s, quando formula um pensamento ou cognição de acordo com a uera ratio.Igualmente, esta não considerará que alguma reali<strong>da</strong>de está presente no universo <strong>em</strong>d<strong>em</strong>asia, ou que nele falta alguma perfeição, ou que deveria estar, no lugar de uma<strong>da</strong><strong>da</strong> forma, uma outra. Depois de ter mostrado a superiori<strong>da</strong>de do ser divino face ato<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais formas de ser, o raciocínio de <strong>Agostinho</strong> a respeito <strong>da</strong> rectidão do juízohumano decorre <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>de. Na ver<strong>da</strong>de, não há na<strong>da</strong> que ocorra à razão humanaque discorre <strong>em</strong> acordo com a uera ratio como fazendo parte <strong>da</strong> justiça e <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> quenão tenha efectivamente ocorrido à razão divina, que é <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e Justiça por essência 478 .Sendo assim, o filósofo interroga-se sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> crítica teci<strong>da</strong> por tantasmentes à falta de organização, ou mesmo à desord<strong>em</strong>, que crê<strong>em</strong> comparecer noUniverso. Certamente, tais mentes pensam deste modo por não ponderar<strong>em</strong> quantoobservam, e não aferir<strong>em</strong> essa percepção com a uera ratio. Inversamente, qu<strong>em</strong> julga areali<strong>da</strong>de segundo a uera ratio, encontrará, decerto, no Universo, reali<strong>da</strong>des cujosentido não pode alcançar com a sua mente. Porém, aquelas que pode pensar mediante auera ratio não pod<strong>em</strong> deixar de comparecer no Universo e de ser considera<strong>da</strong>s comoocupando o seu lugar próprio, na hierarquia ontológica 479 .Em que consiste, então, a uera ratio, mediante a qual a cognição humana atinge aordo rerum e julga acerca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de com exacção e rectitude? Para o Filósofo deHipona, tal probi<strong>da</strong>de do juízo humano alcança-se quando a mente humana considera areali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> não a partir de si própria e dos seus produtos, mas a partir <strong>da</strong>s rationespor meio <strong>da</strong>s quais tudo foi feito.Ora, tal facto, para além de indicar o modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> considera aestrutura do recto pensar, diz, antes de mais, aquilo que o filósofo considera ser anatureza do próprio cogito. Com efeito, o Hiponense afirma que pertence à almahumana, por natureza, o elo de ligação com as razões divinas. Este facto, ao serconatural à alma, exerce-se s<strong>em</strong>pre, <strong>em</strong> todo o acto de agnição humana. Precisamentepor isso - e na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que há uma efectiva diferença de grau entre a razão e as478 LA III, V, 13: “ (…) Quidquid enim tibi uera ratione melius occurrerit scias fecisse deum tamquambonorum omnium conditor<strong>em</strong>. Non est aut<strong>em</strong> uera ratio, sed inui<strong>da</strong> infirmitas, cum aliquid meliusfaciendum fuisse cogitaueris, iam nihil aliud inferius uelle fieri, tamquam si perspecto caelo nolles terramfacta esse, inique omnino. Recte enim reprehen<strong>da</strong>s si praetermisso caelo terram factam uideres, quoniamdiceres ita enim fieri debuisse sicut posses cogitare caelum (…).” ( CCL 29, p. 282).479 LA III, V, 13: " (...) Potest ergo aliquid in rerum natura quod tua ratione non cogitas. Non esse aut<strong>em</strong>quod uera ratione cogitas non potest (…).» ( CCL 29, p. 283).305


ationes a que ela está uni<strong>da</strong> -, a construção do juízo humano, <strong>em</strong> derradeira análise,obedece s<strong>em</strong>pre a uma estrutura valorativa, conformando-se com o modelo “ x é melhordo que y”. Em síntese, o que Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma taxativamente é o facto de todo oacto de julgar se exercer por comparação, obedecendo a uma estrutura valorativa.To<strong>da</strong>via, para que se dê uma uera ratio e a cognição humana correspon<strong>da</strong> a umjuízo ver<strong>da</strong>deiro e recto, esta presença <strong>da</strong>s rationes aeternae na mente humana, <strong>em</strong>estado latente, conatural e subjacente, deve ser coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> acto pela própria activi<strong>da</strong>deintelectual. Na reali<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que se o que a alma diz é ver<strong>da</strong>deiro -se, mediante o olhar interior, a alma vê o que diz e o identifica como ver<strong>da</strong>deiro - entãoé nas razões divinas, às quais está uni<strong>da</strong>, que vê e reconhece tais ver<strong>da</strong>des 480 . De facto, oque existe nas razões divinas pode ser pensado mediante o exercício <strong>da</strong> uera ratio naexacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a mente humana pode alcançar as ver<strong>da</strong>des às quais estánaturalmente uni<strong>da</strong>. Mas o que não existe nas razões divinas, de modo algum poderá serpensado pela mente humana, não por ser falso, mas por não ter qualquer fun<strong>da</strong>mentoontológico, por ser absolutamente inexistente 481 .Esta exposição acerca <strong>da</strong> estrutura do acto de pensar humano é rica de conteúdos.Antes de mais, permite afirmar que o cogito augustiniano não se reduz a uma meraactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão enquanto facul<strong>da</strong>de de julgar, <strong>da</strong>do que <strong>Agostinho</strong> considera acomplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> estrutura do acto de pensar s<strong>em</strong> a reduzir à actuação <strong>da</strong> razão efazendo-a resultar de uma interacção com as d<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente, <strong>em</strong> concreto avontade e a m<strong>em</strong>ória. Este aspecto evidencia-se <strong>em</strong> De trinitate, quando o filósofoanalisa a estrutura do acto de auto cognição, mas ele está já presente quando oHiponense estabelece a dimensão axiológica ou valorativa do pensar humano. Aoavaliar o real segundo um princípio de maius et minus esse, mediante a intentio animi, ofilósofo evidencia que a dimensão desiderativa <strong>da</strong> mente tende naturalmente a possuiraquele grau de reali<strong>da</strong>de que cont<strong>em</strong>pla como melhor.480 LA III, V, 13: “ (...) Humana quippe anima naturaliter diuinis ex quibus pendet conexa rationibus, cumdicit: « melius hoc fieret quam illud », si uerum dicit et uidet quod dicit, in illis quibus conexa estrationibus uidet. » ( CCL 29, p. 283).481 Ibid: “ (…) Non enim cogitatione uideret fuisse faciendum, nisi in his rationibus quibus facta suntomnia. Quod aut<strong>em</strong> ibi non est, tamen n<strong>em</strong>o potest ueraci cogitatione uidere quam non est uerum ». (CCL29, p. 283). De diu. quaest. 83, q. XLVI, 2: « (...) has rationes rerum (...) non solum sunt ideae, sed ipsaeuerae sunt, quia aeternae sunt et eiusd<strong>em</strong>modi atque incommutabiles manent. Quarum participatione fit utsit quidquid est, quoquo modo est. » ( CCL 44A, p. 73).306


Importa, também, considerar um outro aspecto, essencial na concepçãoaugustiniana do cogito humano, que consiste no facto de este princípio de activi<strong>da</strong>dehumana não corresponder a uma reali<strong>da</strong>de vazia. A activi<strong>da</strong>de, especificamentehumana, de pensar e de querer, cuja sede é o cogito, não se constrói, para <strong>Agostinho</strong>, apartir de uma estrutura de tábua rasa, de um esforço de reductio ad nihilum dosconteúdos adventícios <strong>da</strong> mente. É ver<strong>da</strong>de que o Hiponense propõe, no processo deascese <strong>da</strong> mente per corporalia ad incorporalia, um movimento de purificação <strong>da</strong> alma.To<strong>da</strong>via, uma vez depura<strong>da</strong> esta dos conteúdos adventícios – processo que se exige nãopor tais reali<strong>da</strong>des ser<strong>em</strong> <strong>em</strong> si mesmas perniciosas, mas por ser<strong>em</strong> inferiores, na escalado ser, às reali<strong>da</strong>des inteligíveis e imutáveis que a mente deseja alcançar -, o espíritohumano depara-se com um grémio de reali<strong>da</strong>des irrefragável e indissociável do seu ser,inerente à sua forma específica enquanto mens rationalis. Tal recheio é constituído peloconjunto <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des eternas, identifica<strong>da</strong>s pelo Hiponense como notiones impressae.Estas, por seu turno, apresentam-se já, no interior <strong>da</strong> mente, como o resultado de umesforço analítico, cujo alicerce é a evidencia inconcussa de ver<strong>da</strong>des mais simples,redutíveis aos el<strong>em</strong>entos essenciais do cogito humano, a saber, a certeza acerca <strong>da</strong>própria existência como vi<strong>da</strong> racional.Esse, uiuere, intellegere, na gra<strong>da</strong>ção importa<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> do neoplatonismo,são as primeiras certezas incontestáveis descobertas como proprie<strong>da</strong>des indissociáveisdo cogito humano, as quais <strong>em</strong> Confessionum são reformula<strong>da</strong>s na trilogia esse, nosse,uelle 482 . O Hiponense irá desenvolver o dinamismo destas proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mentehumana <strong>em</strong> De trinitate, insistindo na uni<strong>da</strong>de de uma mesma essência que subjaz a estatríplice activi<strong>da</strong>de do espírito.É ver<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe um processo de despojamento do cogitohumano, de purificação e de conversão, até chegar à dimensão mais íntima <strong>da</strong> estrutura<strong>da</strong> mente humana. Contudo, aí a mente não se depara com um vazio, com uma espéciede na<strong>da</strong> de ser ou de pensar, com uma reali<strong>da</strong>de vácua, a preencher de acordo com arelação que a mente, num processo de desdobramento de si, edificaria de modoaleatório, sobrepondo, a esse na<strong>da</strong>, certezas irrecusáveis cria<strong>da</strong>s pelo seu próprioespírito de acordo com critérios estabelecidos por si mesma. O cogito augustiniano, na482 Conf. XIII, XI, 12: “ (…) Dico aut<strong>em</strong> haec tria: esse, nosse, uelle. Sum enim et scio et uollo: sumsciens et uollens et scio esse me et uollo esse et scire. In his igitur tribus quam sit inseparabilis uita et unauita et una mens et una essentia, quam denique inseparabilis distinctio et tamen distinctio, uideat quipotest (...). » ( CCL 27, p. 247).307


dimensão máxima de despojamento de si, não cria reali<strong>da</strong>de, mas apenas descobre umdomínio de activi<strong>da</strong>de, que se traduz numa anteriori<strong>da</strong>de do ser e do agir sobre aconstituição <strong>da</strong> própria forma do ser humano e, por conseguinte, do próprio exercício dopensar, sendo tal anteriori<strong>da</strong>de de conteúdos uma nota característica <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong>mente. Por seu turno, essa anteriori<strong>da</strong>de reenvia a mente para a descoberta de umareali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a que é causa do seu ser e agir específicos. Na perspectiva de<strong>Agostinho</strong>, esta vi<strong>da</strong> racional sustenta-se nas razões causais e eternas de to<strong>da</strong> areali<strong>da</strong>de, subsistentes na supr<strong>em</strong>a Inteligência divina. Como se disse, o filósofo afirmaexplicitamente que existe uma relação de conaturali<strong>da</strong>de entre tais razões e a mentehumana, sendo esta relação efeito <strong>da</strong> condição cria<strong>da</strong> <strong>da</strong> forma do ser humano.Na ver<strong>da</strong>de, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o conhecimento de Deus e o do próprio cogitoestão <strong>em</strong> íntima relação. Por isso, ao afirmar que esta relação entre a alma humana e asrationes aeternae - princípios de inteligibili<strong>da</strong>de e ver<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a criatura - éconatural e inerente à estrutura <strong>da</strong> mente, o Hiponense disponibiliza também, umel<strong>em</strong>ento acerca <strong>da</strong> própria essência divina. Assim, se é ver<strong>da</strong>de que, para <strong>Agostinho</strong>, ocogito humano não é uma estrutura vácua, mas vivifica<strong>da</strong> pelos actos de ser, querer econhecer, estes, por seu turno, sustentam-se na essência divina que é <strong>Ser</strong>, Vi<strong>da</strong> eVolição por <strong>em</strong>inência. Uma <strong>da</strong>s manifestações desta Vi<strong>da</strong> é o facto de, enquantoInteligência Supr<strong>em</strong>a, nela estar<strong>em</strong> conti<strong>da</strong>s as formas ou razões de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>decria<strong>da</strong>.Afinal, é este conjunto de afirmações que está contido na breve Quaestio XLVIDe ideis, integra<strong>da</strong> <strong>em</strong> De diuersis quaestiones 83. Em contraste aberto com a doutrinaplatónica <strong>da</strong>s Formas ou Ideias, que colocava estes princípios supr<strong>em</strong>os deinteligibili<strong>da</strong>de num domínio de reali<strong>da</strong>de diferente e essencialmente outro quer do B<strong>em</strong>Supr<strong>em</strong>o, quer do D<strong>em</strong>iurgo, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma claramente que <strong>em</strong> Deus estãoconti<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as razões ou ideias de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de efectivamente cria<strong>da</strong> oupotencialmente existente, real e concretiza<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po e na história, ou possível,conti<strong>da</strong> virtualmente, sob forma de ratio, na inteligência divina 483 .Com efeito, o Hiponense não pode conceber uma dissociação, no <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o,entre Bon<strong>da</strong>de e Inteligibili<strong>da</strong>de, pois nesse caso Deus teria de se socorrer de outra483 De diu. quaest. 83, q. XLVI, 2: « (...) [ ideae, formae uel rationes rerum ] neque oriantur nequeintereant, secundum eas tamen formari dicitur omne quod oriri et interire potest et omne quod oritur etinterit. » (CCL 44A, p. 71: it. n.).308


enti<strong>da</strong>de para conquistar inteligibili<strong>da</strong>de para as suas criaturas. Ora, tal suposiçãoabriria passo a um contra-senso: a necessária existência de uma alteri<strong>da</strong>de divina, forade Deus, subsistindo com independência do <strong>Ser</strong> divino, que servisse de suporte àactivi<strong>da</strong>de criadora 484 . Além do mais, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que Deus actuaria à marg<strong>em</strong> deuma relação imediata e directa com as Formas Inteligíveis, tal posição equivaleria adizer que a activi<strong>da</strong>de de Deus é irracional. Entre ela, contar-se-ia a própria Criação. Osseres <strong>em</strong>ergiriam no Universo s<strong>em</strong> uma razão de ord<strong>em</strong> intrínseca, que garanta aestrutura ontológica deles 485 . Sto. <strong>Agostinho</strong> apeli<strong>da</strong> de sacrílega tal proposta, pois elafere a condição essencial requeri<strong>da</strong> para a noção de divin<strong>da</strong>de, a saber, o princípio deexcelência. Negando o primado <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de na hierarquia ontológica, a proposta de umacisão entre Deus e Racionali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a ou <strong>Ord<strong>em</strong></strong> confere irracionali<strong>da</strong>de à própriaordenação do real, acabando por negar a existência de um governo do mundo e auniversal ordenação dos entes 486 .Sto. <strong>Agostinho</strong> chega à descoberta <strong>da</strong>s ideias <strong>em</strong> Deus não apenas por contrastecom os paradoxos que encontra na doutrina platónica <strong>da</strong>s ideias ou formas, mas a partir<strong>da</strong> análise que ele próprio faz do cogito humano. De facto, a descoberta, no interior <strong>da</strong>mente, de noções imutáveis e eternas, <strong>em</strong> contraste com a condição mutável e t<strong>em</strong>poral,<strong>da</strong> razão, faz que o filósofo deduza que tais noções não pod<strong>em</strong> ser produzi<strong>da</strong>s pelamente, pelo motivo de ord<strong>em</strong> já referido: o inferior não pode ser causa do superior. Porisso, ao descobrir tais noções na mente, o Hiponense declara de modo congruente queelas não são forma<strong>da</strong>s por objectos externos n<strong>em</strong> pela própria razão. Ora, <strong>da</strong><strong>da</strong> acondição eterna e imutável de tais noções, elas só pod<strong>em</strong> estar presentes na mentehumana pela relação que esta estabelece, enquanto criatura, com a inteligência divina ouForma Supr<strong>em</strong>a.484 De diu. quaest. 83, q. XLVI, 2: “(…) Non enim extra se quidquam positum intuebatur, ut secundum idconstitueret quod constituebat; nam hoc opinari sacrilegum est.” (CCL 44A, p. 72).485 Ibid: « (…) quis audeat dicere Deum inrationabiliter omnia condidisse? Quod si recte dici uel credinon potest, restat ut omnia ratione sint condita (... ) ». (CCL 44A, p. 72).486 De diu. quaest. 83, q. XLVI, 2 “ (…) Quis aut<strong>em</strong> religiosus et uera religione imbutus, quamuisnondum haec possit intueri, negare tamen audeat, immo non etiam profiteatur, omnia quae sunt, id estquaecumque in suo genere propria qua<strong>da</strong>m natura continentur ut sint, auctore deo esse procreata, eoqueauctore omnia quae uiuunt uiuere, atque uniuersal<strong>em</strong> rerum incolumitat<strong>em</strong> ordin<strong>em</strong>que ipsum, quo eaquae mutantur suos t<strong>em</strong>porales cursus certo moderamine celebrant, summi dei legibus contineri etgubernari?” (CCL 44A, p. 72).309


Tais ideias, formas ou razões <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, subsist<strong>em</strong> <strong>em</strong> Deus, com asmesmas proprie<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> divino: são Imutáveis e Eternas 487 . E, <strong>da</strong>do que estascaracterísticas pertenc<strong>em</strong> à essência divina, então também essas razões <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>descria<strong>da</strong>s são ver<strong>da</strong>deiras, com a mesma Ver<strong>da</strong>de de Deus. Se, a esta ver<strong>da</strong>de, mediante avontade criadora de Deus, causa eficiente <strong>da</strong> Criação, se acrescenta o facto de ser, oefeito é a presença de uma forma cria<strong>da</strong> na estrutura t<strong>em</strong>poral do Universo.Ora, não obstante Sto. <strong>Agostinho</strong> afirmar que esta conaturali<strong>da</strong>de entre asver<strong>da</strong>des eternas ou razões <strong>da</strong>s coisas e a mente humana é inerente à forma do serhumano, o filósofo também acrescenta que n<strong>em</strong> todos os seres humanos alcançam estarazão última do ser <strong>da</strong>s coisas. De facto, só a mente purifica<strong>da</strong> alcança a uera ratio e<strong>em</strong>ite um juízo recto e adequado acerca <strong>da</strong> Criação. Só este juízo reproduz, num verbointerior ou pensamento, a ver<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> pela mente na inteligência divina. Talenunciado corresponde ao ser de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> forma e é, portanto, ver<strong>da</strong>deiro. E, tal comoé dito já na Quaestio XLVI, a mente purifica<strong>da</strong> é a que se une ao <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o mediantea cari<strong>da</strong>de e a que se dispõe a ser ilumina<strong>da</strong> por Ele precisamente naquela sua dimensãopela qual excede os outros graus de ser – a mens rationalis. Deste modo, alcançandouma visão intelectual acerca <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, a qual corresponde exactamente àforma que tais reali<strong>da</strong>des possu<strong>em</strong> no <strong>Ser</strong> divino e mediante a qual subsist<strong>em</strong>, a mentehumana atinge a felici<strong>da</strong>de e obtém uma percepção não tanto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s talcomo se apresentam no Universo, mas do conhecimento que o <strong>Ser</strong> divino t<strong>em</strong> acercadelas.A concepção augustiniana de cogito induz, desta forma, ao conhecimento quer <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> própria mente, <strong>da</strong> forma específica dela enquanto relaciona<strong>da</strong> com o <strong>Ser</strong>divino, quer <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que subsiste no próprio <strong>Ser</strong> divino. E se é um facto que estaposição augustiniana acerca do cogito conduz, de modo peculiar, a considerar oprocesso de acção <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de sobre a mente, designado por <strong>Agostinho</strong> através <strong>da</strong>metáfora <strong>da</strong> iluminação – no caso concreto, iluminação <strong>da</strong>s notiones aeternae, presentesna mente humana, mediante a qual se acede à ver<strong>da</strong>de ou razão <strong>da</strong>s coisas, presentes no<strong>Ser</strong> divino -, também é <strong>da</strong>do concluir que esta concepção <strong>da</strong> estrutura cognitiva humanase indissocia do modo como o filósofo entende a Criação. O próprio ser humano,487 Ibid: « (...) Sunt namque ideae principales quae<strong>da</strong>m formae uel rationes rerum stabiles atqueincommutabiles, quae ipsae formatae non sunt ac per hoc aeternae ac s<strong>em</strong>per eod<strong>em</strong> modo sese habentes,quae diuina intellegentia continentur. » (CCL 44A, p. 71).310


substantia rationalis constans ex anima et corpore 488 , é uma expressão <strong>da</strong> acçãocriadora divina 489 .Dir-se-ia, então, que a concepção augustiniana de cogito está intrinsecamenteuni<strong>da</strong> à forma como o Hiponense entende a acção de cogitare – activi<strong>da</strong>de imanente doser humano, cuja expressão mais simples se identifica com a dictio uerbi, na geração <strong>da</strong>qual concorr<strong>em</strong> as três dimensões <strong>da</strong> mente humana: m<strong>em</strong>oria, intellegentia e uoluntas.A estrutura do cogito humano é entendi<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> como essencialmenterelacional, quer no plano ôntico, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se religa naturalmente ao VerboEterno, quer no plano <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de própria, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela é inseparável <strong>da</strong>interacção <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente.No primeiro caso, uma análise <strong>da</strong> estrutura do cogito conduz à compreensão <strong>da</strong>própria essência divina enquanto <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, ou Vi<strong>da</strong> Eterna, que se realiza, também, comoeterna activi<strong>da</strong>de de conhecer e amar. No segundo, a mesma análise conduz aoconhecimento de si mesmo enquanto imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de divina, a partir doconhecimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do próprio espírito humano. Em ambos os casos, e porque aestrutura augustiniana do cogito é essencialmente vi<strong>da</strong> e ord<strong>em</strong>, uma compreensão desta488 DT XV, VII, 11: « (…) quod si etiam sic definiamus homin<strong>em</strong>, ut dicamus: 'Homo est substantiarationalis constans ex anima et corpore,' non est dubium homin<strong>em</strong> habere animam quae non est corpus,habere corpus quod non est anima (…). » (CCL 50A, p. 474).489 Por isso, esta concepção de cogito compl<strong>em</strong>enta-se com a expositio de Sto. <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong>Criação, onde a inteligência divina se identifica com o Verbo Eterno de Deus, e as rationes aeternae sãocompreendi<strong>da</strong>s como razões causais de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>. Então se entenderá que, tal como a acçãotrinitária de Deus está presente a seu modo <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> criatura, sustentando-a no ser, também estas estãopresentes nas rationes aeternae, causales. Estas permanec<strong>em</strong> <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> criatura, justificando astransformações visíveis que ca<strong>da</strong> forma sofre no curso dos t<strong>em</strong>pos. Tais rationes são, também, s<strong>em</strong>inales(cf. v. gr. De gen. ad litt. IV, XXXIII; VI, XIV-XV; VII, XXII-XXIV; IX, XVII; X, II-III: CSEL 28/1, p.132; p. 189; p. 219-223; p. 291; p. 297-299), facto que se conjuga com a concepção augustiniana decreatio, pr<strong>em</strong>itindo compreender os seus dois ritmos, simultâneo e sucessivo. No caso concreto, o facto<strong>da</strong>s rationes causales ser<strong>em</strong> germinais aju<strong>da</strong>rá Sto. <strong>Agostinho</strong> a explicar tanto a transmissibili<strong>da</strong>de dopecado original a partir de um primitus homo - e a pender para a tese traducionista, no que a este aspectose refere – como as virtuali<strong>da</strong>des insuspeita<strong>da</strong>s conti<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> forma cria<strong>da</strong>. Tais potenciali<strong>da</strong>des doser manifestam-se no curso ordinário dos acontecimentos e dos t<strong>em</strong>pos ou <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> inopina<strong>da</strong>mentenessa ord<strong>em</strong>. Num caso e noutro, as formas manifestam-se segundo a ordo rerum nelas latente <strong>em</strong> virtude<strong>da</strong> presença eterna do acto criador divino, que as sustenta no ser e no agir (cf. v. gr. De gen. ad litt. VI,XI; VI, XIV; VII, XXII-XXIII: CSEL 28/1, p. 183-185; p. 189 ; p. 219-223).311


activi<strong>da</strong>de humana é entendi<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> como itinerário privilegiado paraalcançar o desiderato último <strong>da</strong> Filosofia: nouerim me, nouerim te.To<strong>da</strong>via, como se disse, mediante o conhecimento <strong>da</strong>s rationes aeternae de ca<strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de, obtém-se o conhecimento <strong>da</strong> forma de ca<strong>da</strong> criatura não como é <strong>da</strong>doverificar a partir <strong>da</strong> sua existência <strong>em</strong>pírica, mas de acordo com a justiça e rectidão coma qual ela subsiste no <strong>Ser</strong> Eterno do Princípio Criador. De igual modo, o conhecimentode si próprio e de Deus - que se obtém mediante uma análise <strong>da</strong> estrutura do cogito e <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente humana -, conduz a uma peculiar forma de conhecimento queconsiste <strong>em</strong> que a mente humana se conheça tal como é conheci<strong>da</strong> por Deus. Outro nãoé o desiderato augustiniano de auto gnose e outro não pode ser o acesso <strong>da</strong> mentehumana ao conhecimento de Deus.Em Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> enuncia claramente a finali<strong>da</strong>de desta dinâmicade auto gnose - cognoscam te, cognitor meus, cognoscam te sicut et cognitus sum 490 . Amente conhece-se a si mesma e à reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> tal como é conheci<strong>da</strong> por Deus. Essefacto é, a um t<strong>em</strong>po, o conhecimento de si próprio, do Universo, e, ain<strong>da</strong>, aqueleconhecimento que o ser humano pode alcançar a respeito <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Por isso, quandoSto. <strong>Agostinho</strong> propõe, como meta <strong>da</strong> Filosofia, o conhecimento de si e de Deus, nãopromulga, de modo algum, o primado <strong>da</strong> subjectivi<strong>da</strong>de, mas antes a abertura desta aum domínio de máxima universali<strong>da</strong>de, a qual está subjacente a uma proposta deconhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de a partir do próprio princípio Criador. Tal projecto é490 Cf. Conf. X, I, 1 (CCL 27, p. 155). To<strong>da</strong>via, se <strong>em</strong> Confessionum este desiderato preside ao Livro X,onde Sto. <strong>Agostinho</strong> se propõe revelar, na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suas possibili<strong>da</strong>des, o que então conhece de si e deDeus, <strong>em</strong> textos posteriores esta expressão encontrar-se-á s<strong>em</strong>pre como um projecto a conquistar numfuturo, <strong>em</strong> oposição a uma situação actual, na qual o conhecimento próprio e o de Deus se dá apenas porespelho e enigma, reservando-se aquele propósito – cognoscam te sicut et cognitus sum – para ummomento futuro, onde o conhecimento se realizará numa visão de Eterni<strong>da</strong>de. Esta é uma <strong>da</strong>s questõesnas quais se manifesta claramente a dimensão escatológica <strong>da</strong> metafísica augustiniana. Os textos onde arefere acentuam o contraste nunc/tunc. A visão de Deus, e de si <strong>em</strong> Deus, visão promulga<strong>da</strong> como faciead faci<strong>em</strong>, é reserva<strong>da</strong> para uma situação futura que corresponde a um estado de pura realização <strong>da</strong> formado ser humano. Atingindo a sua perfeição plena, acederá finalmente a um estado de beatitude (cf. v. gr.to<strong>da</strong> a Ep. CXLVII, spec. § XXII: CSEL 44, p. 326-328; In Iohan. Ev. Tract. LXXXVI, 1 ; CXVI, 4; CI,5 (CCL 36, p. 541 ; p. 571-572 ; p. 593). De diu. quaest. 83, q. LXV ( CCL 44A, p. 147-149); a ideia ésugeri<strong>da</strong> a Sto. <strong>Agostinho</strong> pela leitura de S. Paulo, como transcreve explicitamente v. gr. <strong>em</strong> De ciu. deiXXII, XXIX (CCL 48, p. 858) ou <strong>em</strong> DT XII, XIV, 22: “(…) sicut et apostolus loquitur ubi dicit: Nuncscio ex parte, tunc aut<strong>em</strong> cognoscam sicut et cognitus sum (...).” (CCL 50, p. 375).312


precisamente a antítese de to<strong>da</strong> a proposta de construção do mundo a partir <strong>da</strong>scapaci<strong>da</strong>des do sujeito pensante, sendo marcado, por conseguinte, por um apeloconstante por parte do Hiponense – transcende et te ipsum.Como itinerários para a mostração <strong>da</strong> estrutura relacional do cogito humano –noção que dificilmente se diferencia <strong>da</strong> própria mente humana 491 - , Sto. <strong>Agostinho</strong>privilegia duas vias: a análise do conhecimento implícito de si, inerente à estrutura doacto de pensar, e a análise do man<strong>da</strong>to de auto gnose, revelado, segundo a tradiçãohelénica, no oráculo de Delfos.A afirmação de que o conhecimento de si está implícito <strong>em</strong> todo o acto de julgar éponto de parti<strong>da</strong> para a auto gnose, já <strong>em</strong> Soliloquiorum e, <strong>em</strong> De libero arbitrio, tornaseinício do itinerário de mostração <strong>da</strong> existência de uma noção óptima, identifica<strong>da</strong>com a ideia de Deus, s<strong>em</strong> a qual Sto. <strong>Agostinho</strong> esclarece que a razão não pode exercera sua activi<strong>da</strong>de própria: julgar. A interrogação “cogitare te scis?” 492 , que <strong>em</strong>Soliloquiorum é já uma certeza irrefragável, alcança, <strong>em</strong> De libero arbitrio, um nível decerteza ain<strong>da</strong> mais radical: scio me esse – sendo um facto que esta apreensão do ser éinseparável <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> forma específica, no caso, <strong>da</strong> própria existência como vi<strong>da</strong>racional – scio me esse, uiuere, intellegere 493 . Esta dedução, na sua brevi<strong>da</strong>de, supõe,para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a afirmação do conhecimento implícito que todo o ser humano t<strong>em</strong>de si mesmo, precisamente quando exerce a activi<strong>da</strong>de que o caracteriza, definindo, porisso, o lugar que tal expressão de ser ocupa na hierarquia ontológica.À activi<strong>da</strong>de cognitiva que, nas referi<strong>da</strong>s obras, Sto. <strong>Agostinho</strong> entrega aoprimado <strong>da</strong> razão, está subjacente uma dimensão de vi<strong>da</strong> mais ampla. Analisando aprópria vi<strong>da</strong> racional <strong>em</strong> que consiste a forma do ser humano, o Hiponense descobre,nela, três funções <strong>em</strong> activi<strong>da</strong>de – m<strong>em</strong>ória, inteligência e vontade – as quais, antes dequalquer outro conteúdo, a si mesmas se contêm. Tal afirmação está já presente <strong>em</strong> De491 As noções de cogito e de mens não são idênticas, na obra de <strong>Agostinho</strong>. To<strong>da</strong>via, é possível, nocontexto <strong>em</strong> que ora analisamos o sentido de cogito, aproximá-lo <strong>da</strong> noção augustiniana de mensrationalis. A mente dota<strong>da</strong> de razão é aquela quali<strong>da</strong>de do ser humano pela qual ele se sobrepõe àsd<strong>em</strong>ais formas de existência, que apenas são ou viv<strong>em</strong>. A activi<strong>da</strong>de cognitiva é aquela que, sendoespecificamente humana, permite, através de uma análise dos el<strong>em</strong>entos nela envolvidos, descobrir anatureza complexa quer <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de judicativa, quer <strong>da</strong> própria mente, ascendendo à ver<strong>da</strong>deiranatureza desta última: o modo específico como se relaciona com Deus, mediante a Ver<strong>da</strong>de e o Amor.492 Solil. II, I, 1: “ R. Tu qui vis te nosse, scis esse te ? A. Scio. R. Vnde scis ? A.- Nescio. (…) R. -Cogitare te scis? A. - Scio. R. – Ergo verum est cogitare te » ( CSEL 89, p 45-46).493 Cf. LA II, III, 7 ( CCL 29, p. 239-240) ; DT X, IV, 6; X, X, 13 ( CCL 50, p. 319 ; p. 326).313


libero arbitrio 494 , mas será objecto de disquisição sobretudo <strong>em</strong> De trinitate. Nestaobra, a in<strong>da</strong>gação acerca do conhecimento implícito que o espírito humano t<strong>em</strong> de simesmo, no exercício dos actos específicos de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, éanalisa<strong>da</strong> com o objectivo de esclarecer a imag<strong>em</strong> de Deus nela impressa para, medianteesta efígie, poder alcançar um conhecimento <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de superna 495 .Sto. <strong>Agostinho</strong> apela para dois aspectos deste conhecimento implícito. Umprimeiro, reside no facto de ele estar associado ao conhecimento <strong>da</strong> disposição gradualde seres, o qual, por sua vez, se vincula com a percepção do grau próprio de tal formade ser, nessa hierarquia 496 . Um segundo, alude ao facto de tal forma de agniçãoreacender a discussão acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> alma, <strong>em</strong> concreto in<strong>da</strong>gando a totali<strong>da</strong>dedela. Efectivamente, a discussão sobre a existência de uma anima tota aparece,sobretudo, nos primeiros escritos de <strong>Agostinho</strong>, a propósito <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> alma,imaterial e inextensa, com o corpo, e <strong>da</strong>s condições requeri<strong>da</strong>s para alcançar asabedoria. Em De trinitate tal in<strong>da</strong>gação está presente quando se pretende esclarecer a494 Cf. LA II, XIX, 51 ( CCL 29, p. 271): é pela razão que se conhec<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des e, entre elas, aprópria razão; é através <strong>da</strong> vontade que se usam todos os bens, entre eles a própria vontade; e é através <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória que se recor<strong>da</strong>m to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des, entre elas a própria m<strong>em</strong>ória. ( V., também, Conf. X, XVI:“ (...) Ergo cum m<strong>em</strong>oriam m<strong>em</strong>ini, per se ipsam sibi praesto est ipsa m<strong>em</strong>oria; cum uero m<strong>em</strong>iniobliuion<strong>em</strong>, et m<strong>em</strong>oria praesto est et obliuio, m<strong>em</strong>oria, qua m<strong>em</strong>inerim, obliuio, quam m<strong>em</strong>inerim.”(CCL 27, p. 167); DT X, XI, 18: “ (…) M<strong>em</strong>ini enim me habere m<strong>em</strong>oriam et intellegentiam etuoluntat<strong>em</strong>, et intellego me intellegere et uelle atque m<strong>em</strong>inisse, et uolo me uelle et m<strong>em</strong>inisse etintellegere, totamque meam m<strong>em</strong>oriam et intellegentiam et uoluntat<strong>em</strong> simul m<strong>em</strong>ini.” (CCL 50, p. 329-330). DT XV, XXII: “ (…) Ego enim m<strong>em</strong>ini per m<strong>em</strong>oriam, intellego per intellegentiam, amo peramor<strong>em</strong>.” (CCL 50A, p. 519).495 Nos Livros IX e X de De trinitate, Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>penha-se numa análise do ápice <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong>alma humana. Aí, os termos animus e mens suced<strong>em</strong>, por vezes s<strong>em</strong> ser possível determinar claramente afronteira entre ambos. Animus, mens e anima são os termos que dev<strong>em</strong> ser <strong>em</strong>pregues neste nível deapreciação <strong>da</strong> forma do ser humano. Porém, se anima é o termo que indica vi<strong>da</strong> não necessariamenteracional, o termo animus aplica-se à vi<strong>da</strong> especificamente humana, dota<strong>da</strong> de racionali<strong>da</strong>de, podendo, <strong>em</strong>determinados contextos, aproximar-se do termo spiritus (cf. De gen. ad litt. XII, VII: CSEL 28/1, p. 389).Por sua vez, o termo mens engloba a activi<strong>da</strong>de do espírito humano no seu conjunto, referindo a uni<strong>da</strong>de einteracção <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste a vi<strong>da</strong> espiritual, na sua dimensão afectiva, volitiva ecognitiva. Sobre o significado dos termos anima, animus, spiritus, na obra de Sto. <strong>Agostinho</strong> v. PaulaOLIVEIRA E SILVA, <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong>. Diálogo sobre a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> (Lisboa 2000), p. 237-240.496 DT X, IV, 6: " (…) Non potest aut<strong>em</strong> et mens esse, et non uiuere, quando habet etiam amplius utintellegat: nam et animae bestiarum uiuunt, sed non intelligunt. Sicut ergo mens tota mens est, sic totauiuit. Nouit aut<strong>em</strong> uiuere se; totam se igitur uiuit (…). " ( CCL 50, p. 319).314


natureza reflexiva <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, aí entendi<strong>da</strong>s como acto primeiro doconhecimento. Sto. <strong>Agostinho</strong> declara que, nesse conhecimento implícito, a mente seconhece como uma totali<strong>da</strong>de subsistente, e não como uma reali<strong>da</strong>de outra de si mesma.Ao reposicionar esta questão, o filósofo t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista arre<strong>da</strong>r definitivamente, <strong>da</strong>metodologia do conhecimento de si e de Deus por via <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> mente, a ideia de umconhecimento objectivado <strong>da</strong> alma por si mesma. No processo de auto gnose, a almanão se toma a si mesma como objecto de análise, como se forçasse uma cisão no interiorde si, ou como se possuísse partes conheci<strong>da</strong>s e partes incógnitas de si, estas últimasdevendo tornar-se objecto de in<strong>da</strong>gação. Para <strong>Agostinho</strong>, a alma não t<strong>em</strong> partes. Emvirtude <strong>da</strong> sua própria natureza espiritual, ela é imaterial e inextensa. Por isso, adiscussão acerca de uma anima tota alheia-se totalmente do propósito augustiniano deanálise <strong>da</strong> mente por via de auto reflexão. De salientar, nesta discussão, quer adivergência <strong>da</strong> posição augustiniana <strong>em</strong> face dos que consideram que a alma vai <strong>em</strong>busca de uma representação de si, como se se tratasse do conhecimento de outra parcelade si mesma que lhe escapa no conhecimento implícito que de si possui, quer a linha deinterpretação neoplatónica, segui<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong>.Considerando que a alma possui partes, umas conheci<strong>da</strong>s, outras ignora<strong>da</strong>s, sendoestas últimas encara<strong>da</strong>s como motor de busca a partir <strong>da</strong>s primeiras, obtém-se uma cisãono interior do cogito humano e divide-se a uni<strong>da</strong>de do ser pensante. Esta cisão éconsidera<strong>da</strong> pelo Hiponense como assaz perniciosa, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que introduz, nointerior <strong>da</strong> própria mente humana, a duali<strong>da</strong>de entre o sujeito e o objecto, entre ocognoscente e a reali<strong>da</strong>de a conhecer, tornando a busca do conhecimento de si um ca<strong>da</strong>vez mais abissal movimento de alienação. Ora, o movimento de intentio animi, que seviu ser essencial na compreensão <strong>da</strong> estrutura augustiniana <strong>da</strong> mente humana, afasta-seradicalmente de um processo de alienação, pois a reali<strong>da</strong>de a que tende é interior eessencial à mente e, simultaneamente, transcendente e totalmente diferente dela. Amente procura, mediante o movimento intencional que a caracteriza, uma reali<strong>da</strong>deoutra de si e superior a si, que é, simultaneamente, aquela que realiza a sua formaespecífica, preenchendo-a e completando-a, afinal, realizando a sua perfeição própria.Por isso, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste na totali<strong>da</strong>de do conhecimento que a alma humana t<strong>em</strong>de si mesma, <strong>em</strong> qualquer momento do processo cognitivo e <strong>em</strong> qualquer etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.Obviamente, cabe perguntar por que razão a mente prossegue o conhecimento de si, se,<strong>da</strong>do o conhecimento implícito que possui de si mesma, na<strong>da</strong> lhe falta. <strong>Agostinho</strong>responde, incidindo no alvo do argumento a favor <strong>da</strong> natureza essencialmente valorativa315


do exercício humano <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de julgar 497 . É to<strong>da</strong> a mente que vai <strong>em</strong> busca de si.Mas o que aparent<strong>em</strong>ente lhe falta a ela mesma, aquilo que decisivamente ela procura,não é ela própria, pois ela s<strong>em</strong>pre está presente a si mesma. O que move tal busca é oobjecto de investigação, essencialmente outro, diferente <strong>da</strong> própria mente, não obstanteintrinsecamente unido a ela 498 .Ora, que objecto de investigação é este, que a alma busca? De acordo com a noçãode ord<strong>em</strong>, a reali<strong>da</strong>de que a mente busca e para a qual tende consiste naquilo que émelhor, na forma que corresponde à noção óptima, pois é essa a que lhe falta paracompletar a sua perfeição específica. A identi<strong>da</strong>de desta ausência revela-se à mentequando ela se descobre a si mesma como superior aos seres que viv<strong>em</strong> e, to<strong>da</strong>via, a simesma se reconhece como uma expressão indigente de reali<strong>da</strong>de, e não como a máximaexpressão de ser. De facto, só quando a mente humana se conhece a si mesma atravésdesta encruzilha<strong>da</strong> de graduação de seres, ela obtém de si um conhecimento ordenado.Mesmo que o ser humano não queira confrontar directamente esta reali<strong>da</strong>de,esquivando-a voluntariamente, mesmo se não a percepcionar de outra forma, pelomenos enfrenta-a ante o fenómeno <strong>da</strong> morte do ser vivo racional. A morte entra,efectivamente, na definição de ser humano outorga<strong>da</strong> pelos antigos. Porém, elacontradiz a percepção que o ser humano t<strong>em</strong> de si mesmo, na qual se experimenta comoum vivente racional que deseja possuir definitivamente a subsistência <strong>da</strong> sua formaprópria, por considerar que, <strong>em</strong> tal subsistência, encontra a felici<strong>da</strong>de. A morte497 Afirmar tal condição significa determinar que a própria mente contém <strong>em</strong> si a dinâmica <strong>da</strong> diferença -no caso, entre a razão e a Ver<strong>da</strong>de -, e que tal dinâmica ou tensão interior do espírito preside a to<strong>da</strong> equalquer forma de raciocínio. Na obra do Hiponense, a consciência deste facto exprime-se, entre outrasformas, através do recurso frequente ao <strong>em</strong>prego do comparativo - melior, superior, inferior quam ... Overbo comparare, quer nas formas conjuga<strong>da</strong>s, quer adjectiva<strong>da</strong>s ou substantivas, ocorre também comfrequência. Veja-se, <strong>em</strong> VR XXX, 54; XXI, 57 (CCL 32, p. 222; p. 224) um lugar paralelo ao ora <strong>em</strong>análise, de De trinitate, onde, segundo o mesmo método de ascese à noção supr<strong>em</strong>a por via <strong>da</strong> análise doacto de julgar, o filósofo insiste na condição normativa do Princípio Supr<strong>em</strong>o. Em VR XXXV, 65-XXXVI, 66 (CCL 32, p. 229-231), sublinha a Uni<strong>da</strong>de do Princípio - recorde-se a função apologéticadesta obra, dirigi<strong>da</strong> a Romaniano, maniqueísta -, b<strong>em</strong> como a condição normativa <strong>da</strong>s regras supr<strong>em</strong>as dejudicação.498 DT X, IV, 6 : “(...) Sed quomodo mens ueniat in ment<strong>em</strong>, quasi possit mens in mente non esse? Vcaccedit quia si parte inuenta, non se totam quaerit, tamen se quaerit. Tota ergo sibi praesto est, et qui<strong>da</strong>dhuc quaeratur non est; hoc enim deest quod quaerit, non illa quae quaerit (…).” (CCL 50, p. 319-320 :it. n.).316


converte-se, assim, na mais plena expressão <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, instaura<strong>da</strong> no âmago do autoconhecimento, tornando-se capaz de justificar, agora por via negativa, a radicali<strong>da</strong>de doposicionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Perante a afirmação <strong>da</strong> primeira evidência irrefragável que a mente possui de simesma - a percepção de si como um ser vivo racional - e sabendo que, sobre ela, Sto.<strong>Agostinho</strong> edificará pedras-mestras <strong>da</strong> sua mundividência, cabe, antes de mais, verificarde que modo o filósofo esclarece as três interrogações que se segu<strong>em</strong>. Uma primeiraincide sobre o significado do termo ratio; uma segun<strong>da</strong> investiga acerca <strong>da</strong> condição depossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inconcussa certeza atribuí<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> à afirmação de si comoser pensante; uma última averigua sobre a natureza do factor diferença, inerente ao actode pensar. A partir deste factor, o filósofo articula a possibili<strong>da</strong>de de deduzirproposições universalmente váli<strong>da</strong>s com base no conhecimento indubitável, nãoobstante maximamente individual e de menor amplitude, <strong>da</strong> existência própria.Que significado assume, na metafísica do Hiponense, o termo ratio ?Sendo impossível contrariar a tendência à poliss<strong>em</strong>ia, própria do discurso doHiponense, de reconheci<strong>da</strong> volatili<strong>da</strong>de e elastici<strong>da</strong>de, será tão-só viável delinear algunsaspectos <strong>da</strong> noção augustiniana de ratio, presentes <strong>em</strong> amálgama e de formaindiferencia<strong>da</strong> sobretudo nos primeiros escritos do Hiponense, os quais, posteriormente,vão encontrando o seu contorno específico, permitindo vislumbrar a figura que<strong>Agostinho</strong> quis que ocupass<strong>em</strong> no interior <strong>da</strong> sua metafísica.Nos escritos anteriores ao baptismo, o termo ratio v<strong>em</strong> inúmeras vezes a colação,mas frequent<strong>em</strong>ente de forma se não equívoca, pelo menos ambígua. É sabido que Sto.<strong>Agostinho</strong> assumira, <strong>em</strong> tais obras, uma metodologia curiosa, admitindo a autori<strong>da</strong>de deCristo, no que diz respeito a questões de religião 499 , e assumindo a autori<strong>da</strong>de dosPlatónicos, no que se refere ao entendimento <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des do cristianismo e na medi<strong>da</strong><strong>em</strong> que esta última autori<strong>da</strong>de não entrasse <strong>em</strong> conflito com elas. Na leitura dosprimeiros escritos de <strong>Agostinho</strong> assiste-se, portanto, ao esforço do filósofo por construirdiscurso próprio entre duas autori<strong>da</strong>des, fenómeno que aju<strong>da</strong> a compreender os doisníveis de linguag<strong>em</strong> que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong>, por vezes de modo explícito, v. gr., nos escritos do499 Enten<strong>da</strong>-se o termo como sinónimo <strong>da</strong>quele conjunto de ver<strong>da</strong>des que, decorrendo <strong>da</strong> leitura einterpretação <strong>da</strong>s Escrituras, é assumido e difundido pela Chatolica como parte de uma mensag<strong>em</strong> deorig<strong>em</strong> divina. Este parece ser o entendimento que o filósofo possuía do termo, nos anos 386-387.Contudo, o conceito de religio ou uera religio, no conjunto <strong>da</strong> obra do Hiponense, t<strong>em</strong> um alcance muitomais radical.317


período de Cassicíaco, e mesmos naqueles correspondentes ao segundo período romano,fazendo que o filósofo se confronte, com frequência, com um s<strong>em</strong>-fim de aporias, ouque apraze as questões <strong>em</strong> análise para melhores dias.Nos seus primeiros escritos Sto. <strong>Agostinho</strong> aplica o termo ratio de um modopouco definido. Ele surge para designar o el<strong>em</strong>ento mais excelente no ser humano,enquanto proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente que o distingue dos animais, preconizando umaconcepção de hom<strong>em</strong> sábio muito próxima <strong>da</strong> transmiti<strong>da</strong> por Cícero. Mas ratio é,também, a proprie<strong>da</strong>de que faz que se possa designar por saber o conteúdo <strong>da</strong>sdisciplinas, na exacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, nelas, se manifesta a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proposições,não sendo, porém, clarividente a relação entre a ratio, presente nas artes, e aquelaproprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente que excele no ser humano. De facto, <strong>em</strong> De ordine a ratio,presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um dos saberes, apresenta-se como uma reali<strong>da</strong>de que se resolve entrea produção <strong>da</strong>s disciplinas e uma lógica que <strong>em</strong>ana do próprio real, sendo a razãopresente na alma humana um mero instrumento de revelação de uma racionali<strong>da</strong>deuniversal e cósmica.De ordine apresenta-se como o protótipo <strong>da</strong> obra onde <strong>Agostinho</strong> concentra, parao termo ratio, a maior amálgama de sentidos, certamente no intuito de proclamar auniversali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, r<strong>em</strong>etendo para o nível de uma meta-mensag<strong>em</strong> a ver<strong>da</strong>de deuma proposição que aquele Diálogo foi incapaz de evidenciar por meio de argumentosválidos. Ratio é, <strong>em</strong> De ordine, Tudo: princípio universal de reali<strong>da</strong>de, razão universalmoderadora de quanto ocorre na natureza e escapa ao arbítrio dos homens, harmonia <strong>da</strong>spartes e do Todo; é el<strong>em</strong>ento <strong>da</strong> alma racional, chispa presente na mente humana que,distinguindo os seres humanos quer dos animais, quer do divino, torna alguns de entreaqueles primeiros capazes de alcançar a sabedoria; é a ord<strong>em</strong> do discurso, aconcatenação dos el<strong>em</strong>entos de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s partes que o compõ<strong>em</strong>, a força dialécticado espírito que dá à luz as disciplinas, imortalizando-se nelas; é medi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> aparcela do real, independent<strong>em</strong>ente do grau de ser - objectos naturais, seres vivosirracionais, o próprio ser humano ou os artefactos que ele produz.Sto. <strong>Agostinho</strong> irá, posteriormente, discernir o domínio próprio de ca<strong>da</strong> um destessentidos. Para tal, a investigação do filósofo incidirá, primeiramente, sobre a natureza <strong>da</strong>alma. Antes de mais, o Hiponense procurará garantir que a alma é imortal. Estanecessi<strong>da</strong>de decorre <strong>da</strong> relação que Sto. <strong>Agostinho</strong> estabelece entre felici<strong>da</strong>de esabedoria, lugar comum <strong>da</strong> antropologia de Cícero e <strong>da</strong> tradição greco-romana, <strong>da</strong> quala obra de Marco Túlio é, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, apogeu e paradigma. Mas os argumentos que318


<strong>Agostinho</strong> procura para a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma centram-se na análise do conceito desaber, produto <strong>da</strong> razão espelhado nas disciplinas e ain<strong>da</strong> não num exame <strong>da</strong> mentehumana. Por isso, como se viu, a causa <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma procurar-se-á, nestesescritos, <strong>em</strong> um princípio diferente e extrínseco à própria alma: a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sproposições, ou, melhor dito, o ver<strong>da</strong>deiro (uerum) enquanto tal.A incursão do raciocínio de <strong>Agostinho</strong> desde o plano do uerum para a Veritas só<strong>em</strong> De libero arbitrio é claramente visível, por meio de argumentos, e não por recurso àautori<strong>da</strong>de. Por isso, o termo ratio, <strong>em</strong> escritos como Soliloquiorum, De immortalitateanimae ou De quantitate animae an<strong>da</strong> <strong>em</strong> estreita conexão com a inspecção <strong>da</strong> natureza<strong>da</strong> alma humana, enquanto sede do saber, argumentos d<strong>em</strong>asiado próximos <strong>da</strong>autori<strong>da</strong>de dos Platonicorum, chegando mesmo à adesão efectiva, por parte de<strong>Agostinho</strong>, à tese platónica <strong>da</strong> r<strong>em</strong>iniscência, na exacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o autor doMénon a propõe, quer para solucionar o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do conhecimentover<strong>da</strong>deiro, quer para justificar a natureza <strong>da</strong> alma.No referido conjunto de obras, é um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> deixa de marg<strong>em</strong> ainvestigação sobre a natureza <strong>da</strong> razão como Princípio de Totali<strong>da</strong>de, a que se referira<strong>em</strong> De ordine. Ao envere<strong>da</strong>r pela análise <strong>da</strong> alma, <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de dela e <strong>da</strong> natureza dosaber, aquele aspecto esfuma-se, sendo, apenas, apontado como o cume para o qualtende a sabedoria. Com efeito, este é um dos aspectos onde <strong>Agostinho</strong> reconhece, aomenos implicitamente, que as duas autori<strong>da</strong>des, Platão e Cristo, não converg<strong>em</strong>. Paradesignar tal reali<strong>da</strong>de – a razão total -, o mestre de Cassicíaco reserva, inclusivamente, otermo intellectus, aliás pouco utilizado no conjunto <strong>da</strong> sua obra, <strong>em</strong> comparação com afrequência de <strong>em</strong>prego do termo ratio 500 .Inversamente, sobre a noção de ratio, o filósofo t<strong>em</strong> algumas certezas, ao afirmarque a ratio é uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, ou <strong>da</strong> alma racional. Ela é defini<strong>da</strong> como motio500 Vejam-se as duas referências a um Intelecto divino, que teria assumido corpo e que é Princípio de todoo ser, não tendo, ele mesmo, Princípio, facto que apela à inteligência do mistério <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de (CA III,XIX, 22: CCL 29, p. 60; DO, II, V, 16 CCL 29, p. 115-116), manifestando a adesão a um conjunto dever<strong>da</strong>des para as quais a 'autori<strong>da</strong>de de Cristo' é solicita<strong>da</strong>, à falta de argumentos conciliáveis, ausentesnos libri Platonicorum. Com efeito, as hipóstases neoplatónicas supunham s<strong>em</strong>pre um processo dedecadência, que instaura diferença por per<strong>da</strong> de densi<strong>da</strong>de ontológica. Ora, Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe, porautori<strong>da</strong>de de Cristo, que a dinâmica <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de cristã é inconciliável com a ideia de uma diferenciaçãopor degra<strong>da</strong>ção. V., também, sobre a trin<strong>da</strong>de plotiniana e a trin<strong>da</strong>de cristã, De ciu. dei X, XXIII-XXIV(CCL 47, p. 296-297).319


mentis, quando considera<strong>da</strong> como agente principal na produção <strong>da</strong>s artes e saberes. Porsua vez, quando se atenta naquela capaci<strong>da</strong>de de cont<strong>em</strong>plar o ver<strong>da</strong>deiro s<strong>em</strong> amediação do corpo, a ratio é entendi<strong>da</strong> como aspectus animi 501 . Analisando estaacepção, Sto. <strong>Agostinho</strong> deduz a presença <strong>da</strong> ratio na mente com anteriori<strong>da</strong>de sobreto<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de que se diga racional, ou seja, com precedência sobre o próprioexercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de pensante. A passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> ignorância ao saber designa-se porratiocinatio e supõe o progresso no t<strong>em</strong>po; ao invés, a razão está s<strong>em</strong>pre presente namente humana. A noção de ratio, defini<strong>da</strong> como aspectus mentis, indica a capaci<strong>da</strong>decont<strong>em</strong>plativa <strong>da</strong> mente, correspondendo a um conhecimento por presença, alheio aoaspecto discursivo. Inversamente, a ideia de ratiocinatio supõe o movimento deascensão <strong>da</strong> mente através <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des que são objecto de cont<strong>em</strong>plação 502 . Estacaracterística <strong>da</strong> razão – o facto de estar s<strong>em</strong>pre presente no espírito humano – será oel<strong>em</strong>ento que permite a Sto. <strong>Agostinho</strong> responder à segun<strong>da</strong> questão supra enuncia<strong>da</strong>,aquela que in<strong>da</strong>ga sobre a natureza do conhecimento implícito de si. Este, por seu turno,está subjacente na afirmação <strong>da</strong> evidência imediata do auto conhecimento: a percepçãoque o ser humano t<strong>em</strong> de si mesmo como a de um ser que existe, vive e pensa.Em De trinitate, a questão é trata<strong>da</strong> com detalhe e atenção, no intuito deidentificar formas de similitude entre a mente humana e a essência divina que permitamascender a um conhecimento analógico desta última. Por isso, a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> distinçãoentre as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente que estão subjacentes no acto de conhecer é,prioritariamente, a de identificar um pólo de uni<strong>da</strong>de para a dinâmica <strong>da</strong>s funções que501 Cf. v.gr. Solil. I, VI, 13 ( CSEL 89, p. 21-22); De immort. anim. VI, 10 : " (…) Ratio est aspectusanimi, quo per seipsum, non per corpus verum intuetur, aut ipsa veri cont<strong>em</strong>platio, non per corpus, autipsum verum quod cont<strong>em</strong>platur." ( CSEL 89, p. 110 : it. n.). A questão que se coloca de imediato é a <strong>da</strong>relação entre a razão e o ver<strong>da</strong>deiro. Com efeito, a distinção entre uerum e ratio é uma magna quaestio eSto. <strong>Agostinho</strong> apenas sabe que a razão, per se ipsam - s<strong>em</strong> mediação de el<strong>em</strong>entos adventícios, s<strong>em</strong>estabelecer com eles algum tipo de conexão -, não pode cont<strong>em</strong>plar o uerum. Este passo deveriaesclarecer a relação entre animus e ratio, mas não é assim: apenas se afirma a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ratio <strong>em</strong>relação aos d<strong>em</strong>ais modos de ser, e o facto dela ser inseparável do espírito humano, ficando por esclarecero modo como se dá essa relação e o motivo <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ratio. Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong>reconhece que o seu opúsculo De immortalitate animae está envolto <strong>em</strong> obscuri<strong>da</strong>de, sendo este um dosaspectos <strong>em</strong> que ela se manifesta ( cf. Retract. I, V: CCL 57, p. 15-17).502 Cf. De quant. anim. XXV, 49-XXVI, 49-50 ( CSEL 89, p. 193-195). Está <strong>em</strong> análise uma definição desensação - passio corporis per se ipsam non latens animam - a qual, por deficiente extensão dos termos,se mostra não ser universalmente váli<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do que a proposição conversa não se verifica.320


caracterizam o espírito humano, no ritmo ternário que identifica a sua dinâmicaespecífica enquanto expressão de vi<strong>da</strong> racional 503 . To<strong>da</strong>via, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> sepropõe construir um itinerário mostrativo não tanto para a essência de Deus, mas para aproposição ‘deus existe’, não assumirá como ponto de parti<strong>da</strong> qualquer forma deraciocínio onde se expresse a essência <strong>da</strong> mente humana, mas antes o juízo no qual estaafirma a certeza sobre a sua própria existência. Esta distinção é, também ela, umartifício <strong>da</strong> razão augustiniana, que irá mostrar de que modo no juízo de existência estánecessariamente implicado o conhecimento <strong>da</strong> forma específica do ser humano.Paradigma desta análise <strong>da</strong> razão mediante a estrutura <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitivahumana é a argumentação exposta <strong>em</strong> De libero arbitrio, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> se propõeesclarecer o itinerário que a razão percorre para alcançar Deus, por meio de umprocesso que mostre a evidência racional <strong>da</strong> afirmação de que Ele existe. Ao fazê-lo,mais do que a existência de Deus, sobre a qual, para <strong>Agostinho</strong>, não recai nenhumadúvi<strong>da</strong>, torna-se clara a natureza <strong>da</strong> mente humana. Neste caso, in<strong>da</strong>gando sobre aestrutura unitária do acto cognitivo – a de uma multiplici<strong>da</strong>de que tende para a Uni<strong>da</strong>de–, Sto. <strong>Agostinho</strong> conclui que ela se sobrepõe à dinâmica intrínseca <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong>mente.Com efeito, o filósofo insiste que <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> acto cognitivo se manifesta a uni<strong>da</strong>de<strong>da</strong> forma humana, a qual congrega, antes de mais, os três domínios de reali<strong>da</strong>de que sedão diferencia<strong>da</strong>mente no Universo: ser, viver e entender. Este facto manifesta-se, desdelogo, na estrutura judicativa mais el<strong>em</strong>entar, aquela que t<strong>em</strong> como objecto peculiar aafirmação <strong>da</strong> própria existência 504 . Ora, uma análise do juízo de existência, tal comoSto. <strong>Agostinho</strong> o explana mormente <strong>em</strong> De libero arbitrio, é rica de consequências paraesclarecer a relação entre o funcionamento <strong>da</strong> razão e a noção de ord<strong>em</strong>, sendo estaúltima entendi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> apenas como ordenação ou hierarquia ontológica. Com efeito, aafirmação <strong>da</strong> consciência de si como a de uma existência dota<strong>da</strong> de razão é considera<strong>da</strong>por Sto. <strong>Agostinho</strong> como a primeira forma de juízo, cuja certeza é apreendi<strong>da</strong> pela503 Cf. DT X, III, 5; III-IV, 6 ( CCL 50, p. 317-318; p. 319-320).504 LA II, III, 7: " (…) Quare prius abs te quaero, ut de manifestissimis capiamus exordium, utrum tu ipsisis. An fortasse tu metuis ne in hac interrogatione fallaris, cumutique si non esses falli omnino nonposses. (…) » [ CCL 29, p. 239 (it. n.)]. Segue-se a inclusão dos actos de viver e pensar, na apreensãoimediata <strong>da</strong> evidência <strong>da</strong> própria existência. Sto. <strong>Agostinho</strong> considera uma ver<strong>da</strong>de inconcussa estaapreensão <strong>da</strong> existência humana como a de uma uni<strong>da</strong>de que congrega os três modos de ser. Por isso, arazão adere a ela com certeza inabalável.321


mente com evidência inconcussa 505 . Ora, sob que condição de possibili<strong>da</strong>de se dá umatal evidência?Para responder a esta questão, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita de mostrar que a Ver<strong>da</strong>deé inerente à estrutura do juízo humano, s<strong>em</strong> olvi<strong>da</strong>r que o exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>deraciocinante é a expressão efectiva <strong>da</strong> forma humana, enquanto existência dota<strong>da</strong> derazão. Para alcançar este objectivo, o Hiponense seguirá, antes de mais, por vianegativa, enfrentando o probl<strong>em</strong>a a partir de teses opostas e, portanto, esgrimindoargumentos que se pod<strong>em</strong> considerar, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, extrínsecos à proposta que querdestacar. Num segundo momento, o filósofo desenvolverá uma via construtiva, <strong>em</strong>particular através <strong>da</strong> análise do juízo existencial, que se pode resumir na proposição sciome esse. Num caso e noutro, a conclusão de <strong>Agostinho</strong> incide sobre este facto: aVer<strong>da</strong>de é condição necessária de todo o juízo humano, cuja expressão mais el<strong>em</strong>entar éa <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> própria existência. Por sua vez, esta proposição – scio me esse –, estáimplícita <strong>em</strong> to<strong>da</strong> e qualquer forma de raciocínio, independent<strong>em</strong>ente do valor dever<strong>da</strong>de que se lhe possa atribuir.Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que a certeza que a razão possui acerca <strong>da</strong> própriaexistência como forma de vi<strong>da</strong> racional é uma ver<strong>da</strong>de inconcussa. De facto, tal certezaé inerente à própria activi<strong>da</strong>de raciocinante, mesmo quando contradiz essa mesmaevidência, ou quando se engana no juízo que faz acerca de si própria, negando, nãotanto o facto de existir, mas a impossibili<strong>da</strong>de de afirmar, com clareza apodíctica, acerteza <strong>da</strong> sua existência. Ao duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> própria existência, a mente faz que umacondição subjectiva do pensar – neste caso, a dúvi<strong>da</strong> – atinja a dimensão mais radical doser, ou seja, o facto de existir. Ora, mesmo neste acto, niti<strong>da</strong>mente apartado <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>,se evidencia não apenas a certeza <strong>da</strong> existência própria, mas a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proposição‘existo como vi<strong>da</strong> racional’, s<strong>em</strong> a qual não seria possível o exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>deraciocinante <strong>em</strong> que consiste a própria formulação <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>.505 Sobre a noção augustiniana de conscientia v. sobretudo, os estudos de Salvino BIOLO, La coscienzanel "De Trinitate" di S. Agostino, Analecta Gregoriana 172 (Roma 1969) ; “Coscienza e conoscenza di séin s. Agostino” in L. ALICI (dir.), Interiorità e intenzionalità in S. Agostino. Atti del 1. e 2. S<strong>em</strong>inarioInternazionale del Centro di Studi Agostiniani di Perugia (Roma 1990) 75-86; “L’interiore testimonianzadel Tu assoluto in S. Agostino”: Doctor communis 39 (1986) 393-404; L’autoconscienza in S. Agostino(Roma ²2000). V., também, o artigo de Cornelio FABRO, “Coscienza e autocoscienza dell'anima”:Doctor communis 9 (1958) 97-123.322


Tal era, com efeito, o alcance <strong>da</strong> posição céptica, na sua formulação mais radical.Sto. <strong>Agostinho</strong> mostra, assim, que o carácter falível do juízo, argumento <strong>em</strong> que sesustentam os que consideram váli<strong>da</strong> a posição gnosiológica dos Académicos, nãodecorre <strong>da</strong> contingência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, mas <strong>da</strong> indigência <strong>da</strong> ratio, sendo este um factornotório para a compreensão <strong>da</strong> natureza desta noção e, portanto, um el<strong>em</strong>ento capitalpara esclarecer quer o lugar que o ser humano ocupa na hierarquia ontológica, quer omodo como se estabelece a relação entre a mente humana e a Ver<strong>da</strong>de 506 . Desta forma,é fácil entender a atitude combativa do Hiponense perante o cepticismo académico,<strong>da</strong>do que o filósofo sabe que, com base numa tal posição epist<strong>em</strong>ológica, não é possíveledificar qualquer discurso de carácter metafísico.No caso <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> certeza apodíctica do juízo de existência, o raciocínioexposto por Sto. <strong>Agostinho</strong> permite concluir que, tanto a falibili<strong>da</strong>de do juízo, como oestado de dúvi<strong>da</strong> enquanto afecção <strong>da</strong> mente, garant<strong>em</strong>, ain<strong>da</strong>, que a própria existênciaracional é o suporte do erro e <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>. Ao nível do conhecimento <strong>da</strong> própriaexistência, não é possível a dúvi<strong>da</strong> ou o erro. Com efeito, na afirmação augustinianascio me esse, é a certeza irrefragável <strong>da</strong> existência individual que suporta tanto a dúvi<strong>da</strong>,como o erro, a falsi<strong>da</strong>de, ou qualquer outro estado que venha a afectar os raciocínioselaborados pela razão humana individual. Este facto limita, inclusivamente, o alcancedessas proprie<strong>da</strong>des que pod<strong>em</strong> afectar o juízo humano. A dúvi<strong>da</strong>, o erro, a falsi<strong>da</strong>de ouquaisquer outras formas de manifestação <strong>da</strong> debili<strong>da</strong>de e contingência <strong>da</strong> razão humanaexist<strong>em</strong> como quali<strong>da</strong>des de uma razão que subsiste enquanto produtora de juízos econdição de possibili<strong>da</strong>de deles, independent<strong>em</strong>ente do valor de ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sproposições por ela enuncia<strong>da</strong>s. Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que, para que uma proposiçãoseja falsa, duvidosa ou errónea, é necessário, antes de mais, que a razão, que a produz,subsista, e, segui<strong>da</strong>mente, que a Ver<strong>da</strong>de, com a qual se afere a quali<strong>da</strong>de do juízo<strong>em</strong>itido, permaneça. Por isso, com vali<strong>da</strong>de estável e com alcance metafísico, encontrasesubjacente <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a forma de raciocínio, de modo inconcusso, a existência <strong>da</strong> razão,suporta<strong>da</strong> pela relação que essa quali<strong>da</strong>de humana estabelece com a Ver<strong>da</strong>de.506 De ciu. dei XI, XXVI: " (...) Nulla in his ueris Acad<strong>em</strong>icorum argumenta formido dicentium: Quid sifalleris? Si enim fallor, sum. Nam qui non est utique nec falli potest; ac per hoc sum si fallor. Quia ergosum si fallor, quo modo esse me fallor, quando certum est me esse, si fallor? Quia igitur ess<strong>em</strong> quifallerer, etiamsi fallerer, procul dubio in eo, quod me noui esse, non fallor (...)." (CCL 48, p. 345-346). Adedução <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong> própria existência a partir <strong>da</strong> falibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão é também o argumentode LA II, III, 7 ( CCL 29, p. 239-240).323


Ao afirmar que a certeza <strong>da</strong> própria existência é o suporte de to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>dejudicativa, Sto. <strong>Agostinho</strong> atrai sobre esta proposição um primeiro nível de ver<strong>da</strong>de: o<strong>da</strong> certeza subjectiva. Esta concepção de ver<strong>da</strong>de está já implícita nas discussões dofilósofo a propósito <strong>da</strong> relação entre ratio e scientia. Com efeito, na sua expressão maissimples, tal investigação in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong> relação entre a ratio, proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, eum acto peculiar <strong>da</strong> mesma: scire. Porém, a ver<strong>da</strong>de inerente ao juízo de existência - seique existo/ vivo/ penso - é meramente factual, contingente. Na reali<strong>da</strong>de, ela apenasabrange um domínio de conhecimento existencial, individual, fruto <strong>da</strong> experiênciainterna que o ser racional faz de si próprio. Até certo ponto, tal conhecimento cinge-seao domínio de uma experiência incomunicável, subjectiva. Para que ela se converta numconhecimento digno de aprovação universal, necessita de transitar desde esse âmbitopróprio para o domínio comum, atingindo um horizonte de universali<strong>da</strong>de. Ora, como oHiponense afirma claramente <strong>em</strong> De trinitate, tal só é possível operando uma distinçãoentre a certeza <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do juízo existencial e a própria Ver<strong>da</strong>de, que é garantia dessacerteza 507 . Quando a razão humana t<strong>em</strong> de si mesma o conhecimento de uma existênciaracional, que existe e vive, tal conhecimento é, efectivamente, distinto <strong>da</strong>quele que amente t<strong>em</strong> acerca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, que é norma, absoluta e universal, de todo o juízo. Pormeio deste Princípio Supr<strong>em</strong>o, o ser que sabe que vive pode definir aquilo que elepróprio é - um ser racional dotado de razão -, e não apenas afirmar que existe.É assim que Sto. <strong>Agostinho</strong> opera a passag<strong>em</strong> de um conhecimento que serestringe ao domínio próprio <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> indubitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria existência,para um outro, de domínio comum, que proclama a existência, necessária e universal, <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de. Com efeito, de outro modo não seria legítimo o procedimento mediante o qual<strong>Agostinho</strong> deduz a ver<strong>da</strong>de de qualquer proposição a partir de uma afirmação<strong>em</strong>brionária <strong>da</strong> razão, a saber, a <strong>da</strong> própria existência pensante. Todo o itinerário <strong>da</strong>razão a fim de mostrar a Ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proposição ‘deus existe’ mais não é do que oglossário desta intuição primeira, inerente ao juízo de existência. Por isso, a Ver<strong>da</strong>denão será apresenta<strong>da</strong> pelo filósofo como uma criação do espírito, n<strong>em</strong> como uma507 DT IX, VI, 9 : " Sed cum se ipsam nouit humana mens et amat se ipsam, non aliquid incommutabilenouit et amat. Aliterque unusquisque homo loquendo enuntiat ment<strong>em</strong> suam, quid in se ipso agaturattendens; aliter aut<strong>em</strong> humanam ment<strong>em</strong> speciali aut generali cognitione definit. Itaque cum mihi de suapropria loquitur, utrum intelligat hoc aut illud, an non intelligat, et utrum uelit, an nolit hoc aut illud,credo: cum uero de humana specialiter aut generaliter uerum dicit, agnosco et approbo." [ CCL 50, p. 301( it.n.)].324


dedução <strong>da</strong> razão, mas como uma descoberta que a mente humana faz, <strong>da</strong>quilo que,afinal, desde s<strong>em</strong>pre esteve presente no interior dela. Para aceder a esta descoberta, arazão apenas necessitou <strong>da</strong> d<strong>em</strong>ora do raciocínio.Para <strong>Agostinho</strong>, a Ver<strong>da</strong>de existe necessariamente, com uma existência mais certado que aquela que a razão possui quando percepciona a própria existência, de tal modoque, negando a existência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, negar-se-ia, nesse mesmo acto, a expressão maisel<strong>em</strong>entar de conhecimento, aquele que o ser humano t<strong>em</strong> <strong>da</strong> sua própria existência,inviabilizando o próprio acto de pensar. Ora, se, como afirma <strong>em</strong> De ordine, <strong>Agostinho</strong>considera que a causa do desconhecimento <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e <strong>da</strong>impossibili<strong>da</strong>de de encontrar uma articulação para as contradições que derivam <strong>da</strong>aparente existência do mal é a ignorância que a alma t<strong>em</strong> acerca de si própria, uma veznega<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de de auto gnose torna-se inviável equacionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Ao analisar as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> razão, <strong>Agostinho</strong> afirma que, no exercício <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de judicativa, o ser humano se experimenta a si mesmo, de modo imediato,como um ser onde coexist<strong>em</strong> a existência, a vi<strong>da</strong> e a racionali<strong>da</strong>de. A partir destaprimeira evidência, o filósofo deduz o conhecimento que o ser humano adquire acerca<strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua forma sobre as d<strong>em</strong>ais. Ante esta postura do Hiponense, cabe,to<strong>da</strong>via, uma pergunta simples: por que razão estes dois conhecimentos – o <strong>da</strong> própriaexistência e o <strong>da</strong> integração na hierarquia ontológica – se alcançam <strong>em</strong> íntima uni<strong>da</strong>de ecom a mesma evidência? Dito de outro modo, por que motivo Sto. <strong>Agostinho</strong> propõeque o ser humano conheça o modo como está ordenado de acordo consigo próprio,reconhecendo o lugar que ocupa no universo, a partir de uma análise <strong>da</strong> mente humanae, <strong>em</strong> concreto, <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitiva? De modo chão, quais as proprie<strong>da</strong>de atribuí<strong>da</strong>spor Sto. <strong>Agostinho</strong> à cognição humana, que lhe permit<strong>em</strong> descortinar <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> acto dejulgar, de modo implícito e imediato, o lugar que ca<strong>da</strong> ser ocupa na ord<strong>em</strong>?Como resposta a estas questões é possível identificar, na obra do Hiponense, doisel<strong>em</strong>entos. Por um lado, a apologia <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> diferença, como proprie<strong>da</strong>deinerente a ca<strong>da</strong> acto humano de percepção. Por outro - e como consequência directadeste primeiro aspecto -, a insistência, por parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, na estruturação <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de judicativa humana sob forma axiológica, permitindo concluir a dimensãointrinsecamente valorativa de todo o juízo.Com efeito, o modelo augustiniano de investigação acerca <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des supernas– na posse <strong>da</strong>s quais o Hiponense colocou o terminus ad qu<strong>em</strong> <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de filosófica –325


é, de modo habitual, pautado pela in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong>quilo que é melhor. Édireccionando a atenção para o melhor, para a reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a - acto que o espíritohumano realiza naturalmente, <strong>em</strong> função do princípio <strong>da</strong> intentio animi -, que, pordefeito, se determinam as reali<strong>da</strong>des que, na hierarquia ontológica, ocupam os níveisinferior e médio.Esta tendência, por parte de <strong>Agostinho</strong>, a in<strong>da</strong>gar acerca do melhor verifica-selogo nos primeiros Diálogos e prende-se com o ideal de sabedoria transmitido pelaAntigui<strong>da</strong>de 508 . O sábio é o hom<strong>em</strong> que possui excelentes virtudes, aquele que faz quenele reine o que nele excele, a saber, a ratio, e que, como resultado, possui a beata uita.Ora, a dificul<strong>da</strong>de está <strong>em</strong> definir <strong>em</strong> que consiste o melhor. Os ueteres fizeram incidir,as mais <strong>da</strong>s vezes, este término <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do sábio no reinado de uma razão pura,concebi<strong>da</strong> como aquela na qual não se imiscui, <strong>em</strong> absoluto, qualquer nível de reali<strong>da</strong>deimerso na matéria. Esta é a proposta de to<strong>da</strong>s as gnoses, mormente as de filiaçãoneoplatónica, que Sto. <strong>Agostinho</strong> conhece de perto e que, logo <strong>em</strong> De ordine, reconduzà aporia 509 . Já o estoicismo, concedendo o primado a uma certa razão prática, porquecentra<strong>da</strong> no exercício <strong>da</strong>s virtudes cardeais, não deixa de combater to<strong>da</strong> a interferênciaque o corpo possa exercer sobre a vi<strong>da</strong> do sábio, afinando o discurso sobre as paixõesque a alma possa sofrer e insistindo <strong>em</strong> que to<strong>da</strong>s elas dev<strong>em</strong> ser arre<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dosábio 510 .Objecto último de reflexão de to<strong>da</strong>s estas concepções do mundo é, precisamente, aidentificação do conteúdo <strong>da</strong> ideia de optimus, expressão superlativa mais feliz do que asimples designação de B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o ou de Fim último do ser humano, <strong>da</strong>do que, comaquela primeira, torna-se imediatamente visível a necessi<strong>da</strong>de de qualificar o real paradiscernir <strong>em</strong> que consiste o Summum Bonum. Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebeu-se deste factocom to<strong>da</strong> a clarividência. Por isso, inscreve a noção de ord<strong>em</strong> como parte inerente <strong>da</strong>508 V., v. gr., CA I, II, 5: " (…) - Quid censes, inquam, esse aliud beate uiuere nisi secundum id quod inhomine optimum est uiuere? - T<strong>em</strong>ere, inquit [ Trygetius ], uerba non fun<strong>da</strong>m; nam id ipsum optimumquid sit, definiendum mihi abs te puto. - Quis, inquam, dubitauerit nihil esse aliud hominis optimumquam eam part<strong>em</strong> animi, cui dominanti opt<strong>em</strong>perare conuenit cetera quaeque in homine sunt? (…) Quodsi tibi non uidetur, quaere quomodo ipse definias uel beatam uitam uel hominis optimum." ( CCL 29, p.6).509 Cf., v. gr. DO II, II, 4-7; III, 8-10 ( CCL 29, p. 109-110; p. 111- 113).510 Cf. De ciu. dei IX, IV. Sto <strong>Agostinho</strong> resume, não s<strong>em</strong> alguma ironia, o relato de Aulo Gélio, <strong>em</strong>Noctes Atticae, onde se reflecte o modo como um reputado filósofo estóico, confrontado com o perigo d<strong>em</strong>orte <strong>em</strong>inente por naufrágio, li<strong>da</strong> com as pertubationes animae.326


activi<strong>da</strong>de judicativa, mais ain<strong>da</strong>, como proprie<strong>da</strong>de indissociável <strong>da</strong> própria ratio oumens. A exposição do filósofo sobre o conteúdo <strong>da</strong> noção de optimus resulta, porconseguinte, de uma longa maturação, começando a esclarecer-se <strong>em</strong> De libero arbitrio,obra na qual, não obstante ficar por eluci<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a riqueza de conteúdo <strong>da</strong> ideia deSummum Bonum, tal conceito é deduzido com base na activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão e por aferição<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de principal <strong>da</strong> ratio, quando contrasta<strong>da</strong> com os d<strong>em</strong>ais níveis dereali<strong>da</strong>de 511 . Do longo excurso elaborado por Sto. <strong>Agostinho</strong> a este propósito noreferido escrito 512 deduz-se, antes de mais, que a activi<strong>da</strong>de racional não se exerce s<strong>em</strong> apercepção <strong>da</strong> diferença, quer percepciona<strong>da</strong> verticalmente, pela atenção à disposiçãogradual dos seres numa hierarquia, quer concebi<strong>da</strong> horizontalmente, pela atenção àidenti<strong>da</strong>de de uma outra forma que, não obstante partilhar o mesmo grau de ser, épercepciona<strong>da</strong> como uma alteri<strong>da</strong>de real 513 .Na reali<strong>da</strong>de, o juízo pelo qual a razão evidencia a existência de si é indissociáveldo conhecimento de um aspecto <strong>da</strong> essência dela: o facto de residir num ser vivente.Ora, este reconhecimento só é possível por meio de uma percepção <strong>da</strong>s três formas deexistência envolvi<strong>da</strong>s nesse juízo – esse, uiuere, intellegere. Por seu turno, estaevidência implícita, encontra<strong>da</strong> no juízo de existência, é comprova<strong>da</strong> tambémadventiciamente, na apreensão, mediante a relação entre os corporalia e os órgãos dossentidos, dos diferentes modos de ser: o <strong>da</strong>s pedras, que apenas são, o dos animais, quesão e viv<strong>em</strong>, e, por último, o dos racionais, que reún<strong>em</strong> as três perfeições – ser, viver eentender 514 . Assim, quer por meio <strong>da</strong> percepção de reali<strong>da</strong>des corpóreas, quer através do511 LA II, III, 7 : " (augustinus) Quid in his tribus [ esse, uiuere, intellegere ] tibi uidetur excellere ? (...)Cur tibi hoc uidetur? (euodius) Quia cum tria sint haec, esse uiuere intellegere, et lapis est et pecus uiuit,nec tamen lapid<strong>em</strong> puto uiuere aut pecus intellegere; qui aut<strong>em</strong> intellegit, eum et esse et uiuerecertissimum est (…)." (CCL 29, p. 240).512 Cf. LA II, III, 7- II, XV, 39 ( CCL 29, p. 239-264).513 A sensibili<strong>da</strong>de augustiniana ao enigma <strong>da</strong> diferença quando considera<strong>da</strong> no mesmo grau de ser, ouseja, à reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, pode verificar-se na agudeza com que analisa, <strong>em</strong> De libero arbitrio, ohomicídio <strong>em</strong> legítima defesa, ou o caso <strong>da</strong> designa<strong>da</strong> ‘guerra justa’, não sendo esta mais do que umaforma complexa e alarga<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela primeira espécie de homicídio. Se é ver<strong>da</strong>de que ambas as reali<strong>da</strong>dessão lícitas, to<strong>da</strong>via elas não são justas, <strong>da</strong>do que o outro, envolvido nesta relação belicosa, constituindo-secomo alteri<strong>da</strong>de real, possui idêntico valor na hierarquia ontológica (cf. LA I, V, 11-13: CCL 29, p. 217-219).514 Sto. <strong>Agostinho</strong> parte de um princípio de integração hierárquico, que implica a convergência de trêsdomínios de ser numa única reali<strong>da</strong>de, a mente humana, segundo uma dinâmica de327


conhecimento implícito que a mente humana t<strong>em</strong> de si mesma, ela toma consciência <strong>da</strong>sua superiori<strong>da</strong>de, aferindo a sua natureza com a dos seres que apenas são, com a<strong>da</strong>queles que são e viv<strong>em</strong>, ou com o próprio exercício <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de racional. Porconseguinte, a percepção <strong>da</strong> diferença entre os graus de ser – ou seja, a compreensão <strong>da</strong>ordenação do universo - é indissociável do conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de si mesma.Este facto denota que a percepção <strong>da</strong> diferença, uni<strong>da</strong>, neste caso, à diversi<strong>da</strong>de e àmultiplici<strong>da</strong>de, é inerente e indispensável no processo de auto gnose.Sto. <strong>Agostinho</strong> introduz, assim, o factor diferença na essência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> racional e<strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de dela. Este passo é decisivo na compreensão <strong>da</strong> noção augustiniana deord<strong>em</strong> e irá manifestar-se <strong>em</strong> distintos níveis na dinâmica que o Hiponense imprimeàquela noção e nos variados domínios de compreensão que a análise dessa reali<strong>da</strong>depermite abarcar. Por ora, a diferença associa-se à disposição hierárquica dos seres,escalona<strong>da</strong> <strong>em</strong> graus de maior ou menor perfeição, sendo o critério de superiori<strong>da</strong>deaferido pelo princípio de universali<strong>da</strong>de ou de comuni<strong>da</strong>de que ca<strong>da</strong> grau possa abarcarno seu âmbito próprio de activi<strong>da</strong>de. Mas, ao analisar a natureza dinâmica <strong>da</strong> própriamente humana no conjunto <strong>da</strong>s funções que a caracterizam, a diferença será entendi<strong>da</strong>pelo filósofo como uma quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria natureza <strong>da</strong> mente, tornando-se ain<strong>da</strong> maisclaro o modo como, numa mesma substância – a mens rationalis – a interacção <strong>da</strong>diferença concorre para uma ca<strong>da</strong> vez maior uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> si mesma e com oPrincípio Supr<strong>em</strong>o com que radicalmente se relaciona.Aparent<strong>em</strong>ente, o facto de chegar ao conhecimento, não tanto <strong>da</strong> própriaexistência, mas <strong>da</strong> forma do ser humano mediante a percepção <strong>da</strong> diferença do seu graude ser por contraste com as d<strong>em</strong>ais formas de existência, introduz o carácter espúrio naactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão, se é ver<strong>da</strong>de que a diferença de graus é percebi<strong>da</strong> pela mente,quando esta verifica, através <strong>da</strong> sensação, que exist<strong>em</strong> outras formas de ser. Porém,contra esta objecção cab<strong>em</strong> duas observações. Por um lado, as representaçõesextensão/compreensão. O ser superior integrará, portanto, as perfeições <strong>da</strong>queles que lhe estãosubordinados: a vi<strong>da</strong> racional contém as d<strong>em</strong>ais formas de vi<strong>da</strong>, inferiores, e, entre elas, também aexistência, que é proprie<strong>da</strong>de comum a to<strong>da</strong>s as formas. Assim, o grau esse é mais universal <strong>em</strong> extensão,enquanto o grau intellegere o é <strong>em</strong> compreensão. Ora, a compreensão é preferível à extensão. Fora estadescoberta que permitira a Sto. <strong>Agostinho</strong> libertar-se do dualismo maniqueísta. Por isso, ao adoptar comoeixo <strong>da</strong> sua metafísica o desiderato nouerim Te, nouerim me, Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe que não exclui, do seuhorizonte de compreensão, nenhuma forma de vi<strong>da</strong> ou de existência, mas, inversamente, abrange to<strong>da</strong>selas desde a perspectiva mais ampla e omnicompreensiva.328


adventícias não são, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a via exclusiva que conduz a mente àpercepção <strong>da</strong> diferença, a qual já está presente naquela forma el<strong>em</strong>entar de juízomediante o qual a mente afirma, de modo inconcusso, a sua própria existência. Poroutro lado, a concepção augustiniana <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de sensível do ser humano manifestaque ela é já inteiramente assumi<strong>da</strong> pela alma racional.Sto. <strong>Agostinho</strong> esclarece aquele primeiro aspecto quando, <strong>em</strong> De trinitate, expõe omodo como entende este conhecimento que a alma t<strong>em</strong> de si própria. Antes de avançarpara a descoberta de si, o Hiponense detém-se a reflectir sobre o facto de a alma possuir,necessariamente, um conhecimento implícito de si mesma. Para a mente, saber que vivee que é racional são dois conteúdos cognitivos implícitos no seio <strong>da</strong> própriaracionali<strong>da</strong>de, quando esta se propõe investigar acerca de qualquer reali<strong>da</strong>de e, de modopeculiar, acerca de si mesma 515 . Por sua vez, atendendo à concepção augustiniana desensação, verifica-se que a própria activi<strong>da</strong>de sensível, no ser humano, está já imbuí<strong>da</strong>de racionali<strong>da</strong>de e é assumi<strong>da</strong> por ela. Nesta medi<strong>da</strong>, não obstante o conhecimento de sipor meio <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> diferença se realizar através <strong>da</strong> percepção de reali<strong>da</strong>desadventícias à alma, esse facto não é senão aparente. Com efeito, no excursodireccionado para a captação <strong>da</strong> ideia óptima, tal como é apresentado por Sto.<strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> De libero arbitrio, o ponto de parti<strong>da</strong> de análise não é o modo de ser <strong>da</strong>spedras ou dos animais, mas o fenómeno <strong>da</strong> sensação, a fim de, por meio deste, seconquistar progressivamente, mediante a razão, a distinção entre el<strong>em</strong>entos próprios ecomuns, particulares e colectivos, públicos ou privados, no interior <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>decognitiva. <strong>Ser</strong>á a partir desta distinção que Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrará o critério deaferição <strong>da</strong>s condições de universali<strong>da</strong>de de qualquer noção <strong>da</strong> mente.Porém, antes de avaliar a fecundi<strong>da</strong>de do par conceptual commune/ proprium, noesclarecimento <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>, cabe notar que a activi<strong>da</strong>de noética depercepção de si mediante a diferença, característica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de augustiniana,permite verificar que a percepção do ser como valor é, para o Hiponense, inerente à515 Cf. DT X, IV, 6 ( CCL 50, p. 319-320). Sto. <strong>Agostinho</strong> aduz argumentos a favor do conhecimentoimplícito <strong>da</strong> alma por si mesma, condição de possibili<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a auto-gnose. Como iria a mente <strong>em</strong>busca de se conhecer, se totalmente a si mesma se ignorasse e se não tivesse, de si mesma, qualquernotícia? Esta, para ser de si mesma, e não de uma reali<strong>da</strong>de outra, só pode provir do interior <strong>da</strong> mente.Sto. <strong>Agostinho</strong> reitera que é no acto de saber que vive e pensa que se inscreve esse auto conhecimentoimplícito. Em DT IX, V, 8, por seu turno, tal conhecimento está associado à ideia de notitia sui,expressando-se na trilogia mens, amor, notitia ( CCL 50, p. 300).329


activi<strong>da</strong>de racional e, portanto, à essência do ser humano, precisamente porque naperspectiva do filósofo to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de é capta<strong>da</strong> comparativamente. A razão humanapercebe s<strong>em</strong>pre uma <strong>da</strong><strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de integra<strong>da</strong> numa Totali<strong>da</strong>de, onde as multiformesexpressões de ser estão dispostas hierarquicamente. Assim, uma reali<strong>da</strong>de concreta és<strong>em</strong>pre percepciona<strong>da</strong> como melhor ou pior do que outra. Isto significa que amundividência augustiniana indissocia <strong>da</strong> forma de ca<strong>da</strong> existência o factor quali<strong>da</strong>de.Em tal contexto, o ser, proprie<strong>da</strong>de radical de to<strong>da</strong>s as formas de existência, distribui-sediferencia<strong>da</strong> e gradualmente, e é deste modo que a mente humana o percepciona. Comefeito, para o Hiponense, a condição última do real, que justifica que a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>razão seja a predicação axiológica, é, precisamente, a noção óptima, identifica<strong>da</strong> pelofilósofo com a Ver<strong>da</strong>de 516 .Por conseguinte, na perspectiva augustiniana, pode atribuir-se à forma <strong>da</strong>s coisas adisposição gradual delas e identificar este facto, de carácter ôntico, segundo o qual ca<strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de possui uma forma própria, como sendo o responsável por afectarintrinsecamente a activi<strong>da</strong>de racional com o factor diferença. Por seu turno, a Ver<strong>da</strong>deassumiria a seu cargo a causali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> condição essencialmente valorativa do juízohumano, mesmo quando este não arroga explicitamente tal formulação. Porém, Sto.<strong>Agostinho</strong> atribui à Ver<strong>da</strong>de a responsabili<strong>da</strong>de por ambos os factos, inviabilizandouma distinção entre um plano gnosiológico e outro, ontológico. Tanto a modelação <strong>da</strong>forma de um ente como a condição axiológica do juízo têm a Ver<strong>da</strong>de como princípio ecausa eficiente. Ora, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, quer a forma de um ente, quer a percepção dele,se dão mediante a diferença e a valoração dele na hierarquia ontológica, a ideia deord<strong>em</strong> afecta a estrutura interna <strong>da</strong> razão humana. Desde esta perspectiva, a axiologiaatinge, também, nível ontológico.To<strong>da</strong>via, ao propor como ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> via de acesso à Ver<strong>da</strong>de a evidênciaapodíctica do conhecimento de si mesmo como ser vivo racional, obti<strong>da</strong> no juízo deexistência, Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe que enfrenta, entre outras, a dificul<strong>da</strong>de de legitimarracionalmente a dedução do Universal a partir de um el<strong>em</strong>ento de máximaindividuali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> que consiste, precisamente, a experiência <strong>da</strong> própria existência,neste caso, a <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dota<strong>da</strong> de razão.516 Entre inúmeros trechos <strong>da</strong> obra augustiniana onde esta afirmação t<strong>em</strong> plena vali<strong>da</strong>de, recorde-se umpasso de DT VIII, III, 4, particularmente esclarecedor a este propósito: “ (...) Neque enim in his omnibusbonis (...) dicer<strong>em</strong>us aliud alio melius, cum uere iudic<strong>em</strong>us, nisi esset nobis impressa notio ipsius boni,secundum quod et probar<strong>em</strong>us aliquid, et aliud alii praeponer<strong>em</strong>us (...).” ( CCL 50, p. 272 : it.n.).330


É um facto que os el<strong>em</strong>entos já avançados – a afirmação do conhecimentoimplícito de si, inerente ao exercício <strong>da</strong> razão, e a condição apriorística <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de –contribu<strong>em</strong> para salvaguar<strong>da</strong>r a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> metodologia augustiniana. Contudo, taisprincípios não esclarec<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> sofrivelmente a natureza intencional <strong>da</strong> mente humana,ou seja, o modo como, efectivamente, se estabelece a relação entre a razão e a Ver<strong>da</strong>de.De que modo se pode obter universali<strong>da</strong>de a partir de uma análise <strong>da</strong> razão que sefun<strong>da</strong>menta naquilo que ela mais t<strong>em</strong> de individual e próprio, a saber, o juízo no qualdeclara como certa a verificação <strong>da</strong> sua própria existência? Se tal enunciado exige arelação entre a razão e a ver<strong>da</strong>de proclama<strong>da</strong>, qual o modelo de relação que estásubjacente a esta proposta: a identi<strong>da</strong>de, a diferença absoluta, a geração, a produção?Para esclarecer o tipo de relação que Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe para a estrutura <strong>da</strong>razão humana e para mostrar como, a partir do singular, se descobre, mediante areflexão <strong>da</strong> razão sobre si mesma, o universal, conjugando-os numa única menteracional, o Hiponense serve-se de um par conceptual de amplo espectro no interior <strong>da</strong>sua obra, e de profun<strong>da</strong> eficácia no esclarecimento <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>. Trata-se <strong>da</strong>distinção entre domínios de activi<strong>da</strong>de próprios e comuns. G. Madec, na entra<strong>da</strong>respectiva para Augustinus-Lexikon, referencia, brev<strong>em</strong>ente, o <strong>em</strong>prego deste parconceptual na obra do Hiponense 517 . Porém, este perito ultrapassa com d<strong>em</strong>asia<strong>da</strong>celeri<strong>da</strong>de a importância deste binómio no esclarecimento <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> mensaugustiniana, não evidenciando a estreita conexão que Sto. <strong>Agostinho</strong> estabelece entreos diversos domínios de reali<strong>da</strong>de onde faz uso dessa distinção que Madec designa porlugar-comum <strong>da</strong> filosofia augustiniana.É um facto que este cliché se encontra quando <strong>Agostinho</strong> se refere a domínios dereali<strong>da</strong>de tão diversificados como a estrutura <strong>da</strong> razão, o exercício <strong>da</strong> vontade, a gestão<strong>da</strong> república ou a construção de vi<strong>da</strong> comunitária, não assumindo este ror de referênciasqualquer pretensão de exaustivi<strong>da</strong>de. Ao utilizá-lo para esclarecer a especifici<strong>da</strong>de doser humano e o lugar que, enquanto expressão de vi<strong>da</strong> racional, ele ocupa na hierarquiaontológica, o Hiponense fá-lo precisamente investigando a partir <strong>da</strong> razão quais osel<strong>em</strong>entos que, estando nela, lhe são inferiores, e aqueles outros que, igualmente tendonela a sua sede, a superam. A mente humana encontra-se, assim, desde logo, numa517 « Ce couple forme une sorte de lieu commun augustinien, un schéma de pensée où des observationsélémentaires concernant la pérception sensible se combinent à des réflexions sur l'universel, le tout qu'estle ✂ néoplatonicien »: G. MADEC, in Augustinus-Lexikon. Vol. 1, Fasc. 7/8 "Communeproprium", c. 1079.331


situação de mediania, na hierarquia ontológica. Ela possui el<strong>em</strong>entos comuns aos seresque lhe são inferiores, e Sto. <strong>Agostinho</strong> analisa-os ao estu<strong>da</strong>r o domínio <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>dehumana. Porém, precisamente porque a razão t<strong>em</strong> conhecimento destes el<strong>em</strong>entos, elesestão assumidos, no ser humano, por uma reali<strong>da</strong>de superior, à qual se dev<strong>em</strong> submeter,para que, nesta forma de ser, a ord<strong>em</strong> se realize.Ficam, assim, delineados os el<strong>em</strong>entos fun<strong>da</strong>mentais para compreender aconcepção augustiniana de mens ordinata ou <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> intrínseca à dinâmica do cogitoaugustiniano. O ser humano, para realizar a sua existência de modo ordenado, isto é,para se aperfeiçoar de acordo com o lugar que ocupa na hierarquia ontológica, deverásubmeter todo o indício de reali<strong>da</strong>de, captado pela alma e recebido pelo corpo, àquiloque lhe dita a mente racional. Nesta perspectiva, obter-se-ia uma assimilação, por partede <strong>Agostinho</strong>, do ideal de sábio promulgado pelas escolas filosóficas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de. Ohom<strong>em</strong> sábio, submetendo as paixões ao domínio <strong>da</strong> razão, será virtuoso, a sua vi<strong>da</strong>decorrerá de forma pacata e feliz e poder-se-lhe-á confiar o governo <strong>da</strong> república.Porém, se esta noção de sabedoria não deixa de fazer parte do horizonte mental de<strong>Agostinho</strong> que, neste aspecto, se manifesta claramente filho do seu t<strong>em</strong>po, oscondimentos que t<strong>em</strong>peram tal concepção vão alterar-se substancialmente.É um facto que, ao adoptar o modelo neoplatónico dos três graus de ser comoforma de ascese <strong>da</strong> razão para o Uno, Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixa de partilhar, com aquelaconcepção do mundo, a ideia de uma convergência de todos os graus de ser no modo deser humano, a qual, por si só, <strong>da</strong>ria conta <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma humana. Porém, osconteúdos <strong>da</strong> razão serão submetidos a uma análise rigorosa, por parte de <strong>Agostinho</strong>.Paulatina e subtilmente, verificar-se-á um afastamento, por parte do Hiponense,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> relação aos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> mundividência neoplatónica.Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que a razão, ao reflectir sobre si mesma, se depara comum conjunto de el<strong>em</strong>entos que a relacionam com o mundo dos corpos e que lhe advêmmediante os órgãos corpóreos. O efeito desta activi<strong>da</strong>de é designado por sensação.Como ficou dito, mesmo neste nível de percepção, está <strong>em</strong> causa uma acção <strong>da</strong> razãosobre um el<strong>em</strong>ento apreendido por ela própria. Neste acto se constitui a natureza <strong>da</strong>sensação, enquanto activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão que atende ao <strong>em</strong>bate sofrido, nos órgãos docorpo, por alguma reali<strong>da</strong>de, também corpórea. Assim, mesmo no domínio <strong>da</strong>percepção sensível, pode falar-se de uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão no exercício <strong>da</strong>intencionali<strong>da</strong>de que a caracteriza.332


Por isso, nesta activi<strong>da</strong>de, que resulta de uma inclinação <strong>da</strong> razão sobre ainformação recebi<strong>da</strong> mediante os sensibilia, a própria razão obtém já um certoconhecimento acerca de si mesma. Ao compreender a estrutura <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de sensível, arazão adquire, por um lado, o conhecimento <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de que lhecorresponde, <strong>em</strong> relação a todo o domínio de reali<strong>da</strong>des materiais e corpóreasexperimenta<strong>da</strong>s. Por outro lado, de modo paulatino, o critério de superiori<strong>da</strong>de vai-seimpondo como el<strong>em</strong>ento indicador do fim ao qual a própria razão deve tender, pararealizar a forma específica do ser humano. Assim, na complexi<strong>da</strong>de de el<strong>em</strong>entos quecompõ<strong>em</strong> a activi<strong>da</strong>de humana, a percepção <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão no confrontocom as d<strong>em</strong>ais formas de existência permite-lhe compreender que é melhor todo aqueleprincípio de activi<strong>da</strong>de que, afastando-se de uma apropriação do real, que o reduz aodomínio particular, deixa intacto o b<strong>em</strong> comum. Por sua vez, a percepção de quais osel<strong>em</strong>entos que se pod<strong>em</strong> designar por comuns identifica-se gradualmente, pela aplicaçãodo binómio commune/ proprium, quer ao domínio de activi<strong>da</strong>de sensível 518 , quer aodomínio <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de especificamente racional 519 .Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, na aplicação deste par conceptual, está <strong>em</strong> causa analisar doisníveis de intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão. Um primeiro verifica-se na tendência destaquali<strong>da</strong>de humana para as afecções recebi<strong>da</strong>s no contacto com os corpos, ao passo queum outro se identifica na tendência dela às reali<strong>da</strong>des de natureza puramente inteligível,<strong>da</strong>s quais a razão faz uso, mormente na atenção que presta à busca do saber, sendo est<strong>em</strong>ovimento concretizado na tarefa <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>.No que se refere à activi<strong>da</strong>de sensível – e para além <strong>da</strong> clara intenção de<strong>Agostinho</strong> de delimitar fronteiras entre o domínio de vi<strong>da</strong> animal e o <strong>da</strong> racional 520 –, a518 Tome-se como paradigmática a análise <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de humana, exposta <strong>em</strong> LA II, a qualse completa com os el<strong>em</strong>entos expostos <strong>em</strong> De musica VI.519 Assuma-se como paradigma a análise <strong>da</strong>s noções de Uni<strong>da</strong>de e Sabedoria, expostas <strong>em</strong> LA II.520 Em LA I, esta fronteira ficou esboça<strong>da</strong>. Mas, v. gr, <strong>em</strong> De quant. anim. XXVIII, 54, a discussão volta aincidir sobre a capaci<strong>da</strong>de cognitiva dos animais irracionais, recorrendo ao caso <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória fiel,manifesta<strong>da</strong> pelo cão de Ulisses, após a longa ausência do seu dono ( CSEL 89, p. 200-201). Sto.<strong>Agostinho</strong> insiste no facto de não haver conhecimento, no caso dos animais. Em LA III volta a discutir atéque ponto se pode falar de sofrimento, quando se trata <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> animal desprovi<strong>da</strong> de razão. To<strong>da</strong>s estasaltercações têm <strong>em</strong> vista d<strong>em</strong>arcar claramente a fronteira entre aquilo que é próprio do ser humano eaquilo que lhe é alheio, para centrar a análise ca<strong>da</strong> vez mais no objectivo primordial: compreender arelação entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e o ser humano. Porém, paralelamente, Sto. <strong>Agostinho</strong> vai tecendo críticas aoutras concepções do mundo que confer<strong>em</strong> primado, na hierarquia ontológica, por ex<strong>em</strong>plo, aos vegetais,333


aplicação do binómio commune/proprium atribui superiori<strong>da</strong>de à visão e audição, entreos órgãos <strong>da</strong> sensação, pelo facto de, no contacto com as reali<strong>da</strong>des corpóreas, ambas asactivi<strong>da</strong>des ser<strong>em</strong> as que menos contribu<strong>em</strong> para a corrupção dos corporalia, deixandoos,por isso, ao alcance de um maior número de utentes. Excursos desta natureza,copiosos na obra do Hiponense, têm, com frequência, uma função propedêutica. O seuobjectivo é preparar o espírito para compreender que, de modo análogo ao que sucedenos graus inferiores de existência, nos quais também o ser humano participa – onde avi<strong>da</strong> é percebi<strong>da</strong> mediante a activi<strong>da</strong>de reflexa <strong>da</strong> razão, sendo um facto que esta seexerce, simultânea e indissociavelmente, <strong>em</strong> contacto com uma comuni<strong>da</strong>de de bensque, não obstante transcender<strong>em</strong> a activi<strong>da</strong>de própria, são condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>mesma –, assim também, no interior <strong>da</strong> mente, se pode detectar esta activi<strong>da</strong>de reflexa<strong>da</strong> razão, que se auto conhece e, simultaneamente, nesse processo, estabelece relaçãocom uma comuni<strong>da</strong>de de bens, de carácter inteligível, comuns e disponíveis a todos osseres dotados de razão. Tais bens condicionam o exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> menteindividual, não obstante a transcender<strong>em</strong>.É à luz deste confronto entre reali<strong>da</strong>des inferiores e superiores à mente que Sto.<strong>Agostinho</strong> discorre, a fim de tornar manifesta, mediante a razão, a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>proposição ‘Deus existe’. Contudo, antes de proceder a essa análise, importa salientarque é precisamente com base na analogia de quanto se passa com a razão, ao reflectirsobre a vi<strong>da</strong> sensitiva – verificando a diferença entre o âmbito próprio <strong>da</strong> sensação e odomínio comum <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de senti<strong>da</strong> –, que Sto. <strong>Agostinho</strong> reforça um aspectoimportante acerca do modo como concebe a activi<strong>da</strong>de racional e que consiste no factode to<strong>da</strong> ela se processar com base num critério intrínseco de diferenciação, neste casobalizado pelo binómio commune/proprium, sendo o primeiro dos termos melhor do queo segundo, e sendo a relação de ord<strong>em</strong> estabeleci<strong>da</strong> <strong>em</strong> função <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de dodomínio que abrange a reali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> análise.Conjugando estes aspectos essenciais na análise augustiniana <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ratio humana, a saber, a atribuição de mais-valia às reali<strong>da</strong>des de âmbito comum, asituação intermédia <strong>da</strong> mente humana e, consequent<strong>em</strong>ente, a dupla direcção <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de intencional que a caracteriza, é possível esclarecer uma noção de sumaimportância, para compreender o lugar fulcral que ocupa a ideia de ord<strong>em</strong> na obra docomo acontece com os Maniqueus que chegam a proibir o cultivo dos campos, convencidos do atrozsofrimento <strong>da</strong>s plantas ( Cf. v. gr., De moribus II, XVII, 62: CSEL 91, p. 143-144).334


Hiponense 521 . Com efeito, é a partir <strong>da</strong> condição referencial <strong>da</strong> mente numa dupladirecção que se pode compreender tanto o espaço concedido por Sto. <strong>Agostinho</strong> àdesord<strong>em</strong> e à degra<strong>da</strong>ção do ser humano, como a ideia de uma pr<strong>em</strong>ente tensão doespírito, que o move essencialmente, mesmo para lá do domínio estritamenteconsciente, na busca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, do B<strong>em</strong> e do Repouso. Intentio animi - expressão<strong>em</strong>pregue por Sto. <strong>Agostinho</strong> e que dificilmente se deixa domar na língua portuguesa -é a fórmula que corresponde a esta reali<strong>da</strong>de. Como já se referiu, tal conceito identifica,na obra de <strong>Agostinho</strong>, uma tensão interior do espírito, cuja força motriz é umacaracterística essencial do ser humano: a convergência, no âmago <strong>da</strong> mente humana, dedois termos assimétricos, na hierarquia ontológica, a saber, a razão humana e as noçõesimutáveis, que nela resid<strong>em</strong> e nela estão impressas. Esta tensão interior pode verificars<strong>em</strong>esmo s<strong>em</strong> uma análise sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s noções imutáveis.Note-se que a apreciação desta quali<strong>da</strong>de do espírito humano não é inovadora, porparte de <strong>Agostinho</strong>. Estóicos, platónicos, neoplatónicos, defenderam-na, a seu modo.Contudo, todos, igualmente a seu modo, não logrando avançar com a afirmação <strong>da</strong>efectiva e radical diferença entre a razão e as noções que ela descobre <strong>em</strong> si mesma, ouque se manifestam como produto <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão na aprendizag<strong>em</strong> ou noexercício <strong>da</strong>s artes liberais, próprias do sábio, postularam s<strong>em</strong>pre a efectiva identi<strong>da</strong>dede naturezas entre a alma e o inteligível, não obstante o ter<strong>em</strong> feito sob diversas formas– o conhecimento por r<strong>em</strong>iniscência, a fusão <strong>da</strong> alma no Uno, hipóstase supr<strong>em</strong>a, ondeo ser dela se dilui, a conflagração universal e a fundição <strong>da</strong> alma nesse Fogo, el<strong>em</strong>entosubtil que corresponde, nos estóicos, ao ♑✂ universal, cujas centelhas sedispersam nas razões individuais. Para estas concepções do mundo, a tensão do espíritoapazigua-se, efectivamente, por dissolução <strong>da</strong> parte no Todo, por destruição <strong>da</strong>diferença, factor dilacerante que separa estes el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> o Universo, <strong>da</strong>Totali<strong>da</strong>de, na qual ele consiste. Para estas mundividências, a diferença entre a alma e oTodo é tão-só aparente e momentânea. Dura enquanto a alma permanece,provisoriamente e por desgraça, uni<strong>da</strong> a um corpo que lhe serve de cárcere.521 Em Enarr. in Ps. CXLV, 5, Sto. <strong>Agostinho</strong> resume a situação metafísica do ser humano, atribuindo aocorpo uma função instrumental, no processo de relacionamento entre o ser humano e Deus: “(...) accepithomo corpus tamquam in famulatum, deum aut<strong>em</strong> dominum habens, seruum corpus, habens supra seconditor<strong>em</strong> infra se quod sub illo conditum est; in medio quo<strong>da</strong>m loco rationalis anima constituta, leg<strong>em</strong>accepit, haerere superiori, regere inferior<strong>em</strong>.” ( CCL 40, p. 2109).335


Sto. <strong>Agostinho</strong> assume a tensão interior do espírito como característica essencialdo ser humano e - s<strong>em</strong> deixar de preferir a Paz, o Repouso eterno, como finali<strong>da</strong>deespecífica <strong>da</strong> forma humana e efeito <strong>da</strong> realização universal <strong>da</strong> ordo rerum - jamaispromulgará a consecução de tal objectivo por anulação <strong>da</strong> diferença ontológica,nomea<strong>da</strong>mente no que se refere à relação que se estabelece entre a alma e o inteligível.Mais ain<strong>da</strong>, a tensão interior não estará, para o filósofo, prévia e necessariamentedetermina<strong>da</strong> ao Uno Supr<strong>em</strong>o. Se é um facto que também <strong>Agostinho</strong> afirma que é naUni<strong>da</strong>de que a mente humana encontra a realização dessa tensão interior, não será poruma razão necessária que a alcançará, mas sim no exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, característicainalienável do ser humano.Efectivamente, o caminho para a conquista dessa Paz <strong>em</strong> que consiste atranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, não passará, na óptica do Hiponense, por um desenvolvimento<strong>da</strong> inteligência humana até ao seu máximo exponente, e esse facto justifica-se pelacomplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s funções que Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica na mente humana. S<strong>em</strong> aintrodução de uma ordenação e equilíbrio entre elas, não haverá posse <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de e,portanto, não será possível a conquista <strong>da</strong> paz para o espírito humano. Por isso, a tensãodo espírito apresenta-se, na obra do Hiponense, como um el<strong>em</strong>ento decisivo naconstrução <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, ao nível <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> forma de ca<strong>da</strong> ser humano. Se a intentioanimi é uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, ela manifestar-se-á não apenas na uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razãohumana, mas também na activi<strong>da</strong>de própria de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s funções que <strong>Agostinho</strong>identifica como características <strong>da</strong> mente humana: m<strong>em</strong>ória, inteligência e vontade.Precisamente pelo conhecimento implícito que a alma t<strong>em</strong> de si mesma, e nãoobstante a diferença ontológica estar inscrita na própria dinâmica <strong>da</strong> alma, ela sabe, comsegurança, que pode atingir o fim para o qual tende 522 . Sabe, também, que, ao atingiresse fim, a mente humana não deixa de ser aquilo que é. Na reali<strong>da</strong>de, este é mais umdos paradoxos <strong>da</strong> metafísica augustiniana. O ser humano concretiza, na sua finitudeprópria, o fim universal para o qual tende. Ca<strong>da</strong> ser humano que realiza <strong>em</strong> si a ordorerum, efectiva, de algum modo, um universo possível, ao realizar <strong>em</strong> si mesmo o B<strong>em</strong>Comum. Se assim não fosse, n<strong>em</strong> a mente humana, na sua condição de criatura,522 DT X, III, 5: “(...) Et hoc quid<strong>em</strong> permirabile est nondum se nosse et quam sit pulchrum se nosse iamnosse. An aliqu<strong>em</strong> fin<strong>em</strong> optimum, id est securitat<strong>em</strong> et beatitudin<strong>em</strong> suam, uidet per quan<strong>da</strong>m occultamm<strong>em</strong>oriam quae in longinqua eam progressam non deseruit, et credit ad eund<strong>em</strong> fin<strong>em</strong> nisi se ipsamcognouerit se peruenire non posse? Ita dum illud amat hoc quaerit, et notum amat illud propter quodquaerit ignotum. » ( CCL 50, p. 317-318).336


necessariamente circunscrita, seria, enquanto tal, um b<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> a felici<strong>da</strong>de seria umb<strong>em</strong> possível, dois espectros que Sto. <strong>Agostinho</strong> quer, a todo o custo, afastar <strong>da</strong> suamundividência.A característica ontológica do ser humano designa<strong>da</strong> pela expressão intentio animié causa <strong>da</strong> radical condição de irrequietude <strong>da</strong> mente mas, por si só, não garante que elase oriente para os bens superiores e melhores, comuns, inteligíveis, imutáveis euniversais. A mente humana, não obstante conhecer, de modo necessário, o melhor dosbens - necessi<strong>da</strong>de que advém <strong>da</strong> sua dependência ontológica <strong>em</strong> função <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de,sendo esta a relação que justifica a condição essencialmente valorativa do juízohumano, que se exerce com independência <strong>da</strong> noção com a qual ca<strong>da</strong> mente particularidentifica o melhor dos bens -, não adere a ele com necessi<strong>da</strong>de. Fá-lo voluntariamente.Por isso, se esta tensão do espírito não for preenchi<strong>da</strong> com a adesão interior, mediante avontade, à posse do melhor dos bens cont<strong>em</strong>plados, a mente forja, no interior de si econtra a sua natureza específica, um vazio ontológico, operando, <strong>em</strong> si mesma, umacisão que a afecta na sua condição metafísica. Inversamente, se, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> acto decognição, a mente aderir ao valor máximo que lhe é proposto na cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de, a tensão apazigua-se nesse acto peculiar, e apaziguar-se-á com a repetição deactos s<strong>em</strong>elhantes, no curso <strong>da</strong> existência histórica de ca<strong>da</strong> ser humano.Obviamente, este conhecimento do melhor dos bens inscreve-se na dinâmicaproposta pelo Hiponense para a conquista <strong>da</strong> Sabedoria, atingindo, portanto, um nívelde extr<strong>em</strong>a radicali<strong>da</strong>de e, simultaneamente, de profun<strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de. Por isso, quando,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate, Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue scientia et sapientia, ofilósofo proclama a opção pelos bens cont<strong>em</strong>plados e não apenas a escolha <strong>da</strong>queledomínio de conhecimento que antecede a cont<strong>em</strong>plação, a saber, o dos bens conhecidos.É no nível mais radical <strong>da</strong> mente que se mol<strong>da</strong> a tensão do espírito e esse nívelcorresponde a um conhecimento dos bens por sapiência. Porém, também é um factoque, para o Hiponense, quer a posse <strong>da</strong> sabedoria quer a tranquili<strong>da</strong>de de espírito queconduz à construção de dinâmica de paz no domínio pessoal – e, por alastramento,também no âmbito comunitário –, pressupõ<strong>em</strong> e faz<strong>em</strong> prevalecer a diferença tanto numnível vertical, entre a mente e as ver<strong>da</strong>des que ela cont<strong>em</strong>pla, como no plano horizontal,entre os diferentes modos de realização dessa tensão do espírito, os quais variam tantoquanto as mentes humanas.De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> postula a condição axiológica do exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de<strong>da</strong> mente racional, mas tal não significa, de modo algum, que a sua proposta metafísica337


seja essencialmente normativa. Uma concepção normativa do ser e do mundo é umcaminho fácil para equacionar a interrogação sobre a ord<strong>em</strong>, mas Sto. <strong>Agostinho</strong>considerá-lo-á extr<strong>em</strong>amente redutor e contrário à essência do ser humano. O próprioHiponense parece queixar-se ante esta essência, naturalmente indefini<strong>da</strong>, do B<strong>em</strong>Comum, pois seria mais fácil que todos os humanos concor<strong>da</strong>ss<strong>em</strong> na identificaçãodessa ideia com uma noção, não apenas Comum, mas até Uniforme do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. OFilósofo de Hipona reconhece que esse fenómeno não se verifica, mas anota que n<strong>em</strong>por isso a noção de B<strong>em</strong> Comum sofre alguma per<strong>da</strong> de legitimi<strong>da</strong>de ou deuniversali<strong>da</strong>de. Se, porventura, de início, Sto. <strong>Agostinho</strong> parece não se ter apercebido <strong>da</strong>riqueza desse facto, esta mesma concepção de B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o – universal e comum;determinado apenas na concreção de ca<strong>da</strong> acto humano de ca<strong>da</strong> ser humano; incrustadono t<strong>em</strong>po e projectado na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de – será motor de uma ca<strong>da</strong> vez maioramplitude de sentido conferi<strong>da</strong> à noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong> terá deincluir, nessa paz e repouso, para onde reconhece que tende o espírito humano, a vi<strong>da</strong> ea dinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente humana, por um lado, e, por outro, a diversi<strong>da</strong>de,quase ilimita<strong>da</strong>, dos seres humanos que pululam a Orbe, ca<strong>da</strong> um deles dotado deliber<strong>da</strong>de. E, para a constituição <strong>da</strong> ordo rerum, será necessário, ain<strong>da</strong>, na óptica doHiponense, conjugar to<strong>da</strong> esta sinfonia com a própria dinamici<strong>da</strong>de do cosmos e com asujeição de to<strong>da</strong>s as formas de ser ao curso dos t<strong>em</strong>pos.Precisamente ao analisar a mente e as funções que lhe são específicas,esclarecendo que a tensão do espírito só se apazigua na conquista <strong>da</strong> sabedoria,enquanto cont<strong>em</strong>plação do Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong> ou Deus, Sto. <strong>Agostinho</strong> evidencia que anatureza <strong>da</strong> mente humana é expressão e imag<strong>em</strong> de uma natureza constituí<strong>da</strong>,essencialmente, como dilecção. Com efeito, o cogito augustiniano integra esta dupladimensão, a saber, a de uma razão que, tendendo para a Uni<strong>da</strong>de, encontra a Ver<strong>da</strong>decomo B<strong>em</strong> Soberano que a vontade se inclina a possuir, unindo-se a ele, e a de umamente que, constituindo-se a si mesma na dinâmica <strong>da</strong>s funções que a caracterizam, seexerce segundo uma estrutura triádica. Esta última, no seu dinamismo, forma-se àimag<strong>em</strong> de uma Uni<strong>da</strong>de divina cuja essência é Dilectio.Uma vez que o Hiponense considera que a essência divina se identifica com umapeculiar forma de amor designa<strong>da</strong> mediante os termos latinos dilectio ou caritas, paraencontrar uma s<strong>em</strong>elhança desta essência no ser humano o filósofo analisará a mentehumana à luz dessa forma de relação <strong>em</strong> que entende consistir o amor. Por isso,<strong>Agostinho</strong> abor<strong>da</strong> a quali<strong>da</strong>de de conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de si mesma a partir <strong>da</strong>338


possibili<strong>da</strong>de que a alma humana t<strong>em</strong> de se amar a si própria. Este factor determina, àparti<strong>da</strong>, o domínio de compreensão <strong>da</strong> noção augustiniana de Deus e <strong>da</strong> mente. Deus éamor e é <strong>em</strong> função desta proprie<strong>da</strong>de essencial do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o que se pode entender aessência do ser humano, enquanto substância racional. Igualmente, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que amente se venha a reconhecer como espelho e reflexo dessa essência divina, ela poderá,também, aceder de algum modo à compreensão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> trinitária, <strong>em</strong> que consiste aessência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.Por sua vez, o facto de Sto. <strong>Agostinho</strong> reflectir sobre o conhecimento implícitoque a mente t<strong>em</strong> de si mesma a partir <strong>da</strong> natureza do amor sui, abre passo aoentendimento de uma outra dimensão <strong>da</strong> metafísica augustiniana, porventura a maisradical, para a qual converge, efectivamente, o esclarecimento pleno <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>.Se é ver<strong>da</strong>de que o Hiponense analisará o preceito socrático de auto gnose e a dimensãoparadoxal deste preceito como via para esclarecer o conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de siprópria, também é um facto que o faz partindo <strong>da</strong> análise do amor que o espíritohumano t<strong>em</strong> por si próprio. Ora, este facto r<strong>em</strong>ete o man<strong>da</strong>to socrático para um outropreceito, aquele que corresponde ao man<strong>da</strong>tum nouum, e que está na essência <strong>da</strong>metafísica cristã: diligat homo proximum tamquam seipsum, et Deum ex toto corde, extota anima, ex tota mente. Deum propter deum et proximum propter deum.Dois el<strong>em</strong>entos são de salientar no movimento analítico levado a efeito peloHiponense acerca do conhecimento implícito <strong>da</strong> mente. Um primeiro aspecto reside nofacto de o filósofo entender que o man<strong>da</strong>tum nouum supõe já a realização permanentedo preceito socrático, sendo esse um dos motivos pelo qual o enunciado do oráculodélfico se torna paradoxal. <strong>Agostinho</strong> considera que a mente humana se conhece a simesma com irrefragável certeza <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um dos actos que realiza. Por conseguinte, nãofaz sentido <strong>da</strong>r-lhe o preceito de se auto conhecer a não ser como medi<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gógica,integra<strong>da</strong> num processo maiêutico. Um segundo aspecto indicia o sentido desta análiseaugustiniana <strong>da</strong> mente humana fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na essência do amor.Como se afirmou, para o filósofo – e na sequência de uma instrução de S. Paulo -a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> natureza do cogito humano t<strong>em</strong> por objectivo conhecer Deus talcomo o ser humano é conhecido por Ele. Só deste modo <strong>Agostinho</strong> admite ser possívelamar com rectidão – a Deus, a si mesmo e ao próximo - e edificar a mente humana naord<strong>em</strong>. Ora, ao tender para uma tal agnição, a mente terá de ser capaz, igualmente, dereconhecer a quali<strong>da</strong>de de amor que é devido ao próximo e de tender para a realizaçãodo man<strong>da</strong>tum nouum, amando o próximo com a mesma rectidão com que se ama a si339


mesma, isto é, tal como esse outro, que é também um s<strong>em</strong>elhante, é conhecido porDeus. Só assim o ser humano será capaz de amar o próximo propter deum e de realizaro preceito do amor, para o qual tende a sua natureza específica. Afinal, é na essência doamor que <strong>Agostinho</strong> faz consistir a forma <strong>da</strong> mente humana, facto que se revela numain<strong>da</strong>gação atenta acerca <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do cogito. É neste contexto que se compreende ainsistência por parte do filósofo no conhecimento implícito que a mente t<strong>em</strong> de simesma. Ao fazê-lo, <strong>Agostinho</strong> pretende tornar irr<strong>em</strong>issível a capaci<strong>da</strong>de de a mentehumana amar Deus, a si mesma e ao próximo tanquam se ipsam, inscrevendo est<strong>em</strong>an<strong>da</strong>to de dilecção na ord<strong>em</strong> do ser e especificando <strong>em</strong> que consiste esta ord<strong>em</strong>, nocaso <strong>da</strong> forma do ser humano.Ao investigar o acto de amor que a mente t<strong>em</strong> por si mesma, Sto. <strong>Agostinho</strong>encontra três el<strong>em</strong>entos: a mente, o amor e a notícia implícita que a mente t<strong>em</strong> de simesma, s<strong>em</strong> a qual não poderia amar-se 523 . Na base desta afirmação está, precisamente,a articulação entre o conhecimento e o amor, que Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra quer naessência divina, quer naquela dimensão onde reside o ápice <strong>da</strong> forma do ser humano, asaber, a mente humana. De facto, a dinâmica de vi<strong>da</strong> trinitária, <strong>em</strong> que consiste aessência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, coloca <strong>em</strong> relação de processões o Princípio, o Verbo e o Amor.Este último unifica os outros dois termos <strong>da</strong> relação e manifesta-se como uma terceirareali<strong>da</strong>de. Ora, quando Sto <strong>Agostinho</strong> insiste, a modo de aforismo, no princípio n<strong>em</strong>oamat incognita, é a dimensão inteligível do amor que o filósofo pretende evidenciar: ofacto de esta quali<strong>da</strong>de essencial do espírito não ser irracional, n<strong>em</strong> arbitrária, mas ser aexpressão de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> por antonomásia.O filósofo analisa este princípio de modo didáctico, apresentando-o, antes de mais,como parte integrante do processo cognitivo humano que transcorre <strong>da</strong> ignorância aosaber e que está subjacente na aprendizag<strong>em</strong> de qualquer ciência. Basicamente, oHiponense pretende mostrar a ver<strong>da</strong>de desta proposição: qu<strong>em</strong> procura saber, sabe oque procura. É um facto que se pod<strong>em</strong> considerar diversas origens, para justificar estadimensão cognitiva, inerente à procura do saber, <strong>da</strong>do que esta busca envolve umadimensão desiderativa. To<strong>da</strong>via, reconduzi<strong>da</strong> à expressão mais el<strong>em</strong>entar, ninguém amae procura ardent<strong>em</strong>ente saber alguma coisa s<strong>em</strong> possuir alguma noção prévia <strong>da</strong>quiloque procura. Se assim não fosse, ao encontrar o objecto de busca, não o reconheceria,n<strong>em</strong> mesmo se moveria <strong>em</strong> direcção a tal objecto, desejando encontrá-lo. Este523 Cf. DT IX, III, 3 ( CCL 50, p. 295-296).340


conhecimento implícito no processo de busca pode ser de carácter genérico, elaborandosepor dedução a partir de <strong>da</strong>dos fornecidos pela sensibili<strong>da</strong>de; pode ser de carácterimpresso, formando-se a partir de uma uera ratio, exigindo as características jádefini<strong>da</strong>s para esta forma de saber; pode partir de uma reali<strong>da</strong>de já conheci<strong>da</strong>, queimpele ao conhecimento de outra reali<strong>da</strong>de e que venha a completar esse conhecimento;e, na sua dimensão mais ima, pode tratar-se do amor pelo próprio acto de saber. Estaúltima forma é a que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera como expressão basilar deconhecimento, pois está na base de todo o processo de conquista de saber. Qu<strong>em</strong>procura o saber, fá-lo porque ama o saber. Mas qu<strong>em</strong> ama saber, sabe o que é saber 524 .Este movimento apresentado pelo filósofo para o processo de aprendizag<strong>em</strong> <strong>em</strong>geral, ou seja, para o desejo de conhecer reali<strong>da</strong>des outras que a mente, comprova-se,também, quando se trata do amor que a mente humana t<strong>em</strong> por si mesma, sendo este omovimento que a impele a ir <strong>em</strong> busca do conhecimento de si. Com efeito, paracumprir o man<strong>da</strong>mento do amor, a mente t<strong>em</strong> de se amar a si mesma. Mas est<strong>em</strong>ovimento é indissociável <strong>da</strong> busca do conhecimento de si. Porém, Sto. <strong>Agostinho</strong>identifica aqui uma reali<strong>da</strong>de que considera paradoxal. Que reali<strong>da</strong>de ama a mentequando procura ardent<strong>em</strong>ente conhecer-se a si mesma, como se fosse, para si mesma,desconheci<strong>da</strong>? É um facto que a mente se <strong>em</strong>penha, com todo o afã, no conhecimentode si mesma. Por conseguinte, quando quer esse conhecimento, ela ama-o. Mas qual oderradeiro objecto intencional desse amor? <strong>Ser</strong>á ela própria? Se assim for, não se poderáafirmar que a mente se desconhece a si mesma, pois a mente não poderia amar umareali<strong>da</strong>de que lhe fosse absolutamente desconheci<strong>da</strong>, a ponto de se mover na busca detal ciência. Tal movimento seria <strong>em</strong> absoluto desprovido de razão.Ao analisar a natureza de uma tal forma de conhecimento, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no amor esubjacente à essência <strong>da</strong> mente humana, o Hiponense recusa as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>de tal movimento de busca residir naquelas reali<strong>da</strong>des que já identificara para oconhecimento <strong>da</strong>s formas alheias à mente. Assim, um tal movimento não pode derivarde uma ideia genérica do ser humano, construí<strong>da</strong> por dedução a partir do conhecimentode outros seres humanos. Em tal caso, a mente não se conheceria a si mesma, mas aoutras mentes, permanecendo para si mesma incógnita. O conhecimento que a mentet<strong>em</strong> de si mesma não pode resultar, também, <strong>da</strong> experiência de uma reali<strong>da</strong>de sensível,que ela não é. É ver<strong>da</strong>de que a mente conhece reali<strong>da</strong>des sensíveis por meio dos órgãos524 Cf. DT X, II, 4 ( CCL 50, p. 315-316).341


corpóreos. Mas, tal como sucede com to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des que, como ela, sãoincorpóreas, a mente só pode conhecer-se a si mesma por si mesma. A mente poder-seia,ain<strong>da</strong>, conhecer nas rationes aeternae. Nesse caso, s<strong>em</strong> to<strong>da</strong>via se conhecer a simesma, ela reconheceria a beleza e a condição maximamente amável desseconhecimento, facto que não pode ocultar maior incongruência. Poderia, também, ir <strong>em</strong>busca do conhecimento de si <strong>em</strong> virtude do conhecimento impresso <strong>da</strong> noção debeatitude. Com efeito, ao saber que esse é o fim último para que tende, a mentedesejaria conhecer-se, uma vez que, desconhecendo-se, não poderia alcançar o seu fimúltimo. Ora, também aqui se gera um paradoxo, pois não se compreende de que modo amente preservaria a m<strong>em</strong>ória do fim último, como noção impressa a que tende e quequer possuir, e não haveria de conservar, de si mesma, qualquer recor<strong>da</strong>ção capaz degerar um conhecimento e de impulsionar o movimento de conquista <strong>da</strong> beatitude.Finalmente, poder-se-ia considerar que o que move a mente a conhecer-se a simesma é o conhecimento do que é conhecer, tal como sucedia para as reali<strong>da</strong>des outrasque a mente. To<strong>da</strong>via, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra, nesta hipótese, uma derradeiraobjecção. Suponhamos que a mente, quando ama conhecer-se, vai <strong>em</strong> busca do saber,genericamente considerado, e não do conhecimento de si. Ora, como pode esse desejode saber to<strong>da</strong>s as coisas suportar o desconhecimento de si mesma? E onde haveria amente de reconhecer todo o saber conquistado, ignorando-se a si mesma? De que modoa mente se reconheceria como reali<strong>da</strong>de cognoscente, se a si mesma não se conhecesse?Ou como reali<strong>da</strong>de ignorante, se fosse absolutamente insciente de si própria? 525 Peranteos paroxismos de um total desconhecimento <strong>da</strong> mente por si mesma, Sto. <strong>Agostinho</strong>afirma que tanto no acto de se procurar a si mesma, como no reconhecimento de quãoignorante é acerca de si própria, a mente humana t<strong>em</strong> de si mesma algum conhecimento.Por esse facto, quando se ama a si mesma não é a si mesma que procura, sendo essauma activi<strong>da</strong>de absolutamente desnecessária para a mente 526 .525 Cf. DT X, III, 5 ( CCL 50, p. 317-318).526 DT X, III, 5: “ (…) Quapropter, eo ipso quo se quaerit, magis se sibi notam quam ignotam esseconuincitur. Nouit enim se quaerent<strong>em</strong> atque nescient<strong>em</strong>, dum se quaerit ut nouerit (...).” ( CCL 50, p.318). E, como desfecho <strong>da</strong> discussão acerca do conhecimento íntegro que a mente t<strong>em</strong> de si mesma, umavez que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a imateriali<strong>da</strong>de dela, não se pode falar de partes conheci<strong>da</strong>s e de partes ignora<strong>da</strong>s por simesmas, Sto. <strong>Agostinho</strong> declara, <strong>em</strong> DT X, IV, 6: “ ( …) quia nec tota se mens quaerit, nec pars eius ullase quaerit, se mens omnino non quaerit.” ( CCL 50, p. 320). A propósito <strong>da</strong>s implicações gnosiológicas <strong>da</strong>interpretação do preceito délfico veja-se P. COURCELLE, Connais-toi toi-même. De Socrate a saint342


Ora, é introduzindo um el<strong>em</strong>ento de cognoscibili<strong>da</strong>de – a notita sui – nessarelação essencial <strong>em</strong> que consiste o amor de si mesma que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera serpossível entender o modo como a mente se conhece a si mesma. Esta notícia é intrínsecaà intellegentia, como função <strong>da</strong> mente que, mesmo s<strong>em</strong> o exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>dejudicativa, nela está presente, fazendo parte <strong>da</strong> sua essência. Prosseguindo a análisesobre a natureza <strong>da</strong> mente através <strong>da</strong> procura do acto que está subjacente nesse el<strong>em</strong>entode cognoscibili<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> introduz a diferença entre o acto de pensar –cogitare – e um acto, mais radical, que consiste num conhecimento habitual <strong>da</strong> mentepor si mesma – nosse. Este acto integra e suporta aquele outro. Por isso, a mente nãoprecisa de se procurar a si mesma, pois <strong>em</strong> última instância, ela s<strong>em</strong>pre está presente edisponível ao conhecimento de si 527 .Na reali<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que o amor de si e o conhecimento de si são,para a mente, reali<strong>da</strong>des <strong>em</strong> correlação, s<strong>em</strong> deixar<strong>em</strong>, por esse facto, de sersubstanciais, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a consistência ontológica delas não depende doexercício <strong>da</strong>s activi<strong>da</strong>des específicas <strong>da</strong> mente racional, como são os actos de julgar oude desejar possuir qualquer reali<strong>da</strong>de, mesmo que seja a perfeição própria ou oconhecimento de si.Assim se evidenciam as características principais do cogito augustiniano. Longede duvi<strong>da</strong>r do que quer que seja para atingir certezas, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra certezas,ao in<strong>da</strong>gar sobre a natureza <strong>da</strong> mente humana, despojando-a de todos os el<strong>em</strong>entos quelhe são alheios, até encontrar aquelas reali<strong>da</strong>des residuais que a constitu<strong>em</strong> no seuBernard I ( Paris 1974), p. 83-90, onde o A. explana as principais teses de Plotino e Porfírio. Para umaanálise do referido preceito na obra augustiniana, máxime desde uma perspectiva filológica, v. Ibid., p.125-163. Uma interpretação no sentido de uma releitura, por parte de <strong>Agostinho</strong>, do oráculo délfico,integra<strong>da</strong> numa concepção onde cogito e ordo se co-implicam pode ler-se <strong>em</strong> E. Bermon: “ La prise deconscience à laquelle invitent le ‘Connais-toi toi-même’ ou le ‘Rentre en toi-même’ est justifiée avanttout par son enjeu pratique: elle doit permettre de vivre de façon ordonnée. Augustin précise en effet quele précepte de se connaître a été donné à l’esprit pour qu’il se pense lui-même et, ce faisant, pour qu’ilvive selon sa nature, c’est a dire pour qu’il cherche à être ordonné selon sa nature (…). ». E. BERMON,Le cogito <strong>da</strong>ns la pensée de saint Augustin, p. 194.527 DT X, VII, 10: “ (…) Quid enim tam cognitione adest, quam id quod menti adest? aut quid tam mentiadest, quam ipsa mens? (…).” ( CCL 50, p. 323). O facto de a dimensão cognitiva, sobre a forma de umconhecimento habitual – nosse -, ser inerente à natureza <strong>da</strong> mente, manifesta-se na presença constante <strong>da</strong>mente a si mesma, enquanto ela é, para si própria, o seu conteúdo intencional natural e imediato.343


ser 528 . Estas certezas, apresentando-se com carácter imutável e eterno, não se suportam<strong>em</strong> ideias adventícias, sendo, por isso, irrefragáveis e inconcussas. Ao ter<strong>em</strong> alcanceontológico, a presença delas na mente depende <strong>da</strong> mesma instância superior que lhesconfere o ser, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de qualquer forma contingente conferir a si mesmaessa proprie<strong>da</strong>de radical. Com efeito, a mente humana não pode <strong>da</strong>r ou retirar existênciaa si mesma, mas apenas afectar positiva ou negativamente, mediante a realização <strong>da</strong> suaactivi<strong>da</strong>de própria, o seu modo específico de ser. Entretanto, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera,também, a possibili<strong>da</strong>de de estados subjectivos <strong>da</strong> mente, tais como a dúvi<strong>da</strong> ou o erro,afectar<strong>em</strong> esta dimensão mais ima <strong>da</strong>s certezas inabaláveis, inerentes à estruturaontológica do cogito. Porém, nesses casos, como o filósofo não cessa de recor<strong>da</strong>r,apenas permanece uma confirmação, por via negativa, <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>queles conteúdose certezas, entre os quais se conta a própria condição falível <strong>da</strong> mente, decorrente dofacto de ela não ocupar, na hierarquia ontológica, o lugar de essência supr<strong>em</strong>a.Ora, é precisamente à luz destas oscilações verifica<strong>da</strong>s no processo de auto gnose,que afectam o recto amor de si, que o Hiponense entende o sentido do preceito délfico,mediante o qual ca<strong>da</strong> ser humano é interpelado para que se conheça a si mesmo.Aparent<strong>em</strong>ente, este preceito é desnecessário, <strong>da</strong>do que todo o ser humano, naprofundeza <strong>da</strong> sua mente, s<strong>em</strong>pre a si mesmo se conhece, de forma habitual eirrefragável. To<strong>da</strong>via, inúmeros fenómenos permit<strong>em</strong> verificar que este conhecimento<strong>da</strong> própria essência é, na maior parte dos casos e por inúmeros motivos, deturpado efalsificado. Assim, não obstante o conhecimento <strong>da</strong> mente por si mesma estar garantidono plano ontológico, ele está perturbado no plano psicológico. Esse facto exige, do serhumano, o trabalho de conquista <strong>da</strong> auto gnose, indissociável de uma tarefa depurificação interior. Esta confia-se, de facto, à activi<strong>da</strong>de de cogitar, ao pensamento, àreflexão humana, enquanto aquele outro, sendo um acto de máxima radicali<strong>da</strong>de, resideno imo do ser humano e entrega-se à dinâmica <strong>da</strong>s três funções <strong>da</strong> mente, onde interageessa tríplice activi<strong>da</strong>de que a caracteriza: esse, nosse, uelle.528 DT X, X, 14: “(…) omnes mentes de se ipsis nosse certasque esse (…).Viuere se tamen et m<strong>em</strong>inisseet intellegere et uelle et cogitare et scire et iudicare quis dubitet? Quandoquid<strong>em</strong> etiam si dubitat, uiuit; sidubitat, unde dubitet m<strong>em</strong>init; si dubitat, dubitare se intellegit; si dubitat, certus esse uult; si dubitat,cogitat; si dubitat, scit se nescire; si dubitat, iudicat non se t<strong>em</strong>ere consentire oportere. Quisquis igituraliunde dubitat, de his omnibus dubitare non debet : quae si non essent, de ulla re dubitare non posset. »(CCL 50, p. 327-328).344


Desta forma, Sto. <strong>Agostinho</strong> entende o preceito de auto gnose – cognosce te ipsam- como um convite a realizar um movimento de catarse que permitirá à mente humana,num trabalho progressivo de despojamento <strong>da</strong>quilo que não lhe corresponde poressência, conhecer-se a si mesma de modo recto 529 . De facto, o preceito socrático que,na perspectiva de <strong>Agostinho</strong>, assume uma formulação essencialmente paradoxal, <strong>da</strong>doque a mente s<strong>em</strong>pre se conhece, incide, <strong>em</strong> última análise, não tanto sobre oconhecimento que a alma t<strong>em</strong> de si mesma, mas sobre as reali<strong>da</strong>des que ela ama e àsquais se vincula como se lhe foss<strong>em</strong> próprias.Mediante a activi<strong>da</strong>de cognitiva <strong>da</strong> mente - mediante o exercício do pensar -, elavinculou-se, com o forte vínculo do amor, a um enorme conjunto de reali<strong>da</strong>des que lhesão alheias 530 . De igual modo, será mediante a reflexão sobre si mesma e sobre a suaactivi<strong>da</strong>de pensante que ela poderá descortinar <strong>em</strong> que consiste a sua essência edireccionar o desejo de si para a ord<strong>em</strong> que lhe corresponde por natureza, situando-senuma posição inferior <strong>em</strong> relação às reali<strong>da</strong>des que lhe são superiores, e numa posiçãosuperior <strong>em</strong> face <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des que lhe são inferiores e que dev<strong>em</strong>, por conseguinte, serregi<strong>da</strong>s e governa<strong>da</strong>s por ela. O preceito socrático, esse apelo, de certo modo supérfluo,a um movimento de auto conhecimento exige-se, afinal, <strong>em</strong> função do cumprimento doman<strong>da</strong>tum nouum e é inseparável dele, pois só mediante o recto conhecimento de si amente humana pode amar o próximo por Deus e Deus por si mesmo, fazendo uso <strong>da</strong>sd<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>s também <strong>em</strong> função desta ord<strong>em</strong> do amor.529 DT X, V, 7: “ Vtquid ergo ei praeceptum est, ut se ipsam cognoscat? Credo, ut se cogitet, et secundumnaturam suam uiuat, id est, secundum naturam suam ordinari appetat, sub eo scilicet cui subden<strong>da</strong> est,supra ea quibus preaeponen<strong>da</strong> est; sub illo a quo regi debet, supra ea quae regere debet. ” (CCL 50, p.320).530 DT X, VIII, 11: “(…) Cum ergo sit mens interior, quo<strong>da</strong>m modo exit a s<strong>em</strong>etipsa, cum in haec quasiuestigia multarum intentionum exserit amoris affectum.” (CCL 50, p. 325). Sendo uma reali<strong>da</strong>de interior,a mente corre sérios riscos de alienação, ao projectar o conhecimento de si <strong>em</strong> representações oureali<strong>da</strong>des que têm como referência os corporalia. É neste processo de alienação que se geram os errosdos filósofos acerca <strong>da</strong> natureza de Deus e do ser humano. Por isso, para o Hiponense, o sentido dopreceito de auto gose é exactamente o do apelo à via <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de: DT X, IX, 12: “ Non itaque uelutabsent<strong>em</strong> se quaerat cernere, sed praesent<strong>em</strong> se curet discernere. Nec se quasi non nouit cognoscat, sed abeo quod alterum nouit dignoscat. » ( CCL 50, p. 325). Não se trata, portanto, de a mente acrescentar algoa si mesma, movimento que a faria concluir ser outra reali<strong>da</strong>de do que aquilo que é, mas de reconhecer asua própria natureza, por meio de um processo de despojamento e introspecção. V., também, DT X, X,13; X, X, 16: CCL 50, p. 326-327; p. 328-329.345


Na reali<strong>da</strong>de, uma tentativa de apurar por que motivo a análise augustiniana docogito humano converge, necessariamente, no esclarecimento <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>,encontrará uma resposta simples. Ao interrogar a obra de <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>gando por querazão, <strong>em</strong> última instância, o filósofo se move na busca do esclarecimento <strong>da</strong> noção deord<strong>em</strong>, descobre-se que o motor essencial dessa busca, aquilo que, para o filósofo, seergue <strong>em</strong> questão, é o facto de, no conjunto mais ou menos harmónico dos seres, sesobrelevar um, o ser humano, que possui capaci<strong>da</strong>des ver<strong>da</strong>deiramente inquietantes. Defacto, ele não é apenas capaz de formular juízos, concatenando-os <strong>em</strong> proposições eexpressando-os <strong>em</strong> palavras ou outras formas de comunicação. O ser humano não é tãosócapaz de produzir obras onde a razão se expressa. Ambas as capaci<strong>da</strong>des pod<strong>em</strong>encontra-se, aliás, salvo as devi<strong>da</strong>s distâncias, igualmente, <strong>em</strong> outras formas de ser e devi<strong>da</strong>. <strong>Agostinho</strong> assim o mostra, quando insiste na capaci<strong>da</strong>de de imitação que possu<strong>em</strong>alguns animais, e que o próprio ser humano t<strong>em</strong> <strong>em</strong> comum com os irracionais, e na art<strong>em</strong>aravilhosa desses últimos para construir o seu habitat e organizar to<strong>da</strong> uma forma devi<strong>da</strong> onde a ord<strong>em</strong> se manifesta, rechea<strong>da</strong> de rituais próprios à sobrevivência econservação <strong>da</strong> espécie. S<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, este fenómeno maravilha qu<strong>em</strong> o cont<strong>em</strong>pleinterrogando o seu porquê derradeiro. To<strong>da</strong>via, o que move Sto. <strong>Agostinho</strong> na d<strong>em</strong>an<strong>da</strong><strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> e a convertê-la, na conexão radical que tal noção estabelece com ocogito humano, no cerne <strong>da</strong> sua metafísica, é a experiência limite de um ser que sedirige ao real não apenas descodificando-o mediante sinais convencionais, mas acima detudo in<strong>da</strong>gando acerca do sentido <strong>da</strong> própria existência – de si mesmo e de quanto orodeia -, avaliando as diferentes formas de ser e tendendo, irrefragavelmente, a possuiraquela que discerne como melhor. É esta presença de uma consciência vocaciona<strong>da</strong> aum conhecimento por posse, direcciona<strong>da</strong>, afinal, ao exercício de uma racionali<strong>da</strong>deessencialmente valorativa e orienta<strong>da</strong> a possuir o real mediante uma união de amor, quecausa o espanto de <strong>Agostinho</strong> e o move a inquirir acerca do Princípio de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, e arazão de ser de uma tal presença, no Universo.Desta forma, a própria in<strong>da</strong>gação acerca do Princípio não é o centro <strong>da</strong> metafísicaaugustiniana. Não é a Criação, enquanto acto de um Princípio Único de ser, que está noâmago <strong>da</strong>s preocupações do Hiponense, mas a ord<strong>em</strong>, acerca <strong>da</strong> qual se in<strong>da</strong>gamediante o esclarecimento <strong>da</strong> natureza do cogito humano na relação que estabelece como Princípio. A essência deste último é d<strong>em</strong>an<strong>da</strong><strong>da</strong> não tanto para que justifique aexistência do cogito, mas para que esclareça, mais e mais, a natureza específica do serhumano, permitindo-lhe, através desta consciência de si, realizar, também346


progressivamente, a sua forma específica, até atingir a perfeição dela. Ao fazê-lo, e pelarelação intrínseca que o ser humano estabelece com o Princípio, é também a própriaord<strong>em</strong> que se manifesta, exercendo-se de modo mais pleno, no Universo.É a descoberta de uma consciência que se exerce fun<strong>da</strong>mentalmente como amorque move o Hiponense a in<strong>da</strong>gar acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Em De musica, Sto. <strong>Agostinho</strong>afirma expressamente que a alma humana, por si mesma, na<strong>da</strong> é, justificando asubsistência dela na relação que estabelece com o <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. Permanecendo na suaord<strong>em</strong> própria, a presença de Deus “vegeta” na mente e consciência humanas, e a almapossui este b<strong>em</strong> no seu íntimo 531 . A mesma afirmação é feita <strong>em</strong> Confessionum. Maisain<strong>da</strong>, ela é o gonzo e o motor <strong>da</strong> própria Confissão <strong>em</strong> que <strong>Agostinho</strong> quer fazerconsistir esse escrito auto biográfico. Assim, o filósofo declara que a sua conversãometafísica não foi possível s<strong>em</strong> um acto de nudez <strong>da</strong> consciência diante de si mesma.Este processo alcança-se no t<strong>em</strong>po, mas a ele está subjacente aquele outro, a saber, apresença eterna <strong>da</strong> mente ante Deus, de um modo latente, sub-reptício, nuncaimpositivo, vegetativo, como ficara dito <strong>em</strong> De musica. Esta nudez <strong>da</strong> consciência anteDeus é radical e acontece independent<strong>em</strong>ente do ser humano querer, ou não, assumila532 . É por esta presença que a consciência humana - imo alicerce ontológico onde serecolhe a forma do ser humano -, quando julga a reali<strong>da</strong>de, a avalia de acordo com umaescala de bens. Com efeito, no seu íntimo, o cogito humano está marcado pela relaçãoao B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, mesmo quando quer ocultar a si mesmo esta condição metafísica,declinando o seu ser numa insciência voluntária acerca de si mesmo e <strong>da</strong> sua relaçãocom o Princípio.531 De mus. VI, XIII, 40: “ (...) cum enim anima per seipsam nihil sit; non enim aliter esset commutabilis,et pateretur defectum ab essentia: cum ergo ipsa per se nihil sit, quidquid aut<strong>em</strong> illi esse est, a deo sit; inordine suo manens, ipsius dei praesentia vegetatur in mente atque conscientia. Itaque hoc bonum habetintimum.” (PL 32, 1185).532 Em Conf. VIII, 7 ( CCL 27, p. 117) é descrito o advento do momento <strong>em</strong> que a consciência de<strong>Agostinho</strong> adquire essa nudez ante si mesma, conhecendo a sua situação actual e aquela reali<strong>da</strong>de que seidentifica com a máxima expressão a que deve tender: o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. A conversão é, portanto,antecedi<strong>da</strong> por um momento de supr<strong>em</strong>a ver<strong>da</strong>de sobre si mesmo: aquilo que <strong>Agostinho</strong> é, no confrontocom aquilo que deve vir a ser, para realizar a sua forma específica. Em Conf. X, II, 2, descreve-se a nudez<strong>da</strong> consciência humana ante o próprio <strong>Ser</strong> de que depende: “ Et tibi quid<strong>em</strong>, domine, cuius oculis nu<strong>da</strong> estabyssus humanae conscientiae, quid occultum esset in me, etiamsi noll<strong>em</strong> confiteri tibi? ” (CCL 27, p.155).347


Na ver<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> não se cansa de repetir que to<strong>da</strong> a relação que o serhumano estabelece com a reali<strong>da</strong>de que o circun<strong>da</strong> envolve-o a ele próprio e a estacondição valorativa do real. Além disso, ao considerar que, no âmago <strong>da</strong> mente, seinscreve a relação entre o ser humano e o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, ambos avaliados pela própriaalma como bens, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste na dimensão dilectiva de todo o acto cognitivo.Por isso, a in<strong>da</strong>gação sobre a ord<strong>em</strong> atinge a dimensão mais íntima do ser humano e aresposta para ela t<strong>em</strong> de ser <strong>da</strong><strong>da</strong>, essencialmente, com base na análise <strong>da</strong> dinâmica doamor. Outra não é, afinal, a estrutura do cogito humano, como outra não é a essência <strong>da</strong>relação que o Princípio estabelece com to<strong>da</strong>s as formas de ser e, de modo particular,com o ser humano. Sendo assim, na perspectiva do Hiponense, to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, por sercognoscível é, simultaneamente e s<strong>em</strong> hiato de t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente amável.Ora, para que se realize a ord<strong>em</strong>, a mente humana deverá tender àquelas reali<strong>da</strong>desque reconhece como melhores. Por isso, quando avalia o real no exercício <strong>da</strong> uera ratio,descobre que o cogito e Deus são as reali<strong>da</strong>des onde se decide a dinâmica <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.Neste óptica, o cogito humano realizará a ord<strong>em</strong> na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ame Deus, porqueessa é a sua forma específica. Nesse acto, longe de negar as d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des querenquanto ver<strong>da</strong>deiras, quer enquanto amáveis, o ser humano assume-as, integrando-asno amor que a si mesmo t<strong>em</strong> quando dirige a tensão do seu espírito para o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.De novo é esta a experiência descrita pelo Hiponense <strong>em</strong> Confessionum, quandoexplana o movimento de aprendizag<strong>em</strong> de Deus, o qual é concomitante com o processode conversão. Na mesma nudez de consciência que faz que <strong>Agostinho</strong> se venha adecidir por aquilo que deve ser, ele próprio afirma que ama Deus. To<strong>da</strong>via, estaafirmação é d<strong>em</strong>asiado genérica e o seu conteúdo necessita ser explicitado. Por issointerroga: quid aut<strong>em</strong> amo, cum te amo? 533 É na resposta a esta questão que se revela oconteúdo do cogito augustiniano.A replicação é r<strong>em</strong>eti<strong>da</strong> pela própria reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte, quando d<strong>em</strong>an<strong>da</strong><strong>da</strong>acerca do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Esta interrogação, realiza<strong>da</strong> pela razão humana quando sedebruça sobre as reali<strong>da</strong>des exteriores, é o exercício mais imediato <strong>da</strong> dimensãointencional do espírito humano que, ao avaliar o real circun<strong>da</strong>nte e ao não encontrarnele o valor que procura como supr<strong>em</strong>o, acaba por se voltar para si mesmo e formular a533 Cf. Conf. X, VI, 8 ( CCL 27, p. 159). O texto prossegue, <strong>em</strong> Conf. X, VI, 9, in<strong>da</strong>gando acerca <strong>da</strong>natureza desse Absoluto: “Quid est hoc?”.348


pergunta essencial: tu quis es? 534 A resposta é a condição espiritual do ser humano,uni<strong>da</strong> a um corpo e encontra<strong>da</strong> no facto de residir<strong>em</strong>, naquela dimensão mais fun<strong>da</strong> doespírito, três dimensões <strong>da</strong> mente, destrinçáveis mas indissociáveis, na sua activi<strong>da</strong>de.São elas a vontade, pela qual o ser humano deseja ser feliz e unir-se ao B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o; ainteligência, pela qual o ser humano conhece <strong>em</strong> que consiste esse b<strong>em</strong>, mesmo s<strong>em</strong> opossuir ain<strong>da</strong>; e a m<strong>em</strong>ória, que arreca<strong>da</strong> aquilo que o ser humano é – aquela presençaeterna, vegetativa, ôntica, do espírito humano diante de Deus - e aquilo que o serhumano conquista no t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> benefício <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> sua própria forma.Esta dimensão trinitária do cogito humano é s<strong>em</strong>pre acentua<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong>.De facto, a essência <strong>da</strong> conversão metafísica reside <strong>em</strong> descobrir que a intentio animi –que o Hiponense s<strong>em</strong>pre vivenciou antes <strong>da</strong> sua conversão metafísica de formaparticularmente intensa, do ponto de vista afectivo-<strong>em</strong>otivo, quer mediante aexperiência de amizade, quer através <strong>da</strong> relação passional com a mãe de Adeo<strong>da</strong>to -, nasmultíplices formas de actuação humana, só se realiza plenamente, e, por conseguinte, sóé expressão de ord<strong>em</strong>, mediante elos que religu<strong>em</strong> efectivamente a própria existênciacom o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Essencialmente, o achamento feito por <strong>Agostinho</strong> radica na percepção de que talforma de união exige a persistência de trin<strong>da</strong>des ou, dito de outro modo, que to<strong>da</strong> arelação, para que seja real, transcendendo o domínio próprio e, abrindo-se aoacolhimento de uma alteri<strong>da</strong>de, exige a subsistência de uma trin<strong>da</strong>de real. Ora, estatrin<strong>da</strong>de deverá reconhecer-se e realizar-se, antes de mais, no interior do próprio cogito,pois se assim não for, este não corresponde à sua natureza específica, não realiza a suaord<strong>em</strong> própria, fechando-se à sua essência: a capaci<strong>da</strong>de de amar. Por isso, quer quando<strong>Agostinho</strong> descreve o itinerário <strong>da</strong> mente para a descoberta <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>oou Deus - essa noção a que nenhuma outra excele -, quer quando o filósofo procuracompreender a essência trinitária de Deus mediante as analogias <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, és<strong>em</strong>pre a dinâmica ternária do cogito que pretende evidenciar.Ao acentuar a Uni<strong>da</strong>de e Unici<strong>da</strong>de do Principio, mormente no itinerário descrito<strong>em</strong> De libero arbitrio, a razão irá descobrir que a Ver<strong>da</strong>de é noção Supr<strong>em</strong>a. To<strong>da</strong>via,esta Ver<strong>da</strong>de não é cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> como uma noção vazia, mas como reali<strong>da</strong>deindissociavelmente uni<strong>da</strong> à forma <strong>da</strong> noção impressa de sabedoria. Esta, por sua vez, édefini<strong>da</strong> pelo filósofo como a Ver<strong>da</strong>de na qual se cont<strong>em</strong>pla e se possui o B<strong>em</strong>534 Cf. Conf. X, VI, 9 (CCL 27, p. 159).349


Supr<strong>em</strong>o. Esta é uma <strong>da</strong>s definições felizes <strong>da</strong> essência do cogito augustiniano – ueritasin qua cernitur et tenetur summum bonum 535 . Com efeito, é dito por <strong>Agostinho</strong>, desde asprimeiras obras, aliás na sequência <strong>da</strong> tradição filosófica <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, que o serhumano tende à posse <strong>da</strong> sabedoria. Porém, esta sabedoria é defini<strong>da</strong> como Ver<strong>da</strong>de eB<strong>em</strong>, convergindo ambas as noções numa Reali<strong>da</strong>de Única – Deus.É um facto que estes atributos – Ver<strong>da</strong>de, Uni<strong>da</strong>de e B<strong>em</strong> - serão considerados,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate, como quali<strong>da</strong>des de Deus secundum substantiam.Precisamente por isso tais proprie<strong>da</strong>des esclarec<strong>em</strong> a Unici<strong>da</strong>de do Princípio, mais doque a Trin<strong>da</strong>de dele. To<strong>da</strong>via, o que é digno de nota é o facto de <strong>Agostinho</strong> nãodissociar esta descoberta feita pela razão, desta trilogia, intimamente liga<strong>da</strong> às trêsfunções <strong>da</strong> mente humana, e à qual se associam dois actos do espírito: a posse doSupr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong> e a cont<strong>em</strong>plação dele. De facto, para o Hiponense, não há conhecimentos<strong>em</strong> avaliação do real e s<strong>em</strong> tendência à posse. A dimensão mais sublime do cogito,para a qual tende todo acto cognitivo, é precisamente a posse do B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, <strong>da</strong><strong>da</strong> nacont<strong>em</strong>plação do mesmo. Essa posse realiza a ord<strong>em</strong> do cogito e identifica-se com adilectio ou caritas. É este processo que é descrito nos Livros XIV e XV de De trinitate,quando o filósofo volta a evocar a sabedoria como o fim último do ser humano e arealização plena <strong>da</strong> forma própria dele.É esta a razão pela qual to<strong>da</strong> a morosa análise <strong>da</strong>s trin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente feita por<strong>Agostinho</strong>, nomea<strong>da</strong>mente nos Livros VIII a XI de De trinitate se baseia na reali<strong>da</strong>dedo amor. Esta mesma reali<strong>da</strong>de é ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação <strong>da</strong> essência divinamodo interiore, a qual ficara exposta no Livro VIII de modo considerado peloHiponense como d<strong>em</strong>asiado célere. Na ver<strong>da</strong>de, aí fica dito de imediato que a imag<strong>em</strong>de Deus se realiza no exercício <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de e só nessa prática, leva<strong>da</strong> a efeito medianteo cumprimento do man<strong>da</strong>tum nouum – a dilecção ao próximo tanquam se ipsum - sepode vislumbrar a essência divina. Ora, Sto. <strong>Agostinho</strong> quer deixar claro que est<strong>em</strong>an<strong>da</strong>to não corresponde a qualquer imposição divina contrária ao ser humano, mas àrealização <strong>da</strong> própria essência <strong>da</strong> dimensão mais profun<strong>da</strong> dele.É no intuito de evidenciar este facto que o filósofo irá glosar ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>strin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente, quer as que se pod<strong>em</strong> manifestar no conhecimento de si mesma –pois s<strong>em</strong> essa agnição opera<strong>da</strong> no exercício <strong>da</strong> uera ratio a mente não alcançará oel<strong>em</strong>ento ordenado, que se exige como recto conhecimento e termo de comparação para535 Cf. LA II, IX, 26 ( CCL 29, p. 254).350


amar o Outro tanquam se ipsam -; quer nas designa<strong>da</strong>s trin<strong>da</strong>des do hom<strong>em</strong> exterior,que surg<strong>em</strong> <strong>em</strong> De trinitate para recor<strong>da</strong>r que o exercício <strong>da</strong> cognição humana vincula amente ao real exterior, cuja natureza é diferente do ser humano e inferior e ele; quer natrin<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fé, que <strong>em</strong>erge na referi<strong>da</strong> obra para recor<strong>da</strong>r que a cognição humana sesujeita ao t<strong>em</strong>po e que esta dimensão, não obstante positiva e benfazeja, introduz umhiato abissal entre o ser humano e a Dei<strong>da</strong>de; quer, por último, nessa trin<strong>da</strong>de que sedescobre in abdito mentis e que constitui a própria imag<strong>em</strong> divina impressa no espíritohumano. A análise desta última trin<strong>da</strong>de identifica-se com as glosa<strong>da</strong>s acerca <strong>da</strong>strin<strong>da</strong>des inerentes ao conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de si mesma e que vêm aconvergir, na obra do Hiponense, na trin<strong>da</strong>de m<strong>em</strong>oria, intellegentia, uoluntas. No casode De trinitate, uma vez que o filósofo pretende aproximar esta trin<strong>da</strong>de de umconhecimento <strong>da</strong> essência divina, in<strong>da</strong>ga-se a relação entre as funções <strong>da</strong> mente e aprópria reali<strong>da</strong>de espiritual, na qual aquelas se realizam. Assim, o contributo essencialde uma análise do cogito mediante a in<strong>da</strong>gação <strong>da</strong> dinâmica trinitária que o caracteriza éo facto de nele se evidenciar a natureza do amor como a reali<strong>da</strong>de que define a formaprópria do ser humano.Entre os diferentes el<strong>em</strong>entos desenvolvidos pelo Hiponense para evidenciar estaespecifici<strong>da</strong>de do cogito, dois assum<strong>em</strong> particular relevância e estão presentes nain<strong>da</strong>gação augustiniana <strong>da</strong> essência divina mediante a imago Dei, esforço deinteligência que, como se afirmou, antes de mais revela a natureza do ser humano a sipróprio. Tais el<strong>em</strong>entos são o surgimento do uerbum mentis por via de geração e aimanência <strong>da</strong> vontade, presente <strong>em</strong> todo o acto de cognição.A noção de uerbum mentis surge, <strong>em</strong> De trinitate, para completar a compreensão<strong>da</strong> natureza do cogito mediante a trilogia mens, notitia, amor. Com efeito, pode afirmarseque a dictio uerbi é, no caso particular <strong>da</strong> auto gnose, a <strong>em</strong>issão íntima <strong>da</strong> palavraque identifica o conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de si mesma. De facto, tal conhecimentoimplícito, não é, ain<strong>da</strong>, nenhum caso particular de cognição. Sê-lo-á, na perspectiva de<strong>Agostinho</strong>, somente quando se transformar <strong>em</strong> verbo ou palavra. Esta exigência indica,antes de mais, que, para o Hiponense, todo o conhecimento e, por conseguinte, tambémo conhecimento de si, é uma agnição particular que identifica uma reali<strong>da</strong>de precisa, aqual é expressa mediante um uerbum. Este facto decorre precisamente <strong>da</strong> naturezaintencional <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do cogito, pois a condição trinitária <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do cogitomanifesta-se na necessária <strong>em</strong>issão do verbo, para que haja agnição. Na reali<strong>da</strong>de, na<strong>em</strong>issão do uerbum pod<strong>em</strong> identificar-se os três el<strong>em</strong>entos constituintes de to<strong>da</strong> a351


elação real. Assim, há um princípio do qual o uerbum procede e que <strong>Agostinho</strong>identifica com a mens. Há um termo, que é o fim <strong>da</strong> relação cognitiva e que se identificacom o próprio uerbum. E há um terceiro el<strong>em</strong>ento, que une o princípio e o termo destarelação e que se identifica na dilecção que se produz quando a mente se dirige aoconhecimento de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.Ora, nesta <strong>em</strong>issão do uerbum mentis – início de to<strong>da</strong> a comunicação, e anterior àprodução externa do som pelo qual tal verbo é transmitido a terceiros –, o filósofoidentifica o modelo <strong>da</strong> relação de geração. Fixando a atenção na dimensão mais interiordo conhecimento – a do conhecimento de si –, <strong>Agostinho</strong> afirma que o verbo é comoque a prole <strong>da</strong> mente, pois confere identi<strong>da</strong>de própria à notitia sui, mediante o amor qu<strong>em</strong>ove a in<strong>da</strong>gação acerca de si mesmo. No caso <strong>da</strong> mente humana - e <strong>da</strong><strong>da</strong> afalibili<strong>da</strong>de dela, manifesta na mutabili<strong>da</strong>de e na capaci<strong>da</strong>de de errar no conhecimentode si e <strong>da</strong> hierarquia ontológica - este amor que, unido à notitia sui, gera o uerbum, podeproceder ou de uma recta dilecção ou de uma perversão <strong>da</strong> vontade. No primeiro caso, ouerbum é perfeitamente adequado à notitia e ao conhecimento que a mente t<strong>em</strong> de simesma, tendo por referente a uera ratio. Quando tal sucede, o princípio deste uerbum éa própria Ver<strong>da</strong>de, e o amor que, unindo-se a ela, o gera, é o amor do B<strong>em</strong> Comum. Poresse facto, tal verbo é universal e não se sujeita ao espaço, ultrapassando fronteirasgeográficas, às quais está uni<strong>da</strong> a diversi<strong>da</strong>de dos idiomas e os equívocos delinguag<strong>em</strong>. O uerbum mentis que procede de um recto amor sui é compreensível porqualquer ser humano, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> raça ou do idioma, pois o princípio de queprocede é a Sabedoria Eterna – a Ver<strong>da</strong>de, B<strong>em</strong> Comum.Esta afirmação do Hiponense é rica de conteúdos, permitindo deduzir algumasteses não de somenos acerca <strong>da</strong> natureza do cogito. Antes de mais, Sto. <strong>Agostinho</strong>afirma que, na dimensão mais ima do cogito, pode residir a universali<strong>da</strong>de doconhecimento, mesmo quando este t<strong>em</strong> por objecto intencional o próprio sujeito. Estauniversali<strong>da</strong>de é garanti<strong>da</strong> precisamente pelos dois termos <strong>da</strong> relação de que <strong>em</strong>erge talverbo. São eles a Ver<strong>da</strong>de e o Amor entendi<strong>da</strong>s na sua máxima expressão, e não comocasos particulares ou participações <strong>da</strong> mente nesses mesmos princípios supr<strong>em</strong>os dereali<strong>da</strong>de. O uerbum mentis que exprime um conhecimento adequado procede <strong>da</strong> união<strong>da</strong> mente com as rationes aeternae. Ora, tal relação só é possível por uma peculiaracção divina na mente, na qual a Iluminação, suposta naquele movimento, é entendi<strong>da</strong>como Donum Dei. Tal uerbum mentis procede, portanto, <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de que é Deus.Significando uma peculiar forma de participação <strong>da</strong> mente humana na essência divina,352


ele manifesta a presença, naquela, do dom <strong>da</strong> sabedoria. Por este mesmo facto, to<strong>da</strong> alinguag<strong>em</strong> que dele decorre é universal, mesmo que não venha a ser proferi<strong>da</strong>externamente ou traduzi<strong>da</strong> <strong>em</strong> qualquer som significante. Destarte se manifesta a ord<strong>em</strong>na mente, a qual significa não só a elevação do cogito individual ao entendimento deuma Ver<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a e Universal, como também revela – uma vez que todo oconhecimento implica a união efectiva e a posse do b<strong>em</strong> conhecido por parte do cogito -que o processo inverso se realizou. Quando a mente conquista a sua ord<strong>em</strong> própria ealcança a sua perfeição, o Universal efectiva-se no domínio particular. Desse estadovegetativo e latente, mediante o ser humano, o B<strong>em</strong> Comum <strong>em</strong>erge no Mundo,tornando-se uma presença real e efectiva <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> in abdito mentis.Ora, para além do el<strong>em</strong>ento gratuito que Sto. <strong>Agostinho</strong> indissocia <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong>sabedoria, enquanto Donum Dei, a condição de possibili<strong>da</strong>de ontológica de talfenómeno reside na imanência <strong>da</strong> própria vontade no interior do cogito, como el<strong>em</strong>entoestrutural e constituinte de to<strong>da</strong> a relação cognitiva. Também mediante esta presença sepode compreender a abertura, por parte do ser humano, à recepção <strong>da</strong> sabedoriaenquanto Dom, <strong>da</strong>do que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, aquela incidirá não apenas, n<strong>em</strong>essencialmente, na inteligência, mas acima de tudo na orientação <strong>da</strong> vontade ao B<strong>em</strong>Comum.Se, na geração do uerbum mentis, Sto. <strong>Agostinho</strong> evidencia a dimensão unitiva doamor, opera<strong>da</strong> mediante a vontade e - no caso do exercício <strong>da</strong> Sabedoria, não s<strong>em</strong> arecepção de um peculiar Dom - na volição de um <strong>da</strong>do objecto de conhecimento, oHiponense insiste que ela não é cega, operando <strong>em</strong> estreito liame com a inteligência.Assim, n<strong>em</strong> a inteligência é vazia de conteúdo, pois to<strong>da</strong> a notitia, mediante aintervenção <strong>da</strong> vontade, se exprime num uerbum que confere identi<strong>da</strong>de e dá forma, nointerior <strong>da</strong> mente, à reali<strong>da</strong>de conheci<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> a vontade actua irracional ealeatoriamente, de maneira caótica, ou à revelia de quanto a inteligência lhe manifesta.Esta interacção é particularmente feliz e harmónica no caso <strong>da</strong> realização <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> na mente humana. Com efeito, de que modo haveria a vontade de possuirrectidão e ord<strong>em</strong> s<strong>em</strong> conhecer quais os bens que deve apetecer e aqueles que deveevitar? Este facto manifesta que ela age <strong>em</strong> estrita união com a inteligência e, também,com a m<strong>em</strong>ória, uma vez que, como adiante se verá com mais detenimento, s<strong>em</strong> esta, aacção <strong>da</strong> inteligência é impossível. Assim, na mente onde a ord<strong>em</strong> se realiza, a vontadeestende o seu campo de acção quer à inteligência, quer à m<strong>em</strong>ória, fazendo que nas três353


funções <strong>da</strong> mente inerentes ao cogito augustiniano habite a dilecção ou cari<strong>da</strong>de 536 . Talmente é, de facto, a imag<strong>em</strong> mais aproxima<strong>da</strong> que o ser humano pode possuir acerca <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de e essa imag<strong>em</strong> encontra-se sedia<strong>da</strong> e realiza<strong>da</strong> na dinâmica relacional <strong>em</strong> queconsiste a essência do próprio cogito. Na mente que reflecte a ord<strong>em</strong>, a geração doverbo como cogitatio uera é imag<strong>em</strong> do que se passa na geração eterna do Verbo peloPai. Neste processo, a presença <strong>da</strong> vontade como força unitiva que garante asubsistência do verbo ver<strong>da</strong>deiro, é imag<strong>em</strong> de uma terceira reali<strong>da</strong>de, o Espírito <strong>Santo</strong>que procede do Pai e do Filho.To<strong>da</strong>via, se não poucas s<strong>em</strong>elhanças se pod<strong>em</strong> achar entre a natureza trinitária docogito e a essência, Una e Trina, <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste que maiores são asdiferenças 537 . Por seu turno, mesmo as s<strong>em</strong>elhanças apenas se pod<strong>em</strong> ver por enigma,termo que, para o filósofo, significa uma alegoria oculta, que mais obscurece do queesclarece. E mesmo que o ser humano atinja este nível profundo de s<strong>em</strong>elhança,in<strong>da</strong>gando a estrutura do cogito in abdito mentis, ele terá de viver, acima de tudo, arectidão e a ord<strong>em</strong>, não se fixando na imag<strong>em</strong>, mas colocando-a <strong>em</strong> relação –avaliando-a, portanto – com aquilo que, mediante a fé, o espírito humano conheceacerca <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Caso contrário, o ser humano corre o risco de confundir a imag<strong>em</strong>com a própria reali<strong>da</strong>de, facto que o levaria a assumir-se a si mesmo como Deus-536 DT XV, XXI, 41: “ (...) Numquid dicturi sumus uoluntat<strong>em</strong> nostram quando recta est nescire qui<strong>da</strong>ppetat, quid euitet? Porro si scit profecto inest ei sua quae<strong>da</strong>m scientia, quae sine m<strong>em</strong>oria etintellegentia esse non possit. An uero audiendum est quispiam dicens, caritat<strong>em</strong> nescire quid agat, quaenon agit perperam? Sicut ergo inest intellegentia, inest dilectio illi m<strong>em</strong>oria principali, in qua inuenimusparatum et reconditum ad quod cogitando possumus peruenire (…)” ( CCL 50A, p. 518). O parágrafoprossegue, afirmando que a inteligência e o amor se descobr<strong>em</strong> quando a mente analisa qualquer acto dedilecção. Essa interacção subsiste com anteriori<strong>da</strong>de sobre o acto de amar e de conhecer algo, do qual amente parte para se conhecer a si mesma. Este facto revela a presença de uma m<strong>em</strong>ória primordial, de quefala <strong>Agostinho</strong>, como sendo aquela dimensão fun<strong>da</strong>nte e latente do cogito, onde se recolhe a união entre amens e o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Tal união dá-se, por conseguinte, na uni<strong>da</strong>de do cogito humano, a qual éinseparável <strong>da</strong> mútua implicação <strong>da</strong>s funções que nele interag<strong>em</strong>: m<strong>em</strong>ória, inteligência, vontade.537 Cf. DT XV, XXII, 42 (CCL 50A, p. 519-520). É diss<strong>em</strong>elhante a analogia <strong>da</strong> geração do verbohumano com a essência do Verbo Eterno, assim como é diss<strong>em</strong>elhante a analogia que se estabelece entrea processão do Espírito e a união que a vontade realiza entre a m<strong>em</strong>ória e a inteligência, no interior <strong>da</strong>mente humana.354


Trin<strong>da</strong>de, incorrendo na maior impie<strong>da</strong>de e mergulhando na mais profun<strong>da</strong> insciênciaacerca de si próprio 538 .Todo este esforço analítico levado a efeito pelo Hiponense revela a essência de umcogito que possui certezas incontornáveis, antes de mais acerca de si mesmo, as quais,mesmo quando coloca<strong>da</strong>s <strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, como faziam os defensores <strong>da</strong> Nova Acad<strong>em</strong>ia,mais confirmam a sua firmeza 539 . Analisando tais certezas, Sto. <strong>Agostinho</strong> adquirealgum conhecimento acerca de Deus, e sobretudo, mostra como tal conhecimento é umdesiderato essencial do cogito, evidenciando que o ser humano é, na sua condiçãoontológica mais radical, capax Dei. Assim, mais do que conhecer a Dei<strong>da</strong>de, propósitoabsolutamente desproporcionado às capaci<strong>da</strong>des humanas, é o conhecimento adequadode si que se obtém, mediante uma dissecação <strong>da</strong> essência do cogito. Desseconhecimento adequado faz parte a consciência <strong>da</strong> abissal diferença que separa oCriador <strong>da</strong> criatura, não obstante esta ten<strong>da</strong> para Ele como seu único fim e objecto debeatitude. Neste paradoxo se constitui o lusco-fusco do conhecimento <strong>da</strong> essência Una eTrina de Deus e neste apor<strong>em</strong>a se constitui a busca incessante, por parte <strong>da</strong> mentehumana, pela posse <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Tal posse e tal agnição é possível, no t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong>enigma e por espelho. <strong>Ser</strong>á possível, na eterni<strong>da</strong>de, numa uisio Dei face a face. Em todoo caso, não se deve perder de vista que mais do que conhecer Deus, esta sabedoriamanifestará ao ser humano a ver<strong>da</strong>de acerca de si mesmo, a saber, o modo como ele éconhecido pelo <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Em última instância, todo este esforço revela ao ser humano duas ver<strong>da</strong>desessenciais. Por um lado, enquanto criatura, o ser humano não é ver<strong>da</strong>deiramente o seupróprio ser, mas apenas o possui – de facto, o ser humano não é o melhor de si mesmo,condição que guar<strong>da</strong>, no interior de si, para ser atribuí<strong>da</strong> ao <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> função doqual deve mover todos os seus actos, transcendendo-se. Por outro lado, o factorenigmático do conhecimento de Deus por imag<strong>em</strong>, unido à radical diss<strong>em</strong>elhança538 Cf. DT XV, XXIII-XXIV, 44 ( CCL 50A, p. 522-523). A superação deste risco exige, uma vez mais, atranscendência de si mesmo e a purificação do coração. De facto, o ser humano, neste limiar que separa amente humana do <strong>Ser</strong> divino, aspira à visão de Deus. Esta visão é a supr<strong>em</strong>a beatitude. Tal condição doespírito - de acordo com sábias palavras proferi<strong>da</strong>s por Adeo<strong>da</strong>to <strong>em</strong> De beata uita e que <strong>Agostinho</strong> terás<strong>em</strong>pre como ponto de referência quando fala sobre a uisio Dei – só é <strong>da</strong><strong>da</strong> aos que possu<strong>em</strong> um coraçãopuro, ou seja, àqueles que possu<strong>em</strong> uma mente que reflecte a ord<strong>em</strong>, a saber, aquela onde habita acari<strong>da</strong>de.539 Cf. DT XV, XII, 21 ( CCL 50A, p. 490-493).355


ontológica entre o ser humano e a Dei<strong>da</strong>de, permit<strong>em</strong> afirmar que o ser humanovislumbra a total incompreensibili<strong>da</strong>de de Deus e a inefabili<strong>da</strong>de Dele. Esta participação<strong>em</strong> dois el<strong>em</strong>entos que pertenc<strong>em</strong> irrecusavelmente à essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, aproxima,afinal, o ser humano do <strong>Ser</strong> divino, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o primeiro se confronta com ainefabili<strong>da</strong>de deste outro.5. Superna et intima VeritasO ensaio de resolução do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> mediante a análise <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong>razão humana obriga Sto. <strong>Agostinho</strong> a reflectir sobre a relação entre essa facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong>mente e o termo superior ao qual ela tende. Ao fazê-lo, esclarece, a um t<strong>em</strong>po, anatureza <strong>da</strong> mente humana e, mediante a dialéctica que, através <strong>da</strong> razão, ela estabelececom a Ver<strong>da</strong>de, também a essência desta noção supr<strong>em</strong>a.Reconhecendo que a Ver<strong>da</strong>de é, para a razão humana, aquela noção à qualnenhuma outra se sobrepõe, Sto. <strong>Agostinho</strong> articula-a com a dinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong>mente. Com efeito, é a razão que descobre a Ver<strong>da</strong>de. Ora, <strong>da</strong><strong>da</strong> a estruturaessencialmente valorativa do juízo humano, a Ver<strong>da</strong>de é compreendi<strong>da</strong> pela razão numadinâmica de identi<strong>da</strong>de e diferença, ou seja, no confronto com a reali<strong>da</strong>de que a mente é<strong>em</strong> si mesma e que define o lugar que ela ocupa na hierarquia ontológica, e com aqueledomínio de reali<strong>da</strong>de que dista entre ela e a Ver<strong>da</strong>de. Ao reconhecer que a Ver<strong>da</strong>de é,não apenas a noção superior à mente, mas aquela noção que engloba to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais e àqual nenhuma outra excede, o filósofo assevera que tal noção coincide com a ideia deB<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o. Por conseguinte, no mesmo acto <strong>em</strong> que a razão percebe a Ver<strong>da</strong>decomo B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o esta noção é apresenta<strong>da</strong> à vontade humana como o finis optimus eo seu b<strong>em</strong> próprio.Assim, ao perceber a Ver<strong>da</strong>de como B<strong>em</strong>, a mente humana entrega a concreção eexecução dessa reali<strong>da</strong>de à facul<strong>da</strong>de volitiva, não obstante a condição paradoxal<strong>da</strong>quela noção Supr<strong>em</strong>a. Esta verifica-se pelo facto de o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o se apresentar àmente como reali<strong>da</strong>de que a supera e, simultaneamente, como a noção que realiza, parao ser humano, o desejo de felici<strong>da</strong>de, que constitui o seu fim último.Por sua vez, a noção de beata uita, considera<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> como objectode um desiderato universal, encontra-se impressa na m<strong>em</strong>ória, desdobrando-se <strong>em</strong>noções eternas e imutáveis, as quais, uma vez desven<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela razão, são assumi<strong>da</strong>s356


como princípios reguladores <strong>da</strong> sua própria activi<strong>da</strong>de e exprim<strong>em</strong>-se, também, <strong>em</strong>juízos de carácter valorativo: o todo é maior do que a parte, o superior é melhor do queo inferior, o incorruptível deve preferir-se ao corruptível. Assim, se a mente humana, noexercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de pensante que a caracteriza, é entendi<strong>da</strong> pelo Hiponense comouma totali<strong>da</strong>de – nela se reún<strong>em</strong> os três graus de ser: esse-uiuere-intellegere -, noconfronto com a Ver<strong>da</strong>de/ B<strong>em</strong> Comum ela revela-se como uma reali<strong>da</strong>de dinâmica erelacional. Uma tal estrutura, por sua vez, verifica-se quer na dinâmica <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des,que interag<strong>em</strong> e dialogam na busca <strong>da</strong> conquista e realização <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, quer a umnível mais radical, ôntico, que se desvela numa análise vertical, quando a natureza <strong>da</strong>mente é compreendi<strong>da</strong> na diferença absoluta que a separa <strong>da</strong> própria Ver<strong>da</strong>de,cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> como noção supr<strong>em</strong>a.Mediante um processo ascendente, com início na alma humana e com termo numanoção supr<strong>em</strong>a, <strong>da</strong> qual Sto. <strong>Agostinho</strong> implicitamente parte como sendo aquela quepreenche a ideia de divin<strong>da</strong>de, o filósofo sublinha a transcendência de Deus.Efectivamente, compreendeu que, para equacionar uma resolução para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>, se tornava imprescindível mostrar não apenas a superiori<strong>da</strong>de, mas a radicaldiferença e a soberania metafísica do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> relação à totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formasde existência, pois se o não fizesse, dificilmente poderia assegurar que tal <strong>Ser</strong> tivessepoder para administrar a reali<strong>da</strong>de, no seu conjunto e na totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas deexistência, desde o grau mais ínfimo até às expressões mais sublimes, dota<strong>da</strong>s deracionali<strong>da</strong>de e liber<strong>da</strong>de.Sto. <strong>Agostinho</strong> cedo se apercebeu de que uma concepção débil <strong>da</strong> noção dedivin<strong>da</strong>de era causa <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des posiciona<strong>da</strong>s <strong>em</strong> face do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, porparte de to<strong>da</strong>s as mundividências e, de modo peculiar, pelo maniqueísmo. Desta formatambém se compreende que o cerne <strong>da</strong> argumentação augustiniana anti-manqueísta nãoresi<strong>da</strong>, essencialmente, na insistência sobre a probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal ou, sequer,na natureza do livre arbítrio, mas sim na perseverança, atesta<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong> obra doHiponense, numa apologia do primado absoluto do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, na hierarquiaontológica.Com efeito, já <strong>em</strong> De ordine o filósofo reconhece que o alvo <strong>da</strong> questão quepermitirá resolver as aporias gera<strong>da</strong>s <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> investigação acerca <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> ord<strong>em</strong> é a necessi<strong>da</strong>de de suportar racionalmente um tão grande Deus 540 . <strong>Agostinho</strong>540 Cf. DO I, VII, 20 ( CCL 29, p. 98).357


sabe que uma noção do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o débil de densi<strong>da</strong>de ontológica fará incorrer amente humana nas maiores contrarie<strong>da</strong>des, quando queira equacionar a articulação entrea existência de Deus e o reinado de desord<strong>em</strong> presente nos assuntos humanos.To<strong>da</strong>via, o movimento de ascese <strong>da</strong> razão, que conclui a transcendência de Deus ea absoluta diferença Dele <strong>em</strong> relação ao Mundo e ao ser humano, não é bastante parasolucionar o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. De facto, a identificação de uma divin<strong>da</strong>de a talponto longínqua que <strong>em</strong> na<strong>da</strong> se relaciona com o Mundo, <strong>em</strong> tudo contribui paraafirmar o efectivo desinteresse dela pelos assuntos humanos.É ver<strong>da</strong>de que uma noção débil de Deus permite conceber a subsistência <strong>da</strong>desord<strong>em</strong>, conferindo certa consistência a esta noção, juntamente com o poder de seopor e de <strong>da</strong>nificar aquela fraca divin<strong>da</strong>de. Tal era a proposta maniqueísta. Ou, numaoutra expressão, assumi<strong>da</strong> culturalmente e, até, politicamente institucionaliza<strong>da</strong>, aot<strong>em</strong>po do apogeu do Império Romano, a debili<strong>da</strong>de do ser divino <strong>da</strong>ria azo àmultiplicação, indefini<strong>da</strong> e aleatória, dos numes, como é <strong>da</strong>do comprovar pelo cultoestabelecido pelo Império, criticado e analiticamente dissecado por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>De ciuitate dei. Porém, uma concepção <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de que a torne inacessível aos sereshumanos, colocando-a numa tal dimensão de transcendência que gera uma realincomunicabili<strong>da</strong>de entre Ele e o conjunto dos seres, estabelece as condições paraafirmar o desinteresse do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> relação ao Universo e, <strong>em</strong> particular, aosassuntos humanos, tendo presente que o ‘assunto humano’ por excelência é, para Sto.<strong>Agostinho</strong> como para as concepções filosóficas suas coevas, o <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong>felici<strong>da</strong>de, que se prende com a definição do fim último do ser humano.Esta era, com efeito, a essencial fragili<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> verificara naspropostas de filiação platónica. Afinal, uma divin<strong>da</strong>de que não comunica com oUniverso que de si mesma <strong>em</strong>ana, não será, ela própria, irresponsável e impotente,incapaz de cumprir directamente a sua acção providente, necessita<strong>da</strong>, para acatar talfunção, de <strong>em</strong>issários, hipóstases intermédias, que se erig<strong>em</strong>, <strong>em</strong> última instância, nasmediações possíveis, s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, jamais permitir<strong>em</strong> o acesso à real participação dosseres no Uno Supr<strong>em</strong>o? Efectivamente, um Deus inacessível, por mais sublime ealtíssono que seja, se não for capaz de legitimar, sequer, um voto de confiança acerca <strong>da</strong>eficaz gestão do curso dos acontecimentos e <strong>da</strong> efectiva realização <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>dehumana, menos ain<strong>da</strong> servirá, na óptica do filósofo, para fun<strong>da</strong>r uma articulaçãoracional para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.358


Na reali<strong>da</strong>de, a par <strong>da</strong> transcendência de Deus, do primado de tal noção sobre amente humana e <strong>da</strong> insistência na diferença ontológica – eterna e imutável, a Ver<strong>da</strong>dedescobre-se na dimensão mais fun<strong>da</strong> de uma mente mutável e sujeita ao curso do t<strong>em</strong>po–, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita de garantir a real proximi<strong>da</strong>de entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e oMundo, asseverando o interesse metafísico <strong>da</strong>quele ser pelos assuntos humanos.Simultaneamente, e na mesma medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que afirma a transcendência divina, o filósofonecessita de assinalar a imanência de Deus <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> criatura, a qual se há-de verificar,tanto no curso dos acontecimentos cósmicos como no interior de ca<strong>da</strong> ser humano,domínio que, afinal, faz parte e se integra naquele primeiro. Por paradoxal que seapresente esta exigência <strong>da</strong> metafísica do Hiponense, é um facto que a mesmauniversali<strong>da</strong>de afirma<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> para a transcendência divina, que garante o ser ea subsistência de tudo quanto existe, necessita de ser afiança<strong>da</strong> para a imanência deDeus. Só assim a noção de ord<strong>em</strong> adquirirá o estatuto efectivo de categoria ontológicapor excelência e será possível afirmar a universali<strong>da</strong>de desse Princípio radical de <strong>Ser</strong>.Só deste modo ficará garantido o grau máximo de proximi<strong>da</strong>de entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o eos seres humanos, inscrevendo esta relação no plano ontológico. Do mesmo modo, sóassim se afiançará a infinita supr<strong>em</strong>acia e regência de Deus <strong>em</strong> função <strong>da</strong>s desordensintra-mun<strong>da</strong>nas, cuja causa se viu ser o livre arbítrio <strong>da</strong> vontade humana.Estes atributos - transcendência absoluta e soberana imanência -, exigidos por Sto.<strong>Agostinho</strong> para a noção de <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, são indicadores de uma metafísica onde o <strong>Ser</strong>e a <strong>Relação</strong> se identificam e na qual esta última categoria assume um rosto específico,significando não só a participação dos seres <strong>em</strong> relação a um Princípio Supr<strong>em</strong>o mastambém o estabelecimento de uma radical dependência <strong>em</strong> face desse Princípio,sustenta<strong>da</strong> numa comunicação de Amor. Esta última proprie<strong>da</strong>de constitui, de facto,para o filósofo, a essência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, como Vi<strong>da</strong> que, enquanto tal, realiza <strong>em</strong>plenitude a noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Por conseguinte, esta noção não pode associar-se aqualquer princípio de necessi<strong>da</strong>de ou determinismo.Uma vez que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o Princípio de tudo quanto existe é este <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, Vi<strong>da</strong>, ou <strong>Ord<strong>em</strong></strong> Eterna plenamente realiza<strong>da</strong>, é <strong>da</strong>do concluir que ametafísica augustiniana se baseia numa concepção comunicativa ou dialógica de <strong>Ser</strong>.Estas serão as coordena<strong>da</strong>s à luz <strong>da</strong>s quais equacionará o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Reduzido à sua expressão mais simples, tal filosof<strong>em</strong>a interroga, alfim, o modo comoDeus e os seres humanos se relacionam, equacionando harmoniosamente tal activi<strong>da</strong>dee a forma como a razão humana, vocaciona<strong>da</strong> a descodificar sentido, interpreta,359


mediante a sua intrínseca dinâmica intencional, uma tal relação, construindo umaexplicação do mundo mais ampla e universal.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, esta relação, simultaneamente transcendente e imanente, quese estabelece entre o ser Supr<strong>em</strong>o e as d<strong>em</strong>ais as expressões de ser, é entendi<strong>da</strong> comoconsequência de um facto omniabrangente: a dependência ontológica dos seres <strong>em</strong>relação ao <strong>Ser</strong>, fenómeno que o Hiponense interpreta à luz <strong>da</strong> noção bíblica de creatio ede acordo com as coordena<strong>da</strong>s específicas que o filósofo tece para esta noção, a partir,fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>da</strong> sua exegese do Livro do Génesis e do Prólogo joanino.Na perspectiva augustiniana, todo o real está dotado de um mesmo sentido e apela,<strong>em</strong> jeito de admonitio, para uma mesma reali<strong>da</strong>de: a criação de tudo quanto existe noVerbo de Deus. É este facto que permite compreender o pleno alcance metafísico, e nãomeramente estilístico, poético ou retórico, <strong>da</strong> concepção augustiniana do Universo uelutmagnum carmen. A criação do Mundo resulta, afinal, <strong>da</strong> proclamação de uma PalavraEterna, que ecoa no curso dos t<strong>em</strong>pos e cujo efeito é a constituição dos seres. Estes,porque imersos no t<strong>em</strong>po, realizam a sua forma específica na sucessão t<strong>em</strong>poral,construindo e orientando, nesse processo, o sentido <strong>da</strong> história.O Verbo Criador, por ser Inteligência Soberana, não confere apenas ser, masimprime sentido às suas obras, sendo dono de ambas as reali<strong>da</strong>des, ser e sentido 541 .Deste modo, para onde quer que se volte, interrogando a essência do real, a mentehumana descobrirá a mesma resposta: a racionali<strong>da</strong>de do real, instaura<strong>da</strong> pelo Verbo,per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt. A própria mente humana, enquanto reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>,encontra <strong>em</strong> si a marca do princípio Criador. E, quer pela absoluta indubitabili<strong>da</strong>de doconhecimento que possui de si mesma, quer pela supr<strong>em</strong>acia <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong>541 É reconheci<strong>da</strong> a função central do Verbo, na metafísica de Sto. <strong>Agostinho</strong>, a qual é operativa <strong>em</strong> todosos âmbitos de análise. É pela centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> função do Verbo que se esclarece a noção augustiniana decreatio. Por sua vez, a concepção augustiniana <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de como Trin<strong>da</strong>de não se concebes<strong>em</strong> a mediação do Verbo, que a torna inteligível quoad nos mediante a acção iluminadora que talPrincípio exerce sobre o espírito humano; é o Verbo que justifica a eficiência do conhecimento humano<strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, mediante a iluminação; é o Verbo a fonte derradeira <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana,imprimindo sentido e significado à diversi<strong>da</strong>de de signos; é o Verbo que fun<strong>da</strong>menta a esperança narestauração <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> original, deforma<strong>da</strong> pelo pecado. Porém, no plano metafísico, a insistência de<strong>Agostinho</strong> e o el<strong>em</strong>ento onde, de acordo com o test<strong>em</strong>unho do próprio Hiponense, passa a diferença entreo Mundo Antigo e a germana philosophia, encontra-se, efectivamente, no facto histórico <strong>da</strong> Incarnaçãodo Verbo. Aí se condensa a noção de ord<strong>em</strong> e se estabelec<strong>em</strong>, finalmente, as coordena<strong>da</strong>s augustinianaspara equacionar uma solução possível para o filosof<strong>em</strong>a.360


elação aos d<strong>em</strong>ais graus de ser, ela erige-se, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> instrumentoprivilegiado para construir um discurso metafísico favorável à resolução do filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.To<strong>da</strong>via, a estrutura <strong>da</strong> própria mente não é simples, n<strong>em</strong> nas suas operações, n<strong>em</strong>nas facul<strong>da</strong>des que as tornam possíveis. Por isso, é legítimo considerar a possibili<strong>da</strong>dede aceder, mediante a análise de uma ou de outra <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente, aoconhecimento de aspectos diferentes do próprio <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, não obstante a convicçãode que, Nele, todos os atributos se identificam, na plena simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essênciadivina.Assim, se, para aceder à noção supr<strong>em</strong>a, Sto. <strong>Agostinho</strong> fez ro<strong>da</strong>r o propósito <strong>da</strong>sua metafísica – nouerim me, nouerim te - sobre a função <strong>da</strong> mente que se designa porrazão, desven<strong>da</strong>ndo, deste modo, o Deus superior summo meo, para encontrar o reverso<strong>da</strong> me<strong>da</strong>lha e descobrir o Deus interior intimo meo, o filósofo descerá ao fundo <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória. A vontade, que completa a tríade <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, é a noção porventuramais obscura, pois só se reconhece <strong>em</strong> exercício, isto é, mediante uma análise <strong>da</strong>execução <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de pelas obras humanas.O resultado desta incansável busca do eixo sobre o qual se exerce a relação entre oUno e o Múltiplo, entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e as diferentes formas dos seres - inquirição quenão pode fazer-se a não ser mediante a razão humana -, é a progressiva diluci<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>imensa potência que reside no interior do ser humano, o desocultamento <strong>da</strong> forçaintencional de tal espírito, precavendo-se o filósofo do risco de tombar nosubjectivismo, cujos índices conhece e para os quais alerta continuamente ao longo <strong>da</strong>sua obra.Num trajecto que apela continuamente para a interiori<strong>da</strong>de, o paradoxo deencontrar o universal no singular, o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o na limitação <strong>da</strong> mente humana, só o épor breves momentos e <strong>em</strong> aparência. Sto. <strong>Agostinho</strong> desconhece o enclausuramento <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de no sujeito. Inversamente, ao analisar o recôndito <strong>da</strong> mente, abre a intimi<strong>da</strong>dedo ser humano singular - pois o espírito é de ca<strong>da</strong> um, <strong>da</strong>do que uma alma universal eanónima não seria compatível com a criação do ser humano, imago dei - às infinitaspossibili<strong>da</strong>des de ser que lhe são <strong>da</strong><strong>da</strong>s cont<strong>em</strong>plar através <strong>da</strong> realização do projecto queculmina com a posse <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. Esta, por seu turno, realiza-se mediante umparticular modo de união com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, que Sto. <strong>Agostinho</strong> resume na expressãoesse cum deo.361


No Livro décimo de Confessionum, o filósofo toma como objecto de análise am<strong>em</strong>ória humana e, numa ascese que regride ao domínio mais profundo <strong>da</strong> mente,exaure todo o conteúdo intencional dessa função <strong>da</strong> mente. No referido escrito, oHiponense reitera o seu propósito, já recolhido na invocação de Soliloquorum, paraerguer a sua metafísica: cognoscam te, cognitor meus, sicut et cognitus sum 542 .A esta espécie de cumplici<strong>da</strong>de epist<strong>em</strong>ológica, que envolve o conhecimento deDeus e o de si mesmo, une-se implicitamente to<strong>da</strong> uma concepção metafísica, segundo aqual os seres exist<strong>em</strong> porque a Ver<strong>da</strong>de os conhece, e a ver<strong>da</strong>de deles é garanti<strong>da</strong> pelapermanência eterna <strong>da</strong> forma de ca<strong>da</strong> um nessa Ver<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a. Por isso, a mentehumana só alcançará o conhecimento ajustado quer <strong>da</strong>s distintas formas que preench<strong>em</strong>o Universo quer de si mesma, quando penetrar na Ver<strong>da</strong>de plena, onde os seres estãoimersos e se constitu<strong>em</strong> na sua forma específica 543 . Tal só é possível mediante uma542 Conf. X, I, 1 ( CCL 27, p. 155). Tendo como horizonte o texto de 1Cor 13:12, Sto. <strong>Agostinho</strong>explorará progressivamente as condições de possibili<strong>da</strong>de para aceder ao conhecimento <strong>da</strong>s criaturas <strong>em</strong>Deus, quer no t<strong>em</strong>po, quer escatologicamente.543 As condições de possibili<strong>da</strong>de deste acesso <strong>da</strong> mente humana à Ver<strong>da</strong>de <strong>em</strong> Deus esclarec<strong>em</strong>-se, naobra do Hiponense, através <strong>da</strong> doutrina do intellectus fidei, por um lado e, por outro, mediante a peculiarforma como Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe a compenetração entre a mente humana e o Verbo. Nelepermanec<strong>em</strong> as rationes aeternae e, por meio dele, o ser humano recebe a luz que lhe permite aceder aomodo como as coisas são, <strong>em</strong> Deus. Esta forma de conhecimento co-implica a mente humana e aDei<strong>da</strong>de. Ora, sendo esta superior àquela, no conhecimento sapiencial, Sto. <strong>Agostinho</strong> admite uma acçãode Deus na mente humana a tal ponto intensa que lhe permite afirmar ser Deus que conhece, na mentehumana, a ord<strong>em</strong> dos seres e a sua recta disposição na ord<strong>em</strong>. Trata-se, neste grau de conhecimento,próprio <strong>da</strong> sabedoria, de uma conformação, adequa<strong>da</strong> e limita<strong>da</strong>, do ser humano com a Dei<strong>da</strong>de,antecipando a conformação mais plena e definitiva que se <strong>da</strong>rá no final dos t<strong>em</strong>pos. A propósito destacompenetração entre Deus e os humanos, que caracteriza o conhecimento sapiencial, lê-se <strong>em</strong> Conf. XIII,XXXI, 46: “ (…) Aliud ergo est, ut putet quisque malum esse quod bonum est, quales supra dicti sunt;aliud, ut quod bonum est uideat homo, quia bonum est, sicut multis tua creatura placet, quia bona est,quibus tamen non tu places in ea, unde frui magis ipsa quam te uolunt; aliud aut<strong>em</strong>, ut, cum aliquid uidethomo quia bonum est, deus in illo uideat, quia bonum est, ut scilicet ille ametur in eo, quod fecit, qui nonamaretur nisi per spiritum, qu<strong>em</strong> dedit, quoniam caritas dei diffusa est in cordibus nostris per spiritumsanctum, qui <strong>da</strong>tus est nobis, per qu<strong>em</strong> uid<strong>em</strong>us, quia bonum est, quidquid aliquo modo est: ab illo enimest, qui non aliquo modo est, sed est est.” ( CCL 27, p. 269-270). Note-se que o próprio livro décimo deConfessionum (cc. I-V) é um exercício, por parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, desta forma de conhecimento. É adesci<strong>da</strong> ao núcleo <strong>da</strong> consciência que permite o discurso augustiniano <strong>da</strong> confissão, a qual é frutíferaporque sumamente ver<strong>da</strong>deira, não obstante limita<strong>da</strong>. Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, tal forma de discurso é362


peculiar forma de comunhão que se estabelece entre a mente humana e o Verbo Eterno,Princípio Criador.É sobre as potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória que, <strong>em</strong> Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong>opera a escala<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> direcção a Deus, não já para aceder a Ele como <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, mas para O descobrir como aquele Princípio com o qual mais intimamente seestabelece uma comunhão metafísica. O modelo de conhecimento de si e de Deus para oqual aponta é, uma vez mais, de natureza sapiencial, específico <strong>da</strong> forma de saberatribuí<strong>da</strong> à Filosofia, designa<strong>da</strong> pelos antigos como amor sapientiae 544 .No décimo Livro de Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> vai <strong>em</strong> busca, não apenas doDeus dos Filósofos <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, mas do Deus <strong>da</strong> <strong>Relação</strong> e <strong>da</strong> Comunhão amorosa,promulgado pelo cristianismo 545 . Esta relação realiza-se e progride através d<strong>em</strong>ediações, até se radicalizar numa presença entre a mente humana e o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, aqual, sendo directa – por se tratar de um conhecimento s<strong>em</strong> mediação de nenhumacriatura - não implica identi<strong>da</strong>de, fusão ou confusão de ambas as substâncias, divina ehumana, mas preserva a diferença ontológica.Assim, nesta ascese para Deus mediante a m<strong>em</strong>ória, o Hiponense começa porreconhecer e louvar a beleza <strong>da</strong> forma de todos os seres, a qual, por não esgotar to<strong>da</strong> abeleza, não pode colmatar o desejo de eterni<strong>da</strong>de que caracteriza a vontade humana.To<strong>da</strong>via, nesta explanação de Confessionum, o movimento de ascese procede por vianegativa, apelando a uma progressiva superação, por parte <strong>da</strong> mente humana, do apegoque, por hábito, contraiu com as formas contingentes.A mente humana é permanent<strong>em</strong>ente convi<strong>da</strong><strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> a orientar-sena busca de formas superiores, eternas e imutáveis, que aquiet<strong>em</strong> o desejo de felici<strong>da</strong>de.possibilita<strong>da</strong> te mihi lucente. É esta acção de Deus sobre a mente humana que permite um conhecimentoquer de si mesmo, quer <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des circun<strong>da</strong>ntes sicut cognitae sunt per Deum.544 Cf. DO I, XI, 32 (CCL 29, p. 105-106); Conf. III, IV, 8 (CCL 27, p. 30); CA II, II ( CCL 29, p.19-21);De moribus I, XXI, 38 ( CSEL 90, p. 43); Em De continentia VIII, XX, o amor sapientiae identifica-se jácom a união entre o ser humano e Deus, realiza<strong>da</strong> escatologicamente: “ (...) in illo enim saeculo et in illoregno erit bonum summum, malum nullum, quando erit et ubi erit sapientiae amor summus, continentiaelabor nullus” (CSEL 41, p. 165); veja-se, também, Contra Iulinanum, IV, XIV, 72 ( PL 44, p. 774), ondeo termo é <strong>em</strong>pregue no mesmo contexto: “Obsecro te, non sit honestior philosophia gentium, quam nostrachristiana, quae una est uera philosophia, quandoquid<strong>em</strong> studium uel amor sapientiae significatur hocnomine.”545 Conf. X, VI, 8: “ (...) Non dubia, sed certa conscientia, domine, amo te. Percussisti cor meum uerbotuo et amaui te.” ( CCL 27, p. 158).363


Quer nos itinerários <strong>da</strong> mente para aceder à transcendência divina, quer naqueles ondesublinha com maior afinco a imanência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, o filósofo parte <strong>da</strong> certezainconcussa de que os seres estão dotados de beleza, medi<strong>da</strong> e ord<strong>em</strong>. Ao fazê-lo, ratificaa bon<strong>da</strong>de do Universo, contrariando as teses maniqueístas, e assevera a diferença entreDeus e as suas obras, contradizendo todo assomo de panteísmo.Afirmando a omnipresença do Princípio <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as manifestações de ser, Sto.<strong>Agostinho</strong> mostra quão inexpiável é o desconhecimento do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, por parte <strong>da</strong>mente humana 546 .Uma vez mais, não é a existência de Deus que está <strong>em</strong> causa, no itinerário para adescoberta <strong>da</strong> presença Dele por intensi<strong>da</strong>de, no interior <strong>da</strong> mente humana, mas antes adescoberta de aspectos <strong>da</strong> essência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Com efeito, é precisamente sobre aessência que incide a interrogação do Livro décimo de Confessionum - Quid aut<strong>em</strong>amo cum te amo? 547 Indubitavelmente, é num horizonte de uma relação de uniãoamorosa que se desenvolve esta in<strong>da</strong>gação <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de ama<strong>da</strong>, mediante aanálise <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. Esse facto justifica que Sto. <strong>Agostinho</strong>, mormente <strong>em</strong>Confessionum, faça concatenar o excurso sobre a referi<strong>da</strong> função <strong>da</strong> mente articulando-ocom mais uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do desejo universal de felici<strong>da</strong>de. De facto, já <strong>em</strong> De liberoarbitrio procedera de igual modo, articulando então a descoberta <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de pela razãocom aquele desiderato universal.Num caso e noutro, Sto. <strong>Agostinho</strong> procura compreender a natureza de Deus e omodelo de relação que Ele estabelece com as criaturas, de modo particular com o ser546 Sto. <strong>Agostinho</strong>, na esteira de S. Paulo (Rom. 1: 20), insiste na plena revelação do Princípio a todos oshumanos. A lex diuina está impressa no coração de ca<strong>da</strong> ser humano e to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de é instrumento queo Princípio utiliza como admonitio para que a mente humana descubra a sua forma específica de ser: adependência ontológica <strong>em</strong> relação à Dei<strong>da</strong>de, Una e Trina. Nesta medi<strong>da</strong>, e <strong>da</strong>do que, pela Incarnação doVerbo, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera o cristianismo depositário <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do ser humano acerca de simesmo, a uera philosophia ou philosophia christiana – termo que só tardiamente surge na obra doHiponenese, já nos escritos de polémica contra Juliano de Eclana – é, do ponto de vista ontológico,universalmente acessível: católica, coincidindo a religião com o exercício de uma Vera Religio. Contudo,se, por coerência com os princípios que obtém mediante reflexão, Sto. <strong>Agostinho</strong> atinge e proclama auniversali<strong>da</strong>de do cristianismo, condicionamentos culturais e históricos, próprios de um determinadomomento do curso dos t<strong>em</strong>pos, faz<strong>em</strong>-no incorrer <strong>em</strong> contradição. É o caso <strong>da</strong> contínua insistência nanecessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> recepção dos ritos de purificação baptismal para alcançar a salvação, e <strong>da</strong> afirmação deque a morte de crianças não baptiza<strong>da</strong>s as priva <strong>da</strong> participação na b<strong>em</strong>-aventurança eterna.547 Cf. Conf. X, VI, 8 ( CCL 27, p. 159).364


humano, concluindo, uma e outra vez, a radical e íntima presença <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de na formahumana, e tornando progressivamente inabalável a evidência do cui<strong>da</strong>do de Deus sobreos assuntos humanos.Na reali<strong>da</strong>de, não é apenas a insistente afirmação <strong>da</strong> simultânea transcendência eimanência de Deus que se torna paradoxal, na metafísica augustiniana 548 . No interior <strong>da</strong>obra do Hiponense causa porventura maior dificul<strong>da</strong>de justificar por que razão, nãoobstante o Mundo, a saber, o conjunto <strong>da</strong> Criação, não ser, de modo algum, efeito deuma necessi<strong>da</strong>de do Princípio, a presença Dele, íntima e permanente, nas reali<strong>da</strong>descria<strong>da</strong>s, se torna uma conclusão irrefragável <strong>da</strong> razão. Na perspectiva augustiniana,desde que há formas existentes no Mundo, elas tornam-se a tal ponto proprie<strong>da</strong>de doPrincípio que a essência Dele não se compreende já s<strong>em</strong> as suas criaturas, como se elaspróprias fizess<strong>em</strong> parte <strong>da</strong> essência divina, s<strong>em</strong>, no entanto, ser<strong>em</strong> Deus. Numamundividência como a agostiniana, de facto, é mais pr<strong>em</strong>ente justificar a existência doMundo do que a do próprio Deus, <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, Eternamente Feliz, Vi<strong>da</strong>Superabun<strong>da</strong>nte. Na reali<strong>da</strong>de, Ele a si mesmo se basta, vivendo eternamente adinâmica de Amor <strong>em</strong> que consiste a sua essência, a qual realiza <strong>em</strong> plenitude afelici<strong>da</strong>de do Seu <strong>Ser</strong>.No caso do ser humano, essa presença do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o nele pode aumentar oudiminuir de quali<strong>da</strong>de. À luz dos supostos augustinianos é possível, efectivamente, falarde uma maior ou menor participação <strong>da</strong> criatura espiritual no <strong>Ser</strong> divino. Para este factoconcorr<strong>em</strong> dois el<strong>em</strong>entos: a condição intensa do <strong>Ser</strong>, proprie<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong>descobre com o auxílio <strong>da</strong> leitura dos Platonicorum, e a natureza do livre arbítrio <strong>da</strong>vontade 549 . Porém, o fim último do ser humano é a consecução do desejo de felici<strong>da</strong>de,facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> s<strong>em</strong>pre postulou, desde a leitura de Hortensius 550 ,aprofun<strong>da</strong>ndo sucessivamente a compreensão <strong>da</strong> natureza deste desejo e o modo comoele se realiza no ser humano.548 Esta simultanei<strong>da</strong>de é afirma<strong>da</strong> com frequência pelo filósofo. A Ver<strong>da</strong>de, Superiora atque interiora(cf. Ep. LV, V: CSEL 34/2, p. 179), Superna et intima ( cf. Ep. CI, III: CSEL 34/2, p. 541), é posse <strong>da</strong>salmas sábias quando, no íntimo do coração, participam no Intimi ac Superni boni (cf. Ep. CXL, XXXIII:CSEL 44, p. 225).549 Sobre a s<strong>em</strong>ântica augustiniana do termo esse, ver E. Z. BRUNN, " Le dilèmme de l'être et du néantchez saint Augustin. Des pr<strong>em</strong>iers Dialogues aux Confessions " : Recherches augustiniennes 6 (1969),spec. p. 9-10; p. 10, notas 5 e 6.550 Cf. Conf. III, IV ( CCL 27, p. 29-30); VIII, VII, ( CCL 27, p. 123-125).365


Já desde os primeiros escritos, maxime na trilogia dos Diálogos de Cassicíaco,onde se integram Contra Acad<strong>em</strong>icos, De beata uita e De ordine, o filósofo discutira aquestão do fim último de ser humano com base na definição aponta<strong>da</strong> por Cícero para odesejo de felici<strong>da</strong>de. Assim, enquanto <strong>em</strong> Contra Acad<strong>em</strong>icos o Hiponense conclui quenão pode haver felici<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> o conhecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> De beata uita introduzum novo el<strong>em</strong>ento: a felici<strong>da</strong>de decide-se na distinção entre um estado passivo do serhumano <strong>em</strong> relação à Divin<strong>da</strong>de, segundo o qual aquele é possuído por Esta, estado quese identifica pela expressão haberi deo; e uma outra situação, na qual o ser humanopossui activamente a Divin<strong>da</strong>de, estado que se exprime pela proposição habere deum. Oprimeiro estado é comum a todos os seres, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que todos depend<strong>em</strong> e sãoproprie<strong>da</strong>de do Princípio Supr<strong>em</strong>o de <strong>Ser</strong>; a segun<strong>da</strong> situação exige a adesão livre <strong>da</strong>vontade a uma condição metafisicamente irrefragável: a dependência ontológica <strong>em</strong>face do Princípio. Idêntica à sabedoria, a uita beata - conclui-se no referido Diálogo -consiste, portanto, na posse de Deus, Ver<strong>da</strong>de <strong>em</strong> Plenitude.Em De ordine, para definir aquela posse activa de Deus, Sto. <strong>Agostinho</strong> prefere aexpressão esse cum deo. A mesma distinção surge, neste Diálogo, entre uma forma deunião, activa e intensiva, <strong>da</strong> mente humana com a Divin<strong>da</strong>de, e uma outra forma deconvivência com Ele, força<strong>da</strong>, passiva e indiferente. Esse cum deo é o estado que osábio atinge e corresponde à posse <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> feliz. Non esse sine deo é a condição, comuma todos os seres, que também acontece aos estultos e infelizes, pois é consequência doseu ser participado, que, no caso dos estultos, é assumido de forma d<strong>em</strong>issionária.Nestes primeiros Diálogos, porém, e não obstante Sto. <strong>Agostinho</strong> insistir numaunião no ser – habere deum / esse cum deo -, o discurso fixa-se d<strong>em</strong>asiado num acessoà sabedoria segundo o modelo epistémico <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, a saber, por via de uma uniãointelectual, onde somente a razão t<strong>em</strong> lugar, enquanto facul<strong>da</strong>de cognitiva. Tudo sepassa como se a única comunhão possível no ser - sendo esta sinónimo de uma adesãounitiva à reali<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a - fosse viabiliza<strong>da</strong> tão-só por via noética, ficando as d<strong>em</strong>aisformas de vivência humana e as outras expressões de ser à marg<strong>em</strong> de uma possívelligação com o divino. Este era, com efeito, o modelo de sageza proposto pelosPlatónicos, comum a to<strong>da</strong>s as gnoses. Sto. <strong>Agostinho</strong> depressa regista as inúmerasaporias <strong>em</strong> que incorre uma concepção do mundo que defen<strong>da</strong> uma tão estreita noção de<strong>Ser</strong> quando quer enfrentar o enigma <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, principalmente à hora de d<strong>em</strong>onstrarquer a universali<strong>da</strong>de e radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela noção, quer a efectiva proximi<strong>da</strong>de entre o<strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e os seres humanos. Com efeito, nesse caso, um s<strong>em</strong>-fim de expressões de366


eali<strong>da</strong>de ficam, imediatamente, marginaliza<strong>da</strong>s e, entre elas, também as facul<strong>da</strong>deshumanas e as d<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente, que não a pura razão.Concretamente, a função de recor<strong>da</strong>r, ou m<strong>em</strong>ória, é alhea<strong>da</strong>, <strong>em</strong> De ordine, <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de do sábio 551 . Imbuí<strong>da</strong> de representações materiais, ela só pode lançarobscuri<strong>da</strong>de sobre a razão que busca atingir o seu estado puro. Para tal, ela há-deseparar-se de qualquer rasto de matéria, esquecendo todo o contacto com o Mundo, poisde outra forma não poderá unir-se com Deus, inviabilizando o fim último do serhumano.Não obstante a expressão que condensa a realização <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de incidir sobre oser - esse cum deo -, ela corresponde, <strong>em</strong> De ordine, a um projecto claramente afastadodo mundo sensível e confiado ao esforço dialéctico <strong>da</strong> razão. E, se é um facto que, noreferido Diálogo, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste, até ao extr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> ironia, nas limitações eaporias de uma tal interpretação – pois se ao sábio se exige um tal desapego do mundo edo próprio corpo, certamente se discute a aquisição <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de por parte de umdefunto sábio -, também é de notar que, <strong>em</strong> De ordine, o filósofo não deixa de sublinhara efectiva diferença e incomunicabili<strong>da</strong>de entre dois mundos, a saber, o de Deus e o doshomens. Esta insistência é rectifica<strong>da</strong> <strong>em</strong> Retractationum 552 , pois <strong>da</strong>ria lugar aequívocos, não apenas na exegese do passo bíblico <strong>em</strong> questão, mas sobretudo no quese refere à concepção augustiniana de <strong>Ser</strong>, tornando esta noção supr<strong>em</strong>a uma reali<strong>da</strong>d<strong>em</strong>isantropa e inacessível às criaturas, abrindo passo às aporias sobre a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> e inviabilizando uma justificação para o efectivo cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong>s coisas humanas porparte do ser divino. A dificul<strong>da</strong>de parecia consistir, nestes primeiros Diálogos, nadescoberta de uma articulação eficaz entre a autori<strong>da</strong>de de Cristo e a dos Platónicos,duas vias que porventura terão parecido a <strong>Agostinho</strong>, à primeira vista, mais conciliáveisdo que efectivamente ele próprio viria a comprovar.Para equacionar o desejo universal de felici<strong>da</strong>de com a posse plena de Deus, eranecessário, por um lado, ampliar o horizonte <strong>da</strong> noção de <strong>Ser</strong>, fazendo que essePrincípio Supr<strong>em</strong>o reunisse <strong>em</strong> si to<strong>da</strong>s as perfeições, também a Uni<strong>da</strong>de e a Bon<strong>da</strong>de,<strong>em</strong> uníssono com a Inteligibili<strong>da</strong>de, atributos que an<strong>da</strong>vam dissociados e dispersos nosesqu<strong>em</strong>as platónico e neoplatónico <strong>da</strong>s hipóstases, dificultando, à hora de solucionar o551 Cf. DO II, II, 7 (CCL 29, p. 110-111). V., também, K. WINKLER, “La doctrine augustinienne de lam<strong>em</strong>oire à son point de départ », in Augustinus Magister I ( Paris 1953), p. 511-519; Paula OLIVEIRA ESILVA, <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong>. Diálogo sobre a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ( Lisboa 2000), p. 255-259.552 Cf. Retract. I, III, 2 ( CCL 57, p. 12).367


filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, a tarefa de lograr uma justificação racional para o modo comoDeus e o Mundo se relacionam. Por outro lado, impunha-se encontrar el<strong>em</strong>entos deligação directa, s<strong>em</strong> intermediários – termo que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, não é sinónimo deausência de mediações –, entre a mente humana, no complexo <strong>da</strong>s suas funções, e o <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, no conjunto dos seus atributos.Ora, quando Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> obras como De libero arbitrio ou, de modomenos sist<strong>em</strong>ático mas atingindo igual objectivo, <strong>em</strong> De uera religione, expõe oitinerário <strong>da</strong> mente para a Ver<strong>da</strong>de, afirma, desta noção Supr<strong>em</strong>a, simultaneamente asoberania ontológica, a razão suficiente de to<strong>da</strong>s as formas, a Bon<strong>da</strong>de e a Uni<strong>da</strong>desupernas. Inversamente, no que à mente humana se refere, e não obstante postular arelação directa entre ela e a Ver<strong>da</strong>de Superna, na qual não há mediação de nenhumacriatura, o Hiponense afirma a dinâmica <strong>da</strong>s funções que a caracterizam, atribuindo-lhescondição intermédia na hierarquia ontológica, querendo assim significar precisamente apossibili<strong>da</strong>de de acréscimo ou decréscimo <strong>da</strong> forma do ser humano na ordenação dosseres, mediante a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente.Por seu turno, <strong>em</strong> Confessionum Sto. <strong>Agostinho</strong> assinala um percurso até ao fundo<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, para encontrar, na mais ima dimensão dela, a causa que garante o alcanceontológico - e não apenas psicológico, n<strong>em</strong> tão-só gnosiológico - <strong>da</strong> relação com o sersupr<strong>em</strong>o, que aí se desvela. Trata-se de uma dimensão radical <strong>da</strong> relação que, s<strong>em</strong>intermediários e abrangendo a totali<strong>da</strong>de do ser humano, se estabelece entre a mentehumana e a Dei<strong>da</strong>de.O ponto de parti<strong>da</strong> e critério desta ascese <strong>em</strong> descensão é o Amor, e é neste acto<strong>da</strong> mente que Sto. <strong>Agostinho</strong> fará residir o derradeiro estatuto ontológico dela. Quantoao mais, o itinerário de descensão percorrido no Livro décimo de Confessionum é <strong>em</strong>tudo s<strong>em</strong>elhante àqueles que o Hiponense explana, quando quer tornar patente asuperiori<strong>da</strong>de de Deus. Neste caso, o filósofo quer aceder à essência divina para tornarinteligível a reali<strong>da</strong>de que confessa amar. Este movimento exigirá ulterioresesclarecimentos, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ele supõe um conhecimento antecipado do objectoamado. Na reali<strong>da</strong>de, o Hiponense não se cansa de afirmar que não é possível amaraquilo que não se conhece – n<strong>em</strong>o amat incognita -, questão que discute com algumdetalhe <strong>em</strong> De trinitate e <strong>da</strong> qual retira importantes ilações sobre a natureza <strong>da</strong> mentehumana.Ao fun<strong>da</strong>r este itinerário descendente, que parte <strong>da</strong> verificação de uma adesãoamorosa <strong>da</strong> mente a uma reali<strong>da</strong>de Superna, Sto. <strong>Agostinho</strong> coloca já <strong>em</strong> jogo, se b<strong>em</strong>368


que de modo implícito, a tríade <strong>em</strong> que faz consistir as funções <strong>da</strong> alma racional,preparando assim a explanação mais completa <strong>da</strong> natureza e activi<strong>da</strong>de de tais funções,sobre as quais se expande <strong>em</strong> De trinitate. Nesta obra, ao analisar as trin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente,o filósofo discute detalha<strong>da</strong>mente a anteriori<strong>da</strong>de do conhecimento implícito de Deus e<strong>da</strong> alma por si mesma, <strong>da</strong>do que, na ausência de tal conhecimento, considera não serpossível prosseguir qualquer investigação 553 .No Livro décimo de Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma pretender <strong>da</strong>r-se aconhecer aos d<strong>em</strong>ais, transmitindo, através de sinais linguísticos, aquilo que discerneacerca de si próprio, mediante uma compreensão que não provém exclusivamente de si.Dito de outro modo, pretende <strong>da</strong>r-se a conhecer por meio de um conhecimento que segera no encontro entre a mente e a Ver<strong>da</strong>de 554 . Esta Confissão corresponde aoconhecimento actual que possui de si mesmo, transmitindo aos homens a mesma nudezde consciência com que se reconhece no confronto íntimo entre a sua mente e aVer<strong>da</strong>de. Porém, tal processo só é exequível considerando a possibili<strong>da</strong>de de uma copresençaentre a alma racional e a Ver<strong>da</strong>de. É este postulado que está <strong>em</strong> questão, noitinerário descendente operado por Sto. <strong>Agostinho</strong> ao mais íntimo de si mesmo,exercido por meio de uma fenomenologia <strong>da</strong> função de recor<strong>da</strong>r. Este tirocínio deautognose, no qual se explicita a relação entre conhecimento e amor, intrínseca àdinâmica <strong>da</strong> mente humana, será, posteriormente, objecto de reflexão <strong>em</strong> De trinitate.Nesta obra o Hiponense analisa as condições de possibili<strong>da</strong>de de tal conhecimento,ensaiando, na interacção <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente, uma agnição analógica de Deus,mediante a imag<strong>em</strong> Dele, que o filósofo sabe estar impressa na mente humana.Assim, o texto do Livro décimo de Confessionum assume um carácterpropedêutico <strong>em</strong> face de uma outra sequência de itinerários de ascese <strong>da</strong> mente <strong>em</strong>direcção ao <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, os quais, fun<strong>da</strong>dos na categoria <strong>da</strong> relação, terminam noesclarecimento <strong>da</strong>quilo que o Hiponense considera ser a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na mente,a qual consiste na plenitude <strong>da</strong> sabedoria possível ao ser humano.Para revelar aos homens, <strong>em</strong> jeito de confissão, o que agora é e o que ain<strong>da</strong> não é– propósito que supõe o conhecimento de si na luz <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de -, Sto. <strong>Agostinho</strong> começa553 Cf. DT VIII, VI; VIII, IX; X, I, 1 - X, II, 4 ( CCL 50, p. 279-284; p. 289-290; p. 311-316); V.,também, De quant. anim. XXVI, 51 (CSEL 89, p. 196).554 Conf. X, II, 2: " Tibi ergo, domine, manifestus sum, quicumque sim (...). Neque enim dico recti aliquidhominibus, quod non a me tu prius audieris, aut etiam tu aliquid tale audis a me, quod non mihi priusdixeris." ( CCL 27, p. 155).369


por manifestar que ama uma reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a e que este amor se identifica por umaadesão intencional <strong>da</strong> sua mente às reali<strong>da</strong>des imutáveis. Afinal, tudo quanto há de beloe de amável nas criaturas, estando, porém, sujeito ao t<strong>em</strong>po e à corrosão, isso mesmo<strong>Agostinho</strong> ama, quando ama o seu Deus, negando, to<strong>da</strong>via, a esta última noção, osatributos específicos <strong>da</strong> matéria: espaço, t<strong>em</strong>po, movimento, corrupção, fugaci<strong>da</strong>de 555 .Na sequência deste raciocínio, Sto. <strong>Agostinho</strong> formula a seguinte interrogação: <strong>em</strong>que consiste a eterni<strong>da</strong>de, que ama e reconhece <strong>em</strong> si, acima de si? Ao interrogar oconjunto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, o filósofo interpela uma dimensão <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>dedo seu espírito, a saber, aquela que resulta do facto de a mente se endereçar para abeleza dos corpos. Interrogando to<strong>da</strong>s as criaturas, a resposta é unânime. Elas não são oDeus que <strong>Agostinho</strong> ama e quer conhecer, a fim de se conhecer a si mesmo. Ainterrogação que versa sobre a natureza <strong>da</strong>s criaturas corresponde ao movimentointencional <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> direcção ao exterior, ao qual se segue, numa in<strong>da</strong>gação quequer percorrer todos os graus de ser, a interpelação sobre a própria existência como vi<strong>da</strong>racional : tu quis es?Depois de reflectir sobre a reali<strong>da</strong>de exterior, a intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão investesobre a própria essência humana, enquanto uni<strong>da</strong>de de corpo e alma. A in<strong>da</strong>gação sobreo corpo já fora executa<strong>da</strong> no primeiro momento, <strong>da</strong>do que, mediante a corporei<strong>da</strong>de, oser humano é criatura dota<strong>da</strong> de extensão, proprie<strong>da</strong>de comum às d<strong>em</strong>ais formas deexistência material. Por isso, será na alma que o filósofo procurará o seu Deus,avançando, assim, desde o domínio dos objectos exteriores, <strong>em</strong> direcção ao mundo <strong>da</strong>interiori<strong>da</strong>de.Porém, quer ao interrogar o mundo exterior, quer ao tomar consciência <strong>da</strong> suacorporei<strong>da</strong>de como parte desse mesmo mundo, Sto. <strong>Agostinho</strong> não dissocia oconhecimento de si e o conhecimento <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des, tanto <strong>da</strong>s que ocupam umlugar inferior na hierarquia ontológica, como <strong>da</strong>s que ocupam, nela, um lugar superior.Contudo, quando interroga as reali<strong>da</strong>des que se lhe apresentam como extrínsecas àmente, e <strong>da</strong>do que o objectivo <strong>da</strong> busca é o conhecimento de Deus e de si, o filósofoconclui pela negação: elas não são o seu Deus. Inversamente, quando interroga asreali<strong>da</strong>des que a mente possui no interior de si, o filósofo encontra um trampolim paraaceder ao Deus cujo conhecimento busca e que considera indissociável do555 Cf. Conf. X, VI, 9 ( CCL 27, p. 159).370


conhecimento de si, por motivos que se tornam sucessivamente mais claros, nosdiferentes excursos do Hiponense acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> mente humana.No itinerário que designámos como descendente <strong>da</strong> mente para Deus é,efectivamente, o conhecimento de Deus e <strong>da</strong> alma que se joga, mas a própria dinâmicado percurso parece partir já do interior <strong>da</strong> mente humana para o exterior, mediante aintencionali<strong>da</strong>de do espírito que concebe uma afini<strong>da</strong>de entre a beleza e o amor. Estapriori<strong>da</strong>de metafísica do interior sobre o exterior, que Sto. <strong>Agostinho</strong> quer sublinhar,necessita, por um lado, de transitar do foro <strong>da</strong> experiência própria para o domínio <strong>da</strong>partilha comunitária, tornando-se pública, mediante a Confissão, e, por outro lado,reclama por alcançar universali<strong>da</strong>de, firmando o discurso <strong>em</strong> juízos onde se articul<strong>em</strong>noções imutáveis e eternas.meDe facto, este itinerário descendente parece, a um olhar menos atento,extr<strong>em</strong>amente afim dos d<strong>em</strong>ais executados por <strong>Agostinho</strong> e nos quais a razão concluiu aSuperiori<strong>da</strong>de de Deus, regredindo sobre si mesma. Porém, como já se fez notar, aqui oponto de parti<strong>da</strong> não é a razão, enquanto facul<strong>da</strong>de de pensar, mas o amor, enquantoactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma que envolve to<strong>da</strong>s as funções dela. <strong>Agostinho</strong> parte <strong>da</strong> consciênciade um amor que possui – <strong>da</strong> adesão <strong>da</strong> sua vontade a um b<strong>em</strong> imutável –, o qual só épossível mediante a apreensão de uma noção de eterni<strong>da</strong>de, mesmo se implícita. Ora, aeterni<strong>da</strong>de é precisamente a noção que o Filósofo de Hipona deseja transformar <strong>em</strong>conhecimento explícito 556 .556 Cf. DT X, I, 1 - X, I, 3 ( CCL 50, p. 311-315). Em De trinitate, Sto. <strong>Agostinho</strong> discorre sobre oconhecimento implícito e afirma que é ele o motor de qualquer investigação e de todo o progresso noconhecimento. Se a mente procura conhecer a beleza dos corpos, é porque esse desejo é antecedido de umconhecimento implícito do que é o Belo, ao qual corresponde um amor implícito por essa reali<strong>da</strong>de. Éesse amor que impulsiona a investigação. Este processo verifica-se <strong>em</strong> todo o movimento que conduz <strong>da</strong>ignorância ao saber. Há um conhecimento implícito <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de intencional que se busca, e que é ama<strong>da</strong>,também, mesmo se débil e implicitamente. O esforço por alcançar um conhecimento explícito dessareali<strong>da</strong>de é efeito <strong>da</strong> ponderação do valor do objecto implicitamente amado. É este processo deconhecimento que Sto. <strong>Agostinho</strong> põe <strong>em</strong> movimento no itinerário descendente <strong>da</strong> razão <strong>em</strong> direcção àreali<strong>da</strong>de implicitamente ama<strong>da</strong> - a eterni<strong>da</strong>de, noção na qual Sto. <strong>Agostinho</strong> resume a essência do Deusque ama, s<strong>em</strong> conhecer, ain<strong>da</strong>, explicitamente, o conteúdo de ambas as noções, Deus e Eterni<strong>da</strong>de. Porisso, o resultado do referido itinerário será o conhecimento - mesmo se contingente, tão claro quantopossível - <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de, de forma a intensificar o amor pela reali<strong>da</strong>de que recai sob essanoção, no caso, Deus. Neste processo, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma conhecer-se, simultânea e progressivamente,a si próprio. Ora, tal movimento só é possível na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o filósofo declara, por um lado, que oconhecimento implícito de si é inerente à própria activi<strong>da</strong>de cognitiva, e, por outro, que a essência do ser371


Para tal, Sto. <strong>Agostinho</strong> percorre o mundo exterior, debruçando-se, segui<strong>da</strong>mente,sobre a própria activi<strong>da</strong>de racional, recor<strong>da</strong>ndo, <strong>em</strong> síntese, os momentos delineados noitinerário ascendente exposto <strong>em</strong> De libero arbitrio - a função judicativa <strong>da</strong> razãoenquanto essencialmente valorativa, a afirmação do primado do espírito racional sobreas d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des, e a descoberta <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de como reali<strong>da</strong>de Superna e Princípio deto<strong>da</strong> a inteligibili<strong>da</strong>de, identifica<strong>da</strong> com Deus. Porém, este conhecimento de Deus comoVer<strong>da</strong>de Superna não é aquele que se identifica com a reali<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> dizamar e cuja natureza busca, pois de outro modo teria cessado de inquirir. Oconhecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de como noção Superna <strong>da</strong> mente que, <strong>em</strong> De libero arbitrio,fora suficiente para identificar a existência de Deus, não revela, <strong>em</strong> Confessionum, aessência do objecto amado. Manifestamente, aquele trajecto não basta já à exigência deracionali<strong>da</strong>de do Hiponense, obrigando-o a prosseguir a in<strong>da</strong>gação 557 .Por seu turno, <strong>em</strong> De trinitate Sto. <strong>Agostinho</strong> discorre sobre a natureza doconhecimento implícito, afirmando que é ele o motor de qualquer investigação e de todoo progresso cognitivo. Assim, por ex<strong>em</strong>plo, o filósofo faz notar que qu<strong>em</strong> procuraconhecer a beleza dos corpos, fá-lo porque esse desejo é antecedido por umconhecimento implícito <strong>da</strong> essência do belo, ao qual corresponde um desejo implícito deposse desse b<strong>em</strong>. Ora, são estes dois os motores que impulsionam a investigação: oconhecimento implícito e o desejo de posse dessa reali<strong>da</strong>de. Este movimento verifica-se<strong>em</strong> todo o processo que conduz <strong>da</strong> ignorância ao saber. Há um conhecimento implícito<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se busca, a qual é também ama<strong>da</strong>, mesmo se débil e implicitamente. Oesforço por alcançar um conhecimento explícito dessa reali<strong>da</strong>de resulta <strong>da</strong> ponderaçãodo valor do objecto implicitamente amado.É este processo de agnição que Sto. <strong>Agostinho</strong> executa no itinerário descendente<strong>da</strong> razão <strong>em</strong> direcção ao objecto implicitamente amado – a eterni<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> que Sto.<strong>Agostinho</strong> resume a essência do Deus que confessa amar, s<strong>em</strong> conhecer, ain<strong>da</strong>,humano consiste na relação que estabelece com o Princípio Soberano de <strong>Ser</strong>, Deus. Assim, o progresso noconhecimento dos conteúdos <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, partindo de um implícito amor pela eterni<strong>da</strong>de, revela, a umt<strong>em</strong>po e <strong>em</strong> compenetração, a essência <strong>da</strong> mente e a <strong>da</strong> própria divin<strong>da</strong>de.557 Conf. X, VII, 11: “Quid ergo amo, cum deum meum amo? Quis est ille super caput animae meae? Peripsam animam ascen<strong>da</strong>m ad illum (…).” ( CCL 27, p. 160).372


explicitamente, o conteúdo de ambas as notitiae 558 . Por isso, o resultado de tal itinerárioserá o conhecimento, tão claro quanto possível, <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de, por forma aintensificar o amor pelo objecto que recai sob essa noção, no caso concreto – e porquede uma noção supr<strong>em</strong>a se trata - Deus.Curiosamente, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que, para alcançar o seu objectivo –conhecer-se como é conhecido pela Ver<strong>da</strong>de Superna, e revelar aos d<strong>em</strong>ais a ver<strong>da</strong>dedesse conhecimento - deve ultrapassar a própria força <strong>da</strong> razão, quando esta se dirigepara os objectos sensíveis, e centrar-se no primeiro grau de interiori<strong>da</strong>de, sobre o qualpode reflectir com independência do impacto dos sentidos externos. É na m<strong>em</strong>ória queSto. <strong>Agostinho</strong> encontra material sobr<strong>em</strong>aneira farto para iniciar esse itineráriodescendente <strong>da</strong> razão para Deus. Porém, note-se que a análise que o Hiponense leva aefeito no Livro décimo de Confessionum não incide exclusivamente sobre a activi<strong>da</strong>de<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória enquanto função <strong>da</strong> alma. Na reali<strong>da</strong>de, é já to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> íntima <strong>da</strong> menteque aí se descreve, mediante uma fenomenologia do acto de recor<strong>da</strong>r 559 . A desci<strong>da</strong> aoimenso palácio <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória é motivo para Sto. <strong>Agostinho</strong> enunciar aspectos cruciaissobre o modo como concebe a natureza do conhecimento humano e para eluci<strong>da</strong>r omodo como a forma humana assume e realiza a categoria ontológica <strong>da</strong> relação.M<strong>em</strong>ória, inteligência e vontade concorr<strong>em</strong> para a percepção <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de eimplicam-se no juízo que a mente faz, quando se debruça sobre a reali<strong>da</strong>de exterior.Esta, por sua vez, é reti<strong>da</strong>, mediante os sentidos corpóreos, pela m<strong>em</strong>ória, através <strong>da</strong>formação <strong>da</strong>s imagens <strong>da</strong>s coisas ou representações. O Filósofo de Hipona insiste,portanto, na dimensão imanente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma racional, a qual transcende umaconcepção de conhecimento como activi<strong>da</strong>de pura <strong>da</strong> razão, pois envolve to<strong>da</strong> adinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente. Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixa de reconhecer que esta vi<strong>da</strong><strong>da</strong> alma, que cria e origina um ver<strong>da</strong>deiro mundo interior, se reveste de algum mistério.A condição imaterial do conhecimento humano é, <strong>em</strong> si mesma, objecto de assombro, e558 Como esclarece <strong>em</strong> DT X, I, 1 ( CCL 50, p. 311-312), todo o conhecimento implícito se fun<strong>da</strong>mentana condição impressa <strong>da</strong>s noções, universais e comuns, para as quais dirige o esforço <strong>da</strong> razão: beleza,sabedoria, bon<strong>da</strong>de, justiça, <strong>em</strong> suma, to<strong>da</strong>s as notiones impressae.559 Em Conf. X, VIII, 12, ao transpor a razão, quando reflecte sobre os sentidos, fixando-se na m<strong>em</strong>ória,Sto. <strong>Agostinho</strong> articula, de modo imediato, a tríplice activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente – recor<strong>da</strong>r, pensar, querer: "(...)et uenio in campos et lata praetoria m<strong>em</strong>oriae, ubi sunt thesauri innumerabilium imaginum de cuisc<strong>em</strong>odirebus sensis inuectarum. Ibi reconditum est, quidquid etiam cogitamus (...). Ibi quando sum, posco, utproferatur quiquid uolo (...)." [ CCL 27, p. 161 ( it. n. ) ].373


a natureza <strong>da</strong> mente, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que implica uma relação com uma reali<strong>da</strong>deessencialmente diferente dela, está rechea<strong>da</strong> de paradoxos, não podendo exaurir-se <strong>em</strong>absoluto o seu conteúdo.Com efeito, de que modo pode a alma possuir tantas reali<strong>da</strong>des, umasdirectamente dependentes <strong>da</strong> percepção sensível - como o mar, a terra, o céu, a cor, osom e o cheiro -, outras decorrentes <strong>da</strong> experiência que a mente t<strong>em</strong> de si mesma, nasquais se integram, não apenas o passado e o presente, mas a projecção do futuro? 560Além do mais, todo este mundo interior é imenso e, precisamente pela superiori<strong>da</strong>deontológica <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des espirituais <strong>em</strong> relação às corpóreas, tal mundo possuiu umadensi<strong>da</strong>de maior do que a <strong>da</strong>s próprias reali<strong>da</strong>des de que a mente partiu, podendoarticulá-las e dispor delas para construir e vivificar o íntimo <strong>da</strong> alma humana, s<strong>em</strong>,to<strong>da</strong>via, com elas se identificar. Nesta medi<strong>da</strong>, é decisiva, para a compreensão <strong>da</strong> ordorerum e para a realização dela, a quali<strong>da</strong>de do mundo interior que ca<strong>da</strong> ser humanoconstrói, no qual consiste a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma do seu ser, <strong>da</strong> qual vive e mediante aqual exerce a sua activi<strong>da</strong>de como ser humano. Por isso, será também esta dinâmica deinteriori<strong>da</strong>de que poderá esclarecer aquilo que Sto. <strong>Agostinho</strong> considera ser a realização<strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na mente humana.Efectivamente, no itinerário ascendente <strong>da</strong> razão para Deus, a mente humanadescobre o valor supr<strong>em</strong>o pelo qual deve reger-se, para que esteja ordena<strong>da</strong> de acordoconsigo mesma, ocupando o lugar que lhe corresponde na hierarquia ontológica.To<strong>da</strong>via, a mente é uma complexa trama de princípios de activi<strong>da</strong>de, todos eles dotadosde meandros e de lugares recônditos, como Sto. <strong>Agostinho</strong> põe de manifesto na análiseque faz <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória humana, insistindo <strong>em</strong> que esta mesma in<strong>da</strong>gação não se poderealizar s<strong>em</strong> o concurso <strong>da</strong> inteligência e <strong>da</strong> vontade. Por isso, para entender o quesignifica a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> no ser humano e de que modo se pode afirmar que eleestá devi<strong>da</strong>mente ordenado de acordo consigo próprio é indispensável compreender omodo como o filósofo concebe a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma, ao analisar a inter-relação <strong>da</strong>sfacul<strong>da</strong>des.560 Cf. Conf. X, VIII, 13: “ (...) quae quomodo fabricatae sint [imagines] quis dicit, cum appareat, quibussensibus raptae sint interiusque reconditae?” (CCL 27, p.162). Em todo o parágrafo, o filósofo insiste naacção <strong>da</strong> vontade sobre as representações recolhi<strong>da</strong>s na m<strong>em</strong>ória, sublinhando o carácter imaterial <strong>da</strong>simagens, o qual não deixa de constituir um mistério. A imateriali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s imagens e a presença delas namente, que a tradição filosófica de cariz aristotélico justifica mediante a doutrina <strong>da</strong> abstracção, aparece,para Sto. <strong>Agostinho</strong>, envolta <strong>em</strong> enigma.374


Magna est uis m<strong>em</strong>oriae, proclama <strong>Agostinho</strong> 561 . Um dos aspectos desta magnauis é precisamente o facto de, <strong>em</strong> todo o acto de conhecimento, mesmo no <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des exteriores, se incluir já, de modo imediato e implícito, o conhecimento desi 562 . Em Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> toma consciência <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de do processode auto conhecimento. Por um lado, o filósofo comprova e afirma que a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mentehumana abarca um horizonte infindo de reali<strong>da</strong>des, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela não asalcança de modo material, <strong>em</strong> extensão, mas espiritual e intensivo. Desta forma, oespírito humano, <strong>em</strong> si mesmo finito, apresenta-se a <strong>Agostinho</strong> d<strong>em</strong>asiado estreito paraa si mesmo se conter, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, potencialmente, é capaz de abarcar, de formaintencional, o conjunto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s 563 . Este facto é tanto mais irrecusávelquanto o Filósofo de Hipona afirma que, na mente humana, coexist<strong>em</strong> a contingência, asujeição ao t<strong>em</strong>po e ao movimento, e a permanência, nela, <strong>da</strong> própria noção deeterni<strong>da</strong>de, à qual corresponde a essência de Deus.O magno motivo de assombro – a estreiteza <strong>da</strong> mente para se abarcar a si mesma –será posteriormente discutido pelo filósofo, ampliando a probl<strong>em</strong>ática, <strong>em</strong> De trinitate.O facto de a mente não conhecer a totali<strong>da</strong>de de si mesma, <strong>da</strong><strong>da</strong> a infinitude do objectopara que tende, não significa que alguma parte <strong>da</strong> mente fique fora de quanto elaconhece 564 . Efectivamente, a alma humana não t<strong>em</strong> partes, pois não é uma reali<strong>da</strong>d<strong>em</strong>aterial, questão que ficara encerra<strong>da</strong> já <strong>em</strong> De quantitate animae. A mente humanapossui, antes, diversas funções, para as quais, mediante um esforço analítico, se pod<strong>em</strong>determinar campos específicos de activi<strong>da</strong>de, atribuindo-lhes tarefas distintas noexercício <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de que caracteriza a forma do ser humano. Contudo, a561 Cf. Conf. X, VIII, 12; X, XVII, 26 ( CCL 27, p. 161; p. 168-169).562 Conf. X, VIII, 15: " Magna ista uis est m<strong>em</strong>oriae, magna nimis, deus meus, penetrale amplum etinfinitum. (…) Et uis est haec animi mei atque ad meam naturam pertinet, nec ego ipse capio totum, quodsum." ( CCL 27, p.162). A natureza <strong>da</strong> auto gnose esclarecer-se-á quando Sto. <strong>Agostinho</strong> analisar anatureza do conhecimento implícito, concretamente <strong>em</strong> DT X, III, 5 ( CCL 50, p. 317). O próprio facto deir <strong>em</strong> busca do conhecimento de si é, para <strong>Agostinho</strong>, índice de que a mente t<strong>em</strong>, de si mesma, algumconhecimento, pois se totalmente se ignorasse não poderia tomar-se a si mesma como objecto dein<strong>da</strong>gação.563 Conf. X, VIII, 15: " (…) Ergo animus ad habendum se ipsum angustus est, et ubi sit quod sui noncapit? Numquid extra ipsum ac non in ipso? Quomodo ergo non capit? Multa mihi super hoc oborituradmiratio, stupor apprehendit me." ( CCL 27, p. 162).564 DT X, III, 6: « Cum itaque aliquid de se scit, quod nisi tota non potes, totam se scit. Scit aut<strong>em</strong> sealiquid scient<strong>em</strong>, nec potest quidquam scire nisi tota. Scit se igitur totam. » ( CCL 50, p. 318-319).375


activi<strong>da</strong>de cognitiva que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, resulta <strong>da</strong> interacção destas funções, éplenamente imaterial e, como tal, n<strong>em</strong> essa activi<strong>da</strong>de, n<strong>em</strong> a mente, que a unifica e naqual inere, se sujeitam à divisão <strong>em</strong> partes.Da mesma forma, o resultado do conhecimento – aquilo que Sto. <strong>Agostinho</strong>designa por scientia - não é quantificável. É, antes, o efeito de uma quali<strong>da</strong>de adquiri<strong>da</strong>pelo espírito, que o aperfeiçoa e que realiza, nele, um aspecto <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, mesmo que nãoseja aquele <strong>em</strong> que consiste a expressão mais plena e radical dessa noção, a qual ofilósofo reserva, não para o domínio <strong>da</strong> scientia, mas <strong>da</strong> sapientia.Nesta imbrica<strong>da</strong> discussão acerca <strong>da</strong> identificação, ou não, entre a mente humanae o seu conteúdo cognitivo, real ou possível, dois aspectos são de sublinhar. Umprimeiro define uma característica essencial <strong>da</strong> natureza do conhecimento humano, talcomo o Hiponense o concebe. Um outro, mais directamente explanado pelo filósofo nodécimo Livro de Confessionum, consiste na afirmação <strong>da</strong> diferença ontológica entre aeterni<strong>da</strong>de e o t<strong>em</strong>po. Sto. <strong>Agostinho</strong> descobre-a na dimensão mais recôndita <strong>da</strong> mente,mediante a análise <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, como o fará s<strong>em</strong>pre que analisa a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mentehumana, quer atendendo ao domínio de acção de uma função específica, quer fixando-sena interacção entre as diferentes funções. Com efeito, quando reflecte sobre a natureza<strong>da</strong> mente humana, é s<strong>em</strong>pre a diferença entre t<strong>em</strong>po e eterni<strong>da</strong>de que v<strong>em</strong> a lume, pois éela que caracteriza, na óptica do Hiponense, a essência <strong>da</strong> forma do ser humano.Igualmente, é nesta diferença e por meio dela que se descortina a natureza <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,enquanto Princípio supr<strong>em</strong>o que esclarece, na mundividência augustiniana, a relaçãoentre o Uno e o Múltiplo.Quanto ao primeiro aspecto, a saber, a identificação de características essenciaisdo conhecimento humano, ao considerar a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente e do seu conteúdo, Sto.<strong>Agostinho</strong> não admite qualquer cisão entre sujeito e objecto. Com efeito, não é este omodelo cognitivo proposto pelo Hiponense. Por isso mesmo, máxime no que aoconhecimento de Deus e <strong>da</strong> alma se refere, o filósofo insurge-se permanent<strong>em</strong>entecontra as concepções do mundo basea<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ficções ou representações produzi<strong>da</strong>s peloespírito humano, resultantes <strong>da</strong> combinação de imagens corpóreas. Mediante estaarticulação de phantasmata nasc<strong>em</strong> interpretações fictícias e fantásticas acerca <strong>da</strong>quelesdois pólos de relação - Deus e o ser humano -, essenciais na constituição de to<strong>da</strong> ametafísica.No entender de Sto. <strong>Agostinho</strong>, tais conjecturas baseiam-se <strong>em</strong> projecções doespírito humano, que cria, a partir de si, o próprio objecto de conhecimento. O resultado376


deste processo é a construção de idola, frutos de uma alienação do espírito e orig<strong>em</strong> deto<strong>da</strong>s as formas de idolatria, as quais, para <strong>Agostinho</strong>, mais não são do que expressõesadultera<strong>da</strong>s <strong>da</strong> forma de conceber a categoria ontológica <strong>da</strong> relação, reduzindo-a à suaexpressão psicológica. Ora, a construção de mundividências onde o ser se reduz àsfantasias do espírito, confundindo com elas aquela categoria derradeira, só é possível sea estrutura cognitiva se conceber, exclusivamente, <strong>em</strong> termos de representação,fun<strong>da</strong>ndo-se na auto posição ou criação do objecto cognitivo a partir do sujeito.É este, afinal, o cerne <strong>da</strong> crítica de algumas correntes <strong>da</strong> filosofia cont<strong>em</strong>porânea àreligião, nomea<strong>da</strong>mente ao cristianismo. Ora, tal crítica será legítima s<strong>em</strong>pre que, porreligião, se enten<strong>da</strong> uma concepção do mundo que ignore a transcendência, a qualnecessariamente se transformará <strong>em</strong> expressões, teóricas ou práticas, de totalitarismo.Criando um Deus à medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> razão humana, a qual se encerra <strong>em</strong> si mesma no ciclo<strong>da</strong>s representações, não superando o dualismo sujeito/objecto, não é possível integrar adiferença, n<strong>em</strong> no plano horizontal, n<strong>em</strong> na direcção vertical. To<strong>da</strong> a forma dealteri<strong>da</strong>de real fica, assim, inviabiliza<strong>da</strong>. Tais concepções do mundo alienam, dest<strong>em</strong>odo, a categoria ontológica mais radical, a qual, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, se designa por<strong>Ord<strong>em</strong></strong> ou <strong>Relação</strong>. Porventura a crítica à religião como alienação, facilmentereconheci<strong>da</strong> nas correntes do materialismo dialéctico, é legítima, quando se dirige ainterpretações do mundo onde tudo gira <strong>em</strong> torno de um Espírito Subjectivo, à maneirade Hegel, ou des<strong>em</strong>boca <strong>em</strong> expressões onde a religião – ou a categoria <strong>da</strong> <strong>Relação</strong>,sobre a qual se erige to<strong>da</strong> concepção religiosa – é reduzi<strong>da</strong> à representação, como naproposta de Schopenhauer. Porém, to<strong>da</strong>s estas concepções estão b<strong>em</strong> longe de sejustificar<strong>em</strong> à luz <strong>da</strong> categoria augustiniana de <strong>Relação</strong>, tendo o próprio Hiponense, <strong>em</strong>defesa <strong>da</strong> uera religio, combatido afinca<strong>da</strong>mente to<strong>da</strong> a redução desta categoria àsrepresentações do espírito humano 565 .565 Sto. <strong>Agostinho</strong> analisa atentamente a categoria <strong>da</strong> representação e confere-lhe, <strong>em</strong> boa parte, a sede detodos os enganos. Por um lado, o domínio do conhecimento como representação não alcança, para oHiponense, o plano metafísico, n<strong>em</strong> sequer o gnosiológico, mas apenas o psicológico. Aqui, todos osequívocos são possíveis. É no domínio dos phantasmata que o filósofo chega a admitir a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>intervenção de criaturas racionais superiores, cuja vontade se fixa na perversão <strong>da</strong> auersio Dei, sobre oser humano, prendendo este às trevas do erro e <strong>da</strong> falácia. Estas criaturas que, na obra do Hiponense,assum<strong>em</strong> a designação comum de d<strong>em</strong>ónios, pod<strong>em</strong> de iure exercer acção sobre o ser humano, poissobrepõ<strong>em</strong>-se-lhe na hieraquia ontológica.377


O segundo aspecto supra indicado - a diferença ontológica que Sto. <strong>Agostinho</strong>descobre no íntimo <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, marca<strong>da</strong> pela união, na mente, entre eterni<strong>da</strong>de e t<strong>em</strong>po- cria a paradoxal situação de uma descoincidencia <strong>da</strong> mente consigo mesma. Paracompreender esta aparente contradição, longe de evocar um esqu<strong>em</strong>a cognitivo baseadona objectivação do espírito, o Hiponense defenderá a presença do próprio <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>oe Eterno no interior <strong>da</strong> mente, s<strong>em</strong>, contudo, com ela se identificar. É na compreensãodesta dinâmica - a saber, a que estabelece a proximi<strong>da</strong>de radical entre Deus e o serhumano, ao ponto de o próprio Deus estar inscrito, presente, impresso, na menteracional, sendo precisamente esta a dimensão que determina o lugar <strong>da</strong> forma humanana hierarquia ontológica - que se descortina a dimensão essencial <strong>da</strong> noção augustinianade <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Um dos atributos que o Hiponense <strong>em</strong>prega para definir esta situação paradoxal,segundo a qual a mente humana unifica, <strong>em</strong> si, o t<strong>em</strong>po e a eterni<strong>da</strong>de, é a noção dedissimilitudo, a qual, nesta acepção mais decisiva, não decorre de uma que<strong>da</strong> original,n<strong>em</strong> de um defeito <strong>da</strong> natureza, mas atinge o domínio ôntico, onde o ser humanoreconhece a sua contingência e, simultaneamente, descobre a sua magnanimi<strong>da</strong>de.Dissimilitudo significa, então, diferença ontológica entre a Eterni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o ea finitude do ser humano, a qual persistirá como condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própriarelação que se estabelece entre estes dois pólos. S<strong>em</strong> diferença não há ord<strong>em</strong> possível.A este respeito, a procura de Deus mediante a m<strong>em</strong>ória é paradigmática. De facto,no termo desse processo de busca, o Filósofo de Hipona descobre que a mente e Deussão reali<strong>da</strong>des co-presentes, evidenciando que esta presença mútua se dá mediante umarelação que não poderia, de modo algum, seguir o modelo <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> reduzirDeus a uma representação e a um produto do espírito humano, anulando a diferença. Adissimilitudo é, então, para o Hiponense, o atributo <strong>da</strong> alma racional que identifica omodelo de relação que se estabelece entre Deus e a mente, sendo este atributomaximamente positivo e extensivo a to<strong>da</strong>s as criaturas. No caso <strong>da</strong> relação entre Deus eo ser humano, a diferença significa, por um lado, que, se o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o está s<strong>em</strong>prepresente na mente humana, o inverso n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se verifica, tornando-se a própriarelação, por parte do ser humano, objecto de conquista. De notar ain<strong>da</strong> que adissimilitudo decorre <strong>da</strong> condição criatural do ser humano e, por isso, não se dissolvenunca, inscrevendo esta dinamici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e a mentehumana num horizonte de eterni<strong>da</strong>de.378


Se é ver<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> invoca, para a alma humana, a superação de umestado de inquietude pelo descanso <strong>em</strong> Deus, este estado não implica a anulação <strong>da</strong>activi<strong>da</strong>de especificamente humana, significando apenas o afastamento dos obstáculospara a consecução do fim último do ser humano. Tal finali<strong>da</strong>de, por sua vez, exprime-seno desejo de felici<strong>da</strong>de. Esta noção, absorvi<strong>da</strong> desde cedo por <strong>Agostinho</strong> nos escritos deCícero, será sucessivamente aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, podendo resumir-se, na obra do Hiponense,no desejo de vi<strong>da</strong> eterna <strong>em</strong> Paz. Porém, enquanto vi<strong>da</strong>, seria contraditório considerá-lavota<strong>da</strong> a um quietismo anquilosado, próprio de seres exânimes. Ela estará, portanto,repleta de uma activi<strong>da</strong>de eterna, cuja natureza o Hiponense vai progressivamenteesclarecendo e cuja condição de possibili<strong>da</strong>de reside, precisamente, na subsistência <strong>da</strong>dissimilitudo. No itinerário ascendente <strong>da</strong> razão para Deus, esta fora identifica<strong>da</strong> pelairreciproci<strong>da</strong>de existente entre razão e Ver<strong>da</strong>de. No percurso descendente, taldissimilitudo verifica-se pela diferença percepciona<strong>da</strong> entre Deus e a alma, conforme seconsidere um ou outro dos pólos desta relação radical.Assim, seja qual for a direcção que tome o percurso <strong>da</strong> mente humana para Deus -quer se considere <strong>em</strong> processo ascendente ou <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong>de -, a dissimilitudo serás<strong>em</strong>pre descoberta, no ponto de chega<strong>da</strong>, como categoria metafísica que exprime aradicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dependência ontológica, comum a to<strong>da</strong>s as criaturas e que assume a suaespecifici<strong>da</strong>de na forma do ser humano, enquanto vi<strong>da</strong> racional. Tal característicadistingue-se, de modo absoluto, de uma vivência <strong>da</strong> mente naquela dimensão a que Sto.<strong>Agostinho</strong> designa por regio egestatis, a qual confessa ter experimentado, e que resultade um afastamento voluntário <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> relação ao Princípio do seu ser. Uma talforma de usufruir <strong>da</strong> própria existência é falsa, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que torna actual, para amente, enquanto objectos de posse, as reali<strong>da</strong>des corpóreas e inferiores, como se foss<strong>em</strong>o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Ora, o efeito do preenchimento <strong>da</strong> alma com a posse destes bens é aindigência, como se discute <strong>em</strong> De beata uita, e a consequente inquietude <strong>da</strong> almahumana - a tensão <strong>da</strong> mente para bens corpóreos. Esta, engana<strong>da</strong> no mais íntimo de si,desfruta <strong>da</strong> parte como se fosse o Todo, dos bens ínfimos como se do Supr<strong>em</strong>o setratasse. E, porque a mente humana, essencial e efectivamente, tende àquele B<strong>em</strong>, aoaderir a qualquer outra reali<strong>da</strong>de como se <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de se tratasse, a forma humanaesvazia-se, verificando-se, assim, a degra<strong>da</strong>ção dela na ord<strong>em</strong> do ser.Por isso, para se ancorar na regio dissimilitudinis, abandonando a regio egestatis,a fim de, a partir desse conhecimento de si, poder edificar uma vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> rectitude, Sto.<strong>Agostinho</strong> postula a necessi<strong>da</strong>de de um movimento de conversão <strong>da</strong> alma. Esta379


conversão é possível na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, como se afirmou, <strong>em</strong> todo o acto cognitivo vaiimplícito um recto conhecimento de si, o qual, pela efectiva relação entre a mente e aVer<strong>da</strong>de, não se dissocia <strong>da</strong> presença, igualmente implícita, subjacente e s<strong>em</strong>preactuante, do Criador, no interior <strong>da</strong> mente humana.É para o reconhecimento <strong>da</strong> natureza desta presença que progride aquele itinerário<strong>da</strong> mente, elaborado por Sto. <strong>Agostinho</strong>, que se designou como movimento descendente<strong>da</strong> razão para Deus. Assim, a pesquisa elabora<strong>da</strong> ao recôndito <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória é mais ummomento <strong>da</strong> realização do desiderato que o Hiponense traçara para atingir a sabedoria esobre o qual se ergue a proposta <strong>da</strong> sua metafísica, assim como a metodologia adopta<strong>da</strong>,fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a dialéctica do conhecimento <strong>da</strong> alma e de Deus. To<strong>da</strong>via, <strong>em</strong>Confessionum acrescenta-se uma indicação, que d<strong>em</strong>arca o horizonte desta busca:cognoscam te, cognitor meus, sicut et cognitus sum 566 .Note-se, ain<strong>da</strong>, que se é ver<strong>da</strong>de que a desci<strong>da</strong> de Sto. <strong>Agostinho</strong> ao fundo <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória permite o acto <strong>da</strong> própria confissão como reconhecimento de si, mediante aproclamação de quanto o filósofo encontra no interior <strong>da</strong> mente, a atenção do Hiponensenão se dirigirá, de modo fun<strong>da</strong>mental, para o plano psicológico dos conteúdos doespírito humano. É um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> não desdenha essa perspectiva deanálise. Contudo, o seu objectivo é claro, e b<strong>em</strong> mais amplo: conhecer-se a si mesmo,tal como é conhecido por Deus, pois só nesse plano de radicali<strong>da</strong>de o filósofo consideraque o conhecimento de si outorga sentido à própria confissão. Na óptica do Hiponense,só nesse domínio de análise a mente não estagnará numa auto-avaliação do espírito porsi mesmo, mas descobrirá – e poderá transmitir aos d<strong>em</strong>ais - o efeito <strong>da</strong> acção do <strong>Ser</strong>,Absolutamente Outro, sobre a própria mente humana. Na ver<strong>da</strong>de, é esta acção a causaeficiente do conhecimento, mediante um processo de iluminação que permite à menteconhecer-se e às d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des, tal como são conheci<strong>da</strong>s por esse Princípio, ou seja,tal como subsist<strong>em</strong>, na Ver<strong>da</strong>de Criadora. Nesta medi<strong>da</strong>, esta proclamação, por parte de<strong>Agostinho</strong>, do estado actual <strong>da</strong> sua mente, <strong>em</strong> que consiste a confissão anuncia<strong>da</strong> noLivro décimo de Confessionum, cumpre a regra lau<strong>da</strong>tória que o filósofo impusera <strong>em</strong>De libero arbitrio como paradigma <strong>da</strong> atitude legítima <strong>da</strong> mente humana ante as obrasdo Criador. Com efeito, é também essa a regra que preside, <strong>em</strong> Confessionum.Uma avaliação do Livro décimo de Confessionum, à luz <strong>da</strong> radicali<strong>da</strong>de dopropósito augustiniano de uma recta auto gnose, permite revisitar ca<strong>da</strong> um dos566 Conf. X, I, 1 ( CCL 27, p. 155).380


momentos percorridos pelo Hiponense quando analisa a função de recor<strong>da</strong>r,considerando-a não já <strong>em</strong> si mesma, mas na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, paulatinamente, por meiodela, se indiciam os el<strong>em</strong>entos que viabilizarão um tal conhecimento. O termo desseprocesso conclui que a Ver<strong>da</strong>de sobre si mesmo é possível pela já referi<strong>da</strong> condiçãoparadoxal <strong>da</strong> consciência: a co-presença entre Deus e o espírito humano. Na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong>que se trata de um conhecimento por presença, ele articula-se com a função <strong>da</strong> ment<strong>em</strong>ediante a qual o <strong>Ser</strong> é captado <strong>em</strong> estreita conexão com a dimensão t<strong>em</strong>poral. Por isso,a m<strong>em</strong>ória é, neste trajecto, a função <strong>da</strong> mente à qual Sto. <strong>Agostinho</strong> presta particularatenção s<strong>em</strong>, contudo, poder isolar a análise <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de dela e a intervenção <strong>da</strong>sd<strong>em</strong>ais funções, no processo cognitivo humano.Na reali<strong>da</strong>de, a concepção augustiniana de <strong>Ser</strong>, que não só não abdica, como ain<strong>da</strong>sublinha, por to<strong>da</strong>s as vias, a diferença ontológica, terá de enfrentar, uma vez mais, amisteriosa forma de co-presença que se dá numa relação onde a reciproci<strong>da</strong>de dostermos está ausente. Tratando-se de Deus e <strong>da</strong> mente humana – e sendo aquela noçãocaracteriza<strong>da</strong> pela total supr<strong>em</strong>acia <strong>em</strong> relação a to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais formas de existência –,como justificar a presença Dele no interior do espírito humano s<strong>em</strong> que se gere umafusão de naturezas ? E como identificar as condições de possibili<strong>da</strong>de do acesso a umatal dimensão de conhecimento, aquele cujo objecto é a própria mente humana, não já talcomo ela é para si mesma, mas tal como ela é conheci<strong>da</strong> pelo próprio Criador?Na obra do Hiponense encontra-se uma resposta para estas dificul<strong>da</strong>des,atendendo ao modo como o filósofo analisa a função de recor<strong>da</strong>r, não já para esclareceras proprie<strong>da</strong>des que nela identifica, mas para esclarecer a forma como um tal examerevela, gra<strong>da</strong>tim, as condições de co-presença entre a alma e Deus, indicando, por umlado, el<strong>em</strong>entos acerca <strong>da</strong> essência de ambos os termos envolvidos nesta relação, einsistindo, por outro lado, que é na relação, <strong>em</strong> si mesma considera<strong>da</strong>, que a mentehumana pode adquirir conhecimento de si.Para <strong>Agostinho</strong>, a m<strong>em</strong>ória não é uma função volta<strong>da</strong> exclusivamente para arecor<strong>da</strong>ção do passado. Com efeito, ela integra a experiência passa<strong>da</strong> numa vivênciapresente e, a partir de ambas, unificando-as numa mesma pessoa humana, torna possívela projecção de futuro. Quando Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que a m<strong>em</strong>ória é guardiã destatríplice dimensão <strong>da</strong> vivência humana, a qual considera s<strong>em</strong>pre determina<strong>da</strong>t<strong>em</strong>poralmente, o filósofo manifesta de modo inconcusso uma peculiar perspicácia nacompreensão <strong>da</strong> psicologia humana. Na ver<strong>da</strong>de, o Hiponense comprova que to<strong>da</strong> a381


projecção de futuro t<strong>em</strong> como ponto de parti<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de vivencia<strong>da</strong> no presente, s<strong>em</strong>prescindir <strong>da</strong> experiência passa<strong>da</strong>, mais ain<strong>da</strong>, assentando nela. Porém, o domíniopsicológico desta concepção <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de humana é ultrapassado pelo próprio<strong>Agostinho</strong>, quando inscreve esta experiência no domínio de uma meta-antropologia,rompendo, antes de mais, com a tradição filosófica de filiação platónica, a qualconsiderara a m<strong>em</strong>ória como função preponderant<strong>em</strong>ente regressiva. O aspecto fulcraldesta concepção antropológica do ser humano é a dimensão intencional, vocaciona<strong>da</strong>para uma dinâmica de futuro, sobre a qual Sto. <strong>Agostinho</strong> a erige. Não obstante oaparente paradoxo, a concepção augustiniana de m<strong>em</strong>ória desenha uma compreensão domundo onde o <strong>Ser</strong> se realiza projectivamente, numa dinâmica que supera a dimensãocronológica do t<strong>em</strong>po, não podendo abdicar de uma visão escatológica que afecta ca<strong>da</strong>expressão de ser <strong>em</strong> particular e a interacção de to<strong>da</strong>s, no conjunto do universo criado.Inversamente, para Platão, como para os Platónicos, de que Sto. <strong>Agostinho</strong> declarater recebido influência, o <strong>Ser</strong> encontra-se totalmente recolhido e realizado numPrincípio arcano, e é para lá que a alma humana deve encaminhar o seu esforço éticonoético.A experiência <strong>da</strong> tridimensionali<strong>da</strong>de t<strong>em</strong>poral na alma denota, numa tal visãodo mundo, dispersão e multiplici<strong>da</strong>de, características que dev<strong>em</strong> ser anula<strong>da</strong>s pelaprópria mente, pois de outro modo não se viabiliza a união entre a razão – chispa delume divino, no ser humano –, e aquele Princípio do qual ela escapou, a Uni<strong>da</strong>de divina,s<strong>em</strong> que, para tal fuga, se consiga encontrar explicação plausível. Neste contexto, oregresso <strong>da</strong> razão sobre si mesma, postulado por tais filosofias, unido a um processo deconversão ou purificação noética tende a restituir à alma o estado de perfeição que elapossuía no Princípio, ou seja, antes de se unir com o corpo e de se misturar com amatéria. É desta estranha mistura, desta convivência <strong>da</strong> alma com el<strong>em</strong>entos alheios àsua diva condição, puramente inteligível, que lhe advêm to<strong>da</strong>s as afecções negativas, osofrimento, a dor e a ignorância.A esta luz, que mais pode desejar a alma, para o seu “futuro”, senão um regresso àOrig<strong>em</strong>, um restabelecimento do passado, um abandono de to<strong>da</strong>s as afecções recebi<strong>da</strong>snesse seu cárcere, que é o corpo? Aliás, unindo a esta concepção de anamnese,considera<strong>da</strong> fonte de sabedoria, a apologia do ciclo de reencarnações postulado para aalma por estes três exponentes do Platonismo com os quais Sto. <strong>Agostinho</strong> mais deperto dialogou – o próprio Platão, Plotino e Porfírio, não obstante algumas divergências382


que o filósofo regista <strong>em</strong> De ciuitate dei 567 –, compreende-se por que razão o Hiponensenão poderia, de modo algum, perfilhar esta proposta e aderir a ela como sustento <strong>da</strong> suaconcepção acerca <strong>da</strong> forma do ser humano.De facto, para Sto. <strong>Agostinho</strong> é característica essencial <strong>da</strong> mente humana acapaci<strong>da</strong>de projectiva que, <strong>em</strong> Confessionum, atribui à própria m<strong>em</strong>ória, entendi<strong>da</strong>como função que armazena a experiência humana e se torna condição de possibili<strong>da</strong>dedo exercício <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de que caracteriza a forma do ser humano. Se, comopensa <strong>Agostinho</strong>, a intencionali<strong>da</strong>de é característica <strong>da</strong> mente, ela deverá verificar-se<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s funções do espírito humano, não podendo deixar de afectar, também, am<strong>em</strong>ória. A dimensão mais radical <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de, na m<strong>em</strong>ória como <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma<strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente, desvelar-se-á na condição reflexa delas. No caso <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória, tal facto significa a presença desta função <strong>da</strong> mente a si mesma.Assim, enquanto função que totaliza a experiência, <strong>Agostinho</strong> considera que am<strong>em</strong>ória é a condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> apreensão, pelo ser humano, <strong>da</strong>s trêsdimensões <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de – passado, presente e futuro. Por sua vez, enquanto funçãodota<strong>da</strong> de intencionali<strong>da</strong>de, ela é, antes de mais, m<strong>em</strong>ória de si. Em ambos os casos, adesci<strong>da</strong> ao palácio <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória encaminha o ser humano para a descoberta, no âmago <strong>da</strong>mente, do modo de relação que nela própria se estabelece entre o Princípio Supr<strong>em</strong>o de<strong>Ser</strong> e de Ver<strong>da</strong>de, independent<strong>em</strong>ente do conhecimento ou <strong>da</strong> consciência que ca<strong>da</strong> serhumano possua desse facto. Tal relação caracteriza-se por três factores el<strong>em</strong>entares:estar radica<strong>da</strong> no domínio do <strong>Ser</strong>, ter carácter permanente e não ter orig<strong>em</strong> no serhumano. Desta forma, pode afirmar-se que esta relação subsiste para lá <strong>da</strong> consciênciaque dela possua aquela forma de ser que por ela subsiste como mente racional.É um facto que, para <strong>Agostinho</strong>, há um Princípio de <strong>Ser</strong> e um início do cosmos ede to<strong>da</strong>s as formas de existência nele presentes. Esta afirmação, que só se esclarece, naobra do Hiponenese, quando se compreende o modo como <strong>Agostinho</strong> concebe a noçãode Criação, não deixa de confirmar que a tridimensionali<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po e amultiplici<strong>da</strong>de são duas proprie<strong>da</strong>des que afectam o próprio espírito humano, tornandoseindissociáveis desta forma específica de existência. Sendo assim, quer at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, quer a multiplici<strong>da</strong>de, sendo ambas manifestações de finitude, são, na567 Cf. De ciu. dei X, II; X, XXIII; X, XXX-XXXII (CCL 47, p. 274; p. 296-297; p. 307-314).383


óptica de <strong>Agostinho</strong>, expressões de bon<strong>da</strong>de e de ver<strong>da</strong>de 568 . Por isso, quando, nointerior <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, o filósofo afirma encontrar o Princípio de Uni<strong>da</strong>de, o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o,ou Deus, de modo algum quererá anular a diversi<strong>da</strong>de dos termos <strong>em</strong> cuja relação seconstitui a forma do ser humano, os quais marcam a diferença radical entre esta última eaquele Princípio Soberano de Reali<strong>da</strong>de.Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que esta mesma relação – a que se estabelece entre aUni<strong>da</strong>de do Princípio e a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s – sustenta a forma de ca<strong>da</strong>ser, fazendo-a interagir a fim de edificar uma convivência tanto quanto possívelharmónica e ordena<strong>da</strong>, com a totali<strong>da</strong>de dos seres. A reali<strong>da</strong>de que define, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, a forma de ca<strong>da</strong> criatura é esta consonância entre os diferentes modos derelação que nela se pod<strong>em</strong> realizar e o Princípio de <strong>Ser</strong>, ou Deus. Desde estaperspectiva, o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o – mantendo a sua inefabili<strong>da</strong>de e s<strong>em</strong> anular a radicaldiferença entre a sua essência e a <strong>da</strong>s criaturas - por um lado entra <strong>em</strong> comunhão com adinâmica tridimensional do t<strong>em</strong>po, e, por outro, manifesta-se e realiza-se, de algumaforma, no t<strong>em</strong>po. Fá-lo de diferentes modos, intensificando a sua presença <strong>em</strong> ca<strong>da</strong>forma de existência mediante a diversi<strong>da</strong>de dos seres e a harmonia que eles estabelec<strong>em</strong>entre si.No peculiar caso <strong>da</strong> forma humana, caracteriza<strong>da</strong> pela dinâmica interna <strong>da</strong>sfunções <strong>da</strong> mente, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que a m<strong>em</strong>ória é condição de possibili<strong>da</strong>dede unificação <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong>quelas dimensões de t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de passíveis de afectaras criaturas.Este é um dos índices de que, para o Hiponense, a m<strong>em</strong>ória é uma função quetotaliza a experiência humana, facto que se relaciona quer com a possibili<strong>da</strong>de que amente humana possui de percepcionar to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des físicas que compõ<strong>em</strong> ocosmos, quer com a capaci<strong>da</strong>de de percepcionar a própria experiência interna.Este processo de totalização <strong>da</strong> experiência, externa e interna, poderia designar-sepor consciência de si como sujeito, esquivando uma concepção <strong>da</strong> alma como hipóstasedespersonaliza<strong>da</strong>, <strong>em</strong>anação de hipóstases superiores, entrando, portanto, <strong>em</strong> simbiose568 Conf. X, XVII, 26 « (…) profun<strong>da</strong> et infinita multiplicitas; et hoc animus est, et hoc ipse sum. Quidergo sum deus meus ? Quae natura sum? Varia, multimo<strong>da</strong> uita et immensa ueh<strong>em</strong>enter (…).” ( CCL 27,p. 168).384


com a substância divina 569 . Sto. <strong>Agostinho</strong> não considera que o espírito humano sejauma hipóstase inferior à inteligência. Entende-a, antes, como uma dimensão do sujeitoespiritual. Constituindo a dimensão mais eleva<strong>da</strong> do ser humano, a mente não se reduz àinteligência, pois nela se articula a activi<strong>da</strong>de de três funções que actuam comindependência dos sentidos, construindo, portanto, um universo puramente espiritual edesenvolvendo, nele, a forma específica do ser humano.Na reali<strong>da</strong>de, como faz notar Sto. <strong>Agostinho</strong>, mediante as experiências colhi<strong>da</strong>s nadirecta relação com os objectos corpóreos ou apreendi<strong>da</strong>s indirectamente por viatest<strong>em</strong>unhal, a m<strong>em</strong>ória elabora um tecido de vivência interna, entrelaçando 570 asreali<strong>da</strong>des passa<strong>da</strong>s e as acções futuras, os acontecimentos vividos e as esperanças. Apartir do armazenamento interno destas vivências, a m<strong>em</strong>ória pode voltar a meditar opassado, o presente e, mesmo, as projecções que a mente realizou <strong>em</strong> direcção aofuturo, como se tais dimensões <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana estivess<strong>em</strong> presentes. O serhumano pode, assim, presenciar to<strong>da</strong> a própria experiência vital, também na dimensãoprospectiva que a constitui, tornando-a pessoal, interiorizando-a.No decurso deste processo, mediante a presença de si a si mesmo, o ser humanotorna-se capaz de avaliar a densi<strong>da</strong>de ontológica adquiri<strong>da</strong>, no curso do t<strong>em</strong>po, pela suaforma específica. Ora, este juízo transcende o plano meramente psicológico, o qual secinge a uma estimativa <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória como lugar do armazenamento de experiências devi<strong>da</strong>. Sto. <strong>Agostinho</strong> supera, assim, o âmbito psicológico do conhecimento humano,inscrevendo a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória no horizonte <strong>da</strong> interrogação sobre o <strong>Ser</strong>. Nestamedi<strong>da</strong>, o Hiponense alcança, efectivamente, ao analisar a função de recor<strong>da</strong>r, umdomínio de consciência de si que se pode conceber como a presença e a constância <strong>da</strong>própria existência, enquanto el<strong>em</strong>ento subjacente, permanente e totalizador do conjunto569 A. Solignac faz notar que a consciência do Mundo e a m<strong>em</strong>ória não são termos idênticos, na medi<strong>da</strong><strong>em</strong> que a formação <strong>da</strong> consciência do Mundo depende de um movimento intencional <strong>da</strong> mente sobre aimpressão que resulta, nela, do contacto <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de externa com os objectos próprios de ca<strong>da</strong>sentido. Desta forma, evidencia-se a acção do domínio interior sobre o exterior, como já se fizera aoanalisar a noção augustiniana de sensação. To<strong>da</strong>via, agora insiste-se no carácter não adventício <strong>da</strong>consciência que o ser humano possui do Mundo e <strong>da</strong> qual a m<strong>em</strong>ória é condição de possibili<strong>da</strong>de,entregando-se a esse gume do espírito a atenção sobre a sensação, movimento <strong>da</strong> alma provocado pelo<strong>em</strong>bate do corpo humano com outros objectos materiais (cf. A. SOLIGNAC, “La mémoire selon saintAugustin”, in Bibliothèque augustinienne. Oeuvres de saint Augustin 14, p. 559 ).570 Cf. Conf. X, IX, 16 ( CCL 27, p. 163). Para indicar esta activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, Sto. <strong>Agostinho</strong><strong>em</strong>prega o verbo contexto.385


de vivências 571 . É neste domínio de reflexão que o Filósofo de Hipona admite aexistência de um exercício <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória sobre o presente, atribuindo, deste modo, a estafunção <strong>da</strong> mente um campo de acção que excede, amplamente, a mera recuperação dopassado, recebido adventiciamente.No Livro décimo quarto de De trinitate, perante a estranheza que Sto. <strong>Agostinho</strong>verifica causar a alguns a afirmação <strong>da</strong> existência de uma m<strong>em</strong>ória do presente, ofilósofo insiste na mesma argumentação. O enquadramento <strong>da</strong> questão é <strong>em</strong> tudos<strong>em</strong>elhante à análise <strong>da</strong> mente leva<strong>da</strong> a efeito no Livro décimo de Confessionum, poisinterroga o modo como o espírito humano, na ausência de uma representação de si, seconhece a si próprio, reiterando a convicção de que o processo de auto gnose nãodepende de qualquer ideia adventícia que a mente conquiste acerca de si mesma. Talrepresentação é, efectivamente, impossível de elaborar. Sto. <strong>Agostinho</strong> explica que omodelo de conhecimento baseado na percepção sensível envolve uma dissociação, not<strong>em</strong>po, entre a existência do objecto conhecido e o conhecimento adquirido pelo sujeito.Em alguns casos, o filósofo admite que se pode <strong>da</strong>r uma simultanei<strong>da</strong>de entre o objectoconhecido e a percepção, v. gr., na apreensão de uma reali<strong>da</strong>de audível, pois pod<strong>em</strong>coincidir, no t<strong>em</strong>po, a <strong>em</strong>issão do som e a recepção dele por parte do sujeitocognoscente. To<strong>da</strong>via, no conhecimento que depende do impacto causado peloscorporalia nos órgãos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de – e independent<strong>em</strong>ente do factor t<strong>em</strong>po –, dá-seuma anteriori<strong>da</strong>de causal dos objectos a conhecer, <strong>em</strong> face do acto de conhecimento.Com efeito, no domínio do conhecimento <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des corpóreas, são estas que,despertando a atenção <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, geram aquele acto cognitivo.Ora, o Hiponense verifica que na<strong>da</strong> de s<strong>em</strong>elhante se passa no processo medianteo qual a mente adquire conhecimento de si mesma, pois não há, nele, desdobramentoalgum, ou qualquer espécie de cisão entre sujeito e objecto. A alma não é adventícia a simesma. Sto. <strong>Agostinho</strong> exclui <strong>em</strong> absoluto a hipótese de uma objectivação do espírito apartir de si próprio, a fim de a si mesmo se conhecer. A mente humana é uma e idêntica,não obstante a condição, progressiva e complexa, <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de cognitiva. Tal571 Escreve J.-M. Le Bond : « Présence au sens plein du terme, qui évoque par lui-même une perspectivet<strong>em</strong>porelle en impliquant à la fois l’actualité de la persistance <strong>da</strong>ns le t<strong>em</strong>ps » [J.-M. LE BLOND, Lesconversions de saint Augustin ( Paris 1950), p. 182 ]. Nesta dimensão radical de presença do espírito a simesmo, Sto. <strong>Agostinho</strong> coloca o reconhecimento <strong>da</strong> própria identi<strong>da</strong>de, estabelecendo sinonímia para ostermos animus e se ipsum: “ [ (…) Magna uis est m<strong>em</strong>oria, nescio quid horrendum (...) et hoc est animus,et hoc ipse ego sum. » ( Conf. X, XVII, 26; CCL 27, p. 168) ].386


complexi<strong>da</strong>de deriva, essencialmente, por um lado, <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s funções que nelainterag<strong>em</strong>, e, por outro, <strong>da</strong> relação dinâmica que aquelas estabelec<strong>em</strong> entre si. Não há,por isso, um movimento de uma mente que começa a existir, dirigindo-se, a partir doexterior, a uma mente que já existia, para que esta última conheça aquela. Só neste casose poderia considerar um conhecimento adventício <strong>da</strong> mente, desdobrando o sujeito noprocesso cognitivo. Tal proposta postularia uma espécie de esquizofrenia do espírito,uma duali<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita, pois o resultado deste conhecimento não seriao <strong>da</strong> mente, mas o de uma representação dela, tal como acontece <strong>em</strong> todo o processocognitivo que depende de uma reali<strong>da</strong>de exterior e inferior à mente. Também por estefacto o conhecimento de Deus não pode <strong>da</strong>r-se mediante uma informação externa,mesmo que ela tenha como ponto de parti<strong>da</strong> uma reali<strong>da</strong>de superior – como acontece nocaso <strong>da</strong>s teofanias -, pois <strong>em</strong> tal circunstância não se alcançaria nunca Deus, mas tão-sóuma representação Dele. Deste modo se compreende por que razão Sto. <strong>Agostinho</strong>insiste na tónica de que a Ver<strong>da</strong>de é, efectivamente, superior à mente, s<strong>em</strong> deixar de ser,a um t<strong>em</strong>po, nela, um Princípio maximamente interior.O Filósofo de Hipona também não admite que o conhecimento <strong>da</strong> mente por simesma seja gerado mediante as representações pelas quais ela é afecta<strong>da</strong>. Defendendo aexistência prévia <strong>da</strong> mente e a prévia operação <strong>da</strong>s funções dela <strong>em</strong> relação a to<strong>da</strong> aforma de conhecimento adventício, Sto. <strong>Agostinho</strong> não acolhe a ideia de umconhecimento <strong>da</strong> alma por duplicação ou desdobramento de si, como se, na mente quejá existe, nascesse uma mente que ain<strong>da</strong> não é. Ao invés, o conhecimento <strong>em</strong> geral e,<strong>em</strong> particular o conhecimento de si, é considerado pelo Hiponense como um processounitivo, onde se conjugam, de modo interactivo, as funções <strong>da</strong> mente, e jamais comoum movimento onde se separam el<strong>em</strong>entos externos e facul<strong>da</strong>des internas.Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma a reflexivi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente. Talfacto significa que ca<strong>da</strong> uma delas se contém a si mesma, sendo esse o acto própriomais radical que ca<strong>da</strong> uma realiza, o qual se manifesta, respectivamente, pelarecor<strong>da</strong>ção de si, pelo conhecimento de si e pelo amor de si. Mais ain<strong>da</strong>, pelaradicali<strong>da</strong>de desse mesmo acto, que atinge o modo específico de agir <strong>da</strong> mente humana,tal activi<strong>da</strong>de imanente s<strong>em</strong>pre se exerce, <strong>da</strong>do que, <strong>em</strong> momento algum, a mente deixade se conter a si mesma. Como afirma Sto. <strong>Agostinho</strong>, a mente humana subsiste pelarelação que estabelece com o <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o. Ora, a reflexivi<strong>da</strong>de inerente às funções <strong>da</strong>mente é precisamente expressão do alcance imanente do próprio <strong>Ser</strong> de que ela depende,387


e que imprime nela um dinamismo intrínseco, autónomo relativamente à eventualactuação extrínseca de ca<strong>da</strong> função sobre as representações dos objectos disponíveis nouniverso corpóreo.Antes de mais, ca<strong>da</strong> função <strong>da</strong> mente se contém a si mesma, sendo de evitar, nocontexto de uma hermenêutica <strong>da</strong> obra augustiniana, o uso do termo “objecto” paradesignar esta auto pertença. No que se refere à m<strong>em</strong>ória de si, Sto. <strong>Agostinho</strong> defendeque, quando a mente a si mesma se conhece e arreca<strong>da</strong> tal conhecimento na m<strong>em</strong>ória,ela não adquire uma nova recor<strong>da</strong>ção, como se a recor<strong>da</strong>ção de si mesma não existisse,antes de a si mesma se conhecer. Este é mais um dos aspectos que opõe o filósofoàqueles que consideram que a m<strong>em</strong>ória é uma facul<strong>da</strong>de que apenas r<strong>em</strong>ete ao passado.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma tal restrição do alcance <strong>da</strong> função de recor<strong>da</strong>r não explica apereni<strong>da</strong>de e a subsistência do conhecimento de si.Em De trinitate, o Hiponense coloca o probl<strong>em</strong>a com perspicácia, a partir <strong>da</strong>análise elabora<strong>da</strong> por Marco Túlio acerca <strong>da</strong> virtude <strong>da</strong> prudência, no exercício <strong>da</strong> qualfacilmente se identifica a dinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é inerente àprudentia a relação com a tríplice dimensão do t<strong>em</strong>po 572 . No entender de Cícero, ohom<strong>em</strong> que pratica a prudência põe <strong>em</strong> movimento a m<strong>em</strong>ória do passado, mediante aqual adquiriu experiência. Aplica, <strong>em</strong> segui<strong>da</strong>, a inteligência à situação presente e,pondo <strong>em</strong> acção a capaci<strong>da</strong>de providente, património <strong>da</strong> razão, conjuga aqueles doisel<strong>em</strong>entos, passado e presente, projectando acções futuras. Porém, a obstar a estaproposta, Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe um modelo de juízo humano <strong>em</strong> tudo s<strong>em</strong>elhanteàquele que, quando se referiu o itinerário ascendente <strong>da</strong> razão para Deus, se designoupor juízo de existência.Quando a mente se recor<strong>da</strong> de si mesma, não parte de uma situação de absolutoolvido <strong>da</strong>quilo que ela é. Se tal sucedesse, não haveria recor<strong>da</strong>ção possível de si. Ora,Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que o processo cognitivo <strong>em</strong> causa exige a co-presença nãoapenas <strong>da</strong> alma ante a Ver<strong>da</strong>de, mas dela a si mesma. Por sua vez, a recor<strong>da</strong>ção de si écondição radical de to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de judicativa e, portanto, também <strong>da</strong> auto gnose. Naperspectiva do Hiponense, esta co-presença do espírito humano a si mesmo, que s<strong>em</strong>anifesta com peculiar evidência na recor<strong>da</strong>ção de si, é condição necessária para que amente se enten<strong>da</strong> a si mesma e, mediante o amor de si, unifique aquilo que contém <strong>em</strong>572 Cf. DT XIV, XI, 14 ( CCL 50A, p. 441-442).388


si, e que está armazenado na m<strong>em</strong>ória, com aquela reali<strong>da</strong>de que, através <strong>da</strong>inteligência, conhece acerca de si mesma 573 . O resultado deste processo é a auto gnose.Efectivamente, para Sto. <strong>Agostinho</strong> é por meio <strong>da</strong> interacção <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente queo ser humano conquista a forma própria <strong>da</strong> sua existência. Por isso, só compreendendoesta dinâmica se poderá descortinar o sentido pleno <strong>da</strong> noção augustiniana de animaordinata.Para além <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, o Hiponense insiste numa outracategoria, ao referir a função de recor<strong>da</strong>r. Efectivamente, para identificar a m<strong>em</strong>ória,designa<strong>da</strong>mente no Livro décimo de Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> recorre, comfrequência e de modo intencional, a um conjunto de metáforas retira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> percepção doespaço. A m<strong>em</strong>ória é designa<strong>da</strong> como palácio, planície, recôndito dotado de múltiplosescaninhos; ela é, afinal, um santuário a um t<strong>em</strong>po amplo e s<strong>em</strong> limites deprofundi<strong>da</strong>de, e estreito, para conter tanta reali<strong>da</strong>de.Esta insistência do Hiponense no carácter ubicado <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória não é meramenteretórica, pois a m<strong>em</strong>ória relaciona-se de perto com as imagens forma<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>ssensações corpóreas. To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de que, mediante representações gera<strong>da</strong>s pelapercepção sensível, penetra na mente humana, fica reti<strong>da</strong> pela m<strong>em</strong>ória, tornando, dest<strong>em</strong>odo, o espírito humano co-extensivo com o universo dos objectos sensíveis, s<strong>em</strong>,to<strong>da</strong>via, fazer que ele se encontre constrangido por essa categoria <strong>da</strong> matéria queconsiste na extensão no espaço.Porém, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, na m<strong>em</strong>ória reside um mundo muito mais amplo dereali<strong>da</strong>des, para além <strong>da</strong>quelas arreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s por meio <strong>da</strong> representação. Entre elas, ofilósofo insiste na apreensão do sujeito por si mesmo e na experiência de si comopresença e totali<strong>da</strong>de. Assim, enquanto a razão é entendi<strong>da</strong> como função que compõe edivide, sendo esse o contributo específico <strong>da</strong> inteligência, nomea<strong>da</strong>mente no processode aprendizag<strong>em</strong>, a m<strong>em</strong>ória concentra a reali<strong>da</strong>de apreendi<strong>da</strong>, recolhendo como umtodo a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência humana, na sua diversi<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de. Éprecisamente este abismo de totali<strong>da</strong>de, congregado na m<strong>em</strong>ória, que assombra Sto.<strong>Agostinho</strong> e, contudo, é neste tragadouro que o Hiponense faz consistir o espírito573 DT XIV, XI, 14: “ (…) sic in re praesenti quod sibi est mens, m<strong>em</strong>oria sine absurditate dicen<strong>da</strong> est,qua sibi praesto est ut sua cogitatione possit intelligi, et utrumque sui amore conjungui. » (CCL 50A, p.442).389


humano, fazendo mergulhar, desde logo, a natureza dele <strong>em</strong> aporia 574 . Efectivamente,como é possível que o espírito humano seja incapaz de se conter a si mesmo, sendo umfacto que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua condição reflexa, ele está s<strong>em</strong>pre presente a si mesmo?Sto. <strong>Agostinho</strong> encontrará a resposta a esta dificul<strong>da</strong>de superando precisamente aesfera sensível <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória e considerando que n<strong>em</strong> todo o conteúdo <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória é representação. Por isso, haverá, também, uma dimensão <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória que seesquiva à percepção mediante a categoria de espaço, sendo afecta<strong>da</strong> apenas pelat<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Este passo é <strong>da</strong> maior relevância na compreensão <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong> apartir de uma análise <strong>da</strong> estrutura augustiniana <strong>da</strong> mente e do modo como o Hiponenseconcebe a co-presença entre o espírito humano e Deus, no que diz respeito à função <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória.De facto, desde o contacto com os Platonicorum, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste nacondição inextensa do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Reali<strong>da</strong>de absolutamente espiritual, Deus nãopoderá ser reconhecido pela mente sob qualquer assomo de extensão. Ora, at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de é condição de to<strong>da</strong> a criatura. Assim, a relação entre esta e o Criador, nasua expressão mais pura, deverá manter, por parte <strong>da</strong> criatura, a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong>contraste com a Eterni<strong>da</strong>de do Princípio. Igualmente, tal relação há-de preservar, porparte <strong>da</strong> mente humana, a mutabili<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> contraste com a Imutabili<strong>da</strong>de do Princípio.Assim, a extensão nunca será factor de diferenciação entre o <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o e a mentehumana, pois neste aspecto ela <strong>em</strong> na<strong>da</strong> contrasta com o Princípio – ambos, Deus e aalma, são reali<strong>da</strong>des espirituais.Descendo ao fundo <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, o filósofo verifica dois fenómenos, aos quaiscorrespond<strong>em</strong> duas questões que procurará eluci<strong>da</strong>r. Por um lado – contradizendo, <strong>em</strong>aparência, a reclamação de uma m<strong>em</strong>ória do presente, esfera de to<strong>da</strong> a experiênciahumana –, o Hiponense verifica que o espírito humano não é capaz de se conter a simesmo. Por outro lado, o filósofo observa que n<strong>em</strong> to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de conti<strong>da</strong> na m<strong>em</strong>óriaé de carácter adventício, facto que exige desta facul<strong>da</strong>de a plastici<strong>da</strong>de do próprioespírito, quando contacta com reali<strong>da</strong>des puramente inteligíveis. Perante ambas asverificações, Sto. <strong>Agostinho</strong> depara-se com o facto de o espírito humano ser angusto574 Conf. X, VIII, 15: “ Magna uis est m<strong>em</strong>oriae, magna nimis penetrale amplum et infinitum. Quis adfundum eius peruenit ? Et uis haec animi mei atque meam naturam pertinet, nec ego ipse capio totum,quod sum. Ergo animus ad habendum se ipsum angustus est, ut ubi sit quod sui non capit ? Numquidextra ipsum ac non in ipso ? Quomodo ergo non capit? Multa mihi super hoc oboritur admiratio, stuporapprehendit me.” ( CCL 27, p. 162 ).390


para si mesmo, fenómeno que manifesta a contingência dele, a sua circunscrição elimite, reclamando, a um t<strong>em</strong>po, uma justificação racional para esta descoincidência desi consigo mesmo.Efectivamente, <strong>Agostinho</strong> defenderá a existência de uma dimensão inteligível paraa activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, na qual estão impressas as noções universais e necessárias,mediante as quais a alma pode ascender ao conhecimento <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Igualmente, édeste modo que o Hiponense justifica quer a produção <strong>da</strong>s ciências, quer a radicali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> relação cognitiva que torna possível a aprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong>s mesmas. A este respeito,também o Livro décimo de Confessionum é esclarecedor. Inquirindo sobre a orig<strong>em</strong>, nam<strong>em</strong>ória, de noções puramente inteligíveis, Sto. <strong>Agostinho</strong> escolhe como ex<strong>em</strong>plo ainterrogação acerca do <strong>Ser</strong> – an sit, quid sit, quale sit –, objecto <strong>da</strong> dialéctica. Naformulação do enigma, como sói fazer neste tipo de excursos, o Filósofo de Hiponadistingue o som, reali<strong>da</strong>de física, perceptível por via auditiva, <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de que osom significa, a qual, no ex<strong>em</strong>plo decerto não aleatoriamente escolhido, é o próprio <strong>Ser</strong>,reali<strong>da</strong>de superna, maximamente inteligível 575 .Neste caso como <strong>em</strong> tantos outros apontados pelo Hiponense, s<strong>em</strong>pre que dereali<strong>da</strong>des inteligíveis se trata, o filósofo anota a descoincidência entre os sonssignificantes, que são as palavras, e a reali<strong>da</strong>de que elas significam, que são as noçõesinteligíveis. Ao fazê-lo, <strong>Agostinho</strong> confessa desconhecer de que modo tais noçõesentram na m<strong>em</strong>ória, pois elas não são acessíveis aos sentidos n<strong>em</strong> são redutíveis arepresentações. O filósofo reconhece que tais noções não estão na m<strong>em</strong>ória mediante aintervenção dos sentidos corpóreos 576 , asseverando, a um t<strong>em</strong>po, que não é mediante otest<strong>em</strong>unho alheio que elas são conheci<strong>da</strong>s e sublinhando, igualmente, que a adesão quea mente humana lhes presta constitui um ver<strong>da</strong>deiro saber e não um assentimentofiducial a um conjunto de proposições 577 . Por último, o Hiponense conclui que a575 Conf. X, X, 17: “ At uero, cum audio tria genera esse quaestionum, an sit, quid sit, quale sit, sonorumquid<strong>em</strong>, quibus haec uerba confecta sunt, imagines teneo et eos per auras cum strepitu transisse ac iamnon esse scio. Res uero ipsas, quae illis significantur sonis, neque ullo sensu corporis attigi neque uspiamuidi praeter animum meum et in m<strong>em</strong>oria recondidi non imagines earum, sed ipsas: quae unde ad meintrauerint dicant, si possunt (…). ” (CCL 27, p. 163).576 Conf. X, X, 17: “ Vnde et qua haec intrauerunt in m<strong>em</strong>oriam meam? Nescio quomodo (…). ” ( CCL27, p. 164).577 Conf. X, X, 17: “ (…) nam cum ea didici, non credidi alieno cordi, sed in meo recognoui et uera esseapprobaui et commen<strong>da</strong>ui ei tanquam reponens, unde proferr<strong>em</strong>, cum uell<strong>em</strong> (…).” ( CCL 27, p. 164).391


m<strong>em</strong>ória contém tais noções com antecedência sobre a aprendizag<strong>em</strong> delas, sendo estaúltima uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente que deriva de uma peculiar forma de atenção àsreali<strong>da</strong>des inscritas no espírito humano, cuja orig<strong>em</strong> é independente dos sentidoscorpóreos e <strong>da</strong>s representações imagéticas 578 .Trata-se, aqui, claramente, <strong>da</strong> afirmação, por parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>da</strong>existência um domínio de reali<strong>da</strong>des inteligíveis, conti<strong>da</strong>s na m<strong>em</strong>ória, as quais resid<strong>em</strong>numa cavi<strong>da</strong>de recôndita <strong>da</strong>quela função <strong>da</strong> mente. Esta, para transitar de um estadolatente até ao reconhecimento cognitivo, necessita de ser movi<strong>da</strong> por admoestação. Noque diz respeito à aquisição do saber, <strong>Agostinho</strong> verifica que, neste domínio derecor<strong>da</strong>ção, a m<strong>em</strong>ória já não possui as imagens <strong>da</strong>s coisas, mas as próprias coisas, ounoções puramente inteligíveis, s<strong>em</strong> imagens, incluindo neste género de conhecimentoto<strong>da</strong>s as noções referentes às artes liberais e, também, a noção de felici<strong>da</strong>de.O conhecimento <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des corpóreas exige a mediação <strong>da</strong>s representações,grava<strong>da</strong>s na m<strong>em</strong>ória mediante a imaginação. Porém, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o modo deaquisição do saber intelectual é de outra natureza. Nesse processo, o saber identifica-secom a reali<strong>da</strong>de percepciona<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> interferência de representação. É o que acontececom as scientiae, razão pela qual elas se distingu<strong>em</strong> <strong>da</strong> opinião 579 . Ao posicionar destaforma a t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> constituição do conhecimento, o Filósofo de Hipona enfrentaabertamente o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> aquisição e orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s noções puramente inteligíveis,mediante as quais se constitui o saber humano, verificando que, se é ver<strong>da</strong>de que elasnão provêm dos sentidos, também é certo que não provêm de fora <strong>da</strong> alma. Com efeito,o espírito apreende-as, não tanto confiando num coração alheio, por via test<strong>em</strong>unhal,578 Conf. X, XI, 18: “ (…) non per sensus haurimus imagines, sed sine imaginibus, sicuti sunt, per se ipsaintus cernimus (…).” ( CCL 27, p. 164).579 A este propósito, Solignac faz notar que, na sequência de Platão para qu<strong>em</strong> a ciência dos objectosimateriais é idêntica ao seu objecto, Plotino já havia introduzido esta distinção. Também para oAlexandrino, as ciências são discurso interior <strong>da</strong> alma. O facto de poder<strong>em</strong> aplicar-se aos entes reais éconsequência <strong>da</strong> Inteligência, que as legisla, sendo essa hipóstase a própria lei <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s ciências.No entender de Solignac, Sto. <strong>Agostinho</strong> recuperaria, neste aspecto, o pensamento de Plotino e, atravésdele, a tradição platónica a este respeito. Contudo, Plotino admitiria que a conservação <strong>da</strong>s noções naalma racional se explica apenas pela persistência, na imaginação, do discurso verbal que acompanha opensamento, tese que o Hiponense não perfilha, pois defende explicitamente que a m<strong>em</strong>ória é irredutívelà imaginação, atribuindo um ver<strong>da</strong>deiro valor espiritual àquela função <strong>da</strong> mente (Cf. A. SOLIGNAC, “Lamémoire selon saint Augustin”, in Biliothèque augustinenne.Oeuvres de saint Augustin 14, p. 561).392


mas reconhecendo-as no próprio espírito e realizando sobre elas um juízo de valor,mediante o qual a mente humana aprova ou desaprova a ver<strong>da</strong>de dessas proposições 580 .Esta doutrina acerca <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>, brev<strong>em</strong>ente compila<strong>da</strong> no Livro décimo deConfessionum, confirma as teses de De magistro, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> explanadetalha<strong>da</strong>mente o seu modo de conceber a relação entre a razão e a Ver<strong>da</strong>de. Em D<strong>em</strong>agistro, o filósofo concluíra que a função do pe<strong>da</strong>gogo no processo de aquisição dosaber não consiste <strong>em</strong> fazer transitar os conhecimentos do seu espírito para o espírito dodiscípulo, mas reduz-se a uma tarefa de admonição. Dirigi<strong>da</strong> ao discípulo, a função deadmoestar visa colocar o espírito dele <strong>em</strong> estado de vigília e suscitar nele odesenvolvimento de uma dinâmica interior que culmine na descoberta <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, fontede todo o saber. Deste modo, o discípulo descobrirá por si mesmo o saber desvelado, nointerior de si, pela Ver<strong>da</strong>de Imutável 581 . De igual forma, no Livro décimo deConfessionum, a aprendizag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>pre que se trate de noções puramente inteligíveis, éencara<strong>da</strong> como uma operação, leva<strong>da</strong> a termo mediante o pensamento reflexo, derecolhimento dos el<strong>em</strong>entos até então espalhados de um modo ou de outro, s<strong>em</strong> especialorganização, no fundo <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, com o fim de os trazer à consciência clara e de osconfiar à função de recor<strong>da</strong>r, consistindo a ciência ou saber num certo hábito intencionalque torna familiares à mente estas noções recônditas e impressas na m<strong>em</strong>ória 582 .Se <strong>em</strong> De magistro a análise incide sobre a relação mestre/discípulo, que aí servede horizonte para uma reflexão sobre a aprendizag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> Confessionum, tal comoposteriormente <strong>em</strong> De trinitate - e uma vez que se trata do conhecimento que a almat<strong>em</strong> de si mesma -, a atenção de Sto. <strong>Agostinho</strong> orienta-se para a natureza do acto depensar, s<strong>em</strong>, to<strong>da</strong>via, se desvincular do âmbito <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>, não só acerca de simesmo, mas também na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é sobre o acto de pensar que se erige aaquisição do saber.Respondendo à questão acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s noções que serv<strong>em</strong> de base àconstituição dos saberes, Sto. <strong>Agostinho</strong> defende o apriorismo delas. Para o Hiponense,o espírito humano retira de si mesmo, e apenas de si mesmo, as normas e os princípiosdo conhecimento. É o espírito que é constitutivo do saber, é ele mesmo que o constrói.A admonitio, que pode assumir infinitas formas, mais não é do que uma condição do580 Conf. X, X, 17 : “(…) non credi alieno cordi sed in meo recognoui et uera esse approbaui (…). »(CCL 27, p. 164).581 Cf. De mag. XI, 36; XIII, 43 ; XIV, 45 ( CCL 29, p. 194; p. 200-201; p. 202).582 Cf. Conf. X, XI, 18 ( CCL 27, p. 164).393


saber, mas não o fun<strong>da</strong>mento dele. Na reali<strong>da</strong>de, o Filósofo de Hipona entende o acto depensar como uma activi<strong>da</strong>de que envolve, por um lado, as noções, imutáveis e eternas,escondi<strong>da</strong>s na m<strong>em</strong>ória e impressas na mente, e, por outro, a razão, que as recolhe epensa, unindo e separando, como é próprio do movimento que define a activi<strong>da</strong>de delano exercício <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> 583 .No que se refere à tarefa <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória na aprendizag<strong>em</strong>, a r<strong>em</strong>iniscência platónica,conheci<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong>, era a solução para justificar a presença <strong>da</strong>s noções quesuportam o saber, sustentando a capaci<strong>da</strong>de humana de o construir. Como já se feznotar, o próprio Hiponense, na ausência de uma reflexão aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a natureza<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, teria perfilhado, inicialmente, a tese platónica, defendendo-a nos seusprimeiros escritos 584 , para progressivamente dela se distanciar, precisamente porverificar que ela não salvaguar<strong>da</strong> a diferença ontológica entre a mente e a Ver<strong>da</strong>de,lesando a singulari<strong>da</strong>de do espírito humano. Com efeito, a concepção platónica de umconhecimento do inteligível por via de r<strong>em</strong>iniscência an<strong>da</strong> uni<strong>da</strong> ao postulado <strong>da</strong>preexistência <strong>da</strong>s almas 585 .Sto. <strong>Agostinho</strong> mantém, tal como Platão, a função central <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória naprodução de to<strong>da</strong> a forma de conhecimento. Porém, dissocia-se do Fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong>Acad<strong>em</strong>ia, b<strong>em</strong> como <strong>da</strong>s versões neoplatónicas sobre a r<strong>em</strong>iniscência, precisamente nomodo como define a relação entre a mente e as Ideias ou Formas <strong>da</strong>s coisas. <strong>Agostinho</strong>assume a concepção bíblica de <strong>Ser</strong>, segundo a qual to<strong>da</strong> a forma ou expressão deexistência depende de uma iniciativa gratuita do Criador, tornando-se essencialmentecontingente. Tal facto significa que to<strong>da</strong> a forma apenas subsiste <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> acção583 Cf. DO II, XI, 30 ( CCL 29, p. 124). Em Confessionum, este acto de congregar recor<strong>da</strong>ções dispersasna m<strong>em</strong>ória de modo desordenado é designado pelo verbo cogitare, o qual indica uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razãoque recolhe el<strong>em</strong>entos dispersos e os unifica no espírito: Conf. X, XI, 18: “(…) cogitando quasi conligere(…) ex qua<strong>da</strong>m dispersione conligen<strong>da</strong>, unde dictum est cogitare. (…) quod in animo conligitur, id estcogitur, cogitare proprie iam dicatur.” ( CCL 27, p. 164).584 Cf. v.g. Solil. II, XX, 35 (CSEL 89, p. 95); De quant. anim. XX, 34 ( CSEL 89, p. 173); cf. Retract. I,IV, 4; I, VIII, 2 ( CCL 57, p. 15; p. 22).585 A objecção de Sto. <strong>Agostinho</strong> à r<strong>em</strong>iniscência platónica é declara<strong>da</strong> <strong>em</strong> DT XII, XV, 24. Numa claraalusão ao argumento de Ménon 82d/ 86a [Platonis Opera III, Tetralogia VI ( Oxonii, 1957,10ª reimp.),II.], o Hiponense recorre a um argumento ad homin<strong>em</strong> que não deixa de causar alguma perplexi<strong>da</strong>de: setodos os homens, b<strong>em</strong> interrogados, pod<strong>em</strong> encontrar as ver<strong>da</strong>des sobre a geometria, e se isso se devessea uma preexistência <strong>da</strong> alma numa vi<strong>da</strong> anterior junto <strong>da</strong>s Ideias, então tal facto quereria significar que,nessa vi<strong>da</strong>, todos os homens foram geómetras ( CCL 50, p. 377-378).394


permanent<strong>em</strong>ente exerci<strong>da</strong> sobre ela por parte do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Assim, se há noçõeseternas na mente humana, esse facto manifesta, para o Hiponense, a relação permanenteentre esta última e a Ver<strong>da</strong>de divina. Contudo, essa mesma relação preserva a diferençaontológica, existente entre a Ver<strong>da</strong>de, Eterna e Imutável, e a mente humana, imersa nocurso do t<strong>em</strong>po e sujeita a infin<strong>da</strong>s mutações. Tal relação será, por conseguinte, porparte <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, Simples e Una, correspondendo a uma única activi<strong>da</strong>de – <strong>da</strong>r <strong>Ser</strong>,pois <strong>em</strong> tal acto divino consiste a Criação. Porém, por parte <strong>da</strong> mente humana, talrelação será complexa e diversifica<strong>da</strong>, expressando-se nos imensos actos que lhe sãopróprios. Ora, para sustentar uma tal forma de relação entre a mente e a Ver<strong>da</strong>de, Sto.<strong>Agostinho</strong> postula a presença de rationes aeternae na Ver<strong>da</strong>de Subsistente e Simples.Mas este facto, por sua vez, exige que tais razões se identifiqu<strong>em</strong> com a essência dessamesma Ver<strong>da</strong>de, Una e Simples 586 .Em De diuersis quaestiones 83, questão XLVI, esta t<strong>em</strong>ática é trata<strong>da</strong>directamente, <strong>em</strong> diálogo com o Platão a que Sto. <strong>Agostinho</strong> teve acesso 587 . Para oHiponense, as formas eternas <strong>da</strong>s coisas não são diferentes <strong>da</strong> essência eterna deDeus 588 . De facto, tais formas estão presentes, de modo impresso, permanente e estável,na mente humana, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> relação essencial que ela estabelece com o VerboEterno ou Sabedoria de Deus. Neste princípio resid<strong>em</strong> as formas de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de.Preservando, pela mediação <strong>da</strong>s notiones, a diferença ontológica entre Deus e a mentehumana, Sto. <strong>Agostinho</strong> pode falar não apenas de um conhecimento ver<strong>da</strong>deiro, próprio<strong>da</strong> ciência, mas de um conhecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, específico <strong>da</strong> sabedoria. Este últimodá-se quando a mente humana elabora os seus juízos, fixando-se nas rationes aeternae.Tais rationes são, afinal, os el<strong>em</strong>entos que sustentam, na Vi<strong>da</strong> Eterna do Verbo, asnotiones impressae na mente humana. Assim, s<strong>em</strong> perder o carácter de imutabili<strong>da</strong>de ede eterni<strong>da</strong>de, o conhecimento humano <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des inteligíveis é, simultaneamente,afectado por alguma singulari<strong>da</strong>de, conferi<strong>da</strong> pela presença, nela, não do Verbo Eterno,586 Cf. De diu. quaest. 83, q. XLVI (CCL 44A, p. 70-73).587 Para uma análise <strong>da</strong>s fontes <strong>da</strong> Quaestio De ideis, v. os artigo de J. PÉPIN, “Augustin, Quaestio 'Deideis'. Les affinités plotiniennes” in H.J. WESTRA (ed.), From Athens to Chartres. Neoplatonism andMedieval Thought. Studies in honour of E. Jeauneau (Leiden 1992) 117-134. A. SOLIGNAC “Analyse etsources de la Question ‘De Ideis’”, in Augustinus Magister I ( Paris 1954) 307-315.588 De diu. quaest. 83, q. XLVI, 2: “ (…) Sunt namque ideae principales quae<strong>da</strong>m formae uel rationesrerum stabiles atque incommutabiles, quae ipsae formatae non sunt ac per hoc aeternae ac s<strong>em</strong>per eod<strong>em</strong>modo sese habentes, quae diuina intellegentia continentur (…).” ( CCL 44A, p. 71).395


mas <strong>da</strong> mediação Dele através <strong>da</strong>s notiones impressae, e pela t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de inerente àcondição <strong>da</strong> própria mente humana.Deste modo, Sto. <strong>Agostinho</strong> garante, à mente humana, o conhecimento <strong>da</strong>sver<strong>da</strong>des imutáveis e inteligíveis, s<strong>em</strong> que, ao fazê-lo, a mente se subsuma na essênciadivina. Como já se afirmou, o resultado desta forma de compreensão do real édesignado por <strong>Agostinho</strong> mediante a expressão uera ratio. To<strong>da</strong> esta doutrina, porém,articula-se, na obra do Hiponense, <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de que nela ocupa a noção deVerbo, Princípio de Criação, Incarnado na história, e término ad qu<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> aexpressão de <strong>Ser</strong>.Quanto ao esclarecimento <strong>da</strong> doutrina augustiniana <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong>s noçõesinteligíveis, ao considerar a presença de noções eternas arreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s precisamente nomais fundo do espírito humano, Sto. <strong>Agostinho</strong> admite que, se o próprio espíritoregredir a esse imo, não encontrará a presença dele a si mesmo, mas a co-presença entrea eterni<strong>da</strong>de - categoria pela qual se rege o supra dito conjunto de noções -, e at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Com efeito, sendo esta última a marca indissociável <strong>da</strong> mente humana,ela afecta qualquer domínio de activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, também o <strong>da</strong> apreensão <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des inteligíveis.Na análise que Sto. <strong>Agostinho</strong> faz <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, admite que nela se arreca<strong>da</strong>m doisníveis de reali<strong>da</strong>de. Em conformi<strong>da</strong>de com eles, o filósofo distingue dois níveis deproximi<strong>da</strong>de do espírito humano com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Examina, assim, num primeiromomento, a m<strong>em</strong>ória de reali<strong>da</strong>des sensíveis, que abrange quer o domínio externo <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de, quer o interno, sendo um facto que este último integra, também, ouniverso <strong>da</strong>s afecções <strong>da</strong> alma 589 . Num segundo momento, o filósofo deslin<strong>da</strong> am<strong>em</strong>ória de reali<strong>da</strong>des que escapam ao controlo <strong>da</strong>s representações, <strong>da</strong>do que a orig<strong>em</strong>589 Cf. Conf. X, XIV, 21-22 ( CCL 27, p. 165-166). O tratamento prestado por Sto. <strong>Agostinho</strong> à m<strong>em</strong>óriaafectiva evidencia quer o primado do espírito sobre o corpo, quer a capaci<strong>da</strong>de valorativa deste sobre osactos recebidos mediante aquele. Assim, mais uma vez a análise do filósofo extravasa o domíniomeramente psicológico <strong>da</strong>s perturbationes animi para se converter numa avaliação metafísica <strong>da</strong>quali<strong>da</strong>de dos afectos, a qual visa ponderar a plena rectidão <strong>da</strong> alma, prescrevendo as linhas de orientaçãopara realizar a anima ordinata. Nela, os afectos estarão <strong>em</strong> concordância com o amor <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des quese pod<strong>em</strong> ter s<strong>em</strong> perigo de se perder.396


delas não está na estrutura <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de. Entre estas reali<strong>da</strong>des consta o próprio serhumano, capaz de ter m<strong>em</strong>ória de si mesmo – m<strong>em</strong>oria sui 590 .Para a compreensão <strong>da</strong> análise augustiniana <strong>da</strong> m<strong>em</strong>oria sui, duas obras são dereferência crucial, a saber, Confessionum e De trinitate. Em Confessionum, a análiseque Sto. <strong>Agostinho</strong> efectua acerca <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória de si levá-lo-á a encontrar o <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o no interior desta facul<strong>da</strong>de humana e a exprimir-se acerca Dele com aconsagra<strong>da</strong> expressão: Deus, interior intimo meo. O processo, porém, reveste-se de umconjunto de subtilezas. Sto. <strong>Agostinho</strong> começa por evocar a reali<strong>da</strong>de do esquecimentoe insiste no facto de este não ser possível s<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória. Mais ain<strong>da</strong>, a m<strong>em</strong>ória é afacul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente que suporta esse acto, o qual não se pode definir como amnésia total– pois, nesse caso, o esforço por recor<strong>da</strong>r a reali<strong>da</strong>de esqueci<strong>da</strong> não seria viável –, masdeve entender-se como ausência actual de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção.Uma vez mais é possível averiguar o fenómeno do esquecimento considerando-o<strong>em</strong> dois níveis <strong>da</strong> própria m<strong>em</strong>ória: o patamar <strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des sensíveis eaquele <strong>da</strong>s inteligíveis. No primeiro caso, a m<strong>em</strong>ória vai <strong>em</strong> busca de imagensarreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s, fá-las desfilar perante a recor<strong>da</strong>ção e procura identificar a reali<strong>da</strong>deolvi<strong>da</strong><strong>da</strong> – reali<strong>da</strong>de material, cujo lugar efectivamente não recor<strong>da</strong>, ci<strong>da</strong>de outroravisita<strong>da</strong>, vivência olvi<strong>da</strong><strong>da</strong>, rosto ou nome do amigo. No segundo caso, a m<strong>em</strong>óriaprocurará um teor<strong>em</strong>a, uma definição, ou qualquer reali<strong>da</strong>de inteligível, outrora aodispor <strong>da</strong> inteligência e ora ausente <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. Tal olvido condiciona, neste caso, aactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão discursiva, mormente na aquisição dos saberes.590 Conf. X, XV, 23: “ (…) Nomino m<strong>em</strong>oriam et agnosco quod nomino. Et ubi agnosco nisi in ipsam<strong>em</strong>oria ? Num et ipsa per imagin<strong>em</strong> suam sibi adest ac non per se ipsam? ” ( CCL 27, p.167). Se, nestameditação sobre a natureza do conhecimento <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória por si mesma, paira a dúvi<strong>da</strong> sobre a orig<strong>em</strong>,sensível ou inteligível, de tal agnição, <strong>Agostinho</strong> apressa-se a esclarecer: “ (…) Ergo cum m<strong>em</strong>oriamm<strong>em</strong>ini, per se ipsam sibi praesto est ipsa m<strong>em</strong>oria.” (Conf. X, XVI, 24; CCL 27, p. 167). Esta tese jáfora enuncia<strong>da</strong> explicitamente <strong>em</strong> De libero arbitrio (LA II, XIX, 51; CCL 29, p. 271): “ (…) Nam etm<strong>em</strong>oria non solum cetera omnia quae m<strong>em</strong>inimus comprehendit, sed etiam quod non obliuiscimur noshabere m<strong>em</strong>oriam, ipsa se m<strong>em</strong>oria quo<strong>da</strong>m modo tenet in nobis, quae non solum aliorum sed etiam suim<strong>em</strong>init; uel potius nos et cetera et ipsam per ipsam m<strong>em</strong>inimus”. O Hiponense ratifica-a com frequência<strong>em</strong> De trinitate [ cf. DT X, XII, 19: CCL 50, p. 332; e, particularmente, DT XIV, VI, 8, onde se lê, apropósito do conhecimento habitual que a alma possui de si mesma: “(…) Cum uero non se cogitat, nonsit quid<strong>em</strong> in conspectu suo nec de illa suus formetur obtutus, sed tamen nouerit se tamquam ipsa sibi sitm<strong>em</strong>oria sui (…).” ( CCL 50A, p. 431-432)].397


Ora, é precisamente pelo facto analisado – a m<strong>em</strong>ória é a facul<strong>da</strong>de humanasustentáculo do oblívio – que o fenómeno do esquecimento causa perplexi<strong>da</strong>de a<strong>Agostinho</strong>. Por um lado, o olvido é também um acto intencional, referindo-se a umareali<strong>da</strong>de por ausência. Esta, não obstante o paradoxo, encontra-se presente no espíritohumano, precisamente na m<strong>em</strong>ória, como que <strong>em</strong> estado de letargia. A recor<strong>da</strong>ção doesquecimento é já efectivamente um acto de m<strong>em</strong>ória, impelindo a busca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>deperdi<strong>da</strong> 591 . Por outro lado, é um facto que o olvido atinge reali<strong>da</strong>des inteligíveis,fenómeno que se comprova mediante o processo de aquisição de saber. De facto,quando a mente alcança o conhecimento de uma reali<strong>da</strong>de inteligível não o fazconstruindo tal reali<strong>da</strong>de, mas tão-só descobrindo-a <strong>em</strong> si mesma, comprovando apresença dela por aferição com a essa luz supr<strong>em</strong>a que Sto. <strong>Agostinho</strong> designa porVer<strong>da</strong>de. Deste género são to<strong>da</strong>s as noções eternas e imutáveis que correspond<strong>em</strong> àsregras do pensar e do agir. To<strong>da</strong>s elas, porém, superam a natureza <strong>da</strong> mente humana,<strong>da</strong><strong>da</strong> a diferença de natureza que estabelec<strong>em</strong> com a mente. Tal divergência manifestase,fun<strong>da</strong>mentalmente, na eterni<strong>da</strong>de e imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quelas noções. Dado que amente humana é mutável e está submissa ao t<strong>em</strong>po, as reali<strong>da</strong>des inteligíveis sãoreconheci<strong>da</strong>s como noções eternas e imutáveis. Dessa natureza são as noções de <strong>Ser</strong>, deFelici<strong>da</strong>de ou de Deus, termos que Sto. <strong>Agostinho</strong> frequent<strong>em</strong>ente <strong>em</strong>prega comosinónimos. Deste modo, é <strong>da</strong>do ver que o raciocínio elaborado pelo filósofo acerca doesquecimento e <strong>da</strong> função <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória na recuperação, para a mente, <strong>da</strong>s notionesimpressae, é a chave para aceder à compreensão <strong>da</strong> forma como o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o estápresente no âmago <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória humana e ao tipo de relação que com ela estabelece.Com efeito, mediante a análise do fenómeno <strong>da</strong> desl<strong>em</strong>brança, o Filósofo deHipona prepara um itinerário mostrativo <strong>da</strong> presença de Deus, ou do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, nointerior <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, a tal ponto que o desconhecimento de Deus será apontado por Sto.<strong>Agostinho</strong> não como o resultado de uma ausência de saber, mas como o efeito de umafalta de atenção aos conteúdos <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. Outra não é, afinal, a definição deesquecimento. Desde a perspectiva do Hiponense, o conhecimento de Deus não deverá,por isso, ser conquistado através de um esforço dialéctico, no qual a razão teria papelpreponderante. Ele será, antes, granjeado - uma vez detecta<strong>da</strong>s as causas doesquecimento - mediante o transporte dessa reali<strong>da</strong>de superna, a partir de uma m<strong>em</strong>ória591 Cf. Conf. X, XIX, 28 (CCL 27, p. 169-170).398


latente, até se tornar presente no espírito. Ora, este processo não se realiza s<strong>em</strong> umadirecta intervenção <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória.Assim, no itinerário ascendente <strong>da</strong> mente para Deus, tendo mostrado que estanoção se identifica com a Ver<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> admite que <strong>em</strong> todo o acto cognitivose dá um conhecimento implícito desta noção Supr<strong>em</strong>a. A argumentação mais radicaldesta omnipresença <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> afirmação dela como condição de todo o juízoencontra-se nas reitera<strong>da</strong>s incursões do Hiponenese contra o cepticismo <strong>da</strong> NovaAcad<strong>em</strong>ia. Precisamente porque Deus e a Ver<strong>da</strong>de se identificam e porque s<strong>em</strong> aVer<strong>da</strong>de não há juízo humano, o Filósofo de Hipona não se cansará de repetir que negara existência de Deus é próprio do néscio 592 , ou seja, <strong>da</strong>quele espírito que,voluntariamente, resiste a admitir a evidência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de. Nesta medi<strong>da</strong>, poder-se-áfalar de um esquecimento de Deus do qual mais legitimamente se responsabilizará avontade humana do que a inteligência. Porém, não será legítimo falar de umaimpossibili<strong>da</strong>de de conhecer o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, na medi<strong>da</strong> do limite <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de doespírito humano e preservando o carácter insondável <strong>da</strong> essência divina. Não obstante,Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece o paradoxo <strong>em</strong> que tal cognição está envolvi<strong>da</strong>. De facto,aquele Deus que o filósofo afirma melhor se conhecer desconhecendo, é, também, oPrincípio de Reali<strong>da</strong>de por todos procurado, a Ver<strong>da</strong>de soberana, irrefragável, quesustenta a forma humana e to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais formas de existência.Dado que o conhecimento de Deus se estabelece no âmbito <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>sreferi<strong>da</strong>s – dependendo, fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>da</strong> interacção entre a m<strong>em</strong>ória e a vontade –, o Filósofo de Hipona não considera que o conhecimento do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o seja objectode uma dedução racional, escopo de uma análise de carácter puramente lógico-formal.Deus não é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma ideia clara e distinta, capaz de ceder à rigidez deum teor<strong>em</strong>a. A noção de Dei<strong>da</strong>de veicula<strong>da</strong> pelo Hiponense corresponde a umareali<strong>da</strong>de viva, mais ain<strong>da</strong>, à Supr<strong>em</strong>a Forma de Vi<strong>da</strong>. Por isso, todos os percursos deaproximação a essa Reali<strong>da</strong>de traçados por <strong>Agostinho</strong>, acabam, de um modo ou deoutro, por se articular com a formulação do desejo universal de felici<strong>da</strong>de e envere<strong>da</strong>m592 Esta insciência de coração, própria de qu<strong>em</strong> nega a existência de Deus, t<strong>em</strong> raiz metafísica, nãomeramente noética. Ao analisar a estrutura do cogito humano, Sto. <strong>Agostinho</strong> insere a acção divina naactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> ao conhecimento, de modo peculiar àquele que atinge o nível <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des inteligíveis. Tanto a ciência como a sabedoria implicam a compenetração <strong>da</strong> mente humanacom a intervenção do Verbo divino. Por isso, na óptica do Hiponense, qu<strong>em</strong> nega a existência de Deusnão adquiriu n<strong>em</strong> a ciência, n<strong>em</strong> a sabedoria: é insciente antes de mais acerca de si mesmo.399


por uma forma de expressão literária na qual o conhecimento de Deus é conquistado porreconhecimento. Neste contexto, a exposição augustiniana assume s<strong>em</strong>pre o perfil deum percurso racional de carácter mais ostensivo do que d<strong>em</strong>onstrativo.No Livro décimo de Confessionum, a reflexão sobre a m<strong>em</strong>ória do esquecimento,expressão de si paradoxal, prepara, de facto, a adesão a um reconhecimento de Deus porr<strong>em</strong>iniscência, sendo esta noção ora entendi<strong>da</strong> de modo peculiar, extrapolando ascoordena<strong>da</strong>s do platonismo, que o Filósofo de Hipona, neste aspecto particular, criticaexplicitamente. Como se referiu, aquilo que, nesta análise, constitui, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, motivo de estranheza é o facto de a mente ter presença do esquecimento.<strong>Ser</strong>á esta uma presença por imag<strong>em</strong>? Porém, não pode haver imag<strong>em</strong> de uma ausênciaradical, como aparent<strong>em</strong>ente acontece com a reali<strong>da</strong>de esqueci<strong>da</strong>. Em s<strong>em</strong>elhanteapuro, a talho de foice , Sto. <strong>Agostinho</strong> cita o passo bíblico de Gen. 3: 17-19: “torneimeterra de dificul<strong>da</strong>de e de muito suor”, resumindo, assim, <strong>em</strong> poucas linhas, to<strong>da</strong> umadoutrina que irá explorar, quer ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> Confessionum, quer <strong>em</strong> escritos posteriores,sobretudo <strong>em</strong> De trinitate e <strong>em</strong> De genesi ad litteram Libri XII.De facto, a presença do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o no espírito humano será reconheci<strong>da</strong> por<strong>Agostinho</strong> no mais íntimo <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória precisamente mediante a análise do desejo defelici<strong>da</strong>de, no qual a alma humana, expressão de vi<strong>da</strong> multiforme, imensa, diversifica<strong>da</strong>ao extr<strong>em</strong>o 593 , se unifica – <strong>da</strong>do tratar-se do desiderato único de to<strong>da</strong> a sua activi<strong>da</strong>de -,e mediante o qual comunga com todos os seres humanos que, com ela, partilham amesma forma. Este desejo, por sua vez, é identificado por Sto. <strong>Agostinho</strong> com aaspiração à posse de Deus 594 , precisamente porque esta última noção é considera<strong>da</strong> pelofilósofo como o Princípio <strong>em</strong> união com o qual o espírito humano adquire estabili<strong>da</strong>de epermanência, atributos que só pod<strong>em</strong> convir por essência àquela reali<strong>da</strong>de que S<strong>em</strong>preÉ.593 Cf. Conf. X, XVII, 26 ( CCL 27, p. 168-169).594 Em Conf. X, XIV, a felici<strong>da</strong>de é coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> paralelo com uma <strong>da</strong>s afecções do espírito: a alegria.Mas a alegria é efeito <strong>da</strong> posse de um b<strong>em</strong> e, para que se identifique com a noção de felici<strong>da</strong>de, esse b<strong>em</strong>t<strong>em</strong> de permanecer ( CCL 27, p. 165-166). Tal gáudio é o próprio Deus. E, consequent<strong>em</strong>ente, a posse deum Deus que é Felici<strong>da</strong>de gera, também naquele que O possui, essa quali<strong>da</strong>de do espírito: Conf. X, XXII,32: “(…) Et ipsa est beata uita, gaudere ad te, de te, propter te: ipsa est et non est altera. (…).” ( CCL 27,p. 172). A felici<strong>da</strong>de é uma alegria que v<strong>em</strong> <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a qual é o próprio Deus. É feliz aqueleque, s<strong>em</strong> que na<strong>da</strong> o perturbe, se alegra unicamente com a posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de (Cf. Conf. X, XXIII, 34:CCL 27, p. 173-174).400


To<strong>da</strong>via, não obstante a felici<strong>da</strong>de constituir o fim que todos os seres humanosintentam, não há ninguém que se afirme na posse definitiva desse b<strong>em</strong>. Por esse mesmofacto, todos o procuram. Sto. <strong>Agostinho</strong> justifica esta busca universal pela supr<strong>em</strong>acia<strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação à mente humana. Com efeito, é na luz <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de que a mentecont<strong>em</strong>pla omnia bona - todos os bens. É nessa luz incorpórea que reconhece aquali<strong>da</strong>de de tais bens na hierarquia ontológica e que discerne quais os melhores. Destaforma, a mente humana - na sua dimensão teleológica, cujo fun<strong>da</strong>mento metafísico é oprincípio <strong>da</strong> intentio animi - procura unir-se àqueles bens que reconhece comomelhores. Nesse movimento, orientando-se para tais bens mediante a dinâmica <strong>da</strong>s trêsfunções que a caracterizam, ela v<strong>em</strong> a possuí-los. Porém, o universo de bens disponívelpara que a mente deles possa desfrutar ultrapassa s<strong>em</strong>pre a capaci<strong>da</strong>de do espíritohumano, quer <strong>em</strong> quanti<strong>da</strong>de - para qu<strong>em</strong> considera que é na posse de bens dessanatureza que constitui a felici<strong>da</strong>de -, quer <strong>em</strong> quali<strong>da</strong>de, para os que colocam aaquisição <strong>da</strong> beatitude na posse dos bens inteligíveis. Ora, o enigma que paira <strong>em</strong> torno<strong>da</strong> noção de felici<strong>da</strong>de é precisamente este: como é possível que todos os sereshumanos, s<strong>em</strong> excepção, procur<strong>em</strong> um b<strong>em</strong> que não t<strong>em</strong> referente <strong>em</strong> nenhumareali<strong>da</strong>de conheci<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do que não se encontra realizado <strong>em</strong> nenhum sujeito, a não ser, ena melhor <strong>da</strong>s hipóteses, <strong>em</strong> esperança?A resposta de Sto. <strong>Agostinho</strong> segue, a este respeito, o argumento de Cícero, querpara o enunciado do desejo universal de felici<strong>da</strong>de, quer para a justificação <strong>da</strong> presençadele, impressa na mente humana. Tal como o Hiponense expõe detalha<strong>da</strong>mente aolongo <strong>da</strong> sua obra 595 , a noção de felici<strong>da</strong>de t<strong>em</strong> as características de uma notio impressa.Porém, o carácter impresso <strong>da</strong>s notiones é explicado por <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> função <strong>da</strong>dependência <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong> face <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de eterna, que é Deus, não apenasenquanto Princípio de Iluminação, mas enquanto Criador de to<strong>da</strong>s as formas.Deste modo, <strong>em</strong> uníssono com Marco Túlio, mas partindo de propostas diferentessobre a concepção de <strong>Ser</strong>, o Filósofo de Hipona afirma a preexistência <strong>da</strong> noção de595 V., sobretudo, para além do Livro décimo de Confessionum, as análises do Livro segundo de De liberoarbitrio e dos Livros doze a quinze de De trinitate, os Livros VIII e IX de De ciuitate dei, onde seconfrontam as versões, pagã e cristã, sobre o fim do ser humano, e ain<strong>da</strong> os Livros XIX a XXII, onde Sto.<strong>Agostinho</strong>, porque descreve o estado de felici<strong>da</strong>de perpétua que o ser humano pode alcançar, prefere otermo beatituto à fórmula beata uita. A Ep. CLV e o <strong>Ser</strong>mo CL, ambos produzidos fora do contextomeramente expositivo e filosófico, reiteram as mesmas inquietações e respostas do Hiponense a respeitodo finis optimus.401


felici<strong>da</strong>de, ou seja, <strong>da</strong> própria noção de Dei<strong>da</strong>de ou B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, na mente humana.De facto, como Sto. <strong>Agostinho</strong> não cessa de repetir, não é possível amar reali<strong>da</strong>desdesconheci<strong>da</strong>s. Ora, se todos os seres humanos quer<strong>em</strong> ser felizes, amando e buscando afelici<strong>da</strong>de, exige-se que tenham desse desiderato uma qualquer notícia. Tal como aconsidera Sto. <strong>Agostinho</strong>, a estrutura <strong>da</strong> mente humana que se reflecte na activi<strong>da</strong>depensante exige uma notícia antecipa<strong>da</strong> de Deus, a qual se manifesta de formadesiderativa-volitiva mediante o desejo de felici<strong>da</strong>de. Ora, para que esse conhecimentoimplícito se torne explícito, ele deve seguir o modelo <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>. Afinal, Deus - o<strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, a Ver<strong>da</strong>de, ou a Vi<strong>da</strong> Feliz -, é uma noção s<strong>em</strong> referente sensível,exigindo o movimento de atenção ao interior <strong>da</strong> mente, mediante a admonitio, seguindo,enfim, todo o processo que foi descrito por <strong>Agostinho</strong> para a conquista dos saberes ouartes. A noção de Deus torna-se, assim, na proposta augustiniana, o termo ad qu<strong>em</strong> deuma aprendizag<strong>em</strong>, a qual obedece ao movimento de passag<strong>em</strong> do esquecimento – poisse trata de uma notio impressa – ao reconhecimento.Considerando o modo como esta noção Supr<strong>em</strong>a está conti<strong>da</strong> na m<strong>em</strong>ória, não éirrelevante o facto de o filósofo se propor analisar a noção de Deus identificando-a coma Beata Vita. Com efeito, a noção de Felici<strong>da</strong>de é projectiva, implica o impulso <strong>da</strong>sfunções do espírito humano <strong>em</strong> direcção a um b<strong>em</strong> a conquistar. Ela orienta, porconseguinte, o ser humano para uma situação futura, pela sua dimensão desiderativa epelo facto de a percepção e conquista dela se inscrever<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po. Por isso, aoprocurar, mediante a noção de felici<strong>da</strong>de, a presença de Deus na m<strong>em</strong>ória, mais umavez o Hiponense reitera a sua concepção de <strong>Ser</strong> como Reali<strong>da</strong>de a Construir e nãocomo conjugação de um aglomerado de <strong>da</strong>dos fossilizados na m<strong>em</strong>ória, a reproduzir nopresente, mediante um modelo que pertence ao passado 596 .596 Cf. Conf. X, XX, 29 (CCL 27, p. 170-171). Mesmo quando, no contexto desta mesma in<strong>da</strong>gação Sto.<strong>Agostinho</strong> afirma que, caso encontre a noção de Vi<strong>da</strong> Feliz na m<strong>em</strong>ória, isso deverá significar que a almahumana alguma vez viveu de tal forma, o horizonte desta questão não é já o <strong>da</strong> r<strong>em</strong>iniscência platónica,mas o <strong>da</strong> metafísica bíblica <strong>da</strong> criação e <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original, ao qual se associa, por um lado, umaconcepção linear de t<strong>em</strong>po e de historici<strong>da</strong>de, e, por outro, a investigação acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas, nosmoldes <strong>em</strong> que já foi referi<strong>da</strong>. Por último, esta concepção de uma felici<strong>da</strong>de perdi<strong>da</strong> e recuperável <strong>em</strong>esperança une-se, na obra do Hiponense, à compreensão racional do projecto <strong>da</strong> Incarnação do Verbo,com o qual se inicia, na história, uma nova Criação, projecta<strong>da</strong> para a consecução, por parte de todos osseres, de uma perfeição superior à original.402


Sto. <strong>Agostinho</strong> interroga-se sobre se a noção de beata uita está impressa nam<strong>em</strong>ória. Ora, se tal noção residisse fora do âmbito <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, o esquecimento deDeus seria absoluto e ninguém procuraria a felici<strong>da</strong>de. Com efeito, se tais noções –Deus e a felici<strong>da</strong>de - estivess<strong>em</strong> ausentes <strong>da</strong> função de recor<strong>da</strong>r, o desconhecimentodelas seria total. Se a noção de Deus, inerente ao desiderato de vi<strong>da</strong> feliz, se ausentasseradicalmente <strong>da</strong> mente humana, o sentido <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> forma humana mergulhariana total irracionali<strong>da</strong>de, pois to<strong>da</strong> a intencionali<strong>da</strong>de do espírito humano seria esvazia<strong>da</strong>de conteúdo.A m<strong>em</strong>ória é, portanto, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o limite interno <strong>da</strong> procura de Deus,<strong>da</strong> mesma forma que a razão d<strong>em</strong>arca a presença Dele, na mente, de uma forma vertical,ao reconhecer, mediante a luz <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, que Ele se coloca no cume <strong>da</strong> hierarquiaontológica. Assim, a metafísica augustiniana confina a estrutura <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong>relação ao <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o do seguinte modo: para lá <strong>da</strong> razão humana, apenas Deus. Paralá <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória humana, o na<strong>da</strong> de existência, o vazio ontológico. Por isso, quandoascende ao conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que está no vértice <strong>da</strong> hierarquia ontológica, arazão acede ao reconhecimento de Deus como Ver<strong>da</strong>de. Por sua vez, quando a razãodesce ao fundo <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, ela reconhece Deus como Dador de <strong>Ser</strong> e Princípio deFelici<strong>da</strong>de.Com efeito, d<strong>em</strong>ora<strong>da</strong> fora a argumentação, <strong>em</strong> De libero arbitrio, acerca <strong>da</strong>dependência radical entre a forma humana e a possibili<strong>da</strong>de de alcançar a felici<strong>da</strong>de,aquela sustentando esta última, e justificando-se <strong>em</strong> função deste desiderato universal.Se, para aceder a Deus mediante a razão, esta função <strong>da</strong> mente humana teve deencontrar aquilo a que nenhuma outra reali<strong>da</strong>de se sobrepõe, por seu turno o acesso ao<strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o através <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória baliza, até certo ponto, a transcendência Dele. Se Deusestá acima <strong>da</strong> razão e para além dela, o mesmo não é <strong>da</strong>do afirmar <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória 597 , poisnela se arreca<strong>da</strong> a recor<strong>da</strong>ção do próprio Princípio de Existência.Nos itinerários ascendentes <strong>da</strong> razão para Deus - descritos, por ex<strong>em</strong>plo, no Livrosexto de De musica, <strong>em</strong> De uera religione, <strong>em</strong> De moribus ecclesiae catholica, ondesurge apenas esboçado, ou, descrito com to<strong>da</strong> a morosi<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> De libero arbitrio - é arazão e a sua activi<strong>da</strong>de interna que estão <strong>em</strong> análise. O trajecto procede,invariavelmente, de acordo com o projecto inicial <strong>em</strong> função do qual o Filósofo de597 Conf. X, XVII, 26: “ (…) Si praeter m<strong>em</strong>oriam meam te inuenio, imm<strong>em</strong>or tui sum. Et quomodo iaminueniam te, si m<strong>em</strong>or non sum tui?” ( CCL 27, p. 169).403


Hipona se propusera redigir a sua “enciclopédia”: per corporalia ad incorporalia. Umavez atingido, mediante os corporalia, o domínio <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des inteligíveis, Sto.<strong>Agostinho</strong> propõe-se ascender, a partir deles, até à transcendência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Ametodologia augustiniana de acesso racional a Deus prossegue, sist<strong>em</strong>aticamente, nummovimento que ascende do conhecimento sensível ao inteligível e <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>desinteligíveis a Deus, sendo esta reali<strong>da</strong>de superna descoberta, no mais íntimo <strong>da</strong> mente,como o <strong>Ser</strong> Superior àquele princípio de activi<strong>da</strong>de que, nela, há de melhor.Assim, quando, no Livro décimo de Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> se propõedescobrir Deus, interior intimo meo, começa por interrogar as reali<strong>da</strong>des extrínsecasacerca <strong>da</strong> forma como possu<strong>em</strong> o ser: por essência ou por contingência. E se, nositinerários ascendentes, o filósofo descobre o limite além do qual a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razãonão progride – por isso a noção de Deus é identifica<strong>da</strong>, nesses trajectos, com a Ver<strong>da</strong>de,Mestre do espírito humano, agindo sobre ele -, no itinerário descendente, ao invés, oachamento de Deus coincide com a descoberta do limite radical e do sustento <strong>da</strong> própriaexistência. Regredindo ao mais recôndito <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, o Hiponense descobre a própriacontingência, <strong>da</strong>do que, s<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória de Deus, não haveria sustento metafísico para oser humano, na especifici<strong>da</strong>de do seu ser racional, não já enquanto a razão é capaz deciência, mas enquanto nela t<strong>em</strong> assento a sabedoria.Autor de to<strong>da</strong>s as criaturas, o Deus interior intimo meo sustenta, na formahumana, o próprio facto de ser e esta reali<strong>da</strong>de manifesta-se sobr<strong>em</strong>aneira no interior <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória. Na reali<strong>da</strong>de, se o ser humano tivesse que transcender a m<strong>em</strong>ória paraencontrar Deus, perderia a sua identi<strong>da</strong>de, esquecer-se-ia de si e, nesse processo,aniquilar-se-ia a forma específica do seu ser 598 . Tal processo que, à luz <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s598 Esta dissolução <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de própria era o termo <strong>da</strong>s asceses gnósticas para Deus. Projectando-Onuma transcendência absoluta, o ideal de felici<strong>da</strong>de e de identificação com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o não secompadecia com a permanência de qualquer el<strong>em</strong>ento próprio, devendo fundir-se todo a forma peculiarde ser, enquanto múltipla e diversa, na condição Universal e Comum, específica do Uno Supr<strong>em</strong>o. Sto.<strong>Agostinho</strong> quer preservar a referi<strong>da</strong> união mas s<strong>em</strong> dissolver o carácter próprio, diferente e multiforme,de ca<strong>da</strong> existente. Com efeito, assumindo a noção de <strong>Ser</strong>, inerente à metafísica bíblica <strong>da</strong> Criação, não éadmissível considerar uma dissolução <strong>da</strong>s multiformes existências s<strong>em</strong> introduzir uma enorme <strong>em</strong>onstruosa contradição na activi<strong>da</strong>de do Princípio Criador: querendo a diferença, facto que se manifestano próprio acto Criador, tal <strong>Ser</strong> quereria, simultaneamente, a aniquilação dela. Esta contradição no seio <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de não faria qualquer sentido. Sto. <strong>Agostinho</strong> irá, portanto, insistir na preservação <strong>da</strong> diferença epelejar por uma forma de defender a efectiva relação entre o <strong>Ser</strong> e as multíplices expressões de existência.Entendendo o <strong>Ser</strong> como Vi<strong>da</strong> Eterna, o filósofo irá conceber to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s criaturas mediante uma404


estabeleci<strong>da</strong>s pelo Hiponense, é metafisicamente impossível, não poderia, sequer, terorig<strong>em</strong> numa activi<strong>da</strong>de do próprio ser humano, pois o facto <strong>da</strong> existência e a posse <strong>da</strong>forma constitu<strong>em</strong>, para ele, um <strong>da</strong>do, e não são objecto de conquista.É ver<strong>da</strong>de que, tal como acontece com as d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des inteligíveis, apassag<strong>em</strong> desta presença latente para o estado de conhecimento explícito é, no entenderde Sto. <strong>Agostinho</strong>, objecto de uma aprendizag<strong>em</strong>, facto que supõe, efectivamente,admitir um esquecimento t<strong>em</strong>porário de Deus, por um lado, e, por outro, um progressono reconhecimento Dele, ou seja, na conquista <strong>da</strong> sabedoria, a cuja posse se segue abeatitude 599 .Já <strong>em</strong> De libero arbitrio Sto. <strong>Agostinho</strong> discutira este facto, entroncando-o com aceleuma, levanta<strong>da</strong> pelos seus adversários, no caso, os Maniqueus, acerca de umpresumível estado de sabedoria e felici<strong>da</strong>de primordiais, e do trânsito dessa situaçãopara o vício <strong>da</strong> ignorância 600 . No Livro terceiro <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> obra, o Hiponense enfrentauma série de dificul<strong>da</strong>des coloca<strong>da</strong>s pelo maniqueísmo à concepção bíblica de pecadooriginal, a qual, não sendo peça exclusiva, é el<strong>em</strong>ento constituinte <strong>da</strong> explicação de Sto.<strong>Agostinho</strong> para a orig<strong>em</strong> do mal. Em De libero arbitrio, a argumentação do Hiponenseé conduzi<strong>da</strong> sobre a ideia de um estado de ignorância, que seria devido ao ser humano<strong>em</strong> função de um abandono voluntário <strong>da</strong> presença de Deus, estado esse que se teriatornado condição de todos os seres humanos. Em todo o caso, o filósofo defende ocarácter progressivo do conhecimento, mesmo considerando um estado de beatitudeoriginal, no qual o género humano teria sido criado.Um dos aspectos interessantes <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> discussão é precisamente o facto de aíse evidenciar a condição progressiva de uma situação que se poderia designar, à parti<strong>da</strong>,de participação, por presença, na sabedoria. Com efeito, pelas condições que atribui àmente sábia, Sto. <strong>Agostinho</strong> nunca admite que este estado signifique, para ela, umasituação de inércia. Por isso, mesmo se a existência humana tivesse sido cria<strong>da</strong> numa talcondição, exigir-se-ia, <strong>da</strong> mente, que intensificasse tal relação.Mas a possibili<strong>da</strong>de inversa também deve ser considera<strong>da</strong>, a saber, apraticabili<strong>da</strong>de de um decréscimo, ou mesmo de um abandono dessa situação original,maximamente gratificante. Ora, tal possibili<strong>da</strong>de é confia<strong>da</strong>, no entender do Hiponense,dinâmica projectiva de crescimento ontológico, e não através de uma concepção regressiva derecuperação de Orig<strong>em</strong>.599 Cf. Conf. X, XXIV, 35 (CCL 27, p. 174).600 Cf. LA III, XXIV, 71-XXV, 77 ( CCL 29, p. 317-321).405


tão-só ao livre arbítrio <strong>da</strong> vontade. O seu efeito, to<strong>da</strong>via, não é a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de no interior <strong>da</strong> mente, mas apenas o olvido dela, estado para o qual Sto.<strong>Agostinho</strong> identifica duas situações penais: a ignorância e a dificul<strong>da</strong>de. Esta ignorânciaconsiste, exactamente, no esquecimento <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de ou Deus, aquela reali<strong>da</strong>de quepreenche o desejo de beatitude. Daí advém, para o ser humano, a dificul<strong>da</strong>de dealcançar o finis optimus. Tal dificul<strong>da</strong>de é, por conseguinte, a consequência, necessáriae imediata, <strong>da</strong>quele estado de ignorância. Por isso, coerent<strong>em</strong>ente, Sto. <strong>Agostinho</strong>assenta a ultrapassag<strong>em</strong> destas duas debili<strong>da</strong>des que afectam a forma humana numprocesso de aprendizag<strong>em</strong> do próprio Deus, constituindo esta, afinal, a mais radical <strong>da</strong>saprendizagens, a cuja análise o filósofo se aplica no Livro décimo de Confessionum.Sto. <strong>Agostinho</strong> sabe que não pode transitar para além <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória de si na buscade Deus, pois Ele não se encontra fora dela 601 . To<strong>da</strong>via, Deus não se encontra nam<strong>em</strong>ória que o espírito t<strong>em</strong> de si mesmo. Neste processo de aprendizag<strong>em</strong> de Deus,verifica-se que, se por um lado Sto. <strong>Agostinho</strong> não hesita <strong>em</strong> identificar a m<strong>em</strong>ória e oespírito humano, por outro, resiste absolutamente a irmanar Deus com a mente,reiterando a diferença entre o <strong>Ser</strong> supr<strong>em</strong>o e to<strong>da</strong> a forma cria<strong>da</strong>, também a <strong>da</strong> criaturaespiritual, insistindo na Imutabili<strong>da</strong>de do Divino e na mutabili<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as criaturase, portanto, também na do espírito humano 602 .To<strong>da</strong>via, ao procurar o lugar de Deus na m<strong>em</strong>ória, Sto. <strong>Agostinho</strong> parte já <strong>da</strong>aprendizag<strong>em</strong> que, de Deus, ele próprio realizou, resultado alcançado mediante umprocesso de conversão interior, o qual, como fica explícito, mormente ao longo deConfessionum, envolveu to<strong>da</strong>s as funções <strong>da</strong> mente do filósofo - m<strong>em</strong>ória, inteligência evontade. É a partir desse percurso existencial de aprendizag<strong>em</strong> de Deus que Sto.<strong>Agostinho</strong> afirma não mais O poder olvi<strong>da</strong>r. O termo de tal processo é, para oHiponense, o reconhecimento de Deus como a Reali<strong>da</strong>de que se descobre in te, suprame 603 . Assim, neste itinerário descendente <strong>da</strong> alma para Deus, o el<strong>em</strong>ento que levou a601 Conf. X, XXIV, 35: “Ecce quantum spatiatus sum in m<strong>em</strong>oria mea quaerens te, domine, et non inueniextra eam (…). ” ( CCL 27, p. 174).602 Conf. X, XXV, 36: « (…) Et intraui ad ipsius animi mei sed<strong>em</strong>, quae ille est in m<strong>em</strong>oria mea, quoniamsui quoque m<strong>em</strong>init animus, nec ibi tu eras (...), ita nec ipse animus es, quia dominus deus animi tu es, etcoimmutantur haec omnia, tu aut<strong>em</strong> incommutabilis manes super omnia (…). » ( CCL 27, p. 174).603 Conf. X, XXVI, 37: “ Vbi ergo te inueni, ut discer<strong>em</strong> te? (…) nisi in te supra me (…)?” ( CCL 27, p.174-175).406


mente ao reconhecimento do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o foi, efectivamente, a transcendência Dele,para a qual foi exigido, por parte do filósofo, um processo de auto transcendência.Deus não é descoberto por <strong>Agostinho</strong> in me, supra me. O <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o não é umaproprie<strong>da</strong>de do espírito, uma ideia Supr<strong>em</strong>a do entendimento que possa ser inventa<strong>da</strong>nele como criação ou construção de uma mente soberanamente poderosa e dota<strong>da</strong> dequali<strong>da</strong>des intelectuais surpreendentes 604 . A noção de Deus é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>,totalmente outra do espírito, e é essa a pedra de toque para o reconhecimento <strong>da</strong>quelareali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a. Mais ain<strong>da</strong>, é nela que o próprio espírito a reconhece, sendo-lhe<strong>da</strong>do penetrar, desta forma, ain<strong>da</strong> que de modo limitado, na essência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Nesta medi<strong>da</strong>, a aprendizag<strong>em</strong> de Deus é a descoberta Dele como Ver<strong>da</strong>de, o quefaz coincidir os itinerários ascendentes, já referidos, e este outro, que designámos pordescendente 605 . To<strong>da</strong>via, aqui algo se acrescenta, sobretudo no texto panegírico deConfessionum X, XXVII, 38. A beleza, tarde ama<strong>da</strong>, morava, desde s<strong>em</strong>pre, no interior<strong>da</strong> mente. Precisamente por isso o reencontro é proclamado tardio por Sto. <strong>Agostinho</strong>,lamenta<strong>da</strong> a mora. A m<strong>em</strong>ória retinha, desde s<strong>em</strong>pre, como condição <strong>da</strong> permanênciano próprio ser ou como princípio de conservação <strong>da</strong> existência, a presença de Deus, talcomo o filósofo reconhece acontecer com a recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des que, porignorância, outrora amava como se foss<strong>em</strong> Deus.Efectivamente, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que a m<strong>em</strong>ória humana é a funçãoguardiã <strong>da</strong> relação essencial do ser humano com o <strong>Ser</strong> divino, independent<strong>em</strong>ente de talrelação essencial ser, ou não, assumi<strong>da</strong> consciente e voluntariamente. À m<strong>em</strong>óriahumana corresponde uma presença de Deus por imanência – manens in me –, a qual604 Esta seria, mesmo, a essência <strong>da</strong> ignorância: conceber um Deus à medi<strong>da</strong> do espírito humano,hipostasiando esta reali<strong>da</strong>de finita. Em De libero arbitrio, Sto. <strong>Agostinho</strong> considera esta possibili<strong>da</strong>de,precisamente a partir <strong>da</strong> efectiva co-presença entre Deus e a alma. Identificando-a com a essência <strong>da</strong>desord<strong>em</strong>, mostra como essa possibili<strong>da</strong>de deriva do facto de a mente se conhecer a si mesma <strong>em</strong> Deus. Avontade fica livre para que aderir ou ao conhecimento de si mesma, ou ao conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de quepermite que a si mesma se conheça, a Ver<strong>da</strong>de. Com efeito, lê-se, <strong>em</strong> LA III, XXV, 76: « Vt aut<strong>em</strong> incont<strong>em</strong>platione summae sapientiae – quae utique animus non est, nam est incommutabilis – etiam seipsum qui est commutabilis animus intueatur et sibi ipse quo<strong>da</strong>m modo ueniat in ment<strong>em</strong>, non fit nisidifferentia qua non est quod deus et tamen aliquid est quod possit placere post Deum. » [ CCL 29, p. 320(it. n.) ].605 Cf. Conf. X, XXIV, 35-X, XXVI, 37 ( CCL 27, p. 174-175). To<strong>da</strong> a proclamação do Deus queaprendeu é uma proclamação <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, reconheci<strong>da</strong> pelo espírito como B<strong>em</strong> comum, supostaa predisposição para aprender.407


garante a subsistência no ser. Dir-se-ia que Sto. <strong>Agostinho</strong> faz consistir nesta função <strong>da</strong>mente o alcance ontológico <strong>da</strong>quela ocupação mais radical de Deus pela reali<strong>da</strong>dehumana, a qual consiste <strong>em</strong> preservar a existência de ca<strong>da</strong> ser humano, conservando-ono ser. Mediante a m<strong>em</strong>ória, e porque nela a mente humana guar<strong>da</strong> a recor<strong>da</strong>ção do actocriador de Deus, estabelec<strong>em</strong>-se as condições de possibili<strong>da</strong>de para descobrir a ver<strong>da</strong>deacerca <strong>da</strong> forma do ser humano e <strong>da</strong> própria Ver<strong>da</strong>de, que Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica comDeus. De igual modo, esta presença é considera<strong>da</strong> pelo filósofo a tal ponto íntima eradical que nela se responde, a nível individual e ôntico, à dificul<strong>da</strong>de posiciona<strong>da</strong> pelofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. De facto, Deus não está apenas próximo dos humanos, ocupandosedos assuntos deles, mas é precisamente tal proximi<strong>da</strong>de que os sustenta na existência,fazendo que ca<strong>da</strong> ser humano seja aquilo que é. Retira<strong>da</strong> essa presença eterna de Deusno íntimo de ca<strong>da</strong> ser humano, encontrar-se-á o na<strong>da</strong>, a total ausência de ser.Por este motivo, o esquecimento de Deus por parte do ser humano não pode,jamais, ser absoluto, n<strong>em</strong> atingir alcance metafísico. Para tal, e porque de uma relaçãoontológica se trata, era necessário que ambos os pólos entrass<strong>em</strong> <strong>em</strong> total amnésia. Ora,a m<strong>em</strong>ória divina, alheando-se <strong>da</strong> sucessão t<strong>em</strong>poral, coincide com o próprio <strong>Ser</strong> deDeus como Eterni<strong>da</strong>de. É essa a razão <strong>da</strong> pereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença Dele no interior <strong>da</strong>scriaturas. Essa presença eterna no interior do ser humano faz que, neste, o esquecimentode Deus não possa atingir nunca o nível ontológico, mas apenas o domínio psicológico.De facto, de Deus não há representação e, portanto, não pode ser nesse nível que o serhumano recupera a recor<strong>da</strong>ção Dele. Inversamente, se a mente logra superar o limiar<strong>da</strong>s representações, avançando para o domínio <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des inteligíveis que seencontram no mais íntimo patamar do espírito humano, ela poderá, através de umaadequa<strong>da</strong> atenção, aprender Deus e a alma. Ela alcançará, por fim, o conhecimento <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des que o Filósofo de Hipona indica estar<strong>em</strong> no cerne <strong>da</strong> sabedoria.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, o olvido de Deus revela, tão-somente, um estado deafastamento do Princípio, a que corresponde, afinal, uma radical ignorância acerca de simesmo. Por esse motivo, no processo de aprendizag<strong>em</strong> de Deus, ou de conquista <strong>da</strong>sabedoria, Sto. <strong>Agostinho</strong> não dissocia o recto conhecimento de si mesmo e oconhecimento de Deus. O referido afastamento de Deus ou olvido Dele, não alcança odomínio do ser. É apenas efeito de uma vontade perversa, não obstante o filósofo nãoencontrar resposta fácil para justificar o modo como tal estado acontece <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> serhumano. Por isso, a recor<strong>da</strong>ção de Deus ou aprendizag<strong>em</strong> Dele exige um processo de408


conversão, de reencontro de si mesmo com o Princípio Criador e de livre adesão aoprojecto <strong>em</strong> que consiste a existência humana, a realizar como beata uita 606 .O Filósofo de Hipona estabelece, assim, como condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>conversão e <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> de Deus, a permanência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de no íntimo <strong>da</strong>m<strong>em</strong>ória humana, reali<strong>da</strong>de última e diferente dela, que lhe é simultaneamente imanentee transcendente. E, uma vez realizado aquele processo de conversão e de aprendizag<strong>em</strong>,reconhece que o esquecimento de Deus não mais é possível ao ser humano. A conquista<strong>da</strong> beata uita realiza-se, então, num movimento que se inicia pela simples permanênciade Deus na m<strong>em</strong>ória – oculta e s<strong>em</strong> rosto, cujo efeito é garantir a persistência no ser.Este modo de relação com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o é comum ao ser humano e a to<strong>da</strong>s ascriaturas. Transita, <strong>em</strong> segui<strong>da</strong>, mediante a aprendizag<strong>em</strong> de Deus e <strong>da</strong> conversão a Ele,desde a simples permanência para a habitação. E, pelo progresso <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong>direcção à conquista <strong>da</strong> sabedoria e à adesão ao B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, esta habitaçãotransforma-se, finalmente, <strong>em</strong> inabitação, ou comunhão efectiva entre o espírito humanoe o <strong>Ser</strong> Divino 607 .606 Para ex<strong>em</strong>plificar o facto do esquecimento, Sto. <strong>Agostinho</strong> recorre, <strong>em</strong> Conf. X, XVIII, 27 ( CCL 27,p. 169), aos versículos bíblicos de Lc. 15:8-9. Uma vez mais, cr<strong>em</strong>os que esta opção não é aleatória, masindica precisamente o modelo de conversão que o Hiponense visa e mediante o qual se superará oesquecimento de Deus. O Deus <strong>da</strong> Essência, o IDIPSUM, permanece no interior de ca<strong>da</strong> ser, sustentandoa existência dele. Mas, no caso <strong>da</strong> forma humana, o mesmo Deus é nome de misericórdia, razão pela qualse faz próximo dos homens, nomea<strong>da</strong>mente pela Incarnação do Verbo. Viabilizando a relação entre Deuse os seres humanos, a Dei<strong>da</strong>de não poderia manifestar maior interesse pelos assuntos destes, n<strong>em</strong> maiorproximi<strong>da</strong>de com a natureza humana.607 Poder-se-ia encontrar, nesta espécie de momentos de progressão para Deus, um paralelismo com osestados <strong>da</strong> vivência humana definidos por Kierkegaard: estético, ético e religioso. Esta dinâmica colhe-se<strong>em</strong> Conf. X, XXV, 36-X, XXVII, 38 (CCL 27, p. 174-175) mediante a descoberta de uma relação comDeus que indica progressão na intimi<strong>da</strong>de, até ao descanso na paz, através dos actos expressos pelosverbos manens, habitare, inhaerere. Uma tal dinâmica encontra paralelo nos estados definidos nosprimeiros Diálogos: haberi Deum, habere Deum, esse cum Deo/ Plenitudo. Assim, <strong>em</strong> Conf. X, XXV, 36( CCL 27, p. 174), indica-se a permanência de Deus na mente: tu manes in m<strong>em</strong>oria mea. Mas esse Deusque, imutável, permanece sobre to<strong>da</strong>s as coisas, habita na m<strong>em</strong>ória. É esse o momento <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>de Deus que não mais permite o esquecimento ou ignorância Dele: “ habitas certe in ea, quoniam tuim<strong>em</strong>ini, ex quo te didici, et in ea te inuenio, cum recordor te.” O momento <strong>da</strong> passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> simpleshabitação para a comunhão exprime-se, por fim, de modo poético e sugestivo, <strong>em</strong> Conf. X, XXVII, 38. Àincansável activi<strong>da</strong>de divina - Vocasti, clamasti, rupisti surditat<strong>em</strong>, corucasti, splenduisti, fugasticaecitat<strong>em</strong>, flagrasti – corresponde a mente humana: anhelo tibi, gustaui, esurio, sitio ( CCL 27, p.175).O efeito desta tangência (tetigisti me), ou perfeita consonância, é, finalmente, a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>,409


Desta desci<strong>da</strong> ao âmago <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, Sto. <strong>Agostinho</strong> conclui que a presença deDeus nela é a marca mais fun<strong>da</strong> do acto criador na mente humana. Sendo assim, earticulando este achamento de Deus com a inteligência do passo bíblico onde o filósofolê que o ser humano é imago Dei, a análise augustiniana <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória prosseguirá,ocupando função central na obra do Hiponense, máxime no acesso ao conhecimento deDeus, não já no seu <strong>Ser</strong>, mas na sua Essência. Só assim a aprendizag<strong>em</strong> de Deus estarácompleta, perfeita a conquista <strong>da</strong> sabedoria, descortinado o sentido <strong>da</strong> realização <strong>da</strong>ord<strong>em</strong> na mente humana.como tranquili<strong>da</strong>de do ser plenamente realizado de acordo consigo mesmo: exarsi in pac<strong>em</strong> tuam. Para<strong>Agostinho</strong>, outro não será o efeito <strong>da</strong> realização plena <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> a não ser o descanso na paz. Essa plenauni<strong>da</strong>de, na qual s<strong>em</strong>pre permanecerá a diferença, não obstante germina<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po e na história, é,contudo, projecta<strong>da</strong> pelo filósofo para um futuro, no qual todo o ser humano, to<strong>da</strong>s as capaci<strong>da</strong>des dele,estarão, na contingência que as caracteriza, repletas do <strong>Ser</strong> divino: “ (...) cum inhaesero tibo ex omni me,nusquam erit mihi dolor et albor, et ui<strong>da</strong> erit mea tota plena te.” (Conf. X, XXVIII, 39; CCL 27, p. 175).Esta plenitude só se realizará escatologicamente.410


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CAPITULO IVORDEM E SER DIVINO1. Compreender o inefável?A partir do modo como concebe o Absoluto, Sto. <strong>Agostinho</strong> constrói uma visão domundo na qual o paradoxo comparece com pertinácia. Este aspecto justifica o carácterdesconcertante de muitos dos seus escritos, <strong>da</strong>do que o filósofo faz apanágio quer <strong>da</strong>diversi<strong>da</strong>de do real, quer do seu carácter multifacetado. O s<strong>em</strong>blante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de podeser visto a partir de diferentes perspectivas e o Hiponense quer valorizar to<strong>da</strong>s. Naperspectiva augustiniana, é a própria reali<strong>da</strong>de que estabelece um diálogo essencial como Princípio de que depende, sendo este, por seu turno, também essencialmentedinâmico. Esse facto potencia inúmeras formas de abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do real.Em contraste com as propostas filosóficas <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> concebeo real a partir de uma estrutura relacional que, a um t<strong>em</strong>po, integra a diferença e assumea uni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong>. De facto, a metafísica augustiniana não exorciza a alteri<strong>da</strong>de,avocando-a quer no seio do Absoluto, quer na estrutura <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>. Para oHiponense, a categoria ontológica <strong>da</strong> relação erige-se <strong>em</strong> el<strong>em</strong>ento radical <strong>da</strong> essênciado <strong>Ser</strong>, <strong>em</strong> qualquer <strong>da</strong>s suas manifestações. Porém, <strong>da</strong>do que não há diferença s<strong>em</strong>relação, a justificação desta quali<strong>da</strong>de do ser torna-se el<strong>em</strong>ento recorrente na obraaugustiniana, tanto na explicação <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de t<strong>em</strong>poral, como no que dizrespeito à compreensão <strong>da</strong> natureza do Absoluto. No primeiro caso, o discurso sobre aalteri<strong>da</strong>de é fácil de legitimar, <strong>da</strong>do que ele não contraria a evidência racional, desde onível <strong>em</strong>pírico até ao nível <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> mente humana. Com efeito, comoo filósofo recor<strong>da</strong> amiúde, na observação de qualquer forma de ser é possível que amente realize uma experiência de alteri<strong>da</strong>de, não obstante ser a percepção <strong>da</strong>individuali<strong>da</strong>de a que se verifica de modo imediato, tornando-se, por conseguinte, maisfácil de comprovar pela maioria dos humanos.Relativamente à essência do Absoluto, a introdução <strong>da</strong> diferença no seio <strong>da</strong>perfeita uni<strong>da</strong>de torna-se ver<strong>da</strong>deiramente um escân<strong>da</strong>lo para a mentes que se atêm àspropostas filosóficas do mundo antigo. De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> não t<strong>em</strong> pejo <strong>em</strong>afirmar que há uma única natureza supr<strong>em</strong>a, n<strong>em</strong> defectível, n<strong>em</strong> perfectível, incapaz dedecaimento que a diminuia, ou de transcendência que a aumente. Ela é perfeita,412


absolutamente imutável e eterna. Na obra do Hiponense, tal essência é identifica<strong>da</strong> pelaexpressão paradoxal: Trina Vnitas, Vna Trinitas. A Supr<strong>em</strong>a Uni<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> união com aqual consiste a meta <strong>da</strong> sabedoria promulga<strong>da</strong> pelos Platonicorum, é complexifica<strong>da</strong> por<strong>Agostinho</strong> mediante a introdução do el<strong>em</strong>ento trinitário no seio do Absoluto, s<strong>em</strong>,contudo, por esse facto, tal Princípio perder a simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua essência. Trata-se,efectivamente, de uma sola natura , simplex et multiplex 608 .Ao fazer apanágio <strong>da</strong> natureza do Absoluto como Uni<strong>da</strong>de-Trin<strong>da</strong>de, Sto.<strong>Agostinho</strong> necessita de encontrar uma justificação racional para tal essência. Contudo,mais do que a ideia de Trin<strong>da</strong>de, é a noção de Uni<strong>da</strong>de que vai contrastar com aconcepção de Uno defendi<strong>da</strong> pela tradição platónica. De facto, o modelo ontológico aíanunciado compreendia o real com base numa estrutura dialógica de três hipóstases. Porisso, o princípio que aquilata a mundividência augustiniana não será tanto aapresentação de uma metafísica que <strong>em</strong>erge de uma dialéctica ternária, quanto aintrodução de uma dinâmica de diálogo e de comunhão no seio do Uno Absoluto. Aocontrário <strong>da</strong>s três hipóstases posiciona<strong>da</strong>s <strong>em</strong> degra<strong>da</strong>ção ontológica, enuncia<strong>da</strong>s peloneoplatonismo, Sto. <strong>Agostinho</strong> complica a própria simplici<strong>da</strong>de do Uno, tornandoparadoxal, na gramática cultural disponível, a expressão <strong>da</strong> natureza desse princípiosupr<strong>em</strong>o 609 .Na ver<strong>da</strong>de, estão <strong>em</strong> causa duas concepções antagónicas acerca do <strong>Ser</strong> e <strong>da</strong>própria noção de Princípio. Do lado do platonismo, a explanação de um modelo deUni<strong>da</strong>de que encerra o Uno na sua Supr<strong>em</strong>a Transcendência, tornando-o inacessível,solitário, incomunicável e, portanto, incapaz de diálogo e de proximi<strong>da</strong>de com oMúltiplo. Do lado augustiniano, a apologia de uma concepção de Absoluto que, sendo<strong>em</strong> si mesma dialógica, subsistindo como relação, exclui a necessi<strong>da</strong>de de se comunicar608 <strong>Ser</strong>mo CLXXXII, II, 3: “ (...) Solus enim creator, pater, filius et spiritus sanctus; trina unitas, unatrinitas; sola illa natura immutabilis, incommutabilis, nec defectui, nec profectui obnoxia; nec cadit, utminus sit; nec transcendit, ut plus sit; perfecta, s<strong>em</strong>piterna, omni modo immutabilis, sola illa natura.” (PL38, 986). São constantes as expressões agostinianas que insist<strong>em</strong> neste paradoxo: “ (...) una trinitas ettrinitas unitas (...).” [(Conf. XII, VII, 7; XIII, 22, 32: CCL 27, p. 219; p. 260-261); DT VI, X, 11: “ (...)unum de uno cum quo unum” ( CCL 50, p. 241)].609 Para referir a substância divina, Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>prega a expressão, maximamente paradoxal, queindica uma essência a um t<strong>em</strong>po simples e múltipla: Simplex et multiplex (cf. DT VI, IV, 6; VI, VI, 8 :CCL 50, p. 233-235; p. 236-237; Conf. XII, XI, 12: CCL 27, p. 247-248).413


ao Múltiplo, tornando esse facto efeito de um dom e introduzindo, no real criado, odesiderato de comunicabili<strong>da</strong>de com os d<strong>em</strong>ais seres e com o Absoluto.A reflexão augustiniana a propósito <strong>da</strong> introdução <strong>da</strong> diferença no Uno obriga aponderar o modo como se estabelece a relação no seio do Absoluto, orientando a análise<strong>em</strong> três direcções. Uma primeira considera a natureza do Absoluto como uma eterna elivre relação, <strong>em</strong> face de uma alteri<strong>da</strong>de a tal ponto íntima que se identifica com aprópria natureza <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de. Trata-se do esforço augustiniano para esclarecer anatureza dialógica <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, no seio do Absoluto. Uma segun<strong>da</strong> direcção de análiseparte <strong>da</strong> comunicação entre essa Uni<strong>da</strong>de e o Múltiplo e compreende o Absoluto comorelação, eterna e livre, a uma alteri<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> por Ele, não necessária, mas contingente,efeito de uma vontade omnipotente e livre e, portanto, posiciona<strong>da</strong> no ser juntamentecom o t<strong>em</strong>po. Trata-se <strong>da</strong> dinâmica cosmológica <strong>da</strong> Criação, que Sto. <strong>Agostinho</strong>procurará esclarecer interpretando o relato bíblico <strong>da</strong>s Origens, s<strong>em</strong>pre mediante oexercício <strong>da</strong> uera ratio, ou seja, perspectivando a sua análise com base numahermenêutica que brota <strong>da</strong> relação entre a mente e o Verbo Eterno, Criador. Umaúltima direcção de análise atende ao modo como o filósofo concebe a natureza <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de do Absoluto no modo mais estreito de relação com os seres humanos.Tratando-se de uma relação eterna e livre a uma alteri<strong>da</strong>de contingente, ela é assumi<strong>da</strong>no interior <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> divina – situando-se, portanto, num domínio de eterni<strong>da</strong>de –e, simultaneamente, projecta-se no t<strong>em</strong>po. Este vector de análise trata de compreender olugar central que ocupa na obra augustiniana a dinâmica cristológica ou a Incarnação doVerbo, acção divina mediante a qual se esclarece, tanto quanto possível, a natureza doMediador. Dado que é neste patamar de investigação que se vislumbra o modo comoSto. <strong>Agostinho</strong> entende a relação entre Deus e os humanos, só explorando este domíniose poderá entrever a plenitude de sentido <strong>da</strong> noção augustiniana de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Assim, para compreender o modo como o Hiponense concebe a raiz metafísica <strong>da</strong>proximi<strong>da</strong>de entre Deus e os seres humano, torna-se decretório aceder ao modo como ofilósofo entende a noção de relação, quer no seio do Absoluto, quer no diálogo entre aEterna Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Essência Divina, e a contingência, que tipifica o Universo criado.Ora, a natureza paradoxal <strong>da</strong> concepção de uma Uni<strong>da</strong>de Simples, de um <strong>Ser</strong>Incomplexo que é, também, Plurali<strong>da</strong>de e Multiplici<strong>da</strong>de 610 , é um princípio que610 Conf. XIII, XI,12: « (…) Sed cum inuenerit in his aliquid et dixerit, non iam se putet inuenisse illud,quod supra ista est incommutabile, quod est incommutabiliter et scit incommutabiliter et uult414


caracteriza a essência do Deus que <strong>Agostinho</strong> aprendeu. Esta aprendizag<strong>em</strong>, por suavez, não dissocia as duas vias que considera <strong>da</strong>r<strong>em</strong> acesso ao saber: autori<strong>da</strong>de e razão.Na ver<strong>da</strong>de, ambos os itinerários estarão presentes nas explanações do filósofo apropósito <strong>da</strong> natureza Una e Trina <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.Por sua vez, a mente humana, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a concebe, está imersanuma condição também paradoxal, que afecta o processo cognitivo, e que decorre dofacto de, neste, interagir<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po e eterni<strong>da</strong>de, a d<strong>em</strong>ora do raciocínio e o esplendor,absolutamente imutável, <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de. Autori<strong>da</strong>de e razão, os dois el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong>dialéctica augustiniana <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé, tornam-se inseparáveis do exercício <strong>da</strong>uera ratio. Nele se espelha o raciocínio ver<strong>da</strong>deiro, manifestação <strong>da</strong> sabedoria possívelao ser humano. Este processo não dispensa a mediação do Verbo, como fontanal deonde <strong>em</strong>erge a ver<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as proposições, mais se evidenciando naquelas de carizfilosófico. S<strong>em</strong> a força iluminadora do Verbo não é possível, na perspectivaaugustiniana, construir nenhum discurso ver<strong>da</strong>deiro.Sto. <strong>Agostinho</strong> adentra-se, deste modo, mediante o esforço racional, nainteligência de uma divin<strong>da</strong>de cuja natureza postula, de acordo com a fonte bíblica,como Uni<strong>da</strong>de na Multiplici<strong>da</strong>de ou, na expressão que sói <strong>em</strong>pregar, como Vnitas-Trinitas. O filósofo edifica este raciocínio, por um lado, com base no test<strong>em</strong>unho,mediante a autori<strong>da</strong>de e, por outro lado, partindo <strong>da</strong> experiência cognitiva <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>descria<strong>da</strong>s. Porém, a própria via <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, que sustenta um tipo de conhecimentodesignado por apreensão fiducial, não transcende o horizonte <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s.A este propósito, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de é característicaessencial <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de apreendi<strong>da</strong> mediante o test<strong>em</strong>unho. É precisamente o factort<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de que, no entender do filósofo, qualifica a reali<strong>da</strong>de criatural,diferenciando-a do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Na ver<strong>da</strong>de, o princípio paulino tantas vezesenunciado – per ea quae facta sunt, ad inuisibilia Dei – que, aliás, enquantoincommutabiliter: et utrum propter tria haec et ibi trinitas, an in singulis haec tria, ut terna singulorumsint, an utrumque miris modis simpliciter et multipliciter infinito in se sibi fine, quo est et sibi notum estet sibi sufficit incommutabiliter id ipsum copiosa unitatis magnitudine, quis facile cogitauerit? (…) »(CCL 27, p. 248). A questão, aqui apenas intuí<strong>da</strong> ou enuncia<strong>da</strong>, é objecto de peculiar análise <strong>em</strong> DT VI,VI, 8-VIII, 9, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>ga a natureza, simples e múltipla, de Deus, a partir <strong>da</strong> negação <strong>da</strong>simplici<strong>da</strong>de nas criaturas: “ (...) Si aut<strong>em</strong> quaeritur quomodo simplex et multiplex sit illa substantia,animaduerten<strong>da</strong> est primo creatura quare sit multiplex, nullo aut<strong>em</strong> modo uere simplex. ” ( CCL 50, p.236-238).415


metodologia, e não obstante a divergência de pressupostos metafísicos, se ass<strong>em</strong>elha aométodo <strong>da</strong>s artes liberais como exercitatio animae: per corporalia ad incorporalia –estará s<strong>em</strong>pre presente, como pano de fundo do discurso augustiniano. De facto, és<strong>em</strong>pre sobre reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, imersas no t<strong>em</strong>po, que repousa a observaçãoaugustiniana. Assim é, quando comenta a Escritura - texto que assume como principalreferente de autori<strong>da</strong>de -, quando analisa o movimento <strong>da</strong>s criaturas e os vestígios <strong>da</strong>Trin<strong>da</strong>de nelas, ou quando centra a sua atenção na estrutura <strong>da</strong> mente humana. Oprincípio <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé - sobre o qual se ergue a dinâmica <strong>da</strong> exposiçãoaugustiniana para compreender quer a natureza do Absoluto, quer o modo como seestabelece a relação entre a Uni<strong>da</strong>de dele e a contingência do Múltiplo - assenta, acimade tudo, numa regra de sentido comum, a qual consiste <strong>em</strong> assumir a condição histórica<strong>da</strong> razão humana, inerente à experiência do próprio exercício <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de pensante.Na reali<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> adere à natureza, Una e Trina, do Absoluto, por via<strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de bíblica. Este facto, porém, na<strong>da</strong> obsta à natureza filosófica do discurso doHiponense. <strong>Agostinho</strong> considera que todo o pensamento se exerce na relação entreautori<strong>da</strong>de e razão, assumindo aquela a priori<strong>da</strong>de t<strong>em</strong>poral no processo deaprendizag<strong>em</strong> e sendo confia<strong>da</strong>, a esta última, a heg<strong>em</strong>onia ontológica. Nesta medi<strong>da</strong>, oesforço por compreender o mistério ou a essência paradoxal <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de comoVnitas/Trinitas mais não é do que a assunção do princípio sobre o qual <strong>Agostinho</strong>alicerça a sua metafísica, a saber, a relação dinâmica entre o Uno e o Múltiplo, quejamais dissocia <strong>da</strong> condição histórica que afecta to<strong>da</strong> a forma cria<strong>da</strong>. Por isso, mais doque um recurso à analogia, ou, como sugere O. du Roy, à anagogia, conforma-sepreferent<strong>em</strong>ente com a reali<strong>da</strong>de expressa na obra augustiniana a compreensão doAbsoluto mediante um processo que faz entrar <strong>em</strong> diálogo a razão, facul<strong>da</strong>de de julgar,própria e pessoal, e a fé. Esta noção é entendi<strong>da</strong> como uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mesmafacul<strong>da</strong>de racional, fixando a atenção quer na sua dimensão comum – enquanto a razãosingular está uni<strong>da</strong> ao Princípio que garante to<strong>da</strong> a inteligibili<strong>da</strong>de –, quer na suaexpressão comunitária, enquanto património de saberes historicamente acumulado,constituído na relação entre o Princípio de Inteligibili<strong>da</strong>de, ou Ver<strong>da</strong>de, e as menteshumanas que procuram compreender o real 611 .611 A propósito <strong>da</strong> relação entre fé e razão, veja-se o artigo de M. J. <strong>da</strong> COSTA FREITAS, “Razão e fé nopensamento de santo <strong>Agostinho</strong>”: Di<strong>da</strong>skalia 29 (1999) 249-255.416


É um facto que o Hiponense recorre à noção bíblica de imago dei para atingir aessência do Absoluto. To<strong>da</strong>via, para aceder à compreensão do Absoluto como Uni<strong>da</strong>dena Trin<strong>da</strong>de, a solução privilegia<strong>da</strong> pelo filósofo não insiste na construção de umraciocínio baseado na predicação analógica 612 . De facto, na obra augustiniana, a noçãode analogia é, acima de tudo, sinónimo de proporção ou congruência. Ora, Sto.<strong>Agostinho</strong> considera que entre a imag<strong>em</strong> de Deus e a essência divina há justamentedesproporção, efectiva dissimilitudo, radical diferença inscrita na forma do serhumano 613 , independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> diss<strong>em</strong>elhança voluntária que o filósofo identificacom a noção de pecado, significando, no plano metafísico, uma decadência <strong>da</strong> forma oudeformatio.A anagogia, por seu turno, ou a insistência numa ascese para Deus que terminarianuma percepção de carácter místico, à qual se viria a associar um conhecimento porexperiência extática, não é, também, a proposta definitiva do Hiponense 614 . To<strong>da</strong>via, é612 O termo ♋♋♑♓♋ não é recorrente, na obra do Hiponense. O filósofo reconhece-lhe aorig<strong>em</strong> grega e tradu-lo por proportio uel congruentia (cf. De mus. I, XII, 24: PL 32, 1097), quae<strong>da</strong>mcorrationalitas (cf. De mus. VI, XVII, 57: PL 32, 1192) e nega explicitamente a operativi<strong>da</strong>de destanoção, no que ao conhecimento <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de diz respeito: “ (...) non dico pater m<strong>em</strong>oria est, filiusintellectus est, spiritus uoluntas est; non dico, quomodolibet intellegatur non audeo; (...) non ista dico illitrinitati uelut aequan<strong>da</strong>, quasi ad analogiam, id est, ad ration<strong>em</strong> quam<strong>da</strong>m comparationis dirigen<strong>da</strong>: nonhoc dico.” (<strong>Ser</strong>mo LII, 23: RB 74, p. 35).613 Esta dissimilitudo decorre do facto <strong>da</strong> Criação ex nihilo. Em Conf. XII, XXVIII, 38, Sto. <strong>Agostinho</strong>descreve o na<strong>da</strong> como uma diss<strong>em</strong>elhança informe, <strong>em</strong> face de Deus, Eterni<strong>da</strong>de que se identifica, no <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o, com a vontade: “ Vident enim, cum haec uerba legunt uel audiunt tua, deus aeterne, stabilipermansione cuncta praeterita et futura t<strong>em</strong>pora superari nec tamen quidquam esse t<strong>em</strong>poralis creaturae,quod tu non feceris, cuius uoluntas, quia id est quod tu, nullo modo mutata uel quae antea non fuisset,exorta uoluntate fecisti omnia, non de te similitudin<strong>em</strong> tuam formam omnium, sed de nihilodissimilitudin<strong>em</strong> inform<strong>em</strong>, quae formaretur per similitudin<strong>em</strong> tuam recurrens in te unum pro captuordinato, quantum cuique rerum in suo genere <strong>da</strong>tum est, et fierent omnia bona ualde, siue maneant circate, siue gra<strong>da</strong>tim r<strong>em</strong>otiore distantia per t<strong>em</strong>pora et locos pulchras uariationes faciant aut patiantur.”(CCL 27, p. 237-238). V., também, DT XV, XV, 25: “ (...) dissimilitudo ab illo dei uerbo quod in formadei sic est (...).” (CCL 50A, p. 499-500); <strong>Ser</strong>mo LII, 17.19 ( RB 74, p. 28.30), onde a expressão longedistans se repete, para sublinhar a indigência do conhecimento humano acerca de Deus, mesmo a partir <strong>da</strong>imago Dei e mediante o exercício <strong>da</strong> uera ratio.614 P. COURCELLE, <strong>em</strong> Recherches sur les Confessions de saint Augustin (Paris 1950), p. 165-170,analisa, à luz de uma busca de experiência extática <strong>em</strong> moldes plotinianos, a passag<strong>em</strong> de Conf. VII, X,16 (CCL 27, p. 103-104), onde Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve a sua conversão metafísica. COURCELLEcontrasta essa experiência com a do designado “êxtase de Óstia” (v., também, Id., “ La pr<strong>em</strong>ière417


difícil negar que a sua própria activi<strong>da</strong>de filosófica tenha tido início numa experiênciadeste género. Efectivamente, é possível verificar uma coerência interna entre umadetermina<strong>da</strong> constelação de textos nos quais <strong>Agostinho</strong> relata a experiência <strong>da</strong> suaconversão metafísica e aqueles onde descreve o que entende por ecstasis. Por seu turno,também se comprova a conexão entre a narrativa <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong> sua conversão e avia que o filósofo propõe para a compreensão do Absoluto.Não obstante se ocultar uma questão epistémica de fundo, na discussão entreespecialistas a propósito <strong>da</strong> natureza, extática ou não, plotiniana ou cristã, <strong>da</strong> conversãorelata<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> Conf. VII, X, 16, na sua formulação ela apresenta-secomo um debate académico, que destoa <strong>da</strong> metodologia e objectivos <strong>da</strong> presenteinvestigação. To<strong>da</strong>via, <strong>em</strong> tal controvérsia há um aspecto que não é de negligenciar, namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que pode esclarecer a dinâmica augustiniana <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé. De facto,na obra do Hiponense há um paralelo notável entre estes três el<strong>em</strong>entos: a experiênciadescrita no referido passo de Confessionum, a definição que dá do termo ecstasis e omodo paradoxal como concebe o processo do entendimento humano acerca de Deus.Em Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve o movimento <strong>da</strong> sua conversão e oconteúdo de quanto, nesse processo, intuiu acerca de Deus e <strong>da</strong> alma. Fá-lo numasíntese b<strong>em</strong> consegui<strong>da</strong>, a tal ponto que se poderia dizer com acerto que to<strong>da</strong> a obra doexpérience augustinienne de l’extase” in Augustinus Magister I, p. 53-57; III, p. 41-45). A posição do A.,interpretando o referido trecho de Confessionum como uma tentativa frustra<strong>da</strong> de êxtase por parte de<strong>Agostinho</strong>, deu orig<strong>em</strong> a uma polémica sobre este momento crucial do relato autobiográfico doHiponense. Tal querela incide, sobretudo, sobre o modelo de conhecimento de Deus que leva Sto.<strong>Agostinho</strong> a optar pela metafísica cristã como acento <strong>da</strong> sua mundividência. Uma interpretação objectivae documenta<strong>da</strong> do passo referido de Conf. - e crítica, <strong>em</strong> face <strong>da</strong> posição de COURCELLE – pode ler-se<strong>em</strong> SOLIGNAC, “ Tentatives d’êxtase plotiniennes?” in Bibliothèque augustinienne. Oeuvres de saintAugustin, p. 698-703. Do ponto de vista de uma análise <strong>da</strong> dinâmica augustiniana <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé,veja-se O. DU ROY, L’intelligence de la foi..., p. 82-89. A nossa linha de interpretação afasta-se destapolémica específica, pretendendo tão-somente sublinhar a dinâmica <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé, visível no texto<strong>em</strong> causa e articulando-se <strong>em</strong> perfeita coerência quer com escritos anteriores, quer com obras decomposição posterior à <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção <strong>da</strong> narrativa <strong>da</strong> conversão. Nesta medi<strong>da</strong>, cabe notar que, nãoobstante a proposta de Sto. <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong> Sabedoria ser s<strong>em</strong>pre a de um conhecimento de carácterunitivo que se estabelece entre a alma e o Absoluto, visando a cont<strong>em</strong>platio, a consciência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>dede mediação e <strong>da</strong> existência de um Mediador efectivo torna-se progressivamente mais acentua<strong>da</strong>, na obrado Hiponense. Por isso, s<strong>em</strong> descartar a possibili<strong>da</strong>de de um conhecimento anagógico do Absoluto, Sto.<strong>Agostinho</strong> sublinha que esse não é o modelo habitual de relação entre o ser humano e o divino, pelomenos in statu uia, reservando-o para experiências peculiares como a de S. Paulo ou de Moisés.418


Hiponense mais não é do que uma glosa de quanto se condensa no referido trecho 615 .Nesse parágrafo há a salientar um conjunto de aspectos que permit<strong>em</strong> compreender anatureza <strong>da</strong> experiência augustiniana de conversão. Antes de mais, ela parte de umexercício de regresso <strong>da</strong> alma sobre si mesma, à maneira neoplatónica, mas esseprocesso, precisamente por ser levado a efeito mediante uma admonitio, não se eximeao auxílio divino.Uma vez adentra<strong>da</strong> no interior de si, a alma não vê já uma reali<strong>da</strong>de qualquer,particular, mas a própria luz imutável, a qual é percepciona<strong>da</strong> como dota<strong>da</strong> de um fulgorextraordinário, sumamente superior ao <strong>da</strong> luz corpórea. S<strong>em</strong> qualquer s<strong>em</strong>elhançapossível com esta luz corpórea, aquela outra é percepciona<strong>da</strong> como possuindo umanatureza inteiramente diferente de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de até então experimenta<strong>da</strong> - aliud,aliud ualde ab istis omnibus. De facto, a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Luz Imutável <strong>em</strong> relação àmente humana introduz, na relação entre ambas as reali<strong>da</strong>des, uma discrepânciaontológica. Não se trata, aqui, <strong>da</strong> percepção de uma reali<strong>da</strong>de que se situe num grausuperior, como que justaposto ao <strong>da</strong> mente, mas <strong>da</strong> consciência de estar <strong>em</strong> presença deuma reali<strong>da</strong>de totalmente outra <strong>da</strong> própria mente humana.A razão de ser desta superiori<strong>da</strong>de é encontra<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> na radicaldependência ontológica <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> relação à luz imutável: superior, quia ipsa fecitme, et ego inferior, quia factus ab ea. No momento <strong>da</strong> sua conversão metafísica, ofilósofo percepciona a Luz Imutável como Ver<strong>da</strong>de Criadora, de acordo com o modo deentender próprio <strong>da</strong> metafísica cristã, articulando, num mesmo passo, a adesão ànatureza unitária e trinitária desse mesmo Princípio 616 . Efectivamente, <strong>Agostinho</strong>reconhece o seu Deus na Luz imutável mediante a qual percepciona a essência <strong>da</strong>própria forma humana, vi<strong>da</strong> racional, e compreende que esta consiste na dependência<strong>em</strong> face de um <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Por isso, é exactamente neste momento que converg<strong>em</strong> oconhecimento de Deus e o <strong>da</strong> alma. Este conhecimento de Deus, e de si mesmo <strong>em</strong>Deus, é designado pelo Hiponense como um primum cognitum, expressão que denotaum conhecimento primordial ou originário e que pode ser sinónima <strong>da</strong>quela outra, onde,expondo o movimento ascendente <strong>da</strong> alma para Deus mediante a análise dos conteúdos<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, o filósofo indica que Deus é objecto de uma peculiar aprendizag<strong>em</strong>,615 Cf. Conf. VII, X, 16 (CCL 27, p. 103-104).616 Conf. VII, X, 16: “ (…) Qui nouit ueritat<strong>em</strong>, nouit eam [ luc<strong>em</strong> incommutabil<strong>em</strong> ], et qui nouit eam,nouit aeternitat<strong>em</strong>. Caritas nouit eam. O aeterna ueritas, et uera caritas, et cara aeternitas! ” ( CCL 27, p.103).419


<strong>em</strong>pregando, para tal, a expressão ex quo te didici. A partir <strong>da</strong> aquisição deste saberacerca de Deus, torna-se possível começar a edificar uma resposta para o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ord<strong>em</strong></strong>.No texto de Confessionum onde o Hiponense descreve com peculiar intensi<strong>da</strong>de omomento <strong>da</strong> sua conversão metafísica, aquele conhecimento primordial é designadoatravés <strong>da</strong> expressão tu assumpsisti me, mostrando que ele se realiza não já medianteum esforço <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> direcção a Deus, mas através de uma intervenção de Deussobre a mente. O efeito desta acção do <strong>Ser</strong> Superior sobre o inferior, perfeitamenteordena<strong>da</strong>, não obtém a visão <strong>da</strong>quilo que a mente é, mas <strong>da</strong>quilo que ela deve ser,quando a sua forma estiver totalmente realiza<strong>da</strong>, facto que é confirmado pelo filósofo -assupmsisti me ut uider<strong>em</strong> esse, quod uider<strong>em</strong>, et nondum me esse, qui uider<strong>em</strong>. Sto.<strong>Agostinho</strong> insistirá s<strong>em</strong>pre na natureza axiológica/ontológica do juízo humano, a qualse manifesta particularmente quando se trata <strong>da</strong> geração <strong>da</strong> uera ratio, específica dojuízo de sapiência, ou seja, <strong>da</strong>quele que se apresenta, s<strong>em</strong> intermédio de outra criatura,na relação entre a Ver<strong>da</strong>de e a mente, e que, por conseguinte, versa sobre reali<strong>da</strong>deseternas e imutáveis.A percepção deste contraste entre aquilo que a mente deve ser e a situação <strong>em</strong> queela realmente se encontra gera t<strong>em</strong>or - reuerberasti aspectus mei radians in meueh<strong>em</strong>enter, et contr<strong>em</strong>ui amore et horrore –, precisamente porque tal agnição confere àalma a consciência <strong>da</strong> imensa distância que se interpõe entre ela e Deus. Tal consciênciadá orig<strong>em</strong> a um movimento <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> direcção à Ver<strong>da</strong>de, o qual supõe,simultaneamente, a percepção de Deus como Ver<strong>da</strong>de ama<strong>da</strong> desde s<strong>em</strong>pre, e apercepção <strong>da</strong> diferença, intransponível, que a separa do objecto amado. A percepçãodesta distância gera t<strong>em</strong>or, na exacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que integra a consciência <strong>da</strong>possibili<strong>da</strong>de de per<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sumamente amável. O t<strong>em</strong>or <strong>em</strong>erge <strong>da</strong> percepçãocabal <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de alcançar a meta, <strong>da</strong><strong>da</strong> a superiori<strong>da</strong>de dela, <strong>em</strong> contrastecom a debili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente. É então que surge o diálogo entre o Absoluto e a mente.Este diálogo consiste no convite, por parte do Absoluto, a uma proximi<strong>da</strong>de a tal pontoíntima que t<strong>em</strong> como meta uma mu<strong>da</strong>nça de natureza – mutaberis in me. Tal apelo, fazbrotar na mente a interrogação acerca <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de Imutável e Incorpórea,porventura porque, ao corresponder ao desiderato de felici<strong>da</strong>de, ele pareceexcessivamente bom e inalcansável. Por último, neste diálogo revela-se a resposta,definitiva, por parte <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, que se afirma como Eterni<strong>da</strong>de mediante aproclamação do versículo bíblico de Ex. 3: 14. Esta revelação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de420


– Eterna e Imutável - afasta, de forma derradeira, qualquer dúvi<strong>da</strong> que paire na menteacerca <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>quela noção Supr<strong>em</strong>a.O excerto de Confessionum no qual Sto. <strong>Agostinho</strong> relata o momento crucial <strong>da</strong>sua conversão metafísica conclui com o abandono <strong>da</strong> dimensão anagógica do processocognitivo e com a retoma do processo ascendente <strong>da</strong> razão para a Ver<strong>da</strong>de: per ea quaefacta sunt intellecta conspicitur. De facto, a referência a Rom. 1: 20 encerra o parágrafode Confessionum <strong>em</strong> análise.Estamos, ou não, perante uma relação de carácter extático, neste relato <strong>da</strong>conversão de <strong>Agostinho</strong>? Uma tentativa de resposta através de el<strong>em</strong>entos de críticainterna parece reveladora de sentido, revestindo-se de interesse não tanto para decidirquantos e quais os momentos extáticos, presentes na sua biografia, mas antes paraesclarecer o dinamismo de inteligência <strong>da</strong> fé, subjacente na metafísica augustiniana.A convergência entre a dialéctica de inteligência <strong>da</strong> fé e a experiência deconversão permite, acima de tudo, afirmar que a metafísica augustiniana não parte deuma metodologia previamente determina<strong>da</strong> ou de um conjunto de axiomas estabelecidosa priori, mas radica na própria experiência de relação entre a mente do Hiponense e aVer<strong>da</strong>de. A inteligência <strong>da</strong> fé abandona, assim, o carácter de uma didácticapreestabeleci<strong>da</strong>, estática e desliga<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, para se transformar na experiênciaaugustiniana do exercício <strong>da</strong> própria razão, <strong>em</strong> confronto com a Ver<strong>da</strong>de. Nesta medi<strong>da</strong>se compreende tanto o carácter assist<strong>em</strong>ático, essencialmente dinâmico, <strong>da</strong> obra doHiponense, como a vitali<strong>da</strong>de e a coerência dos conteúdos nela veiculados, pois eles<strong>em</strong>erg<strong>em</strong> de um exercício efectivo <strong>da</strong> uera ratio ou, <strong>em</strong> expressão sinónima, <strong>da</strong> uerareligio, sendo esta entendi<strong>da</strong> como a relação ontológica entre a mente e a Ver<strong>da</strong>de.De facto, é possível encontrar uma definição de ecstasis, na obra do Hiponense.Máxime, ela ocorre <strong>em</strong> contexto de pregação, quer no <strong>Ser</strong>mo LII, cuja t<strong>em</strong>ática incideexactamente sobre a inteligência <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, quer <strong>em</strong> algumas <strong>da</strong>s Enarrationes inPsalmos. Reconhecendo a orig<strong>em</strong> grega do termo, o filósofo encontra para ela umaexpressão latina: excessus mentis 617 . Por seu turno, define este excessus como ummovimento que afasta a mente <strong>da</strong> relação habitual com as reali<strong>da</strong>des corpóreas, a fim delhe permitir cont<strong>em</strong>plar uma certa visão que se alheia ou, pelo menos, se distancia <strong>da</strong>s617 Enarr. in Ps. XXX, II, S. 1, 2: “(...) uerbum ecstasis graecum, latine, quantum <strong>da</strong>tur intellegi, uerbouno exponi potest, si dicatur excessus. Excessus aut<strong>em</strong> mentis proprie solet ecstasis dici.” ( CCL 38, p.191). V., também, Enarr. in Ps. XXXIV, S. II, 6; XLI, 18; LXVII, 36 ( CCL 38, p. 317; p. 473; p. 894).421


eali<strong>da</strong>des presentes 618 . El<strong>em</strong>ento específico desta forma de visão é o facto de a mentehumana ser subtraí<strong>da</strong> aos sentidos corpóreos, submergindo <strong>em</strong> Deus. Este movimento,no entanto, está sujeito à t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do que, após o momento de afastamento <strong>da</strong>sreali<strong>da</strong>des corpóreas, de novo a mente é chama<strong>da</strong> a voltar de Deus para as reali<strong>da</strong>deshumanas, t<strong>em</strong>porais e corruptíveis 619 . To<strong>da</strong>via, Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece que, <strong>da</strong><strong>da</strong> acondição t<strong>em</strong>poral do ser humano, o conhecimento anagógico, não obstante colocar amente numa directa relação com a Ver<strong>da</strong>de, isto é, s<strong>em</strong> intermédio de outra criatura ourepresentação dela, não pode ser o modo próprio do exercício <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de. Destaforma, para o Hiponense, o exercício <strong>da</strong> fé, que conecta a razão com a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e acontingência, é conatural e indissociável <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de do entendimento humano.Confronte-se, agora, esta definição de ecstasis com a experiência de conversãorelata<strong>da</strong> <strong>em</strong> Confessionum VII, X, 16. De facto, é possível identificar a presença dosel<strong>em</strong>entos essenciais que nela ocorr<strong>em</strong>, no caso concreto o excessus mentis e o enlevo<strong>da</strong> alma até à visão de Deus, sendo esta reali<strong>da</strong>de entendi<strong>da</strong> sob forma de Ver<strong>da</strong>de, LuzImutável. Efectivamente, o movimento extático – que corresponde à invocaçãoaugustiniana transcende et teipsum – está s<strong>em</strong>pre presente nos apelos do filósofo paraque a mente ascen<strong>da</strong> <strong>em</strong> direcção ao <strong>Ser</strong> divino, <strong>da</strong> mesma forma que jamais dissocia talprocesso <strong>da</strong> mediação <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, mesmo quando se trate <strong>da</strong> pura relaçãoentre a Ver<strong>da</strong>de e a mente. Sto. <strong>Agostinho</strong> nunca dispensa a condição criatural <strong>da</strong>mente, sendo um facto que tal condição é parte integrante <strong>da</strong> forma de visão designa<strong>da</strong>como extática.Outro el<strong>em</strong>ento indissociável desta forma de percepção <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de é a intelecção<strong>da</strong> diferença ontológica. Como se viu, tal verificação produz pavor ou t<strong>em</strong>or peloreconhecimento <strong>da</strong> distância que separa a mente humana e Deus, horror provocado pelo618 Na Enarr. in Ps. CIII, S. III, 2, comentando a visão de S. Pedro descrita <strong>em</strong> Act. 10: 9, 16, Sto.<strong>Agostinho</strong> escreve: “ (...) illo igitur orante facta est illi mentis alienatio, quam graeci ecstasin dicunt; idest, auersa est mens eius a consuetudine corporali ad uisum qu<strong>em</strong><strong>da</strong>m cont<strong>em</strong>plandum, alienata apraesentibus.” ( CCL 40, p. 1499).619 Veja-se a descrição presente no <strong>Ser</strong>mo LII, 16, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> comenta, novamente, o Salmo 30:32, agora no contexto claro <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé na Trin<strong>da</strong>de, t<strong>em</strong>a central do referido <strong>Ser</strong>mão. Comefeito, lê-se: “ (...) et quia hoc in ecstasi fecerat, abreptus a sensibus corporis et subreptus in deum; at ubiquo<strong>da</strong>mmodo a deo ad homin<strong>em</strong> reuocatus est, ait, ego dixi in ecstasi mea. uidi enim nescio quid inecstasi, quod diu ferre non potui; et redditus mortalibus m<strong>em</strong>bris, et multis mortalium cogitationibus acorpore quod aggrauat animam, dixi.” (RB 74, p. 27). Sobre a celeri<strong>da</strong>de do momento estático veja-seEnarr. in Ps. XXX, II, S. 1, 8 ( CCL 38, p. 196).422


próprio paradoxo do momento extático, <strong>da</strong>do que se trata de uma peculiar experiênciade proximi<strong>da</strong>de com o Absoluto. Sto. <strong>Agostinho</strong> comenta este movimento a propósito<strong>da</strong> experiência de S. Paulo, quando o Apóstolo interroga se o ecstasis por eleexperimentado sucedeu no corpo ou fora dele. Ora, o comentário augustiniano àexperiência paulina assume enorme paralelismo com o relato <strong>da</strong> sua própria conversão,legitimando a aproximação <strong>da</strong> experiência de conversão destas duas personagens, Sto.<strong>Agostinho</strong> e S. Paulo 620 .Por último, note-se a convergência entre todo este movimento, designado porextático, e a percepção <strong>da</strong> essência do Absoluto como Trin<strong>da</strong>de. Tal aproximação é feitade modo explícito no <strong>Ser</strong>mo LII. Aí, Sto. <strong>Agostinho</strong> recupera os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> definiçãode ecstasis, para os fazer convergir na dinâmica <strong>da</strong> compreensibili<strong>da</strong>de do mistério.Insondável, a ponto de se dever negar qualquer consciência de uma intelecção dele –<strong>da</strong><strong>da</strong> a incompreensibili<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, to<strong>da</strong> a convicção que a mente humanapossua de O ter compreendido não passa de um equívoco –, o Absoluto, Uni<strong>da</strong>de naTrin<strong>da</strong>de, torna-se acessível ao ser humano per ea quae facta sunt. Ora, de entre asreali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, só a mente humana, enquanto imag<strong>em</strong> de Deus, encerra <strong>em</strong> si amarca do Criador. Por isso, com a mesma ve<strong>em</strong>ência com que Sto. <strong>Agostinho</strong> nega acompreensibili<strong>da</strong>de do mistério 621 , convi<strong>da</strong> a fazer caminho para ela, através <strong>da</strong> imag<strong>em</strong><strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de inscrita na mente 622 . De facto, o filósofo coloca a natureza <strong>da</strong> consciência620 Enarr. in Ps. XXXVII, 12: “ (...) Assumta enim mente uidit nescio quid sublime, et quod uidit nondumibi totus erat; et qua<strong>da</strong>m, si dici potest, quasi coruscatione facta luminis aeterni, ubi sensit non se ibi esse,quod potuit utcumque intellegere, uidit ubi esset, et qu<strong>em</strong>admodum malis humanis infirmatus etcoarctatus esset, et ait: ego dixi in ecstasi mea: proiectus sum a facie oculorum tuorum. tale est nescioquid quod uidi in ecstasi, ut inde sentiam quam longe sum, qui nondum ibi sum.” ( CCL 38, p. 390-391).Aqui, trata-se <strong>da</strong> experiência de S. Paulo narra<strong>da</strong> <strong>em</strong> 2 Cor. 12: 2-4; Mas <strong>em</strong> Enarr. in Ps. LXVII, 36(CCL 39, p. 894), Sto. <strong>Agostinho</strong> aproxima as duas narrativas, a do arrebatamento de Paulo ao paraíso e a<strong>da</strong> conversão de Saulo <strong>em</strong> Paulo, tendo <strong>em</strong> comum a mesma essência <strong>da</strong> anagogia. Por seu turno, é tal oparalelismo entre esta descrição e a de Conf. VII, X, 16 ( CCL 27, p. 103-104) que obriga a umaaproximação entre a percepção que <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> <strong>da</strong> sua própria conversão e a que t<strong>em</strong> <strong>da</strong> do próprioPaulo.621 <strong>Ser</strong>mo LII, 16 : “(...) Quid ergo dicamus, fratres, de deo? Si enim quod uis dicere, si cepisti, non estdeus. Si comprehendere potuisti, aliud de deo comprehendisti. Si quasi comprehendere potuisti,cogitatione tua te decepisti. Hoc ergo non est, si comprehendisti. Si aut<strong>em</strong> est, non comprehendisti. Quidergo uis loquere, quod comprehendere non potuisti ? » ( RB 74, p. 27).622 <strong>Ser</strong>mo LII, 17 : « Videamus ergo, ne forte in creatura inueniamus aliquid, ubi prob<strong>em</strong>us aliqua tria etseparabiliter d<strong>em</strong>onstrari et inseparabiliter operari. Quo ibimus ? (…) Ad te redi : te uide, te inspice, te423


humana no cerne deste paradoxo: a insondável profundi<strong>da</strong>de do mistério, por um lado, epor outro, a máxima interiori<strong>da</strong>de e proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compreensão dele.É nesta dinâmica que se constrói o discurso augustiniano acerca <strong>da</strong> essênciadivina. Mediante uma imag<strong>em</strong> próxima que, simultaneamente, dista imensamente doPrincípio onde t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong>, é possível uma percepção do Absoluto, o qual, <strong>da</strong><strong>da</strong> a suanatureza Totalmente Outra, jamais será acessível à mente humana, n<strong>em</strong> mesmo aoresultado especulativo, ou porventura extáctico, do conjunto de to<strong>da</strong>s as mentes.Forçando a mente a não duvi<strong>da</strong>r de que, na inefável majestade divina, existe aquilo que,na mente humana, também se pode encontrar nas devi<strong>da</strong>s proporções – impelindo a umconhecimento do divino por analogia 623 –, o filósofo não tar<strong>da</strong> <strong>em</strong> recor<strong>da</strong>r que odesiderato de conhecer a majestade divina é inatingível, a não ser mediante a fé, <strong>em</strong>enigma e por espelho, pelo menos enquanto a mente humana se sujeita ao curso dost<strong>em</strong>pos. E, mesmo quando liberta do t<strong>em</strong>po, de que forma poderá a mente conhecerDeus tal como Ele É - tal como Ele a si mesmo se conhece -, sendo um facto que ambasas naturezas cavam entre si uma infinita distância ontológica, a mesma que se dá entre ot<strong>em</strong>po e a Eterni<strong>da</strong>de 624 ?Ante este facto, qual a atitude ajusta<strong>da</strong>, por parte <strong>da</strong> mente humana? Deverápermanecer <strong>em</strong> contínua busca, ou deverá, preferent<strong>em</strong>ente, descansar no conhecimentoque alcançou? À luz dos pressupostos augustinianos, dir-se-ia que as duas situaçõesconviv<strong>em</strong>, paradoxalmente, no mesmo sujeito, quer face ao t<strong>em</strong>po, quer ante aEterni<strong>da</strong>de.No esclarecimento <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé, a experiência relata<strong>da</strong> <strong>em</strong>Confessionum 625 torna-se mais clara, podendo verificar-se que ela integra os doismovimentos, anagógico e gra<strong>da</strong>tivo, levados a efeito pela mente humana na relação como Absoluto. Afinal, to<strong>da</strong> a obra do Hiponense se pode resumir neste movimento <strong>da</strong>discute (…) ». O texto prossegue nesta ambigui<strong>da</strong>de: é possível um conhecimento mediante a imago deina mente humana, mas ele dista imensamente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que é Deus ( RB 74, p. 29-30).623 <strong>Ser</strong>mo LII, 19: “ (...) Quid de illa maiestate ineffabili in ea re dubitas, quam in te inuenire potuisti?”(RB 74, p. 31).624 <strong>Ser</strong>mo LII, 23: “ Crede iam ibi quod non potes uidere (...). In te enim quod est potes nosse; in eo qui tefecit, quod est, quidquid est, quando potes nosse? Et si poteris, nondum potes. Et tamen, cum poteris,numquid sic poteris tu nosse deum quomodo se nouit deum ? » ( RB 74, p. 35). V, também, Conf. XIII,XVI, 19: “ (...) Nec uidetur iustum esse coram te, ut, qu<strong>em</strong>admodum se scit lumen incommutabile, itasciatur ab inluminato conmutabili.” ( CCL 27, p. 252).625 Cf. Conf. VII, X, 16 ( CCL 27, p. 103-104).424


mente, de cont<strong>em</strong>plação de uma ver<strong>da</strong>de essencial a modo intuitivo, por um lado, e, poroutro, de glosa dessa mesma intuição, por meio <strong>da</strong> d<strong>em</strong>ora do discurso, nas distintasformas de que o filósofo se socorre quando faz uso <strong>da</strong> palavra. Neste diálogo entre ainteligência, que capta o <strong>Ser</strong> divino na Luz <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, por vezes de modo imediato, e afé, que dispõe do t<strong>em</strong>po do discurso, constrói-se to<strong>da</strong> a metafísica augustiniana. Naperspectiva do Hiponense, ambas as experiências na<strong>da</strong> têm de peculiar ou de alheio ànatureza <strong>da</strong> razão humana, pois nelas consiste o próprio exercício <strong>da</strong> Filosofia, nosentido pleno do termo: dilectio seu amor Sapientiae 626 .Porém, uma vez que Sto. <strong>Agostinho</strong> estabelece, como meta para a Filosofia, acont<strong>em</strong>plação do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, colocando-O, ao mesmo t<strong>em</strong>po, numa dimensãoabsolutamente outra dos seres criados, gera-se, inevitavelmente, o paradoxo. De facto, aFilosofia confina com a experiência do sagrado, essa estranha harmonia de contrastes,como a descreve R. Otto 627 . Por isso, o Hiponense acentua amiúde a convergência entrea posse <strong>da</strong> sabedoria e a uera religio.Outro el<strong>em</strong>ento crucial que completa a concepção augustiniana acerca <strong>da</strong> relaçãoentre fé e inteligência encontra-se na Epístola CXX. Aí, o filósofo responde àsinquietações de Consêncio a propósito <strong>da</strong> inteligência do mistério trinitário, incitando-oa não abandonar o esforço de inteligência. Mais ain<strong>da</strong>, impele-o a que ame o própriofacto de entender, pois só mediante o amor ao entendimento e àquilo que ele apreende,Consêncio poderá alcançar o conhecimento por que anela. De facto, a posição deste anteo paradoxo <strong>da</strong> essência do Absoluto – a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, na Trin<strong>da</strong>de dehipóstases – era contrária a um exercício <strong>da</strong> razão e mais favorável a uma mera adesãofiducial 628 .626 Para a interpretação do termo grego ♓♓♋ como amor sapientiae veja-se a nota 547.Dado o peculiar sentido que o termo Sapientia adquire na obra do Hiponense, a uera philosophia é aunião com o Absoluto, mediante o Verbo, tornando-se dilectio, ao <strong>em</strong>ergir no seio <strong>da</strong> dinâmica trinitária<strong>em</strong> que consiste a essência divina.627 Cf. R. OTTO, Das Heilige. Über <strong>da</strong>s Irrationale in der Idee des Goettlichen und sein Verhältnis zumrationalen (München 1936), spec. p. 28-37.628 Ep CXX, 2 : “ (...) superius quippe in ead<strong>em</strong> ipsa epistula [ Ep. CIX, 1 : Consêncio a <strong>Agostinho</strong>], inqua hoc petis [ Ep. CIX, 2 : « enuntia nobis aliquam ineffabilis substantiae proportion<strong>em</strong> et imagin<strong>em</strong>similitudinis eius (…) ], apud t<strong>em</strong>et ipsum definisse te dicis ueritat<strong>em</strong> ex fide magis quam ex rationepercipi oportere; si enim fides, inquis, sanctae ecclesiae ex disputationis ratione et non ex credulitatispietate adprehenderetur, n<strong>em</strong>o praeter philosophos atque oratores beatitudin<strong>em</strong> possideret.” (CSEL 34/2,p. 705).425


Aplicando esta dialéctica entre razão e autori<strong>da</strong>de à opção augustiniana porassumir como ponto de parti<strong>da</strong> de reflexão o texto bíblico e a interpretação que delefizera a tradição eclesiástica, cabe salientar a plena consciência que o filósofo possuiquer do carácter efémero <strong>da</strong> Escritura, quer <strong>da</strong> limitação <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, <strong>da</strong> qual se serveo próprio texto bíblico, para exprimir reali<strong>da</strong>des incria<strong>da</strong>s 629 .Como qualquer outra forma de discurso, no seu conjunto e independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>plurali<strong>da</strong>de de sentidos 630 , a Escritura submete-se ao t<strong>em</strong>po. Nesta medi<strong>da</strong>, também elaé uma reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>, devendo ser ama<strong>da</strong> e interpreta<strong>da</strong> ordena<strong>da</strong>mente, ou seja, tendo<strong>em</strong> vista a posse dos bens eternos. A Escritura não deve, por isso, na óptica de Sto.<strong>Agostinho</strong>, ser absolutiza<strong>da</strong>. Se tal acontecesse, a hermenêutica deste texto seriareduzi<strong>da</strong> a um único sentido possível. Por isso, o filósofo insiste <strong>em</strong> que a própriaexegese bíblica não se há-de alhear <strong>da</strong> contextualização histórica, tanto test<strong>em</strong>unhalcomo profética. Uma vez que a própria Escritura há-de ser suplanta<strong>da</strong> pelo final dost<strong>em</strong>pos, ela deverá abrir-se à diversi<strong>da</strong>de de sentidos, desde que defen<strong>da</strong> aquela regra deexegese que o Hiponense considera essencial: a preservação <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de na diversi<strong>da</strong>dee, no caso <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> Escritura, a manutenção do carácter intangível <strong>da</strong> caritas.Com efeito, só nesta quali<strong>da</strong>de do espírito, que se manifesta, também, <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a formade discurso humano, se reflecte a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, enquanto relação dinâmica deuni<strong>da</strong>de na multiplici<strong>da</strong>de.629 DT I, I, 2: “ (...) Rebus enim quae in creatura reperiuntur, solet scriptura diuina uelut infantiliaoblectamenta formare, quibus infirmorum ad quaeren<strong>da</strong> superiora et inferiora deseren<strong>da</strong>, pro suo modulotanquam passibus moueretur aspectus.” ( CCL 50, p. 29).630 Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue os quatro sentidos <strong>da</strong> Escritura, que conhece <strong>da</strong> fonte grega: “ Omnis igiturscriptura, quae testamentum uetus uocatur, diligenter eam nosse cupientibus quadrifariam traditur:secundum historiam, secundum aetiologiam, secundum analogiam, secundum allegoriam. ne me ineptumputes graeci nominibus utent<strong>em</strong>.” (VC I, 5: CSEL 25/1, p. 7-8). Tal plurali<strong>da</strong>de de sentidos permit<strong>em</strong>ostrar o valor e o significado <strong>da</strong> Escritura (cf. VC I, 8: CSEL 25/1, p. 10-11; De gen. ad litt. imper. lib.II, 5: CSEL 28/1, p. 462). Para a contraposição entre este tipo de exegese e a “literal” no sentido <strong>em</strong> queos maniqueus a compreend<strong>em</strong>, v. F. DECRET, Aspects du manichéisme <strong>da</strong>ns l’Afrique romaine (Paris1970), p. 188-190. Note-se que Sto. <strong>Agostinho</strong> não adopta a tese dos quatro sentidos <strong>da</strong> Escritura comoforma preferencial de exegese, citando-a explicitamente apenas no referido passo de VC e <strong>em</strong> De gen. adlitt. imperf. lib. II, 5 (CSEL 28/1, p. 462). A chave hermenêutica de interpretação bíblica encontra-se,para o Hiponenese, <strong>em</strong> estreita conexão com a própria noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Essencialmente, ela deverárespeitar a noção óptima de Absoluto, não lhe atribuindo proprie<strong>da</strong>des ou acções que não foss<strong>em</strong> dignasdo <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Uma vez trazi<strong>da</strong> à luz a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, as múltiplas interpretações que um mesmotexto possa sugerir não poderão lesar a regra do duplo man<strong>da</strong>mento do amor.426


É um facto que, do ponto de vista epist<strong>em</strong>ológico, a introdução augustiniana <strong>da</strong>metodologia <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé na busca <strong>da</strong> sabedoria coloca algumas dificul<strong>da</strong>des.Desde a perspectiva que nos ocupa, tal procedimento reitera a convicção do filósofoacerca do carácter mediato do conhecimento humano, facto que justifica a insistência nadimensão t<strong>em</strong>poral <strong>da</strong> agnição. Esta dimensão atinge particular significado quando está<strong>em</strong> causa o conhecimento do Absoluto, a tal ponto que Sto. <strong>Agostinho</strong> estabelecerá umapeculiar relação entre a fé e uma <strong>da</strong>s trin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente 631 , evidenciando, assim, maisum dos paradoxos <strong>da</strong> razão. De facto, o filósofo estabelece uma especial conexão entreo entendimento humano <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de divina e a fé, insistindo <strong>em</strong> não dissociar adimensão pística <strong>da</strong> agnição humana e a condição t<strong>em</strong>poral do exercício <strong>da</strong> razão.De acordo com uma ampla tradição 632 , a base <strong>da</strong> afirmação augustiniana <strong>da</strong>existência de uma natureza única, na qual converg<strong>em</strong> Uni<strong>da</strong>de e Trin<strong>da</strong>de, é a revelaçãode Deus sobre si mesmo, de que o passo bíblico de Ex. 3:14 é exponencial. Nele, Sto.<strong>Agostinho</strong> lê, sobretudo, a revelação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do Absoluto como Eterni<strong>da</strong>de,reconhecendo-a na expressão latina que <strong>em</strong>prega com frequência para referir a essênciadivina: Idipsum. Este termo é completado pelo sentido <strong>da</strong>do pelo Hiponense ao passobíblico de Jo. 8: 24, versículo <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático nas controvérsias trinitárias e cristológicasdo século IV. Nele, o Hom<strong>em</strong> Cristo afirma a identi<strong>da</strong>de entre a sua natureza e a do Pai- ego et Pater unum sumus. A identi<strong>da</strong>de singular, própria <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa – egoet Pater - é afirma<strong>da</strong> e defini<strong>da</strong> pela plurali<strong>da</strong>de, expressa pela conjugação do verboesse: unum sumus.Como son<strong>da</strong>r um tal paradoxo, escân<strong>da</strong>lo e irracionali<strong>da</strong>de? Como aceder àcompreensão de uma divin<strong>da</strong>de absoluta, uni<strong>da</strong>de na trin<strong>da</strong>de, que, além do mais, se fazt<strong>em</strong>po e incarna no t<strong>em</strong>po? Como justificar racionalmente tal reali<strong>da</strong>de, partindo dotest<strong>em</strong>unho bíblico? Com efeito, Sto. <strong>Agostinho</strong> não dissocia o <strong>Ser</strong> divino n<strong>em</strong> <strong>da</strong>Eterni<strong>da</strong>de do Absoluto, n<strong>em</strong> <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a e, por isso, não t<strong>em</strong> qualquer dúvi<strong>da</strong>acerca <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de deste conjunto de afirmações. Mais difícil será, porém, atarefa de construir um discurso de âmbito filosófico para um tão imenso conjunto deparadoxos.631 Cf. DT XIII, XX, 26 ( CCL 50A, p. 418-420).632 Para uma perspectiva histórica <strong>da</strong> interpretação de Ex. 3: 14, v. Dieu et l’être. Exégèses d'Exode 3, 14et de Coran 20, 11-14 (Paris 1978).427


Partindo s<strong>em</strong>pre <strong>da</strong> condição cria<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> a forma existente, <strong>da</strong> qual a mentehumana é uma expressão, Sto. <strong>Agostinho</strong> prosseguirá fiel ao princípio paulino - per eaquae facta sunt, ad invisibilia Dei –, conjugando-o com uma peculiar hermenêutica quese veio a designar por inteligência <strong>da</strong> fé, e que o filósofo vê condensa<strong>da</strong> no passobíblico de Isaías 7: 9: nisi credideritis non intellegetis. Assim, duas reali<strong>da</strong>des quaefacta sunt – a Escritura e a própria natureza <strong>da</strong> mente humana – tornam-se o caminhoque o Hiponense considera de mais breve acesso para a compreensão <strong>da</strong> natureza doAbsoluto e <strong>da</strong> relação que tal Princípio estabelece com o Mundo. A partir desta formade relação poder-se-á, também, compreender o modo como o Absoluto está próximodos assuntos dos homens e descortinar paulatinamente uma solução para o filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.A compreensão do inefável extravasa o âmbito <strong>da</strong> discussão sobre os limites doconhecimento humano ou sobre a função hermenêutica <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé.Compreender o inefável significa, para o Filósofo de Hipona, alcançar a sabedoria e,com ela, a dimensão <strong>da</strong> mente que realiza, de modo pleno, a sua forma própria: serimag<strong>em</strong> de Deus, não obstante a sua condição confina<strong>da</strong> e circunscrita t<strong>em</strong>poralmente.Relativamente a esta dialéctica entre finitude e inefabili<strong>da</strong>de, é significativa aposição augustiniana exposta <strong>em</strong> De genesi ad litteram, onde sublinha, de novointerpretando Ex. 3: 14, a insuperável diferença entre o <strong>Ser</strong> divino e as criaturas – longealiter quam sunt ista quae facta sunt 633 . Sto. <strong>Agostinho</strong> reitera, assim, a sua633 O texto de De gen. ad litt. V, 16 é <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático, na acentuação do paroxismo do conhecimento deDeus na metafísica do Hiponense e na compreensão do seu significado. Lê-se, no passo referido: “ (...)Quamuis ergo illa aeterna incommutabilisque natura, quod deus est, habens in se ut sit, sicut Moysidictum est: ego sum qui sum, longe scilicet aliter, quam sunt ista, quae facta sunt, quoniam illud uere acprimitus est, quod eod<strong>em</strong> modo s<strong>em</strong>per est nec solum non commutatur, sed commutari omnino nonpotest, nihil horum, quae fecit, existens et omnia primitus habens, sicut ipse est - neque enim ea faceret,nisi ea nosset, antequam faceret, nec nosset, nisi uideret, nec uideret, nisi haberet, nec haberet ea, quaenondum facta erant, nisi qu<strong>em</strong>admodum est ipse non factus -: quamuis, inquam, illa substantia ineffabilissit nec dici utcumque homini per homin<strong>em</strong> possit nisi usurpatis quibus<strong>da</strong>m locorum ac t<strong>em</strong>porum uerbis,cum sit ante omnia t<strong>em</strong>pora et ante omnes locos, tamen propinquior nobis est, qui fecit, quam multa, quaefacta sunt.” ( CSEL 28/1, p. 159: it. n.). Em De ciu. dei XI, XXVI encontra-se um lugar paralelo, onde serefere a imago dei como razão desta proximi<strong>da</strong>de: “ Et nos quid<strong>em</strong> in nobis, tametsi non aequal<strong>em</strong>, immoualde longeque distant<strong>em</strong>, neque coaeternam et, quo breuius totum dicitur, non eiusd<strong>em</strong> substantiae, cuiusDeus est, tamen qua Deo nihil sit in rebus ab eo factis natura propinquius, imagin<strong>em</strong> Dei, hoc est illiussummae trinitatis, agnoscimus, adhuc reformatione perficien<strong>da</strong>m, ut sit etiam similitudine proxima.”(CCL 48, p. 345).428


interpretação acerca <strong>da</strong> essência divina. Qui sum, enquanto expressão mediante a qual aDei<strong>da</strong>de se auto-revela, significa a total coincidência, no Absoluto, entre o <strong>Ser</strong> e o Ter –habens in se ut sit. <strong>Ser</strong> é precisamente aquilo que o Absoluto possui <strong>em</strong> plenitude. Essefacto aju<strong>da</strong> a compreender a Eterni<strong>da</strong>de divina.O Absoluto caracteriza-se por “Ter <strong>em</strong> si mesmo o <strong>Ser</strong>”, por <strong>Ser</strong> <strong>Ser</strong> 634 . A partirdesta condição radical são possíveis to<strong>da</strong>s as atribuições, as quais se identificam comessa plenitude de Essência. Assim, considerando-o <strong>em</strong> relação ao Múltiplo, o Absolutopossui originariamente to<strong>da</strong>s as formas, <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de com o seu próprio <strong>Ser</strong>. Eterno,Ele não mu<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> mesmo quando cria, acto pelo qual faz uma doação <strong>da</strong>quilo que Eleé - <strong>Ser</strong> - às reali<strong>da</strong>des que possui originariamente <strong>em</strong> si mesmo, posicionando-as not<strong>em</strong>po. Imutável, Incriado e Eterno, o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o torna-se, para as criaturas, Inefável eIndizível. Por contraste, todo o verbo humano, mesmo aquele proferido interiormente,não obstante se esquivar ao espaço, submete-se ao t<strong>em</strong>po, tornando indizível aEterni<strong>da</strong>de. Por isso, só de modo imperfeito a <strong>em</strong>issão do verbo interior, o raciocínio e odiscurso humanos pod<strong>em</strong> traduzir o <strong>Ser</strong> divino.Não obstante esta diferença intransponível, e negando a evidência <strong>em</strong>pírica, Sto.<strong>Agostinho</strong> conclui que, pelo facto dos humanos ser<strong>em</strong> imago Dei, Deus está maispróximo deles do que qualquer outra forma cria<strong>da</strong>. Com efeito, a forma humana ocupa,na hierarquia ontológica, um lugar intermédio, situando-se entre o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, que aexcede, e as outras formas de existência, viva ou inanima<strong>da</strong>, que lhe estão submeti<strong>da</strong>s.Dotado de uma mente racional, motivo pelo qual excele os d<strong>em</strong>ais seres vivos, o serhumano está marcado pela imag<strong>em</strong> de Deus, factor que o ass<strong>em</strong>elha ao <strong>Ser</strong> divino. Ficaassim por glosar precisamente o modo como se relacionam aquelas duas reali<strong>da</strong>des,maximamente comprometi<strong>da</strong>s, a saber, Deus e o ser humano.Se é um facto que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, todo o conhecimento é mediato e que oprincípio paulino – per ea quae facta sunt, ad inuisibilia Dei – estará s<strong>em</strong>pre presentena reflexão augustiniana, como regra irrevogável, ela será, contudo, aplica<strong>da</strong> comalgumas precauções, a fim de evitar que a mente humana venha a elaborar falsasconcepções acerca <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de.Dois aspectos preliminares dev<strong>em</strong>, por conseguinte, ser tomados <strong>em</strong> consideração,no enunciado augustiniano acerca <strong>da</strong> natureza, Una e Trina, do Absoluto. Por um lado,importa ter presente que o Hiponense reconhece as dificul<strong>da</strong>des do próprio método –634 Cf. Conf. XIII, XXXI, 46 (CCL 27, p. 269-270).429


ascender a Deus, através <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s –, <strong>da</strong><strong>da</strong> a diferença ontológica entreambos os níveis de reali<strong>da</strong>de. Por outro lado, e como consequência deste primeiroaspecto, há a considerar a condição paradoxal <strong>da</strong> proposta augustiniana de ascender aDeus per ea quae facta sunt, <strong>da</strong>do o carácter inefável do Absoluto. Este último aspectoobriga a reflectir sobre a natureza <strong>da</strong> própria in<strong>da</strong>gação augustiniana, considerando ascondições de possibili<strong>da</strong>de de uma tal inquisição e avaliando o resultado a que ela podeconduzir.Relativamente às dificul<strong>da</strong>des do método, no Proémio de De trinitate, Sto.<strong>Agostinho</strong> alerta para três tipos de erros acerca <strong>da</strong> essência de Deus, apontando-lhes,como fonte comum, uma desmesura<strong>da</strong> confiança na razão – amore peruerso etimmaturo rationis 635 . Com esta advertência, previne-se de incorrer no mesmo desvio esubversão <strong>da</strong> razão <strong>em</strong> que tombara, quando aderira ao maniqueísmo, ao mesmo t<strong>em</strong>poque volta a referenciar a concepção de Deus que assume e sobre a qual discorrenomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate. Com efeito, trata-se <strong>da</strong> mesma concepção de Dei<strong>da</strong>deque resultou dessa aprendizag<strong>em</strong> do divino, concomitante ao processo <strong>da</strong> sua conversãometafísica.No que diz respeito ao tipo de investigação no qual a mente humana se lançaquando procura in<strong>da</strong>gar a natureza do Absoluto, <strong>Agostinho</strong> insiste na condiçãoparadoxal do espírito humano, articulando-a com a convicção de uma efectivapossibili<strong>da</strong>de, por parte do ser humano, de cont<strong>em</strong>plar o divino, mais do que deconhecer o Inefável. Essa cont<strong>em</strong>plação, que implicará a interacção <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>mente humana – e que, portanto, a proposta augustiniana não entregará apenas à razão,entendi<strong>da</strong> como facul<strong>da</strong>de de julgar – é, ela mesma, a um t<strong>em</strong>po, dinâmica e inefável.É um facto que a mente humana sente a inquietação radical <strong>da</strong> tendência paraÀquele de qu<strong>em</strong> depende. Como se referiu, Sto. <strong>Agostinho</strong> exprime essa inquietaçãofun<strong>da</strong>mentalmente <strong>em</strong> termos de intencionali<strong>da</strong>de, a qual se verifica, por <strong>em</strong>inência,quando se analisa o desejo universal de felici<strong>da</strong>de. Porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a inefabili<strong>da</strong>de de Deus,cabe perguntar: será que a mente humana pode, efectivamente, repousar Nele? Ou nãoserá, antes, a mente humana constituí<strong>da</strong> por uma contínua d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>, precisamente pelacondição absolutamente outra Daquele a qu<strong>em</strong> busca?O modo como o filósofo encara o processo de busca de Deus, questãointrinsecamente uni<strong>da</strong> àquela que in<strong>da</strong>ga sobre as condições de possibili<strong>da</strong>de do635 Cf. DT I, I, 1 ( CCL 50, p. 27-28).430


conhecimento do Absoluto, reitera a função central que ocupa, na mundividência doHiponense, a questão acerca do modo como se relacionam o Uno e o Múltiplo. Se,como defende <strong>Agostinho</strong>, há uma presença efectiva do Uno Absoluto no Múltiplo, aqual resulta <strong>da</strong> dependência ontológica instaura<strong>da</strong> pela Criação, então também na mentehumana será possível identificar tal pertença, presença e dependência. Se a mente buscao Uno e a ele tende como ao seu fim próprio, nela estarão s<strong>em</strong>pre presentes as duasdimensões inerentes à condição de criatura: o desejo de posse do Absoluto e a finitude<strong>da</strong> mente, sendo esta consequência <strong>da</strong> manifestação de bon<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste, paraSto. <strong>Agostinho</strong>, o dom <strong>da</strong> existência. Estas duas dimensões que caracterizam a mentehumana - tendência ao Absoluto e contingência - irão marcar o exame mais radical quea ocupa e que, na perspectiva augustiniana, é precisamente aquele acerca de Deus e <strong>da</strong>proximi<strong>da</strong>de entre o Absoluto e o ser humano, ratificando deste modo que a formulaçãodo filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> é inerente à natureza e estrutura <strong>da</strong> mente humana. Por essefacto, ele torna-se, para a mente, uma questão irrefragável, seja ou não assumi<strong>da</strong> d<strong>em</strong>odo consciente por ca<strong>da</strong> ser humano.Como já se referiu, Sto. <strong>Agostinho</strong> tentou, contra o dualismo maniqueísta, umad<strong>em</strong>onstração racional <strong>da</strong> irrecusabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência de uma noção absoluta, término<strong>da</strong> própria activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão e sua condição de possibili<strong>da</strong>de. O excurso encontra-se,de modo detalhado, <strong>em</strong> De libero arbitrio, mas na obra augustiniana esta argumentaçãoé recorrente. Aí, de facto, é a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção excelente, Deus, que está <strong>em</strong> causa.Porém, <strong>em</strong> nenhum desses escritos o filósofo olvi<strong>da</strong> que o Deus que aprendeu é, a umt<strong>em</strong>po, Uni<strong>da</strong>de e Trin<strong>da</strong>de.Se <strong>Agostinho</strong> insiste na d<strong>em</strong>onstração <strong>da</strong> natureza, Supr<strong>em</strong>a e Una, do Absoluto,para a qual exige, apenas, agudeza de espírito e perseverança no trajecto, também éver<strong>da</strong>de que se interroga acerca <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de uma d<strong>em</strong>onstração racional de Deuscomo Trin<strong>da</strong>de – non solum credentibus diuinae sripture auctoritate, uerum etiamintellegentibus 636 . Com efeito, é a própria Escritura que incita a uma busca, s<strong>em</strong>prepermanente, <strong>da</strong> cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, facto que sugere que um tal conhecimentonunca se alcança 637 .636 Cf. DT XV, I, 1 ( CCL 50A, p. 460). E, <strong>em</strong> DT XV, II, 2, lê-se: “ (…) Fides quaerit, intellectus inuenit;propter quod ait propheta: Nisi credideritis, non intellegetis (…).” ( CCL 50A, p. 461).637 Cf. DT XV, II, 2, citando o Salmo 104: 3: “ (...) Quaerite dominum et confirmamini; quaerite faci<strong>em</strong>eius s<strong>em</strong>per. ” ( CCL 50A, p. 461).431


A questão acerca do carácter interminável – s<strong>em</strong>per - <strong>da</strong> própria pesquisa <strong>da</strong>essência de Deus recor<strong>da</strong> necessariamente o posicionamento <strong>da</strong> Nova Acad<strong>em</strong>ia, apropósito <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de. Em Contra Acad<strong>em</strong>icos, essa é uma <strong>da</strong>s hipótesesconsidera<strong>da</strong>s como via de acesso à ver<strong>da</strong>de: a busca incessante, uma vez que se duvi<strong>da</strong><strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de a alcançar. A eterna investigação acerca do ver<strong>da</strong>deiro seria, desdeesta óptica, a possibili<strong>da</strong>de mais ao alcance <strong>da</strong> razão filosófica. Contudo, é radical adivergência entre a tese neo-académica e a concepção augustiniana acerca <strong>da</strong>possibili<strong>da</strong>de de conhecer a Ver<strong>da</strong>de. No primeiro caso, a busca perpetua-se <strong>em</strong> virtude<strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de alcançar o objecto: to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de possível consiste na procura,sendo inatingível o objecto <strong>da</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>. No segundo, a busca é eterna, precisamenteporque se conclui que a Eterni<strong>da</strong>de, condição <strong>da</strong> Superna Ver<strong>da</strong>de, é requisito essencial<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se procura. Fica assim delinea<strong>da</strong> a fronteira entre o cepticismoacadémico, que Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita quer com o argumento de fundo enunciadoamiúde – si enim fallor, sum 638 -, quer com a insistência na sua própria posição, queinscreve um dinamismo eterno na d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, como consequência <strong>da</strong> naturezado pólos <strong>em</strong> análise, Deus e a mente.O mesmo se verifica quanto ao modo de conceber a conquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de.Enquanto a Nova Acad<strong>em</strong>ia coloca a felici<strong>da</strong>de na própria busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de,confessando ser impossível conhecer esta última – tese que, já <strong>em</strong> De beata uita, forareduzi<strong>da</strong> ao absurdo 639 -, Sto. <strong>Agostinho</strong> reitera que não há felici<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> a posse <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de, declarando que esta noção supr<strong>em</strong>a é condição de possibili<strong>da</strong>de do exercício<strong>da</strong> razão e, por conseguinte, do conhecimento <strong>da</strong> própria noção de beatitude.Efectivamente, a noção augustiniana de sabedoria congrega estes dois el<strong>em</strong>entos: adescoberta e posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e a felici<strong>da</strong>de que, por osmose, se segue a esse638 A posição dos Académicos é resumi<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> CA III, IX, 18: “ Negant Acad<strong>em</strong>ici scirialiquid posse.” (CCL 29, p. 45), especificando que consiste esta atitude: “(...) nihil posse percipi et nullirei debere assentiri.” (CA III, X, 22: CCL 29, p. 47). V., também, De ciu. dei XIX, I-III ( CCL 48, p. 657-664), posição aí refuta<strong>da</strong> sobretudo com base na indubitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> certeza sobre a própria existência:Cf. De ciu. dei XI, XXVI ( CCL 48, p. 345-346); DT XV, XII, 21 ( CCL 50A, p. 490-493).639 BV III, 20: “Beatus ergo erit ille, qui quaerit; omnis aut<strong>em</strong> quaerens nondum habet quod uult: eritigitur beatus homo, qui quod uult non habet, quod heri omnibus nobis uidebatur absurdum, undecredebamus Acad<strong>em</strong>icorum tenebras esse discussas.” ( CCL 29, p. 76).432


processo 640 . Porém - por contraste com as teses assumi<strong>da</strong>s pela Antigui<strong>da</strong>de enomea<strong>da</strong>mente por Cícero, que, neste aspecto, influenciara marca<strong>da</strong>mente Sto.<strong>Agostinho</strong> - é a noção de Sabedoria que se verá transforma<strong>da</strong>, pois o Hiponense atribuilheuma dimensão pessoal, ao mesmo t<strong>em</strong>po que lhe confere características divinas eeternas.Assim, na perspectiva augustiniana, a compreensão do inefável é possível, mass<strong>em</strong> extinguir a finitude humana. É possível son<strong>da</strong>r o insondável, mas s<strong>em</strong> que sedesvaneça o mistério, preservando a condição ontológica de ambos os termos dessarelação - Deus, na sua inefabili<strong>da</strong>de e transcendência, e a mente humana, na suacontingência e finitude. É possível alcançar o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o e Comum, maspermanecendo matizado por ca<strong>da</strong> mente individual. Sendo posse de muitos, ca<strong>da</strong> umalcança um aspecto dessa mesma Ver<strong>da</strong>de, de acordo com a contingência de ca<strong>da</strong> razãoparticular. Por isso, mesmo quando produto de uma mente ordena<strong>da</strong>, a compreensão doinefável, realiza<strong>da</strong> pela mediação <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de – de facto, tanto o inefável como a razãohumana se un<strong>em</strong> mediante esta noção supr<strong>em</strong>a –, não deixa de ser varia<strong>da</strong> einfinitamente diversifica<strong>da</strong>.Esta dupla dimensão <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de humana – o facto de, no t<strong>em</strong>po, ela estaruni<strong>da</strong> com a eterni<strong>da</strong>de – justifica o carácter dinâmico que Sto. <strong>Agostinho</strong> imprime aoprocesso de inteligência <strong>da</strong> fé, expresso no Salmo: quaerite faci<strong>em</strong> eius s<strong>em</strong>per. Aprocura do Absoluto não t<strong>em</strong> repouso, não se pode deter, precisamente <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong>diferença ontológica que se estabelece entre Deus e a mente humana. É esta acaracterística <strong>da</strong> investigação humana acerca do insondável, como é o caso <strong>da</strong> procurade uma divin<strong>da</strong>de que se define pelo paradoxo: Vnitas-Trinitas, Simplex-Multiplex e, naplena expressão <strong>da</strong> sua relação com o t<strong>em</strong>po, Deus-Homo.Sendo de algum modo conatural à mente humana, a procura do insondável é, <strong>em</strong> simesma, insaturável, e não se haverá de deter, sequer, no reconhecimento <strong>da</strong> condiçãoinefável <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se busca. De facto, escreve o filósofo, a compreensão de quãoincompreensível é a essência <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que se busca amplia a consciência de estarperante o insondável. Ante esse abismo, a mente humana mais se <strong>em</strong>penha na d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>e, nesta dinâmica, ela mesma se eleva e se torna melhor, pela proximi<strong>da</strong>de que vai640 Cf. DT XIII, IV, 7, para a discussão do texto de Hortensius sobre a felici<strong>da</strong>de ( CCL 50A, p. 389-391)e a conclusão, <strong>em</strong> DT XIII, V, 8: “ Beatus igitur non est nisi qui et habet omnia quae uult, et nihil uultmale.” ( CCL 50A, p. 393).433


conquistando com o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o. É este o efeito do diálogo de completude que, entresi, estabelec<strong>em</strong> a fé e a razão: a fé procura, a inteligência encontra. Mas, ao encontraruma reali<strong>da</strong>de que a transcende, a razão volta a investir na procura. Neste processo, amente humana, na pluriforme condição <strong>da</strong>s suas funções, configura-se,progressivamente, com a Ver<strong>da</strong>de na qual se adentra 641 .Esta estrutura dialógica estabeleci<strong>da</strong> entre fé e inteligência marca o ritmo <strong>da</strong>investigação augustiniana acerca do Absoluto. Poder-se-ia, então, pensar que, <strong>da</strong><strong>da</strong> acondição t<strong>em</strong>poral <strong>da</strong> fé, uma vez abolido o t<strong>em</strong>po, cessaria a busca. To<strong>da</strong>via, Sto.<strong>Agostinho</strong> inscreve esta dialéctica na própria condição do ser humano, a saber, nacontingência <strong>da</strong> mente, na finitude dela, na diferença entre ela e o seu Criador. Ora,mesmo na hipótese de um fim dos t<strong>em</strong>pos, ela não se verificará por aniquilação, maspor realização <strong>da</strong> plenitude dessa reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> que é o próprio t<strong>em</strong>po. Por isso,mesmo nesse momento - que coincide com o fim <strong>da</strong> história e a revelação plena dosentido <strong>da</strong> Criação - a diss<strong>em</strong>elhança ontológica entre o ser humano e o Criador nãopode dissolver-se s<strong>em</strong> introduzir no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de uma contradição, ao fazê-larevogar uma vontade eterna. Mediante tal vontade, que é causa <strong>da</strong> Criação, o <strong>Ser</strong> divinoconfigurou formas, circunscreveu o ser delas e, no caso <strong>da</strong> mente humana, dotou-a deimortali<strong>da</strong>de, projectando-a para uma vi<strong>da</strong> eterna. To<strong>da</strong>via, essa ordinatio ad uitamaeternam, comum a to<strong>da</strong>s as criaturas espirituais, não significa uma subsunção <strong>da</strong> formade ca<strong>da</strong> uma na Forma Eterna de Deus. A ordo rerum que se cumpre plenamente numaescatologia onde todos os seres, finalmente, alcançam o seu lugar próprio, preserva,ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, a diferença ontológica, e exige, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, um el<strong>em</strong>ento d<strong>em</strong>ediação, para que se dê a relação entre o <strong>Ser</strong> e os seres.Assim, o carácter de eterni<strong>da</strong>de, impresso na mente humana mediante o actocriador, permite deduzir que a busca do inefável é, naquela, incessante. A d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> deDeus permanecerá, por conseguinte, mesmo no final dos t<strong>em</strong>pos, onde, de algum modo– e mais uma vez paradoxalmente - a mente que efectivou a sua forma essencial e serealizou, no t<strong>em</strong>po, como mente ordena<strong>da</strong>, se encontrará realiza<strong>da</strong> e pacifica<strong>da</strong>. Ou,para aquela que se d<strong>em</strong>itiu <strong>da</strong> sua missão, a d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> do Absoluto estacionará,inscrevendo-se, também paradoxalmente, na forma humana, uma eterna irrequietudeontológica.641 Cf. DT XV, II, 2 ( CCL 50A, p. 460-462).434


Já <strong>em</strong> De ordine, ao mesmo t<strong>em</strong>po que enunciava a imensa floresta de coisas queo saber filosófico haveria de descortinar e que estabelecia, para a Filosofia, a tarefa deconhecer Deus e a alma, Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinhava o carácter inefável e insondável doprimeiro el<strong>em</strong>ento desse binómio. Ao afirmar que a melhor forma de conhecimento deDeus é a nesciência – Deus qui scitur melius nesciendo -, assumia, desde o início <strong>da</strong> suaprodução filosófica, o paroxismo, como el<strong>em</strong>ento indissociável <strong>da</strong> tarefa a que iriadedicar to<strong>da</strong> a sua existência 642 .Contudo, Sto. <strong>Agostinho</strong> não defende a impossibili<strong>da</strong>de de conhecer Deus. Em talcaso, seriam estéreis os diferentes itinerários de acesso à inteligibili<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong>Supr<strong>em</strong>o que pululam na sua obra, e o desiderato <strong>da</strong> sua proposta filosófica abortaria naprópria génese. Numa expressão feliz de H. de Lubac, mais do que a apologia <strong>da</strong>negação do conhecimento do Absoluto, a proposta augustiniana desafia umconhecimento negativo, equivalente a um esforço de superação dos limites <strong>da</strong> própriarazão, pela afirmação, no ser humano, <strong>da</strong> existência de uma dimensão superior àfacul<strong>da</strong>de discursiva-judicativa 643 . Assumindo a racionali<strong>da</strong>de, essa dimensão não podealhear-se do domínio noético, mas integra, também, a activi<strong>da</strong>de e a colaboração <strong>da</strong>sd<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente. A sua característica é uma peculiar proximi<strong>da</strong>de com odivino, ao ponto de poder designar-se como imago dei.De alguma forma, é o excesso de luminosi<strong>da</strong>de e a sua situação supra-discursivaque permit<strong>em</strong> falar de um conhecimento negativo. Este modo de agnição especifica-sepelo facto de, s<strong>em</strong> abandonar o âmbito <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de, não necessitar já de se642 DO II, XVI, 44: “ Quisquis aut<strong>em</strong> uel adhuc seruus cupiditatum et inhians rebus pereuntibus uel iamista fugiens casteque uiuens, nesciens tamen, quid sit nihil, quid informis materia, quid formatum exanine,quid corpus, quid species in corpore, quid locus, quid t<strong>em</strong>pus, quid in loco, quid in t<strong>em</strong>pore, quid motussecundum locum, quid motus non secundum locum, quid stabilis motus, quid sit aeuum, quid sit nec inloco esse nec nusquam, quid sit praeter t<strong>em</strong>pus et s<strong>em</strong>per, quid sit et nusquam esse et nusquam non esseet numquam esse et numquam non esse, quisquis ergo ista nesciens, non dico de summo illo deo, quiscitur melius nesciendo, sed de anima ipsa sua quaerere ac disputare uoluerit, tantum errabit, quantumerrari plurimum potest.” ( CCL 29, p. 131: it. n.).643 Cf. H. DE LUBAC, Sur les ch<strong>em</strong>ins de Dieu (Paris 1956), p. 145. O paradoxo <strong>em</strong> que consiste adinâmica augustiniana <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé confirma esta afirmação. De modo particular, <strong>em</strong> contraste ecomo compl<strong>em</strong>ento <strong>da</strong> afirmação de DO II, 16, 44, lê-se, na Ep. CXX, III: “ (...) non enim paruaincohatio est cogitationis dei, se ante, quam possimus nosse, quid est, incipiamus iam nosse, quid non sit.Intellectum uero ualde ama, quia et ipsae scripturae sanctae, quae magnarum rerum ante intellegentiamsuadent fid<strong>em</strong>, nisi eas recte intellegas, utiles tibi esse non possunt.” ( CSEL 34/2, p. 715-716).435


expressar mediante apelação verbal. Eximindo-se do recurso às uerba tal conhecimentoconstitui-se como uma visão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, não já na mente humana, <strong>em</strong> si mesma e porsi mesma, mas na própria relação que ela estabelece com o Verbo, per qu<strong>em</strong>, inPrincipio, omnia facta sunt.A proximi<strong>da</strong>de inerente a uma tal forma de compenetração entre o ser humano e oAbsoluto é efeito <strong>da</strong> impressão <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus na mente humana. Neste domínio, oconhecimento de si e o de Deus assum<strong>em</strong> dimensão unitiva, ficando a descoberto afronteira entre ambos os termos, precisamente naquilo que ela t<strong>em</strong> de mais radical: adissimilitudo, característica proveniente <strong>da</strong> diferença entre a criatura e o Criador, s<strong>em</strong>qualquer acréscimo de deformi<strong>da</strong>de adquirido no t<strong>em</strong>po. Por isso, para este domínio <strong>da</strong>vivência humana Sto. <strong>Agostinho</strong> reserva o atributo de sapientia, alienando-o de to<strong>da</strong> arelação com a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e o movimento, e identificando-o com a cont<strong>em</strong>platio. Poridêntico motivo, o filósofo projecta a acepção plena de um tal conhecimento para umaoutra forma de existência, futura, resgata<strong>da</strong> a curso dos t<strong>em</strong>pos e ao movimento, mas àqual, de modo inconcusso, não pode ser arrebata<strong>da</strong> a contingência.O ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> metafísica augustiniana é, indubitavelmente, a confissão <strong>da</strong>dependência de todo o real, na radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua existência, <strong>em</strong> função de umPrincípio cuja natureza é, simultaneamente, Uni<strong>da</strong>de e Trin<strong>da</strong>de. Ambos os factos sãoindissociáveis, a Criação e a natureza trinitária do Único Princípio. Ambas asafirmações, igualmente, são assumi<strong>da</strong>s, inicialmente, por via de autori<strong>da</strong>de, a fim de quea razão, exercendo-se no t<strong>em</strong>po, esclareça ao máximo a inteligibili<strong>da</strong>de nelas conti<strong>da</strong>.A inteligência do insondável é s<strong>em</strong>pre, para o filósofo, o resultado <strong>da</strong>compreensão dinâmica, por parte <strong>da</strong> mente humana, <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>deCriadora 644 . Ora, se a natureza do Princípio se caracteriza pela Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de,644 Como nota O. DU ROY, L’intelligence de la foi...p. 382, a expressão trinitas creatrix, <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>decom a natureza una do Princípio, aparece claramente <strong>em</strong> VR VII, 13. Nesse texto, Sto. <strong>Agostinho</strong> insistena função purificadora <strong>da</strong> fé, cujo objectivo é preparar a mente para compreender as reali<strong>da</strong>des eternas,facto que justifica a assunção <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de por parte de Deus, submetendo-se a uma manifestaçãoprogressiva <strong>da</strong> sua própria essência. Mas o aspecto que aí há a evidenciar é a articulação feita entre oconhecimento <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de e o reconhecimento <strong>da</strong> dependência de to<strong>da</strong> a criatura <strong>em</strong> face <strong>da</strong> EssênciaSupr<strong>em</strong>a: “ (...) Quae cum credita fuerit, ment<strong>em</strong> purgabit uitae modus diuinis praeceptis conciliatus etidoneam faciet spiritalibus percipiendis, quae nec praeterita sunt nec futura, sed eod<strong>em</strong> modo s<strong>em</strong>permanentia nulli mutabilitati obnoxia, id est unum ipsum deum patr<strong>em</strong> et filium et spiritum sanctum, quatrinitate, quantum in hac uita <strong>da</strong>tum est cognita omnis intellectualis et animalis et corporalis creatura abead<strong>em</strong> trinitate creatrice esse, in quantum est, et speci<strong>em</strong> suam habere et ordinatissime administrari sine436


Sto. <strong>Agostinho</strong> procura mostrar que haverá vestígios desta estrutura dialéctica <strong>em</strong> ca<strong>da</strong>nível ontológico, mesmo na mais ima forma de ser. Por isso, seja qual for o grau que amente tome <strong>em</strong> consideração na hierarquia dos seres, e precavendo-se a razão para nãoincorrer nos erros apontados na ascese para a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, o sucesso <strong>da</strong>pesquisa ficará garantido, tornando-se acessível a compreensão, por parte do serhumano e mesmo se limita<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des invisíveis de Deus.De facto, o Filósofo de Hipona faz o encómio de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de deto<strong>da</strong>s as expressões de ser e, nelas, louva a beleza e a ord<strong>em</strong>, quer no seu género, querno modo como concorr<strong>em</strong> para a congruência do Todo. Tal panegírico encontra-sefrequent<strong>em</strong>ente nos escritos antimaniqueístas, evidenciando-se nas obras de comentárioao Génesis, onde <strong>Agostinho</strong> se entrega ao trabalho de discorrer, inclusivamente, sobre abon<strong>da</strong>de e harmonia dos seres considerados, de modo geral, como antipáticos,incómodos, e até mesmo nocivos para a vi<strong>da</strong> humana 645 .Assim, as trilogias, às quais Sto. <strong>Agostinho</strong> sói recorrer para identificar a estruturados seres, integram-se no contexto <strong>da</strong> compreensão do universo criado, cuja existência éjustifica<strong>da</strong> <strong>em</strong> função de uma Sabedoria Supr<strong>em</strong>a, ela própria idêntica, <strong>em</strong> natureza, aoAbsoluto-Trin<strong>da</strong>de 646 . A dialéctica <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> essência do Absoluto torna-se,ulla dubitatione perspicitur.” ( CCL 32, p. 196). Comentando este texto, escreve DU ROY: “ Ce qui estvraiment neuf, c’est cette façon de présenter la dépendence ontologique de la créature par rapport à laTrinité créatrice comme trois dimensions simultanées (…) que possède toute réalité ou nature, et cela desorte que la création par la Trinité ne paraisse pas partage (…) mais une coopération selon une économiehiérarchique » ( Op. cit., p. 382-383).645 Neste contexto, veja-se, <strong>em</strong> LA III, a instauração <strong>da</strong> regra lau<strong>da</strong>tória, que se baseia precisamente, nacondição óptima do Princípio. Assim, muito <strong>em</strong>bora se ocult<strong>em</strong>, provisória ou definitivamente, osmotivos <strong>da</strong> presença de determina<strong>da</strong>s expressões de reali<strong>da</strong>de no Universo, uma vez que elas provêm doPrincípio Excelente, B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, a razão, se as louvar, <strong>em</strong>itirá decerto um juízo certeiro, coisa que nãoacontecerá se as incriminar, criticando o Verbo Supr<strong>em</strong>o. Em De genesi ad litteram Sto. <strong>Agostinho</strong> levaao extr<strong>em</strong>o este esforço por justificar a bon<strong>da</strong>de e razão de ser de to<strong>da</strong>s as formas de reali<strong>da</strong>de, desde adiversi<strong>da</strong>de de vermes, aos animais nocivos e agressivos para o ser humano ( cf. De gen. ad litt. III, 14-15: CSEL 28/1, p. 79-81), e, até, aos espinhos e picos de algumas ervas, s<strong>em</strong> olvi<strong>da</strong>r o louvor dos seresque não parec<strong>em</strong> ter qualquer utili<strong>da</strong>de ( cf. De gen. ad litt. III, 18-24: CSEL 28/1, p. 83-92). Perante talperplexi<strong>da</strong>de, o Hiponense insiste na mesma regra lau<strong>da</strong>tória: “ (...) habent enim omnia, quamdiu sunt,mensuras, numerus, ordines suos: quae cuncta (...) lau<strong>da</strong>ntur nec sine occulta pro sui genere moderationepulchritudinis t<strong>em</strong>poralis etiam ex alio in aliud transeundo mutantur.” ( Ibid., III, 16: CSEL 28/1, p. 82).646 Cf. De gen. cont. Manich. I, 16, 26 [ =Sap. 11, 21. (PL 34, 186: CSEL 91, p. 93-94)]: Mensura,numerus, pondus; mensura, numerus, ordo. Cf. LA II XX, 54 ( CCL 29, p. 273): ordo, mensura, numerus;437


pois, para o Hiponense, indissociável <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> criação do Universo por meio deum Princípio cuja natureza, sendo Una, é também Trinitária. Desta forma, permanece ainterrogação: se to<strong>da</strong> a expressão de reali<strong>da</strong>de pode fazer que a mente ascen<strong>da</strong> àsinuisibilia dei, que motivo haverá para uma opção, se não exclusiva, certamentepreferencial, pela análise directa dos conteúdos e <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> mente humana?Argumentos <strong>em</strong> prol desta escolha foram já indicados ao explanar as vias deacesso propostas pelo Hiponense para deduzir a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noção excelente alcança<strong>da</strong>pela razão humana e identifica<strong>da</strong> pelo filósofo com a noção de Deus. No caso específico<strong>da</strong> procura de uma compreensão <strong>da</strong> natureza paradoxal desse Princípio Supr<strong>em</strong>o,enquanto Trinitas-Vnitas, há um argumento que Sto. <strong>Agostinho</strong> gosta de invocar: apeculiar proximi<strong>da</strong>de entre Deus e a mente, <strong>da</strong> qual resulta uma mais exequívelacessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>.Efectivamente, nas trajectórias para Deus que designámos como ascendente edescendente, Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinhava o facto de a mente humana ocupar um grausuperior na hierarquia ontológica, quando compara<strong>da</strong> com os d<strong>em</strong>ais níveis deexistência. O facto de possuir razão, mente ou espírito, faz que o ser humano sedistinga, na hierarquia ontológica, e se sobreponha quer aos seres que apenas são, queràqueles que são e viv<strong>em</strong>. Porém, ao tratar de aceder a uma compreensão do inefável, ofilósofo propõe-se fazer caminho não já através <strong>da</strong>quilo que há de humano no hom<strong>em</strong>,mas <strong>da</strong>quilo que, nele, é espelho e marca do <strong>Ser</strong> divino. A análise augustiniana <strong>da</strong> menteleva<strong>da</strong> a efeito de modo particular <strong>em</strong> De trinitate para aceder a uma compreensão deuma reali<strong>da</strong>de que reúne <strong>em</strong> si Uni<strong>da</strong>de e Trin<strong>da</strong>de, na eterni<strong>da</strong>de e imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sua substância, exige um grau de penetração b<strong>em</strong> mais profundo do que aqueleexecutado pelo Hiponense <strong>em</strong> obras de composição anterior, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> Delibero arbitrio, ao mesmo t<strong>em</strong>po que solicita uma mais atura<strong>da</strong> subtileza de espírito.No percurso para a inteligibili<strong>da</strong>de de Deus-Trin<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> parte <strong>da</strong>dialéctica trinitária <strong>da</strong> Criação. Na ver<strong>da</strong>de, de onde haveria de partir, uma vez queassumiu, como base <strong>da</strong> sua mundividência, a metafísica bíblico-cristã, que postula adependência de todo o real <strong>em</strong> função de um Princípio Único de <strong>Ser</strong> e de Agir? De igualCf. VR VII, 13 ( CCL 32, p. 196-197): esse/ unum, species, ordo. Uma análise apura<strong>da</strong> destas trilogias edo seu sentido na obra do Hiponense, sobretudo como variantes de comentário ao texto bíblico de Sap.11: 20, pode ler-se <strong>em</strong> Maria BETTETINI, La misura delle cose ( Milano 1994), p. 127-147. V., também,O. DU ROY, L’intelligence de la foi….., pp. 279-297 ; 380-388. W. BEIERWALTES, “ AugustinsInterpretation von Sapientia 11, 21 », Revue des études augustiniennes 15 ( 1969), p. 51-61.438


modo, onde poderá chegar tal in<strong>da</strong>gação, a não ser a um vislumbre <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>desinvisíveis de Deus, sendo esse, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, um conhecimento imerso na condiçãocriatural? É precisamente ao relato bíblico <strong>da</strong>s Origens que <strong>Agostinho</strong> irá buscar anoção <strong>da</strong> natureza humana enquanto imago dei.A concepção augustiniana <strong>da</strong> imago dei é el<strong>em</strong>ento essencial na construção domodo como o filósofo equaciona a noção de ord<strong>em</strong>. Antes de mais, note-se que aconquista de uma interpretação dota<strong>da</strong> de maior amplitude de sentido acerca do passobíblico de Gen. 1: 26 – faciamus homine ad imagin<strong>em</strong> et similitudin<strong>em</strong> nostram – estáintrinsecamente uni<strong>da</strong> ao processo de conversão metafísica operado no Hiponense, e éfort<strong>em</strong>ente influencia<strong>da</strong> pela pregação de Ambrósio, mormente através <strong>da</strong> exegese doBispo de Milão sobre o Hexameron 647 . A interpretação ambrosiana, a par de outrosel<strong>em</strong>entos que o influenciam nos anos de Milão, contribui para que Sto. <strong>Agostinho</strong>abandone uma concepção antropomórfica de Deus, a qual, de acordo com a críticamaniqueísta, decorreria <strong>da</strong> exegese cristã do referido passo <strong>da</strong> Escritura. No processoaugustiniano de conversão, o abandono desta convicção é substituído inicialmente pelacrença na espirituali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> substância divina, avançando, progressivamente, <strong>da</strong> adesãofiducial para a inteligibili<strong>da</strong>de do conteúdo <strong>da</strong> proposta de interpretação postula<strong>da</strong> pelametafísica cristã, para o referido passo bíblico. Esta mu<strong>da</strong>nça de perspectiva fará que oHiponense aprofunde a sua concepção quer do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, quer <strong>da</strong> natureza do serhumano, uma vez mais tornando indissociáveis a compreensão de ambos.A interpretação ambrosiana <strong>da</strong> noção de imago dei permitia a Sto. <strong>Agostinho</strong>esquivar dois dos erros acerca de Deus, apontados pelo filósofo no Proémio a Detrinitate. Um primeiro consiste na construção de uma imag<strong>em</strong> de Deus à medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>mente humana, projectando, no <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, as categorias e proprie<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>squer na dimensão corpórea do ser humano, quer na mente humana. Um segundo, radicana adopção de uma ideia de Dei<strong>da</strong>de identifica<strong>da</strong> como substância material. Assim, um647 Cf. Conf. VI, III, 4 (CCL 27, p. 76). V., também, Ambrosius Mediolanensis, Exameron, dies 6, cap. 7,41, onde se afirma que, <strong>em</strong> sentido próprio, só Cristo é imago dei [ CSEL 32, 1 ( C. SCHENKL, 1897),p. 232-233]. Ibid., dies 6, cap. 8, 49, onde, interpelando-a a prosseguir na via <strong>da</strong> auto-gnose, se explicaque só a alma humana é imago dei: “ (...) Cognosce te, decora anima, quia imago es dei” ( CSEL 32/1, p.240). Sobre o Exameron ambrosiano, a sua composição e a influência sobre Sto. <strong>Agostinho</strong>, ver: A.SOLIGNAC, “Introduction aux Confessions” in Oeuvres de saint Augustin: Les Confessions,Bibliothèque augustinienne 13, p. 141, n. 1; P. COURCELLE, Recherches sur les Confessions de saintAugustin (Paris 2 1973), p. 93-106. G. MADEC, Saint Ambroise et la philosophie (Paris 1974), p. 71-80.439


dos primeiros aspectos que o Hiponense sublinha na sua concepção do ser humano,imag<strong>em</strong> de Deus, é a presença, nesta forma de ser, <strong>da</strong> mente ou razão. A absolutaespirituali<strong>da</strong>de de Deus faz que o passo bíblico de Génesis 1: 26 só possa serinterpretado no sentido de encontrar, no ser humano, um el<strong>em</strong>ento, tambémabsolutamente espiritual, no qual seja possível identificar uma certa comuni<strong>da</strong>de denatureza, um reflexo <strong>da</strong> essência, Una e Trina, <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, preservando s<strong>em</strong>pre adiferença ontológica.Também aqui Sto. <strong>Agostinho</strong> recorre à concepção de ord<strong>em</strong> como disposiçãohierarquica de seres, e insiste na racionali<strong>da</strong>de do ser humano. Dotado de razão, estesobrepõe-se às outras formas de existência e pode dominá-las. Com efeito, já <strong>em</strong> Delibero arbitrio o filósofo afirmara que a presença <strong>da</strong> razão na mente humana é oprincípio que garante supr<strong>em</strong>acia ao ser humano sobre os d<strong>em</strong>ais seres criados nomundo visível e insiste <strong>em</strong> que o primado dessa força não se define <strong>em</strong> termos físicos,mas pela quali<strong>da</strong>de de uma forma específica de ser que se manifesta na capaci<strong>da</strong>de deproduzir juízos e de descodificar sentido.Esta heg<strong>em</strong>onia do ser humano sobre as formas de reali<strong>da</strong>de que apenas viv<strong>em</strong> ousão é confirmado pela autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Escritura, como Sto. <strong>Agostinho</strong> refere comfrequência. A criação do ser humano à imag<strong>em</strong> de Deus, no relato bíblico <strong>da</strong>s origens, ésegui<strong>da</strong> do man<strong>da</strong>to de domínio sobre todos os seres vivos e sobre o próprio Orbe 648 .Assim, a própria disposição gradual dos seres, que se comprova mediante observação ereflexão racional, surge ao Hiponense ratifica<strong>da</strong> pela autori<strong>da</strong>de bíblica. Por sua vez, amente humana é considera<strong>da</strong> como imag<strong>em</strong> de Deus, Omnipotente e Senhor de tudoquanto existe, devendo submeter-se, de acordo com a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua naturezalivre, a esse Princípio Soberano.648 Cf. De gen. cont. Manich. I, XVII, 27-28 ( PL 34, 186-187 ; CSEL 91, p. 94-96). De gen. ad litt. III,20: “ Hic etiam illud non est praetereundum, quia, cum dixisset: ad imagin<strong>em</strong> nostram, statim subiunxit:et habeat potestat<strong>em</strong> piscium maris et uolatilium caeli et ceterorum animalium rationis expertium, utuidelicet intellegamus in eo factum homin<strong>em</strong> ad imagin<strong>em</strong> dei, in quo inrationalibus animantibusantecellit. id aut<strong>em</strong> est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodiusappellatur. unde et apostolus dicit: renouamini in spiritu mentis uestrae et induite nouum homin<strong>em</strong>, quirenouatur in agnition<strong>em</strong> dei secundum imagin<strong>em</strong> eius, qui creauit eum, satis ostendens, ubi sit homocreatus ad imagin<strong>em</strong> dei, quia non corporis liniamentis, sed forma qua<strong>da</strong>m intellegibili mentisinluminatae.” (CSEL 28/1, p. 86).440


Na ver<strong>da</strong>de, a capaci<strong>da</strong>de de domínio sobre as formas de existênciahierarquicamente inferiores, de que o ser humano está dotado, exprime umaparticipação na regência divina sobre o Universo, confia<strong>da</strong> à razão humanaprecisamente pela presença, nela, <strong>da</strong> efígie divina, ou seja, pela relação permanente quea mente estabelece com a fonte e orig<strong>em</strong> de todo o ser, a Ver<strong>da</strong>de Criadora. Por isso,para compreender Deus, Uno e Trino, através <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> impressa na mente espiritual,uma vez mais Sto. <strong>Agostinho</strong> irá deter-se na análise <strong>da</strong> relação entre a mente e aVer<strong>da</strong>de. Agora fixar-se-á não tanto na tendência <strong>da</strong> mente humana para a Uni<strong>da</strong>de, maspreferent<strong>em</strong>ente na compreensão <strong>da</strong> dinâmica que a caracteriza. Porém, igualmente seirá repetir o efeito do paradoxo <strong>em</strong> que consiste a estrutura <strong>da</strong> consciência humana, talcomo o filósofo a concebe: o conhecimento de Deus, obtido mediante a análise <strong>da</strong>estrutura <strong>da</strong> mente <strong>em</strong> termos de imag<strong>em</strong>, será cont<strong>em</strong>porâneo, afinal, de um maiorconhecimento de si e tão-só de um vislumbre, especular e enigmático, <strong>da</strong> essênciadivina.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, é na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a imag<strong>em</strong> divina se imprime na mentehumana que se justifica a interligação entre o conhecimento de Deus e o <strong>da</strong> mentehumana. Os reiterados apelos e desideratos do duplo conhecimento, de Deus e <strong>da</strong> alma,como meta <strong>da</strong> Filosofia, adquir<strong>em</strong>, a esta luz, o seu sentido mais amplo e radical.De facto, <strong>em</strong> De trinitate, ao buscar, mediante a in<strong>da</strong>gação <strong>da</strong>s trin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente,o conhecimento <strong>da</strong> essência de Deus, Vnitas-Trinitas, o Hiponense desvela,simultaneamente, o modo como entende a relação entre Deus e o espírito humano. Nãose trata de uma relação de âmbito meramente noético, mas de um elo que envolve to<strong>da</strong>sas facul<strong>da</strong>des do espírito humano, com especial incidência na actuação <strong>da</strong> vontade, poisa imag<strong>em</strong> de Deus não reluz na mente humana a não ser mediante um processo deassunção voluntária <strong>da</strong> própria forma. Esta tarefa é confia<strong>da</strong> ao ser humano no próprioacto <strong>da</strong> Criação, sendo este processo designado pelo filósofo como conuersio e o seuefeito como formatio. Nele, a facul<strong>da</strong>de volitiva des<strong>em</strong>penha função cardinal s<strong>em</strong>, noentanto, se instituir como instância autónoma <strong>em</strong> relação às d<strong>em</strong>ais funções <strong>da</strong> mente.Ao invés, é to<strong>da</strong> a mente humana – to<strong>da</strong> a forma do ser humano – que se envolve nestadinâmica. De facto, <strong>Agostinho</strong> não concebe a possibili<strong>da</strong>de de dissociar a mente e asfunções que a caracterizam, uma vez que, enquanto reali<strong>da</strong>de espiritual, a mente441


humana é indivisível e está presente, na sua completude, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> operação que o serhumano realize 649 .Dois el<strong>em</strong>entos cruciais sustentam, assim, a doutrina augustiniana <strong>da</strong> mente,imago dei: por um lado a dependência dela <strong>em</strong> relação ao acto criador divino, facto quegarante o carácter irrevogável <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> 650 e, por outro lado, a interacção dialécticaque se estabelece entre o conhecimento <strong>da</strong> mente como imago Dei e o acesso àcompreensão <strong>da</strong> natureza do Deus, tornando indissociável o aprofun<strong>da</strong>mento nacompreensão <strong>da</strong> essência dos dois pólos que sustentam esta relação ontológica.De facto, o conhecimento de Deus e do modo como o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o se relacionacom os seres humanos não é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, algo que se acrescenta, como umaconstrução <strong>da</strong> mente, à estrutura do real. Inversamente, <strong>da</strong>do que a relação de Deus como Mundo é irrevogavelmente intrínseca ao próprio Universo, qualquer penetração <strong>da</strong>mente na essência do real – suposto o exercício <strong>da</strong> uera ratio – torna-se inalienável deum reconhecimento <strong>da</strong> marca do divino nela. Mas, se for o espírito humano que se tornaobjecto de análise – e <strong>da</strong>do que é o próprio Deus, enquanto Sabedoria Supr<strong>em</strong>a, que está649 A conexão estalebeleci<strong>da</strong> pelo Hiponense entre conuersio et formatio para as criaturas espirituais éexposta sobretudo <strong>em</strong> De gen. ad litt. III e IV. Estudos diversos indicam a centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática naobra do Hiponense ( Cf. BIBLIOGRAFIA B.II, 7. Creatio), a qual foi objecto <strong>da</strong> tese doutoral de A.-M.VANNIER, “Creatio”, “conuersio”, “formatio” chez saint Augustin ( Fribourg 2 1997). Não obstante aincontestável vali<strong>da</strong>de deste estudo que incide, de modo peculiar, no comentário aos escritos sobre oGénesis, e uma vez que a trilogia referi<strong>da</strong> no título é assumi<strong>da</strong> como grelha hermenêutica <strong>da</strong> obraaugustiniana, a leitura do estudo de Vannier deixa um saibo de artifício, notificando que a obra doHiponense cede mal a propostas de sist<strong>em</strong>atização. Porventura este mesmo efeito quer significar que anoção de creatio, não obstante indispensável para a compreensão <strong>da</strong> metafísica augustiniana, não é, nela,a que permite uma maior universali<strong>da</strong>de de sentido.650 O carácter indelével <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus na mente é afirmado explicitamente <strong>em</strong> DT XIV, IV, 6 (CCL50A, p. 428-429), tendo sido negado <strong>em</strong> De gen. ad litt. VI, 27, onde se lê: “ (...) hanc imagin<strong>em</strong> inspiritu mentis inpressam perdidit A<strong>da</strong>m per peccatum, quam recipimus per gratiam iustitiae, non spiritaleatque inmortale corpus, in quo ille nondum fuit, et in quo erunt omnes sancti resurgentes a mortuis; hocenim pra<strong>em</strong>ium est illius meriti, quod amisit. ” ( CSEL 28/1, p.199: it. n.). Em Retract. II, XXIV, 2, Sto.<strong>Agostinho</strong> comenta este passo, fixando a sua doutrina definitiva ao respeito : “ (...) In sexto libro quoddixi A<strong>da</strong>m imagin<strong>em</strong> dei, secundum quam factus est, perdidisse peccato, non sic accipiendum est,tamquam in eo nulla r<strong>em</strong>anserit, sed quod tam deformis, ut reformatione opus haberet.” ( CCL 57, p.110).442


implicado na estrutura <strong>da</strong> mente, ao criá-la –, o conhecimento do Princípio Criadortorna-se indissociável do conhecimento próprio 651 .Assim, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> analisa a essência <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong> qualquer<strong>da</strong>s suas dimensões, não descreve um processo meramente psicológico, n<strong>em</strong> sequergnosiológico, mas explora a dimensão ontológica <strong>da</strong> mente, aprofun<strong>da</strong>ndo-a, até acompreender na sua condição primeva. Como resultado desse esforço analítico, ofilósofo descobre que a mente humana está orienta<strong>da</strong> por natureza para o conhecimentodo Absoluto, e que s<strong>em</strong> esse conhecimento não realiza o seu lugar próprio, na ord<strong>em</strong>dos seres 652 .Deste modo, associando os dois aspectos supra-referidos acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong>imago Dei, evidencia-se o motivo pelo qual <strong>Agostinho</strong> inicia a sua escala<strong>da</strong> até ànatureza, Una e Trina, do Princípio mediante o exame <strong>da</strong> mente humana. De facto, nela,a imag<strong>em</strong> de Deus é a marca mais excelente <strong>da</strong> presença do Criador no Universo. Aopretender progredir para o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o per ea quae facta sunt, o filósofo opta porin<strong>da</strong>gar aquela dimensão abissal <strong>da</strong> mente. Este facto permite avançar na investigaçãoacerca <strong>da</strong> noção augustiniana de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que tal filosof<strong>em</strong>a trata deesclarecer o modo como se equaciona a proximi<strong>da</strong>de entre Deus e os seres humanos.Contudo, ao concluir a análise augustiniana que regride in abdito mentis, ver-se-á quetal proximi<strong>da</strong>de não se exerce s<strong>em</strong> mediação, tornando progressivamente mais evidente,na obra do Hiponense, a convergência entre estas duas noções: <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e Mediação 653 .651 Neste sentido, escreve P. AGAËSSE: “ (...) cette connaissance de Dieu ne survient pas après coup <strong>da</strong>nsl’âme même : elle est impliquée <strong>da</strong>ns sa création, elle est constitutive de l’âme même » («L’âme, imagede Dieu », in Bibliothèque augustinienne. Œuvres de saint Augustin 48, p. 629).652 É naquela dimensão <strong>da</strong> mente humana que a torna capaz de conhecer Deus que Sto. <strong>Agostinho</strong>identifica a imag<strong>em</strong> desse Princípio Supr<strong>em</strong>o. É mediante ela, portanto, que se acede ao conhecimentopossível <strong>da</strong> essência de Deus. Lê-se, efectivamente, <strong>em</strong> DT XIV, VII, 11: “ Nunc uero ad eam iamperuenimus disputation<strong>em</strong> ubi principale mentis humanae quo nouit deum uel potest nosseconsiderandum suscepimus ut in eo reperiamus imagin<strong>em</strong> dei.” ( CCL 50A, p. 435-436).653 Em De ciu. dei IX, XVII, a propósito dos falsos mediadores, citando Plotino, <strong>Agostinho</strong> comenta <strong>em</strong>que consiste a s<strong>em</strong>elhança com o divino: “Vbi est illud Plotini, ubi ait: "Fugiendum est igitur adcarissimam patriam, et ibi pater, et ibi omnia. Quae igitur, inquit, classis aut fuga? Simil<strong>em</strong> Deo fieri."(CCL 47, p. 265). Analisando esta citação - cuja fixação de texto foi objecto de divergências face àtradição manuscrita ( Cf. G. BARDY/ F. –J. THONNARD, “Sur une citation de Plotin”, in Bibiliothèqueaugustinienne 34, p. 614-615 -, o Hiponense elabora o seguinte raciocínio: se a uma maior proximi<strong>da</strong>dede Deus corresponde uma maior s<strong>em</strong>elhança, a única forma de se afastar Dele é caminharvoluntariamente <strong>em</strong> direcção à diss<strong>em</strong>elhança. Se Deus é Eterno, imutável, incorpóreo, a alma humana443


2. Simplex et multiplexTal como Sto. <strong>Agostinho</strong> relata <strong>em</strong> Confessionum, todo o seu percurso intelectuale vivencial é traçado <strong>em</strong> função <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de. Ora, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que estaVer<strong>da</strong>de é por ele procura<strong>da</strong> como b<strong>em</strong> amável, o filósofo só a pode conceberintegrando a Uni<strong>da</strong>de e a Alteri<strong>da</strong>de. Esta procura concretiza-se, do ponto de vistabiográfico, mediante um percurso de adesão a autori<strong>da</strong>des, correntes filosóficas eformas comunitárias de as vivenciar. De facto, é o desejo de encontrar e de possuir umanoção de Ver<strong>da</strong>de que se manifeste, a um t<strong>em</strong>po, Una e Diversa, que move a mente de<strong>Agostinho</strong> desde a juventude. É esse o impulso que caracteriza a direcção do seuinquietus cor e que se manifesta num percurso biográfico traçado por etapassobejamente defini<strong>da</strong>s.Neste itinerário <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> conquista de uma Ver<strong>da</strong>de que inclua Alteri<strong>da</strong>de é aomaniqueísmo que Sto. <strong>Agostinho</strong> adere primeiramente. Esta adesão, porém, éantecedi<strong>da</strong> de uma leitura, profun<strong>da</strong> e atenta, <strong>da</strong> obra Hortensius, de Cícero, ondeMarco Túlio propõe a identi<strong>da</strong>de entre a posse <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, ou Felici<strong>da</strong>de, e o exercíciodo Amor à Sabedoria, ou Filosofia, evidenciando que Sto. <strong>Agostinho</strong> não concebe abusca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de indissocia<strong>da</strong> do amor que decorre <strong>da</strong> posse <strong>da</strong>quela noção supr<strong>em</strong>a. Aeste momento do itinerário segue-se a leitura <strong>da</strong> Escritura e a respectiva rejeição, pelaausência de retórica e pela obscuri<strong>da</strong>de dos mistérios aí declarados, movimento a que,enfim, procede a adesão ao maniqueísmo 654 .Nesta trajectória biográfica não deixa de ser notório o motor que impele<strong>Agostinho</strong>: uma busca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de que se quer como amável, ou seja, como reali<strong>da</strong>de apossuir irrevogável e estavelmente pelo ser humano, <strong>em</strong> cuja fruição ele alcance,definitivamente, a tranquili<strong>da</strong>de ou paz. A procura <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de an<strong>da</strong> associa<strong>da</strong>, nadiss<strong>em</strong>elha-se a Ele na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se prende, por um desejo desenfreado ou cupiditas, às reali<strong>da</strong>dest<strong>em</strong>porais, corpóreas e mutáveis. Este movimento é a desord<strong>em</strong> <strong>da</strong> mente, necessita<strong>da</strong> de sanação. Ora,<strong>da</strong>do o abismo ontológico que separa a pureza imortal do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> corrupção dos seres mortais eínfimos, torna-se imperativa a necessi<strong>da</strong>de de um Mediador. O comentário de Sto. <strong>Agostinho</strong> prossegue,descrevendo as condições do ver<strong>da</strong>deiro Mediador, por oposição à mediação dos <strong>da</strong><strong>em</strong>ones, diferindo,contudo, no texto <strong>em</strong> causa, o tratamento <strong>da</strong> natureza do Ver<strong>da</strong>deiro Mediador.654 Cf. Conf. III, IV, 7-8 (CCL 27, p. 29-30).444


intentio animi augustiniana, à posse do B<strong>em</strong> e, por conseguinte, ao adimpl<strong>em</strong>ento dodesejo de amar.Quando o filósofo adere ao maniqueísmo, não o faz pela proposta, proclama<strong>da</strong>pela seita, <strong>da</strong> existência de uma duali<strong>da</strong>de primordial de Princípios, com a qual s<strong>em</strong>preesteve <strong>em</strong> conflito, mas pela esperança de conseguir superar a inquietação que lhe causao desconhecimento <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do mal. Porventura o que aí o alicia é a proposta salvíficapresente no discurso maniqueísta, a lograr mediante um conjunto de práticas quevinham ao encontro <strong>da</strong>quilo que, por então, se adequava ao modo de vi<strong>da</strong> do Hiponense.Neste sentido se compreende que, à hora de abandonar a seita <strong>em</strong> direcção aocristianismo, o maior entrave experimentado tenha consistido não na dúvi<strong>da</strong> teórica -que já não o afecta, pois deixa de encontrar inteligibili<strong>da</strong>de no maniqueísmo -, mas naforça dos costumes contraídos.Porém, o que ora se quer evidenciar é o facto de a adesão de Sto. <strong>Agostinho</strong> aomaniqueísmo indiciar já a procura de um sist<strong>em</strong>a que, não obstante de uma formaconfusa e aporética, tendesse para uma uni<strong>da</strong>de, identifica<strong>da</strong> na vitória do poder do maisforte – o primado do B<strong>em</strong> sobre o Mal – admitindo, simultaneamente, a alteri<strong>da</strong>de,mesmo se sob a forma conflituosa que, naquela mundividência, assume a relação entreos dois opostos, o B<strong>em</strong> e o Mal. Afã de Uni<strong>da</strong>de e desejo de Alteri<strong>da</strong>de são, assim, asnotas comuns de to<strong>da</strong> a racionali<strong>da</strong>de augustiniana, mesmo quando ela é procura<strong>da</strong> porcaminhos ínvios, como o filósofo reconhecerá ser o caso do maniqueísmo, à hora <strong>da</strong> suaconversão metafísica.É ver<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> refere que a presença do nome de Cristo e doParáclito lhe atraíram a atenção, no maniqueísmo, não obstante ter verificado que taisreferências eram aí meramente verbais: palavras proferi<strong>da</strong>s só pela boca, desenraiza<strong>da</strong>de uma uera ratio. E, nas suas obras de crítica à seita, não já enquanto aos costumesmas enquanto aos seus pressupostos teóricos, é fun<strong>da</strong>mentalmente à ausência doPrincípio de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que o filósofo alude. Ausente este, aparta-se a racionali<strong>da</strong>de e odiscurso deixa de ter como referente o <strong>Ser</strong>. Desta forma, deixa de ser possível identificaruma proposta metafísica, ficando uma tal mundividência reduzi<strong>da</strong> a um assaz pródigoconjunto de mitos e fantasias do espírito.Em qualquer caso, é importante sublinhar que é o desejo de alcançar a uni<strong>da</strong>depela alteri<strong>da</strong>de que está presente na adesão de <strong>Agostinho</strong> ao maniqueísmo, ao mesmot<strong>em</strong>po que é o conflito de costumes – entre maniqueísmo e cristianismo – que impedeum abandono mais célere <strong>da</strong> seita. To<strong>da</strong>via, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> Confessionum, a445


alteri<strong>da</strong>de maniqueísta é critica<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> como redutora, precisamente porque,vendo no outro o grande inimigo, tal mundividência, ao invés de abrir à relação, encerrao indivíduo sobre si mesmo. O maniqueísmo não propõe uma superação <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong>deatravés do diálogo, de forma a descobrir o que aí há de positivo, integrando-o nadiferença e conduzindo à comunhão. A alteri<strong>da</strong>de maniqueísta é duali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> conflito.Não admite, por conseguinte, a comunicação entre os opostos mas conduz aoencerramento de ca<strong>da</strong> um dos pólos sobre si mesmo, a tal ponto que, formando comoque uma couraça ao seu redor – no caso <strong>em</strong> apreço, pela prática de costumes que Sto.<strong>Agostinho</strong> virá a considerar abjectos –, o ser humano venha a ser resgatado ao princípiode malícia, tornando-se intangível à acção dele, o qual, to<strong>da</strong>via, permanece s<strong>em</strong>precomo espectro ameaçador.Sto. <strong>Agostinho</strong> é explícito ao respeito quando, no Livro IV de Confessionumcritica o maniqueísmo, censurando fun<strong>da</strong>mentalmente três aspectos. Antes de mais, ocarácter irracional de um sist<strong>em</strong>a onde o inferior é melhor do que o superior. Emsegui<strong>da</strong>, a resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> para a orig<strong>em</strong> do mal, basea<strong>da</strong> na substanciali<strong>da</strong>de do princípiode malícia. E, finalmente, a prática de uma exegese bíblica alhea<strong>da</strong> <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de. Areferi<strong>da</strong> narração de Confessionum declara o convencimento que o filósofo possui, àhora de compor essa obra, de ter caminhado de pernas para o ar, durante os anos <strong>em</strong>que perfilhou as convicções e práticas maniqueístas. Invertendo o sentido <strong>da</strong>racionali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, quer quanto ao modo de pensar, quer quanto ao modo de agir,<strong>Agostinho</strong> confessa ter percorrido, durante esse período, um itinerário não de elevaçãomas de degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> sua própria existência.Alimentando o seu espírito com as fantasias maniqueístas - que, a título deex<strong>em</strong>plo, defend<strong>em</strong> princípios tão irrisórios como o facto de as reali<strong>da</strong>des vegetaisser<strong>em</strong> superiores aos seres espirituais –, o Hiponense julgava residir nelas a Ver<strong>da</strong>deSupr<strong>em</strong>a 655 . O filósofo reconhece que o aferro a tão radical inversão <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> decorriado facto de elaborar raciocínios acerca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de non secundum intellectum mentis sedsecundum sensum carnis 656 . E deve notar-se que é precisamente após esta declaraçãosegundo a qual a ord<strong>em</strong> só pode ser alcança<strong>da</strong>, percebi<strong>da</strong> e executa<strong>da</strong> pelo ser humano,655 Cf. Conf. III, VI, 10-11; III, X, 18 (CCL 27, p. 31-33; p. 37).656 Conf. III, VI, 11: “(…) Vae, uae! Quibus gradibus deductus in profun<strong>da</strong> inferi, quippe laborans etaestuans inopia ueri, cum te, deus meus - tibi enim confiteor, qui me miseratus es et nondum confitent<strong>em</strong>- cum te non secundum intellectum mentis, quo me praestare uoluisti beluis, sed secundum sensum carnisquaerer<strong>em</strong>. ” (CCL 27, p. 32-33; it.n.).446


mediante uma procura do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o através <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente que, na sequênciado relato <strong>em</strong> apreço, Sto. <strong>Agostinho</strong> proclama de que modo se estabelece a relaçãohierárquica entre Deus e o ser humano, na consagr<strong>da</strong> expressão: Tu aut<strong>em</strong> eras interiorintimo meo et superior summo meo 657 .Procurar a reali<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a no seio <strong>da</strong> inferior, procurar o s<strong>em</strong>elhante no âmagodo absolutamente diss<strong>em</strong>elhante 658 é, na perspectiva augustiniana, procurar o outromediante uma alteri<strong>da</strong>de que o anula, trilhando itinerários dévios e absurdosprecisamente porque contrários à ord<strong>em</strong>. Ora, é isso que sucede no maniqueísmo,evidenciando-se neste aspecto o carácter irrazoável desta mundividência. É assimradicalmente, quanto aos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>quela, essencialmente dualistas. É assimtambém quanto à resposta que aí se oferece para a orig<strong>em</strong> do mal, sendo esta reali<strong>da</strong>de<strong>da</strong>ninha proclama<strong>da</strong> pelo maniqueísmo como um Princípio que pode, inclusivamente,corromper a substância do B<strong>em</strong>, bastando, para isso, que seja superior a este outroPrincípio, menos poderoso do que aquele.De facto, o Filósofo de Hipona descobre que a alteri<strong>da</strong>de proposta pelosseguidores de Mani não dá resposta às suas inquietações, pois oculta um s<strong>em</strong>-fim deincoerências. De que modo o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, enquanto noção óptima, se pode deixarcorromper? Mais ain<strong>da</strong>, como se poderá corromper aquele cuja natureza na<strong>da</strong> t<strong>em</strong> d<strong>em</strong>aterial e mutável? Assim, mais do que um combate e conflito entre duas reali<strong>da</strong>dessubstanciais, de cuja peleja o ser humano é apenas o lugar eleito, por parte do B<strong>em</strong>, paraexpiação <strong>da</strong>s fissuras nele introduzi<strong>da</strong>s pelo Mal, a alteri<strong>da</strong>de maniqueísta,inviabilizando a densi<strong>da</strong>de ontológica de ca<strong>da</strong> forma e, muito <strong>em</strong> particular, <strong>da</strong> formahumana, faz entrar <strong>em</strong> olvido, na consciência dos humanos, uma reali<strong>da</strong>de essencial àconquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de: o facto de o mal que ca<strong>da</strong> um pratica apenas contribuir para asua auto-destruição e, por arrastamento, para a degra<strong>da</strong>ção do conjunto dos seres. Aoconquistar uma consciência crítica <strong>em</strong> face do maniqueísmo, Sto. <strong>Agostinho</strong>compreende que uma acção contrária à ord<strong>em</strong> <strong>em</strong> na<strong>da</strong> afectará uma substânciaSoberanamente Má, acrescentando-lhe densi<strong>da</strong>de ontológica, simplesmente porque umatal substância não existe. Por sua vez, a mesma acção <strong>em</strong> na<strong>da</strong> atinge uma substânciaSoberanamente Boa, <strong>da</strong>nificando-a no seu ser, uma vez que, sendo ela657 Cf. Ibid.658 Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que por então ignorava inteiramente qual fosse aquela reali<strong>da</strong>de que, no serhumano, o torna s<strong>em</strong>elhante ao divino: “ (…) Et quid in nobis esset, secundum quod ess<strong>em</strong>us, et recte inscripturas dicer<strong>em</strong>ur ad imagin<strong>em</strong> dei, prorsus ignorabam.” ( Conf. III, VII, 12; CCL 27, p. 33).447


<strong>em</strong>inente, é Imutável e Incorruptível. A prática do mal degra<strong>da</strong> acima de tudo, aqueleque age contrariando a ord<strong>em</strong> do <strong>Ser</strong> 659 .Por último, o maniqueísmo é irracional <strong>em</strong> particular no que se refere à exegese aoAntigo Testamento. Sto. <strong>Agostinho</strong> discutirá, depois <strong>da</strong> sua conversão metafísica, asdivergências radicais que o separam <strong>da</strong> proposta de Mani, essencialmente <strong>da</strong>quelaacerca <strong>da</strong> natureza do Princípio e <strong>da</strong> concepção do múltiplo, ambos imersos, para essamundividência, numa estrutura de duali<strong>da</strong>de. Inversamente, para Sto. <strong>Agostinho</strong> o Unoe o Múltiplo celebram a ord<strong>em</strong>, <strong>da</strong>ndo lugar a uma relação efectiva. Por isso, só pod<strong>em</strong>ser compreendidos <strong>em</strong> ritmo trinitário.Contudo, na referi<strong>da</strong> passag<strong>em</strong> de Confessionum, ao mesmo t<strong>em</strong>po que o filósoforeconhece que partilhou com os Maniqueus as mesmas formas de interpretação bíblica,recusará agora a exegese maniqueísta que critica a vi<strong>da</strong> de Profetas e Patriarcas por sercontrária à lei e à justiça. Importa salientar o facto de este comentário incidir sobre umel<strong>em</strong>ento <strong>da</strong> mundividência augustiniana que completa o ror dos principais el<strong>em</strong>entosque faz<strong>em</strong> que o Filósofo de Hipona, considerando os princípios que sustentam omaniqueísmo e o cristianismo, reconheça o primado destes últimos, quandoconfrontados com aqueles. Trata-se <strong>da</strong> noção de historici<strong>da</strong>de, inalienável <strong>da</strong> relaçãoque o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o estabelece com os seres, sendo esta s<strong>em</strong>elhança ou conexãoentendi<strong>da</strong> <strong>em</strong> termos de dilectio ou caritas. Com efeito, a caritas é a categoria radicaldo <strong>Ser</strong> como <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. E é esse mesmo princípio que, unido a uma concepção progressiva<strong>da</strong> realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> no Mundo, permite compreender modos de vi<strong>da</strong> e costumes dehomens considerados justos pelos relatos do Velho Testamento, os quais,perspectivados à luz de uma Nova Aliança, não se tornam desordenados, mas perfeitosno seu t<strong>em</strong>po, não obstante ser<strong>em</strong> parcos de sentido, <strong>em</strong> face de uma nova reali<strong>da</strong>de.Assim acontece, de modo particular, quando tais eventos e atitudes se confrontam com aevidência trazi<strong>da</strong> à condição humana e à própria noção de t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de por umaPlenitude do T<strong>em</strong>po, que o filósofo identifica com o momento histórico <strong>da</strong> Incarnaçãodo Verbo 660 .Este excurso acerca dos principais el<strong>em</strong>entos que o Hiponense identifica comodesarrazoados na mundividência maniqueísta t<strong>em</strong> por objectivo sublinhar que o móbildos momentos cruciais que marcam as opções do filósofo por uma ou outra visão do659 Cf. Conf. III, VIII, 16 ( CCL 27, p. 35).660 Cf. Conf. III, VII, 13; III, VIII, 15 (CCL 27, p. 33-34; p. 35).448


mundo é a procura <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, a exigência de ord<strong>em</strong>. Assim, quando adere aomaniqueísmo, fá-lo <strong>em</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> de alteri<strong>da</strong>de. Igualmente, quando abandona estamundividência, fá-lo porque identifica aí uma noção de relação parca de possibili<strong>da</strong>des,ausente de sentido e de racionali<strong>da</strong>de – afinal, vazia de ord<strong>em</strong> -, preferindo uma outraconcepção de <strong>Ser</strong> onde encontrará consistência ontológica radical, para a essência dessanoção supr<strong>em</strong>a.Na metafísica cristã, Sto. <strong>Agostinho</strong> descobre uma proposta onde o Absoluto éentendido simultaneamente com Uni<strong>da</strong>de e Multiplici<strong>da</strong>de, aliás à s<strong>em</strong>elhança do que sepassa no Universo e, de modo muito peculiar, na forma do ser humano. Do mesmomodo, é por exigência de uma concepção de ord<strong>em</strong> que integre Uni<strong>da</strong>de e <strong>Relação</strong>,Alteri<strong>da</strong>de real - capaz de acolher o termo com que estabelece relação, s<strong>em</strong> o anular -,que o neoplatonismo entusiasma o filósofo. De facto, aí a exigência de Uni<strong>da</strong>de estárealiza<strong>da</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po que se garante a trin<strong>da</strong>de de hipóstases. Igualmente, Sto.<strong>Agostinho</strong> aproxima a expressão do discurso paulino aos Atenienses – in eo uiuimus,nos mou<strong>em</strong>us et sumus 661 – de quanto lê nos Platonicorum, no que se refere à relaçãoque se estabelece entre o Mundo criado e o Uno, facto que permite deduzir o duplosentido, ascendente e descendente, verificado <strong>em</strong> ritmo trinitário, que o Hiponenseidentifica no neoplatonismo. A <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, aqui entendi<strong>da</strong> com essência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, éa um t<strong>em</strong>po Simplex et Multiplex, facto que exige a sua natureza trinitária. É a partirdesta essência, Simplex et Multiplex, que a ord<strong>em</strong> se estende ao mundo criado,permitindo falar de uma hieraquia ontológica e de um princípio de racionali<strong>da</strong>desubjacente à relação entre to<strong>da</strong>s as formas dos seres: a ordo rerum.Porém, desde cedo Sto. <strong>Agostinho</strong> toma consciência de que entender <strong>em</strong> ritmoternário a reali<strong>da</strong>de supr<strong>em</strong>a, ou Absoluto, constitui uma magna quaestio. Nosprimeiros Diálogos, quando se confronta com ela, não a ignora, mas, como faz comtantas outras questões que então lhe ocorr<strong>em</strong> ao espírito, difere a análise 662 . Já <strong>em</strong> Deuera religione, o filósofo refere-se ao Deus, Uno e Trino, como a um único e mesmo661 Cf. Act. 17: 27-28. A expressão, também cita<strong>da</strong> <strong>em</strong> DT VIII, III, 5 para assinalar que o ser humanotende naturalmente para o B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o, de qu<strong>em</strong> depende, recor<strong>da</strong> necessariamente a trilogianeoplatónica – esse, uiuere, intellegere – na qual o movimento do espírito humano é concebido comoentendimento.662 Cf. DO II, V, 16 ( CCL 29, p. 115-116); BV IV, 35 ( CCL 29, p. 84-85); Ep. XI e XII ( CSEL 34/1, p.25-29); De diu. quaest. 83, qq. XVI; XVIII; XXIII; XLIII; L e LIII ( CCL 44A, p. 21; p. 23; p. 27-28; p.64; p. 77; p. 136); LA III, XXI, 60 ( CCL 29, p. 310-311).449


Princípio Criador, razão pela qual to<strong>da</strong>s as obras por ele realiza<strong>da</strong>s se revest<strong>em</strong> devestígios <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de. E, no Livro XIII de Confessionum, ensaia uma primeiraexplicação <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de mediante a análise <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus, impressa na mentehumana 663 , a qual irá ser objecto de peculiar atenção <strong>em</strong> De trinitate. Porém, o curso <strong>da</strong>re<strong>da</strong>cção de De trinitate está sulcado de interrupções, as quais não correspond<strong>em</strong> apenasa um necessi<strong>da</strong>de de gestão do t<strong>em</strong>po, mas reflect<strong>em</strong>, inclusivamente, a indecisão dofilósofo acerca <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de de um tal <strong>em</strong>preendimento 664 .No Proémio ao Livro primeiro de De trinitate 665 , Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que nessaobra se dirige aos adversários <strong>da</strong> fé, apontando, entre estes, os que se aferram a um usoperverso <strong>da</strong> razão. To<strong>da</strong>via, o leitor não enfrenta um escrito de carácter apologético,defrontando-se, antes, com um exercício prático de inteligência <strong>da</strong> fé 666 . A metodologia663 Cf. Conf. XIII, XI, 12 (CCL 27, p. 247). A trin<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, aqui proposta, é expressa pelos verbosesse, nosse, uelle, os quais traduz<strong>em</strong> as três operações que formam uma mesma mente humana. Em DT,<strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong> esta análise, mediante as trilogias mens, notitia, amor / m<strong>em</strong>oria, intellegentia,uoluntas, respectivamente objecto de in<strong>da</strong>gação nos Livros IX, X, e, finalmente, no Livro XIV, m<strong>em</strong>oriadei, intellegentia dei, dilectio dei. O referido parágrafo de Confessionum abre com a interrogação“Trinitat<strong>em</strong> omnipotent<strong>em</strong> quis intelleget?”; prossegue com a afirmação <strong>da</strong> infinita diss<strong>em</strong>elhança entre omeio de que se serve para compreender a trin<strong>da</strong>de – a mente humana - e a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de: longealiud sunt ista tria quam illa trinitas ; e conclui com a adesão de fé ao Deus três vezes <strong>Santo</strong>: “ Procede inconfessione, fides mea; dic domino deo tuo: sancte, sancte, sancte, domine deus meus...” (Conf. XIII, XII,13; CCL 27, p. 248).664 “ (...) De trinitate, quae deus summus et uerus est, libros iuuenis inchoaui, senex edidi.” ( Ep.CLXXIV, 1: CSEL 44, p. 650). Uma síntese completa e documenta<strong>da</strong> sobre a <strong>da</strong>ta de composição de Detrinitate pode ler-se <strong>em</strong> M. MELLET/ Th. CAMELOT, “La <strong>da</strong>te de composition du De trinitate”, inBibliothèque augustinienne. Oeuvres de saint Augustin 15, p. 557-566, onde se insiste no carácterinovador <strong>da</strong> proposta augustiniana de aceder à compreensão de Deus mediante uma análise profun<strong>da</strong> <strong>da</strong>mente enquanto imago Dei, facto que teria constituído um dos motivos de hesitação por parte de<strong>Agostinho</strong> à hora de tornar pública esta obra.665 Cf. DT I, I, 1 ( CCL 50, p. 27-28).666 Escreve E . HENDRICKX : “Au début du Ve siècle, la grande lutte trinitaire appartenait à un passédéjà quelque peu éloigné (…). Il y avait bien encore des ariens. (…). La polémique contre l’arianismegar<strong>da</strong>it donc sa raison d’être ; mais il ne pouvait en résulter aucune influence sur le développ<strong>em</strong>ent de ladoctrine à l’intérieur de l’Église. De toute évidence, l’arianisme se trouvait définitiv<strong>em</strong>ent hors del’Église » ( in Œuvres de saint Augustin, La Trinité. Bibliothèque augustinienne 15, p. 7 ). Se é um factoque a intenção de De trinitate não é primariamente apologética, parece excessivo afirmar que o arianismoestaria erradicado do seio <strong>da</strong> Ecclesia, nos alvores do século V. Recorde-se, a título de ex<strong>em</strong>plo, oconflito que <strong>Agostinho</strong> viveu de perto, nos anos de Milão, entre Ambrósio e Justina ( cf. Conf. IX, VII,450


é, por isso, conforme a esta dinâmica: por um lado, o recurso à Escritura, como fonte detest<strong>em</strong>unho; por outro, o esforço <strong>da</strong> inteligência, como arma para o exercício de umahermenêutica <strong>da</strong> qual resulte a constituição de uma mundividência coerente. Comohorizonte de fundo, a certeza do paradoxo.Este dinamismo pode verificar-se na própria orgânica do Tratado, não obstante ocarácter por vezes desconcertante <strong>da</strong> sequência <strong>da</strong> obra. Assim, a uma expositio fidei,proposta pelos primeiros quatro Livros segue-se, <strong>em</strong> De trinitate, o recurso à dialécticapara entender a essência paradoxal do Absoluto. Como <strong>Agostinho</strong> proclama, está <strong>em</strong>causa mostrar que há um só Deus, Trin<strong>da</strong>de, e que é absolutamente exacto afirmar,acreditar e entender que o Pai, o Filho e o Espírito santo são uma mesma essência ousubstância 667 .Posteriormente, entre os livros VIII e XV, o Filósofo de Hipona lança-se à tarefade entender a Trin<strong>da</strong>de divina modo interiore e <strong>em</strong>brenha-se na busca <strong>da</strong> essência doAbsoluto através <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus, inscrita na mente humana. Em qualquer caso,recorde-se que <strong>Agostinho</strong> se manterá fiel ao princípio paulino – per ea quae facta suntad inuisibilia Dei. De facto, quer a Escritura, quer o aparato conceptual <strong>da</strong> dialécticaaristotélica e porfiriana, quer o acolhimento por adesão fiducial à compreensão domistério, quer a leitura e interpretação dos escritos dos que precederam o Hiponense nomesmo intento, quer a própria mente humana, que o filósofo anela assumir como pontode parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>, são reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s. Um mesmo objectivo une, assim, De15: CCL27, p. 141). Hendrickx evidencia o facto de se poder falar de um corpus doctrinae definido porparte <strong>da</strong> Ecclesia nos Concílios de Niceia e Constantinopla e compilado sob forma de symbola fidei. Sto.<strong>Agostinho</strong> usufruiu desse património cultural e doutrinal na re<strong>da</strong>cção de De trinitate. To<strong>da</strong>via, a própriaaceitação do símbolo niceno-constantinopolitano não parece ser pacífica, e disso é test<strong>em</strong>unha o próprioDe trinitate, <strong>da</strong>do que o filósofo sente necessi<strong>da</strong>de de retomar a divergência entre o sentido dos termosenvolvidos no cerne <strong>da</strong> controvérsia entre Oriente e Ocidente, a fim de os esclarecer. Pela nossa parte,preferimos o recurso a argumentos de crítica interna, para compreender o tom <strong>em</strong> geral não pol<strong>em</strong>ista doDe trinitate de <strong>Agostinho</strong>. Com efeito, lê-se <strong>em</strong> Conf. XIII, XI, 12: “ Trinitat<strong>em</strong> omnipotent<strong>em</strong> quisintelleget? (...) Et contendunt et dimicant, et n<strong>em</strong>o sine pace uidet istam uision<strong>em</strong>. » (CCL 27, p. 247).Este parece ser o ambiente geral de De trinitate, no qual se procura afastar a conten<strong>da</strong>, pois há aconvicção de que s<strong>em</strong> paz não se obtém a inteligência do mistério. Noutros contextos, e por força decircunstância, Sto. <strong>Agostinho</strong> será obrigado à controvérsia, de que dão conta escritos como Contrasermon<strong>em</strong> arrianorum, Collatio cum Maximino ou Contra Maximum.667 A tarefa que se propõe o Hiponense é resumi<strong>da</strong> <strong>em</strong> DT I, II, 4: “(...) suscipi<strong>em</strong>us (...) reddere ration<strong>em</strong>,quod trinitas sit unus et solus et uerus deus, et quam recte pater et filius et spiritus sanctus uniuseuisd<strong>em</strong>que substantiae uel essentiae dicatur, cre<strong>da</strong>tur, intellegatur (...).” ( CCL 50, p. 31: it.n).451


trinitate: entender a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de mediante as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s. Por isso, é à luzdessa uni<strong>da</strong>de hermenêutica que tal Tratado deve ser abor<strong>da</strong>do, assim como to<strong>da</strong> ainquirição augustiniana acerca <strong>da</strong> essência, Una e Trina, do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Por seu turno,preserva<strong>da</strong> esta uni<strong>da</strong>de, a disposição segui<strong>da</strong> <strong>em</strong> De trinitate surge, até certo ponto,como aleatória, podendo inverter-se a ord<strong>em</strong> de leitura dos Livros s<strong>em</strong> prejuízo <strong>da</strong>coerência do discurso, reorganizando-a conforme se apresente mais operativa para acompreensão do objectivo perseguido.Efectivamente, na obra do Hiponense, a expositio mysterii caminha a par <strong>da</strong>análise <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> mente. O desafio que Sto. <strong>Agostinho</strong> se auto-propõe é o deencontrar uma via, através <strong>da</strong>s criaturas, que permita mostrar a existência de trêsreali<strong>da</strong>des que, apresentando-se separa<strong>da</strong>mente e constituindo-se como identi<strong>da</strong>des,actuam inseparavelmente, formando uma só reali<strong>da</strong>de. Na lhaneza <strong>da</strong> expressão –aliqua tria separabiliter proferunt et inseparabiliter operunt 668 -, o filósofo recolhe aessência do mistério e atinge o cerne <strong>da</strong>quilo que assume como objecto de mostraçãoacerca <strong>da</strong> natureza trinitária do Absoluto, a saber, a condição <strong>da</strong> essência divina, simplexet multiplex.A concepção de Absoluto identifica<strong>da</strong> com uma divin<strong>da</strong>de simultaneamente Una,na substância – simples, portanto, na essência –, e Trina, é um el<strong>em</strong>ento que Sto.<strong>Agostinho</strong> colhe na leitura <strong>da</strong> Bíblia. Por seu turno, <strong>da</strong><strong>da</strong> a plena consciência que possui<strong>da</strong> condição histórica do próprio Livro Sagrado, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, nele, se explana adispensação t<strong>em</strong>poral que caracteriza a relação entre o Criador e as criaturas, <strong>Agostinho</strong>não cessará de mostrar a uni<strong>da</strong>de e coerência, nos enunciados acerca <strong>da</strong> natureza deDeus, entre o conteúdo dos dois Testamentos, Antigo e Novo. Em ambos se narra arelação entre a Eterni<strong>da</strong>de, Imutável, e as obras que Ela realiza, forja<strong>da</strong>s no t<strong>em</strong>po eafecta<strong>da</strong>s pelo movimento. Por isso, insiste na identi<strong>da</strong>de entre o Deus que, no AntigoTestamento, se dirige a Moisés e se revela como Idipsum, designando-se a si mesmocomo Aquele que É – Qui Est –, e Aquele Deus que, assumindo, no t<strong>em</strong>po, naturezahumana, inaugura uma Nova Aliança com o Universo e diz de si mesmo ser idêntico aoPai - Ego et pater unum sumus -, abrindo, desta forma, caminhos inopinados para acompreensão do modo como se estabelece uma efectiva relação entre os humanos e oAbsoluto.668 Cf. <strong>Ser</strong>mo LII, 17-19 (RB 74, p.29-32).452


Ora, é precisamente no confronto <strong>da</strong> razão humana com a Escritura que nasce adificul<strong>da</strong>de de interpretação, inerente à afirmação de uma natureza divina simplex etmultiplex, pois nela se lê que o Absoluto é, simultaneamente, Essência – Um só, até àexclusivi<strong>da</strong>de, onde a Uni<strong>da</strong>de é Unici<strong>da</strong>de –, e <strong>Relação</strong>: Ego et Pater unum sumus 669 .Ensaiando uma hermenêutica deste aparente paradoxo, Sto. <strong>Agostinho</strong> aplica-lhe asua concepção <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de. É assim que se entende todo o esforço de interpretaçãoaugustiniana <strong>da</strong>s teofanias veterotestamentárias. De facto, para o Hiponense, elas sãoindícios proféticos de uma reali<strong>da</strong>de que só mediante a Incarnação do Verbo assumepleno sentido. De igual modo, é este o motivo pelo qual insiste na interpretaçãotrinitária do versículo de Génesis 1: 26. Na expressão faciamus homin<strong>em</strong> ad imagin<strong>em</strong>et similitudin<strong>em</strong> nostram, o filósofo vê uma peculiar manifestação de um Deus que,sendo Uno, mediante a auto-revelação do seu nome próprio – Ego Sum Qui Sum -,vela<strong>da</strong>mente deixa indícios, já no Antigo Testamento, <strong>da</strong> sua natureza trinitária, osquais, to<strong>da</strong>via, só pod<strong>em</strong> ser compreendidos quando tal essência é manifesta<strong>da</strong>, factoque, <strong>em</strong> relação ao curso dos t<strong>em</strong>pos, ocorre com a incarnação do Verbo.É sabido, mediante o Livro VII de Confessionum, que Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhecera,nos Platonicorum, uma imensa similitude entre a doutrina aí li<strong>da</strong> acerca do Princípio e aessência <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de tal como a concebe o cristianismo, a saber, como Uni<strong>da</strong>de naTrin<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, esta proximi<strong>da</strong>de conceptual não transparece de imediato a partir deuma leitura do trecho de Confessionum no qual o filósofo estabelece a aproximaçãoentre o que leu nos libri Platonicorum e o que compreendeu <strong>da</strong> doutrina cristã 670 . Oscontrastes aí presentes, acentuados mediante a expressão ibi legi / non ibi legi, através<strong>da</strong> qual o filósofo estabelece as fronteiras então apreendi<strong>da</strong>s entre cristianismo eneoplatonismo a propósito <strong>da</strong> essência do Princípio, não evidenciam, de modo imediato,a presença de uma trin<strong>da</strong>de, mas apenas de uma duali<strong>da</strong>de, a saber, aquela que seestabelece entre o Pai e o Filho. Acerca <strong>da</strong> terceira Pessoa, o Espírito <strong>Santo</strong>, na<strong>da</strong> se diz.Esta omissão é meramente factual, s<strong>em</strong> querer significar rejeição oudesconhecimento, por parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>da</strong> existência desta pessoa divina, cujareferência, como se indicou, já figurava nos textos maniqueístas. Porventura ela quereráapenas significar uma extr<strong>em</strong>a dificul<strong>da</strong>de, então senti<strong>da</strong>, e que se prolongará ao longo669 Paradoxalmente, esta expressão que pareceria indicar duali<strong>da</strong>de – ego et pater – revela, a uma análiseatenta, a presença de uma trin<strong>da</strong>de, precisamente no plural sumus, como se evidenciará ao atender àessência divina como relação trinitária.670 Cf. Conf. VII, IX, 13-14 ( CCL 27, p. 101-102).453


<strong>da</strong> sua obra, <strong>em</strong> discernir a Pessoa do Espírito e a essência, absolutamente espiritual, deDeus. Ora, esta mesma havia sido a descoberta que completara a concepção de Dei<strong>da</strong>deque permitira ao Hiponense abandonar definitivamente a mundividência maniqueísta,b<strong>em</strong> como os resquícios que ela deixara na sua mente, impedindo-a de conceber Deus àmarg<strong>em</strong> de um qualquer suporte material, mesmo que exíguo, como a extensão infinitaou a ideia de espaço associa<strong>da</strong> à disposição <strong>da</strong> matéria concebi<strong>da</strong> segundo um modelomat<strong>em</strong>ático e geométrico 671 . Assim, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> alcança a concepção de umDeus que é Espírito e se dedica a reflectir sobre a geração do Filho pelo Pai, assume,efectivamente, desde o primeiro momento, a concepção de um Deus-Trin<strong>da</strong>de, nãoobstante não distinga explicitamente, <strong>em</strong> particular na referi<strong>da</strong> narração deConfessionum, a especifici<strong>da</strong>de do Espírito como pessoa.Ao ritmo <strong>da</strong> expressão augustiniana - ibi legi, ibi non legi -, é possível estabelecerum paralelismo entre o que o filósofo leu dos Platonicorum, e com o qual ass<strong>em</strong>elha adivin<strong>da</strong>de cristã, e aquilo que aí encontra <strong>em</strong> falta. O paralelismo é estabelecido entre oPrólogo Joanino e alguns trechos que Solignac identifica como pertencentes a Plotino,nomea<strong>da</strong>mente nas Enneades I e V. Mas, se é ver<strong>da</strong>de que nos escritos de Plotino,sobretudo <strong>em</strong> Enneades V, é possível identificar uma trin<strong>da</strong>de de el<strong>em</strong>entos, através <strong>da</strong>qual o Alexandrino justifica a racionali<strong>da</strong>de do Mundo, o texto augustiniano deConfessionum com o qual Solignac estabelece paralelo não evidencia a mesma trin<strong>da</strong>de.Ante esta dificul<strong>da</strong>de, duas interrogações surg<strong>em</strong> de imediato: Qual a fonteaugustiniana para aceder à trin<strong>da</strong>de de hipóstases na divin<strong>da</strong>de cristã, na qual afirmacrer de modo irrefragável já nos designados Diálogos de Cassicíaco 672 ? E qual acompreensão augustiniana dos escritos neoplatónicos, no momento <strong>em</strong> que neles lê umas<strong>em</strong>elhança entre o Prólogo joanino, considera<strong>da</strong> pelo Hiponense a tal ponto próxima docristianismo que apenas teria aí escapado um pequeno pormenor, a saber, a referência àIncarnação do Verbo?A primeira interrogação t<strong>em</strong> uma resposta, se não exaustiva, no que se refere aoapuramento de fontes, pelo menos fácil: a trin<strong>da</strong>de cristã fora assimila<strong>da</strong> por Sto.<strong>Agostinho</strong> mediante a pregação de Ambrósio. Este é um facto indiscutível e pode ler-se,de modo explícito, <strong>em</strong> De beata uita, na invocação de Mónica perante a exposição <strong>da</strong>doutrina trinitária, enuncia<strong>da</strong> por seu filho. Mónica proclama o verso - foue precantes671 Cf. Conf. VII, I, 1-2; VII, V, 7 (CCL 27, p. 92-93; p. 96-97).672 Cf. BV IV, 34-35 ( CCL 29, p. 84-85); DO II, V, 15 ( CCL 29, p. 115).454


trinitas 673 . E <strong>Agostinho</strong> acrescenta, referindo o Bispo de Milão: sicut illum sacerdotisnostri 674 . Do mesmo modo, <strong>em</strong> De ordine encontra-se uma referência explícita àtrin<strong>da</strong>de cristã, onde o termo Intellectus, atribuído por Plotino à segun<strong>da</strong> hipóstase, éclaramente <strong>em</strong>pregue querendo significar o Verbo gerado pelo Pai, segun<strong>da</strong> pessoa <strong>da</strong>Trin<strong>da</strong>de cristã 675 .To<strong>da</strong>via, é preciso distinguir, já nestes primeiros escritos, aqueles enunciados aque Sto. <strong>Agostinho</strong> adere por fé inconcussa, como é o caso dos ora referidos 676 , e oesforço de inteligência <strong>da</strong> fé, no caso sobre a trin<strong>da</strong>de, adiados nas primeiras obras eaguar<strong>da</strong>ndo a atenção esmera<strong>da</strong>, por parte do filósofo, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate.Por isso, quando, <strong>em</strong> Confessionum, afirma ter visto os principais aspectos <strong>da</strong> doutrinacristã nos Platonicorum, não com as mesmas palavras, mas com identi<strong>da</strong>de deconteúdo, à excepção <strong>da</strong> incarnação do Verbo, torna-se complexo estabelecer, como fazSolignac 677 , o paralelismo entre a passag<strong>em</strong> do Prólogo joanino 678 referi<strong>da</strong> <strong>em</strong>Confessionum VII, IX, 13-14 – onde apenas se fala <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do Verbo <strong>em</strong> Deus –, e otexto de Enneades V, 1, 6 679 , onde a trin<strong>da</strong>de de hipóstases é claramente identifica<strong>da</strong>com a tríade neoplatónica Uno/ Intelecto/ Alma.De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebe-se <strong>da</strong> diferença essencial que existe entre estasduas propostas, a joanina e a neoplatónica, e di-lo abertamente <strong>em</strong> De ciuitate Dei 680 ,quando critica a proposta de Porfírio para a purificação <strong>da</strong>s almas através de estranhosrituais telúricos. De quanto pode apurar acerca <strong>da</strong> obra de Porfírio, <strong>Agostinho</strong> concluique o Biógrafo de Plotino teria, se não omitido a reali<strong>da</strong>de do Espírito santo ao falar <strong>da</strong>essência divina, pela certa referira-se-lhe de modo velado e imerso <strong>em</strong> ambigui<strong>da</strong>des.673 Hymno 4, str. 8, v. 29-32: « Christum rogamus et Patr<strong>em</strong>, / Christi Patrisque Spiritum, / unum potensper omnia; / foue precantes, trinitas. ” [Ambroise de Milan, Hymnes, p. 239].674 Cf. BV IV, 35 ( CCL 29, p. 84-85).675 Cf. DO I, X, 29; II, V, 15 ( CCL 29, p. 103-104 ; p. 115).676 O diálogo transcrito <strong>em</strong> DO I, X, 29 t<strong>em</strong> um carácter mais argumentativo, a recor<strong>da</strong>r os combatestravados <strong>em</strong> Milão e cont<strong>em</strong>porâneos <strong>da</strong> esta<strong>da</strong> de <strong>Agostinho</strong> na ci<strong>da</strong>de, entre católicos, com Ambrósio àcabeça, e arianos, alinhados com a mãe do imperador Maximino.677 A. SOLIGNAC, « Ce qu’Augustin dit avoir lu de Plotin » in Bibliothèque Augustinienne.Œuvres desaint Augustin 13, p. 683; 686.678 Jo. 1, 1-2. 13.679 Cf. Enn. V, 1, 6 [18-30.39-54 ( p. 22-23)].680 Cf. De ciu. dei X, XXIII ( CCL 47, p. 296-297).455


Porfírio fala de uma reali<strong>da</strong>de média, ou intermédia, cujo sentido ou função Sto.<strong>Agostinho</strong> diz não compreender.Por seu turno, comentando a posição de Plotino, o Hiponense afirma quereconhece aí três reali<strong>da</strong>des – o Pai, o Intelecto do Pai e a Alma <strong>da</strong> natureza, ou doMundo. Ora, se o Intelecto do Pai é menor do que o Pai, a Alma do Mundo ain<strong>da</strong> sepospõe ao Intelecto. De facto, <strong>em</strong> De ciuitate dei, <strong>Agostinho</strong> reconhece claramente anão identi<strong>da</strong>de de substância entre as três hipóstases plotinianas, afirmando, igualmente,que a ideia de uma mediação entre o Pai e o Intelecto do Pai, atribuí<strong>da</strong> por Porfírio auma certa reali<strong>da</strong>de média, poderia indiciar, pelo menos de modo velado, a concepçãocristã de Espírito <strong>Santo</strong>. To<strong>da</strong>via, o Hiponense acrescenta que estas liber<strong>da</strong>des só pod<strong>em</strong>ser concedi<strong>da</strong>s aos filósofos. Aos cristãos convém-lhes seguir uma regra exacta – comoa regula fidei, ou, no exercício <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé, a regra de atribuição –, pois aconcepção cristã a respeito <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de é inequívoca 681 .A questão supra enuncia<strong>da</strong> permanece, to<strong>da</strong>via. Onde teria Sto. <strong>Agostinho</strong>aprendido a doutrina <strong>da</strong>s hipóstases supr<strong>em</strong>as veicula<strong>da</strong>s pelo neoplatonismo? Asuposição de uma leitura de Enneades V, na tradução de Mário Vitorino, não é deexcluir, <strong>da</strong> mesma forma que se comprova o conhecimento de Aphormai e de Deregressu animae de Porfírio, por parte de <strong>Agostinho</strong>. Mas Solignac aponta, ain<strong>da</strong>, umaterceira fonte, para justificar este conhecimento: a presença de Simpliciano entre o ciclode amigos com qu<strong>em</strong>, <strong>em</strong> Milão, o Filósofo de Hipona partilhava as suas convicçõesintelectuais 682 .681 De ciu. dei X, XXIV: “ Nos itaque ita non dicimus duo uel tria principia, cum de Deo loquimur, sicutnec duos deos uel tres nobis licitum est dicere, quamuis de unoquoque loquentes, uel de Patre uel de Filiouel de Spiritu sancto, etiam singulum qu<strong>em</strong>que Deum esse fateamur, nec dicamus tamen quod haereticiSabelliani, eund<strong>em</strong> esse Patr<strong>em</strong>, qui est et Filius, et eund<strong>em</strong> Spiritum sanctum, qui est et Pater et Filius,sed Patr<strong>em</strong> esse Filii Patr<strong>em</strong>, et Filium Patris Filium, et Patris et Filii Spiritum sanctum nec Patr<strong>em</strong> essenec Filium.” ( CCL 47, p. 297). V., também, De ciu. dei X, XXIX (CCL 47, p. 304-307). Esta é uma <strong>da</strong>ssínteses <strong>da</strong> doutrina trinitária exposta por <strong>Agostinho</strong> na sequência do comentário à doutrina plotiniana eporfiriana <strong>da</strong>s hipóstases. Note-se que a obra do Hiponense é pródiga neste tipo de symbola fidei.682 Recor<strong>da</strong>ndo que entre a conversão de <strong>Agostinho</strong> e a re<strong>da</strong>cção de Confessionum se interpõe umconsiderável período de t<strong>em</strong>po, Solignac escreve: “(…) Il est probable d’ailleur que, <strong>da</strong>ns les Confessions[Augustin] projette le fruit des réflexions ultérieures: en particulier les analogies de la doctrine néoplatoniciennedes trois hypostases avec le dogme chrétien de la Trinité relèvent sans doute des entretiensavec Simplicianus plutôt que des lectures elles-mêmes » ( Cf. A. SOLIGNAC, « FormationPhilosophique d’Augustin », in Œuvres de saint Augustin, Les Confessions. Bibliotheque augustinienne456


Seja qual for a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> influência que <strong>Agostinho</strong> sofreu por parte dosPlatonicorum, é indiscutível a consciência que possui, desde o primeiro momento <strong>da</strong>sua conversão metafísica, <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de que des<strong>em</strong>penham na inteligência docristianismo quer a identi<strong>da</strong>de de substâncias na trin<strong>da</strong>de de pessoas, quer a incarnaçãodo Verbo. Atendo-se à autori<strong>da</strong>de de Cristo, como afirma, irá, doravante, procurar ainteligibili<strong>da</strong>de dos paroxismos inerentes ao cristianismo. Estes el<strong>em</strong>entos separam,efectivamente, a concepção trinitária de <strong>Agostinho</strong> <strong>da</strong> neoplatónica, <strong>da</strong>do que estaúltima rejeita os três princípios enunciados a propósito e propostos pelo cristianismo:identi<strong>da</strong>de de substância, na Trin<strong>da</strong>de divina; Incarnação do Verbo e,consequent<strong>em</strong>ente, aceitação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de de Cristo.Inversamente, na óptica augustiniana, duas vias são possíveis para a compreensão<strong>da</strong> essência, Una e Trina, <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de inerente à proposta cristã: a adesão fiducial aosmistérios mediante a autori<strong>da</strong>de de Cristo e o esforço racional de inteligência <strong>da</strong> fé.Uma e outra não apenas não se exclu<strong>em</strong> como pod<strong>em</strong> e dev<strong>em</strong> estabelecer fecundodiálogo. No que diz respeito à inteligência <strong>da</strong> natureza paradoxal do Absoluto - Deus,Uno e Trino -, a razão humana <strong>em</strong>preendeu esforços cujo efeito, ao t<strong>em</strong>po de<strong>Agostinho</strong>, formava já um corpo de doutrina, excluindo, para a compreensão <strong>da</strong>essência divina, um conjunto de interpretações. Portanto, será com base nessepatrimónio que o Hiponense ensaia uma explicação <strong>da</strong> natureza do Absoluto 683 .13, p. 104). O A. recor<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, a referência de Sto. <strong>Agostinho</strong>, <strong>em</strong> De ciu. dei X, XXIX ( CCL 47, p.304-307) aos ensinamentos de Simpliciano acerca de um certo Platonicus que gostaria de ver escrito, noportal de to<strong>da</strong>s as igrejas, o Prólogo joanino, texto que recor<strong>da</strong> o paralelismo estabelecido peloHiponense, <strong>em</strong> Conf. VII, IX, 13-14 ( CCL 27, p. 101-102), entre o Prólogo do Evangelho de S. João e asdoutrinas neoplatónicas sobre as hipóstases. (V. também, P. COURCELLE, Recherches sur lesConfessions…, p. 168-174). To<strong>da</strong>via, n<strong>em</strong> a presença de Simpliciano, n<strong>em</strong> a de Ambrósio justificam, porsi só, a trajectória leva<strong>da</strong> a efeito por Sto. <strong>Agostinho</strong>, já nos primeiros escritos, acerca <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de cristã.Efectivamente, é à sombra <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de de Cristo que o filósofo diz repousar, após a sua conversão, ecertamente é mediante uma peculiar atenção do espírito a to<strong>da</strong>s as formas de admonitio que se iráconstituindo a concepção augustiniana de Trin<strong>da</strong>de.683 Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> consciência deste corpus doctrinae e <strong>em</strong>prega mesmo expressões como traditioecclesiae uniuersalis como se lê <strong>em</strong> Contra Iulian. VI, XXII, 69: “ (...) In secundo quoque libro satisegimus, ut appareat quam non sit, qu<strong>em</strong>admodum conuiciaris, conspiratio perditorum; sed sanctorum eteruditorum ecclesiae catholicae patrum pius fidelisque consensus, qui haereticae uestrae nouitati resistuntpro antiquissima catholica ueritate.” ( PL 44, 865). V. também, v. gr, Ep. LIV, 2: CSEL 34/2, p. 161. Noâmbito dos costumes ou de liturgia, refere também as antiquissimae ecclesiae traditiones (cf. v. gr. <strong>Ser</strong>moCCLII, IX, 9: PL 38, 1176) ; sobre o legado de S. Cipriano, na tradição do baptismo <strong>da</strong>s crianças, v. gr.,457


O esclarecimento <strong>da</strong> natureza Simples e Múltipla <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, efectuado com baseno comentário ao que, a este respeito, se pode colher na Escritura, obtivera, ao t<strong>em</strong>po de<strong>Agostinho</strong>, o seu ápice nos concílios de Niceia e Constantinopla. No cerne <strong>da</strong> polémicaestava, aparent<strong>em</strong>ente, uma confusão de palavras, um equívoco inerente às angústias <strong>da</strong>tradução. De facto, gregos e latinos não se entendiam a respeito do termo exacto paraarticular a expressão que, no nosso idioma, se pode enunciar deste modo: umasubstância, três pessoas.Porém, uni<strong>da</strong> à dificul<strong>da</strong>de de expressão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de paradoxal que a Escrituraenuncia acerca do divino, acrescia, ao calor <strong>da</strong> polémica entre arianos e católicos, ocarácter extra bíblico <strong>da</strong>s categorias <strong>em</strong>pregues nas formulae fidei. Em causa estava,fun<strong>da</strong>mentalmente, a interpretação de dois passos bíblicos: o texto de Jo. 10: 30, onde selê “ego et pater unum sumus”, e o versículo de Jo. 14: 28 - que, a uma primeira leitura,contradiz aquele primeiro - e onde se lê: “pater maior me est” 684 . Em Niceia, aexpositio fidei fizera-se por recurso às categorias filosóficas <strong>em</strong>brenha<strong>da</strong>s na polémica,num esforço por as <strong>em</strong>pregar s<strong>em</strong> equivoci<strong>da</strong>de. Surge, assim, a expressão♓ para indicar a identi<strong>da</strong>de de essência entre o Pai e o Filho.Um dos argumentos arianos para rejeitar a formula fidei resultante de Niceiaapoiava-se, precisamente, no carácter extraescriturístico <strong>da</strong>quele termo grego. Comefeito, ele encontra-se nas obras dos filósofos, não na Escritura Sagra<strong>da</strong>. Estar<strong>em</strong>os<strong>Ser</strong>mo CCXCIV, XX, 19 ( PL 38, 1347); sobre a tradição do canto na liturgia, veja-se, v. gr., Enarr. inPs. CVI, 1 « (...) Quod nobis cantare certo t<strong>em</strong>pore soll<strong>em</strong>niter moris est, secundum ecclesiae antiquamtradition<strong>em</strong>; neque enim et hoc sine sacramento certis diebus cantamus. » (CCL 40, p. 1570). No que serefere à doutrina exposta <strong>em</strong> De trinitate, o filósofo proclama a sua dívi<strong>da</strong> para com Hilário de Poitiers(Cf. DT VI, X : CCL 50, p.181-183; XV, III: CCL 50A, p. 462-467) e, para divergir de uma talinterpretação, acusa o conhecimento de uma exegese de tradição oriental que concebe a Trin<strong>da</strong>de comofamília ( cf. DT, XII, V, 5: CCL 50, p. 359-360). Para a filiação oriental desta exegese, v. BlancaCASTILLA Y CORTÁZAR, “La trini<strong>da</strong>d como familia. Analogía humana de las procesiones divinas” :Annales Theologici 10 ( 1996), 381-416, spec. 396-412.684 Sto. <strong>Agostinho</strong> recolhe-os na Ep. CCXXXVIII, a Pascêncio, ao proclamar a sua fé, satisfazendo,assim, uma d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> deste partidário do arianismo. O comentário dos referidos passos bíblicos serãomúltiplas vezes objecto de atenção do Hiponense, <strong>em</strong> diferentes contextos. Cf., v. gr., De diu. quaest 83,q. LXIX; In Iohan. Ev. Tract. (v., principalmente, XXIII, 13: CCL 36, p. 240); Enarr. in Ps. LXIII, 13(CCL 39, p. 814-815); CXXXVIII, 3 (CCL 40, 1991); <strong>Ser</strong>mones, espec. 91, 117, 139, 187, 264 e 265A;De fide et symbolo; De trinitate, onde expõe a sua doutrina ao respeito; e, naturalmente, as obras ondeenfrenta o arianismo presente <strong>em</strong> Hipona: Collatio cum Maximino, Contra Maximinum e Contrasermon<strong>em</strong> Arrianorum.458


perante uma peculiar sensibili<strong>da</strong>de, por parte <strong>da</strong> frente ariana, à distinção entre Filosofiae Teologia, entre o Profano e o Sagrado, mormente no que se refere à expressãolinguística? Não é de crer, <strong>da</strong>do que os próprios partidários do arianismo <strong>em</strong>pregavamtermos de procedência extra bíblica 685 , socorrendo-se, inclusivamente, <strong>da</strong>s mais cerra<strong>da</strong>scategorias lógicas, para expor as suas doutrinas acerca <strong>da</strong> confluência, <strong>em</strong> Deus, <strong>da</strong>uni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de 686 .Na sua crítica ao arianismo de Eunómio, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que, baseandosena distinção aristotélica 687 entre substância e acidentes, o adversário <strong>da</strong> fé lograintroduzir, no Absoluto, uma cisão entre Essência e Pessoas. O raciocínio eunomianopode resumir-se do seguinte modo: tudo o que se diz de um sujeito designa,necessariamente, ou substância ou acidente. Ora, <strong>em</strong> Deus, na<strong>da</strong> há de acidental, <strong>da</strong>doque, se assim não fosse, teria de admitir-se, no Absoluto, a mutabili<strong>da</strong>de. Logo, to<strong>da</strong> apredicação, <strong>em</strong> Deus, se diz segundo a substância.685<strong>Agostinho</strong> faz notar precisamente este facto a Pascêncio o qual, rejeitando o termo grego☺♓ do símbolo nicenoconstantinopolitano, assume, contudo, o termo ingenitus. Ora,tal termo também não se encontra na Escritura (cf. v. gr., Ep. CCXXXVIII, 1: CSEL 57, p. 536).Recor<strong>da</strong>ndo o seu princípio hermenêutico essencial - res non uerba -, o Hiponense insiste, uma vez mais,que o acordo entre os que dialogam se encontra na ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas, e que é estéril a discussão acercade palavras. Sendo um facto que os termos <strong>em</strong> causa não constam <strong>da</strong> Bíblia, também o é que a reali<strong>da</strong>deque, por meio deles, se quer significar, aí está presente.686 Este parece ser o caso de Eunómio, cuja doutrina Sto. <strong>Agostinho</strong> rebate principalmente nos livros V aVII de De trinitate, mediante uma exposição de cariz técnico e recorrendo a uma dialéctica cerra<strong>da</strong>, poisse dirige a um adversário que <strong>em</strong>punha estas armas com destreza e agressivi<strong>da</strong>de. Eunómio, bispo arianode Cízico <strong>em</strong> 360, teria conferido à doutrina ariana a sua forma mais acaba<strong>da</strong>, her<strong>da</strong>ndo de Aécio, seumestre, de qu<strong>em</strong> foi secretário, <strong>em</strong> Alexandria, uma filosofia de cariz racionalista, aferra<strong>da</strong> a umadialéctica mecânica, puramente formal, a tal ponto cerra<strong>da</strong> que, no dizer de Teodoreto, Eunómio teriaaplicado à teologia as argúcias <strong>da</strong> dialéctica, tendo proferido abertamente blasfémias contra o Unigénito eo espírito santo (Theodoretus, Haereticarum Fabularum Compendium IV, III, De Eunomio et Aetio: PG83, 420b), proclamando conhecer tudo acerca <strong>da</strong> essência divina, com a mesma clareza com que a simesmo se conheceria ( Ibid. 422A). São estas artimanhas e esta soberba de espírito que <strong>Agostinho</strong>enfrenta <strong>em</strong> De trinitate, descrevendo tal atitude como maxime callidissimum machinamentum ( cf. DTV, III, 4: CCL 50, p.208-209). Sobre EUNÓMIO, v. DTC, t. V, p. II. Col. 1501-1514. V., também, I.CHEVALIER, Saint Augustin et la pensée grecque. Les relations trinitaires (Fribourg in Suisse 1940), p.33.687 Sobre a génese <strong>da</strong> doutrina ariana a a discussão <strong>da</strong> sua filiação, platónica ou aristotélica, v. X. L. DEBACHELET, in DTC I ( Paris 1923), 1789-1791. O A. evidencia o sincretismo que envolve ospressupostos arianos, s<strong>em</strong> ser possível neles d<strong>em</strong>arcar fronteiras níti<strong>da</strong>s entre escolas filosóficas.459


O mesmo raciocínio é aplicado aos atributos ingenitus e genitus. Um e outro,tendo Deus por referência, não obstante indicar<strong>em</strong> um modo de processão, não pod<strong>em</strong>designar nenhuma reali<strong>da</strong>de acidental. Resta, então, que se apliqu<strong>em</strong> à substância deca<strong>da</strong> um dos termos a que se refer<strong>em</strong>. Ora, a fim de salvaguar<strong>da</strong>r o princípio de nãocontradição,um mesmo suppositum não pode ser, simultaneamente, ingénito e gerado,na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ambos atributos são termos opostos. Por conseguinte, Eunómioconclui que as Pessoas, ingénita e gera<strong>da</strong>, são substâncias distintas, opostas eessencialmente diferentes.Ao comentar a posição de Eunómio, Sto. <strong>Agostinho</strong> faz notar que, na perspectivaariana, quando se concebe a essência divina como simplex et multiplex, não se querindicar a existência de Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de, expressão <strong>em</strong> si mesma contraditória. Defacto, o que se afirma <strong>em</strong> tal expressão é a existência, entre as pessoas divinas, de umaunião sustenta<strong>da</strong> num modelo de relação. Porém, à luz <strong>da</strong> tabela aristotélica depredicamentos, esta união há-de considerar-se s<strong>em</strong>pre acidental, pois assim é entendidoo predicamento relação. Ora, aplicando este modelo de relação à substância divina,introduz-se nela, necessariamente, um princípio de subordinação, o qual supõeconsiderar a existência, <strong>em</strong> Deus, de uma graduação de hipóstases, rejeitando aprocessão eterna. Ao considerar, no interior <strong>da</strong> essência divina, a relação como umpredicamento acidental, introduz-se, na Dei<strong>da</strong>de, a qualificação do <strong>Ser</strong> segundo maius etminus e, por conseguinte, admite-se, na noção supr<strong>em</strong>a, uma maior e menor densi<strong>da</strong>deontológica. Nesta perspectiva, para defender a diferença de hipóstases a fim deconsiderar o Absoluto como <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, é inevitável introduzir a degra<strong>da</strong>ção ontológica noâmago <strong>da</strong> essência divina 688 .688 Cf. DT V, VI, 7 (CCL 50, p. 211-212). A degra<strong>da</strong>ção ou subordinação decorre necessariamentequando se pretende conceber a distinção de pessoas, na Dei<strong>da</strong>de, a partir do predicamento relaçãocompreendido a modo de acidente. Esta é, com efeito, a tese ariana, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhecena Ep. CCXXXVIII, IV: “ (...) iam hoc mirabile est, si uerum est, quod uos audio dicere, ita esse spiritumsanctum minor<strong>em</strong> filio, sicut pater minor est filius.” (CSEL 57, p. 549). A correspondência, breve masesclarecedora, <strong>da</strong> divergência de posições entre <strong>Agostinho</strong> e Pascêncio, de que dão conta as EpístolasCCXXXVIII-CCXLI, t<strong>em</strong> peculiar interesse, pois regista um enfrentamento directo entre o bispo deHipona e um partidário do arianismo, num período cont<strong>em</strong>porâneo <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção de De trinitate. V.,também, Ep. CLXX, 5 ( CSEL 44, p. 625-626); e a declaração explícita acerca desta doutrina, <strong>em</strong> Enarr.in Ps. CXXX, 11: “ (...) illi aut<strong>em</strong> haeretici uolentes disputare de eo quod non poterant capere, dixeruntquia filius minor est quam pater, et dixerunt quia spiritus sanctus minor est quam filius; et feceruntgradus, et immiserunt in ecclesiam tres deos.” ( CCL 40, p. 1097: it. n.).460


Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a tentativa de entender a natureza de Deus, a um t<strong>em</strong>poSimples e Múltipla, com base nos predicamentos aristotélicos de substância e acidenteredun<strong>da</strong> numa única disjunção: ou arianismo ou sabelianismo 689 . Ex radice, é este oesqu<strong>em</strong>a que refutará, sobretudo entre os Livros quinto a sétimo de De trinitate, aoexpor a sua doutrina acerca <strong>da</strong> natureza, Una e Trina, de Deus, fazendo uso dos mesmosinstrumentos dialécticos <strong>em</strong>pregues na controvérsia ariana. Destarte, são as categoriasde relação, substância e pessoa que aí merec<strong>em</strong> a peculiar atenção do Hiponense, cujaanálise evidencia o limite <strong>da</strong> aplicação dos predicamentos aristotélicos na compreensão<strong>da</strong> essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de como relação.Efectivamente, a exposição augustiniana acerca <strong>da</strong> essência divina, Trin<strong>da</strong>de naUni<strong>da</strong>de, põe de lado uma concepção do divino basea<strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong> disjunçãoexclusiva. Sto. <strong>Agostinho</strong> procurará integrar as aparentes contradições num processodinâmico e dialógico, no qual se manifestará, paulatinamente, uma essencialdivergência entre a noção de Uni<strong>da</strong>de, presente no arianismo e aquela defendi<strong>da</strong> peloHiponense.Com efeito, as doutrinas basea<strong>da</strong>s nos supostos de Ario não admit<strong>em</strong>comunicabili<strong>da</strong>de, no interior do Uno, confundindo, assim, Uni<strong>da</strong>de e Individualismoou Segregação. Inversamente, Sto. <strong>Agostinho</strong> introduzirá a própria noção de relação noseio <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a, rejeitando qualquer concepção de divin<strong>da</strong>de - de <strong>Ser</strong> ou deAbsoluto - que não seja, ela mesma e por essência, comunicação e relação eternas. Paratal, o filósofo terá de introduzir a diferença no interior <strong>da</strong> própria Uni<strong>da</strong>de e desustentar, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essência. Fá-lo-á analisando a categoria derelação, até arre<strong>da</strong>r dela o carácter acidental que Aristóteles lhe atribuíra. Rompendocom o esqu<strong>em</strong>a aristotélico, o Hiponense falará de uma relação subsistente, de umauni<strong>da</strong>de comunicando-se eternamente no interior de si mesma, afinal, de uma reali<strong>da</strong>deonde identi<strong>da</strong>de e diferença flu<strong>em</strong> activamente, numa dinâmica que escapa aoentendimento humano, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, acima de tudo, ela se situa fora do t<strong>em</strong>po e àmarg<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> a mutação 690 .689 Em DT V, IX, 10, Sto. <strong>Agostinho</strong> resume a posição do sabelianismo, na controvérsia trinitária: “(...)Non enim dixit 'unum est,' quod sabelliani dicunt, sed unum sumus.” (CCL 50, p. 217). V., também, DTVII, IV ( CCL 50, p. 274-76); De ciu. dei, XI, X ( CCL 48, p. 330-332); De haer. XLI ( CCL 46, p. 307-309).690 Escreve CHEVALIER: “ La thèse fon<strong>da</strong>mentale du dogme trinitaire augustinien et catholique revêtune forme bipartite, identité-distinction, dont les m<strong>em</strong>bres ne se suffisent pas isolément ni ne se461


Nos alvores do século IV, as escolas de Antioquia e de Alexandria sãoprotagonistas <strong>da</strong> controvérsia trinitária. Com efeito, se a primeira insistia sobre aUni<strong>da</strong>de divina, quase até à justaposição desta sobre a relação trinitária, aquela outrainsistia sobre a Trin<strong>da</strong>de, mas quase considerando ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s Pessoassepara<strong>da</strong>mente, não obstante a insistência na priori<strong>da</strong>de de orig<strong>em</strong> do Pai sobre asd<strong>em</strong>ais processões divinas. A perspectiva alexandrina, <strong>em</strong>bora correndo o risco de fácilcedência ao subordinacionismo, ao introduzir um princípio de dependência no interior<strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, acabaria por vingar, de alguma forma, na formula fidei de Niceia, queafirmava a consubstanciali<strong>da</strong>de do Pai e do Filho.Não obstante a confusão de palavras entre gregos e latinos, que Sto. <strong>Agostinho</strong>não deixa de acentuar 691 , a interpretação latina aproximar-se-á <strong>da</strong> alexandrina, <strong>em</strong>boraassuma como ponto de parti<strong>da</strong>, de modo geral, a Uni<strong>da</strong>de divina 692 . Partindo <strong>da</strong>raccordent <strong>da</strong>ns une synthèse supérieure, humain<strong>em</strong>ent concevable et formulable. On ne peut les définirni <strong>da</strong>ns leur Être séparé, ni <strong>da</strong>ns leur conjonction indistincte. C'est propr<strong>em</strong>ent là une faille inhérente ànotre pensée, une impuissance radicale à <strong>em</strong>brasser la vie infinie <strong>da</strong>ns son unité distincte et indivise. Leshérésies s'attaquent à l'un puis à l'autre de ces deux groupes d'affirmation, idéntité-distinction. Avec desnuances variées, ou elles ne distinguent plus les personnes, ou elles les divisent." ( Cf. Op. cit., p. 31).691 Cf. DT V, II, 3 ( CCL 50, p. 207-208). Para a compreensão <strong>da</strong> história do termo essentia veja-se M.MELLET- Th. CAMELOT, “Essence et substance”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saintAugustin 15, p. 584; Gustave BARDY,“ Pour l’histoire du mot ‘essentia’” in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saint Augustin 35 (1959) 494-496. Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma estar perante um neologismo –nouo nomine -, sinónimo de substância. Os antigos, que não possuíam estes vocábulos, usavam o termonatura [Cf. De moribus II, II, 2: CSEL 90, p. 89-90 ; DT VII, VI, 11: CCL 50, p.261-265)]. Palavraintroduzi<strong>da</strong> no latim para traduzir o termo grego ♓♋, já <strong>em</strong> De trinitate Sto. <strong>Agostinho</strong> indicaque, mais corrent<strong>em</strong>ente, se <strong>em</strong>pregava o termo substantia, <strong>em</strong> vez de essentia. Confirma, igualmente,que o termo essentia adquiriu sinonímia com o termo substância, tendo-se tornado habitual, na linguag<strong>em</strong>fala<strong>da</strong>. Foi esta a forma encontra<strong>da</strong> pelos multi Latini ista tratanti para indicar com palavras aquilo quecompreendiam s<strong>em</strong> palavras ( cf. DT V, VIII, 9-IX, 10: CCL 50, p. 215-217). V. também, Ep. CXX, 3 :CSEL 34/2, p. 719; De ciu. dei XII, II : CCL 48, p. 356-357.692 Sto. <strong>Agostinho</strong> refere o trabalho dos seus antecessores na tarefa de esclarecer a natureza una e trina doAbsoluto, mas a única referência explícita à tradição ocorre <strong>em</strong> DT VI, X, 11 e XV, III, 5, indicando o Detrinitate de Hilário de Poitiers. To<strong>da</strong>via, um conhecimento de Tertuliano e de Ambrósio não é de excluir.Em De doctr. christ. IV, XXI, 46 ( CCL 32, p. 152-153) há uma citação do De spiritu sanctu de Sto.Ambrósio ( Ambrosius, De spiritu santo I, prol. 2-3: CSEL 79, p. 16). A presença de Tertuliano na obrade Sto. <strong>Agostinho</strong>, por seu turno, está pouco estu<strong>da</strong><strong>da</strong>, dedicando-se actualmente a essa tarefa o Prof. N.CIPRIANI. As referências explícitas na obra augustiniana àquele autor africano não indiciam a doutrinatrinitária, situando-se, fun<strong>da</strong>mentalmente, no âmbito <strong>da</strong> doutrina sobre a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas e a sua462


Uni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> divino, o filósofo adopta, por conseguinte, o princípio <strong>da</strong>consubstanciali<strong>da</strong>de, mas quer evitar, a todo o custo, uma separação, sequer analítica oumetodológica, entre a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Essência e a Trin<strong>da</strong>de divina. O Absoluto é, para<strong>Agostinho</strong>, Uno e Trino, como se verifica pelo <strong>em</strong>prego recorrente, ao longo <strong>da</strong> suaobra, de expressões como Deus trinitas, Vnitas Trinitas, Deus Trinitatis, Vna Trinitas etTrina Vnitas. E, não obstante a dificul<strong>da</strong>de de separar aquilo que o próprio filósofo querfazer entrar <strong>em</strong> simbiose, comprova-se que, mais do que a noção de Trin<strong>da</strong>de, é a ideiade Uni<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong> reformula, face à concepção alexandrina de que oarianismo é devedor. Em consequência de uma tão díspar forma de conceber a Uni<strong>da</strong>de,a própria noção de Trin<strong>da</strong>de dissociar-se-á, de modo natural, nas versões augustiniana eariana <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.Em De trinitate, Sto. <strong>Agostinho</strong> defende que a essência divina é Una e Trina,tomando como ponto de parti<strong>da</strong> os argumentos dos arianos que contestam a lógicaintrínseca <strong>da</strong> afirmação do Evangelho de S. João: Ego et pater unum sumus 693 . É sabidoque Sto. <strong>Agostinho</strong>, além <strong>da</strong>s Categorias de Aristóteles, que lera na juventude 694 , teriatido acesso à Isagoge de Porfírio, na versão latina de Mário Vitorino. Com efeito, aopeculiar forma de união com o corpo [ cf. v. gr. Ep. CXC, I, 4: CSEL 57, p. 140-141; De gen. ad litt. X,25-26: CSEL 28/1, p. 328-332; De haer. LXXXVI: CCL 46, p. 338-339); De nat et orig. anim. II, V, 9:CSEL 60, p. 342); <strong>em</strong> contexto de costumes (<strong>em</strong> causa, a proibição, por parte de Tertuliano, <strong>da</strong>s segun<strong>da</strong>snúpcias no caso de viuvez: cf. v. gr. De bono uiduitatis, IV, 6-V, 7: CSEL 41, p. 309-310); e, numaindicação de carácter cronológico sobre o surgimento do maniqueísmo <strong>em</strong> África, o qual, no dizer de<strong>Agostinho</strong>, seria posterior a Tertuliano e mesmo a Cipriano de Cartágo ( cf. Contra Faustum XIII, IV:CSEL 25/1, p. 381 )].693 Jo. 10: 30.694 Cf. Conf. IV, XVI, 28 ( CCL 27, p. 54). Esta obra de Aristóteles fora abun<strong>da</strong>nt<strong>em</strong>ente comenta<strong>da</strong> nosprimeiros séculos <strong>da</strong> era cristã, <strong>em</strong> particular pelos neoplatónicos Jâmblico e Porfírio. Simplicius enumeraos comentadores que o precederam, na Introductio ao seu próprio comentário e avalia esses trabalhos [Cf.Simplicius. Commentaire sur les Catégories d’Aristote I ( versão latina atribuí<strong>da</strong> a Guilherme deMOERBEKE). Leiden 1975, p. 1-4]. De acordo com Solignac, a versão <strong>da</strong>s Categorias de Aristóteles aque <strong>Agostinho</strong> teria tido acesso seria de Marius Victorinus (Cf. A. SOLIGNAC Oeuvres de SaintAugustin, Les Confessions, Bibliothèque Augustinienne 13, p. 87-88, n. 1). P. Hadot mostrou os limitesdesta hipótese, pois tal versão de Victorinus não subsistiu nas referências <strong>da</strong> tradição do texto posterior,mormente as feitas por Boécio e Cassiodoro, as quais não confirmam a existência <strong>da</strong>quela versão [Cf. P.HADOT, Marius Victorinus (Paris, 1971), p. 109-110; p.187-188]. Sobre a tradição de texto <strong>da</strong>sCategorias de Aristóteles no Mundo Latino, v. Lorenzo MINIO PALUELLO, «The Text of theCategoriae : The Latin Tradition»: The Classical Quarterly 39 (1945), p. 63-74.463


enfrentar aqueles que designa por adversários <strong>da</strong> sua fé, fá-lo-á colocando-se no mesmoplano do interlocutor: o <strong>em</strong>prego <strong>da</strong> lógica dialéctica. Não estranha, por isso, que, paraexplicar de que modo, s<strong>em</strong> contradição, se pode afirmar, <strong>da</strong> essência divina, a umt<strong>em</strong>po, a simplici<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de, o filósofo se socorra <strong>da</strong> distinção entresubstância e acidentes e, de entre estes predicamentos, fixe a atenção na noção derelação.Ao interpretar o passo bíblico de Jo. 10: 30, o Hiponense afirma, desde logo, que auni<strong>da</strong>de é aí dita secundum substantiam, <strong>da</strong>do que, se assim não fosse, de acordo com atabela aristotélica, sê-lo-ia de modo acidental. <strong>Agostinho</strong> faz notar que o Absoluto nãotolera a predicação acidental senão metaforicamente, pois todo o acidente implicamutação, real ou possível, e to<strong>da</strong> a mutação implica afecção t<strong>em</strong>poral. Mas o Absolutoé, para o filósofo, Imutável e Eterno, como ensina o nome de essência revelado aMoisés – Sum qui sum 695 . Caso contrário, colocar-se-ia ao nível <strong>da</strong>s criaturas, perderia aUnici<strong>da</strong>de, o facto de ser totalmente Outro, e deixaria de corresponder à noção de Deusde acordo com a definição já <strong>da</strong><strong>da</strong> e analisa<strong>da</strong> <strong>da</strong> suma perfeição, noção óptima,Ver<strong>da</strong>de Imutável, Essência Eterna, Comunicação Inefável 696 .695 O <strong>Ser</strong>mo VII é paradigma <strong>da</strong> interpretação augustiniana de Ex. 3:14 no sentido profético de umarevelação de essência trinitária <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, no caso não tanto <strong>em</strong> si mesma, mas por relação àhumani<strong>da</strong>de, que toma a seu cargo, ocupando-se <strong>da</strong> condição histórica que a caracteriza. Assim o Deusque se revela como Qui est – Idipsum, é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob ( CCL 41, p. 70-76); Estarevelação <strong>da</strong> essência divina é coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> paralelo por <strong>Agostinho</strong> quer com a revelação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de deCristo, expressa <strong>em</strong> Jo. 8:13-14, já no contexto <strong>da</strong> nova Aliança, quando interrogado sobre a sua essência– tu, quis est? – proclama: “principium, quia loquor uobis” ( cf. In Iohan. Ev. Tract. XXXVIII, 9-11:CCL 36, p. 342-345); quer com a Ver<strong>da</strong>de-Verbo, que se revela no interior <strong>da</strong> mente humana: “(...) Quaresola ipsa uerissime dicere potuit humanae menti: Ego sum qui sum. Et de illa uerissime dici potuit: Misitme qui est.” ( VR XLIX, 97 : CCL 32, p. 250). Com efeito, é esta densi<strong>da</strong>de de conteúdo que se expressa<strong>em</strong> VR XLIX, 94-97 ( CCL 32, p. 248-250). O ser humano procura a ver<strong>da</strong>de, sabe que ela é preferível aofalso, mas tantas vezes a busca nos simulacros e não no interior de si mesmo. Ora, esta ver<strong>da</strong>de é Cristo,que diz de si mesmo ser idêntico à Dei<strong>da</strong>de Eterna e, simultaneamente, ter sido enviado por Ela,manifestando-se t<strong>em</strong>poralmente na história e estando presente no interior de ca<strong>da</strong> ser humano. A estepropósito, veja-se o estudo de D. DUBARLE, “Essai sur l’ontologie théologale de saint Augustin”:Recherches augustiniennes 16 ( 1981), p. 226-229.696 DT V, II, 3: “ (...) Et ideo sola est incommutabilis substantia uel essentia quae deus est, cui profectoipsum esse unde essentia nominata est maxime ac uerissime competit.” (CCL 50, p. 208). Ao distinguir ostermos substantia et essentia, conclui que, preferent<strong>em</strong>ente, talvez mesmo exclusivamente, o termoessentia deve atribuir-se a Deus, pois indica identi<strong>da</strong>de entre substância e ser, entre o que é e o facto de464


Assumindo a interpretação augustiniana de Jo. 10: 30, onde o Hiponense lêuni<strong>da</strong>de na multiplici<strong>da</strong>de, o óbice reside <strong>em</strong> mostrar como é possível considerar, naessência divina, uma uni<strong>da</strong>de que inclua a diferença, s<strong>em</strong> ferir n<strong>em</strong> a Eterni<strong>da</strong>de, n<strong>em</strong> aSimplici<strong>da</strong>de, proprie<strong>da</strong>des igualmente exigi<strong>da</strong>s para o Absoluto.Com efeito, no exercício de inteligência <strong>da</strong> fé, mediante o qual, <strong>em</strong> De trinitate,<strong>Agostinho</strong> manifesta a divergência entre a sua concepção de Absoluto e a dos arianos, ofilósofo começa por sublinhar a imutabili<strong>da</strong>de divina, chamando a atenção dosadversários sobre o facto de, ao introduzir<strong>em</strong> na Uni<strong>da</strong>de divina o predicamento relação,entendendo-o a modo de acidente, lesar<strong>em</strong> de imediato a condição inamovível <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de. Porém, para compreender a multiplici<strong>da</strong>de <strong>em</strong> Deus, mediante a afirmação <strong>da</strong>diferença – ego et pater –, na uni<strong>da</strong>de de substância – unum sumus –, é inevitávelconsiderar, na essência divina, a relação que estabelec<strong>em</strong>, entre si, essas duasreali<strong>da</strong>des, Pai e Filho.Sto. <strong>Agostinho</strong> confirma que, <strong>em</strong> Deus, na<strong>da</strong> se diz de modo acidental. Portanto, opredicamento relação, tal como é considerado pela tabela aristotélica, não se podeatribuir ao Absoluto. To<strong>da</strong>via, o Hiponense declara, também, que n<strong>em</strong> tudo o que sepredica do <strong>Ser</strong> divino é dito secundum substantiam 697 . Defronta, assim, de modo claro,os limites de uma concepção do mundo basea<strong>da</strong> na divisão do real <strong>em</strong> substância eacidentes, quando aplica<strong>da</strong> à compreensão <strong>da</strong> essência divina. Se, para compreender ascriaturas, tal divisão não é totalmente destituí<strong>da</strong> de eficácia, contudo, ela jamaispermitirá entender o real na relação que este estabelece com o divino. Na ver<strong>da</strong>de, naóptica augustiniana, uma conceptualização do real que o reduza aos dez predicamentosaristotélicos inviabilizará um processo ascendente, por parte <strong>da</strong> mente humana, <strong>da</strong>scriaturas <strong>em</strong> direcção ao Criador. Ora, se a formulação augustiniana do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong><strong>Ser</strong> : “(...) Quod enim est sapientiae sapere et potentiae posse, aeternitati aeternam esse, iustitiae iustamesse, magnitudini magnam esse, hoc est essentiae ipsum esse”, <strong>da</strong>do que o <strong>Ser</strong> de Deus é permanênciaeterna naquilo que o especifica enquanto Absoluto – relação, comunhão ou <strong>Ord<strong>em</strong></strong> (DT VII, I, 2: CCL50, p. 249: it. n.).697 DT V, IV, 6: “ Quamobr<strong>em</strong> nihil in eo secundum accidens dicitur, quia nihil ei accidit; nec tamenomne quod dicitur, secundum substantiam dicitur.” ( CCL 50, p. 210). O texto prossegue introduzindouma distinção que manifesta o limite <strong>da</strong> concepção aristotélica do real, ao dividi-lo <strong>em</strong> predicamentos:substância e acidentes. Se esta divisão pode fazer sentido in rebus creatis atque mutabilis, paracompreender Deus – para a dinâmica <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé –, ela é estreita e inoperante: In Deo aut<strong>em</strong>nihil quid<strong>em</strong> secundum accidens dicitur, quia nihil in eo mutabile est. Porém, insiste <strong>Agostinho</strong>, n<strong>em</strong>tudo, <strong>em</strong> Deus, se predica secundum substantiam.465


<strong>Ord<strong>em</strong></strong> incide exactamente sobre o grau de proximi<strong>da</strong>de entre Deus e os seres humanos,procurando eluci<strong>da</strong>r o modelo de relação que se estabelece entre ambos, o esqu<strong>em</strong>aaristotélico torna-se inoperante, para equacionar o filosof<strong>em</strong>a.Na reali<strong>da</strong>de, os supostos de ambas mundividências, augustiniana e aristotélica,são inconciliáveis. Para o Hiponense, encerrando as criaturas na sua individuali<strong>da</strong>de edesintegrando-as <strong>da</strong> relação com o Absoluto, a mundividência aristotélica, sustenta<strong>da</strong> naideia de substância e partindo <strong>da</strong> contingência dos seres, s<strong>em</strong> a superar, opõe-se, de raiz,a uma interpretação do real onde a categoria <strong>da</strong> relação assuma lugar privilegiado. Anoção de relação, na acepção aristotélica, não pode justificar a existência de um eloefectivo, com alcance ontológico, entre o Absoluto e as reali<strong>da</strong>des contingentes, entre o<strong>Ser</strong> que S<strong>em</strong>pre É e as reali<strong>da</strong>des contingentes, que dele depend<strong>em</strong>. Em menor escalapoderá, portanto, sustentar a dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> intra-trinitária, não permitindo aceder,n<strong>em</strong> mesmo de modo enigmático, à compreensão <strong>da</strong> natureza divina. Ora, sãoprecisamente estes os dois domínios – a essência relacional do Absoluto, e o modocomo Ele se relaciona com o Mundo -, onde a relação atinge nível ontológico, que oFilósofo de Hipona pretende sustentar. Por isso, é sobretudo na compreensão <strong>da</strong>essência divina que a grelha aristotélica dos predicamentos se mostra sobr<strong>em</strong>aneirainoperante, a tal ponto que o Hiponense não hesita <strong>em</strong> afirmar que existe uma reali<strong>da</strong>deque não é n<strong>em</strong> acidente n<strong>em</strong> substância. Ao fazê-lo, mais do que introduzir, na tabelaaristotélica dos predicamentos, uma ‘nova’ categoria, Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita talconcepção do real e reformula aquela noção, mostrando, simultaneamente, o carácterredutor que lhe conferia o aristotelismo, quando está <strong>em</strong> jogo o esforço <strong>da</strong> inteligênciahumana na compreensão do Inefável 698 .Tendo como horizonte de interpelação o arianismo de Eunómio, ao explanar omodo como, na essência divina, simples e una, se pode conceber a multiplici<strong>da</strong>de,<strong>Agostinho</strong> distinguirá duas formas de predicação: secundum substantiam et secundumrelatiuum 699 , registando, assim, duas formas de conceber a essência divina: ou como698 Em DT VII, V, 10 ( CCL 50, p. 260-261). Sto. <strong>Agostinho</strong> comenta quão inadequado é o predicamentosubstantia quando aplicado à divin<strong>da</strong>de.699 Cf. DT V, V, 6; V, XI-XIII (CCL 50, p. 210-211: p. 218-222). É a distinção entre o dizer segundo asubstância e segundo a relação que permitirá ao filósofo a exegese de Jo. 10: 30 exposta <strong>em</strong> DT VII, VI,12: “(...) Et unum dixit et sumus; unum secundum essentiam, quod id<strong>em</strong> deus; sumus secundumrelatiuum, quod ille pater, hic filius.” ( CCL 50, p. 266). Tal interpretação supõe um conceito de Uni<strong>da</strong>deque integra a relação, s<strong>em</strong> ferir a identi<strong>da</strong>de de essência.466


substância ou como relação. Note-se, contudo, que esta discussão imbrica<strong>da</strong> - esteesforço dialéctico, ao qual o Hiponense virá a preferir um outro tipo de in<strong>da</strong>gação, modointeriore – t<strong>em</strong> um objectivo b<strong>em</strong> determinado: des<strong>em</strong>baraçar o texto bíblico, mormentenos passos já referidos do Evangelho joanino, aparent<strong>em</strong>ente contraditórios, de umahermenêutica equívoca que fira a condição Absolutamente Outra do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o,introduzindo, na Essência divina, qualquer proprie<strong>da</strong>de pertencente às criaturas –máxime o t<strong>em</strong>po e o movimento –, ou concebendo o Absoluto como uma reali<strong>da</strong>de a talponto inacessível que se torna impossível conceber que ela se ocupe dos assuntoshumanos.Em qualquer caso, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> recorre à dialéctica para, defendendoaquilo <strong>em</strong> que acredita, atingir a inteligibili<strong>da</strong>de possível <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des a que prestaassentimento por adesão fiducial, o que está <strong>em</strong> causa é a dizibili<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong>, naquiloque, Dele, está dito na Escritura. Por conseguinte, o modo como o filósofo articula aprópria distinção entre predicados secundum substantiam et secundum relatiuumconstitui, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, um artifício <strong>da</strong> razão augustiniana para conceber, <strong>em</strong> Deus,ora a Uni<strong>da</strong>de, ora a Trin<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do que o conhecimento humano procede por raciocínioe se submete ao t<strong>em</strong>po do discurso, não podendo abarcar, a simultaneo, as duasdimensões, Una e Trina, <strong>da</strong> Essência Supr<strong>em</strong>a. Com efeito, aquela distinçãopredicamental não passa de um instrumento que se torna operativo quando a razão sequer situar <strong>em</strong> uma <strong>da</strong>s perspectivas aponta<strong>da</strong>s, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de pensar ambasnum único compasso.Os predicados secundum substantiam acerca de Deus são, de algum modo, maisacessíveis à compreensão humana, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se refer<strong>em</strong> à natureza Una doAbsoluto. À excepção do maniqueísmo, a tradição filosófica recebi<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>concebera o <strong>Ser</strong> como Uno e predicara Dele os géneros supr<strong>em</strong>os. Assim, quando Sto.<strong>Agostinho</strong> designa o Absoluto secundum substantiam e Dele afirma a Imutabili<strong>da</strong>de, aEterni<strong>da</strong>de, o <strong>Ser</strong>, a Bon<strong>da</strong>de, a Grandeza, ou outros atributos, a razão humana encontramenor dificul<strong>da</strong>de de compreensão destas formas de atribuição, mais não seja porque,<strong>em</strong> tais atributos, pode ver a negação de proprie<strong>da</strong>des que conhece nas criaturas, ouconceber, por via analógica e por <strong>em</strong>inência, as perfeições destas no <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Não obstante a lineari<strong>da</strong>de desta concepção de Uni<strong>da</strong>de ser, na obra de <strong>Agostinho</strong>,apenas aparente, <strong>da</strong>do que ela mesma é indissociável <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong>via acompreensão do divino com base na predicação secundum substantiam parece,efectivamente, mais fácil de conceber. No que se refere aos predicados secundum467


elatiuum, a proposta augustiniana é mais arroja<strong>da</strong>, pois obriga a arquitectar um modelode relação inteiramente diferente <strong>da</strong>quele a que a razão humana se habituara, de acordocom a tradição filosófica precedente.Na ver<strong>da</strong>de, ao explicar <strong>em</strong> que consiste a predicação secundum relatiuum quandoaplica<strong>da</strong> à essência divina, Sto. <strong>Agostinho</strong> indica modelos de relação de que o serhumano t<strong>em</strong> experiência, para os negar, quando aplicados à essência divina.Examinando a noção de relação, começa por destrinçar as três formas que a realizam:ad aliquid, ad inuic<strong>em</strong> e ad alterutrum. Aplicando-as à Essência Divina, o filósoforetém, num momento inicial, a primeira forma, por ser aquela que atinge maioramplitude, ao não exigir a reciproci<strong>da</strong>de dos termos, não obrigando, sequer, a identificaro termo ad qu<strong>em</strong>. Esta é acepção mais linear e simples de relação, enquanto reali<strong>da</strong>deque exige um princípio e a referência dele a um outro, garantindo, por conseguinte, aexistência de uma nova reali<strong>da</strong>de, a saber, a própria referência.Este sentido primeiro <strong>da</strong> relação, aplica-se àquela que o Pai estabelece, enquantoPrincípio, com as d<strong>em</strong>ais pessoas <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de, restando por explicitar a especifici<strong>da</strong>dedessa referência a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s outras duas Pessoas. Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma, assim, quea dinâmica de Vi<strong>da</strong> que a Pessoa do Pai inaugura, e de que é Princípio, segue o modo <strong>da</strong>relação ad aliquid, a qual significa pura intencionali<strong>da</strong>de - referência a outro. Naver<strong>da</strong>de, a paterni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> Deus é, essencialmente, do ponto de vista metafísico,intencionali<strong>da</strong>de, termo que é sinónimo de ordenamento ou disposição do próprio ser aoser de outro. No caso <strong>da</strong> relação do Pai ao Filho, ao tratar-se de um processo de geraçãoeterna, o outro é, a um t<strong>em</strong>po, uma reali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>elhante ao Princípio de que procede,pela identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza, e uma alteri<strong>da</strong>de real, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é idêntico a simesmo, subsistindo como diferente.Deste modo, no processo de geração do Filho pelo Pai, a expressão ad aliquid <strong>da</strong>relação, mediante a qual o Princípio gera um s<strong>em</strong>elhante, por ser activi<strong>da</strong>de de umareali<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a, espiritual – inteligente e livre – constitui-se, também, como relaçãoad alterutrum, pois nela se estabelece a referência de Um para o Outro. A puraintencionali<strong>da</strong>de desta acção do Pai indica algo acerca <strong>da</strong> natureza desta processão doPai para o Filho, e por conseguinte, também <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Com efeito, talprocessão significa que a acção de gerar é um acto de pura gratui<strong>da</strong>de, de doação de si aum outro que quer que participe, inteiramente, de tudo quanto Ele próprio possui,enquanto Princípio. Esta relação primordial, estabelecendo-se eterna e substancialmente468


entre o Pai e o Filho, sustenta, do ponto de vista ontológico, a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> afirmação deJo. 10: 30 - ego et pater unum sumus.Porém, tal facto só é compreensível se essa relação for considera<strong>da</strong>, também, nadimensão de reciproci<strong>da</strong>de - a saber, enquanto relação ad inuic<strong>em</strong> -, uma vez que aidenti<strong>da</strong>de do Filho é, de algum modo, dependente <strong>da</strong> Paterni<strong>da</strong>de do Pai, e que arelação entre o Filho e o Pai é uma só reali<strong>da</strong>de, essência ou substância divina. Comefeito, para <strong>Agostinho</strong>, é <strong>da</strong> essência divina ser relação e que esta relação esgote aspossibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> noção <strong>em</strong> causa. Para isso, ela há-de cumprir todos os requisitos <strong>da</strong>noção, dirigindo-se a uma alteri<strong>da</strong>de real – ad aliquid. Esta, acolhendo a relação, recebeuma s<strong>em</strong>elhança, mediante a qual se pode afirmar que a relação do Pai para o Filhoprocede de Um para Outro – ad alterutrum – e que, entre ambos os termos, se gera umauni<strong>da</strong>de perfeita de natureza, antes de mais porque todo este processo se dá naEterni<strong>da</strong>de e Imutabili<strong>da</strong>de divinas.Por sua vez, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que esta relação se estabelece no seio de uma enti<strong>da</strong>deque é Vi<strong>da</strong> Espiritual, o acolhimento <strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança por parte do Filho – do qualprocede a sua identi<strong>da</strong>de com o Pai – realiza nele a plenitude de Sapiência acerca <strong>da</strong>Bon<strong>da</strong>de do Pai e dos d<strong>em</strong>ais atributos supr<strong>em</strong>os <strong>da</strong>quele que qu<strong>em</strong> procede. Aoreconhecer o Princípio de Gratui<strong>da</strong>de que estabelece a identi<strong>da</strong>de própria do Filho, estecelebra com um Pai uma relação de doação. Ora, esta mesma doação gratuita fora oPrincípio <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do Filho, o que faz que a relação entre estas reali<strong>da</strong>des confluana Uni<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, esta Uni<strong>da</strong>de não é já n<strong>em</strong> a Pessoa do Pai, n<strong>em</strong> a do Filho. Aomesmo t<strong>em</strong>po, é essa Uni<strong>da</strong>de que sustenta a reciproci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação entre o Pai e oFilho. Afinal, o que caracteriza ca<strong>da</strong> um deles é <strong>Ser</strong> de Um para o Outro, numaprocessão Eterna de doação recíproca. Tal doação, que é a essência desta relação,constitui uma terceira reali<strong>da</strong>de, que procede <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de do Pai e do Filho e queidentifica a Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong>. Esta, por seu turno, merecerá uma peculiaratenção <strong>da</strong> parte de Sto. <strong>Agostinho</strong>, que oscila entre identificá-la ora com a essênciadivina, enquanto Espírito de Santi<strong>da</strong>de; ora com a Pessoa divina do Espírito <strong>Santo</strong>,enquanto caritas – tornando de extr<strong>em</strong>a ardui<strong>da</strong>de a distinção entre Pessoa e essênciadivina; ora designando-a mediante o nome próprio de Donum Dei, termo no qual oHiponense identifica, essencialmente, a relação que esta terceira Pessoa estabelece como Universo e, de modo particular, com o ser humano.De facto, a condição metafísica <strong>da</strong> noção de relação considera<strong>da</strong> ad inuic<strong>em</strong>ilumina plenamente a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> afirmação de Jo. 10: 30 – ego et pater unum sumus. O469


Princípio desta relação é Pai de alguém. O mesmo acontece com a filiação: o termodesta relação é Filho de alguém. Ora, por se tratar de uma relação de geração, exige-se as<strong>em</strong>elhança entre os termos, a qual, permitindo conceber uma identi<strong>da</strong>de que preserva adiferença <strong>em</strong> face do Princípio, reclama e supõe uma comunhão de natureza, no caso, aDei<strong>da</strong>de. Porque entre o Pai e o Filho há comuni<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de de essência podeconceber-se a existência de uma reali<strong>da</strong>de que consiste na correlação, ou no elo que uneestas duas identi<strong>da</strong>des. No caso <strong>da</strong> essência divina, e pelas razões aduzi<strong>da</strong>s por Sto.<strong>Agostinho</strong> quando analisa os predicados secundum substantiam, essa união dá-sesubstancialmente. Porém, o vínculo que <strong>em</strong>erge desta reciproci<strong>da</strong>de não se identifican<strong>em</strong> com o Pai, n<strong>em</strong> com o Filho, mas constitui um terceiro el<strong>em</strong>ento que adquire a suaidenti<strong>da</strong>de, efectivamente, na relação mútua que une aquelas duas reali<strong>da</strong>des. Nadeclaração de Jo. 10: 30, esta terceira reali<strong>da</strong>de está identifica<strong>da</strong> pela expressão unumsumus.Assim, <strong>da</strong> análise feita pelo Hiponense pode afirmar-se que a eterna processão doFilho por via de geração estabelece uma relação irrecíproca entre os dois el<strong>em</strong>entos,erigindo a diferença e sustentando uma alteri<strong>da</strong>de real. De facto, o Pai não é o Filho e,por oposição a Este, diz-se Daquele que é ingenitus. O Filho não é o Pai e, considerandoo seu Princípio – que é, simultaneamente, o seu correlativo -, <strong>da</strong>quele se diz que égerado. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, tal processão supõe uma comunhão de essência ou natureza,evidenciando, precisamente, a correlação que une, irrevogável e eternamente, aquelesdois termos, definindo-os na sua especifici<strong>da</strong>de e garantindo-lhes identi<strong>da</strong>de. Naver<strong>da</strong>de, o Pai é ingénito e o Filho é gerado 700 . Porém, não é este facto, que decorre já<strong>da</strong> relação que entre ambos se estabelece, que especifica a natureza <strong>da</strong> paterni<strong>da</strong>de. Aessência <strong>da</strong> paterni<strong>da</strong>de é a própria doação do Pai ao Filho, enquanto activi<strong>da</strong>de queinstaura o dinamismo <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de ad aliquid. No caso <strong>em</strong> apreço, por se tratar deuma essência espiritual e porque a processão segundo a geração reclama s<strong>em</strong>elhança notermo ad qu<strong>em</strong>, esse aliquid neutro assume-se como alterutrum. A relação do Pai ao700 Sto. <strong>Agostinho</strong> afirmará que esta relação implica identi<strong>da</strong>de de essência, uma vez que, no acto degerar, o Pai dá ao Filho tudo o que o próprio Pai é, excepto aquilo que o especifica enquanto Pai, ou seja,o facto de não ser gerado, termo que se diz secundum relatiuum, como se lê <strong>em</strong> DT VII, I, 1: “(...) Ac perhoc etiam excepto eo quod pater est non sit aliquid pater nisi quia est ei filius ut non tantum id quoddicitur pater (quod manifestum est eum non ad se ipsum sed ad filium relatiue dici et ideo patr<strong>em</strong> quia estei filius), sed omnino ut sit quod ad se ipsum est ideo sit quia genuit essentiam suam.” ( CCL 50, p. 245).470


Filho é de Um para Outro – gerando uma identi<strong>da</strong>de - e não de Um para um Indiferentee Indiferenciado, instaurando um caos originário, diferente do Princípio e exterior a Ele.Ora, a essência de uma Divin<strong>da</strong>de que se assume como relação de paterni<strong>da</strong>de e defiliação é, afinal, extr<strong>em</strong>amente próxima de uma experiência humana el<strong>em</strong>entar euniversal – a geração –, tornando-se de algum modo acessível à inteligência. Por querazão, então, tal conceito não é sobejamente eficaz, quando aplicado à essência divina?Afinal, onde se equivocam os adversários <strong>da</strong> fé, quando aplicam o modelo <strong>da</strong> geraçãohumana à essência do Absoluto? A este propósito, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste,fun<strong>da</strong>mentalmente, num aspecto. Ao fazê-lo, os arianos – e, com eles, todo o queintroduza qualquer forma de subordinacionismo na Trin<strong>da</strong>de divina, a fim desalvaguar<strong>da</strong>r a Uni<strong>da</strong>de do Princípio, sendo este concebido como Isolamento – nãoconsegu<strong>em</strong> conceber a relação senão a modo de acidente.De facto, to<strong>da</strong> a forma de subordinacionismo introduz, na processão por geração,duas reali<strong>da</strong>des, alheias à Essência Divina, enquanto Diferença Absoluta, <strong>em</strong> face <strong>da</strong>scriaturas: o t<strong>em</strong>po e a graduação. Por isso, na perspectiva augustiniana, os que seequivocam na interpretação bíblica de Jo. 10: 30 negam, nas processões divinas, aidenti<strong>da</strong>de de substância, não encontrando modo de articular coerent<strong>em</strong>ente esse passobíblico com outra afirmação, agora <strong>em</strong> Jo. 14: 28, onde Cristo declara a suainferiori<strong>da</strong>de perante o Pai - pater maior me est.Inversamente, o bispo de Hipona parte de uma concepção de Absoluto onde arelação se estabelece no interior <strong>da</strong> essência divina, mais ain<strong>da</strong>, onde a essência divina éentendi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong> relação, enquanto reali<strong>da</strong>de que nela subsisteeternamente. <strong>Relação</strong> é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a expressão <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> divina, e estaVi<strong>da</strong> exerce-se com total autonomia, no <strong>Ser</strong> e no Agir, <strong>em</strong> face de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>decria<strong>da</strong>.A essência divina, precisamente porque não é distinta do <strong>Ser</strong> de Deus, é Eterna eImutável. É, simplesmente. S<strong>em</strong>pre idêntica a si própria, o seu <strong>Ser</strong> está plenamenterealizado. Por esse facto, não mu<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> pode sofrer alterações, n<strong>em</strong> padecenecessi<strong>da</strong>des, n<strong>em</strong> se submete às reali<strong>da</strong>des que se dão no Universo criado. Ora, aoconsiderar qualquer relação na essência divina, é preciso alhear dela quer o movimento,quer o t<strong>em</strong>po. Destarte, a processão do Filho por via de geração só pode ser considera<strong>da</strong>na Eterni<strong>da</strong>de, tal como Eterna é a relação que se estabelece entre o Pai e o Filho. Nestecontexto, não t<strong>em</strong> cabimento conceber um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o Pai não gerou o Filho, comose este tivesse começado a existir num momento determinado <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de, expressão471


<strong>em</strong> si mesma contraditória 701 . De facto, não se pode falar de um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que aessência divina é Uni<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> <strong>Relação</strong>, e de um momento <strong>em</strong> que essa relação começoua existir, no seio <strong>da</strong> essência divina. Mais do que a Trin<strong>da</strong>de, tal modo de conceber oAbsoluto fere a Uni<strong>da</strong>de substancial <strong>da</strong> Essência Supr<strong>em</strong>a. Ao não conceber asprocessões divinas como Eternas e Idênticas à substância de Deus, tal forma de pensarintroduz uma fissura naquela Reali<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a cuja essência é comunhão eterna devi<strong>da</strong> <strong>em</strong> plenitude. Em busca de quê iria o Pai, ao gerar, se tudo t<strong>em</strong> realizado <strong>em</strong> simesmo, na plenitude de <strong>Ser</strong> que Ele é? Em última análise, ao afirmar que, <strong>em</strong> Deus,to<strong>da</strong> a relação é substancial, <strong>Agostinho</strong> assume que as três hipóstases decorrentes <strong>da</strong>relação estabeleci<strong>da</strong> pelo Princípio são inerentes à plenitude <strong>da</strong> Essência Divina e que,como tal, se identificam cabalmente com o Absoluto Subsistente.De algum modo, a necessi<strong>da</strong>de de discernir, <strong>em</strong> Deus, a substância e a relação, éexigi<strong>da</strong> pelo equívoco <strong>em</strong> que incorr<strong>em</strong> os arianos, ao conceber<strong>em</strong> o termo ingenitus egenitus como predicados de substância 702 . Diz<strong>em</strong> eles que, tratando-se de reali<strong>da</strong>desopostas e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, absolutas – considerando tais predicados a se ipsos e nãoad aliud –, Aquele que gera e Aquele que é gerado não pod<strong>em</strong> possuir a mesmasubstância. Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que os que assim pensam, para além de rejeitar<strong>em</strong>a fórmula canónica ♓ acima de tudo negam a reali<strong>da</strong>de que ela traduz,a saber, a identi<strong>da</strong>de de substância entre o Pai e o Filho, no interior <strong>da</strong> essência divina,ferindo, afinal, a Uni<strong>da</strong>de divina e dilapi<strong>da</strong>ndo a comunhão <strong>em</strong> que consiste a natureza<strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Com efeito, tanto no arianismo, como no maniqueísmo, como noneoplatonismo, como <strong>em</strong> qualquer outra mundividência incapaz de sustentarracionalmente a noção de Identi<strong>da</strong>de na Alteri<strong>da</strong>de, concebendo o Absoluto comoabertura permanente ao diálogo e à comunhão, Sto. <strong>Agostinho</strong> encontra novamente umconceito raquítico de alteri<strong>da</strong>de e de relação que, por se fechar à transcendência, nãoabre à doação. Qualquer mundividência que introduza necessi<strong>da</strong>de na relação entrehipóstases ou princípios supr<strong>em</strong>os considera a alteri<strong>da</strong>de como degra<strong>da</strong>ção e per<strong>da</strong>ontológica, e nessa medi<strong>da</strong> inviabiliza uma concepção de <strong>Ser</strong> como <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ou <strong>Relação</strong>.701 Veja-se, por ex<strong>em</strong>plo, DT XV, XXVI, 45: “ Deinde in illa summa trinitate quae deus est, interuallat<strong>em</strong>porum nulla sunt, per quae possit ostendi aut salt<strong>em</strong> requiri, utrum prius de patre natus sit filius, etpostea de ambobus proceserit spiritus sanctus (...). ” (CCL 50A, p. 524). V., também, sobre a processãoint<strong>em</strong>poral <strong>da</strong>s pessoas divinas e, <strong>em</strong> particular, do Espírito santo: DT XV, XXVI, 47 (CCL 50A, p. 527-529).702 Cf. DT V, VI, 7-VII, 8 ( CCL 50, p. 211-215).472


Refutando a posição dos arianos, Sto. <strong>Agostinho</strong> comenta a acepção do termoingenitus, quando aplica<strong>da</strong> à essência divina, sublinhando que, nela, apenas se retira, àReali<strong>da</strong>de assim designa<strong>da</strong>, o facto de ser gera<strong>da</strong>. Mais do que aquilo que o Pai é, otermo ingenitus diz, por oposição a genitus, aquilo que Ele não é. Desta forma, talpredicado não pode ser assumido <strong>em</strong> sentido absoluto. B<strong>em</strong> pelo contrário, trata-se deum termo relativo. Ora, <strong>da</strong>do que é a Deus que se aplica a relação pela qual, sob formade negação, se afirma do Pai que é ingenitus, ela exime-se ao t<strong>em</strong>po. Sendo Eterna, coma mesma Eterni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> divino, ela é subsistente, com a mesma subsistência do <strong>Ser</strong>divino. Assim, não obstante os termos <strong>da</strong> relação ser<strong>em</strong> diferentes, a saber, o Pai e oFilho, distinguindo-se, precisamente, pela oposição que estabelec<strong>em</strong> entre si, não édiferente a substância divina, pois a relação entre ambos supõe uma processão eterna,como Eterno é Deus, e subsistente, como só Deus Subsiste.Esta oposição não designa qualquer forma de conflito. Pelo contrário, só ela éprincípio de identi<strong>da</strong>de. Por isso, mais do que oposição, falar-se-á de diferença oualteri<strong>da</strong>de, constituí<strong>da</strong>, precisamente, pela doação de si a outro. Esta doação ou dilectioé o motor essencial de to<strong>da</strong> a processão trinitária. Afinal, ela é a essência <strong>da</strong> própriarelação trinitária. Se o que caracteriza o Pai é o facto de <strong>Ser</strong> Dom de Si; e se o Filho, narelação que estabelece com o Princípio, é Dom de Si ao Pai, a relação de entre amboscaracteriza-se por ser Dom. É nesta medi<strong>da</strong> que ela abre a uma outra reali<strong>da</strong>de. Aomesmo t<strong>em</strong>po, aquela relação só é possível <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong> subsistência eterna dessaterceira reali<strong>da</strong>de, que é, precisamente Dom ou Dilectio. A identi<strong>da</strong>de desta terceirareali<strong>da</strong>de compreende-se como mútua doação, princípio comum ao Pai e ao Filho, querealiza a uni<strong>da</strong>de plena e perfeita entre eles, a total comunhão entre ambos. Nestacomunhão, nenhuma <strong>da</strong>s duas Pessoas se confunde ou dilui, precisamente porque delaprocede uma terceira reali<strong>da</strong>de. É assim que <strong>Agostinho</strong> explica de que modo, <strong>da</strong> eternadoação entre o Pai e o Filho, procede o Espírito <strong>Santo</strong>, como de um único princípio: apatre filioque 703 . Se não fosse assim, se Pai e Filho não foss<strong>em</strong> um mesmo princípio na703 A identificação do Espírito <strong>Santo</strong> com a processão a patre filioque communis surge explicitamente portrês vezes, na obra do Hiponense. No <strong>Ser</strong>mo LXXI, 29-30, para identificar, na Trin<strong>da</strong>de, a communiosocietatis com o Espírito <strong>Santo</strong>: Ele é esse espírito comum ao Pai e ao Filho [ cf. RB 75 (1965) p. 97-98].Em Enchir. XI, 37, para explicitar que o Espírito <strong>Santo</strong> não é menor do que o Pai e o Filho pelo facto deser considerado donum dei, mesmo na essência divina, e não obstante esta designação se aplicarpreferent<strong>em</strong>ente à relação do Espírito <strong>Santo</strong> com o Universo criado: “ (...) Et utique spiritus sanctus deidonum est, quod quid<strong>em</strong> et ipsum est aequale donanti, et ideo deus est etiam spiritus sanctus, patre473


processão do Espírito <strong>Santo</strong>, novamente se introduziria per<strong>da</strong> ontológica, degra<strong>da</strong>ção,pois a relação que esta terceira hipóstase estabeleceria com uma <strong>da</strong>s outras duas seriamais forte no caso do Filho, e mais distante, no caso do Pai. Por outro lado, afastar <strong>da</strong>uni<strong>da</strong>de entre o Pai e o Filho a processão do Espírito <strong>Santo</strong> enfraqueceria igualmente aUni<strong>da</strong>de divina, introduzindo fissuras na identi<strong>da</strong>de de substância. E, quando sequisesse entender a identi<strong>da</strong>de do Espírito santo como Donum Dei, <strong>da</strong>ndo-se a participaraos seres humanos no t<strong>em</strong>po, novamente se introduziria uma distância entre Deus e osassuntos dos homens. De facto, não se poderia falar de uma ver<strong>da</strong>deira comunhão entreos homens e Deus se o Espírito <strong>Santo</strong> fosse menor do que as d<strong>em</strong>ais hipóstases <strong>da</strong>Trin<strong>da</strong>de e se não partilhasse, com elas, <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de, uma essência comum. Por isso,Sto. <strong>Agostinho</strong> confirma que Donum Dei é o nome próprio desse Espírito, na relaçãocom o Universo e, <strong>em</strong> peculiar com o ser humano, uma vez que mediante a sua acção é<strong>da</strong>do aos humanos comungar <strong>da</strong> mesma essência divina, ca<strong>da</strong> um segundo uma medi<strong>da</strong>própria. Só assim se poderá afirmar que esta próximi<strong>da</strong>de com o divino, estaparticipação na essência divina, que é Dom, significa, para o ser humano, um modo depermanência e de habitação na vi<strong>da</strong> trinitária, e não apenas a comunhão com uma <strong>da</strong>spessoas divinas 704 .De facto, é esta concepção de uma <strong>Relação</strong> Eternamente Subsistente que rompe oesqu<strong>em</strong>a dos referentes categoriais que o exercício histórico <strong>da</strong> razão humana t<strong>em</strong>disponíveis, ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong>. Porventura poder-se-ia chegar a conceber uma talforma de relação, raciocinando analogicamente sobre esse predicamento acidental eaplicando-o ao <strong>Ser</strong> divino, por <strong>em</strong>inência. Obviamente, não é esta a proposta dofilioque non minor. » ( CCL 46, p. 70). To<strong>da</strong>via, mesmo enquanto processão divina, o Espírito <strong>Santo</strong> éDonum Dei, Deus ex deo, s<strong>em</strong> que tal facto implique subordinação ( v., também, DT XV, XIX, 36: CCL50A, p. 512-513). Poderia parecer que este genitivo o afastaria <strong>da</strong> essência divina, sendo algo procedentedela <strong>em</strong> direcção ao Universo criado. Sto. <strong>Agostinho</strong> repele esta interpretação, sublinhando que a essênciade Deus é Dom. De facto, a expressão donum dei é, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> medi<strong>da</strong>, redun<strong>da</strong>nte, indicando, apenas, aespecifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acção do Espírito <strong>Santo</strong> sobre o Universo. Afinal, é mediante o espírito que Deus se dáao Mundo, ou, dito de outro modo, a acção de Deus no Mundo é totalmente espiritual e gratuita, nãosendo esta uma reali<strong>da</strong>de diferente do Amor - caritas ou dilectio. Finalmente, a expressão supra-referi<strong>da</strong>surge <strong>em</strong> De ciuitate dei ( cf. De ciu. dei XIII, XXIV: CCL 48, p. 411), para explicitar que o Espírito queCristo dá aos apóstolos não é o sopro que procede <strong>da</strong> boca mas o próprio Espírito <strong>Santo</strong> comum ao Pai eao Filho. Este não é o espírito que pertence de modo singular a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s outras duas Pessoas, mas é omesmo Espírito <strong>Santo</strong>, que de ambos procede.704 Ver, principalmente, DT XV, XVII, 31-XIX, 37; XXVI, 46 ( CCL 50A, p. 505-514; p. 525-527).474


Hiponense, pois não é transformando um acidente, neste caso a relação, <strong>em</strong> hipóstase,que ele perde o carácter acidental. Afinal, tendo como referente quanto a Escritura dizsobre o Absoluto, o filósofo aplica àquelas proprie<strong>da</strong>des do Uno a que a razão podeaceder e que a revelação veterotestamentária igualmente confirma, os el<strong>em</strong>entosrecebidos acerca <strong>da</strong> essência divina nos textos <strong>da</strong> Nova Aliança: a concepção de umDeus que integra a relação. Ao fazê-lo, terá de conciliar uma noção de Absoluto que serevela como Idêntico, Idipsum, com a concepção de um Deus-<strong>Relação</strong>, que se manifestacom Dilectio, enquadrando esta noção na Eterni<strong>da</strong>de e Imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essência divina.Sto. <strong>Agostinho</strong> não pode aceitar, na noção de Absoluto, a ausência de qualquerperfeição. É esse um dos argumento presentes <strong>em</strong> De diuersis quaestionibus 83,quaestio XLVI, quando critica a noção platónica de forma, por considerar que oFun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Acad<strong>em</strong>ia estabelecera uma distinção de essência entre as Formas e o B<strong>em</strong>Supr<strong>em</strong>o, diferença que <strong>Agostinho</strong> não pode corroborar, pelas razões já aduzi<strong>da</strong>s.Para o Hiponense, o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o é Vi<strong>da</strong> Espiritual, pois essa é a perfeiçãomáxima a que a inteligência humana acede quando percorre a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> com vistaa atingir os inuisibilia dei. De modo particular, é na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente humana que ofilósofo encontra o maior grau de perfeição, deduzindo que o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, por estaracima <strong>da</strong> mente humana cria<strong>da</strong>, não pode possuir menos perfeição do que esta, s<strong>em</strong> quea razão incorra <strong>em</strong> contradição.Deus é, por isso, vi<strong>da</strong> inteligente e livre, realiza<strong>da</strong> <strong>em</strong> plenitude. São atributos <strong>da</strong>essência divina, na simplici<strong>da</strong>de de uma mesma natureza, to<strong>da</strong>s aquelas quali<strong>da</strong>des quea mente humana cont<strong>em</strong>pla, quer quando reconhece que as possui, quer quandovislumbra que deseja alcançar a perfeição delas, a qual reside na conquista <strong>da</strong> beatitude.Sto. <strong>Agostinho</strong> atribui à simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essência divina todo um ror de perfeições que omundo antigo, não obstante as diferentes versões do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, dispensavaigualmente à Dei<strong>da</strong>de: vi<strong>da</strong> imortal, eterna, incorruptível, imutável, s<strong>em</strong> princípio n<strong>em</strong>fim. Vi<strong>da</strong> inteligente, sábia, feliz, poderosa, a que não faltam a beleza, a bon<strong>da</strong>de e ajustiça 705 . E, na condição espiritual <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de: vi<strong>da</strong> espiritual, possuindo to<strong>da</strong>s asperfeições referi<strong>da</strong>s, na identi<strong>da</strong>de de uma mesma substância 706 .705 Cf. DT XV, V, 7 ( CCL 50A, p. 468-470)706 Cf. DT XV, V, 8 (CCL 50A, p. 470-471). É pela natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de ser Vi<strong>da</strong> Espiritual que to<strong>da</strong>sestas quali<strong>da</strong>des, <strong>em</strong> Deus, se identificam com a substância.475


To<strong>da</strong>via, como será possível <strong>da</strong>r a entender ao ser humano que, nesta simplici<strong>da</strong>dede essência, subsiste, igualmente, uma trin<strong>da</strong>de de pessoas? Do conjunto <strong>da</strong>s dozeperfeições supra referi<strong>da</strong>s, agrupando-as <strong>em</strong> subconjuntos de quatro, Sto. <strong>Agostinho</strong>sintetiza três. De modo sugestivo e respeitando o princípio de perfeição devido ao sersupr<strong>em</strong>o, elege a Eterni<strong>da</strong>de, a Sabedoria e a Beatitude, pois as d<strong>em</strong>ais perfeiçõespod<strong>em</strong> <strong>da</strong>r-se, também, nas criaturas, mas estas últimas só aí estarão presentes,principalmente na criatura espiritual, sob forma de desiderato 707 .Ora, a mente humana tenderia a identificar, espontaneamente, nestas trêsperfeições de essência, o rosto de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s pessoas <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de divina, parecendofácil estabelecer um correlativo entre o Pai e a Eterni<strong>da</strong>de, o Filho e a Sabedoria, oEspírito <strong>Santo</strong> e a Felici<strong>da</strong>de. Contudo, Sto. <strong>Agostinho</strong> desengana esta interpretação,pois ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s três pessoas divinas é considera<strong>da</strong> <strong>em</strong> si mesma, como Vi<strong>da</strong>Espiritual. Por conseguinte, ca<strong>da</strong> uma possuirá não apenas aqueles três qualificativos,mas os doze antes referidos. Com efeito, como o filósofo discute nos Livros V a VII deDe trinitate, não são os atributos secundum substantiam, a que pertenc<strong>em</strong> estes doze,que caracterizam ca<strong>da</strong> pessoa, mas sim o modo de processão de ca<strong>da</strong> uma delas, ouseja, a relação que estabelece com as d<strong>em</strong>ais. Compreender este facto exige considerar aDei<strong>da</strong>de secundum relatiuum. Por sua vez, o modo de relação ou processão queconstitui a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> pessoa <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de é eterno, sábio, feliz, imutável,incorruptível, ou seja, possui todos os atributos de essência. Deste modo, Sto. <strong>Agostinho</strong>faz confluir numa mesma Dei<strong>da</strong>de, a simplici<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de. As três pessoassão de uma essência 708 , sendo aqui determinante o <strong>em</strong>prego do genitivo de posse –unius essentiae.De facto, identificando ca<strong>da</strong> um dos três atributos de essência supra referidos comuma <strong>da</strong>s pessoas divinas, rapi<strong>da</strong>mente a razão incorreria <strong>em</strong> formas de707 Cf. DT XV, VI, 9 ( CCL 50A, p. 471-472).708 Não obstante a efígie divina impressa na mente humana ser o reflexo mais aproximado à perfeição <strong>da</strong>essência, una e trina, <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, ela é, to<strong>da</strong>via, uma imag<strong>em</strong> inadequa<strong>da</strong>. Se, no ser humano, asperfeições <strong>da</strong> mente são próprias <strong>da</strong>quela pessoa, e apenas de uma, inversamente, na Dei<strong>da</strong>de na<strong>da</strong>pertence à substância que não pertença a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s três pessoas. DT XV, VII, 11: “ (…) Nec aliqui<strong>da</strong>d naturam dei pertinet quod ad illam non pertineat trinitat<strong>em</strong>, et tres personae sunt unius essentiae nonsicut singulus quisque homo una persona” (CCL 50A, p. 475: it.n.). Daí a limitação do conhecimento deDeus por analogia com a imag<strong>em</strong> divina impressa na mente. Tal como, no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, não é possívelidentificar nenhuma <strong>da</strong>s pessoas divinas com um atributo de essência, também não é possível identificálascom ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s três funções <strong>da</strong> mente humana ( Cf. DT XV, VII, 13: CCL 50A, p. 477-479).476


subordinacionismo. O Pai seria superior, porque eterno. O Filho não seria eterno, massapiente – proprie<strong>da</strong>de que o Pai não possuiria. E o lugar <strong>da</strong> beatitude nesta escalaficaria por atribuir, um pouco aleatoriamente, ou ao Pai, ou ao Cristo histórico, ou aoEspírito <strong>Santo</strong>, sendo este último s<strong>em</strong>pre inferior ao Pai e ao Filho, independent<strong>em</strong>entedo modo como se viesse a considerar a sua processão, pois na hierarquia ora <strong>em</strong> apreçonão há forma de justificar a identi<strong>da</strong>de de essência na alteri<strong>da</strong>de de hipóstases, massomente a diferença ontológica entre elas, introduzi<strong>da</strong> pela quebra <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de naeterni<strong>da</strong>de.Ora, é fácil encontrar aqui el<strong>em</strong>entos que esclarec<strong>em</strong> o motivo pelo qual Sto.<strong>Agostinho</strong> critica a trin<strong>da</strong>de neoplatónica. Nela, o Intelecto ou Sabedoria surge s<strong>em</strong>precomo degra<strong>da</strong>ção do Uno, sendo considera<strong>da</strong>, como já se referiu, no caso de Porfírio, aexistência de um el<strong>em</strong>ento médio entre o Uno e o ✂, o qual, na hermenêuticacondescendente que o Hiponense apresenta <strong>em</strong> De ciuitate dei, teria sido um vislumbre<strong>da</strong> Pessoa do Espírito santo, por parte do Biógrafo de Plotino. Já este últimoconsiderava ser a alma do Mundo a terceira hipóstase. Num caso e noutro, hádegenerescência, na processão <strong>da</strong>s hipóstases. A concepção augustiniana de Dei<strong>da</strong>de,Simplex et Multiplex, anula esta degra<strong>da</strong>ção, considerando que ca<strong>da</strong> pessoa é de uma sóessência, s<strong>em</strong> com este facto aniquilar a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> ou <strong>Relação</strong>, instauradora de Identi<strong>da</strong>dena Diferença, preserva<strong>da</strong> a Uni<strong>da</strong>de de Essência. S<strong>em</strong> tal ord<strong>em</strong> ou disposição do <strong>Ser</strong>, aDei<strong>da</strong>de equiparar-se-ia a um caos irracional, informe, indiferenciado na sua natureza,enfim, todo o oposto de quanto a razão augustiniana concebe acerca de uma reali<strong>da</strong>deSupr<strong>em</strong>a. Inversamente, para sustentar a Simplici<strong>da</strong>de e a Multiplici<strong>da</strong>de numa ÚnicaEssência, Sto. <strong>Agostinho</strong> atende às processões divinas, fazendo consistir nelas aidenti<strong>da</strong>de própria que subsiste na diferença. É esta dinâmica que permite identificar a<strong>Ord<strong>em</strong></strong> e a <strong>Relação</strong> subsistente, que é a natureza <strong>da</strong> essência divina.De facto, quando analisa a essência divina e estabelece a destrinça entrepredicados absolutos e relativos, Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista diferençar, <strong>em</strong> Deus, aTrin<strong>da</strong>de/multiplici<strong>da</strong>de e a Uni<strong>da</strong>de/simplici<strong>da</strong>de. Aplicando a distinção entrepredicados secundum substantiam et secundum relatiuum ao termo ingenitus, oHiponense recor<strong>da</strong> que um predicado relativo não significa substância, evidenciando,igualmente, que a negação de um relativo – de facto, o termo ingenitus significa anegação de genitus - é, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, um termo relativo. Aplicando estes princípiosel<strong>em</strong>entares <strong>da</strong> dialéctica aos predicados ingenitus e genitus e assumindo a tese arianaque os considera diferentes, o Hiponense afirma que se deve concluir que tal diferença477


se estabelece secundum relatiuum e não secundum substantiam. O filósofo pretende,assim, salvaguar<strong>da</strong>r, na essência de Deus, o princípio <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de na diversi<strong>da</strong>de, aidenti<strong>da</strong>de de substância, preservando a diferença.Diferença, porém, de quê?Sto. <strong>Agostinho</strong> recor<strong>da</strong> que, de acordo com a formula fidei, aquela multiplici<strong>da</strong>deimplica<strong>da</strong> na diferença, que se verifica na essência divina e se sustenta no princípio derelação, designa-se mediante o termo latino persona. Uma vez mais, o filósoforeconhece não haver acordo, entre gregos e latinos, quanto ao termo que deverá ser<strong>em</strong>pregue para identificar esta reali<strong>da</strong>de 709 . To<strong>da</strong>via, o Hiponense não parece satisfeitocom a solução encontra<strong>da</strong> pelos latinos, l<strong>em</strong>brando que o termo persona é <strong>em</strong>preguepara designar essas identi<strong>da</strong>des que subsist<strong>em</strong> mediante relações específicas e que, nãoobstante permanecer<strong>em</strong> eternamente, elas distingu<strong>em</strong>-se <strong>da</strong> substância divina.Persona designa, no entender de Sto. <strong>Agostinho</strong> e no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, a reali<strong>da</strong>deque <strong>em</strong>erge <strong>da</strong> relação, quer de geração, quer de processão a patre filioque. O filósoforecor<strong>da</strong> que o termo persona surge, no esclarecimento <strong>da</strong> essência divina, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong>sociabili<strong>da</strong>de humana e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de dialogar. Com efeito, tal termo é <strong>em</strong>preguepara responder a qu<strong>em</strong> pergunte, acerca <strong>da</strong> essência divina, Una e Trina: quid tria uelquid tres? 710 No entender de <strong>Agostinho</strong>, o termo persona é aqui necessário apenas paranão ficar calado. Trata-se, portanto, de um recurso meramente linguístico, espécie de709 Cf. DT V, VIII-IX, 10; VII, IV, 7-9 ( CCL 50, p. 216-217; p. 255-260).710 DT VII, IV, 9: “ (…) Quaesiuit quid tria diceret et dixit substantias siue personas, quibus nominibusnon diuersitat<strong>em</strong> intellegi uoluit sed singularitat<strong>em</strong> noluit ut non solum ibi unitas intellegatur ex eo quoddicitur una essentia, sed et trinitas ex eo quod dicuntur tres substantiae uel personae.” ( CCL 50, p. 259).Mais adiante, <strong>Agostinho</strong> confessa a limitação do termo persona para identificar esta reali<strong>da</strong>de “(...) Curergo non haec tria simul unam personam dicimus sicut unam essentiam et unum deum, sed dicimus trespersonas, cum tres deos aut tres essentias non dicamus, nisi quia uolumus uel unum aliquod uocabulumseruire huic significationi qua intellegitur trinitas ne omnino tacer<strong>em</strong>us interrogati quid tres, cum tres essefater<strong>em</strong>ur?” ( DT VII, VI, 11: CCL 50, p. 262). A noção de persona é <strong>em</strong>pregue pelo filósofo de formaprolixa e <strong>em</strong> contextos diversos. Sobre os sentidos do termo na obra augustiniana, ver I. CHEVALIER,Saint Augustin et la pensée grecque. Les relations trinitaires. (Fribourg in Suisse 1940), p. 42-52 ; SarahH. LANCASTER, “Three-Personed Substance: The Relational Essence of the Triune God in Augustine'sDe Trinitate”: The Thomist 60 (1996) 123-139.478


mal menor perante o déficit <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana para dizer o inefável, condição que seimpõe, entre os humanos, loquendi et disputandi necessitate 711 .A que reali<strong>da</strong>de corresponde, então, na exposição augustiniana, o termo persona,quando aplicado à essência divina? Se aquilo que se pretende expressar, mediante otermo essentia é a uni<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> divino, a sua condição de Absoluto – simplex -,<strong>Agostinho</strong> considera que o vocábulo persona indica a singulari<strong>da</strong>de que subsiste noseio <strong>da</strong>quela uni<strong>da</strong>de 712 .Essentia e persona são, no entender de Sto. <strong>Agostinho</strong>, termos absolutos. Diz<strong>em</strong>se,portanto, secundum substantiam. Porém, se, no que ao primeiro termo diz respeito,tal facto não causa perplexi<strong>da</strong>de – na ver<strong>da</strong>de, de que modo a essência ou substância sehaveria de dizer relativa, negando a própria definição? -, no caso do termo persona aquestão não usufrui <strong>da</strong> mesma lineari<strong>da</strong>de. Se o termo persona fosse um predicadosecundum relatiuum, então a relação entre as três reali<strong>da</strong>des divinas, para as quais seprocura designação adequa<strong>da</strong>, não seria subsistente, pois ca<strong>da</strong> uma delas subsistiriaapenas na relação com a outra, <strong>em</strong> dependência dela, subordinando-se, de algum modo,ao seu correlativo. Se é certo que é a relação que confere identi<strong>da</strong>de à Pessoa, to<strong>da</strong>viaela não cria dependência no <strong>Ser</strong>, pois o termo ad qu<strong>em</strong> de ca<strong>da</strong> processão éprecisamente uma alteri<strong>da</strong>de realmente constituí<strong>da</strong> e subsistente per se. Se não fosseassim, não se poderia considerar a existência de uma relação real, pois esse falsocorrelativo seria apenas a projecção de si mesmo numa imag<strong>em</strong>, e não a efectivaconstituição de uma outra identi<strong>da</strong>de.Por isso, <strong>Agostinho</strong> afirma que ca<strong>da</strong> uma dessas reali<strong>da</strong>des que, à falta de melhor,se designa mediante o vocábulo persona, é Um Absoluto 713 . To<strong>da</strong>via, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que711 Cf. DT VII, IV, 8-9; VII, VI, 11 ( CCL 50, p. 257-260; p. 261-265). Sobre a noção de persona nateologia paleocristã veja-se a obra de Andrea MILANO, Persona in teologia. Alle origine del significatodi persona nel cristianesimo antico (Roma 1996).712 DT VII, IV, 9: “ Quaesiuit quid tria diceret et dixit substantias siue personas, quibus nominibus nondiuersitat<strong>em</strong> intellegi uoluit sed singularitat<strong>em</strong> noluit.” (CCL 50, p. 259). Esta é, porventura, a indicaçãomais explícita que Sto. <strong>Agostinho</strong> fornece a respeito do termo persona, quando aplicado à essênciadivina. De facto, se <strong>em</strong> DT VII, IV, 8 (CCL 50, p. 257-259), para mostrar que o termo persona é deproveniência extra-escriturística, o Hiponense afirma falar de três pessoas para expressar id quod personaest, fica a faltar precisamente a definição.713 DT VII, VI, 11: « (...) quod unusquisque eorum sit ad se ipsum. » ( CCL 50, p. 262). É esta reali<strong>da</strong>deque o termo persona pretende designar, não obstante Sto. <strong>Agostinho</strong> não lograr explicá-lo a não ser por479


a relação que lhe confere identi<strong>da</strong>de é, por essência, gratui<strong>da</strong>de, esse ad se é um essealiud, não se ensimesmando, mas s<strong>em</strong>pre comungando eternamente o seu ser com o <strong>da</strong>sd<strong>em</strong>ais pessoas divinas. É neste contexto que se entende a afirmação augustiniana, algodesconcertante, segundo a qual Deus é Pessoa. Da mesma forma que Grandeza,Bon<strong>da</strong>de, <strong>Ser</strong> ou qualquer outro atributo designado secundum substantiam se predicam<strong>da</strong> essência divina, assim também o termo persona é um predicado de substância, <strong>em</strong>Deus, tendo <strong>em</strong> conta que a substância divina outra coisa não é do que relação. Estaaparente contradição esclarece a noção augustiniana de Dei<strong>da</strong>de, quando aplica<strong>da</strong> àconcepção augustiniana do Espírito <strong>Santo</strong>, o qual designa, a um t<strong>em</strong>po, nome de Pessoae de Essência.De facto, distinguir persona e essentia torna-se, na óptica de Sto. <strong>Agostinho</strong>, umatarefa de extr<strong>em</strong>a ardui<strong>da</strong>de, de tal forma que, para o fazer, aponta apenas viasnegativas. Como afirma <strong>em</strong> De trinitate, a distinção entre género e espécie é, neste caso,particularmente ineficaz. A essência de Deus não é uma designação genérica que sepossa <strong>da</strong>r a participar <strong>em</strong> diferentes indivíduos ou pessoas. No caso <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong>essência divina, a partição do real <strong>em</strong> géneros e espécies apresenta-se inoperante, poissupõe a distinção entre uma maior e menor amplitude de reali<strong>da</strong>de, definindo graus deuniversali<strong>da</strong>de. O género é mais universal do que a espécie e, por isso, pode contê-la, talcomo esta, por seu turno, contém o indivíduo. Aplicando esta distinção lógica à essênciadivina, negar-se-ia, de imediato, <strong>em</strong> Deus, a identi<strong>da</strong>de entre a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essênciadivina e a Trin<strong>da</strong>de dessa mesma Uni<strong>da</strong>de. Torna-se, então, evidente, que aquel<strong>em</strong>odelo, mais de âmbito dialéctico do que de alcance ontológico, não serve, paraexplicar a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, pois o Hiponense reclama a identi<strong>da</strong>de entre Persona eEssentia, no que ao Absoluto se refere. Em Deus, dirá Sto. <strong>Agostinho</strong>, nihil maius autminus 714 .via negativa, a saber, negando modelos de relação como o que estabelec<strong>em</strong> os pares conceptuais género/espécie, matéria/ forma ou substância /acidentes.714 DT VIII, Pro<strong>em</strong>.: “ (...) Ideoque dici tres personas uel tres substantias non ut aliqua intellegaturdiuersitas essentiae, sed ut uel uno aliquo uocabulo responderi possit cum dicitur quid tres uel quid tria;tantamque esse aequalitat<strong>em</strong> in ea trinitate ut non solum pater non sit maior quam filius quod attinet addiuinitat<strong>em</strong>, sed nec pater et filius simul maius aliquid sint quam spiritus sanctus, aut singula quaequepersona quaelibet trium minus aliquid sit quam ipsa trinitas.” ( CCL 50, p. 268). V., também, v. gr., DTVI, VII-VIII, 9 ( CCL 50, p. 237-238), onde Sto. <strong>Agostinho</strong> discute que a multiplici<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> Deus, nãoimplica acréscimo ou diminuição de ser, ao invés do que sucede com as criaturas.480


Por seu turno, o modelo de fabricação – a participação de diferentes formas numamesma matéria – é, também, na perspectiva de <strong>Agostinho</strong>, inauferível para compreendera essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Neste caso, as Pessoas seriam modos <strong>da</strong> essência divina e nãoidênticas a ela 715 . Além disso, desde esta perspectiva, caberia uma infinita multiplicação<strong>da</strong>s formas, pois não haveria maneira de justificar que, <strong>em</strong> tal matéria, apenassubsistiss<strong>em</strong> três reali<strong>da</strong>des e não uma infinitude de modos. Ora, a essência divina na<strong>da</strong>mais admite para além <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>Relação</strong>. Assim, na impossibili<strong>da</strong>de de encontraruma definição que satisfaça o termo persona e que traduza a reali<strong>da</strong>de à qual Sto.<strong>Agostinho</strong> quer fazer corresponder a noção de Absoluto, o filósofo resume-a afirmandoque as três reali<strong>da</strong>des que são a essência divina <strong>em</strong> na<strong>da</strong> a acrescentam ou diminu<strong>em</strong>,sendo simplesmente iguais a ela 716 .Como se afirmou, este ensaio augustiniano por explicitar a essência do <strong>Ser</strong> Divino<strong>em</strong>punhando as armas do adversário - a saber, a lógica dialéctica -, t<strong>em</strong> um objectivoprincipal: permitir falar do Inefável, que se declara como reali<strong>da</strong>de aparent<strong>em</strong>enteantinómica, contornando a equivoci<strong>da</strong>de e o erro. Por sua vez, o recurso à dialécticamanifesta-se, a ca<strong>da</strong> passo, impregnado de limitações, e não será esta a armapreferencial de Sto. <strong>Agostinho</strong>. Desde a perspectiva que nos ocupa, mais do que umaavaliação no âmbito <strong>da</strong> História Eclesiástica ou <strong>da</strong> História do Dogma, de umapuramento de fontes e de posteriores influências, cabe in<strong>da</strong>gar acerca do contributoque esta exposição presta ao esclarecimento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Recorde-se que,na sua enunciação mais simples, este in<strong>da</strong>ga sobre a proximi<strong>da</strong>de entre Deus e oshumanos ou sobre o modo de relação que o Absoluto – Simples, na Trin<strong>da</strong>de –estabelece com o Universo, na diversi<strong>da</strong>de e contingência que o caracteriza.Porém, não obstante a exposição de Sto. <strong>Agostinho</strong> por via dialéctica nãoapresentar, ain<strong>da</strong>, todos os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> solução que propõe para o esclarecimento dofilosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, pode encontrar-se nela, a resposta a uma interrogaçãoincontornável para o esclarecimento <strong>da</strong> noção <strong>em</strong> causa: existe, ou não, identi<strong>da</strong>de entreDeus e a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>?715 Cf. DT VII, VI, 11 (CCL 50, p. 261-265). Como se os três subsistiss<strong>em</strong> numa mesma matéria, mesmose esta matéria, qualquer que fosse a sua natureza, fosse partilha<strong>da</strong> pelos três.716 DT VII, VI, 11: “ (…) At in deo non ita est: non enim maior essentia est pater et filius simul, quamsolus pater aut solus filius, sed tres simul illae substantiae siue personae, si ita dicen<strong>da</strong>e sunt, aequalessunt singulis.” (CCL 50, p. 265).481


A questão já fora discuti<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine. Se a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e Deus não são o mesmo,então aquela não é a noção Supr<strong>em</strong>a, n<strong>em</strong> universal, mas tão-só uma derivação doAbsoluto. Neste caso, o próprio Deus está fora <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, afirmação que contradiz acondição supr<strong>em</strong>a exigi<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> para a ideia de Dei<strong>da</strong>de. Por sua vez, se a<strong>Ord<strong>em</strong></strong> contém os bens e os males, o próprio Deus está para além do B<strong>em</strong> e do Mal.Neste caso, coloca-se numa situação de indiferença ontológica, não é o Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>,n<strong>em</strong> se encontra próximo dos assuntos humanos, desinteressando-se do curso <strong>da</strong>existência humana, <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des que a afectam e de tudo quanto ocorre no Mundo.Mas mesmo que se considere Deus como o Supr<strong>em</strong>o B<strong>em</strong>, e que se r<strong>em</strong>eta para oUniverso, onde ocorre a multiplici<strong>da</strong>de e o movimento, a existência <strong>da</strong> diferenciaçãoentre b<strong>em</strong> e mal, necessita<strong>da</strong> de governo e de ord<strong>em</strong>, contudo Deus estará á marg<strong>em</strong> <strong>da</strong>ordo rerum, sendo esta considera<strong>da</strong> apenas uma reali<strong>da</strong>de intermédia, idêntica aogoverno do Mundo. Ora, esta perspectiva abre passo à consideração <strong>da</strong> existência de umSupr<strong>em</strong>o Mal, que esquive, também, por essência, a noção de ord<strong>em</strong> ou governo. Destaforma, a mesma tese, a saber, a não identi<strong>da</strong>de entre Deus e a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, pode levar àafirmação de perspectivas acerca <strong>da</strong> noção Supr<strong>em</strong>a tão contrárias como as oraenuncia<strong>da</strong>s: a Duali<strong>da</strong>de de Princípios, B<strong>em</strong> e Mal, <strong>em</strong> eterno conflito, ou a afirmação<strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de - Indiferencia<strong>da</strong>, Inacessível e Incomunicável - do Princípio Supr<strong>em</strong>o.S<strong>em</strong>pre, num caso e noutro, se exige afirmar o alheamento dos Princípios <strong>em</strong> relação aquanto ocorre no Universo. Num caso e noutro, o Princípio não estabelece relação como Múltiplo, desinteressando-se, efectivamente, do curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana.Essencialmente, a dificul<strong>da</strong>de de identificar a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e Deus deriva de umaconcepção débil <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, sendo esta entendi<strong>da</strong> como administração de contrários,harmonia, acordo entre partes diss<strong>em</strong>elhantes, equilíbrio entre diferenças, distribuiçãode prémios e castigos. Desde esta perspectiva, a ord<strong>em</strong> estabelece uma relação com oMundo que obedece s<strong>em</strong>pre a um esqu<strong>em</strong>a dualista, no qual aquela noção se constituicomo instância superior, <strong>em</strong> relação ao cosmos. Síntese instauradora de concórdia, ela é,to<strong>da</strong>via, entendi<strong>da</strong> como reali<strong>da</strong>de intermédia, por referência ao Absoluto, que neladelega a administração do caos, <strong>em</strong> que consiste o Múltiplo. Integrando <strong>em</strong> si bens <strong>em</strong>ales, tal concepção de ord<strong>em</strong> não pode, por seu turno, ser de natureza divina, sob penade contaminar o Absoluto com essas reali<strong>da</strong>des, mun<strong>da</strong>nas e defectíveis. Nesta acepção,a ordo rerum não passa de uma instância d<strong>em</strong>iúrgica. E, não obstante a proximi<strong>da</strong>deque tal noção estabelece com os assuntos humanos, o Absoluto escapa, uma vez mais, àresponsabili<strong>da</strong>de de quanto ocorre no designado Mundo Sensível.482


Como ficou exposto 717 , to<strong>da</strong>s estas dificul<strong>da</strong>des e aporias são objecto deconfrontação <strong>em</strong> De ordine. No mesmo Diálogo, a noção de ord<strong>em</strong> é, também,defronta<strong>da</strong> com a concepção de um Deus-Trin<strong>da</strong>de e, até, com a reali<strong>da</strong>de de um DeusIncarnado. Com efeito, para asseverar a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, uma solução possívelé afirmar que tudo, inclusivamente o próprio Deus, é afectado pela ord<strong>em</strong>. Porém,quando, <strong>em</strong> De ordine, v<strong>em</strong> a lume esta possibili<strong>da</strong>de, pensa-se apenas no DeusIncarnado, Cristo 718 . Ora, uma vez que, nesse Diálogo não está esclareci<strong>da</strong> a relação deCristo com o Deus-Trin<strong>da</strong>de, esta linha de in<strong>da</strong>gação é aí abandona<strong>da</strong> 719 .Porque <strong>em</strong> De ordine se pensa a noção de ord<strong>em</strong> essencialmente como respostapara os contrastes e contradições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, uma <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des enfrenta<strong>da</strong>s noreferido Diálogo para atribuir a Deus tal quali<strong>da</strong>de é o facto de se exigir que a ordorerum integre a diferença, e Deus, inversamente, se reconduza à Suma Igual<strong>da</strong>de 720 .Para a natureza do Absoluto, por então, Sto. <strong>Agostinho</strong> apenas encontra duaspossibili<strong>da</strong>des de cariz ontológico, <strong>em</strong> disjunção exclusiva: ou identi<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong>como indiferença, ou diferença absoluta, incomunicável com o Mundo.Ao equacionar a solução para a dicotomia entre o b<strong>em</strong> e o mal, tipicament<strong>em</strong>aniqueísta, o filósofo integra a ord<strong>em</strong> como categoria ontológica a partir <strong>da</strong> adopçãodos princípios inerentes à metafísica bíblica <strong>da</strong> Criação, considerando aquela noçãocomo uma Reali<strong>da</strong>de Universal que compõe a forma <strong>da</strong>s criaturas de acordo com ascombinações triádicas já menciona<strong>da</strong>s. De igual modo, ao pensar a essência doAbsoluto a partir de uma relação dialéctica de identi<strong>da</strong>de na diferença, Sto. <strong>Agostinho</strong>pode finalmente conceber Deus como <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, erigindo uma alternativa metafísica àsmundividências com as quais dialogou mais de perto: a neoplatónica e a de Mani.Enfrentando o arianismo de Eunómio, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate – e, d<strong>em</strong>odo geral, <strong>em</strong> diálogo com o arianismo, querela que se pode encontrar quer na trocaepistolar com Pascêncio, coincidindo com o período de composição <strong>da</strong>quele Tratado,quer nos escritos de controvérsia dos anos 428 -, o Hiponense evidencia que o âmago <strong>da</strong>divergência por parte <strong>da</strong> posição de Niceia consiste <strong>em</strong> evitar to<strong>da</strong> a forma desubordinacionismo que se queira aplicar à essência divina. Sto. <strong>Agostinho</strong> que, no que717 Cf. Cap. I, 1. Articulações do filosof<strong>em</strong>a no diálogo De ordine.718 Cf. DO I, X, 28 ( CCL 29, p. 103).719 Cf. Ibid. O mistério trinitário e a sua relação com a Filosofia é proclamado <strong>em</strong> II, V, 16 ( CCL 29,p.115-116), mas não discutido.720 Cf. DO II, I, 2 ( CCL 29, p.107).483


se refere à estrutura do Universo criado, assume a estrutura hierárquica do real, rejeitato<strong>da</strong> a forma de graduação, quando se trata de compreender o Absoluto. Se aceita umaconcepção gradual dos seres, aplicando-a à estrutura do Múltiplo, inversamente, no queao Uno diz respeito, o filósofo considera que tal estrutura deve ser erradica<strong>da</strong> cerce 721 .Este facto permite aceder a uma concepção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que, entendi<strong>da</strong> na essência divina,exclui to<strong>da</strong> a forma de subordinação, s<strong>em</strong> que, por isso, se exima a uma determina<strong>da</strong>concepção de hierarquia. Precisamente a ela faz<strong>em</strong> referência as processões divinas, es<strong>em</strong> ela, não haveria <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, Inteligibili<strong>da</strong>de ou <strong>Ser</strong>, pois o Indiferenciado éincompreensível à razão.Efectivamente, ao modelo de ord<strong>em</strong> concebido como escalonamento está inerenteuma concepção do real onde o Múltiplo se encaminha para uma Uni<strong>da</strong>de ideal. Sto.<strong>Agostinho</strong> aceitará, <strong>em</strong> certa medi<strong>da</strong>, esta concepção do real, mas impregna a própriaUni<strong>da</strong>de não apenas de Diferença - também admiti<strong>da</strong> pelas propostas maniqueísta e aneoplatónica, ca<strong>da</strong> uma a seu modo - mas de Multiplici<strong>da</strong>de, considerando estaindissociável <strong>da</strong> dinâmica trinitária que define o Princípio Supr<strong>em</strong>o. De facto, oneoplatonismo concebia este dinamismo como um projecto no qual a singulari<strong>da</strong>de e adiferença se anulariam definitivamente, inviabilizando a comunicação entre Uno eMúltiplo, no que se refere à relação com o Mundo, e anulando a própria diversi<strong>da</strong>de, aoatribuir-lhe negativi<strong>da</strong>de. Por sua vez, o maniqueísmo postulava uma concepção doUniverso fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na eterna dialéctica dos diferentes, que apenas se harmonizammomentaneamente, subsistindo o combate definitivo a fim <strong>da</strong> anulação de Um peloOutro.Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita uma mundividência alicerça<strong>da</strong> quer no Isolamento eIncomunicabili<strong>da</strong>de do Princípio, quer no conflito eterno de duas substâncias. Se oprimeiro modelo inviabiliza uma efectiva comunhão, tanto no plano horizontal como novertical, o segundo promulga o eterno desejo de anulação de um princípio pelo outro,perpetuando o carácter essencialmente bélico do real. No primeiro caso, o Uno esquivasea to<strong>da</strong> a forma de relação com o Múltiplo, e a relação que, no designado MundoSensível, se dá entre diferentes, é considera<strong>da</strong> de modo apenas extrínseco, visando aconcordância entre as partes e o Todo. Meramente acidental, tal forma derelacionamento não chega a atingir nível ôntico, não ultrapassando o domínio de um elo721 Cf. DT VI, VI-VIII ( CCL 50, p. 236-238), onde Sto. <strong>Agostinho</strong> explana a simplici<strong>da</strong>de divina, pornegação <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des múltiplas, nas criaturas.484


convencional, razão pela qual pode, ou não, suceder, s<strong>em</strong> que isso afecte o curso dosacontecimentos e a ordo rerum. Neste contexto, os seres humanos têm motivo para nãose fiar de uma tal forma de relação. No segundo caso – aquele que cont<strong>em</strong>pla aduali<strong>da</strong>de de princípios <strong>em</strong> eterno conflito –, há relação, mas ela não constrói reali<strong>da</strong>de,apenas destrói. Não se trata, sequer, de uma dialéctica de opostos a fim de umareconciliação que, na mundividência maniqueísta, nunca se dá, mas de uma relação que,momentaneamente, se estabelece sob forma de conflito, a fim de que, já no t<strong>em</strong>po, masde modo particular numa dimensão escatológica, o poder do mais forte anule o poder domais fraco, r<strong>em</strong>etendo-o para o reino que compete à sua debili<strong>da</strong>de. Esta tese, nãoobstante ser defendi<strong>da</strong> pela escatologia maniqueísta - que vê o múltiplo e a suaexistência t<strong>em</strong>poral como o lugar de conflito entre Luz e Trevas, a fim de que oprimeiro vença o segundo - não deixa de encerrar uma profun<strong>da</strong> contradição. Comefeito, de que modo a Luz vencerá as Trevas, de que modo as anulará, se ambas coexist<strong>em</strong>e subsist<strong>em</strong> <strong>em</strong> igual<strong>da</strong>de de natureza? Inevitavelmente, o conflito eternizar-seá,pois a uma aparente vitória <strong>da</strong> Luz seguir-se-á uma nova derrota dela, pelas Trevas, erecomeça o combate.Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebe-se de que só uma concepção do Princípio Supr<strong>em</strong>oestabeleci<strong>da</strong> segundo um princípio de relação que atinja o ser <strong>da</strong>s coisas, abrindo,simultaneamente, ao acolhimento <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, poderá superar o conflito entreIdenti<strong>da</strong>de e Diferença, inerente àquelas formas de concepção do mundo. É nestecontexto que a concepção augustiniana de relação, quer aplica<strong>da</strong> à estrutura doMúltiplo, admitindo hierarquia, quer entendi<strong>da</strong>, essencialmente, como essência <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de divina, anulando to<strong>da</strong> a forma de subordinação, supõe uma nova propostaacerca <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>.Em última instância, de que modo Sto. <strong>Agostinho</strong> concebe a noção de ord<strong>em</strong>, nointerior do Absoluto, entendendo este Princípio como Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de? Como já seadvertiu, mais do que no facto de propor a essência trinitária <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de éessencialmente a noção de Uni<strong>da</strong>de que será reinterpreta<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>, precisamentea partir do modo como entende aquela noção Supr<strong>em</strong>a.Ao adoptar uma mundividência na qual o Absoluto é entendido como Uni<strong>da</strong>de naTrin<strong>da</strong>de, Sto. <strong>Agostinho</strong> anula, acima de tudo, a introdução de graus, no seio <strong>da</strong>essência divina. Antes de mais, é a Eterni<strong>da</strong>de e Imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de que necessitaser preserva<strong>da</strong>, qualquer que seja o modo de compreensão <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Trinitária, <strong>em</strong> Deus.Por isso, será na análise <strong>da</strong>s processões divinas que a condição absoluta <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de se485


evidenciará. A par do esclarecimento <strong>da</strong>s relações trinitárias na essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>deserá possível diluci<strong>da</strong>r o sentido mais radical <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>.A in<strong>da</strong>gação augustiniana <strong>da</strong>s processões divinas ostenta a radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relaçãoque as constitui. E, não obstante não olvi<strong>da</strong>r que to<strong>da</strong> a relação exige uma correlação,Sto. <strong>Agostinho</strong> sublinha que ca<strong>da</strong> termo <strong>da</strong> relação é s<strong>em</strong>pre Um Outro, reconhecendose,nele, uma identi<strong>da</strong>de. Assim, o correlativo <strong>da</strong> geração é s<strong>em</strong>pre Outro, preservando asingulari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um dos termos, no caso o Pai e o Filho. Esta consistência de ca<strong>da</strong>um dos termos <strong>da</strong> relação como uma identi<strong>da</strong>de – reali<strong>da</strong>de para a qual se reserva otermo persona - evidencia mais ain<strong>da</strong> a condição substancial <strong>da</strong> relação. De modo ain<strong>da</strong>mais radical, a mente humana confronta-se com esta condição subsistente <strong>da</strong> relaçãoquando, como afirma o Filósofo de Hipona ao considerar a processão do Espírito <strong>Santo</strong>a patre filioque, o correlativo desaparece 722 .Com efeito, ao ensaiar a inteligência do mistério, no que se refere à natureza <strong>da</strong>terceira Pessoa <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, a mente humana fica confronta<strong>da</strong>, simplesmente, com arelação. Porém, esta relação não é já, como propunha a tabela aristotélica, umacategoria vazia, meramente conceptual, que a mente vai identificar nas reali<strong>da</strong>des que arodeiam, to<strong>da</strong>s elas contingentes. Ela corresponde, ao invés, à essência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> divina,entendi<strong>da</strong> como doação gratuita. Na ver<strong>da</strong>de, é ca<strong>da</strong> processão que faz que o seu termodela seja um Outro: Idipsum, uma reali<strong>da</strong>de própria, na diferença que constitui a suaidenti<strong>da</strong>de. Este processo – relação que faz que um outro seja aquilo que é, edificando asua identi<strong>da</strong>de precisamente porque estabelece uma diferença, mantendo, to<strong>da</strong>via, comessa Alteri<strong>da</strong>de, uma perfeita Uni<strong>da</strong>de – é identificado mediante o termo dilectio siue722 Ao analisar as analogias <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, Sullivan considera que Sto. <strong>Agostinho</strong> resolvefinalmente o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> diferença entre a geração do Filho e a processão do Espírito <strong>Santo</strong>. Nãoobstante este A. seguir uma perspectiva de análise diversa <strong>da</strong> que ora apreciamos – pois centra-se noconhecimento analógico que a mente pode possuir de Deus, mediante a noção de imago – presta umcontributo válido ao esclarecimento <strong>da</strong> questão, quando escreve: “ (...) Knowledge produces an image ofitself, whereas love does not; similary the Son who is Word is the Image of Father, while the Spirit isnot.” [J. E. SULLIVAN, Image of Trinity ( Iowa-USA, 1963), p. 146]. De facto, também no plano <strong>da</strong>analogia <strong>da</strong> mente se compreende que o Filho é Imag<strong>em</strong> e Palavra, enquanto o Espírito é processão eAmor. Daí decorre a impossibili<strong>da</strong>de de representar este mediante um conceito ou imag<strong>em</strong> do espírito,facto que evidencia o carácter inefável <strong>da</strong> Pessoa do Espírito, a sua dimensão multiforme e a sua peculiarexpressão como donum Dei, s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> novi<strong>da</strong>de de intervenção nos acontecimentos humanos e nahistória. Desde esta perspectiva, a analogia <strong>da</strong> mente não esclarece tanto a natureza do Espírito quantocontribui para evidenciar a essência divina como caritas seu dilectio.486


caritas. Esta mesma é a definição cristã de Dei<strong>da</strong>de, tal como se pode ler <strong>em</strong> 1 Jo. 4:8 723 . É esta concepção de Dei<strong>da</strong>de que preside, como horizonte de fundo, a to<strong>da</strong> areflexão augustiniana acerca <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, na sua natureza Simplex et Multiplex. Étambém esta a noção augustiniana de ord<strong>em</strong>: Uni<strong>da</strong>de na Diferença, radica<strong>da</strong> naComunhão de identi<strong>da</strong>des. Por isso, não apenas há identi<strong>da</strong>de entre Deus e a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>,como só Deus é <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, <strong>em</strong> sentido pleno. Em última instância, as noções de ordo ecaritas são sinónimas. As d<strong>em</strong>ais expressões de ord<strong>em</strong> serão s<strong>em</strong>pre dimensõescontingentes dessa noção supr<strong>em</strong>a, mesmo quando se ass<strong>em</strong>elham de modo maisperfeito à própria Dei<strong>da</strong>de, como acontece com a vivência do duplo man<strong>da</strong>mento doamor ou <strong>da</strong> ordo amoris. Para as criaturas, a ord<strong>em</strong> realiza-se s<strong>em</strong>pre como noçãoadjectiva<strong>da</strong>, não como um Idipsum, como acontece na essência divina.Da análise <strong>da</strong>s processões divinas leva<strong>da</strong> a efeito pelo Hiponense evidencia-se, naVi<strong>da</strong> Eterna que é Deus, a relação de paterni<strong>da</strong>de/filiação, sendo ambos os termossubsistentes. O correlativo do Pai é o Filho e, inversamente, o correlativo do Filho é oPai, permanecendo eternamente a diferença, tal como eternamente permanece aprocessão por via de geração. Por seu turno, o Espírito procede eternamente a patrefilioque, decorrendo <strong>da</strong> relação ad inuic<strong>em</strong> <strong>da</strong>s outras duas pessoas. Por isso, Ele traduza Pessoa que brota <strong>da</strong> união eterna do Pai e do Filho. Igualmente por esse motivo oEspírito <strong>Santo</strong> não t<strong>em</strong> correlativo, procede do Pai e do Filho como de um únicoPrincípio, o qual, porém, é constituído por duas reali<strong>da</strong>des, eternamente diferentes eirredutíveis entre si. Na relação de geração, com efeito, poder-se-ia falar,aparent<strong>em</strong>ente, de duali<strong>da</strong>de. Porém, a presença do Espírito como procedente dessamesma relação, de modo absolutamente indissociável dela, evidencia, na essência <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de, o terceiro el<strong>em</strong>ento, o qual identifica uma relação real e torna irrecusável aafirmação <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> Deus 724 .723 Sto. <strong>Agostinho</strong> refere este passo bíblico v. gr. <strong>em</strong> In Iohan. Ep. ad Parthos IX ( PL 35, 2045), e <strong>em</strong> DTVI, V, 7;VII, III; IX, I ( CCL 50, p. 235-236; p. 251-254; p. 292-294); No Livro XV de De trinitateanalisa até que ponto mente humana pode distinguir a essência divina, afirma<strong>da</strong> pela Escritura naexpressão Deus caritas est, e a Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong> ( Cf. DT XV, XVII, 28-31: CCL 50A, p. 502-507).724 Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica o nome próprio e pessoal do Espírito <strong>Santo</strong>: caritas. ( cf. v. gr., DT XV, VII,29; XIX, 37: CCL 50A, p. 593-594; p. 513-514). Porém, este é, igualmente, o nome comum de Deus,com o qual ele se revela no contexto <strong>da</strong> Nova Aliança: Deus caritas est. Com este termo o Hiponensequer significar o amor mútuo do Pai e do Filho, do qual procede o Espírito <strong>Santo</strong>. Ora, este mesmo elo deunião é comum às três pessoas e, por isso, dificilmente se distingue <strong>da</strong> essência divina. Para entender a487


Assim, Sto. <strong>Agostinho</strong> expõe a relação entre paterni<strong>da</strong>de e filiação eximindo-a <strong>da</strong>existência de qualquer conflito no seio <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de. Ela não procede, também, de umacarência de Deus, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong> por finali<strong>da</strong>de a anulação de um <strong>da</strong>queles termos pelo outro.Na doação eterna do Pai ao Filho, à qual corresponde uma eterna união do Filho ao Pai,o filósofo afirma que se constitui a diferença no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. Para que esta relaçãoseja real, ela exige a efectiva distinção dos termos. Porém, tal relação não dimanaapenas num único sentido, pois ela não é realização egocêntrica ou narcisíaca do Pai nageração do Filho. Ela procede do Dom do Pai ao Filho, permanecendo, contudo, aidenti<strong>da</strong>de do Pai como Princípio de processão. Ao gerar um s<strong>em</strong>elhante por doação desi, o Filho relaciona-se com o Pai também mediante doação. Esta mútua doação não én<strong>em</strong> o Pai, n<strong>em</strong> o Filho, erigindo-se numa terceira reali<strong>da</strong>de, que une aqueles dois. Nelase evidencia a pessoa do Espírito <strong>Santo</strong>. Por isso, a nota pessoal desta terceira reali<strong>da</strong>deé Gratui<strong>da</strong>de: Dilectio siue Caritas.De facto, o Espírito <strong>Santo</strong> procede <strong>da</strong> gratui<strong>da</strong>de do Pai, na geração do Filho, e <strong>da</strong>gratidão do Filho, na relação com o Pai. Procede, afinal, <strong>da</strong> relação, inteligente e livre,de mútua doação, que dimana eternamente <strong>da</strong> Pessoa do Pai e <strong>da</strong> do Filho. Precisamenteaqui <strong>em</strong>erge a dificul<strong>da</strong>de, fort<strong>em</strong>ente senti<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>, de distinguir a condiçãoPessoal do Espírito <strong>Santo</strong> e a proprie<strong>da</strong>de essencial <strong>da</strong> substância divina, <strong>da</strong>do que,essencialmente, ambas as reali<strong>da</strong>des são o mesmo: Caritas siue Dilectio. Como anota oHiponense, Espírito santo é nome de substância, pois se aplica à essência divina, namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela mesma é, simultaneamente, Espírito e Superna Beatitude. To<strong>da</strong>via,enquanto nome pessoal, esta relação é índice e sinónimo, fun<strong>da</strong>mentalmente, de Dom.Ora, nesta vi<strong>da</strong> divina, que se pode definir como doação, consiste, essencialmente, apessoa do Espírito <strong>Santo</strong>, elo de união que se estabelece entre o Pai e o Filho.É <strong>em</strong> De trinitate 725 que de modo particular Sto. <strong>Agostinho</strong> enfrenta a referi<strong>da</strong>dificul<strong>da</strong>de, afirmando, a propósito <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de do Espírito <strong>Santo</strong>, que Ele é algoComum ao Pai e ao Filho. Este el<strong>em</strong>ento comum, que o filósofo define precisamentecomo tal – communio consubstantialis et aeterna –, é designado como caritas. De facto,mais do que uma dificul<strong>da</strong>de real, inerente à essência divina, o óbice a esta distinçãosingulari<strong>da</strong>de do Espírito, poder-se-á falar do terceiro termo de uma relação. Para designar a Uni<strong>da</strong>de doEspírito, que é Deus, falar-se-á <strong>da</strong> comunhão <strong>em</strong> que consiste a mesma relação consubstancial, que é aDei<strong>da</strong>de.725 DT VI, V, 7: « (…) Spiritus ergo sanctus commune aliquid est patris et filii, quidquid illud est (…) »(CCL 50, p. 235).488


entre Essência e Pessoa parece decorrer <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de a mente humana pensaraquela essência supr<strong>em</strong>a, tal como a descreve, isto é, enquanto Vi<strong>da</strong> Eterna <strong>em</strong> Doação,expressão do limite <strong>da</strong> razão humana quando confronta<strong>da</strong> com o Inefável. De acordocom a proposta augustiniana, dir-se-ia que não há distinção entre o Espírito <strong>Santo</strong> e aessência divina. De facto, ao não ter correlativo, e ao coincidir a Pessoa do Espírito coma reali<strong>da</strong>de comum ao Pai e ao Filho enquanto doação eterna ou Caritas, torna-se difícilnão identificar a pessoa do Espírito com a essência divina, igualmente defini<strong>da</strong> pelaEscritura como Caritas.To<strong>da</strong>via – e neste facto se fun<strong>da</strong>menta a concepção augustiniana de uma essênciaque é relação subsistente –, este mesmo Espírito procede de uma relação de mútuadoação entre diferentes, a saber, entre o Pai e o Filho. Ele é a união de ambos. EstaOutra reali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> cuja processão Sto. <strong>Agostinho</strong> reconhece a Pessoa do Espíritosanto, só pode ser entendi<strong>da</strong> como o el<strong>em</strong>ento comum <strong>da</strong> relação entre o Pai e o Filho.To<strong>da</strong>via, erigindo-se numa nova identi<strong>da</strong>de, ela não pode ser essencialmente diferentedo princípio que une aqueles dois, sob pena de se tornar uma espécie de quarto el<strong>em</strong>ento<strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de. Tal princípio ou reali<strong>da</strong>de é precisamente Doação. Por isso, o Hiponenseidentifica o nome próprio do Espírito <strong>Santo</strong> como Donum Dei.Efectivamente, to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de que provém de Deus é Dom, quer tal activi<strong>da</strong>de seconsidere na essência eterna divina e, portanto, também na reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s processões,quer se examine tal facto na relação entre a Dei<strong>da</strong>de e o Mundo. Poder-se-ia, então,dizer que, considera<strong>da</strong> a Trin<strong>da</strong>de divina, o Espírito <strong>Santo</strong> é a terceira identi<strong>da</strong>de de umarelação que, no caso <strong>da</strong> essência divina, subsiste eternamente como Caritas. Nestamedi<strong>da</strong>, o Espírito <strong>Santo</strong> é Dom, significando a própria reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação. Por suavez, considera<strong>da</strong> a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, o Espírito <strong>Santo</strong> é a própria subsistênciadivina, a qual não existe s<strong>em</strong> a união <strong>da</strong>quelas três enti<strong>da</strong>des. É precisamente este facto -o aferro de <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> considerar a Uni<strong>da</strong>de divina como relação subsistente – quetorna necessário insistir na efectiva divergência entre a noção augustiniana de Uni<strong>da</strong>de,mormente quando contrasta<strong>da</strong> com a versão neoplatónica de Uno. Para o Hiponense,não há <strong>Ser</strong> n<strong>em</strong> Uni<strong>da</strong>de à marg<strong>em</strong> <strong>da</strong> relação. Por sua vez, não há relação s<strong>em</strong>Identi<strong>da</strong>de na Diferença. Esta dupla dimensão do <strong>Ser</strong> é a que permite identificar <strong>Ord<strong>em</strong></strong>e <strong>Relação</strong>, na essência divina. Tal afirmação é ver<strong>da</strong>deira essencialmente na vi<strong>da</strong> íntimado próprio Princípio Supr<strong>em</strong>o. Sto. <strong>Agostinho</strong> negar-se-á a conceber o <strong>Ser</strong> divino àmarg<strong>em</strong> desta Uni<strong>da</strong>de na <strong>Relação</strong>, ou <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Para o filósofo, esta é, de facto, aconcepção mais radical do <strong>Ser</strong> e aquela que especifica a essência divina, tipificando a489


activi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste a Dei<strong>da</strong>de. Esta define-se na relação entre as identi<strong>da</strong>desque, à falta de expressão mais adequa<strong>da</strong>, são designa<strong>da</strong>s pelo termo persona.A Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essência divina é precisamente relação de pessoas, a qual se podeidentificar num único termo: Amor subsistente. Este termo indica que, seja qual for aperspectiva sob a qual se considere a relação <strong>em</strong> Deus, ela implica, s<strong>em</strong>pre, a existênciade três reali<strong>da</strong>des, fazendo convergir ca<strong>da</strong> termo ou pessoa numa outra reali<strong>da</strong>de.Assim, a Pessoa do Pai t<strong>em</strong> como termo o Filho e a Pessoa do Filho, <strong>em</strong> união dedoação ao Pai, t<strong>em</strong> como termo o Espírito <strong>Santo</strong>, consistindo este na própria relação deambos aqueles. Na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a identi<strong>da</strong>de do Espírito <strong>Santo</strong> procede <strong>da</strong> doação desi a outr<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica-a com o nome pessoal de Dom.É desta convergência entre a natureza <strong>da</strong> Pessoa do Espírito e a <strong>da</strong> própriaessência divina que brota a dificul<strong>da</strong>de de distinguir ambas as reali<strong>da</strong>des. De facto, <strong>em</strong>De trinitate, a propósito <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de do Espírito <strong>Santo</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma setratar-se de uma reali<strong>da</strong>de comum ao Pai e ao Filho - spiritus ergo sanctus communealiquid est Patris et Filii, quidquid illud est 726 . Para este el<strong>em</strong>ento comum, definido,precisamente, como uma comunhão consubstancial e eterna – communioconsubstantialis et aeterna –, o filósofo encontra a designação de Caritas, nome próprio<strong>da</strong> essência divina. Esta ambigui<strong>da</strong>de de que se reveste a exposição augustiniana sobre anatureza do Espírito <strong>Santo</strong> – singulari<strong>da</strong>de ou essência? -, não obstante causar aopróprio Hiponense um certo <strong>em</strong>baraço, to<strong>da</strong>via é reveladora <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>concepção augustiniana de divin<strong>da</strong>de. Communio consubstantialis significa, a umt<strong>em</strong>po, a relação subsistente dos diferentes, e a singulari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um deles, s<strong>em</strong> aqual se anularia a relação. O Espírito <strong>Santo</strong> é, por conseguinte, esta relação, a qual é, aum t<strong>em</strong>po, Comum e Própria, dependendo <strong>da</strong> perspectiva sob a qual a mente humana aconsidere. Tal relação não pode, efectivamente, designar-se senão como caritas oudilectio.Porém, se desta forma é possível entr<strong>em</strong>ostrar a presença de uma tríplice relaçãona essência divina, torna-se difícil identificar o el<strong>em</strong>ento comum, que faz <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>deuma Uni<strong>da</strong>de, e mostrar que tal princípio não converte a Uni<strong>da</strong>de divina <strong>em</strong> um quartoel<strong>em</strong>ento, para além <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de. É precisamente na natureza deste el<strong>em</strong>ento comum e726 Cf. DT VI, V, 7 ( CCL 50, p. 235-236).490


na especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s relações de processão que o constitu<strong>em</strong> que se evidencia aacepção mais radical <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong> 727 .Na ver<strong>da</strong>de, é precisamente porque a noção augustiniana de ord<strong>em</strong> ultrapassa aconcepção de uma mera disposição hierárquica, graduação ou ordenação de seres, ou,mesmo, a ideia do simples governo dessa varie<strong>da</strong>de, resgatando-se, ain<strong>da</strong>, ao t<strong>em</strong>po e aomovimento, que ela não t<strong>em</strong>, nas reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, o princípio do seu ser e <strong>da</strong> suainteligibili<strong>da</strong>de. O mundo criado possui ord<strong>em</strong>, por reflexo e comunhão na <strong>Ord<strong>em</strong></strong>Soberana, <strong>em</strong> que consiste a essência divina. Por isso, o conhecimento humano destanoção supr<strong>em</strong>a só pode <strong>da</strong>r-se mediante as criaturas. Por conseguinte, ele é s<strong>em</strong>preenigmático e mediado por imagens, mesmo quando se tome como ponto de parti<strong>da</strong> oreflexo <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> supr<strong>em</strong>a naquela criatura que mais se ass<strong>em</strong>elha com o divino, asaber, a própria mente humana, e que, na análise desta, o ser humano aten<strong>da</strong> ao ápiceque a constitui, enquanto imago dei. Deste facto decorre tanto o carácter fugidio <strong>da</strong>noção de ord<strong>em</strong> - que dificilmente se deixa colher num conceito único ou numadefinição, causando o apuro do entendimento humano quando quer aceder àcompreensão <strong>da</strong>quela noção 728 , como a radicali<strong>da</strong>de dessa mesma noção, através <strong>da</strong>qual se identifica a Soberania de Deus face ao Mundo Criado.Por sua vez, ao identificar a noção de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> com a própria subsistência <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de divina na diferença, torna-se visível que, para <strong>Agostinho</strong>, está <strong>em</strong> análise anoção de relação, a qual, por seu turno, consiste na expressão mais radical do <strong>Ser</strong>. Nametafísica augustiniana, ord<strong>em</strong> e relação são termos sinónimos s<strong>em</strong>pre que esta últimaseja concebi<strong>da</strong> na sua acepção plena, isto é, integrando a Diferença na Uni<strong>da</strong>de, es<strong>em</strong>pre que essa dinâmica de constitua como doação eterna. Por conseguinte, só noAbsoluto se identificam tais reali<strong>da</strong>des. Sendo assim, impõe-se indicar qual acaracterística que especifica a ord<strong>em</strong>, ou, dito de outro modo, urge in<strong>da</strong>gar desde que727 Sto. <strong>Agostinho</strong> refere-se a este el<strong>em</strong>ento comum já <strong>em</strong> De fide et symb. IX, XIX como sendo a pessoado Espírito: “ (...) ausi sunt tamen qui<strong>da</strong>m ipsam communion<strong>em</strong> patris et filii atque, ut ita dicam,deitat<strong>em</strong>, quam graeci ♒♋ appellant, spiritum sanctum credere: ut, quoniam pater deus etfilius deus, ipsa deitas, qua sibi copulantur et ille gignendo filium et ille patri cohaerendo, ei a quo estgenitus aequetur.” ( CSEL 41, p. 23). Esta doutrina <strong>da</strong> identificação entre a processão pessoal do Espíritoe a deitas será desenvolvi<strong>da</strong> posteriormente, de modo particular <strong>em</strong> DT VI, V, 7; IX, VIII-XII ( CCL 50,p. 235-236; p. 304-310).728 Cf. DO I, II, 3; I, VIII, 26 ( CCL 29, p. 90; p. 102). Na<strong>da</strong> mais evidente do que a ord<strong>em</strong>, na<strong>da</strong> maisdifícil de apreender, por parte do entendimento humano, quando se <strong>em</strong>penha nessa tarefa.491


perspectiva Sto. <strong>Agostinho</strong> entende a relação, quando faz convergir nela a noção de<strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Recorde-se que o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong> noção augustiniana de<strong>Ser</strong>, e é esta categoria radical que está <strong>em</strong> causa, quando o Hiponense averigua acerca<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>.Na essência divina, o Princípio <strong>da</strong>s processões divinas r<strong>em</strong>ete à Pessoa eidenti<strong>da</strong>de do Pai – precisamente a de ser Princípio, a única Pessoa <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de que édeo non ex deo. Só o Pai é principio sine principium. Porventura é este facto quepermite falar <strong>da</strong> perfeita Unici<strong>da</strong>de de Deus, considerando o Absoluto como um ÚnicoPrincípio do qual depend<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as d<strong>em</strong>ais reali<strong>da</strong>des, quer na Vi<strong>da</strong> Espiritual que éDeus, quer nas reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s por Ele 729 . Esta condição absolutamente primordial doPai constitui a identi<strong>da</strong>de dele e estabelece a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s processões. Uma vez que elas serealizam eternamente, esta condição primordial do Pai não fere a identi<strong>da</strong>de de essência.Deste modo, a busca augustiniana de inteligibili<strong>da</strong>de para um Deus-Trin<strong>da</strong>de afasta todo729 Sobre o <strong>em</strong>prego de termo Principium, <strong>em</strong> De trinitate, v., sobretudo, DT V, XIII, 14 (CCL 50, p. 220-222). Já <strong>em</strong> De ordine Sto. <strong>Agostinho</strong> sintetizava a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação filosófica: “ (...) Philosophiaration<strong>em</strong> promittit et uix paucissimos liberat, quos tamen non modo non cont<strong>em</strong>nere illa mysteria sed solaintellegere, ut intellegen<strong>da</strong> sunt, cogit, nullumque aliud habet negotium, quae uera et, ut ita dicam,germana philosophia est, quam ut doceat, quod sit omnium rerum principium sine principio quantusque ineo maneat intellectus quidue inde in nostram salut<strong>em</strong> sine ulla degeneratione manauerit, qu<strong>em</strong> unumdeum omnipotent<strong>em</strong>, eumque tripotent<strong>em</strong> patr<strong>em</strong> et filium et spiritum sanctum, docent ueneran<strong>da</strong>mysteria, quae fide sincera et inconcussa populos liberant, nec confuse, ut qui<strong>da</strong>m, nec contumeliose, utmulti, praedicant.” ( DO II, V, 16: CCL 29, p. 115-116). Posteriormente, ao in<strong>da</strong>gar a natureza dessePrincipium sine principio, insiste que ele corresponde <strong>em</strong> exclusivi<strong>da</strong>de à Pessoa do Pai, sublinhando aUnici<strong>da</strong>de do Princípio: “ (...) principium sine principio solus pater est; ideo ex uno principio esse omniacredimus.” ( De gen. ad litt. imperf. liber III: CSEL 28/1, p. 462). Para o Hiponense, este esclarecimentoé importante, <strong>da</strong>do que, segundo a peculiar exegese que faz de Io. 8, 25, Cristo dirá de si mesmo serPrincípio, expressão que o poderia igualar ao Pai, fun<strong>da</strong>mentando a interpretação dos patripassionistas.Sto. <strong>Agostinho</strong> distinguirá um Princípio s<strong>em</strong> Princípio e um princípio cum alio principio, entendendoneste último sentido as palavras de Cristo no referido passo de Jo. 1:1-2 ( Cf. De gen ad litt. imperf. liberIII: CSEL 28/1, p. 462). E, <strong>em</strong> Collatio cum Maximino 17, lê-se: “(…) Siquid<strong>em</strong> et Filius in principioerat: Pater uero ante principium et sine principio est, ut ingenitus et innatus.” : PL 42, 734). Cristo, aoreunir numa só pessoa, humana e divina, o t<strong>em</strong>po e a Eterni<strong>da</strong>de, torna-se Princípio de uma nova Criação,numa dupla acepção. Enquanto Verbo Eterno, no qual se contém to<strong>da</strong>s as rationes aeternae, nele vive,também, a ratio eterna <strong>da</strong> sua própria Incarnação; e enquanto criatura presente na história, ele éprimogenitus omnis creaturae enquanto inaugura um novo modo de vi<strong>da</strong>, no qual é possível a existênciat<strong>em</strong>poral uni<strong>da</strong> à eterni<strong>da</strong>de do Princípio ( v. também, Conf. XII, XX, 29 ( CCL 27, p. 230-231); DT VI,II, 3 (CCL 50, p. 229-231).492


o assomo de degra<strong>da</strong>ção, <strong>em</strong> Deus, ao mesmo t<strong>em</strong>po que declina o espectro dopoliteísmo, na relação dos homens com o divino.O Pai gera. Esse facto diz simplesmente que tal Princípio dá o seu ser a um Outro.Ora, cabe interrogar por que razão o faz. O esqu<strong>em</strong>a de processões trinitárias propostopelo neoplatonismo encontraria numa necessi<strong>da</strong>de íntrinseca ao Uno a resposta paraambas as activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipóstase Supr<strong>em</strong>a. Necessitado de difundir o B<strong>em</strong> que Ele é,doar-se-ia. E, necessitado de conhecimento de si, pois se alheia do Intelecto, faria queele <strong>em</strong>anasse de si. Nesta perspectiva, é a necessi<strong>da</strong>de que move o Princípio aestabelecer relação. Ao invés, a proposta augustiniana para compreender a essênciatrinitária do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o anula todo assomo de necessi<strong>da</strong>de. O Pai gera s<strong>em</strong> que, paraesse facto, se encontre, sequer, uma razão suficiente, n<strong>em</strong> mesmo a de difundir aBon<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que consiste. Fá-lo tão-só por gratui<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong> porquê. Enquanto Vi<strong>da</strong>Espiritual, dota<strong>da</strong> de inteligência e liber<strong>da</strong>de, o Princípio quer que um Outro participe<strong>da</strong> sua eterna felici<strong>da</strong>de. O efeito deste acto de doação, <strong>da</strong><strong>da</strong> a plena s<strong>em</strong>elhança entre oPrincípio e o termo ad qu<strong>em</strong> <strong>da</strong> mesma, é a constituição de uma Alteri<strong>da</strong>de real. O Filhonão é uma <strong>em</strong>anação do Pai, mas uma reali<strong>da</strong>de Outra do Pai. Por sua vez, a relação doFilho para o Pai procede do reconhecimento, por parte do Filho, <strong>da</strong> total dependência <strong>da</strong>sua identi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> função <strong>da</strong> liberali<strong>da</strong>de do Princípio. Este reconhecimento <strong>da</strong> fonte <strong>da</strong>sua identi<strong>da</strong>de na Pessoa do Pai expressa-se, precisamente, mediante a gratidão. Porisso, também o Filho, à s<strong>em</strong>elhança do Pai, se doa gratuitamente a Ele, exercendo a sualiberali<strong>da</strong>de. Por ela, o Filho oferta eternamente ao Pai tudo aquilo que Dele recebeu: oseu ser, que, afinal, não é diferente <strong>da</strong> essência divina.Nesta correlação – no elo de união que o Pai e o Filho estabelec<strong>em</strong> entre si –revela-se, preferencialmente, a identi<strong>da</strong>de de essência, manifestando-se a naturezarelacional <strong>da</strong> própria substância divina, enquanto Uni<strong>da</strong>de. Como ficou dito, é um factoque Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue, claramente, a essência divina <strong>da</strong> predicação secundumrelatiuum. Por definição, a essência ou substância não é um predicado relativo. No caso<strong>da</strong> essência divina, indica subsistência eterna, <strong>em</strong> identi<strong>da</strong>de com o <strong>Ser</strong> de Deus. Porém,<strong>da</strong>do que a Uni<strong>da</strong>de divina é constituí<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong>s processões, aquilo quetransparece de uma análise <strong>da</strong> concepção augustiniana de Absoluto é a noção de umDeus que é <strong>Relação</strong> Subsistente de hipóstases. Esta mesma é a acepção mais profun<strong>da</strong><strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>. Há uma forma supr<strong>em</strong>a de relação que não é n<strong>em</strong>aleatória n<strong>em</strong> irracional, pois parte de um Princípio sumamente Inteligente e Livre,493


eferente último de to<strong>da</strong>s as processões, quer no caso <strong>da</strong> geração do Filho, onde adependência do Princípio se manifesta à razão com maior evidência, quer no que serefere à processão do Espírito <strong>Santo</strong>.Efectivamente, s<strong>em</strong> deixar de insistir no facto de tal processão ser do Pai e doFilho – spiritus sanctus ab utroque procedit -, Sto. <strong>Agostinho</strong> refere que o Espírito<strong>Santo</strong> procede do Pai principaliter 730 . Esta afirmação é apenas uma consequência lógica<strong>da</strong> assunção <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de. O Pai é Princípio. Na ver<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> equalquer forma de relação haverá de proceder Dele, principal e primordialmente, poiss<strong>em</strong> a doação do Pai ao Filho, a processão do Espírito <strong>Santo</strong> não se compreenderia.To<strong>da</strong>via, na exacta medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o Espírito <strong>Santo</strong> é essa reali<strong>da</strong>de que consiste nadoação mútua do Pai e do Filho, s<strong>em</strong> ser nenhum dos termos <strong>da</strong> relação, mas erigindosena relação mesma, esta processão não pode deixar de ser ab utroque, <strong>em</strong> perfeitaidenti<strong>da</strong>de. O Espírito <strong>Santo</strong> não procede mais do Pai do que do Filho, caso <strong>em</strong> que, denovo, se introduziria subordinação, na essência divina. N<strong>em</strong> se pode afirmar que oEspírito <strong>Santo</strong> procede do Pai pelo Filho, caso <strong>em</strong> que se afastaria do Princípio. OEspírito <strong>Santo</strong> procede principaliter a patre et essencialiter ab utroque. Sto. <strong>Agostinho</strong>compreendeu que só assim é possível garantir, a um t<strong>em</strong>po, a <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, no interior <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de, garantindo a inteligibili<strong>da</strong>de desta relação como identi<strong>da</strong>de na Diferença, e aUni<strong>da</strong>de de essência, na relação <strong>da</strong>s hipóstases. De facto, o Pai gera por gratui<strong>da</strong>de, oFilho doa-se gratuitamente ao Pai e, desta mútua doação procede o Espírito <strong>Santo</strong>,precisamente enquanto doação. Para a designar, Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>prega os termoscaritas ou dilectio: Amor que Une eternamente duas Identi<strong>da</strong>des, procedendodinamicamente <strong>da</strong> relação de doação que entre ambas se estabelece.Como ficou dito, ao considerar assim a relação trinitária, o Hiponense não podedeixar de concluir a extr<strong>em</strong>a dificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> diferenciar a Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong> e aessência divina. Com efeito, <strong>em</strong> tudo se ass<strong>em</strong>elham estas duas noções. Por um lado,730 O Espírito <strong>Santo</strong> procede principaliter do Pai « (…) quia et filius de illo natus est, et spiritus sanctusprincipaliter de illo procedit, de quo natus est filius, et cum quo illi communis est id<strong>em</strong> spiritus « (<strong>Ser</strong>moLXXI, 26: RB 75, p. 93-94 ); V., também, DT XV, XVII, 29: « Et tamen non frustra in hac trinitate nondicitur uerbum dei nisi filius, nec donum dei nisi spiritus sanctus, nec de quo genitum est uerbum et dequo procedit principaliter spiritus sanctus nisi deus pater. Ideo aut<strong>em</strong> addidi, principaliter, quia et de filiospiritus sanctus procedere reperitur.” ; DT XV, XXVI, 47: “ (…) Filius aut<strong>em</strong> de patre natus est, etspiritus sanctus de patre principaliter, et ipso sine ullo interuallo t<strong>em</strong>poris <strong>da</strong>nte, communiter de utroqueprocedit. » ( CCL 50A, p. 503; p. 529: it.n.).494


Deus é Espírito e, por outro, enquanto Espírito Sumamente Perfeito, é Espírito deSanti<strong>da</strong>de ou Cari<strong>da</strong>de 731 . Porém, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que o Espírito <strong>Santo</strong> procededo Pai e do Filho exactamente enquanto dilectio que une estas duas hipóstases, como adoação mútua entre elas, a qual constitui uma terceira identi<strong>da</strong>de e s<strong>em</strong> a qual não sepoderia falar de relação. Ao arribar a este resultado, o próprio filósofo se senteconfundido, ao ser confrontado com uma quase-identi<strong>da</strong>de entre a Pessoa do Espírito eEssência divina. Esta conclusão é irrefragável, pois o Hiponense alcança-a porexigência de coerência intrínseca <strong>da</strong> sua própria análise.Contudo, se tal apuro é sentido com realismo por parte do filósofo, ele torna-serevelador no que à compreensão <strong>da</strong> essência divina diz respeito. Na ver<strong>da</strong>de, este<strong>em</strong>baraço faz ressaltar não apenas o facto de Deus ser relação, mas revela também aessência <strong>da</strong> própria relação: caritas. Na simplici<strong>da</strong>de desta afirmação – a essênciadivina é relação subsistente de hipóstases, cuja natureza é doação – consisteprecisamente, a noção augustiniana de <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Se, na Vi<strong>da</strong> Divina, não há hierarquia ougraduação, to<strong>da</strong>via não se poderia, de modo algum, afirmar que aí a ord<strong>em</strong> está ausente,não apenas pelas aporias que de tal facto adviriam na compreensão <strong>da</strong> relação entreDeus e o Mundo, mas antes de mais porque, retirando a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong> própria essência <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de, esta seria irracional, inconcebível e caótica. Com efeito, não se compreendecomo subsistiria a reali<strong>da</strong>de superna s<strong>em</strong> a ord<strong>em</strong> nela se realizar de modo excelente,garantindo a inteligibili<strong>da</strong>de de um Deus Simplex et Multiplex.Assim, a convergência entre a Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong> e a essência divinaeluci<strong>da</strong>, pelo menos de modo intuitivo, uma afirmação feita pelo próprio <strong>Agostinho</strong>,segundo a qual Deus é Pessoa. Para o filósofo, persona é um termo que se predica a see não ad aliud. O termo persona não é um relativo. To<strong>da</strong>via, esse facto não faz que tal731 Já <strong>em</strong> De fide et symbolo Sto. <strong>Agostinho</strong> insistia na identificação neotestamentária <strong>da</strong> essência divinacomo dilectio e não apenas como espírito. Porém, <strong>da</strong> mesma forma que n<strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de espírito éDeus, assim também n<strong>em</strong> to<strong>da</strong> a forma de dilecção é Deus: “ (...) et quod in illa enumeratione conexarumsibi rerum, ubi dicitur: omnia uestra sunt, uos aut<strong>em</strong> Christi, Christus aut<strong>em</strong> dei, et: caput mulieris uir,caput uiri Christus, caput aut<strong>em</strong> Christi deus, nulla fit comm<strong>em</strong>oratio spiritus sancti, ad hoc pertineredicunt, quia non fere in his, quae sibi conexa sunt, numerari solet ipsa conexio.” ( De fid. et symb. IX, 19 :CSEL 41, p. 25). Em De ciuitate dei encontra-se uma explanação <strong>da</strong>s diferentes acepções do termospiritus, analisa<strong>da</strong>s na graduação dos seres criados. Sto. <strong>Agostinho</strong> evidencia que Deus é Espírito noncreatum sed creator<strong>em</strong> ( cf. De ciu. dei XIII, 24. Todo o parágrafo refere a identi<strong>da</strong>de do Espírito <strong>Santo</strong>,na Trin<strong>da</strong>de e na sua relação com o Mundo e,<strong>em</strong> particular, com o ser humano: CCL 48, p. 408-414 ).495


identi<strong>da</strong>de se encerre sobre si mesma. Inversamente, essa reali<strong>da</strong>de só é a se, umsubsistente, precisamente porque está referencia<strong>da</strong> a Outro e se constitui nessa relação.Ora, a afirmação augustiniana segundo a qual Deus é Pessoa – razão pela qual trêsPessoas não significam uma multiplicação de deuses, mas constitu<strong>em</strong> um só Deus –indica precisamente que a essência divina se constitui na dinâmica <strong>da</strong>s relaçõesinterpessoais, a qual se unifica numa Dei<strong>da</strong>de cuja essência é caritas 732 . A nebulosa queenvolve a decisão augustiniana acerca <strong>da</strong> Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong> – na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> queEle é precisamente a Cari<strong>da</strong>de que une o Pai e o Filho -, permite de certo modovislumbrar <strong>em</strong> que consiste este Deus-Pessoa, de que fala Sto. <strong>Agostinho</strong> 733 . Ele éCari<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> si e na relação com o Mundo. Inseparável na sua Uni<strong>da</strong>de, onde está ca<strong>da</strong>uma <strong>da</strong>s Pessoas, onde ela actua, está to<strong>da</strong> a Trin<strong>da</strong>de e Uni<strong>da</strong>de de Deus, to<strong>da</strong> aCari<strong>da</strong>de que Deus É.Por último, nesta convergência entre a essência divina e a Pessoa do Espírito<strong>Santo</strong> evidencia-se a acção trinitária na relação com o Universo criado. De facto, se onome próprio do Espírito <strong>Santo</strong> é Cari<strong>da</strong>de - na essência divina, enquanto processão -,na sua relação com o Mundo Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que Ele se identifica melhor pelaexpressão Donum Dei. Porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a convergência entre esta pessoa divina e a essênciade Deus, enquanto Vnitas-Trinitas ou <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, melhor se manifesta que não é“isola<strong>da</strong>mente” que o Espírito <strong>Santo</strong> actua no Universo como Dom, mas que éprecisamente a Trin<strong>da</strong>de, enquanto Doação eterna, <strong>em</strong> eterna união de Amor que,mediante a Pessoa do Espírito <strong>Santo</strong>, está presente no Universo 734 . Por sua vez,732 Em DT VI, V, 7, Sto. <strong>Agostinho</strong> denuncia esta dificul<strong>da</strong>de, quando escreve: “ (...) Spiritus ergo sanctuscommune aliquid est patris et filii, quidquid illud est, aut ipsa communio consubstantialis at coaeterna;quae si amicitia conuenienter dici potest, dicatur, sed aptius dicitur caritas; et haec quoque substantia quiadeus substantia et deus caritas sicut scriptum est.” ( CCL 50, p. 235).733 DT VII, IV, 8: “ (...) Aut quoniam propter ineffabil<strong>em</strong> coniunction<strong>em</strong> haec tria simul unus deus, curnon etiam una persona ut ita non possimus dicere tres personas, quamuis singulam quamque appell<strong>em</strong>uspersonam, qu<strong>em</strong>admodum non possumus dicere tres deos, quamuis singulum qu<strong>em</strong>que appell<strong>em</strong>us deumsiue patr<strong>em</strong> siue filium siue spiritum sanctum?” ( CCL 50, p. 258); DT VII, VI, 11: “ (...) Ad se quippedicitur persona, non ad filium uel spiritum sanctum; sicut ad se dicitur deus et magnus et bonus et iustuset si quid aliud huiusmodi.” ( CCL 50, p. 262).734 Precisamente pela Uni<strong>da</strong>de consubstancial entre as três hipóstases, a Trin<strong>da</strong>de opera inseparavelmente:“(...) Intellegite ergo, fratres carissimi, Patr<strong>em</strong> et Filium et Spiritum sanctum inseparabiliter sibicohaerere, Trinitat<strong>em</strong> hanc unum Deum; et omnia opera unius Dei, haec esse Patris, haec esse Filii, haec496


no Universo, a ord<strong>em</strong> – a uni<strong>da</strong>de de cari<strong>da</strong>de entre diferentes seres espirituais,preservando a identi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um – só se realiza mediante essa acção trinitária.Sendo esta tarefa confia<strong>da</strong> ao Espírito <strong>Santo</strong> enquanto Donum Dei, ela implicauma peculiar forma de comunhão entre as criaturas espirituais. Sendo Dom, ela é,também, surpreendente, imprevisível e s<strong>em</strong>pre nova. E, sendo acção divina, ela escapaao entendimento humano, só podendo ser compreendi<strong>da</strong>, até certo ponto, mediante aexperiência de dilecção que possa ser concedi<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> um pelo próprio Espírito. Ora,sendo o próprio Deus que dá o Espírito <strong>Santo</strong> – por isso Este é donum Dei - estadistinção entre Deus e a terceira Pessoa <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de não pode ser meramente de razão,alcançando domínio ontológico. Com efeito, a terceira hipóstase distingue-se <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de na Trin<strong>da</strong>de, que é Deus 735 .Eis o motivo pelo qual a ord<strong>em</strong> é uma noção tão misteriosa e dificilmente se deixacaptar nas malhas do discurso humano, s<strong>em</strong>pre limitado e parco de possibili<strong>da</strong>des,quando confrontado com a Supr<strong>em</strong>a Gratui<strong>da</strong>de Divina. Recordámos que o filosof<strong>em</strong>a<strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, na sua formulação epidérmica, inquire sobre o modo como o Uno e oMúltiplo, Deus e as criaturas, se relacionam, de forma a compreender até que ponto oAbsoluto está, ou não, próximo <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des humanas. Ora, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong>concebe a noção de ord<strong>em</strong>, vindo a identificá-la na essência divina – relaçãosubsistente, que consiste na eterna comunhão entre a identi<strong>da</strong>de e a diferença -,aparent<strong>em</strong>ente esta noção afasta-se de modo abissal <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des humanas. Naperspectiva augustiniana, entre as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, sujeitas ao t<strong>em</strong>po e ao movimento,na<strong>da</strong> subsiste eternamente como relação que une diferenças. A consequência parece,portanto, inevitável: na<strong>da</strong> mais afastado dos assuntos humanos do que a noçãoaugustiniana de ord<strong>em</strong>, nenhum <strong>Ser</strong> mais desinteressado do destinos terrenos do que o<strong>Ser</strong> divino.To<strong>da</strong>via, uma análise <strong>da</strong> sua obra evidencia que não é assim. Por um lado, foipossível vislumbrar uma reali<strong>da</strong>de cujo ser consiste na eterna relação que une trêsreali<strong>da</strong>des diferentes, as quais comungam de uma mesma essência. Por outro lado, umaesse Spiritus sancti” ( In Iohan. Ev. Tract. XX, 13: CCL 36, p. 211); V. também, Ibid. XX, 3; XX, 7(CCL 36, p. 204; p. 206).735 A distinção entre os domínios próprio e comum (commune / proprium) v<strong>em</strong> aqui <strong>em</strong> socorro de Sto.<strong>Agostinho</strong>: DT V, XI, 12: “(...) ille spiritus sanctus qui non trinitas sed in trinitate intellegitur in eo quodproprie dicitur spiritus sanctus, relatiue dicitur cum et ad patr<strong>em</strong> et ad filium refertur quia spiritus sanctuset patris et filii spiritus est. » ( CCL 50, p. 219).497


vez compreendi<strong>da</strong> a essência divina – na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que tal é possível à mente humanae s<strong>em</strong>pre salvaguar<strong>da</strong>ndo a condição insondável de Deus –, importa retirar to<strong>da</strong>s asconsequências <strong>da</strong> dimensão intencional inerente à natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de enquanto doaçãode Amor. Por último, é necessário admitir, à luz dos pressupostos <strong>da</strong> metafísicaaugustiniana, que esta mesma <strong>Ord<strong>em</strong></strong> se pode realizar no Mundo, respeitando acontingência deste e, de modo peculiar, <strong>em</strong> e através do ser humano.Na perspectiva augustiniana, esta instauração <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po é fruto <strong>da</strong>Criação. Dito de outro modo, o Mundo é expressão gratuita de ord<strong>em</strong>, e não fruto de umacaso, de um caos a que se acrescentaria uma ordenação extrínseca e t<strong>em</strong>porária, ou doencontro de princípios beligerantes. Por isso se compreende que, para o Hiponense, aord<strong>em</strong> no Mundo não venha nunca a ser inviabiliza<strong>da</strong>, e que a sua maior ou menorexpressão no t<strong>em</strong>po jamais seja fruto exclusivo de uma decisão divina, não obstante seencontrar subordina<strong>da</strong> à vontade supr<strong>em</strong>a do Criador.A vontade divina, correspondendo ao acto Criador de Deus-Trin<strong>da</strong>de, instaura, d<strong>em</strong>odo radical e definitivo, no âmago de ca<strong>da</strong> criatura e no curso dos t<strong>em</strong>pos, a ord<strong>em</strong> e,porque de criaturas se trata, também a medi<strong>da</strong> e o número. Sendo assim, só a vontadehumana pode restringir a vontade de <strong>Ser</strong> que corresponde à ord<strong>em</strong> do Criador, impressano Universo. E, mesmo se o livre arbítrio <strong>da</strong> criatura humana pode resistir à realização<strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, de tal resistência resulta, apenas, uma omissão de reali<strong>da</strong>de, a qual se integra,ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, na ord<strong>em</strong>, mais não sendo do que uma expressão t<strong>em</strong>poral diminuta<strong>da</strong>quele Princípio Supr<strong>em</strong>o, sujeitando-se, também ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, ao Criador,enquanto instaurador de <strong>Ser</strong>. Precisamente porque a ord<strong>em</strong> se estabelece, <strong>em</strong> virtude <strong>da</strong>Criação, <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a expressão de ser e, portanto, também na vontade humana, o domíniode obstrução que esta poderia infligir à constituição <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po é s<strong>em</strong>prerelativo e sujeito à soberana <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, que é o próprio Deus, <strong>da</strong>dor de <strong>Ser</strong>.Quanto ao primeiro aspecto – por que meio o ser humano acede à compreensão dodivino –, Sto. <strong>Agostinho</strong> promulga a centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> função iluminadora do Verbocomo mediação de to<strong>da</strong> a forma de compreensão e, de modo particular, no que se refereao conhecimento de Deus ou conquista <strong>da</strong> Sabedoria. Por isso, a noção augustiniana deord<strong>em</strong> será indissociável <strong>da</strong> função que ocupa, na mundividência do Hiponense, aMediação do Verbo, Criador, Incarnado no t<strong>em</strong>po e princípio de iluminação de todos osseres humanos. Quanto ao segundo aspecto, a saber, a identi<strong>da</strong>de entre <strong>Ord<strong>em</strong></strong> e Amor,na essência divina, e a sua realização no ser humano, tanto a nível individual comocomunitário, ele torna-se possível mediante a união <strong>da</strong>s vontades, a modo de um498


projecto que, não obstante se desencadear no t<strong>em</strong>po, apenas se realiza na eterni<strong>da</strong>de, aíatingindo a sua plena realização. Contudo, esta união de boas vontades, que éfun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Deus, não obstante estar já germina<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po, está envolta<strong>em</strong> mistério, pois dirige-se à Eterni<strong>da</strong>de e vivencia-a já, de algum modo. De facto, aunião <strong>da</strong>s vontades na construção do B<strong>em</strong> Comum não se realiza s<strong>em</strong> o concursohumano e, contudo, ela não corresponde, efectivamente, a nenhuma reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>:transcende a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s criaturas. E, se é ver<strong>da</strong>de que ela se realizará plenamente nofinal dos t<strong>em</strong>pos, ela é já, no t<strong>em</strong>po, uma presença efectiva <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de. Esta acção deuni<strong>da</strong>de e comunhão, que se realiza de modo universal e surpreendente, é, de facto, naóptica de <strong>Agostinho</strong>, Donum Dei. Por isso, ela corresponde à acção do Espírito <strong>Santo</strong> not<strong>em</strong>po e impregna to<strong>da</strong>s as criaturas. A sua activi<strong>da</strong>de evidencia-se, contudo, de modoparticular, no ser humano, enquanto este pode participar dela mediante o Dom <strong>da</strong>Sabedoria.Da mesma forma que, ao expor o processo de mostração <strong>da</strong> existência de Deuscomo noção óptima, Sto. <strong>Agostinho</strong> indicava que a razão concebe a Ver<strong>da</strong>de naUni<strong>da</strong>de como B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o e a entende como um princípio a realizar mediante asfunções <strong>da</strong> mente humana, também agora, ao cont<strong>em</strong>plar a essência, Una e Trina, <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de ou Dei<strong>da</strong>de, o filósofo apresenta-a à mente como um projecto a realizar. E se,já ao cont<strong>em</strong>plar a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, a mente verificara ser aquela o B<strong>em</strong> Comum,desiderato universal - a realizar, portanto, <strong>em</strong> todos os humanos e por todos os humanos-, esta condição comunitária do <strong>Ser</strong> mais se acentua, quando a própria Ver<strong>da</strong>de éconcebi<strong>da</strong> como dilectio.Também por este facto - <strong>da</strong><strong>da</strong> a estreita união que o Hiponense estabelece entre asfunções <strong>da</strong> mente e a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> - a via de acesso à compreensão <strong>da</strong> essênciadivina, Una e Trina, como comunhão de Amor, t<strong>em</strong>, como sen<strong>da</strong> privilegia<strong>da</strong>, a análise<strong>da</strong> mente humana, enquanto imago dei. Assim, a explanação que o filósofo faz <strong>da</strong>estrutura do espírito humano, <strong>em</strong> concreto nos últimos oito Livros de De trinitate,pretende aproximar a essência divina <strong>da</strong> experiência humana.3. In abdito mentisPara compreender a natureza <strong>da</strong> alma humana com base na afirmação do relatobíblico <strong>da</strong> Criação, onde se lê que o ser humano é formado à imag<strong>em</strong> de Deus, o499


Filósofo de Hipona socorre-se, antes de mais, <strong>da</strong> concepção de ord<strong>em</strong> como hierarquiaontológica, e insiste que é pela presença <strong>da</strong> razão na mente que se pode falar de umaforma de ser, diferente e superior, na disposição <strong>da</strong>s criaturas no Universo.Efectivamente, a doutrina exposta sobre a natureza <strong>da</strong> mente humana <strong>em</strong> obrasanteriores a De trinitate é assumi<strong>da</strong> de modo cabal no referido Tratado, sendo aquelasimplesmente aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> e perspectiva<strong>da</strong> desde outra óptica, à hora de construir umpercurso racional para Deus, mediante a perscrutação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> Dele, impressa noespírito humano. Assim, quanto ficou escrito acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> mente, por ex<strong>em</strong>plo,<strong>em</strong> obras como De quantitate animae, De libero arbitrio ou De uera religionepermanece vigente, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>ga sobre a natureza e a efectiva presença<strong>da</strong> efígie divina no espírito humano, pretendendo, a partir de tal exame, aceder, tantoquanto possível, ao conhecimento <strong>da</strong> natureza do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o.Note-se, a título de ex<strong>em</strong>plo, o paralelo entre a expositio de De quantitate animae,onde se descreve uma via de ascensão do espírito <strong>em</strong> direcção ao repouso <strong>em</strong> Deus 736 , ea síntese apresenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> De trinitate acerca do percurso de ascese <strong>da</strong> mente 737 . Comefeito, trata-se, nesta obra, de reflectir sobre o apex mentis, já identificado, naquelaoutra, com a cont<strong>em</strong>platio. A este grau corresponde, <strong>em</strong> De quantitate animae, aestabili<strong>da</strong>de do espírito humano apud Deum. Do mesmo modo, no referido Diálogo, ofilósofo garantia que a beleza <strong>da</strong> alma era conquista<strong>da</strong> e assegura<strong>da</strong> precisamente <strong>em</strong>função <strong>da</strong> sua proximi<strong>da</strong>de com a Beleza Supr<strong>em</strong>a. Nos desenvolvimentos ulterioresefectivados pelo Hiponense, esse facto corresponderá à realização plena <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> deDeus na mente humana, a qual, indissociável de uma incarnação <strong>da</strong> beleza, é própria <strong>da</strong>anima ordinata e exige o movimento voluntário <strong>da</strong> alma <strong>em</strong> direcção à posse edesenvolvimento <strong>da</strong> sua forma.A imago dei que, <strong>em</strong> De trinitate, é descoberta pelo Hiponense in abdito mentis, éconsidera<strong>da</strong> pelo filósofo como princípio ontológico inerente à forma humana, medianteo qual esta se dirige para a cont<strong>em</strong>plação e união com Deus. Ora, a realização destaimago, precisamente por estar uni<strong>da</strong> a um processo de Criação que apenas se justificapela liberali<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, supõe o duplo movimento, por parte do ser humano,736 Cf. De quant. anim. XXXIII, 70- 76 ( CSEL 89, p. 217-225).737 DT XII, XV, 25: “ (…) Relinquentibus itaque nobis ea quae exterioris sunt hominis et ab eis quaecommunia cum pecoribus hab<strong>em</strong>us introrsum ascendere cupientibus, antequam ad cognition<strong>em</strong> rerumintellegebilium atque summarum quae s<strong>em</strong>piternae sunt uenir<strong>em</strong>us, t<strong>em</strong>poralium rerum cognitio rationalisoccurrit. » (CCL 50, p. 379).500


de conuersio et formatio. Este, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> o considera, não se dissocia deum processo de reformatio, no estado pós lapsário inerente ao género humano.De facto, para o Hiponense, a realização plena de ca<strong>da</strong> ser humano exige que eleassuma a imag<strong>em</strong> divina 738 . Porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a situação de deformitas <strong>da</strong> imag<strong>em</strong>, esteprocesso não se aliena, na condição histórica do ser humano, de um movimento derestauração <strong>da</strong> forma. Se é ver<strong>da</strong>de que tal reformatio indica uma recuperação doestado originário <strong>da</strong> forma, to<strong>da</strong>via tal condição é conquista<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> situaçãohistórica de ca<strong>da</strong> ser humano, imerso no curso dos t<strong>em</strong>pos. Por isso, na perspectivaaugustiniana, a formação <strong>da</strong> imago dei na mente humana integra o evoluir do ser not<strong>em</strong>po – a historici<strong>da</strong>de –, indissociável <strong>da</strong> situação real de ca<strong>da</strong> forma humana nomomento próprio <strong>da</strong> sua existência histórica.Assim, o processo de reformatio não recupera, para a forma humana, uma situaçãoidêntica à de um estado primordial – a proposta augustiniana não integra um movimentode regresso às origens –, mas acrescenta-lhe to<strong>da</strong> a densi<strong>da</strong>de ontológica adquiri<strong>da</strong> pelaexpansão do ser no t<strong>em</strong>po. A reformatio realiza-se, no ser humano, a partir do exactoposicionamento que ele ocupa na história. É no curso dos t<strong>em</strong>pos que o ser, enquantoproprie<strong>da</strong>de radical de to<strong>da</strong>s as existências, se desenvolve e se adensa, <strong>em</strong> direcção a umtelos. Ora, todo esse movimento, do qual o próprio cosmos está impregnado, é jádiferente do momento do seu exórdio, podendo afirmar-se que o universo possui maisser,na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se diferencia do Início uma vez que, mediante o curso dost<strong>em</strong>pos e o evoluir <strong>da</strong>s formas, abarca uma maior densi<strong>da</strong>de ontológica. Para Sto.<strong>Agostinho</strong>, este contexto metafísico é indissociável <strong>da</strong> situação concreta de ca<strong>da</strong> serhumano.Em todo o processo de conquista <strong>da</strong> imago dei para a mente, é precisamente anoção de forma que o filósofo indica, pois é esta que está coloca<strong>da</strong> no cerne na estrutura738 DT XV, VII, 11: “ (…) Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturampertinent eius sed secundum solam ment<strong>em</strong> imago dei dicitur una persona est et imago est trinitatis inmente.” ( CCL 50A, p. 475). Querendo encontrar, na obra do Hiponense, um “princípio de individuação”,ele não se há-de procurar n<strong>em</strong> na noção de natureza, n<strong>em</strong> na questiúncula acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> <strong>da</strong>s almas,probl<strong>em</strong>a insolúvel pelos motivos antes apontados. Aquela reali<strong>da</strong>de que faz de ca<strong>da</strong> ser humano umindivíduo diferente de outro, comungando, to<strong>da</strong>via, com ele, pois partilha uma mesma natureza, é a imagodei, impressa na mente pelo acto criador divino. Precisamente porque este princípio – a imago dei -encerra <strong>em</strong> si uma dinâmica essencialmente relacional, <strong>Agostinho</strong> prefere referir-se a ele mediante otermo persona.501


ôntica do ser humano. É esta mesma noção para a qual reclama, ao longo <strong>da</strong> sua obra,total dependência ontológica <strong>em</strong> face do Princípio de <strong>Ser</strong>. Por sua vez, a interligaçãoentre a concepção de forma - species, in statu visionis - e a beleza, é, também, uma notacomum nos escritos do Hiponense. A beleza do espírito humano reflecte a ord<strong>em</strong> neleexecuta<strong>da</strong>, a qual consiste na cont<strong>em</strong>plação <strong>da</strong> essência divina ou na união entre a almae Deus. Só conquistando essa situação se poderá falar, <strong>em</strong> sentido pleno, de uma animaordinata. Incontestavelmente, esta possibili<strong>da</strong>de do espírito humano constitui, para Sto.<strong>Agostinho</strong>, a uis animae, <strong>da</strong> qual apresenta um resumo, já <strong>em</strong> De quantitate animae.Sabendo que a alma humana não é de natureza divina, o filósofo afirma não haver,no universo <strong>da</strong>s criaturas, maior proximi<strong>da</strong>de entre o Uno e o Múltiplo do que aquelaque se estabelece entre Deus e a mente humana. Esta proximi<strong>da</strong>de é justifica<strong>da</strong> atravésdo el<strong>em</strong>ento comum que existe entre ambas as formas, divina e humana, e que consisteno factor espirituali<strong>da</strong>de. Este el<strong>em</strong>ento comum <strong>em</strong> naturezas tão díspares permite falarde uma conexão efectiva entre ambas, não obstante a infinita distância que as separa.De facto, se é à mente humana que Sto. <strong>Agostinho</strong>, quer considerando o conjunto<strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s, quer analisando a complexa estrutura do próprio ser humano,confere o primado na hierarquia ontológica, é lógico que se proponha proceder para acompreensão <strong>da</strong> essência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o a partir <strong>da</strong> análise de tal reali<strong>da</strong>de. Porém, oapelo augustiniano de ascese <strong>da</strong> mente não termina no conhecimento de Deus a partir <strong>da</strong>razão, n<strong>em</strong> sequer resulta de uma activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente por si própria e a partir de simesma. Convém recor<strong>da</strong>r, por conseguinte, que a autonomia <strong>da</strong> mente no exercício <strong>da</strong>ssuas funções é considera<strong>da</strong> como s<strong>em</strong>pre relativa.Ao propor-se aceder ao conhecimento <strong>da</strong> essência divina mediante a análise <strong>da</strong>imago dei impressa na mente humana, o Hiponense desafia um conhecimento do divinoa partir do próprio ser divino, uma compreensão de Deus e do real <strong>em</strong> Deus – apudDeum -, s<strong>em</strong> que, para obter tão ousado desiderato, seja necessário abdicar <strong>da</strong> condiçãofinita <strong>da</strong> criatura humana. Na ver<strong>da</strong>de, quando parte <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus para aceder aoconhecimento <strong>da</strong> essência, Una e Trina, <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, o filósofo não deixa de tomar,como ponto de egresso, uma reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>. Outra coisa não é a imag<strong>em</strong> de Deusimpressa no espírito humano, n<strong>em</strong> outra via se permite à condição finita do ser humano,para aceder ao divino.Por seu turno, seja qual for o estado <strong>em</strong> que se obtenha este conhecimento de Deus<strong>em</strong> Deus – per speculum ou per speci<strong>em</strong>; in statu uia ou in uisione pacis –, tal agniçãoreside, s<strong>em</strong>pre, numa reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>: a mente humana. Ora, este paradoxo, inerente à502


afirmação de uma certa conaturali<strong>da</strong>de entre Deus e os seres humanos – e não entre aalma e as formas, como defendiam as correntes filosóficas de filiação platónica –,sustentado, ao mesmo t<strong>em</strong>po, na abissal diferença entre Criador e criaturas, supõe aafirmação do carácter s<strong>em</strong>pre mediado do conhecimento do Absoluto, por parte <strong>da</strong>mente. A própria Ver<strong>da</strong>de é, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, uma reali<strong>da</strong>de a um t<strong>em</strong>po Supr<strong>em</strong>a eMediadora, mesmo considerando que Deus é mais próximo e familiar ao espíritohumano do que qualquer outra criatura. Com efeito, já <strong>em</strong> De quantitate animae ofilósofo declarara que entre todos os seres criados e o Criador - não obstante a infinitadistância que separa a alma e Deus - a maior proximi<strong>da</strong>de se verifica na própria almahumana, consistindo, nesse facto, a grandeza dela 739 .Na trama de mediações que se estabelec<strong>em</strong> entre os diferentes graus de serpresentes no Universo, Sto. <strong>Agostinho</strong> considerará, ain<strong>da</strong>, não apenas a maiorproximi<strong>da</strong>de entre a mente e o Absoluto – propinquior, quando compara<strong>da</strong> com asd<strong>em</strong>ais criaturas –, mas também a função, na constituição <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong>quelacriatura mais próxima de ambos, <strong>em</strong> superlativo – propinquius –, a qual o Hiponensevirá a identificar com a reali<strong>da</strong>de mediadora de Cristo, Verbo Incarnado. Assim, a teseaugustiniana segundo a qual nenhuma reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> está mais próxima do Absolutodo que a alma humana, evidencia, enquanto enunciado ontológico, a radicali<strong>da</strong>de que oHiponense confere à noção de ordo, caritas seu dilectio. Estes termos são sinónimospois a realização <strong>da</strong> ordo é, para o ser humano, a união com o Absoluto. To<strong>da</strong>via, estasó se realiza pela mediação do Verbo Incarnado.Igualmente próxima de Deus, até à plena comunhão com a substância divina, edos seres humanos, até à participação na mesma natureza e na mesma complexi<strong>da</strong>deontológica, imersa nos condicionamentos de espaço e t<strong>em</strong>po, a criatura que se coloca,mediante uma participação ontológica, entre Deus e os humanos, reunirá, <strong>em</strong> exclusivo,a condição de Ver<strong>da</strong>deiro Mediador. É assim que <strong>em</strong>erge como el<strong>em</strong>ento axial <strong>da</strong>metafísica augustiniana e chave <strong>da</strong> articulação do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, a figura doVerbo Incarnado: unus mediator dei et hominum homo christus iesus 740 .739 De quant. anim. XXXIV, 77: “(…) Audisti, quanta sit animae vis ac potentia. Quod ut breviterconligam: qu<strong>em</strong>admodum fatendum est, animam humanam non esse, quod deus est, ita praesumendumnihil inter omnia, quae creauit, deo esse propinquius.” ( CSEL 89, p. 225).740 A expressão, toma<strong>da</strong> de S. Paulo, é recorrente, na obra do Hiponense. A constituição do Hom<strong>em</strong>Cristo Jesus como Mediador exigirá o esclarecimento de quanto <strong>Agostinho</strong> condensa <strong>em</strong> De gen. ad litt.VIII, 14: “ (...) ex genere Israhel factus Emmanuhel nobiscum deus reconciliauit nos deo, hominum et dei503


Porém, antes de abor<strong>da</strong>r a Mediação de Cristo como realização plena <strong>da</strong> noção de<strong>Ord<strong>em</strong></strong>, é conveniente seguir os passos do Hiponense na análise <strong>da</strong> relação entre amente e o Absoluto, tendo, no entanto, s<strong>em</strong>pre presente que esta mesma in<strong>da</strong>gação nãoseria possível s<strong>em</strong> a acção do Mediador, enquanto Ele mesmo, Ver<strong>da</strong>de Iluminante, ésustentáculo do exercício <strong>da</strong> uera ratio, ou <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé.Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue claramente os uestigia trinitatis, presentes nas diferentesformas dos seres, e a imago Dei, impressa na mente humana pela essência trinitária doCriador. Já se referiu o motivo pelo qual - s<strong>em</strong> abdicar <strong>da</strong> consideração dos vestígios <strong>da</strong>trin<strong>da</strong>de nas reali<strong>da</strong>des corpóreas, sublinhando, nomea<strong>da</strong>mente, a constituição <strong>da</strong> formadelas numa estrutura ternária – o filósofo opta por in<strong>da</strong>gar a mente humana, para acederà essência trinitária de Deus per ea quae facta sunt. Contudo, <strong>Agostinho</strong> diferencia,ain<strong>da</strong>, na mente, três níveis de proximi<strong>da</strong>de com o Absoluto. Em primeiro lugar,também nela se encontram os uestigia trinitatis. Estes correspond<strong>em</strong> às associaçõesternárias de el<strong>em</strong>entos que interfer<strong>em</strong> na relação entre o ser humano e as reali<strong>da</strong>descorpóreas. Neste primeiro nível, o filósofo identifica as trin<strong>da</strong>des do hom<strong>em</strong> exterior e,nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate, abor<strong>da</strong>-as a modo de exercitatio animae, no intento defacilitar, às mentes menos familiariza<strong>da</strong>s com a reflexão sobre reali<strong>da</strong>des espirituais,uma percepção <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de divina, mesmo se nebulosa e muito imperfeita. No segundonível, Sto. <strong>Agostinho</strong> integra as trin<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mente que identifica ao analisar o processode auto-gnose. Esta in<strong>da</strong>gação é sobr<strong>em</strong>aneira rica de conteúdo, pois manifesta aconcepção augustiniana <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> mente humana, à qual serve de modelo aprópria noção de dilectio. Como se viu, é nesta noção que Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica aessência trinitária do Absoluto. Por último, e num domínio de máxima radicali<strong>da</strong>de,pois atinge nível ôntico, o filósofo in<strong>da</strong>ga sobre aquela dimensão <strong>da</strong> mente humana querecolhe a imago dei. A partir desta análise, estabelece s<strong>em</strong>elhanças e diferenças entre amente humana e a essência do Absoluto, permitindo conceber o dinamismo <strong>da</strong> relaçãoentre a Dei<strong>da</strong>de, Una e Trina, e essa peculiar expressão do Múltiplo que é o serhumano 741 .homo mediator, uerbum apud deum, caro apud nos, uerbum caro inter deum et nos (...).” ( CSEL 28/1, p.253).741 A leitura dos multíplices itinerários propostos por <strong>Agostinho</strong> como vias de acesso à compreensão <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de torna inevitável estabelecer um paralelo escrito de S. Boaventura, Itinerarium mentis in Deum. Éo próprio Doutor <strong>Ser</strong>áfico que aí cita com frequência o Hiponense, trazendo a colação obras como Deuera religione, De musica, ou mesmo a consagra<strong>da</strong> definição de pulchritudo, presente <strong>em</strong> De ciuitate504


Também nesta investigação o Hiponense mantém-se fiel à metodologia que colocaa mente humana no centro <strong>da</strong>s atenções s<strong>em</strong>, contudo, lhe conferir condição deAbsoluto, mais ain<strong>da</strong>, trazendo a claro a sua ver<strong>da</strong>deira estrutura relacional. Uma vezmais se verifica o movimento a que obedece esta metodologia e que fora descrito, deforma sintética, <strong>em</strong> De uera religione: noli foras ire, in te ipsum redi, transcende et teipsum 742 .dei: “omnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum qua<strong>da</strong>m coloris suauitate.” [De ciu.dei XXII, 19: CCL 48, p. 838; Itiner. ment.: II, 5: BONAVENTURA, Opera omnia t. V, (ed. Quaracchi,1891), p. 300-301]. No que se refere à influência dos corporalia sobre os sensibilia e, até, à própriaconcepção <strong>da</strong> mente humana, na qual estão impressas, máxime na m<strong>em</strong>ória, as regulae diiudicatio,mediante as quais o ser humano atinge ver<strong>da</strong>des eternas e imutáveis, ver Itiner. ment. II, 9: p. 301-302.To<strong>da</strong>via, se também S. Boaventura introduz uma destrinça entre os uestigia e a imago dei, para o Doutor<strong>Ser</strong>áfico esta distinção resulta de uma menor e maior manifestação <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>de com osgraus de ser nos quais ela se reflecte. Assim, é to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de que ex natura, reflecte a imag<strong>em</strong> <strong>da</strong>Trin<strong>da</strong>de. Porém, nos corporalia essa imag<strong>em</strong> espelha-se de modo imo, enquanto na criatura espiritual -no ser humano e máxime no ser angélico, cume na hierarquia <strong>da</strong>s criaturas - tal imag<strong>em</strong> se manifesta d<strong>em</strong>odo <strong>em</strong>inente. Se, tal como o Hiponense, também o <strong>Ser</strong>áfico recorre à trilogia ordo, mensura, numerus(ou modus, species, ordo; ou pondus, numerus, mensura : cf. Itiner. mentis, I, 11: p. 298) para identificara dinâmica trinitária <strong>da</strong>s criaturas, no caso de S. Boaventura a presença <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de não é meramentevestigial mas já especular, reflectindo uma Sabedoria que imprime, naquilo que faz, um ex<strong>em</strong>plo ouparadigma <strong>da</strong>quilo que É: Dei<strong>da</strong>de Una e Trina. Assim, se ambos os filósofos concor<strong>da</strong>m <strong>em</strong> afirmar qu<strong>em</strong>ais estão as coisas <strong>em</strong> Deus, do que Deus nelas, o Hiponense di-lo pensando nas rationes aeternae e napresença <strong>da</strong> forma <strong>da</strong>s criaturas nessa Sabedoria Incria<strong>da</strong> que é o Verbo, e afastando este, de algum modo,<strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s criaturas. Por sua vez, o <strong>Ser</strong>áfico considera como que uma Incarnação <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de já<strong>em</strong> todos os graus de ser, desde o mais imo ao Supr<strong>em</strong>o, considerando que o Verbo não é apenas Forma<strong>da</strong>s formas, mas também causa ex<strong>em</strong>plar destas. Estando presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> criatura, esta é imago dei. Porisso, não é só na mente que se encontra a via para aceder à trin<strong>da</strong>de divina, enquanto naquela estáimpressa a imag<strong>em</strong> de Deus, como afirma o Hiponense. Para S. Boaventura to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> qualquernível que se considere, proclama a Trin<strong>da</strong>de do Criador: “ (...) Omnis enim creatura ex natura est illiusaeternae sapientiae quae<strong>da</strong>m effigies et similitudo sed specialiter illa quae in libro scripturae per spiritumprophetiae assumta est ad spiritualium praefiguration<strong>em</strong> specialius aut<strong>em</strong> illae creaturae in quarum effigiedeus angelico ministerio voluit apparere specialissime vero ea quam voluit ad significandum instituerequae tenet non solum ration<strong>em</strong> signi secundum nomen commune verum etiam sacramenti.” ( Itiner.mentis, II, 12: p. 303, it.n..). A natureza inefável <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de torna-se, por conseguinte, ain<strong>da</strong> maispróxima <strong>da</strong>s criaturas, sendo mais acessível a ascese <strong>da</strong> mente e mais inexpiável a recusa de umconhecimento per uisibilia quae facta sunt ad inuisibilia Dei.742 Cf. VR XXXIX, 72 ( CCL 32, p. 234).505


Ora, <strong>da</strong>do que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a estrutura <strong>da</strong> mente humana e a essência doAbsoluto se tec<strong>em</strong> <strong>em</strong> íntima comunhão, tornando indissociáveis a reali<strong>da</strong>de de ambase, portanto, a compreensão delas, não faz sentido separar estes el<strong>em</strong>entos, na in<strong>da</strong>gação.Mais ain<strong>da</strong>, fazê-lo seria contrariar a própria dinâmica <strong>da</strong> metafísica augustiniana. É umfacto que, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De trinitate, as abor<strong>da</strong>gens parec<strong>em</strong> dissociar-se, tornandopossível uma divisão do Tratado <strong>em</strong> dois momentos, que se poderiam designar,respectivamente, por doutrinal e metafísico. Porém, não obstante tal septo corresponderà disposição corrente <strong>em</strong> algumas edições de texto, ele é artificial, precisamente porqueo princípio que o unifica é o exercício augustiniano <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> fé,no qual se imiscu<strong>em</strong>, harmoniosamente, o comentário do texto bíblico e a procura deinteligibili<strong>da</strong>de do mesmo.Quando Sto. <strong>Agostinho</strong> se dispõe a in<strong>da</strong>gar acerca <strong>da</strong> essência divina através <strong>da</strong>s<strong>em</strong>elhança que dela pode encontrar na imag<strong>em</strong> de Deus, necessita esclarecer doisaspectos essenciais. Por um lado, terá de identificar, no ser humano, a expressão dessaefígie divina e, por outro, obrigar-se-á a in<strong>da</strong>gar <strong>em</strong> que consiste a própria noção deimago dei.A primeira tarefa exige um reposicionamento <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> natureza humana, <strong>em</strong>concreto relativamente ao modo de conceber a essência <strong>da</strong> mente. Com efeito, desde asua conversão metafísica, Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeitara a hipótese de conceber Deus comosubstância extensa, eximindo a essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de às categorias dos corpos 743 . Porisso, ao in<strong>da</strong>gar sobre a efígie divina impressa no ser humano, descarta, desde logo, ahipótese de encontrar aquela imag<strong>em</strong> no corpo humano. To<strong>da</strong>via, <strong>da</strong><strong>da</strong> a estruturaantropológica específica do ser humano, a corporei<strong>da</strong>de não se dissocia por completo<strong>da</strong> mente, mesmo quando ela in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong> essência, Una e Trina, do Princípio.A segun<strong>da</strong> tarefa exige que <strong>Agostinho</strong> descortine a essência dessa relação que, <strong>em</strong>Deus, se designa por caritas, <strong>da</strong>do que, como se viu, é nela que encontra a natureza doAbsoluto. Uma vez realiza<strong>da</strong> esta missão, o filósofo verificará <strong>em</strong> que sentido o espíritohumano pode ser imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, espelhando uma tal relação.743 Em Conf. VI, III, 4 ( CCL 27, p. 76). Sto. <strong>Agostinho</strong> recor<strong>da</strong> que a pregação de Sto. Ambrósiosurgerira-lhe uma primeira compreensão de Gen. 1: 26, por contraste com a interpretação maniqueísta.Esta nova leitura seria decisiva nos desenvolvimentos ulteriores que o Hiponense levaria a efeito. Se,como o filósofo crê e a razão lhe mostra, Deus é espírito, então é na dimensão espiritual <strong>da</strong> mente humanaque se <strong>da</strong>rá o achamento <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus que o ser humano diz ser.506


Esta divisão <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> imago dei constitui, ain<strong>da</strong>, um modeloartificial, com função meramente metodológica. De facto, Sto. <strong>Agostinho</strong> trata ambosaspectos <strong>em</strong> simultâneo, facto que é coerente com o modo como concebe a natureza <strong>da</strong>mente humana enquanto via privilegia<strong>da</strong> de acesso à compreensão <strong>da</strong> essência divina.Assim, se o espírito humano é imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de divina <strong>em</strong> virtude de nele residir<strong>em</strong>três funções <strong>da</strong> mente - m<strong>em</strong>oria, intellegentia, uoluntas – e pela peculiar relação queestabelec<strong>em</strong> entre si, é sobretudo enquanto <strong>em</strong> tal espírito se realiza a ord<strong>em</strong> dessasmesmas funções na direcção ao B<strong>em</strong> Supr<strong>em</strong>o que Sto. <strong>Agostinho</strong> identificará aimag<strong>em</strong> de Deus. Mas esta direcção ao B<strong>em</strong> Comum, realiza<strong>da</strong> pela mente, só éver<strong>da</strong>deiramente imago dei quando nela se verificar<strong>em</strong> as condições que a tornams<strong>em</strong>elhante à essência divina. Da<strong>da</strong> a condição intermédia <strong>da</strong> mente na hierarquiaontológica, a realização, nela, do Amor ou Caritas, implica o estabelecimento de umaforma de relação puramente gratuita, quer com o <strong>Ser</strong> Superior, quer com os que lhe sãoinferiores na ordenação ontológica, quer, obviamente, com os que lhe são s<strong>em</strong>elhantes.É assim que o man<strong>da</strong>mento do duplo amor surge no âmago <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>por parte <strong>da</strong> mente humana. E é mediante este exercício do princípio de similitude quese estabelece entre aquela e o <strong>Ser</strong> divino que se instala, progressivamente, a sabedoriana mente humana, permitindo-lhe vislumbrar a essência divina. O termo de chega<strong>da</strong> deum tal conhecimento do Inefável não poderá deixar de ser realizado por imag<strong>em</strong>, <strong>em</strong>enigma e numa visão indirecta, como acontece quando alguém se vê ao espelho. Talconhecimento de Deus e <strong>da</strong> mente reveste-se, efectivamente, de característicaspeculiares, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que envolve a dinâmica <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente, a qual seexerce não na direcção a um objecto cognitivo – por ex<strong>em</strong>plo, a noção de Deus, ou <strong>da</strong>alma -, mas através de uma experiência universal de dilecção. Na proposta augustiniana,é mediante esta experiência que o ser humano acede à essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.Estes dois planos de atenção que o Hiponense presta à mente humana –identificação <strong>da</strong> imago Dei e in<strong>da</strong>gação, nela, <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> caritas, enquantoprincípio ontológico de máxima radicali<strong>da</strong>de – desenvolv<strong>em</strong>-se num processo analíticoque encontra o seu ponto culminante in abdito mentis.Antes de mais, para compreender a noção de imago dei, é necessário nãodesenquadrar <strong>da</strong> concepção bíblico-cristã <strong>da</strong> Criação quanto o Hiponense afirma aorespeito. Assim, é fun<strong>da</strong>mentalmente nos comentários ao texto de Gen. 1: 26 –Faciamus homin<strong>em</strong> ad imagin<strong>em</strong> et similitudin<strong>em</strong> nostram – que se encontram as507


principais teses do filósofo acerca <strong>da</strong> formação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus no ser humano 744 . Ainterpretação augustiniana do referido passo bíblico abre-se <strong>em</strong> três vectores principais,cuja direcção importa articular com alguns outros contributos presentes na obra doHiponense para o esclarecimento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> 745 .Um primeiro aspecto digno de realce na hermenêutica augustiniana de Gen. 1: 26refere-se à insistência do Hiponense <strong>em</strong> ler, <strong>em</strong> tal passo <strong>da</strong> Escritura, um prenúncio <strong>da</strong>manifestação <strong>da</strong> natureza trinitária de Deus Criador, presente, no versículo <strong>em</strong> apreço,mediante o <strong>em</strong>prego do plural ‘faciamus ad imagin<strong>em</strong> nostram’. A uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> essênciadivina ver-se-ia confirma<strong>da</strong> na sequência do texto, designa<strong>da</strong>mente no singular<strong>em</strong>pregue <strong>em</strong> Gen. 1: 27, onde se lê et ‘fecit Deus homin<strong>em</strong>’. Um segundo aspecto <strong>da</strong>interpretação augustiniana do relato genesíaco indicia a criação <strong>da</strong> alma humana àimag<strong>em</strong> <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de divina. Por último, e dentro de uma concepção histórica e dinâmica,que obedece ao tríplice movimento proposto por Sto. <strong>Agostinho</strong> para a constituição <strong>da</strong>imag<strong>em</strong> de Deus no ser humano – creatio, conuersio, formatio -, o filósofo considera a744 Os escritos onde Sto. <strong>Agostinho</strong> comenta este passo bíblico são abun<strong>da</strong>ntes: De gen. contra Manich.;De gen. ad litt. imperf. lib.; De gen ad litt.; VR; Ep. CLXVII ; <strong>Ser</strong>mo LII; De diu. quaest. 83, q. 51; Deciu. dei, XI-XII; DT VII, VI; XII, VI-VII e os Livros XIV e XV; In Iohan. Ep. ad Parthos; Conf., máximeo Livro XIII.745 Em Conf. XIII, XXII, 32 (CCL 27, p. 260-261) encontra-se uma síntese desta proposta augustinianapara a noção de imago dei. Existe um Deus, Criador, <strong>em</strong> união com o qual vive a alma ordena<strong>da</strong>, a saber,aquela que ama as reali<strong>da</strong>des superiores e abandona a afecção pelas reali<strong>da</strong>des inferiores. Para atingir esseestado, a mente humana necessita de recuperar a ver<strong>da</strong>deira vi<strong>da</strong>, mediante um processo de reformação erenovação do espírito. Este processo não se dá por imitação do género, pois se a criação <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>aisformas é secundum genus, a do ser humano é ad imagin<strong>em</strong> dei. A descoberta desta identi<strong>da</strong>de revela aoser humano o sentido <strong>da</strong> Criação. No texto <strong>em</strong> apreço, Sto. <strong>Agostinho</strong> designa-o por uoluntas dei. Mas <strong>em</strong>De diu. quaest. 83, q. XXVIII ( CCL 44A, p.35) fica explícito que a causa <strong>da</strong> Criação e o sentido <strong>da</strong>mesma é a vontade de Deus e que outra causa não deve ser procura<strong>da</strong>, à marg<strong>em</strong> desta. O ser humano quevive uma existência reforma<strong>da</strong> à imag<strong>em</strong> de Deus torna-se capaz de conhecer a essência divina, Una eTrina, na relação que a Dei<strong>da</strong>de estabelece com o Mundo e, de modo peculiar, com os humanos. Esseconhecimento não se obtém por via de autori<strong>da</strong>de, pois não segue outro itinerário a não ser o próprioVerbo que ilumina interiormente a mente humana. O resultado desta agnição é um conhecimento porexperiência – ut nos prob<strong>em</strong>us quae sit uoluntas tua - que, longe de mergulhar a mente ordena<strong>da</strong> numensimesmamento, lhe confere uma visão universal, abrindo-a à totali<strong>da</strong>de do real e permitindo-lhepartilhar dessa comunhão de Vi<strong>da</strong> que é a essência divina. Trata-se, afinal, de um conhecimento, not<strong>em</strong>po, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de tal como ela é no Princípio Criador, onde ca<strong>da</strong> forma repousa numa plenitude deperfeição realiza<strong>da</strong>. Uma tal forma de agnição é necessariamente difusiva, jamais narcisíaca.508


função mediadora do Verbo Incarnado, no processo de reformatio, suposta umadeformatio <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> inicialmente impressa na mente humana pelo Criador 746 .Dado que a concepção de Dei<strong>da</strong>de, mediante uma análise <strong>da</strong> natureza dinâmica <strong>da</strong>mente humana foi já objecto de atenção e, tendo <strong>em</strong> conta que, desde uma perspectiva<strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong> essência divina incidindo na efígie impressa na mente, tal in<strong>da</strong>gação étermo final de um processo que passa pela exploração <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> mente humana,atender-se-á preferencialmente à concepção augustiniana de imago Dei, exposta a partirdos comentários do Hiponense a Gen. 1: 26, nos quais converg<strong>em</strong> e se eluci<strong>da</strong>m osaspectos segundo e terceiro, supra enunciados.Em De genesi ad litteram, ao descrever a criação do ser humano como imagodei 747 , Sto. <strong>Agostinho</strong> começa por afirmar que é por possuir mente, razão ou espíritoque se evidencia que a efígie divina está grava<strong>da</strong> no ser humano. Como consequência,segue-se o facto de, na hierarquia ontológica, o ser humano se sobrepor aos d<strong>em</strong>aismodos de existência, e, <strong>em</strong> concreto, aos animais irracionais. Porém, não é a presença<strong>da</strong> razão na mente que faz dela, s<strong>em</strong> mais, imago dei, mas sim o facto de aquela funçãona<strong>da</strong> ser s<strong>em</strong> a iluminação que sobre ela exerce o Verbo Eterno, Mediador Absoluto naCriação. Com efeito, só a mens inluminata é imago dei, pois só ela estabelece umpeculiar modo de relação com o Verbo. É neste peculiar modo de relação com o Verboque se imprime a efígie divina, na mente humana.Sto. <strong>Agostinho</strong> identifica, assim, a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na mente humana com aimago dei, nela impressa. Esta é a exacta condição <strong>em</strong> que o ser humano foi criado peloDeus-Trino. É parte integrante <strong>da</strong> mundividência augustiniana a afirmação de que to<strong>da</strong> aacção criadora é realiza<strong>da</strong> no Verbo Eterno. É nesse Princípio Supr<strong>em</strong>o que tudo quantoexiste adquire inteligibili<strong>da</strong>de e existência. O Verbo Eterno é, afinal, desde estaperspectiva, o Princípio de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> de to<strong>da</strong> a Criação. Porém, como o Verbo não actua746 É também um estribilho <strong>da</strong> obra augustiniana a ideia de um movimento de reformação/ recriação <strong>da</strong>imag<strong>em</strong> do ser humano, mediante uma peculiar intervenção divina na história pessoal e cósmica. Assim,<strong>em</strong> VR LII, 101 fala-se de um movimento a t<strong>em</strong>poralibus ad aeterna regressio que, não obstante recor<strong>da</strong>ra proposta neoplatónica do regressus animae com vista a uma recondução ao Uno, integra-se já numanova visão do mundo, pois o texto augustiniano funde-se com a ideia paulina de reformatio de um ueterishominis in nouum homin<strong>em</strong> ( CCL 32, p. 252). No <strong>Ser</strong>mo CXXV, 4 este movimento apresenta-se numaconcatenação mais explícita: “ (...) quod ibi fecit formatio, hoc in nobis reformatio: et quod ibi fecitcreatio, hoc in nobis recreatio.” (PL 38, 692). E <strong>em</strong> DT a reformatio é sinónimo de renouatio mentissecundum deum uel imagin<strong>em</strong> dei ( Cf. DT XV, XIV, 22: CCL 50A, p 451-454).747 V., fun<strong>da</strong>mentalmente, De gen. ad litt. III, 20 ( CSEL 28/1, p. 86-87).509


s<strong>em</strong> as d<strong>em</strong>ais pessoas <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, a própria Criação será, no entender de Sto.<strong>Agostinho</strong>, uma acção trinitária. Como se viu, a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> não se constitui comoproprie<strong>da</strong>de exclusiva do Verbo, mas erige-se <strong>em</strong> atributo <strong>da</strong> essência divina, no seio <strong>da</strong>qual tal noção adquire as características já indica<strong>da</strong>s: uni<strong>da</strong>de na diferença, anula<strong>da</strong> asubordinação ou, simplesmente, caritas.Efectivamente, ao comentar a Obra dos Seis Dias, Sto. <strong>Agostinho</strong> depara-se com aprimeira criação, a <strong>da</strong> luz, e identifica-a com a criatura angélica. Porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> acondição primordial desta na ordenação do relato bíblico <strong>da</strong> Criação, o Hiponenseafirma não existir, nela, nenhum conhecimento anterior do Verbo, mediante o qual, numsegundo momento, reflexivo, se viesse a criar a noção que haveria de corresponder aesse conhecimento. Na criatura angélica, a relação entre o Verbo divino e a mensinluminata, dá-se s<strong>em</strong> mediação – não s<strong>em</strong> Mediador -, realizando-se por intuição. Porisso, para a criatura angélica, o acto de vir à existência e o acto de se conhecer no Verbocorrespond<strong>em</strong> a uma mesma acção 748 .748 A interpretação augustiniana <strong>da</strong> Obra dos Seis Dias faz depender to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de de um ÚnicoPrincípio, o Verbo, per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt, ou, numa expressão de S. Paulo que o filósofo gosta derepetir, Deus, per qu<strong>em</strong> omnia, in quo omnia, ex quo omnia ( Cf. Rom. 11: 36; 1 Cor 8: 6). Veja-se, atítulo de ex<strong>em</strong>plo, Conf. I, II, 2, onde <strong>Agostinho</strong> - <strong>em</strong> diálogo com Deus acerca <strong>da</strong> dependência entre oser humano e o Criador - interroga: “ (...) non ergo ess<strong>em</strong>, deus meus, non omnino ess<strong>em</strong>, nisi esses inme. an potius non ess<strong>em</strong>, nisi ess<strong>em</strong> in te ex quo omnia, per qu<strong>em</strong> omnia, in quo omnia?” ( CCL 27, p. 1-2). O texto indicia a concepção <strong>da</strong> radicali<strong>da</strong>de desta relação, pela qual as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s estão mais<strong>em</strong> Deus do que Deus nelas. To<strong>da</strong>via, o Hiponense concebe esta dependência ontológica não apenas <strong>em</strong>sentido vertical, mas também no plano horizontal. Existe um compromisso ontológico entre to<strong>da</strong>s ascriaturas, que envolve todos os graus de ser, a tal ponto que se pode falar de uma comunhão universalentre eles, na qual ca<strong>da</strong> um, de acordo com a sua forma própria, é responsável pelos d<strong>em</strong>ais. Assim, acriatura angélica é a primeira, na hierarquia ontológica. Ela conhece-se a si mesma no Verbo, s<strong>em</strong>mediação de outra agnição, <strong>da</strong>do o seu lugar de topo, na hierarquia ontológica e a sua condição primeva,na sucessão <strong>da</strong>s obras cria<strong>da</strong>s. Segui<strong>da</strong>mente, to<strong>da</strong>s a d<strong>em</strong>ais formas cria<strong>da</strong>s contam, para além <strong>da</strong>inteligibili<strong>da</strong>de radical do Verbo, com a agnição que delas possu<strong>em</strong> aquelas criaturas, no Verbo. Dest<strong>em</strong>odo, ca<strong>da</strong> forma humana é cria<strong>da</strong> contando, também, com o louvor <strong>da</strong>s criaturas angélicas. E as d<strong>em</strong>aisreali<strong>da</strong>des, desprovi<strong>da</strong>s de razão, são cria<strong>da</strong>s com o conhecimento <strong>da</strong>s formas angélica e humana, nãoobstante a divergência dos processos de agnição específicos destas criaturas espirituais e a diferenteforma de corresponsabilização de ca<strong>da</strong> uma delas nesse processo. A interacção que se estabelece entre osdiferentes graus e formas de existência significa, <strong>em</strong> si mesma, corresponsabili<strong>da</strong>de na constituição deuma reali<strong>da</strong>de que, longe de estar acaba<strong>da</strong> ou de manifestar a decomposição de um <strong>Ser</strong> primordial, tendea uma máxima expressão, a qual se realiza no curso dos t<strong>em</strong>pos. Sendo assim, a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>própria de ca<strong>da</strong> forma afecta o conjunto dos seres, ficando a maior ou menor manifestação <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>510


Na exegese augustiniana do relato genesíaco, a criação de ca<strong>da</strong> forma é um factoque resulta de uma decisão <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de. Por seu turno, a Dei<strong>da</strong>de aguar<strong>da</strong> a decisão <strong>da</strong>criatura espiritual, para que esta conquiste a sua perfeição própria. Se assim não fosse –se a intervenção <strong>da</strong> vontade livre <strong>da</strong> criatura espiritual na sua própria formação nãofosse considera<strong>da</strong>, por parte do Princípio Criador - a activi<strong>da</strong>de criadora de Deus seria,na óptica de Sto. <strong>Agostinho</strong>, contraditória, já desde este primeiro acto 749 . Por isso, umsegundo momento <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de criadora divina, no qual se realiza o aperfeiçoamento<strong>da</strong> criatura espiritual, consiste no assentimento que ela presta ao conhecimento que de simesma adquire, no Verbo. Se, no relato bíblico, o primeiro momento correspondia auma descrição do acto criador na voz passiva – ‘ et sic est factum’ – o segundocorresponde à acção divina <strong>em</strong> colaboração com a decisão <strong>da</strong> criatura. É, por isso,narrado na voz activa: ‘et fecit Deus’. Só agora, após a resposta ou correspondência <strong>da</strong>criatura, a Dei<strong>da</strong>de pode completar a sua obra, aperfeiçoando o ser espiritual.A interpretação augustiniana do relato <strong>da</strong>s origens evidencia, neste processo, ocarácter singular <strong>da</strong> formação dos seres espirituais. Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste no facto denão se estabelecer, para tais seres, uma relação secundum genus, descrevendo aformação deles como um processo personalíssimo de relação que envolve directamentea acção divina e a resposta <strong>da</strong> criatura espiritual 750 . S<strong>em</strong> este duplo movimento deiniciativa e resposta, não há forma, para tais criaturas. E, na ausência de forma, não háser, n<strong>em</strong> ord<strong>em</strong>. Este processo comprova-se quer para o espírito angélico, quer para oespírito humano, ca<strong>da</strong> um de acordo com a sua forma própria. De facto, o espíritohumano e o ser angélico possu<strong>em</strong> idêntica natureza: são criaturas espirituais 751 . Para taisuniversal a cargo <strong>da</strong> livre activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s criaturas espirituais. To<strong>da</strong>via, entre elas há-de contar-se o próprioMediador, Verbo Incarnado, e o exercício <strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de, na história.749 Recorde-se, v. gr., os argumentos de defesa <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de do livre arbítrio <strong>da</strong> vontade, <strong>em</strong> LA III, esobretudo aqueles que articulam, nesse texto, a compossibili<strong>da</strong>de entre liber<strong>da</strong>de e presciência divina. Aactivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criatura espiritual é livre, precisamente porque a presciência divina é a de uma criaturalivre.750 Cf. De gen. ad litt. III, 12 ( CSEL 28/1, p. 76-78).751 A compreensão <strong>da</strong> angeologia augustiniana esclarece, também, a compreensão <strong>da</strong> metafísica doHiponense, precisamente na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a escatologia proposta pelo filósofo aponta para umarenovação do ser humano à s<strong>em</strong>elhança <strong>da</strong> natureza angélica.511


criaturas, a formação e o conhecimento de si no Verbo Eterno, pelo qual são cria<strong>da</strong>s,constitui um mesmo e único movimento 752 .O Hiponense considera que o conhecimento que a criatura espiritual t<strong>em</strong> de simesma no Verbo é o aspecto crucial que a constituiu no ser. Para o filósofo, no caso doser humano, tal relação entre o Verbo e a mente - assumi<strong>da</strong> livr<strong>em</strong>ente e mediante umacomunhão de amor - dá início a uma nova forma de existência, aquela segundo aimag<strong>em</strong> de Deus. Ora, este elo de ligação entre a Dei<strong>da</strong>de e o ser humano resguar<strong>da</strong>-sein abdito mentis, naquela dimensão mais fun<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente humana, confia<strong>da</strong> por Sto.<strong>Agostinho</strong> à relação, dinâmica e ordena<strong>da</strong>, <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente, nas três funções járeferi<strong>da</strong>s.Por conseguinte, se o Verbo é entendido como imag<strong>em</strong> do Pai, a mente, que faz doser humano uma criatura espiritual, é entendi<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> como imag<strong>em</strong> doVerbo. Este facto significa que, conhecendo a forma de si mesmo no Verbo – a qualcorresponde ao projecto divino para essa natureza –, o ser humano pode aderirlivr<strong>em</strong>ente a esse conhecimento, que se lhe apresenta como um man<strong>da</strong>to ou umaVer<strong>da</strong>de a realizar. Se o fizer, aperfeiçoa-se e realiza a ordenação própria do seu modode ser, tornando-se uma presença <strong>da</strong> Deus-Trin<strong>da</strong>de, no Mundo. Se abdicar desta tarefa,permanece num estado de informi<strong>da</strong>de, certamente não absoluto, mas inadequado aoseu modo de ser.Destarte, Sto. <strong>Agostinho</strong> inscreve no mais íntimo <strong>da</strong> mente, a excelência <strong>da</strong>existência humana, afirmando, a um t<strong>em</strong>po, a diferença abissal entre o próprio PrincípioCriador, Verbo Eterno e Imag<strong>em</strong> Divina por essência, e a mente humana, cria<strong>da</strong> àimag<strong>em</strong> de Deus. Ao estabelecer esta abissal dissimilitude in abdito mentis, e tendo <strong>em</strong>conta a inefabili<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> divino, o Hiponense frusta, efectivamente, a possibili<strong>da</strong>dedo ser humano realizar plenamente a sua forma, no curso dos t<strong>em</strong>pos. Na ver<strong>da</strong>de, o752 De gen. ad litt. III, 20: “ (...) et fecit deus homin<strong>em</strong> ad imagin<strong>em</strong> dei, quia et ipsa natura intellectualisest sicut illa lux, et propterea hoc est ei fieri quod est agnoscere uerbum dei, per quod fit. » (CSEL 28/1,p. 87). A forma verbal fieri integra as três dimensões do processo de criação dos seres espirituais: doação<strong>da</strong> forma à criatura espiritual, a manutenção desta forma pelo <strong>Ser</strong> divino e o assentimento a essa forma,por parte <strong>da</strong> criatura que a recebe. Este assentimento dá-se pela passag<strong>em</strong> de um estado de informitas àformatio, mediante um processo de conuersio. Para o ser humano, este processo de assunção <strong>da</strong> forma <strong>em</strong>conformi<strong>da</strong>de com o plano criador realiza-se no t<strong>em</strong>po. Neste fieri integra-se, por conseguinte, no casodo ser humano e <strong>da</strong><strong>da</strong> a condição decaí<strong>da</strong> <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a reconquista <strong>da</strong> forma. Suposta umadeformatio, esta reconquista dá-se mediante um processo de reformatio, o qual se distingue abissalmente<strong>da</strong> informitas.512


conhecimento humano <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> divina que <strong>em</strong> si mesmo reside só se dá, no curso <strong>da</strong>existência, in aenigmatae et per speculum. Ora, é <strong>em</strong> socorro desta dificul<strong>da</strong>de abissalque o Hiponense expõe a sua concepção acerca <strong>da</strong> noção de ord<strong>em</strong>, entendi<strong>da</strong> comoMediação. Esta realiza-se quer na essência divina, quer na mente humana enquantoimag<strong>em</strong> de Deus, quer nas d<strong>em</strong>ais criaturas, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que to<strong>da</strong>s comungam, <strong>em</strong>maior ou menor grau, de um mesmo <strong>Ser</strong>, de que depend<strong>em</strong>.Com efeito, o Verbo Eterno de Deus também se diz Imag<strong>em</strong> de Deus. Mas, talcomo se indica <strong>em</strong> De trinitate, esta imag<strong>em</strong> procede do Princípio s<strong>em</strong> princípio, porgeração eterna. Por conseguinte, ela identifica-se inteiramente com a essência divina,Princípio de onde procede 753 . A identi<strong>da</strong>de entre o Verbo-Imag<strong>em</strong> e o Princípio, de queé Imag<strong>em</strong>, deve-se, pois, à ausência de sucessão t<strong>em</strong>poral, ou seja, à processão eterna.Inversamente, o espírito criado não é n<strong>em</strong> simples, n<strong>em</strong> idêntico ao Verbo, n<strong>em</strong>, sequer,idêntico a si mesmo. Precisamente por esse facto, a forma <strong>da</strong> criatura espiritual submeteo seu aperfeiçoamento a um processo de conquista de si própria, no qual assume comomodelo o conhecimento que de si mesma obtém no Princípio do seu <strong>Ser</strong>, o VerboEterno. Da coincidência actual, na sucessão t<strong>em</strong>poral, entre o que a mente é e oconhecimento que, no Verbo, de si mesma obtém, resulta a realização <strong>da</strong> imago dei noser humano.753 Em De trinitate, Sto. <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong>prega como sinónimos os termos uerbum et imago, relativos ao Paie, portanto, indicando a processão do Filho, por geração eterna ( cf., v. gr., DT V, XII, 14; VI, II, 3: CCL50, p. 221; p. 230). Em DT VI, X, 11, apresenta o comentário de Sto. Hilário a propósito <strong>da</strong>s processõesdivinas, evidenciando aí a identi<strong>da</strong>de de essência entre o verbo/imag<strong>em</strong> e a Dei<strong>da</strong>de: “ Imago enim siperfecte implet illud cuius imago est, ipsa coaequatur ei non illud imagini suae. In qua imagine speci<strong>em</strong>nominauit, credo, propter pulchritudin<strong>em</strong> ubi iam est tanta congruentia et prima aequalitas et primasimilitudo nulla in re dissidens et nullo modo inaequalis et nulla ex parte dissimilis, sed ad identid<strong>em</strong>respondens ei cuius imago est; ubi est prima et summa uita cui non est aliud uiuere et aliud esse, sed id<strong>em</strong>et esse et uiuere, et primus ac summus intellectus cui non est aliud uiuere et aliud intellegere, sed id quodest intellegere, hoc uiuere, hoc esse est unum omnia tamquam uerbum perfectum cui non desit aliquid etars quae<strong>da</strong>m omnipotentis atque sapientis dei plena omnium rationum uiuentium incommutabilium, etomnes unum in ea sicut ipsa unum de uno cum quo unum.” ( CCL 50, p. 241). O t<strong>em</strong>a é retomado <strong>em</strong> DTVII, I, 1( CCL 50, p. 244.), sublinhando a identi<strong>da</strong>de entre o Verbo Eterno, imag<strong>em</strong> do Pai, e a essênciadivina. Em DT VII, III e VII, VI, 12 ( CCL 50, p. 251-254; p. 265-267), o filósofo insiste na diferençaentre o Verbo-Imag<strong>em</strong> do Pai e a mente humana, cria<strong>da</strong> à imag<strong>em</strong> de Deus, sobretudo comentando 1 Cor.11: 7, texto que, ao proclamar o ser humano imag<strong>em</strong> de Deus, poderia prestar-se a ambigui<strong>da</strong>de a respeito<strong>da</strong> diferença ontológica entre o Verbo e a forma humana.513


Note-se que a exposição augustiniana acerca <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> forma <strong>da</strong>scriaturas espirituais, máxime como é descrita nos primeiros Livros de De genesi adlitteram, procura compreendê-las no momento de <strong>em</strong>ergência do seu ser. Sto. <strong>Agostinho</strong>reflecte sobre o Livro do Génesis numa tentativa de, mediante um exercício <strong>da</strong> ueraratio, surpreender as criaturas no próprio momento <strong>em</strong> que passam do na<strong>da</strong> ao ser, ápice<strong>em</strong> que se instaura a condição ontológica que lhes corresponde. Esse facto permite queao filósofo estabelecer a distinção, nomea<strong>da</strong>mente <strong>em</strong> De genesi ad litteram, entre umadimensão simultânea <strong>da</strong> Criação e uma outra, sucessiva. Aquela primeira procura relatara Criação a partir <strong>da</strong> própria Forma <strong>da</strong>s Formas, do Verbo Divino que contém <strong>em</strong> sito<strong>da</strong>s as formas, reais e possíveis. A segun<strong>da</strong> perspectiva conta com a sucessão t<strong>em</strong>porale o desenvolvimento progressivo de ca<strong>da</strong> criatura no curso dos t<strong>em</strong>pos.Quando o filósofo descreve a formação do ser humano como um processo,precisamente porque - radicalmente, no plano metafísico – na forma humana não háidenti<strong>da</strong>de entre aquilo que conhece de si, no Verbo, e aquilo que é, o Hiponense maisnão faz do que esclarecer aquilo que entende por inquietação ontológica, quando a elase refere, por ex<strong>em</strong>plo, no exórdio de Confessionum. A própria noção de inquietudosustenta-se, também, <strong>em</strong> uma outra trave mestra <strong>da</strong> mundividência augustiniana, cujaoperativi<strong>da</strong>de já foi referi<strong>da</strong>. Trata-se <strong>da</strong> declaração <strong>da</strong> natureza axiológica do juízohumano, a qual se apoia na confirmação de que, no interior <strong>da</strong> mente humana, o ser s<strong>em</strong>anifesta como projecto a realizar, como dever ontológico, indissociável de umadimensão radical <strong>da</strong> própria existência que importa efectivar.Desde esta perspectiva, a noção augustiniana de ord<strong>em</strong> assume os contornos deum man<strong>da</strong>to e corresponde à afirmação, por parte do Hiponense, segundo a qual o serhumano é capax Dei. Esta expressão, por sua vez, é idêntica a uma outra, que designa oser humano como capax praecepti, permitindo, uma vez mais, fundir, na obra doHiponense, as perspectivas ética e ontológica. Para o filósofo, uma só é a concepção deord<strong>em</strong> entendi<strong>da</strong> na sua dimensão ontológica ou axiológica, <strong>da</strong>do que Sto. <strong>Agostinho</strong>considera que to<strong>da</strong> a expressão de ser se conhece s<strong>em</strong>pre sob forma de dever, d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>to ou de ordenação para a acção. Este facto justifica-se porque, na raiz, a criaturaespiritual não é o que de si mesma conhece, mas sim a reali<strong>da</strong>de que dela subsiste noAbsoluto ou Verbo Eterno de Deus. Mais ain<strong>da</strong>, é a própria activi<strong>da</strong>de criadora divinaque segue esta dinâmica, na qual converg<strong>em</strong> o ser e o dever. Este aspecto revela-seatendendo ao modo como o Hiponense, <strong>em</strong> De genesi ad litteram, descreve a dupladimensão <strong>da</strong> Criação, simultânea e sucessiva. A acção divina de criar é conheci<strong>da</strong> pelas514


pessoas <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de no Verbo, mas só a um Fiat divino – acto que designa umacomunhão <strong>da</strong>s três pessoas na vontade de criar ca<strong>da</strong> forma concreta que virá a ser – asformas passam <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de na vi<strong>da</strong> intra-trinitária à presença no Universo e no t<strong>em</strong>po.Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste na condição radical <strong>da</strong> forma humana como capaxpraecepti. A ela se refere já <strong>em</strong> De libero arbitrio, para justificar a bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de humana de livre escolha, mesmo se defectível. To<strong>da</strong>via, <strong>em</strong> De genesi adlitteram, esta dimensão imperativa <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> torna-se, porventura, mais compreensível,a partir <strong>da</strong> radicali<strong>da</strong>de do acto criador divino, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> o concebe.Nessa dimensão revela-se a indigência profun<strong>da</strong> do ser humano, que não pode dissociaro conhecimento de si no Verbo, como forma plenamente realiza<strong>da</strong>, <strong>da</strong> situação deinformi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que se encontra. Esta corresponde a uma decisiva disconformi<strong>da</strong>de comaquilo que reconhece acerca de si, quando se confronta com o Princípio.Em De genesi ad litteram, Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe-se seguir passo a passo anarrativa bíblica <strong>da</strong>s Origens, dedicando especial atenção à formação <strong>da</strong>s criaturasespirituais. Esta acção divina é descrita <strong>em</strong> termos de um processo de vocação ouchamamento à existência, que se apresenta sob forma imperativa e que se realiza pelamediação <strong>da</strong> Palavra ou Verbo Eterno de Deus. Este imperativo explicita-se, no relatobíblico <strong>da</strong> Obra dos Seis Dias, através <strong>da</strong> forma verbal fiat, a qual traduz, na narrativa,uma intervenção do <strong>Ser</strong> divino sobre o Mundo mediante a activi<strong>da</strong>de, própria <strong>da</strong> suaessência, que consiste na doação de <strong>Ser</strong>. Para criar uma nova forma, a Essência Una eTrina, de Deus, conhece-a no Princípio, Verbo Eterno, Sabedoria igual ao Pai. Nummovimento de dilecção por essa Sabedoria e por tudo quanto nela subsiste, a Trin<strong>da</strong>deama uma forma específica de ser. E, <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>de com essa dilecção, actuaconferindo-lhe existência. É esta a activi<strong>da</strong>de divina <strong>em</strong> relação ao Mundo. A intentiodesta liberali<strong>da</strong>de consiste <strong>em</strong> fazer que uma nova forma de existência comungue <strong>da</strong>natureza <strong>da</strong> própria Dei<strong>da</strong>de, sendo esta a de uma Essência Única, cujo <strong>Ser</strong> consistenuma Comunhão de pessoas, designa<strong>da</strong> por caritas ou dilectio .O comentário augustiniano ao Hexámeron traduz, de forma poética e condiciona<strong>da</strong>pelo limite <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana, a acção trinitária <strong>em</strong> que consiste a Criação. Deus Paiapresenta, no Verbo – mediante o qual profere eternamente to<strong>da</strong>s as coisas, não porpalavras articula<strong>da</strong>s no t<strong>em</strong>po, mas pela Luz <strong>da</strong> Sabedoria gera<strong>da</strong> - as reali<strong>da</strong>des a criar.Associa a estas a gratui<strong>da</strong>de do ser, activi<strong>da</strong>de na qual se oculta a identi<strong>da</strong>de do Espírito<strong>Santo</strong>, Donum Dei. Assim, v<strong>em</strong> à existência a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas, mediante umassentimento comum <strong>da</strong>s três pessoas divinas. Sendo estas as três activi<strong>da</strong>des que515


caracterizam a Vi<strong>da</strong> Espiritual de ca<strong>da</strong> pessoa divina – ser, conhecer, amar – elasestarão, de algum modo, presentes <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> forma cria<strong>da</strong> e encontrar-se-ãopreferencialmente naquela forma que, cria<strong>da</strong> ad imagin<strong>em</strong> dei, constitui o ser humano.Também neste contexto se entende a insistência de Sto. <strong>Agostinho</strong> numainterpretação trinitária do Livro do Génesis, de modo peculiar no que se refere à criaçãodo ser humano. É Deus, Trino e Uno, que cria o ser humano à imag<strong>em</strong> de Si mesmo,Princípio Absoluto. De igual modo, quando, mediante o processo de conuersio, acriatura espiritual assume a sua forma própria e passa de uma existência assumi<strong>da</strong>passivamente, que supõe uma certa informi<strong>da</strong>de, a uma existência <strong>em</strong> conformi<strong>da</strong>decom a imago dei, é o conhecimento de si numa reali<strong>da</strong>de Una e Trina que está <strong>em</strong> causa.A criatura espiritual reconhece-se, nesse movimento, como imag<strong>em</strong> de um <strong>Ser</strong> que érelação de Pessoas. Mais ain<strong>da</strong>, conhece, na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua contingência, a essência <strong>da</strong>relação a cuja imag<strong>em</strong> foi cria<strong>da</strong>, identificando-a como dilectio. Por isso,independent<strong>em</strong>ente do modo como ca<strong>da</strong> ser humano administra a sua existênciat<strong>em</strong>poral, se o faz de acordo com a imag<strong>em</strong> de Deus nele impressa, é a categoria <strong>da</strong>relação, sob forma de dilectio, que está <strong>em</strong> acto.Com efeito, a própria contingência humana permite uma multiplici<strong>da</strong>de deexpressões dessa dilectio, no curso dos t<strong>em</strong>pos, pois ca<strong>da</strong> forma humana é, na Sabedoriaeterna do Verbo, distinta <strong>da</strong> outra. Ora, se a realização de si como imago dei écorrespondência ao reconhecimento <strong>da</strong> forma de si no Verbo, então as expressões dessaimag<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po são necessariamente multiformes e tão diversifica<strong>da</strong>s quantas asexistências humanas que respond<strong>em</strong> ao apelo radical do Verbo. Do mesmo modo,quando Sto. <strong>Agostinho</strong> fala de uma deformação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus no ser humano, étambém a quali<strong>da</strong>de do amor que deverá ser pondera<strong>da</strong> 754 .754 A noção augustiniana de pecado, do ponto de vista metafísico, articula-se com a categoria ontológicade pondus tal como o Hiponense a entende. Estabelecendo um paralelo com a doutrina <strong>da</strong> orientação doscorpos para o seu lugar natural, e considerando a vontade humana, <strong>em</strong> virtude do livre arbítrio, comooscilando, por natureza, entre bens superiores, idênticos ou inferiores à natureza espiritual dela, acategoria augustiniana de pondus regista a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, mede a sua densi<strong>da</strong>de ontológica,mediante a quali<strong>da</strong>de dos bens que ama, tal como se lê <strong>em</strong> Conf. XIII, IX, 10: “ (...) Pondus meum amormeus; eo feror, quocumque feror.” ( CCL 27, p. 246-247). Idêntica expressão pode ler-se no <strong>Ser</strong>mo LXV A(= Etaix 1): “(...) magnum inquinamentum est animae amor illicitus et pondus pr<strong>em</strong>ens uolare cupient<strong>em</strong>.Nam quantum amor iustus et sanctus in superna animum rapit, tantum iniustus et immundus ad imad<strong>em</strong>ergit. est unicuique ut feratur quo debet pondus proprium amor suus.” [<strong>Ser</strong>mo LXV A , 1: RB 86(1976), p. 41). Se os antigos filósofos consideravam o peso como proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria, <strong>Agostinho</strong>516


De facto, a criação de um ser humano é, também ela, um exordio creaturae. Porconseguinte, não significa a total realização <strong>da</strong> sua forma, integrando todo um percursode aperfeiçoamento, mediante o exercício <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong>des nela conti<strong>da</strong>s. Como seafirmou, esse processo realiza-se na resposta, afirmativa ou negativa, ao chamamentoradical do Verbo, presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> criatura espiritual.Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve este apelo como uma activi<strong>da</strong>de eterna - nullo modocessat. Tal chamamento identifica uma imperecível vocação à existência, impressa <strong>em</strong>to<strong>da</strong>s as criaturas espirituais e revela<strong>da</strong> in abdito mentis. De facto, o movimento deconuersio ad Deum define, para o filósofo, o percurso de aperfeiçoamento <strong>da</strong> formaespiritual, <strong>da</strong>do que tal princípio ontológico não está totalmente acabado, <strong>em</strong> nenhumacriatura. Destarte, a criação de ca<strong>da</strong> forma no t<strong>em</strong>po - e a criação do próprio t<strong>em</strong>po quepermite o aperfeiçoamento <strong>da</strong>s formas - adquire to<strong>da</strong> a positivi<strong>da</strong>de. Com efeito, é nocurso dos t<strong>em</strong>pos que to<strong>da</strong>s as formas adquir<strong>em</strong> a sua plena realização, até seidentificar<strong>em</strong> com aquela reali<strong>da</strong>de que subsiste no Verbo Eterno. No caso do serhumano, essa perfeição identifica-se com a realização <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus impressa namente.Por conseguinte, na perspectiva do Hiponense, o início <strong>da</strong> forma humana, na suaexistência t<strong>em</strong>poral, e o término dela não possu<strong>em</strong> a mesma densi<strong>da</strong>de ontológica,ficando esta a cargo <strong>da</strong> relação apelo-resposta que se realiza no interior de ca<strong>da</strong> serhumano, mediante o exercício <strong>da</strong> vontade, na sua dimensão de livre arbítrio. Assim, arelação entre o ser humano e o Criador sustenta-se, de modo radical, numa relação devontades – a do Princípio que, gratuitamente, confere ser, e a <strong>da</strong> criatura espiritual, quecorresponde à existência que lhe foi doa<strong>da</strong> e, por esse facto, está marca<strong>da</strong> por um apeloa identificar-se com o Princípio.A formação do ser humano é, portanto, diferente, no início <strong>da</strong> sua existência, noseu ocaso t<strong>em</strong>poral, e, ain<strong>da</strong>, na sua realização escatológica. A densi<strong>da</strong>de ontológica queadquire é maior ou menor do que a inicial, mas não é nunca nula, n<strong>em</strong> idêntica àsituação de exórdio. Este facto sucede pela condição específica <strong>da</strong> forma humana. Paraa avaliar, <strong>Agostinho</strong> estabelece uma diferença entre a vi<strong>da</strong>, ou sobrevivência, e a beatauita ou posse <strong>da</strong> sabedoria. Para a mente espiritual, porque dota<strong>da</strong> de livre arbítrio, cabeconsiderá-lo-á uma quali<strong>da</strong>de do espírito. Por isso, à hora de legitimar a reali<strong>da</strong>de metafísica do corpoespiritual, é à noção de pondus que o filósofo recorre. O pondus do espírito cuja quali<strong>da</strong>de corresponde à<strong>da</strong> mens ordinata permite-lhe sobrepor-se ao do corpo e elevar este à condição <strong>da</strong>quele.517


a possibili<strong>da</strong>de de possuir uma espécie de vi<strong>da</strong> informe, expressão já de si incoerente,quando nega a conquista progressiva <strong>da</strong>quelas duas quali<strong>da</strong>des – sabedoria e felici<strong>da</strong>de-,às quais está intrínseca e radicalmente vocaciona<strong>da</strong> 755 .Acerca do modo como se articula esta concepção <strong>da</strong> forma humana com oesclarecimento <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>, dois aspectos merec<strong>em</strong> peculiar relevo.Por um lado, ca<strong>da</strong> criatura espiritual está chama<strong>da</strong> a superar a sua originaldiss<strong>em</strong>elhança com a essência divina, mediante um processo de conquista de umas<strong>em</strong>elhança com o Verbo. Por outro lado, esse processo realiza-se mediante o t<strong>em</strong>po.Ora, o factor t<strong>em</strong>po introduz, precisamente, uma radical diferença entre a essência <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de e a <strong>da</strong> forma humana. Por isso, aquela conquista de s<strong>em</strong>elhança só pode <strong>da</strong>r-sepor aproximação, nunca por dissolução <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criatura no Criador.Desta forma, e uma vez que o projecto de s<strong>em</strong>elhança e proximi<strong>da</strong>de entre o serdivino e o humano é essencial na configuração e aperfeiçoamento <strong>da</strong> forma humana,torna-se evidente a extr<strong>em</strong>a positivi<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> por Sto. <strong>Agostinho</strong> quer à diferençaontológica, quer ao factor t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, que a potencia 756 . Assim, tanto a forma deca<strong>da</strong> criatura espiritual, como a própria estrutura t<strong>em</strong>poral, <strong>da</strong> qual o ser <strong>da</strong>quela seindissocia, se destinam a um acréscimo de ser, com vista a uma superação de to<strong>da</strong> asucessão cronológica, pois só nessa dimensão, supra-histórica, haverá uma identificaçãoplena <strong>da</strong> criatura espiritual historicamente determina<strong>da</strong>, com a Forma Eterna s<strong>em</strong>,to<strong>da</strong>via, anular a diferença entre ambas as formas, Criadora e cria<strong>da</strong>. Por isso, o estatutoontológico <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>, que permite esta aproximação entre o <strong>Ser</strong>divino e o humano, estará intrinsecamente unido a este processo de aperfeiçoamento <strong>da</strong>755 De gen. ad litt. I, 5, 10: “ (…) creatura uero quamquam spiritalis et intellectualis uel rationalis, quaeuidetur esse illi uerbo propinquior, potest habere inform<strong>em</strong> uitam, quia non, sicut hoc est ei esse quoduiuere, ita hoc uiuere quod sapienter ac beate uiuere.” ( CSEL 28/1, p. 8). V., também, Conf. XIII, II, 2(CCL 27, p. 242-243).756 A metafísica augustiniana não concebe o t<strong>em</strong>po como uma fatali<strong>da</strong>de a anular, um efeito <strong>da</strong>decadência ontológica ou <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de uma perfeição original. Ao invés, tal forma de existência éentendi<strong>da</strong> como condição de acréscimo de <strong>Ser</strong>. O t<strong>em</strong>po, reali<strong>da</strong>de maximamente positiva, projecta-senuma direcção de perfeição futura. Ele impregna to<strong>da</strong>s as potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> expansão do <strong>Ser</strong>,orientando-o para uma Plenitude. Esta concepção de uma Plenitude do T<strong>em</strong>po, por seu turno, esclarececom maior nitidez o sentido do final dos t<strong>em</strong>pos. Encarado s<strong>em</strong> dramatismo, o advento de um finissaecula é, para <strong>Agostinho</strong>, o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> esperança <strong>da</strong> efectiva realização <strong>da</strong> vocação humana: uidereDeum, pois só nesse estado a forma humana será s<strong>em</strong>elhante ao Verbo.518


forma humana, ao qual corresponde um aperfeiçoamento <strong>da</strong> própria condição históricado <strong>Ser</strong>.É incrustado neste sentido <strong>da</strong> criação do ser humano, na destinação <strong>da</strong> forma <strong>da</strong>criatura espiritual à maior densi<strong>da</strong>de ontológica possível – a qual só se encontra naconquista <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de -, que Sto. <strong>Agostinho</strong> entenderá uma Plenitude do T<strong>em</strong>po, naqual se realiza a Incarnação do Verbo, duas reali<strong>da</strong>des inseparáveis, que constitu<strong>em</strong>, naHistória, o auge <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de entre o Absoluto e o ser humano. Como o filósofoafirma, se é ver<strong>da</strong>de que o processo de conuersio exige um regresso sobre a condição noPrincípio, levado a efeito mediante a m<strong>em</strong>oria sui, esse reencontro de si com o Princípioimplica uma profun<strong>da</strong> transformação no ser humano. De facto, é esse encontro quepotencia a realização <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> na existência humana individual, fazendo que o exórdio<strong>da</strong> forma, o início <strong>da</strong> sua existência t<strong>em</strong>poral, e o fim, a conclusão dessa existência nocurso do t<strong>em</strong>po, não coinci<strong>da</strong>m, de modo algum. Entre o princípio e o fim <strong>da</strong> existênciat<strong>em</strong>poral de uma forma humana que realiza a perfeição do seu ser segundo a imago dei,ter-se-á verificado um acréscimo de densi<strong>da</strong>de ontológica. De igual modo, o própriot<strong>em</strong>po, quer na circunstância histórica que corresponde a essa vivência, quer natotali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> História humana, terá adquirido perfeição, mediante a realização de talforma humana.Como já se fez notar, na exegese augustiniana do passo bíblico de Gen. 1: 26-27,tal como v<strong>em</strong> exposta <strong>em</strong> De genesi ad litteram libri XII, o filósofo coloca-se noPrincípio, comentando a Obra dos Seis Dias como se estivesse presenciando essa acçãodivina 757 . Ora, todo este processo de constituição <strong>da</strong> criatura espiritual, envolvendo ummovimento de informitas, conuersio, formatio, prescinde, neste contexto, <strong>da</strong>consideração <strong>da</strong> deformitas <strong>da</strong> mente humana, introduzi<strong>da</strong> pelo pecado. Este facto quersignificar que os el<strong>em</strong>entos identificados no comentário augustiniano a Gen. 1: 26-27757 Este aspecto sublinha o exercício de inteligência <strong>da</strong> fé <strong>em</strong> que consiste o comentário de <strong>Agostinho</strong> aoLivro de Génesis, o qual se evidencia <strong>em</strong> Conf. XI, III, 5-VII, 9; XIII, IV, 5-IX, 10: “ (...) Audiam etintellegam quomodo in principio fecisti caelum et terram.” ( CCL 27, p. 196-199; p. 244-247). Estesexercícios de comentário são, afinal, um ex<strong>em</strong>plo prático <strong>da</strong> assunção <strong>da</strong> doutrina do Mestre interior, porparte de Sto. <strong>Agostinho</strong>. O efeito é a constituição de um discurso que abre à universali<strong>da</strong>de, pois nasce doconfronto com aquele Verbo cujo idioma não se circunscreve a uma nação: “ (...) Intus utique mihi, intusin domicilio cogitationis nec hebraea nec graeca nec latina nec barbara ueritas sine oris et linguae organis,sine strepitu syllabarum diceret: "Verum dicit" et ego statim certus confidenter illi homini tuo dicer<strong>em</strong>:"Verum dicis"” ( Conf. XI, III 5; CCL 27, p. 196-197).519


correspond<strong>em</strong> à estrutura metafísica do ser humano, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> sua situaçãopós-lapsária, à qual se viu corresponder um estado de ignorância e dificul<strong>da</strong>de.Assim, a eterna imanência do Verbo no interior <strong>da</strong> mens humana, apelando àidentificação com a imag<strong>em</strong> Dele impressa na alma; a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> resposta de ca<strong>da</strong>criatura espiritual, que faz que a imag<strong>em</strong> de Deus defina, para ela, a sua própriaidenti<strong>da</strong>de; o alcance metafísico, e não meramente moral, ético ou doutrinal, domovimento de conuersio, que se integra na conquista <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> forma, e não noafastamento dela <strong>em</strong> relação a uma estrutura de pecado – todos estes aspectos faz<strong>em</strong>parte <strong>da</strong> condição metafísica do ser humano, na sua dimensão mais decisiva: aquela <strong>em</strong>que consiste a própria acção criadora, tal como Sto. <strong>Agostinho</strong> a considera.Porém, <strong>em</strong> De genesi ad litteram, uma vez que Sto. <strong>Agostinho</strong> faz depender ainscrição <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus na mente humana <strong>da</strong> resposta, livre e afirmativa, a essainiciativa divina, por parte <strong>da</strong> criatura espiritual, coloca<strong>da</strong> na existência e submeti<strong>da</strong> aot<strong>em</strong>po, o carácter irrevogável <strong>da</strong> imago dei não fica garantido. De facto, esta ficadependente de um movimento de conuersio e, por conseguinte, confia-se ao arbítrio <strong>da</strong>vontade humana. Sendo assim, se a resposta ao apelo do Verbo fosse negativa, aimag<strong>em</strong> divina não se imprimiria na mente humana. Tal facto não deixa de fazersentido, no contexto <strong>da</strong> argumentação augustiniana de oposição ao maniqueísmo, comoé o caso do escrito supra-referido, <strong>da</strong>do que, acima de tudo, importa insistir na bon<strong>da</strong>dede to<strong>da</strong> a acção divina e, portanto, também na <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> vontade humana, a qual Sto.<strong>Agostinho</strong> quer responsabilizar, com exclusivi<strong>da</strong>de, pela <strong>em</strong>ergência do mal. To<strong>da</strong>via, ofilósofo deu-se conta <strong>da</strong>s contradições <strong>em</strong> que incorreria tal proposta, e afirma ocarácter indelével <strong>da</strong> imago dei na mente humana, v. gr., <strong>em</strong> De trinitate 758 .Com efeito, para o filósofo, a essência <strong>da</strong> alma humana realiza-se noconhecimento que ela pode ter <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, através <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus impressa namente e na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que aquela agnição é possível. Ora, ela é exequível mediante oVerbo e o seu resultado é um conhecimento de Deus através do discernimento que a758 DT XIV, VIII, 11: “ (...) Diximus enim eam etsi amissa dei participatione obsoletam atque deform<strong>em</strong>dei tamen imagin<strong>em</strong> permanere.” Não podia ser de outro modo, como prossegue o texto: “ (...) Eo quippeipso imago eius est, quo eius capax est, eiusque particeps esse potest.” ( CCL 50A, p. 436). A impressão<strong>da</strong> imago dei na mente humana é o princípio que cria a possibili<strong>da</strong>de de esta vir a participar <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.Ao fazê-lo, a mente humana realiza a sua forma específica. Esta condição do ser humano é, porconseguinte, a que atinge o plano ôntico erigindo-se, na perspectiva augustiniana, na categoria metaantropológicade máxima radicali<strong>da</strong>de.520


mente t<strong>em</strong> de si mesma, no próprio Verbo, que a habita, de modo interno eindissociavelmente unido à forma dela 759 . Contudo, essa agnição não termina numanotio que pudesse corresponder à essência divina, mas na união de todo o ser humanoao próprio <strong>Ser</strong> divino. Porém, a essência unitiva do Absoluto só é reconheci<strong>da</strong> pelamente quando esta vislumbra, na dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do espírito, <strong>em</strong> que consiste essarelação que é a Vi<strong>da</strong> divina. Para que esta proposta seja exequível, a imag<strong>em</strong> de Deuspresente no ser humano não pode depender do arbítrio deste: t<strong>em</strong> de ser indelével. Seassim não fosse, também esta similitude ficaria à mercê do arbítrio humano e estadimensão <strong>da</strong> vontade teria poder sobre a condição de imago dei. Mas esta hipótesecontraria a ord<strong>em</strong> dos seres, pois a relação entre Deus e a alma seria, nesse caso, objectode eleição humana, a qual teria poder sobre o <strong>Ser</strong> divino.Sto. <strong>Agostinho</strong> apercebe-se desta dificul<strong>da</strong>de e revê a concepção de imago dei,que defendera <strong>em</strong> De genesi ad litteram. De facto, nesta obra, tal conceito surge unidoao processo de justificação pela graça, e não como o efeito imediato de uma acçãocriadora. Em tal contexto, n<strong>em</strong> todos os seres humanos desfrutariam <strong>da</strong> mesmadigni<strong>da</strong>de, na ord<strong>em</strong> do ser. Em De trinitate, a doutrina acerca <strong>da</strong> imago dei étransferi<strong>da</strong> para o domínio metafísico mais radical, ficando o exercício do livre arbítriodelimitado à possibili<strong>da</strong>de, ou não, de ca<strong>da</strong> criatura humana assumir essa condição doser. O efeito <strong>da</strong> d<strong>em</strong>issão <strong>da</strong> vocação radical <strong>da</strong> mente humana é o desconhecimento desi, do qual resulta, também, proporcionalmente, a ignorância acerca do termo <strong>da</strong> relaçãoontológica <strong>em</strong> que consiste o ser humano. Da mesma forma, o conhecimento <strong>da</strong> alma ede Deus é obtido pela mente mediante a relação que, no plano ontológico, elaestabelece, irrevogavelmente, com o Verbo, mas só é realizado, efectivamente,mediante a união <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de metafísica <strong>em</strong> que consiste o ser humano, com areali<strong>da</strong>de soberana, <strong>em</strong> que consiste a Essência divina. Acentuando, uma vez mais, osparoxismos <strong>da</strong> metafísica augustiniana, tal união, que configura o ser humano, não se dás<strong>em</strong> a mediação do próprio Deus, pois ela é impossível à condição humana, <strong>da</strong>do olugar que esta ocupa na ordenação dos seres. A sabedoria, término desta união, porconseguinte, mais do que o resultado de um esforço <strong>da</strong> razão humana na compreensão<strong>da</strong> essência divina, é o resultado de um movimento de doação do Espírito divino <strong>em</strong>759 No Livro XIV de De trinitate Sto. <strong>Agostinho</strong> abor<strong>da</strong> este assunto na sua relação com a imag<strong>em</strong> deDeus impressa na mente humana. Lê-se <strong>em</strong> DT XIV, VII, 11: “ (...) Nunc uero ad eam iam peruenimusdisputation<strong>em</strong> ubi principale mentis humanae quo nouit deum uel potest nosse considerandumsuscepimus ut in eo reperiamus imagin<strong>em</strong> dei.” ( CCL 50A, p. 435-436).521


elação ao ser humano, não obstante apenas se realizar com o concurso <strong>da</strong> vontadedeste. Este facto evidencia, de modo pleno, a necessi<strong>da</strong>de de um Mediador eficaz, entreDeus e os humanos. S<strong>em</strong> a intervenção dele, é a própria essência humana que se tornairracional.Inversamente, o desconhecimento de si e de Deus, cuja orig<strong>em</strong> está, igualmente,na vontade humana, t<strong>em</strong> como consequência a ignorância e a desagregação <strong>da</strong> estruturametafísica humana, uma e outra inerentes à rejeição do B<strong>em</strong> Comum. Aquelas duascondições do espírito negam a vocação radical do ser humano, supra-referi<strong>da</strong>. Recordeseque a interrogação acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> <strong>em</strong>ergira, na mente de <strong>Agostinho</strong>, precisamentedesta contradição intrínseca entre o desejo de felici<strong>da</strong>de, experimentado pelo serhumano, unido a uma ideia de posse de sabedoria, e o reconhecimento do estado deignorância e de infelici<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que este se encontra, e que se comprova quer a nívelpessoal, quer social e comunitário. Sto. <strong>Agostinho</strong> justifica esta situação pela adesãohumana a uma decadência ontológica, que afecta, de facto, o ser humano, na ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>natureza. Porém, tal decadência não é n<strong>em</strong> definitiva, n<strong>em</strong> radical, n<strong>em</strong>, sequer, isentade superação.De facto, se o Hiponense considera que é do conhecimento de si <strong>em</strong> Deus,mediante o processo já descrito, que resulta a realização e a perfeição de ca<strong>da</strong> serhumano, é compreensível que enten<strong>da</strong>, igualmente, que o <strong>Ser</strong> divino, não obstante a suacondição inefável, é, no conjunto <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des, aquela dimensão ôntica que mais seaproxima do humano. Por isso, esclarecendo o modo como se relacionam a alma eDeus, Sto. <strong>Agostinho</strong> pretende evidenciar o aspecto fulcral do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, asaber, se há, ou não, proximi<strong>da</strong>de entre Deus e os assuntos dos homens.É um facto que to<strong>da</strong> a obra do Hiponense gira <strong>em</strong> torno destes dois eixos:investigar sobre a alma e Deus. To<strong>da</strong>via, será porventura <strong>em</strong> De trinitate, quando oHiponense se propõe in<strong>da</strong>gar tal relação in abdito mentis, que melhor se evidencia nãoapenas a proximi<strong>da</strong>de entre aqueles dois pólos de relação, mas, fun<strong>da</strong>mentalmente, omodo de relação que caracteriza tal proximi<strong>da</strong>de. Porém, <strong>da</strong>do que, para Sto. <strong>Agostinho</strong>,a condição histórica do ser humano integra uma deformação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> – umafastamento <strong>da</strong> relação radical, entre a mente e o Verbo, que o filósofo designa pordesord<strong>em</strong> ou pecado –, o processo de realização <strong>da</strong> forma humana exige umarecuperação <strong>da</strong> vivência humana na situação ontológica radical <strong>em</strong> que foi cria<strong>da</strong>.Na óptica de Sto. <strong>Agostinho</strong>, é essa mesma relação radical que se estabelece tantona Criação do ser humano, como na renovação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> divina. A introdução <strong>da</strong>522


desord<strong>em</strong> é consequência, também radical, de nível ôntico, <strong>da</strong> própria condição <strong>da</strong>forma <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des espirituais. Como ficou dito, tal como a formação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong>exige a adesão e o assentimento, por parte <strong>da</strong> criatura espiritual, ao conhecimento quepossui de si mesma no Verbo Eterno, também cabe, por parte dessa mesma criatura, apossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> não adesão àquele conhecimento, cujo resultado é a realização <strong>da</strong>própria forma. Ora, Sto. <strong>Agostinho</strong> afirma que o efeito <strong>da</strong> rejeição <strong>da</strong> própria forma é adisformi<strong>da</strong>de, a qual resulta de um afastamento voluntário do ser humano <strong>em</strong> relação aoseu Princípio.Da falha ontológica produzi<strong>da</strong> por este afastamento resulta, naturalmente, asituação inversa à realização <strong>da</strong> forma, ou seja, o desconhecimento de si e do seuPrincípio. Esta disformi<strong>da</strong>de manifesta-se, historicamente, mediante uma reali<strong>da</strong>de decarácter <strong>em</strong>pírico, radicalmente contrária à essência <strong>da</strong> criatura espiritual: a morte,fenómeno universal que contradiz a natureza do ser humano, criado à imag<strong>em</strong> divina,chamado à existência mediante um apelo de eterni<strong>da</strong>de e, por conseguinte, vocacionadoà imortali<strong>da</strong>de 760 .Uma vez mais, é a partir <strong>da</strong> categoria ontológica <strong>da</strong> forma que Sto. <strong>Agostinho</strong>concebe a ideia de uma deformitas de ca<strong>da</strong> modo de ser. Assim, tal como o Hiponenseconcebe de modo diverso a aquisição <strong>da</strong>s diferentes formas, de acordo com dispari<strong>da</strong>dede ca<strong>da</strong> grau de ser, também a disformi<strong>da</strong>de deles obedecerá a distintos processos e teráconsequências desiguais, na constituição <strong>da</strong> ordo rerum.É um facto que, num primeiro momento, o Hiponense articula a disformi<strong>da</strong>de dosseres contrastando-a com um certo sentido de harmonia, o qual se alcança quando aspartes de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de estão <strong>em</strong> perfeita consonância. A disformi<strong>da</strong>de é, nestesentido, um atentado à ord<strong>em</strong>, sendo esta entendi<strong>da</strong> como a congruência e aconsonância de um Todo designado por uniuersum, regido por princípios de igual<strong>da</strong>de,equilíbrio e simetria. Se o princípio que instaura disformi<strong>da</strong>de no universo é o serhumano, ela resultará <strong>da</strong> ausência de equilíbrio, ou virtude, sendo esta entendi<strong>da</strong> deacordo com os padrões culturais do Mundo Antigo. Concebi<strong>da</strong> como justo meio, aord<strong>em</strong> constrói-se, no espírito humano, pela prática <strong>da</strong>s quatro virtudes cardeais –760 Cf. De gen. ad litt. III, XXI ( CSEL 28/1, p.88) onde, na sequência do comentário sobre a imag<strong>em</strong>divina na forma humana, Sto. <strong>Agostinho</strong> proclama a imortali<strong>da</strong>de proprie<strong>da</strong>de do ser humano, inerente aoacto criador - immortalis factus est homo –, não obstante o facto lhe causar perplexi<strong>da</strong>de, pois diz o relatode Genesis que alguns bens do universo foram criados para servir de alimento aos humanos e garantir asobrevivência deles.523


prudência, fortaleza, t<strong>em</strong>perança e justiça –, sendo esta última, <strong>em</strong> articulação estreitacom a prudência, a quali<strong>da</strong>de que t<strong>em</strong> por objecto avaliar o equilíbrio e a harmonia <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> humana, no plano individual e social.Efectivamente, é <strong>em</strong> estreita conexão com estes padrões que se desenvolve, numprimeiro momento, a noção augustiniana de disformi<strong>da</strong>de, não s<strong>em</strong> que o Hiponenseregiste, <strong>em</strong> simultâneo, as aporias que dela decorr<strong>em</strong>, <strong>em</strong> face, sobretudo, <strong>da</strong> resoluçãode questões tais como a <strong>da</strong> existência do mal e a do efectivo exercício do livre arbítrio<strong>da</strong> vontade humana. Também é um facto que, na obra do Hiponense e já desde osprimeiros escritos, a noção de forma se encontra estreitamente uni<strong>da</strong> à concepçãoaugustiniana de beleza. Já <strong>em</strong> De pulchro et apto, o filósofo estabelecia uma estreitarelação entre o que é amável e a harmonia <strong>da</strong>s formas, ou seja, a beleza delas. Só sepode amar o que é belo, afirmara então, tese que virá a rejeitar quando identificar osel<strong>em</strong>entos fulcrais <strong>da</strong> sua mundividência 761 . Por isso, Sto. <strong>Agostinho</strong> é coerente quando,ao aprofun<strong>da</strong>r a natureza <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, que considera consistir no amor,examina, igualmente, a sua concepção de beleza. Se, de início, o Hiponense consideravaque a beleza ou a disformi<strong>da</strong>de eram, essencialmente, proprie<strong>da</strong>des dos corpos,ulteriormente, ao articular, de modo inalienável, a ord<strong>em</strong> ou desord<strong>em</strong> do conjunto <strong>da</strong>sformas e dos seres <strong>em</strong> função do uso que a vontade humana faz de si mesma e dos bensde que pode dispor, o filósofo afirmará que, não obstante a disformi<strong>da</strong>de de um corpo, aalma pode conservar a beleza própria <strong>da</strong> sua forma, ficando este facto a depender <strong>da</strong>quali<strong>da</strong>de dos bens amados 762 .A noção de deformitas, identifica, portanto, essencialmente, na obra de Sto.<strong>Agostinho</strong>, uma fen<strong>da</strong> ontológica, verifica<strong>da</strong> no interior <strong>da</strong> mente humana, precisamentenaquilo que a caracteriza de modo mais radical – a imag<strong>em</strong> de Deus. Pela estreitaconexão que o filósofo estabelece entre a forma de um ser, no caso, a forma humana, e a761 “ (...) Amauit et foe<strong>da</strong>”, escreve <strong>Agostinho</strong>, comentando a profecia de Isaías ( Enarr. in Ps. CIII, S. I,4-5: CCL 38, p. 1476-1477). A ideia repete-se s<strong>em</strong>pre que comenta este passo de Isaías, que fala <strong>da</strong>disformi<strong>da</strong>de do corpo de Cristo crucificado. E máxime no <strong>Ser</strong>mo XXVII, 6, <strong>Agostinho</strong> apela para amediação restauradora <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> forma, <strong>em</strong> que consistiu a deformitas de Cristo crucificado: “ (...)deformitas christi te format. Ille enim si deformis esse noluisset, tu formam quam perdidisti nonrecepisses. Pendebat ergo in cruce deformis, sed deformitas illius pulchritudo nostra erat.” (CCL 41, p.365).762 Cf. De diu. quaest. 83, q. XXXVI : De nutrien<strong>da</strong> caritate ( CCL 44A, p. 54). E Retract. I, XXVI (CCL57, p.74-87).524


eleza dela, a própria especiosi<strong>da</strong>de atinge, na obra do Hiponense, alcance ontológico,não sendo possível dissociar as dimensões estética e metafísica na obra do Hiponense,n<strong>em</strong> neste nível de consideração, no qual a categoria <strong>da</strong> forma e a <strong>da</strong> beleza se fund<strong>em</strong>,n<strong>em</strong> na essência <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, Forma <strong>da</strong>s formas.Em que consiste, pois, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a disformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma? Dir-se-á queconsiste na corrupção <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de Deus impressa <strong>da</strong> mente humana, facto que permiteconfinar, desde logo, ao livre arbítrio <strong>da</strong> vontade, o limite <strong>da</strong> disformi<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong> permitirque ela alastre até atingir o ser, na radicali<strong>da</strong>de do dom e <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> forma. To<strong>da</strong> adegra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> forma, to<strong>da</strong> a corrupção <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> é, para o Hiponense, de algum modo,ain<strong>da</strong> uma presença de forma e de imag<strong>em</strong>, mesmo se ínfima e desfea<strong>da</strong>. E, <strong>da</strong>do queSto. <strong>Agostinho</strong> não dissocia a imag<strong>em</strong> de Deus de uma peculiar expressão de amor, acorrupção <strong>da</strong> imag<strong>em</strong>, ponto imo <strong>da</strong> disformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente humana, é, ain<strong>da</strong>, umaexpressão <strong>da</strong>quela quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, não obstante <strong>em</strong> estado degra<strong>da</strong>do.Efectivamente, para o Filósofo de Hipona, só faz sentido falar de disformi<strong>da</strong>dequando o espírito humano se deixa afectar por uma peculiar forma de amor. Nareali<strong>da</strong>de, outras formas de disformi<strong>da</strong>de, por ex<strong>em</strong>plo, a que afecta os corpossingulares 763 ou a que se reflecte na vi<strong>da</strong> dos povos e civilizações 764 , serão consequência<strong>da</strong>quela primeira e integrar-se-ão numa outra dimensão de reali<strong>da</strong>de, superior euniversal.Como se t<strong>em</strong> reiterado, para Sto. <strong>Agostinho</strong> a categoria ontológica mais radical,s<strong>em</strong> a qual não se pode falar de existência, é a forma que, no caso do ser humano, é763 Sto. <strong>Agostinho</strong> considera os “monstros”, ou seja, as reali<strong>da</strong>des corpóreas absolutamente disconformes<strong>em</strong> face de uma forma padrão, uma consequência do pecado ( cf. De ciu. dei XVI, VIII : CCL 48, p. 508-510); Contra Iulianum opus imperf., I, CXVI : “ (...) neque enim si n<strong>em</strong>o peccasset, foe<strong>da</strong> atqu<strong>em</strong>onstruosa etiam in paradiso corpora nascerentur.” ( CSEL 85/1, p. 134). Porém, tais reali<strong>da</strong>des são,ain<strong>da</strong> assim, efeito de uma acção divina e, portanto, manifestação de bon<strong>da</strong>de, e não um erro <strong>da</strong> natureza,como quer<strong>em</strong> alguns: Contra Iulianum V, XV, 53: “ (...) nec attendis hoc dici [‘Cur non ipso filiimundentur effectu, ut a pollutionibus, inquis, quae dicuntur parentum majestatis opificis expientur?’]etiam de manifestis uitiis corporum posse, cum quibus non pauci nascuntur infantes, quamuis absit utdubitetur, deum uerum et bonum esse omnium corporum formator<strong>em</strong>: et tamen ex opificis tanti manibustam multa, non solum uitiosa, uerum etiam monstrosa procedunt, ut naturae a nonnullis appellenturerrores; qui cum operant<strong>em</strong> uim diuinam, et quid cur faciat, in<strong>da</strong>gare non possint, fateri eos pudet nescirequod nesciunt.” ( PL 44, 814).764 Veja-se o modo como, <strong>em</strong> De ciuitate dei, Sto. <strong>Agostinho</strong> procura integrar na ordo rerum a própriaque<strong>da</strong> do Império Romano.525


constituí<strong>da</strong> pela impressão <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> divina na mente. Ora, <strong>da</strong>do que a essência <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de se constitui como relação de diferentes, a fim de uma união que o Hiponensedesigna por dilectio ou caritas, a imag<strong>em</strong> divina deve reproduzir fielmente esta relação.É esse apelo que constitui a essência do ser humano. Assim, a disformi<strong>da</strong>de que podeafectar a imago dei dá-se, precisamente, mediante uma corrupção deste s<strong>em</strong>blantedivino, a qual resulta, <strong>em</strong> última análise, de uma deficitária quali<strong>da</strong>de do amor.Ora, o facto de a efígie divina se imprimir, mediante o acto criador divino, namente humana, faz que se estabeleça, entre esta e o Absoluto, uma relação de infinitaproximi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> qual resulta que o ser humano, s<strong>em</strong> abandonar a sua finitude, devém -na desconcertant<strong>em</strong>ente arroja<strong>da</strong> expressão augustiniana - capax dei. Deste modo, noser humano potencia-se uma posse plena, ou desmedi<strong>da</strong>, do <strong>Ser</strong>, expressão que, nalógica augustiniana, se identifica com aquela relação designa<strong>da</strong> por dilectio. A imag<strong>em</strong>divina realizar-se-á na mente humana quando esta for capaz de amar de acordo com umpadrão universal, tão Absoluto e Pleno como o Princípio de que é imag<strong>em</strong>.Se é fácil compreender quais os bens, inferiores à mente, cuja posse constitui, d<strong>em</strong>odo manifesto, uma degra<strong>da</strong>ção para ela - tais são os bens que se situam nos primeirosdois graus de ser: esse, uiuere - , não se manifesta com a mesma evidência quais aquelesbens idênticos a ela na hierarquia do ser, cuja posse deforma o espírito humano. Porém,são inúmeros os textos nos quais Sto. <strong>Agostinho</strong> esclarece <strong>em</strong> que consiste estedesfigurado amor de bens idênticos à natureza <strong>da</strong> alma, sublinhando o carácterpernicioso que pode assumir o amor sui.Afinal, na óptica do Hiponense, a ord<strong>em</strong> construi-se <strong>em</strong> torno de uma só reali<strong>da</strong>de,designa<strong>da</strong> amor e que, no caso do ser humano e <strong>da</strong><strong>da</strong> a condição intermédia que eleocupa na hierarquia ontológica, se pode orientar ou para a realização do <strong>Ser</strong>, nadimensão mais Universal e Plena, ou para a realização do ser, na dimensão maisparticular e ima. Em qualquer caso, é s<strong>em</strong>pre uma mesma categoria que está <strong>em</strong> causa eque se constrói sobre o gonzo do amor, pois outra não é, na óptica de <strong>Agostinho</strong> aessência do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o e o Princípio de to<strong>da</strong> a forma.A concepção augustiniana de disformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> divina, ou desord<strong>em</strong>,decide-se, por conseguinte, <strong>em</strong> função <strong>da</strong> natureza dos bens com os quais a mentehumana estabelece uma união de amor. Tomando a mente humana como referente <strong>da</strong>gra<strong>da</strong>ção dos seres, Sto. <strong>Agostinho</strong> distingue bens inferiores, iguais e superiores àquela,e faz residir a realização dela na posse dos bens superiores, razão pela qual tais bens sãoapresentados à mente e reconhecidos por ela sob forma de projecto, de dever a realizar.526


necessi<strong>da</strong>de e, por isso, nela não cab<strong>em</strong> previsões, no que diz respeito à realização domesmo.Dois amores, duas ci<strong>da</strong>des: duas formas distintas, diametralmente opostas, nãoobstante se fun<strong>da</strong>r<strong>em</strong> sobre uma mesma reali<strong>da</strong>de 767 , de exercitar o ser, mas cujaavaliação não é possível no plano intra-histórico 768 . Ambas as quali<strong>da</strong>des de amor – oamor do B<strong>em</strong> Comum ou o amor de si como se do B<strong>em</strong> Comum se tratasse - caminhamjuntas, misturam-se, confundindo-se, <strong>em</strong>bora não se fundindo, e não há possibili<strong>da</strong>de de<strong>em</strong>itir, sobre elas, um juízo justo, <strong>da</strong>do que o âmago <strong>da</strong> sua génese está na dimensãomais oculta <strong>da</strong> mente – in abdito mentis.4. Deus creator omniumContrariamente ao que poderia ressaltar a uma primeira leitura <strong>da</strong> obra doHiponense, a questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> não é essencial, na constituição <strong>da</strong> sua mundividência.É ver<strong>da</strong>de que a noção bíblica de creatio de nihilo é axial, na metafísica augustiniana,mas ela não deve ser confundi<strong>da</strong> com a interrogação acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> ou, pelo menos,não haverá de ser reduzi<strong>da</strong> a ela. É também um facto que a literatura de comentário aoLivro <strong>da</strong>s Origens abun<strong>da</strong>, no conjunto <strong>da</strong> obra do Hiponense e, a avaliar pelainsistência do filósofo no apuramento de versões, dir-se-ia que o esclarecimento do767 Em De gen. ad litt. XI, XV encontra-se já esta concepção de uma possibili<strong>da</strong>de de construir ser combase numa duali<strong>da</strong>de de amores, ficando clara a oposição entre ambas as formas dessa mesma reali<strong>da</strong>de: “(...) hi duo amores - quorum alter sanctus est, alter inmundus, alter socialis, alter priuatus, alter communiutilitati consulens propter supernam societat<strong>em</strong>, alter etiam r<strong>em</strong> commun<strong>em</strong> in potestat<strong>em</strong> propriamredigens propter adrogant<strong>em</strong> domination<strong>em</strong>, alter subditus, alter a<strong>em</strong>ulus deo, alter tranquillus, alterturbulentus, alter pacificus, alter seditiosus, alter ueritat<strong>em</strong> laudibus errantium praeferens, alter quoquomodo laudis auidus, alter amicalis, alter inuidus, alter hoc uolens proximo quod sibi, alter subicereproximum sibi, alter propter proximi utilitat<strong>em</strong> regens proximum, alter propter suam - praecesserunt inangelis, alter in bonis, alter in malis, et distinxerunt conditas in genere humano ciuitates duas subadmirabili et ineffabili prouidentia dei cuncta, quae creat, administrantis et ordinantis, alteram iustorum,alteram iniquorum.” ( CSEL 28/1, p. 347).768 Enarr. in Ps. LXIV, 2: “ (...) unde dignisci possunt istae duae ciuitates? Numquid modo possumus easmodo separi ab inuic<strong>em</strong>? permixtae sunt, et ab ipso exordio generis humani permixtae currunt usque infin<strong>em</strong> saeculi.” (CCL 39, p. 823).528


conteúdo desse conjunto de textos bíblicos constituiu para <strong>Agostinho</strong> um ver<strong>da</strong>deirocavalo de batalha.Note-se, contudo, que os comentários ao Livro do Génesis e, de modo peculiar, àObra dos Seis Dias, têm como horizonte de fundo essencialmente a controvérsia com ainterpretação maniqueísta deste texto veterotestamentário. Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vistadesmontar os comentários de Mani e dos partidários <strong>da</strong> sua seita. Na perspectivaaugustiniana, tais interpretações, para além de erróneas e fabulosas, acabam por terinfluência nas pequenas comuni<strong>da</strong>des do Norte de África, onde a seita exerce ain<strong>da</strong>forte influência, ao t<strong>em</strong>po do regresso do Hiponense à sua terra natal. É portanto,também um cui<strong>da</strong>do pastoral que impele <strong>Agostinho</strong> a redigir as obras que integram asua literatura hexamétrica 769 .De facto, mais do que uma in<strong>da</strong>gação acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> do Mundo, quanto se podeencontrar de argumentação anti-maniqueísta nas obras de <strong>Agostinho</strong> de comentário aoGénesis é, antes de mais, um confronto entre a exegese cristã desse escrito bíblico e osmitos cosmogónicos perfilhados pela seita de Mani. Por sua vez, o maniqueísmo, aotecer uma hermenêutica desprovi<strong>da</strong> de sentido acerca do Antigo Testamento e,concretamente, do Livro do Génesis, enre<strong>da</strong>va o texto bíblico, colocando-lhe um s<strong>em</strong>fimde questões, to<strong>da</strong>s elas considera<strong>da</strong>s absur<strong>da</strong>s e ociosas, na perspectivaaugustiniana 770 .769 Ao regressar para África, <strong>Agostinho</strong> estabelece-se <strong>em</strong> Tagaste, na região de Ma<strong>da</strong>ura. Pátria deApúleo, esta ci<strong>da</strong>de era centro intelectual, onde o paganismo tinha ain<strong>da</strong> expressão cultual no Forum, eonde os intelectuais se juntavam aos Maniqueus para escutar a exposição <strong>da</strong>s suas doutrinas. Assim, omaniqueísmo era facilmente difundindo entre as comuni<strong>da</strong>des cristãs de Ma<strong>da</strong>ura e Tagaste. No estudoapurado de Decret encontra-se uma visão esclarecedora do ambiente intelectual reinante <strong>em</strong> Ma<strong>da</strong>uraneste período [ Cf. F. DECRET, L’Afrique manichéenne (IVe-Ve siècles). Etude historique et doctrinale,(Paris 1978), I, 48-49 ; II, 39-45].770 Ao longo <strong>da</strong> sua obra e com o fim de as criticar e de tecer a sua própria exegese, Sto. <strong>Agostinho</strong>enumera as questões coloca<strong>da</strong>s pelos maniqueus ao relato do Génesis que tinham por finali<strong>da</strong>deevidenciar o absurdo do texto. Uma síntese <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des coloca<strong>da</strong>s pelos maniqueus ao texto de Gen.1, 1 e 1, 3, pode ler-se v. gr. <strong>em</strong> Conf. XI, X, 12; XI, XII, 14 ( CCL 27, p. 200; p. 201). Em De gen. cont.Manich., o descrédito dos discípulos de Mani sobre o Antigo Testamento congrega-se,fun<strong>da</strong>mentalmente, nesta síntese: “ (...) Quod scriptum est: in principio fecit deus coelum et terram,quaerunt in quo principio et dicunt: si in principio aliquo t<strong>em</strong>poris fecit deus coelum et terram, qui<strong>da</strong>gebat, antequam faceret coelum et terram, et quid ei placuit subito facere, quod nunquam antea feceretper t<strong>em</strong>pora aeterna?” (De gen. cont. Manich. I, II, 3: PL 34, 174; CSEL 91, p. 68-69).529


A literatura hexamétrica de <strong>Agostinho</strong> inscreve-se, assim, antes de mais, <strong>em</strong>contexto apologético e pastoral 771 . To<strong>da</strong>via, ao desconstruir a cosmogonia e asfabulações maniqueístas, o filósofo clarifica simultaneamente a sua concepção sobre aDei<strong>da</strong>de, reflectindo não tanto sobre a orig<strong>em</strong> do Mundo mas acerca <strong>da</strong> essência doPrincípio. Também neste caso, uma vez mais se evidenciará que o motivo de reflexão,aquilo que causa espanto metafísico e concentra as forças de <strong>Agostinho</strong>, é a natureza <strong>da</strong>relação entre o Uno e o Múltiplo que, no caso <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação acerca do Princípio basea<strong>da</strong>no comentário ao Génesis, assume a especifici<strong>da</strong>de de um implicatissimum aenigma 772 :aquele que relaciona a Eterni<strong>da</strong>de com o T<strong>em</strong>po, tecendo, entre ambos, um eloirrefragável, cuja causa última reside apenas na liberali<strong>da</strong>de e gratui<strong>da</strong>de do Criador.Com efeito, é este o el<strong>em</strong>ento que causa admiração e que impele à reflexão,quando <strong>Agostinho</strong> se abeira do relato genesíaco, e não a d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> doMundo. Note-se, aliás, que não fora esta a questão que levara Sto. <strong>Agostinho</strong> a aderir aomaniqueísmo, mas sim a dificul<strong>da</strong>de de encontrar uma solução para a orig<strong>em</strong> do mal.Também por este facto a metafísica augustiniana <strong>da</strong> Criação não se ocupaprincipalmente pela questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, interessando-se sobretudo pela natureza de Deuscomo fim último e como razão de ser <strong>da</strong> permanência definitiva dos seres. Para<strong>Agostinho</strong>, a bon<strong>da</strong>de de Deus e a sua Omnipotência são a razão de uma Criação cujafinali<strong>da</strong>de é a manifestação de bon<strong>da</strong>de: fazer aparecer criaturas boas, s<strong>em</strong> outro motivoque o de as chamar a si, tornando-as partícipes <strong>da</strong> sua bon<strong>da</strong>de 773 .771 Entre os escritos claramente anti-maniqueístas redigidos por Sto. <strong>Agostinho</strong> no período imediatamenteposterior à recepção do baptismo, na Vigília de Páscoa de 24 para 25 de Abril de 387, contam-se D<strong>em</strong>oribus Ecclesiae catholicae et de moribus Manicheorum, redigido ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> Roma, e o primeiro ensaiode comentário ao Génesis, De genesi contra Manicheos, escrito já no regresso a África, <strong>em</strong> Tagaste, entreos anos 388-389. <strong>Agostinho</strong>, ain<strong>da</strong> leigo, denuncia o perigo que a exegese maniqueísta representa para oexercício <strong>da</strong> fé católica, confessando que ele próprio fora vítima de tal enredo ( cf. De gen. cont. Manich.I, I, 2: PL 34, 174; CSEL 91, p. 67-68).772 Cf. Conf. XI, XXII, 28 ( CCL 27, p. 207).773 Este aspecto foi sublinhado por A. SOLIGNAC, “ Le repos de Dieu au septième jour » in Bibliothèqueaugustinienne.Œuvres de saint Augustin 48, p. 644. O A. nota que a in<strong>da</strong>gação augustiniana acerca <strong>da</strong>finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação é uma reinversão do dil<strong>em</strong>a de Epicuro, o qual colocava o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong>termos insolúveis, apresentando a existência do mal como necessária ao próprio exercício <strong>da</strong> sabedoria.Tal dil<strong>em</strong>a, também referido por LACTÂNCIO <strong>em</strong> De ira dei XIII, 20-21 - “ (...) Deus, inquit[Epicurus/Stoici], aut uult tollere mala et non potest, aut potest et non uult (...); si uult et non potes,inbecillus est, quod in deum non cadit; si potest et non uult, inuidus, quod aeque alienus est a deo ; sineque uult neque potes, et inuidus et inbecillus est ideoque nec deus ; si et uult et potest, quod solum deo530


Tendo concluído que Deus é <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, e que essa <strong>Ord<strong>em</strong></strong> consiste numa relaçãoessencial de dilecção entre as três Pessoas que constitu<strong>em</strong> a vi<strong>da</strong> divina, também setorna evidente para <strong>Agostinho</strong> que a Orig<strong>em</strong> do Mundo só pode encontrar-se num actode Amor soberanamente ordenado. O próprio facto de o Mundo ter tido uma orig<strong>em</strong> é,para o filósofo, uma evidência, pois é absoluta a diferença entre a Eterni<strong>da</strong>de divina e amutabili<strong>da</strong>de do cosmos. Tal condicionamento do Universo exige pensar para ele umcomeço t<strong>em</strong>poral, pois a mutabili<strong>da</strong>de alheia-se <strong>em</strong> absoluto do <strong>Ser</strong> Divino e de to<strong>da</strong> aactivi<strong>da</strong>de que Ele realize 774 . S<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, tal evidência pode ser compreendi<strong>da</strong> eaprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, enquanto expressão <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de divina, mas não coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> causa,como se não houvesse uma orig<strong>em</strong> do Mundo – caso <strong>em</strong> que o cosmos e o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>oseriam co-substanciais e eternos –, ou como se o Mundo fosse apenas um momento deum eterno gládio entre Princípios subsistentes, uma espécie de corpúsculo estigmatizadoe vocacionado ao aniquilamento.É um facto que a exposição augustiniana de réplica à cosmogonia maniqueísta seencontra principalmente nos textos de controvérsia e, no que diz respeito à exegese deHexámeron, sobretudo nos comentários do Hiponense ao Livro do Génesis. Contudo,não é de desprezar a plena consciência que o filósofo possui, já nos primeiros Diálogos,<strong>da</strong> magnitude e extensão <strong>da</strong>s questões envolvi<strong>da</strong>s. Assim, as principais questões deâmbito metafísico coloca<strong>da</strong>s pela exegese maniqueísta à mente do convertido de Milãoencontram-se já enuncia<strong>da</strong>s <strong>em</strong> De ordine, quando Sto. <strong>Agostinho</strong> enumera a magnaconuenit, unde ergo sunt mala aut cur illa non tollit ?” [Sources Chrétiennes 289, ed. ChristianeINGREMEAU (Paris 1982), p. 158-160] -, concluía a indigência a irracionali<strong>da</strong>de de Deus. Sto.<strong>Agostinho</strong>, ao invés, deduz a Absoluta Bon<strong>da</strong>de do Criador e a sua manifestação enquanto dilectiomediante o próprio acto <strong>da</strong> Criação, invertendo o argumento. Não poder fazer coisas revela impotência;poder fazer coisas boas e não querer, revela inveja. Mas porque Deus é omnipotente e bom, omnia ualdebona fecit ( Cf. De gen. ad litt. IV, XVI: CSEL 28/1, p. 113).774 Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita claramente a eterni<strong>da</strong>de do Mundo, pois quer evidenciar a radical diferençaontológica entre o cosmos e Deus, instaurando a lineari<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po. To<strong>da</strong>via, as teses acerca <strong>da</strong>eterni<strong>da</strong>de do cosmos e <strong>da</strong> reversibili<strong>da</strong>de do movimento que o afecta proliferam na antigui<strong>da</strong>de. OHiponenese detém-se a considerá-las v. gr. <strong>em</strong> De ciu. dei X, XXIII ( CCL 47, p. 296-297) e conclui queo conhecimento <strong>da</strong> natureza do universo, com um início t<strong>em</strong>poral e um fim, se fun<strong>da</strong>menta na Escritura.Ao considerar duas dimensões para o acto criador divino, uma simultânea e outra sucessiva, e ao admitir asubsistência <strong>da</strong>s rationes aeternae no Verbo, o Hiponense não deixa de admitir a eterni<strong>da</strong>de do mundo,pelo menos enquanto a ratio do Universo permanece na mente divina eternamente, e enquanto <strong>em</strong> Deuspermanec<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as rationes, cabendo a possibili<strong>da</strong>de de uma subsistência, no Verbo, de universospossíveis jamais iniciados no t<strong>em</strong>po pela vontade criadora divina.531


silua rerum que está no âmago <strong>da</strong> Filosofia, a necessitar de esclarecimento e d<strong>em</strong>editação. A referência ao maniqueísmo não é aí explícita, mas o conjunto de questõesesmiuça<strong>da</strong>s não pode deixar de recor<strong>da</strong>r as doutrinas outrora perfilha<strong>da</strong>s pelo filho deMónica 775 . A resposta a to<strong>da</strong>s estas questões é entregue por <strong>Agostinho</strong> à dedicação <strong>da</strong>mente à potentia numerorum e ao estudo <strong>da</strong> dialéctica, metodologia expressamenteultrapassa<strong>da</strong> <strong>em</strong> Confessionum, uma vez que o Hiponense tomará consciência de que sóuma reflexão sobre a relação entre o t<strong>em</strong>po e a eterni<strong>da</strong>de pode esclarecer, <strong>em</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong>medi<strong>da</strong>, aqueles apor<strong>em</strong>as. Ora, a natureza desta relação, como <strong>Agostinho</strong> concluirá,ultrapassa o domínio <strong>da</strong>s scientiae e inscreve-se no cerne do cogito humano.Desde o ponto de vista <strong>da</strong> oposição aos mitos cosmogónicos dos Maniqueus, doisaspectos são de salientar nos comentários do Hiponense, uma vez que, através deles epor contraste, se pod<strong>em</strong> perspectivar, igualmente, duas dimensões fulcrais <strong>da</strong>mundividência augustiniana: o t<strong>em</strong>po e a historici<strong>da</strong>de.Efectivamente, a contraposição maniqueísta aos versículos de Génesis onde senarra a criação do Mundo por Deus in principio colidia, de modo directo, com acosmogonia de Mani, defensora <strong>da</strong> duali<strong>da</strong>de de princípios eternos, Luz e Trevas, e <strong>da</strong><strong>em</strong>anação do Mundo como efeito do eterno conflito entre aquelas reali<strong>da</strong>dessupernas 776 . A este ponto de parti<strong>da</strong> do Credo de Mani – assim enunciado <strong>em</strong>775 DO II, XVII, 46: “ (...) De rebus aut<strong>em</strong> obscurissimis et tamen diuinis, quomodo deus et nihil malifaciat et sit omnipotens et tanta mala fiant et cui bono mundum fecerit, qui non erat indiguus, et utrums<strong>em</strong>per fuerit malum an t<strong>em</strong>pore coeperit et, si s<strong>em</strong>per fuit, utrum sub conditione dei fuerit et, si fuit,utrum etiam iste mundus s<strong>em</strong>per fuerit, in quo illud malum diuino ordine domaretur - si aut<strong>em</strong> hicmundus aliquando esse coepit, quomodo, antequam esset, potestate dei malum tenebatur et quid opus eratmundum fabricari, quo malum, quod iam dei potestas frenabat, ad poenas animarum includeretur? Siaut<strong>em</strong> fuit t<strong>em</strong>pus, quo sub dei dominio malum non erat, quid subito accidit, quod per aeterna retrot<strong>em</strong>pora non acciderat? In deo enim nouum extitisse consilium, ne dicam impium, ineptissimum estdicere. Si aut<strong>em</strong> inportunum fuisse et quasi improbum malum deo dicimus, quod nonnulli existimant, iamn<strong>em</strong>o doctus risum tenebit, n<strong>em</strong>o non suscensebit indoctus; quid enim potuit deo nocere mali nescio quailla natura? Si enim dicunt non potuisse, fabricandi mundi causa non erit; si potuisse dicunt, inexpiabilenefas est deum uiolabil<strong>em</strong> credere, nec ita salt<strong>em</strong>, ut uel uirtute prouiderit, ne sua substantia uiolaretur;namque animam poenas hic pendere fatentur, cum inter eius et dei substantiam nihil uelint omninodistare. Si aut<strong>em</strong> istum mundum non factum dicamus, impium est atque ingratum credere, ne illudsequatur, quod deus eum non fabricarit - ergo de his atque huius modi rebus aut ordine illo eruditionis autnullo modo quicquam requirendum est.” ( CCL 29, p. 132).776 A literatura a propósito <strong>da</strong> doutrina de Mani é profusa. Como obras de referência, pod<strong>em</strong> consultar-seos trabalhos de H. P. PUECH, Le Manichéisme. Son Fon<strong>da</strong>teur. Sa doctrine. (Paris 1949). Id., La Gnose532


Kephalaia 777 -, Sto. <strong>Agostinho</strong> irá contrapor a sua concepção de Princípio e a sua noçãode t<strong>em</strong>po e de história. Em De genesi contra Manicheos faz notar que a ideia, defendi<strong>da</strong>pelos Maniqueus, <strong>da</strong> coexistência entre a eterni<strong>da</strong>de de Deus e a do Mundo – t<strong>em</strong>poraaeterna 778 – contraria a promessa de uma vi<strong>da</strong> eterna, igualmente defendi<strong>da</strong> pelospartidários <strong>da</strong> seita. De facto, o filósofo põe a claro uma contradição interna <strong>da</strong> gnos<strong>em</strong>aniqueísta e do seu mito cosmogónico, a saber, a defesa, <strong>em</strong> simultâneo, <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>dedo Mundo, a que está uni<strong>da</strong> uma noção de t<strong>em</strong>po reversível, e a de uma soteriologia, aque está uni<strong>da</strong> a separação eterna entre Luz e Trevas, e o termo do conflito que define,essencialmente, ambos os princípios 779 .Por seu turno, o Filósofo de Hipona defende que a existência do Mundo não écont<strong>em</strong>porânea com o <strong>Ser</strong> Eterno de Deus. Nesse sentido, o Hiponense assume umadupla acepção - admitindo mesmo, e praticando, uma plurali<strong>da</strong>de de sentidos - para oversículo de Génesis 1: 1 - in principio creauit Deus coelum et terram. <strong>Agostinho</strong>insistirá s<strong>em</strong>pre, fun<strong>da</strong>mentalmente, na liberali<strong>da</strong>de do acto criador divino. Quia uoluité a resposta adequa<strong>da</strong> à questão <strong>da</strong> Orig<strong>em</strong> e é esta mesma gratui<strong>da</strong>de e liberali<strong>da</strong>deet le T<strong>em</strong>ps…. ; Id., T<strong>em</strong>ps, mythe et histoire…. ; F. DECRET, l’Afrique manichéenne (Ive-Ve siècle), 2Vols. (Paris 1978). V., sobretudo, Vol I, p. 189-207; 237-257; Id., Mani et la tradition manichéenne,(Paris 1974); Julien RIES, Les études manichéenes. Des controverses de la Réforme aux découvertes duXX.e siècle (Louvain-la-Neuve 1988). V. BIBLIOGRAFIA B. II. 3.1. Maniqueísmo.777 Kephalaia 1, 17 – 5, 20 (The Kephalaia of the Teacher. Trad. e comentário de Iain GARDNER,Leiden/New York/ Köln, 1995, p. 10-11).778 Cf. De gen. cont. Manich. I, II, 4 (PL 34, 175; CSEL 91, p. 70-71); Conf. XI, X, 12; XI, XIII, 15(CCL 27, p. 200; p. 201-202).779 Este facto, para além de pôr <strong>em</strong> evidência uma contradição interna <strong>da</strong> concepção mítico-históricamaniqueísta, faz pensar que não é possível reduzir a questão <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de à dicotomia entre umt<strong>em</strong>po reversível, defendido pelas diferentes doutrinas gnósticas, b<strong>em</strong> como pela tradição clássica, e umt<strong>em</strong>po irreversível, próprio <strong>da</strong> concepção cristã <strong>da</strong> história. Note-se, por ex<strong>em</strong>plo, o texto de Solil. I, I, 4,onde o próprio <strong>Agostinho</strong> parece defender uma reversibili<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po, com garante <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> cósmica,quando escreve: “ (...) , cuius legibus rotantur poli, cursus suos sidera peragunt, sol exercet di<strong>em</strong>,luna t<strong>em</strong>perat noct<strong>em</strong>, omnisque mundus per dies vicissitudine lucis et noctis, per menses incr<strong>em</strong>entisdecr<strong>em</strong>entisque lunaribus, per annos veris, aestatis, autumni et hi<strong>em</strong>is successionibus, per lustra,perfectione cursus solaris, per magnos orbes recursu in ortus suos siderum magnam rerum constantiam,quantum sensibilis materia patitur, t<strong>em</strong>porum ordinibus replicationibusque custodit.” ( CSEL 89, p. 8 ).Deus apresenta-se como guardião de um t<strong>em</strong>po circular e constante, que é próprio do movimento dosastros.533


divinas que se ergu<strong>em</strong> <strong>em</strong> filosof<strong>em</strong>a, quando in<strong>da</strong>ga sobre a Criação do Mundo 780 . E,tal como <strong>em</strong> De libero arbitrio, ao d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>r acerca <strong>da</strong> causa do mal, <strong>Agostinho</strong> impedede procurar uma causa para a vontade humana, também na acção criadora divina seproíbe procurar uma causa <strong>da</strong> causa, que é a vontade de Deus. Em ambos os casos seinsiste num único facto: a causa <strong>da</strong> acção dos seres livres é a sua própria liber<strong>da</strong>de. Nocaso do Absoluto, que é Deus, e no caso limite do na<strong>da</strong>, de que procede to<strong>da</strong> criatura,não se encontrará uma causa <strong>da</strong> acção divina extrínseca ao próprio <strong>Ser</strong> de Deus.A causa <strong>da</strong> Criação, proclama <strong>Agostinho</strong> explicitamente na breve quaestioXXVIII de De diuersis quaestionis 83, é a vontade de Deus, intrínseca à essênciadivina. As criaturas, com as suas próprias leis e a sua ordenação específica depend<strong>em</strong> deDeus no ser e no agir, pois ele as retirou de nihilo: n<strong>em</strong> <strong>da</strong> sua própria substância, n<strong>em</strong>de uma reali<strong>da</strong>de preexistente, consubstancial e eterna, igual a ele mesmo, como umamatéria eterna e subsistente, ou que se lhe oponha, como um Princípio antagónico deMalícia.Sto. <strong>Agostinho</strong> coloca-se, portanto, no extr<strong>em</strong>o oposto tanto <strong>da</strong>s doutrinas<strong>em</strong>anacionistas, como de to<strong>da</strong> cosmovisão que postule a duali<strong>da</strong>de do Princípio. Ora, nocaso <strong>da</strong> cosmogonia maniqueísta, ambos os factos eram afirmados. As Trevas seriamessa reali<strong>da</strong>de subsistente com a qual a Luz se teria mesclado, sendo o universo visívelo efeito dessa estranha e contenciosa mistura 781 . Porém, se Sto. <strong>Agostinho</strong> se <strong>em</strong>penha<strong>em</strong> debelar esta hermenêutica, o dualismo Luz/ Trevas parecia uma evidência constante780 Cf. De gen. cont. Manich. I, II, 4 ( PL 34, 174-175 ; CSEL 91, p. 70-71); De diu. quaest. 83, q. 28(CCL 44A, p. 35). A este propósito, v. o artigo de R. COUSINEAU, “Creation and Freedom. AnAugustinian Probl<strong>em</strong>: “quia voluit?” an/or “quia bonus”?”, in Recherches augustiniennes II, 1962, p. 253-271. A causa <strong>da</strong> Criação é a bon<strong>da</strong>de divina, puramente gratuita, s<strong>em</strong> porquê e, não obstante esta ausênciade razão suficiente, n<strong>em</strong> a acção criadora divina n<strong>em</strong> o Mundo, como efeito dela, são irracionais, sendoeste uma manifestação de plenitude de <strong>Ord<strong>em</strong></strong> inerente à essência divina.781 De acordo com o mito maniqueísta <strong>da</strong>s origens, assaz complexo na sua exposição e linguag<strong>em</strong>, o Pai<strong>da</strong> Grandeza teria feito sair sucessivamente de si três reali<strong>da</strong>des: o Hom<strong>em</strong> Primordial, o Espírito Vivo, oTerceiro Enviado, Jesus o Esplendor e, segui<strong>da</strong>mente, a Gnose. A ca<strong>da</strong> uma destas etapas de <strong>em</strong>anação doPai <strong>da</strong> Grandeza corresponde a vin<strong>da</strong> à existência de categorias de seres, através de uma mistura de luz etrevas. Os seres resultam, assim, de um complexo de luz e obscuri<strong>da</strong>de, uma mescla de divino e diabólico(cf. Kephalaion 24, 70, 8-76, 14: p. 72-76). Neste, a eterni<strong>da</strong>de relaciona-se com o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> termos <strong>da</strong>duração de um processo de <strong>em</strong>anação do Espírito Soberano, o Primeiro Hom<strong>em</strong>, e dos seus cincofilhos/deuses, a partir do Pai, e de um processo paralelo de <strong>em</strong>anação do Mal, a partir <strong>da</strong> Matéria.V. também, Kephalaion 27, 77, 22-79, 12: p. 79-80, onde se descrev<strong>em</strong> as cinco formas de existência noMundo <strong>da</strong>s Trevas e os três tipos de poder que lhe são atribuídos, enraizados nas artes mágicas.534


do próprio Livro <strong>da</strong>s Origens, <strong>em</strong> Gen. 1: 2, pois aí se lê que, no princípio, as trevasestavam sobre o abismo - tenebrae erant super abyssum.Nesta expressão, os Maniqueus permitiam-se fun<strong>da</strong>r no próprio texto bíblico, oconsistência do Reino <strong>da</strong>s Trevas, construindo uma complexa e fabulosa narrativa, ondeo domínio <strong>da</strong>s Trevas se erguia como ver<strong>da</strong>deira nação, dota<strong>da</strong> de corporei<strong>da</strong>de, deformas e de almas que as animavam 782 . De facto, a gnose maniqueísta complexificava asua hermenêutica do Génesis mediante uma concepção materialista do Princípio. Estetornava-se mais um dos aspectos contraditórios de tal proposta, pois enquanto doutrinateosófica e gnóstica, exigia dos seus partidários um elevadíssimo grau de fidúcia, actoque, por seu turno, só é possível mediante o desprendimento <strong>da</strong> matéria. Assim, paraaceder à compreensão de um Deus cuja natureza é essencialmente extensão, Mani exigeo desprendimento <strong>da</strong> matéria, o qual, como Sto. <strong>Agostinho</strong> tantas vezes refere,criticando os costumes dos partidários <strong>da</strong> seita, não era praticado n<strong>em</strong> mesmo peloseleitos 783 .Esta materiali<strong>da</strong>de do Princípio justifica a referência espacial <strong>da</strong> cosmogoniamaniqueísta, que situa geograficamente os reinos <strong>da</strong> Luz e <strong>da</strong>s Trevas, compondo asdiferentes <strong>em</strong>anações no espaço e atribuindo formas geométricas aos limites dosreinados. Na Orig<strong>em</strong> exist<strong>em</strong> dois reinos, separados por uma fronteira. A norte, aRegião do B<strong>em</strong> ou <strong>da</strong> Luz; a Sul a região do Mal, <strong>da</strong>s Trevas e <strong>da</strong> matéria. Osrespectivos senhores são o Pai <strong>da</strong> Grandeza e o Príncipe <strong>da</strong>s Trevas. Ambos dotados deextensão e de natureza anima<strong>da</strong>, lançam-se na conquista do domínio alheio, o primeiro,<strong>em</strong> defesa, aquele último, ao ataque. Ora, esta expansão para lá dos limites gera o mal,fazendo deste uma reali<strong>da</strong>de que penetra na região do B<strong>em</strong> à maneira de uma cunha –quasi cuneus.Sendo a Matéria, essência do Príncipe <strong>da</strong>s Trevas, um Princípio animado, omovimento dela conduz o seu Senhor a penetrar no Reino <strong>da</strong> Luz, por inveja, desejo deposse e de conquista. Nesta invasão de fronteiras, o mito maniqueísta coloca o initiumdo drama cosmológico. Este initium quebra, momentaneamente, a Eterni<strong>da</strong>de dosPrincípios, e faz que as reali<strong>da</strong>des que deles <strong>em</strong>anam convivam com a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de.Por isso, para o maniqueísmo, como para to<strong>da</strong>s as gnoses, o factor t<strong>em</strong>po é considerado782 Cf. v. gr. De gen. cont. Manich. I, IV, 7 ( PL 34, 176-177: CSEL 91, p. 73-74).783 Veja-se, por ex<strong>em</strong>plo, De moribus II, XIX, 67-68 ( CSEL 90, p. 148-150); De nat. boni XLV; XLVII(CSEL 25/2, p. 884; p. 886-887).535


um princípio de corrupção e imperfeição. Por conseguinte, ele deve ser aniquilado,absolutamente extinto, a fim de ser recupera<strong>da</strong> a perfeição <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de. No caso decosmogonias como a neoplatónica, e, mesmo, a estóica, com as quais é sabido que oFilósofo de Hipona também dialogou, a reflexão sobre a natureza do Princípio e,fun<strong>da</strong>mentalmente, sobre a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de propõe superar a imperfeição por recurso àreversibili<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po e à doutrina <strong>da</strong> reencarnação <strong>da</strong>s almas.Porém, no caso do maniqueísmo, é possível falar de um mito histórico onde ot<strong>em</strong>po é, simultaneamente, uma reali<strong>da</strong>de eterna e um princípio a debelar escatológica eirreversivelmente. Esta aparente contradição supera-se facilmente. Com efeito, enquantoconstrução fabulosa, a cosmogonia de Mani não ultrapassa o domínio <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de,como faz notar <strong>Agostinho</strong>, ao considerar mais absurdo o conjunto de inver<strong>da</strong>desproclama<strong>da</strong>s pelo maniqueísmo do que as próprias fábulas e mitos poéticos a quededicara tanto t<strong>em</strong>po de aprendizag<strong>em</strong> e tanto esforço de m<strong>em</strong>ória.Desde esta perspectiva, a ideia de um t<strong>em</strong>po eterno não é mais do que uma outraexpressão para designar a eterni<strong>da</strong>de do Mundo: a consideração de um universoinfinitamente extenso e <strong>em</strong> movimento perpétuo. Sendo assim, o que fica,efectivamente, por explicar, na cosmogonia de Mani, é aquilo que se poderia designarpor milagre <strong>da</strong> reconciliação, ou seja, a razão pela qual tanto conflito e amargura tendea um final feliz. Com efeito, tendo proclamado um início do combate, o drama cósmicoprossegue para um momento intermédio – medius -, constituído pelos episódios docombate, os avanços e recuos <strong>da</strong> Luz e <strong>da</strong>s Trevas, sendo o ser humano uma <strong>da</strong>s<strong>em</strong>anações de peculiar eleição pelos Princípios para exercer a sua essência belicosa,uma espécie de palco privilegiado para efectivar<strong>em</strong> as suas guerrilhas e as levar<strong>em</strong> abom termo.Nesta perspectiva, a gnose maniqueísta proclama que a salvação do hom<strong>em</strong>consiste na eliminação progressiva <strong>da</strong>quilo que há nele de materiali<strong>da</strong>de, pois aí está apresença do mal e <strong>da</strong>s trevas. Só exorcizando este domínio, o hom<strong>em</strong> se poderá libertarrevelando-se, nele, a sua essência autêntica, enquanto expressão de divin<strong>da</strong>de e de luz.Note-se que, uma vez que todo o drama cósmico se processa num domínio onde areali<strong>da</strong>de é concebi<strong>da</strong> como matéria, esta libertação não supõe transformação, comoproclamará a mundividência augustiniana, mas apenas separação, cisão, divisão finalentre Luz e Trevas. Assim, o finis deste drama consiste na vitória, na qual as forças <strong>da</strong>strevas serão bani<strong>da</strong>s e novamente reconduzi<strong>da</strong>s às fronteiras do seu reino. E, desta vez,os Reinos ficarão delimitados para s<strong>em</strong>pre, s<strong>em</strong> que para este facto se encontre qualquer536


explicação plausível, no interior <strong>da</strong> cosmogonia, tal como não é mais do que crível ofactor que deu orig<strong>em</strong> a todo este combate, a saber, uma certa concupiscência, inveja,ou desejo do Reino <strong>da</strong>s Trevas sobre o Reino <strong>da</strong> Luz.Assim, a história gnóstica <strong>da</strong> salvação é constituí<strong>da</strong> com base num ritmo ternáriode t<strong>em</strong>po. O primeiro t<strong>em</strong>po corresponde ao dualismo radical não dos Princípios, poisesses são eternos, mas <strong>da</strong>s origens – trata-se do initium - e t<strong>em</strong> precisamente por base oconflito entre os Princípios. O t<strong>em</strong>po médio desenrola-se, por seu turno, também <strong>em</strong>três momentos mítico-históricos: o ataque do Príncipe <strong>da</strong>s Trevas, que faz eclodir umimenso combate cósmico; o momento <strong>da</strong> formação do cosmos, já entranhado nestamistura de B<strong>em</strong> e Mal, no qual as diferentes <strong>em</strong>anações vão executando a sua tarefad<strong>em</strong>iúrgica de formar as diferentes reali<strong>da</strong>des que preench<strong>em</strong> o cosmos. E, finalmente,uma vez constituí<strong>da</strong> a totali<strong>da</strong>de do cosmos, inicia-se o processo de libertação, comoterceiro momento do t<strong>em</strong>po médio. Esta operação é leva<strong>da</strong> a efeito por Jesus – oEsplendor, ou Gnose – o qual se serve de intermediários, desde Adão até Mani. A partirde Mani durará o t<strong>em</strong>po de libertação até ao final do Mundo, onde a mistura de Luz eTrevas será anula<strong>da</strong>, e ca<strong>da</strong> um dos Reinos recuperará as fronteiras originais. Ficamassim traçados os três momentos mítico-históricos propostos pelo maniqueísmo, e quecorrespond<strong>em</strong>, afinal, à interpretação que esta seita gnóstica disponibiliza para a história<strong>da</strong> salvação, sendo esta de cariz cósmico e não individual – initium, medium, finis.Sto. <strong>Agostinho</strong> conhece com profundi<strong>da</strong>de os mitos maniqueus e as propostasdestes, quer para a explicação <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, quer para o itinerário do cosmos durante ot<strong>em</strong>po médio, quer para a proposta de salvação final, pela gnose. Este conhecimentoleva o Hiponense a reflectir não tanto sobre a questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, pois rapi<strong>da</strong>mente seapercebe que não é esse o aspecto essencial <strong>em</strong> discussão, mas sobre a natureza dopróprio t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> história. De facto, a questão <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> não é essencial para<strong>Agostinho</strong>. O que causa espanto ao filósofo e aquilo que não cessará de proclamar, aoinvés do mito maniqueísta, é a bon<strong>da</strong>de essencial de tudo quanto existe, poisprecisamente porque é efeito de uma liberali<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>depodia, tão-só, não existir. Ora, se existe, ela é essencialmente amável, digna de louvor,quer enquanto obra divina - efeito de uma acção trinitária e, portanto, essencialmenteamorosa -, quer enquanto nela está presente a contínua acção divina, que a sustém noser e a aperfeiçoa, no agir, quer considera<strong>da</strong> <strong>em</strong> si mesma e na diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suasformas, sumamente ordena<strong>da</strong>s nas suas leis e movimentos.537


De facto, a literatura de polémica explicitamente anti-maniqueísta - onde os mitosmaniqueus são descritos por <strong>Agostinho</strong>, criticados e, por vezes, respeitosamentecolocados a ridículo -, não revela a concepção augustiniana sobre a orig<strong>em</strong>. OHiponense insiste, antes, na Criação de nihilo e na bon<strong>da</strong>de manifesta de tudo quantoexiste, na ord<strong>em</strong> e na congruência <strong>da</strong>s formas, cuja finali<strong>da</strong>de intrínseca não é aaniquilação, mas a realização <strong>da</strong> sua perfeição própria. Porém, no cerne <strong>da</strong> polémicaacerca <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> intuiu rapi<strong>da</strong>mente que é a natureza do t<strong>em</strong>po, opróprio factor t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> última análise, a noção de historici<strong>da</strong>de, que está <strong>em</strong>causa. De facto, o que necessita reflexão e justificação é a relação, enigmática esumamente misteriosa, entre o t<strong>em</strong>po e a multiplici<strong>da</strong>de do cosmos, e a Eterni<strong>da</strong>de eUni<strong>da</strong>de do Princípio Criador, <strong>da</strong>do que aí se revela a presença de um elo inconcusso dedependência ontológica, s<strong>em</strong> o qual a reali<strong>da</strong>de contingente não explica a sua existência,n<strong>em</strong> a sua relativa subsistência, n<strong>em</strong> a consistência e congruência <strong>da</strong> sua ord<strong>em</strong> própria.Por conseguinte, os dois aspectos sobre os quais o Hiponense irá reflectir ao consideraro Absoluto Primado Criador de Deus são a essência do t<strong>em</strong>po e a natureza do Princípio.Em estreita relação com estes dois el<strong>em</strong>entos encontra-se a doutrina augustiniana <strong>da</strong>sI<strong>da</strong>des do Mundo, constituí<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, no âmbito <strong>da</strong> argumentação anti-maniqueísta ou,pelo menos, tendo esta como horizonte mental. Não obstante esta doutrina se apresentarcomo um epifenómeno <strong>da</strong> reflexão que o filósofo elabora sobre a Criação, ela indicia econdensa a concepção augustiniana de historici<strong>da</strong>de.Uma hermenêutica <strong>da</strong> história do Universo e do género humano <strong>em</strong> termos deI<strong>da</strong>des do Mundo, com base na narração bíblica <strong>da</strong> Obras dos Seis Dias, ou, numa outraleitura, mais de filiação helénica, com base nas i<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, encontra-sediss<strong>em</strong>ina<strong>da</strong> na obra augustiniana. O Filósofo de Hipona consegue, por vezes, umaexcelente simbiose entre a exposição basea<strong>da</strong> no relato do Hexámeron, de tradiçãoju<strong>da</strong>ica, e que t<strong>em</strong> como referência o ritmo <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> solar – a tarde e a manhã – e aexposição mais de carácter orgânico e biológico, baseado numa concepção do Mundo e<strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de onde se manifesta a vi<strong>da</strong> do género humano, no t<strong>em</strong>po. Mediante estadoutrina <strong>da</strong>s I<strong>da</strong>des do Mundo ou do género humano, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> numa hermenêuticasimbólica do texto bíblico, Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong>, a um t<strong>em</strong>po, o sentido <strong>da</strong> Criação538


e o significado profético e pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> obra divina e <strong>da</strong> sua manifestação progressiva,no curso dos t<strong>em</strong>pos 784 .Uma síntese <strong>da</strong> doutrina augustiniana <strong>da</strong>s I<strong>da</strong>des do Mundo com base na narraçãobíblica do Hexámeron estabelece um conjunto de paralelos entre a Obra do Seis Dias e adinâmica histórica e profética do género humano, narra<strong>da</strong> no Antigo Testamento eculminando na proclamação do Evangelho. Assim, a primeira I<strong>da</strong>de estende-se de Adãoa Noé e coincide com a primeira infância <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Nela, <strong>Agostinho</strong> refereespecialmente as figuras de Abel e Cain como anúncio do destino <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,traçado pelo modo como os dois irmãos orientam a sua vontade: o primeiro, dedicandoseao louvor de Deus, fun<strong>da</strong> a Ci<strong>da</strong>de de Deus; o segundo, fratrici<strong>da</strong>, inicia a ci<strong>da</strong>deterrena 785 . Com a manhã do segundo dia, na qual Deus cria o firmamento, dividindointer aquam quae est super firmamentum, et inter aquam quae est sub firmamento, ofilósofo compara a segun<strong>da</strong> I<strong>da</strong>de do género humano, que vai de Noé até à confusão <strong>da</strong>slínguas, <strong>da</strong> qual é símbolo a construção <strong>da</strong> torre de Babel. Esta época é apresenta<strong>da</strong>como a ver<strong>da</strong>deira infância <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, mas o Hiponense reconhece que o génerohumano não estava, ain<strong>da</strong>, preparado para exercer o ver<strong>da</strong>deiro progresso espiritual aque se destina 786 .Este amadurecimento só se verificará com o amanhecer do terceiro dia –correspondente, no relato do Génesis, à criação <strong>da</strong> terra, seca e fértil - que, na narração<strong>da</strong>s I<strong>da</strong>de, equivale à eleição de Abraão e à constituição do povo eleito, mediante umaaliança entre o ser divino e os seres humanos. A partir de agora, a humani<strong>da</strong>de entra naadolescência, pois caminha na era <strong>da</strong> promessa e assiste ao nascimento do povo784 Veja-se, v. gr., VR XXVI-XXVIII ( CCL 32, p. 217-221); De gen. cont. Manich. I, XXIII, 35-41 ( PL34, 190-193; CSEL 91, p. 104-111); De diu. quaest. 83 q. XLIV; LIII; LVIII; LXIV ( CCL 44A, p. 65-66;p. 85-91; p. 104-109; p. 137-146) ; De catech. rudib. XVII, 28; XXII, 39-40 ( CCL 46, 152-153; p. 163-164); DT IV, IV ( CCL 50, p. 169-172); De ciu. dei XV, VIII; XV, XI-XII; XVI, XLIII; XX, XV (CCL48, p. 462-465; p. 467-470; p. 548-550; p. 725-726); Contra Faustum XII, VIII ( CSEL 25/1, p. 336). Osestudos a este propósito não são por d<strong>em</strong>ais abun<strong>da</strong>ntes. Tome-se como obra de referência o trabalho deA. LUNEAU, L’histoire du salut chez les Pères de l’Église. La doctrine des âges du monde (Paris 1964),máxime p. 285-407. V. também, BIBLIOGRAFIA B. II. 7. CREATIO.785 De ciu. dei XV, V: « (...) Illud igitur, quod inter R<strong>em</strong>um et Romulum exortum est, qu<strong>em</strong> ad modumaduersus se ipsam terrena ciuitas diui<strong>da</strong>tur, ostendit; quod aut<strong>em</strong> inter Cain et Abel, inter duas ipsasciuitates, Dei et hominum, inimicitias d<strong>em</strong>onstrauit. » ( CCL 48, p. 458).786 De gen. cont. Manich. I, XXIII, 36: “ (...) Sed nec ista aetas secun<strong>da</strong> generavit populum dei, quia necpueritia apta est ad generandum.” ( PL 34, 191; CSEL 91, p. 105).539


de Deus 787 . Característica peculiar desta I<strong>da</strong>de é o crescimento de um povo que louva eglorifica um Deus Único, não obstante caminhar por entre as nações pagãs, mergulha<strong>da</strong>sna idolatria e no politeísmo, tornando-se, por isso, digno de receber a Escritura e aPalavra dos Profetas. O entardecer desta I<strong>da</strong>de dá-se com o advento do reino de Saúl,assim como o amanhecer <strong>da</strong> quarta I<strong>da</strong>de do Mundo e <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a juventude, sedá com o início do reino de David. Fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Jerusalém, David é figura deCristo-Salvador, como Sto. <strong>Agostinho</strong> glosa de modo peculiar no Livro décimo sétimode De ciuitate dei 788 .Prosseguindo a sua hermenêutica alegórica <strong>da</strong> história, Sto. <strong>Agostinho</strong> chega aoquinto dia. Na narrativa bíblica do Hexámeron, este é o dia <strong>da</strong> Criação do animais, nadiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas formas, desde os répteis às aves do céu, s<strong>em</strong>pre seguido <strong>da</strong>apreciação <strong>da</strong> sua bon<strong>da</strong>de, e <strong>da</strong> bênção divina: crescei e multiplicai-vos. Ora, a quintaI<strong>da</strong>de do género humano corresponde, na simbólica de <strong>Agostinho</strong>, à deportação do povoeleito de Jerusalém para a Babilónia, ao cativeiro, ao t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> errância e <strong>da</strong> provação<strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de do povo à Aliança com o Deus-Uno. Deste t<strong>em</strong>po de peregrinação resultaa dispersão do povo eleito e a preservação de uma pequena porção que permanece fiel ese torna digna de alcançar e acolher a sexta I<strong>da</strong>de, a senectude, a qual corresponde àplenitude <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> história e do género humano. Esta I<strong>da</strong>de inicia-se com aIncarnação do Verbo, ou seja, com a pregação do Evangelho. Tratando-se <strong>da</strong> últimaI<strong>da</strong>de terrena, <strong>da</strong> qual a figura de Simeão é símbolo, esta I<strong>da</strong>de não será supera<strong>da</strong>, nocurso dos t<strong>em</strong>pos. Porém, ela estará <strong>em</strong> contínua transformação e aperfeiçoamento, a787 Cf. De gen. cont. Manich. I, XXIII, 37 ( PL 34, 191; CSEL 91, p. 106-107).788 De ciu. dei XVII, IV: “Procursus igitur ciuitatis Dei ubi peruenit ad regum t<strong>em</strong>pora, quando DauidSaule reprobato ita regnum primus obtinuit, ut eius deinde posteri in terrena Hierusal<strong>em</strong> diuturnasuccessione regnarent, dedit figuram, re gesta significans atque praenuntians, quod non est praetereundumsilentio, de rerum mutatione futurarum, quod adtinet ad duo testamenta, uetus et nouum, ubi sacerdotiumregnumque mutatum est per sacerdot<strong>em</strong> eund<strong>em</strong> que reg<strong>em</strong> nouum ac s<strong>em</strong>piternum, qui est ChristusIesus.” ( CCL 48, p. 554-555); Em David, <strong>Agostinho</strong> vê a prefiguração do Mediador: “ (...) Iste, cuidicitur: Spernet te Dominus, ne sis rex super Israel, et: Disrupit Dominus regnum ab Israel de manu tuahodie, quadraginta regnauit annos super Israel, tanto scilicet spatio t<strong>em</strong>poris, quanto et ipse Dauid, etaudiuit hoc primo t<strong>em</strong>pore regni sui; ut intellegamus ideo dictum, quia nullus de stirpe eius fueratregnaturus, et respiciamus ad stirp<strong>em</strong> Dauid, unde exortus est secundum carn<strong>em</strong> mediator Dei ethominum, homo Christus Iesus.” (De ciu. dei XVII, VII: CCL 48, p. 568). Todo o Livro XVII de Deciuitate dei é dedicado a comentar esta profecia <strong>da</strong> era <strong>da</strong>vídica <strong>em</strong> relação à plenitude do t<strong>em</strong>po que serealiza com a Incarnação do Verbo.540


partir deste cume de manifestação de bon<strong>da</strong>de que é a presença, no t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong> própriaEterni<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> Cristo 789 .Este mesmo projecto de aperfeiçoamento distingue uma humani<strong>da</strong>de que estagnao seu progresso na vivência segundo o hom<strong>em</strong> carnal, detendo-se na quinta I<strong>da</strong>de, eaquela que progride <strong>em</strong> Cristo e caminha na I<strong>da</strong>de provecta, a I<strong>da</strong>de perfeita, que, <strong>em</strong>Cristo, assume Deus por único modelo, configurando com Ele a vi<strong>da</strong> do espírito erenovando, de dia <strong>em</strong> dia, a imag<strong>em</strong> de Deus impressa no ser humano. Com efeito, éesta a interpretação proposta por Sto. <strong>Agostinho</strong> para o Livro do Génesis, quando coloca<strong>em</strong> paralelo não já o percurso <strong>da</strong> história do género humano <strong>em</strong> direcção à plenitude <strong>da</strong>sexta I<strong>da</strong>de mas, partindo dela e de uma vivência nela, procura destrinçar a vi<strong>da</strong>segundo o Verbo e a vi<strong>da</strong> segundo o hom<strong>em</strong> velho. É esta a hermenêutica que oHiponense elabora a propósito <strong>da</strong> Criação, nomea<strong>da</strong>mente nos capítulos finais do LivroXIII de Confessionum, onde coloca <strong>em</strong> confronto o relato genesíaco do Hexámeron einúmeros textos de S. Paulo que insist<strong>em</strong> na vi<strong>da</strong> segundo o hom<strong>em</strong> novo, ou o NovoAdão, o Hom<strong>em</strong>, Cristo Jesus 790 .O ocaso <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, o declínio do género humano, a superação etransformação <strong>da</strong> sexta I<strong>da</strong>de não é, portanto, para <strong>Agostinho</strong>, entendi<strong>da</strong> comodecadência mas como plenitude de perfeição, atingi<strong>da</strong> pelo próprio t<strong>em</strong>po, com oadvento do Verbo Incarnado. Esta plenitude do t<strong>em</strong>po, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que assume as trêsdimensões <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, não é, ain<strong>da</strong>, definitiva, e tende à sua perfeição própria,que é a Eterni<strong>da</strong>de. Assim, o t<strong>em</strong>po tende a um término, que <strong>Agostinho</strong> designa porfinis saecula e ao qual se sucede o dia que não t<strong>em</strong> ocaso, o repouso de Deus, a manhãdo sétimo dia, no relato genesíaco, o sabath eterno. Esta consumação do t<strong>em</strong>po realizase,por conseguinte, não por aniquilação <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s, entre as quais se conta opróprio t<strong>em</strong>po, mas mediante a plena realização <strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des conti<strong>da</strong>s noconjunto <strong>da</strong> Criação.É para esse início do dia que não t<strong>em</strong> ocaso que tende to<strong>da</strong> a Criação e éporventura à luz desta intentio cósmica, presente <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a criatura, e, de modoparticular, no ser humano, manifesta no t<strong>em</strong>po e na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de que, naperspectiva de <strong>Agostinho</strong>, é possível compreender, mesmo se de modo limitado, <strong>da</strong><strong>da</strong> acontingência <strong>da</strong> razão humana, a noção de Princípio e o sentido <strong>da</strong> Criação. A essência789 Cf., v. gr., De gen. cont. Manich. I, XXIII, 40 ( PL 34, 192; CSEL 91, p. 108-110).790 Cf. Conf. XIII, XXI, 29-XIII, XXXI, 46 ( CCL 27, p. 257–270).541


desse Deus creator omnium esclarece-se, para o Hiponense, mediante uma reflexãoacerca <strong>da</strong> natureza do t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de, a qual se ilumina particularmente <strong>em</strong>função <strong>da</strong> finali<strong>da</strong>de para onde se dirige. O repouso de Deus ou o repouso <strong>em</strong> Deus, queos Maniqueus ridicularizavam, é, afinal, para <strong>Agostinho</strong>, o grande princípio iluminadordo sentido <strong>da</strong> Criação e de to<strong>da</strong> a história do género humano 791 . Assim o confirma oHiponense, ao considerar que a ord<strong>em</strong> sumamente bela de to<strong>da</strong> a Criação é passageira,pois a Palavra divina tudo criou no t<strong>em</strong>po, como fica expresso no relato genesíaco peloritmo poético do amanhecer e do ocaso. Porém, to<strong>da</strong> essa disposição dos seres caminhapara o dies sine uespera, no qual se realizará a plenitude <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>, onde to<strong>da</strong>s as coisasestarão realiza<strong>da</strong>s na paz, segundo a consagra<strong>da</strong> expressão de De ciuitate dei – paxomnium rerum tranquilitas ordinis 792 .Desde esta perspectiva, o sentido do verso ambrosiano – Deus creator omnium -que desde o início <strong>da</strong> conversão cativou o espírito de <strong>Agostinho</strong>, a saber, a afirmação deum único Deus, Criador de to<strong>da</strong>s as coisas, eluci<strong>da</strong>-se pela concepção augustiniana doPrincípio, s<strong>em</strong>pre tendo <strong>em</strong> vista não a orig<strong>em</strong>, mas o termo para o qual tende to<strong>da</strong> acriatura. Por sua vez, só uma reflexão sobre o t<strong>em</strong>po, na sua dimensão ontológica eenquanto reali<strong>da</strong>de construtora <strong>da</strong> própria historici<strong>da</strong>de pode esclarecer o finis saeculailuminando, desta forma, a natureza do Princípio. Perante este desafio de <strong>Agostinho</strong>,que parece propor-se compreender a Criação a partir do Fim, duas questões se colocam,articula<strong>da</strong>s <strong>em</strong> estreita conexão. De que modo o Hiponense entende o termo principio,chave de ouro que abre o Livro do Génesis? Qual a concepção augustiniana dessareali<strong>da</strong>de fugitiva, inaugura<strong>da</strong> pela Criação, que é o próprio t<strong>em</strong>po, artífice <strong>da</strong> história?Sto. <strong>Agostinho</strong> considera que o termo principio admite uma acepção absoluta,eterna e s<strong>em</strong> referente de orig<strong>em</strong>, e uma outra, relativa precisamente àquela primeira 793 .791 Conf. XIII, XXXV, 50 - XIII, XXXVI, 51: “ Domine deus, pac<strong>em</strong> <strong>da</strong> nobis - omnia enim praestitistinobis - pac<strong>em</strong> quietis, pac<strong>em</strong> sabbati, pac<strong>em</strong> sine uespera. Omnis quippe iste ordo pulcherrimus rerumualde bonarum modis suis peractis transiturus est: et mane quippe in eis factum est et uespera. Dies aut<strong>em</strong>septimus sine uespera est nec habet occasum, quia sanctificasti eum ad permansion<strong>em</strong> s<strong>em</strong>piternam, ut id,quod tu post opera tua ‘bona ualde’ quamuis ea quietus feceris, requieuisti septimo die, hoc praeloquaturnobis uox libri tui, quod et nos post opera nostra ideo bona ualde, quia tu nobis ea donasti, sabbato uitaeaeternae requiescamus in te.” ( CCL 27, p. 272).792 Cf. De ciu. dei XIX, XIII ( CCL 48, p. 678-680).793 Lê-se, v. gr., <strong>em</strong> De gen. ad litt. imperf. lib. 3: “ (...) Est enim principium sine principio et estprincipium cum alio principio. principium sine principio solus pater est; ideo ex uno principio esse omniacredimus.” ( CSEL 28/1, p. 461-462).542


Desde esta óptica, a interpretação bíblica do primeiro versículo do Génesis – inPrincipio creauit Deus coelum et terram – consente, na obra de <strong>Agostinho</strong>, trêsinterpretações possíveis, uma que recolhe a acepção absoluta do termo e as d<strong>em</strong>ais, asua acepção relativa. Esta diversi<strong>da</strong>de de interpretações não se exclui entre si mas tendea manifestar a plenitude de sentido que o Hiponense confere à própria Escritura.Assim, um primeiro sentido para a expressão in principio é sinónimo de exórdioou começo t<strong>em</strong>poral. Sto. <strong>Agostinho</strong> socorre-se deste sentido já <strong>em</strong> De genesi contraManicheos, de forma a anular a interpretação maniqueísta <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, basea<strong>da</strong>, como jáse referiu, na existência dos t<strong>em</strong>pora aeterna. Antes do começo t<strong>em</strong>poral, do exórdio<strong>da</strong>s criaturas como efeito <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de divina e <strong>da</strong> vontade de Deus, não existia na<strong>da</strong>. Acreatio divina é de nihilo. To<strong>da</strong>s as conjecturas e in<strong>da</strong>gações acerca do que existia, oufazia Deus antes <strong>da</strong> Criação, pródigas na crítica maniqueísta aos primeiros versículos deGénesis são, desde esta perspectiva, absolutamente desprovi<strong>da</strong>s de sentido, pois não têmqualquer conteúdo real que as sustente 794 .O segundo sentido para a expressão in principio encontra-se também já presenteno escrito supra referido e consiste <strong>em</strong> identificar o princípio com o Verbo, per qu<strong>em</strong>omnia facta sunt. Esta interpretação será amplamente explana<strong>da</strong> pelo Hiponense aolongo <strong>da</strong> sua obra e constitui o cerne <strong>da</strong> explicação augustiniana para a relação entret<strong>em</strong>po e Eterni<strong>da</strong>de. Ela completa-se, além do mais, com a exegese augustiniana de Jo.8: 25, onde se lê: principium, quia loquor vobis. Por isso, e não obstante sóposteriormente o Hiponense desenvolver esta possibili<strong>da</strong>de do texto bíblico, já <strong>em</strong> Degenesi contra Manicheos refere que Cristo é este Verbo Eterno de Deus, Princípio noqual to<strong>da</strong>s as coisas são cria<strong>da</strong>s 795 . Por último, um terceiro sentido designa ord<strong>em</strong> ousucessão, identificando a primeira <strong>da</strong>s criaturas e referenciando, por conseguinte, ahierarquia ontológica. Tal acepção pode encontrar-se, v. gr., <strong>em</strong> De genesi ad litteram794 De gen. cont. Manich. I, II, 3: “ (...) Sed etsi in principio t<strong>em</strong>poris deum fecisse coelum et terramcre<strong>da</strong>mus, deb<strong>em</strong>us utique intelligere quod ante principium t<strong>em</strong>poris non erat t<strong>em</strong>pus.” ( PL 34, 174;CSEL 91, p. 69). O texto é antecedido do que se transcreve na nota seguinte, o que justifica a construçãocondicional. Para <strong>Agostinho</strong>, o t<strong>em</strong>po é uma criatura. Deus fez também o t<strong>em</strong>po e antes do t<strong>em</strong>po ter sidofeito por Deus o t<strong>em</strong>po não existia. O mesmo sentido v. gr., <strong>em</strong> Conf. XII, VII, 7 ( CCL 27, p. 219-220).Uma síntese <strong>da</strong> primeira e segun<strong>da</strong> interpretações pode ler-se <strong>em</strong> Conf. XII, XX, 29 ( CCL 27, p. 231-232).795 De gen. cont. Manich. I, II, 3: “ (…) His respond<strong>em</strong>us deum [in principio] fecisse coelum et terram,non in principio t<strong>em</strong>poris, sed in Christo, cum verbum esset apud patr<strong>em</strong>, per quod facta et in quo factasunt omnia.” ( PL 34, 174; CSEL 91, p. 69).543


imperfectus liber, onde Sto. <strong>Agostinho</strong> in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong> situação ontológica <strong>da</strong>scriaturas espirituais incorpóreas, ou anjos 796 .De que modo esta multiplici<strong>da</strong>de de sentidos converge para deslin<strong>da</strong>r a relaçãoentre t<strong>em</strong>po e Eterni<strong>da</strong>de, à qual está unido o esclarecimento do sentido do versoambrosiano Deus creator omnium? Note-se que, no conjunto <strong>da</strong> obra do Hiponense, orecurso directo do filósofo à enunciação deste verso não é recorrente. Contudo, eleencontra-se <strong>em</strong> dois textos cujo conteúdo está <strong>em</strong> íntima conexão. Trata-se do Livrosexto de De musica 797 e do Livro décimo primeiro de Confessionum 798 . Em ambos osmomentos <strong>Agostinho</strong> quer tratar do t<strong>em</strong>po, enquanto reali<strong>da</strong>de imanente ao discursohumano, na tentativa de descortinar a natureza dessa enti<strong>da</strong>de maximamente enigmática.De modo intuitivo, portanto, vislumbra-se aquilo que, <strong>em</strong> outros textos fica dito s<strong>em</strong>lugar a dúvi<strong>da</strong>: o t<strong>em</strong>po é uma criatura de Deus, precisamente aquela que é comum ato<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s e as coloca numa situação de essencial e definitivadissimilitude <strong>em</strong> face <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de.É sabido que o Livro undécimo de Confessionum é especialmente consagrado porSto. <strong>Agostinho</strong> à in<strong>da</strong>gação acerca do t<strong>em</strong>po. Reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>, ele afecta o movimentodos corpos, podendo analisar-se desde uma perspectiva física. Enquanto reali<strong>da</strong>de queatinge a percepção humana, mediante a qual o ser humano fala de uma experiência devi<strong>da</strong> passa<strong>da</strong>, considera a sua existência presente e projecta a futura, o t<strong>em</strong>po pode serconsiderado desde uma perspectiva psicológica ou mesmo antropológica.796 De gen. ad litt. imper. lib. 3: “ (...) ipsa etiam primo creatura intellectualis potest dici principium hisquibus caput est, quae fecit deus.” (CSEL 28/1, p. 462). O texto prossegue ao longo dos parágrafos 6 e 7com a imbrica<strong>da</strong> questão acerca de saber se o t<strong>em</strong>po é a primeira criatura – quod t<strong>em</strong>pus ipsum creaturaest – ou se primeiramente Deus criou os anjos, caso <strong>em</strong> que estes estarão fora <strong>da</strong> sucessão t<strong>em</strong>poral. Omesmo sentido <strong>em</strong> Conf. XII, IX, 9; XIII, 6 - XV, 22 ( CCL 27, p. 221; p. 223-227). To<strong>da</strong> a questão seprende com a interpretação augustiniana <strong>da</strong> expressão coelum et terram, acerca <strong>da</strong> qual se pode ler comproveito o artigo de J. PÉPIN, “Recherches sur le sens et l’origine de l’expression coelum coeli <strong>da</strong>ns lesConfessions de saint Augustin”, Archivum Latinitatis Medii Aevi (Bulletin du Cange) 23/ 3, 1953, 185-274, spec. p. 200 e ss.. V., também, A. SOLIGNAC, “coelum coeli”, in Bibliothèque augustinienne.Oeuvres de saint Augustin 14, p. 592-598. A questão <strong>da</strong> existência de um t<strong>em</strong>po para as criaturasangélicas justifica-se pela existência, nelas, de um motus incorporeis, próprio <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de puramenteespiritual que as caracteriza (cf. De gen. ad. litt. imper. lib. 6: CSEL 28/1, p. 462-463).797 Cf. De mus. VI, II, 2; IX, 23 ; XVII, 57 ( PL 32 : 1163 ; 1176 ; 1191).798 Conf. XI, XXVII, 35: “ « Deus creator omnium »: uersus iste octo syllabarum breuibus et longisalternat syllabis: quattuor itaque breues, prima, tertia, quinta, septima, simplae sunt ad quattuor longas,secun<strong>da</strong>m, quartam, sextam, octauam.” ( CCL 27, p. 211-213).544


To<strong>da</strong>via, a grande interrogação de Sto. <strong>Agostinho</strong> não incide sobre a natureza dot<strong>em</strong>po. De facto, não é esta a perspectiva essencial <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação augustiniana, como seao filósofo bastasse saber que o t<strong>em</strong>po é criatura divina e, portanto, expressão debon<strong>da</strong>de, de beleza e de ord<strong>em</strong>. A averiguação essencial de <strong>Agostinho</strong> acerca do t<strong>em</strong>po,mormente no referido Livro de Confessionum, incide sobre a sua medi<strong>da</strong> 799 . Esta é, comefeito, a in<strong>da</strong>gação que faz sentido, pois o que causa espanto é a verificação do decurso<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte, <strong>da</strong> própria existência e <strong>da</strong> existência de to<strong>da</strong>s as formascria<strong>da</strong>s, e a comprovação, nelas, não do t<strong>em</strong>po, mas <strong>da</strong> duração. Esta, pode ser maior oumenor e, aparent<strong>em</strong>ente, a medi<strong>da</strong> dela é referencia<strong>da</strong> a três momentos: o passado, opresente e o futuro. Esta tridimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> duração <strong>da</strong>s formas, percebi<strong>da</strong> peloespírito, designa-se quer <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> corrente, quer nos escritos dos filósofos, port<strong>em</strong>po.De facto, tanto o estoicismo como o epicurismo são propostas filosóficasconheci<strong>da</strong>s por <strong>Agostinho</strong> e que têm, acerca <strong>da</strong> noção de t<strong>em</strong>po, uma peculiarconcepção cuja finali<strong>da</strong>de é apresentar ao ser humano a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> conquista deuma sabedoria que lhe permita conviver com a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> finitude e do devir. Por isso,se é ver<strong>da</strong>de que <strong>em</strong> ambas as mundividências não é evidente a positivi<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po e<strong>da</strong> finitude - como será proclama<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong>, enquanto expressão <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de doCriador 800 – é um facto que a tradição estóica postula o el<strong>em</strong>ento positivo e vital dodevir cósmico, e que, por sua vez, o epicurismo proclama o sentido absoluto do instante,que deve ser vivido <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a plenitude como único momento <strong>da</strong> duração ao qual épossível conceder alguma consistência ontológica 801 .Certamente, o filósofo t<strong>em</strong> presente, na sua expositio de Confessionum como <strong>em</strong>outros escritos onde reflecte sobre a natureza do t<strong>em</strong>po, o argumento estóico <strong>da</strong>vacui<strong>da</strong>de do presente 802 . Se o passado já não existe, o futuro ain<strong>da</strong> não existe e o799 Cf. Conf. XI, XV, 18-19; XVI, 21; XXI, 27; XXIV, 31; XXVI, 33; XXVII, 37 ( CCL 27, p. 203-204;p. 204-205; p. 207; p. 210; p. 211; p. 213-214).800 Conf. XI, XII, 16: « (…) Omnia t<strong>em</strong>pora tu fecisti et ante omnia t<strong>em</strong>pora tu es, nec aliquo t<strong>em</strong>pore nonerat t<strong>em</strong>pus. » ( CCL 27, p. 202). Referindo-se à criação do mundo, escreve: “ (...) procul dubio non estmundus factus in t<strong>em</strong>pore sed cum t<strong>em</strong>pore.” (De ciu. dei XI, VI: CCL 48, p. 326).801 Cf. V. GOLDSCHMIDT, Le systhème stoïcien et l’idée de t<strong>em</strong>ps (Paris 1969). K. FLASCH, Was istZeit? Augustinus von Hippo. Das XI Buch der Confessiones. Historisch-philosophische Studie. Text-Übersetzung-Kommentar (Frankfurt a.M., 1993). V. também, BIBLOGRAFIA B. II. 22. TEMPVS.802 Conf. XI, XIV, 17: “ (...) Praesens aut<strong>em</strong> si s<strong>em</strong>per esset praesens nec in praeteritum transiret, non iamesset t<strong>em</strong>pus, sed aeternitas. Si ergo praesens, ut t<strong>em</strong>pus sit, ideo fit, quia in praeteritum transit, quomodo545


presente, para adquirir consistência ontológica, t<strong>em</strong> de ser passado, como haver<strong>em</strong>os deafirmar que existe o presente? Na reali<strong>da</strong>de a causa do presente será o passado e anatureza do presente será a tendência ao não ser. Ora, não se pode conceber reali<strong>da</strong>d<strong>em</strong>ais desprovi<strong>da</strong> de enti<strong>da</strong>de e de forma, afinal, mais negativa, do que o designadomomento presente. Sto. <strong>Agostinho</strong> enuncia o paradoxo e insiste na sua ignorânciaacerca <strong>da</strong> natureza dessa enigmática enti<strong>da</strong>de que é o t<strong>em</strong>po. To<strong>da</strong>via, umacompreensão <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de é exposta por <strong>Agostinho</strong> desde o início do undécimoLivro de Confessionum e é essa que irá prevalecer ao longo <strong>da</strong> sua obra, esclarecendo osentido do factor t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de, esta última mais não sendo do que adescodificação de sentido, por parte do espírito humano, <strong>da</strong> própria Criação.Assim, a noção augustiniana de t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de é concebi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> próprianoção de Princípio, na segun<strong>da</strong> acepção supra indica<strong>da</strong>, a saber, como Verbo Eterno ouPalavra de Deus, Criadora. Com efeito, <strong>Agostinho</strong> apreendera no Prólogo Joanino, e acompasso com a leitura dos Platonicorum, que to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de fora feita no Verbo. Éprecisamente essa a perspectiva a partir <strong>da</strong> qual o Hiponense considera ser possíveldescodificar o sentido do t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> história. O próprio livro undécimo deConfessionum abre com uma referência ao Verbo, no qual to<strong>da</strong>s as coisas foram ditas noPrincípio. Por seu turno, <strong>Agostinho</strong> expressa o desejo que o move a inquirir sobre ot<strong>em</strong>po: o amor pela voz do louvor divino, <strong>em</strong> que consiste to<strong>da</strong> a Criação e acompreensão do sentido de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de, desde o princípio até ao reino perpétuo <strong>da</strong>Ci<strong>da</strong>de Santa.É a compreensão de to<strong>da</strong> a Escritura, a fim de mais amar o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o até aorepouso nele que leva o Hiponense a dedicar-se a esta reflexão 803 . Assumindo que oVerbo é o Princípio no qual to<strong>da</strong>s as coisas foram feitas e que a narração dessa acçãodivina se recolhe na Escritura mediante uerba, to<strong>da</strong> a reflexão sobre o t<strong>em</strong>po étransferi<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> do plano físico, antropológico ou ético, <strong>em</strong> que a tradiçãoantiga situava a compreensão desta reali<strong>da</strong>de, para o plano metafísico. Este factosignifica, na obra augustiniana, que a compreensão do t<strong>em</strong>po terá como referência oespírito humano, não enquanto produtor de reali<strong>da</strong>de, mas enquanto lugar deacolhimento <strong>da</strong> palavra, mediante a escuta. Na ver<strong>da</strong>de, a análise do t<strong>em</strong>po apresenta<strong>da</strong>et hoc esse dicimus, cui causa, ut sit, illa est, quia non erit, ut scilicet non uere dicamus t<strong>em</strong>pus esse, nisiquia tendit non esse? ” ( CCL 27, p. 203). V. também, v. gr, In Iohan. Ev. Tract., XXXVIII, 10 ( CCL 36,p. 343-344).803 Cf. Conf. XI, II, 3-4 ( CCL 27, p. 195-196).546


por <strong>Agostinho</strong> no referido Livro de Confessionum assume o carácter de umafenomenologia <strong>da</strong> audição, antes de mais <strong>da</strong> palavra humana para, mediante ela, acederà palavra divina.Uma vez mais, é a estrutura do cogito humano - vocaciona<strong>da</strong> a receber amanifestação trinitária de Deus mediante a geração do uerbum mentis, aquela palavraque procede de uma uera ratio e que se gera in domicilio cogitationis, onde alcança, <strong>em</strong>virtude <strong>da</strong> sua procedência, um domínio de universali<strong>da</strong>de - que pode compreender osentido <strong>da</strong> Escritura naquilo que aí se revela, não de t<strong>em</strong>poral, mas de eterno eabsoluto 804 . No caso concreto <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação acerca do enigma do t<strong>em</strong>po e do modocomo a dinâmica t<strong>em</strong>poral do universo se relaciona com a Uni<strong>da</strong>de e Imutabili<strong>da</strong>de doPrincípio, Sto. <strong>Agostinho</strong> anela uma compreensão do sentido e do significado <strong>da</strong>Criação na dimensão <strong>da</strong> duração t<strong>em</strong>poral, ou seja, enquanto lugar <strong>da</strong> história. E,precisamente porque ao posicionar a compreensão do t<strong>em</strong>po no âmago do espíritohumano, pois só ele é medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> duração – in te, anime meus, t<strong>em</strong>pora metior 805 – aproposta de <strong>Agostinho</strong> é, ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre, a de transcender o próprio t<strong>em</strong>po, de forma aconquistar a consistência ontológica dessa enti<strong>da</strong>de – ut ergo et tu sis, transcendet<strong>em</strong>pus 806 .É na relação entre o espírito humano e o <strong>Ser</strong> divino, mediante o Verbo – relaçãoesta que é inerente à própria estrutura metafísica do cogito – que Sto. <strong>Agostinho</strong> sepropõe compreender o sentido <strong>da</strong> Criação na sua dimensão histórica, isto é, na medi<strong>da</strong><strong>em</strong> que é <strong>da</strong>do entender ao ser humano que tudo quanto foi feito, foi feito no Verbo.Este facto garante o sentido de to<strong>da</strong> a forma e a possibili<strong>da</strong>de de tal sentido serdescodificado pelo ser humano, fazendo-o descobrir que to<strong>da</strong> a Criação é, afinal, umadádiva divina ao ser humano, para que este, à s<strong>em</strong>elhança do que realiza o Verbo nointerior <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, oferte de novo a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> ao seu Criador, acrescentandolhe,mediante o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de rectamente ordena<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> a densi<strong>da</strong>de ontológicapossível. Ora, tal diálogo de dádiva entre o Verbo eterno e o verbo humano só poderealizar-se mediante a progressiva descodificação do sentido <strong>da</strong> história e do curso dost<strong>em</strong>pos. Só nesta medi<strong>da</strong> Sto. <strong>Agostinho</strong> entende o esforço de reflexão e meditação, deexegese e interpretação dessa expressão <strong>da</strong> Palavra Eterna que é a Escritura, enquanto804 Cf. Conf. XI, III, 5 ( CCL 27, p. 196-197).805 Conf. XI, XXVII, 36 ( CCL 27, p. 213).806 In Iohan. Ev. Tract, XXXVIII, 10 ( CCL 36, p. 343-344).547


criação humana e palavra proferi<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po. Com efeito, o Hiponense afirmaexpressamente que a compreensão do passado apenas ilumina o presente e que esteadvém do futuro. Por isso, é o caminhar de ca<strong>da</strong> ser humano e de to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>depara o sabath de Deus que está <strong>em</strong> causa, quando o filósofo se propõe reflectir sobre oPrincípio e sobre o modo como o espírito humano mede o t<strong>em</strong>po.Assim, é a partir de uma experiência que contrasta, efectivamente, com a tradiçãofilosófica <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de – a de uma Ver<strong>da</strong>de Plena, ou Verbo Eterno, que se comunicacom o Mundo sob forma de linguag<strong>em</strong>, necessariamente sujeita ao t<strong>em</strong>po; a partir deuma Escritura media<strong>da</strong> pela t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de inerente à condição criatural dos seusre<strong>da</strong>ctores, dos seus leitores e intérpretes e, afinal, <strong>da</strong> própria palavra enquanto signolinguístico; a partir <strong>da</strong> espantosa comprovação de aniquilamento do Verbo Eterno noverbo humano, do qual a presença histórica de Cristo é expressão plena; é a partir deuma Escritura que recolhe to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong> Aliança entre Deus e os homens que, afinal,coincide com o próprio acto criador divino – que Sto. <strong>Agostinho</strong> irá in<strong>da</strong>gar acerca domistério <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de.Com efeito, <strong>em</strong> De musica o verso ambrosiano – Deus creator omnium – forainvocado para justificar a percepção racional <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de ordena<strong>da</strong> de acordo como modelo mat<strong>em</strong>ático e tendo como referência a noção de numerus, sendo esta aíconsidera<strong>da</strong>, à maneira platónico-pitagórica, como el<strong>em</strong>ento de mediação entre ouniverso sensível e o inteligível, entre o múltiplo e o Uno 807 .Em Confessionum, Sto. <strong>Agostinho</strong> condensa num único parágrafo esta visãopoética <strong>da</strong> Criação, que é também poiética, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que é realiza<strong>da</strong> pela relaçãoentre o Verbo Divino e o verbo humano. Partindo do ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> acção <strong>da</strong>s três funçõesdo cogito na intenção de recitar um canto – expectatio, attentio et m<strong>em</strong>oria -, o filósofomostra como elas se vão unificando na m<strong>em</strong>ória, onde a atenção se preserva, à medi<strong>da</strong>que o canto se recita. O que sucede no canto como um todo, sucede <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s807 De mus. VI, XVII, 56-57: “ (...) numerus aut<strong>em</strong>, et ab uno incipit, et aequalitate ac similitudinepulcher est, et ordine copulatur. Quamobr<strong>em</strong> quisquis fatetur nullam esse naturam, quae non ut sitquidquid est, appetat unitat<strong>em</strong>, suique similes in quantum potest esse conetur, atque ordin<strong>em</strong> proprium vellocis vel t<strong>em</strong>poribus, vel in corpore quo<strong>da</strong>m liberamentum salut<strong>em</strong> suam teneat: debet fateri ab unoprincipio per aequal<strong>em</strong> illi ac simil<strong>em</strong> speci<strong>em</strong> divitiis bonitatis ejus, qua inter se unum et de unocharissima, ut ita dicam, charitate, junguntur, omnia facta esse atque condita quaecumque sunt, inquantumcumque sunt. Quare ille versus a nobis propositus, Deus creator omnium, non solum auribussono numeroso, sed multo magis animae sententiae sanitate et veritate gratissimus. » ( PL 32, 1191).548


partes. Ora, o mesmo ocorre na vi<strong>da</strong> do ser humano, onde as sílabas breves sãos<strong>em</strong>elhantes às acções de ca<strong>da</strong> um. E o mesmo advém nesse grande cântico que é aCriação, b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, na totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s gerações, cujaspartes são to<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s de todos os seres humanos 808 .O facto de <strong>Agostinho</strong> indicar, como medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, a própria vi<strong>da</strong> doespírito humano, na tríplice dinâmica <strong>da</strong>s suas funções, não permite confundir umaleitura de carácter psicologista – que reduz o t<strong>em</strong>po à dimensão <strong>da</strong> consciência - comaquilo que se poderia designar como uma metafísica <strong>da</strong> duração, que prepara o sentidopleno <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de e que deriva desta análise augustiniana do t<strong>em</strong>po. Na<strong>da</strong> maisalheio do projecto de <strong>Agostinho</strong> e, inclusivamente, na<strong>da</strong> mais perverso, desde a ópticado Hiponense, do que encerrar o sentido do t<strong>em</strong>po no âmbito <strong>da</strong> subjectivi<strong>da</strong>de humana.Um tal encerramento <strong>da</strong> compreensão do t<strong>em</strong>po no domínio exclusivo <strong>da</strong> consciênciaagrilhoa a realização de si mesmo, a qual só pode <strong>da</strong>r-se transcendendo o t<strong>em</strong>po. Aodefinir o t<strong>em</strong>po como uma certa distensão, Sto. <strong>Agostinho</strong> alude precisamente a estadimensão ameaçadora que o próprio t<strong>em</strong>po contém <strong>em</strong> si enquanto reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> 809 .Com efeito, o filósofo apela para o paradoxo e os limites de uma medição dot<strong>em</strong>po a partir <strong>da</strong> consciência que se t<strong>em</strong> <strong>da</strong> duração, esquadrinhando o absurdo <strong>da</strong>criação humana de formas rigorosas e varia<strong>da</strong>s de medição de uma reali<strong>da</strong>de que nãot<strong>em</strong> consistência ontológica. Com efeito, o t<strong>em</strong>po é dissecado <strong>em</strong> medi<strong>da</strong>s de duraçãode referente cosmológico, como são os meses, os dias, os anos, as horas. Ou, baseandosejá na estrutura <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana, ele é mensurado com base na distinção entresílabas longas ou breves. Porém, que sentido faz uma tal medição do t<strong>em</strong>po se, naver<strong>da</strong>de, o passado já não existe, o futuro ain<strong>da</strong> não é, e o presente sofre <strong>da</strong> vacui<strong>da</strong>de járeferi<strong>da</strong>? Na perspectiva do Hiponense, só uma medição do t<strong>em</strong>po a partir <strong>da</strong> dinâmicado cogito e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de que o caracteriza de estabelecer diálogo com a Eterni<strong>da</strong>de,pode resgatar o ser humano a esta distensão, fazendo-o viver naquele domínio deintencionali<strong>da</strong>de já descrito como movimento de aperfeiçoamento <strong>da</strong> forma humana,mormente <strong>em</strong> De trinitate, pela dinâmica <strong>da</strong> intentio/extensio.Na perspectiva augustiniana, a facul<strong>da</strong>de racional de medi<strong>da</strong> do t<strong>em</strong>po peloespírito revela-se, sobretudo, na percepção privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> palavra sujeita à escanção do808 Cf. Conf. XI, XXVIII, 38 ( CCL 27, p.214).809 Conf. XI, XXIII, 30: “ (...) Video igitur t<strong>em</strong>pus quan<strong>da</strong>m esse distentention<strong>em</strong>. Sed uideo? An uider<strong>em</strong>ihi uideor?” ( CCL 27, p. 209).549


itmo, pela comparação entre a duração <strong>da</strong>s sílabas, breves e longas. Uma vez mais, épor comparação, ou seja, a partir <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong> diferença, que Sto. <strong>Agostinho</strong>considera a constituição <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, neste caso, de uma medi<strong>da</strong> do t<strong>em</strong>po unificadora,que permita resgatar o espírito humano à dissolução no múltiplo e à dispersão nat<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de.O Hiponense reafirma, assim, tal como fizera <strong>em</strong> De ordine e como leva a efeito<strong>em</strong> De musica, a mediação <strong>da</strong> poesia como percurso privilegiado de ascese desde amultiplici<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> até à Uni<strong>da</strong>de divina 810 . Em Confessionum esta proprie<strong>da</strong>deunificadora é atribuí<strong>da</strong> ao próprio espírito humano que se aperceberá dela de modopeculiar prestando atenção à própria produção <strong>da</strong> palavra interior. Com efeito, se oespírito reflectir sobre a sua activi<strong>da</strong>de, é ele que torna possível a projecção ou extinçãodo futuro e o crescimento ou aquietação do passado. Para eluci<strong>da</strong>r este mesmomovimento, o verso ambrosiano assume peculiar densi<strong>da</strong>de simbólica, nesta análise <strong>da</strong>unificação <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de através <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> mente. Com efeito, fora esse verso,recitado por <strong>Agostinho</strong> após a morte de Mónica, que aquietara o seu espírito, fazendoque o filósofo experimentasse precisamente o movimento de transcendência do t<strong>em</strong>po esuperasse o peso <strong>da</strong> distentio, para de novo projectar a própria existência comointentio 811 . Assim, o espírito humano unifica o t<strong>em</strong>po e vence a sua dimensão detendência ao na<strong>da</strong> pela orientação <strong>da</strong>s três reali<strong>da</strong>des que <strong>em</strong> si mesmo encontra –intentio, contuitu, m<strong>em</strong>oria - e dos seus respectivos actos - expectatio, attentio <strong>em</strong><strong>em</strong>oria 812 -, as quais, mais do que na exclusiva função <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, converg<strong>em</strong> nessadimensão essencial do cogito humano que Sto. <strong>Agostinho</strong> congrega na expressãointentio animi. Nesta medição do t<strong>em</strong>po a partir do espírito persiste, com efeito, aattentio.810 Cf. DO II, XIV, 41 ( CCL 29, p. 129-130). De igual modo, os primeiros cinco Livros de De musicasão uma exercitatio animae que prepara o espírito para prestar atenção à peculiar relação entre uni<strong>da</strong>de <strong>em</strong>ultiplici<strong>da</strong>de que se dá na estrutura <strong>da</strong> percepção humana.811 Cf. Conf. IX, XII; X, XXXIV ( CCL 27, p .150-152; p. 182-184). Num espírito renovado, o versoserve agora para louvar o Criador: Cf. Conf XI, XXVII, 35 ( CCL 27, p. 212-213). O verso é ex<strong>em</strong>plo,mediante a escanção, para aceder ao cerne do espírito humano enquanto medi<strong>da</strong> do t<strong>em</strong>po e forçaunificadora que mede algo gravado na m<strong>em</strong>ória. Em última instância, a reali<strong>da</strong>de impressa na m<strong>em</strong>ória éa imago dei, que levará a mente humana a reconhecer a sua essência trinitária e a realizar-se comocaritas, mediante o processo de conuersio já referido.812 Cf. Conf. XI, XXVIII, 37 ( CCL 27, p. 214).550


Ora, qual o objecto privilegiado desta attentio, a fim de, mediante ela, se atingir oobjectivo proposto – amar Deus, unir-se a Ele pela cari<strong>da</strong>de? Inardesco meditari in legetua 813 : <strong>Agostinho</strong> propõe que a mente fixe a attentio na escuta <strong>da</strong> Palavra Eterna, oVerbo-Princípio, cujo lugar privilegiado de revelação é a Escritura. Neste desideratoaugustiniano pode encontrar-se a lógica intrínseca <strong>da</strong> reflexão sobre o t<strong>em</strong>po, de que oLivro XI de Confessionum é paradigma. <strong>Agostinho</strong> toma consciência, no contacto coma Escritura e após a sua conversão metafísica, de que há uma intrínseca relação entre ocogito humano, finito e imerso na t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, e a Eterni<strong>da</strong>de.Na ver<strong>da</strong>de, o espírito humano é capaz de intuir que o fun<strong>da</strong>mento de to<strong>da</strong> aVer<strong>da</strong>de e de to<strong>da</strong> a agnição se encontra para lá do t<strong>em</strong>po, numa Palavra Eterna derevelação que, para se tornar compreensível, não pode ser medita<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Outro não é o resultado <strong>da</strong>s in<strong>da</strong>gações do Hiponense acerca <strong>da</strong>Ver<strong>da</strong>de, quer entendi<strong>da</strong> com B<strong>em</strong> Comum, quer como Verbo Eterno, que actua comoPrincípio de to<strong>da</strong> a Criação e que exerce, no t<strong>em</strong>po, as funções de Mestre, agindo nointerior <strong>da</strong> mente humana com o fim de lhe desven<strong>da</strong>r, progressivamente, o sentido <strong>da</strong>sver<strong>da</strong>des conti<strong>da</strong>s nesse B<strong>em</strong> Comum.Sto. <strong>Agostinho</strong> t<strong>em</strong> plena consciência de que a linguag<strong>em</strong> humana é umamediação imperfeita, rechea<strong>da</strong> de artifícios e cuja orig<strong>em</strong> não pode ser discerni<strong>da</strong> a nãoser por ca<strong>da</strong> um, no seu íntimo, ou pelas obras produzi<strong>da</strong>s. Neste contexto se entend<strong>em</strong>as insistentes reflexões de Sto. <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, quer criticando osartifícios <strong>da</strong> retórica e as fabulações de algum tipo de poesia, quer in<strong>da</strong>gando sobre aorig<strong>em</strong> <strong>da</strong> palavra, quer apelando à pluriforme diversi<strong>da</strong>de de sentidos <strong>da</strong> própriaEscritura e à necessi<strong>da</strong>de de conhecer os instrumentos linguísticos mais adequados parainterpretar e comunicar as ver<strong>da</strong>des nela conti<strong>da</strong>.Neste sentido, o Livro undécimo de Confessionum desenvolve aquilo que sepoderia designar como uma fenomenologia <strong>da</strong> escuta e <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> palavradivina, precisamente mediante aquela activi<strong>da</strong>de do espírito que mais consistênciaconfere à dimensão do presente, a attentio, sendo esta aquela que, natridimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> duração, mais se aproxima <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong>de. Com efeito, a própriamultiplici<strong>da</strong>de de sentidos a que se abre a Escritura pode ser entendi<strong>da</strong> ou comodispersão e desagregação <strong>da</strong> mesma, ou como apelo e desafio a compreender os imensostesouros <strong>da</strong> ciência e sabedoria divinas. Naturalmente, será este última direcção que813 Cf. Conf. XI, II, 2 ( CCL 27, p. 194).551


<strong>Agostinho</strong> quererá percorrer 814 . Assim, aquilo que é objecto de reflexão para umacriatura sujeita ao t<strong>em</strong>po, mas que se sabe dirigi<strong>da</strong> para a Eterni<strong>da</strong>de, é a ord<strong>em</strong>admirável que reina <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a duração do cosmos e que afecta to<strong>da</strong> a criatura. Estaord<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>-se sobre a própria eterni<strong>da</strong>de divina, que a sustenta e impele <strong>em</strong> direcçãoao fim último. Todo este movimento do curso dos t<strong>em</strong>pos possui uma ord<strong>em</strong> intrínsecaque constitui a própria história. Porém, esta mesma ord<strong>em</strong> só se compreende mediante ameditação <strong>da</strong> palavra, in domicilio cogitationis, onde o Verbo Eterno e o espíritohumano se recolh<strong>em</strong> <strong>em</strong> diálogo.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, é <strong>em</strong> diálogo com o Princípio que o ser humano podecompreender a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação. Este diálogo é possível porque o próprio Princípiotomou a iniciativa <strong>da</strong> conversação, ao criar to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de no Verbo, conferindo-lhesentido e tornando possível a descodificação do real <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> e a transformaçãodesta última <strong>em</strong> sentido. Lugar privilegiado desta descodificação do sentido <strong>da</strong> Criaçãoé a Escritura. To<strong>da</strong>via, também ela é constituí<strong>da</strong> como linguag<strong>em</strong> sujeita ao t<strong>em</strong>po epadece, por isso, <strong>da</strong> imperfeição própria de uma tal mediação. Com efeito, a únicaPalavra que serve de Mediação perfeita é o Verbo Eterno. Daí o apelo de <strong>Agostinho</strong> àuni<strong>da</strong>de entre o espírito humano e o Verbo, uma vez que este Princípio está <strong>em</strong> plenacongruência com a natureza <strong>da</strong> mente. Para o Hiponense, esta uni<strong>da</strong>de é possívelmediante um processo de purificação de coração, de atenção e de escuta, subentendendos<strong>em</strong>pre a iniciativa do Verbo que ilumina todo o ser humano que v<strong>em</strong> a este mundo,como <strong>Agostinho</strong> lera, já no início <strong>da</strong> sua conversão, no Prólogo do Evangelho joanino.To<strong>da</strong>via, mesmo tendo <strong>em</strong> conta a infinita perfeição <strong>da</strong> Mediação do Verbo, eleactua sobre mentes sujeitas ao t<strong>em</strong>po. Deste facto resulta a diversi<strong>da</strong>de de sentidos que,na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que proce<strong>da</strong>m de uma uera ratio e respeit<strong>em</strong> a essência <strong>da</strong> mente humanaenquanto imago dei, subsist<strong>em</strong>, enriquec<strong>em</strong> o próprio Mundo e a história do génerohumano, completando-se, como a diversi<strong>da</strong>de na Uni<strong>da</strong>de.O acesso <strong>da</strong> mente humana à Mediação do Verbo está garantido, já se disse, pelofacto de to<strong>da</strong> a Criação, enquanto obra trinitária, ter sido feita no Verbo Eterno. Porém,no curso dos t<strong>em</strong>pos, e tal como se lê na própria Escritura, este mesmo Princípio faloucom os seres humanos, revestindo-se de humani<strong>da</strong>de, dialogando com eles no seupróprio idioma, <strong>em</strong>pregando uma linguag<strong>em</strong> verbal e gestual, sujeita ao próprio814 Cf. Conf. XI, II, 3 ( CCL 27, p. 194-195).552


t<strong>em</strong>po. A partir desse momento, o t<strong>em</strong>po histórico assume a sua plenitude, pois aMediação entre os seres humanos e o Absoluto divino torna-se maximamente acessível.Para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a relação entre o Uno e o múltiplo, entre a Eterni<strong>da</strong>de e ot<strong>em</strong>po t<strong>em</strong>, na Incarnação de Cristo, a sua realização plena. Nela estão cria<strong>da</strong>s ascondições de possibili<strong>da</strong>de para aceder ao próprio Princípio s<strong>em</strong> princípio de to<strong>da</strong>s ascoisas. Com efeito, é este o sentido <strong>da</strong> interpretação augustiniana de Jo. 8: 25.Interrogado acerca de si mesmo, Cristo responde ser o Princípio, porque fala com osseus interlocutores – principium, quia loquor uobis. Esta mesma era a linguag<strong>em</strong> doprimitus homo antes de ter feito uso <strong>da</strong> sua vontade num movimento de auersio a deo: odiálogo franco com o Princípio. E esta mesma situação, o colóquio aberto e cabal com oPrincípio, pode ser recupera<strong>da</strong> para o ser humano, a partir do momento <strong>em</strong> que o Verbose fez carne. Nesta conversação com o Princípio, o ser humano pode descortinar osentido <strong>da</strong> Criação, compreendendo o próprio sentido do t<strong>em</strong>po e a direcção intencionalde todo o agir histórico <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de como itinerário de construção <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Deus, aJerusalém Celeste, nome simbólico que significa a Paz de to<strong>da</strong>s as criaturas no repousoou eterni<strong>da</strong>de de Deus.Neste diálogo aberto com o Verbo Eterno, o ser humano compreende que aexistência do devir e do movimento; o facto de o Mundo ser constituído por el<strong>em</strong>entosque se suced<strong>em</strong> uns aos outros, numa concatenação ordena<strong>da</strong>, na qual a decadência deuns cede passo ao surgimento de outros; a presença de reali<strong>da</strong>des que são agora, masque antes não eram; todos esses fenómenos não têm <strong>em</strong> si o fun<strong>da</strong>mento do seu ser. Oser deles é um ser feito. Mais uma vez, <strong>Agostinho</strong> não acede à ver<strong>da</strong>de Deus creatoromnium por dedução ou mediante um exercício cerrado de dialéctica, mas pormostração e reflexão acerca <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> do Mundo, confrontando aquilo que observa comaquilo que vê no Verbo, mediante o exercício <strong>da</strong> uera ratio.No ensaio de compreender a palavra criadora, o próprio Verbo, como Princípioper qu<strong>em</strong> omnia facta sunt, Sto. <strong>Agostinho</strong> rapi<strong>da</strong>mente supera a interrogação -quomodo fecit Deus omnia? – pois para ela já t<strong>em</strong> resposta. Deus fez to<strong>da</strong>s as coisas noseu Verbo. Sendo assim, a in<strong>da</strong>gação transforma-se rapi<strong>da</strong>mente num quomododixisti 815 . Uni<strong>da</strong> a esta subtil inversão verbal, Sto. <strong>Agostinho</strong> opera uma inversãocultural. O fieri divino não será já compreensível a partir do modelo artesanal, no qual oartifex <strong>em</strong>prega uma matéria já <strong>da</strong><strong>da</strong>, acrescentando-lhe formas que, no caso <strong>da</strong>815 Cf. Conf. XI, V, 7-VI, 8 ( CCL 27, p. 197-198).553


proposta platónica, inclusivamente o transcend<strong>em</strong> e subsist<strong>em</strong> numa dimensãoontológica outra <strong>da</strong> sua própria existência. Este cosmos é essencialmente resultado deum know how por parte de uma reali<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>iurgica, eficaz engenheira do Mundo. É omodelo técnico, <strong>da</strong> produção de artefactos que preside a esta mundividência. E, se é umfacto que Sto. <strong>Agostinho</strong> não deixará de <strong>em</strong>pregar o termo artifex para se dirigir aoCriador, é uma outra estrutura metafísica que está subjacente a esse fieri. O agir divinocorresponde a uma dictio aeterna no Verbo Eterno, consubstancial ao Pai. Por isso, aargumentação de <strong>Agostinho</strong> acerca <strong>da</strong> Criação seguirá não o modelo do fabricarhumano, mas o <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana que, inscrita no t<strong>em</strong>po, deve transcender a suacircunstância t<strong>em</strong>poral, possuindo, para isso, o acesso à ver<strong>da</strong>deira Mediação do Verbo.Destarte, é uma análise <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> humana, do seu poder criador e <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<strong>da</strong> sua transmissão que se encontra no Livro undécimo de Confessionum, a fim decompreender o modo como se dá a Criação no Princípio 816 . De facto, a acção divinacriadora é revela<strong>da</strong> ao ser humano não apenas nas formas visíveis mas essencialmentesob forma de narração, no relato bíblico <strong>da</strong>s Origens. É aí e, posteriormente, no próprioEvangelho, na sexta I<strong>da</strong>de do mundo, que melhor se descortina o sentido desse fieridivino, pois é aí que há identi<strong>da</strong>de entre a expressão própria <strong>da</strong> forma do ser humano – alinguag<strong>em</strong> – e a expressão divina, Verbo por excelência.<strong>Agostinho</strong> constata que, na própria Escritura, há diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Palavrade Deus. Restringindo a sua análise a duas dessas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des, distingue entre asmanifestações <strong>da</strong> palavra divina mediante a acção de uma outra criatura - <strong>da</strong> qual éex<strong>em</strong>plo a voz do Pai escuta<strong>da</strong> no baptismo de Cristo e narra<strong>da</strong> v. gr., <strong>em</strong> Mt. 3: 16-17 -e a Palavra Criadora que actua s<strong>em</strong> mediação de qualquer criatura e à marg<strong>em</strong> de to<strong>da</strong> at<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de. Se no primeiro caso se exige a antecedente existência do t<strong>em</strong>po, paraque tal voz se produza, no segundo esta é totalmente anula<strong>da</strong>. Ora, é este o modelo dedicção divina – uma dictio in aeternum verbum suum, uma dictio uerbi aeterna – que dáInício à Criação 817 . A Criação t<strong>em</strong> de ser feita no Verbo Eterno de Deus, Sabedoria doPai. Se o t<strong>em</strong>po existisse antes <strong>da</strong> Criação e se a Palavra Criadora fosse proferi<strong>da</strong> nele,816 Cf. Conf. XI, VI, 8-IX, 11 ( CCL 27, p. 198- 200).817 É também esse o modelo de dicção que Sto. <strong>Agostinho</strong> propõe ao ser humano para que estecompreen<strong>da</strong> as reali<strong>da</strong>des divinas. O modelo <strong>da</strong> dictio uerbi, proposto <strong>em</strong> De trinitate como aquele querevela à mente uma imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de divina, decorre, precisamente, desta compreensão, por parte de<strong>Agostinho</strong>, <strong>da</strong> Linguag<strong>em</strong> Eterna de Deus, sumamente Ver<strong>da</strong>deira, que se dá na dinâmica intra-trinitária<strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> divina, cuja essência é dilectio.554


tal palavra seria susceptível de escanção métrica, facto que <strong>da</strong>ria conta <strong>da</strong> relativi<strong>da</strong>de<strong>da</strong> sua consistência ontológica. Ora, tal palavra poderia ser interrompi<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po,como necessariamente se interrompe o discurso humano que pode ser avaliado segundoa duração. Se tal viesse a acontecer, se inopina<strong>da</strong>mente se interrompesse o VerboDivino que Diz Eterna e Imutavelmente a Criação - tal como Imutavelmente o Verbo deDeus se diz a si mesmo, porque eternamente é gerado pelo Pai -, to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>submergiria no na<strong>da</strong>. Por isso, o único fun<strong>da</strong>mento ontológico do devir é a aeternaratio, na qual a própria sucessão t<strong>em</strong>poral alcança inteligibili<strong>da</strong>de, pois nela écodifica<strong>da</strong>, ordena<strong>da</strong> de acordo com a Sabedoria Eterna, na qual se contém a lei dosurgimento e <strong>da</strong> extinção <strong>da</strong>s formas 818 . Com este modo de entender o fieri divinorelaciona-se a concepção augustiniana de uma Criação simultânea – na qual to<strong>da</strong>s ascoisas são ditas eternamente no Verbo – e a ideia de uma Criação sucessiva, quecorresponde ao processo <strong>da</strong> sua expansão e desenvolvimento t<strong>em</strong>poral, como expressão<strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de eterna, no t<strong>em</strong>po, dessa Palavra do Verbo que tudo sustenta no ser.É nesta dicção contínua do Verbo no t<strong>em</strong>po que se fun<strong>da</strong>menta a noçãoaugustiniana de providência ou governo divinos, a qual, sendo uma manifestação deord<strong>em</strong>, não esgota n<strong>em</strong> explicita a acepção forte desta categoria ontológica, na obra doHiponense. De facto, <strong>em</strong> Confessionum Sto. <strong>Agostinho</strong> não consegue contornar umaaporia intrínseca ao facto de declarar o t<strong>em</strong>po como quan<strong>da</strong>m distention<strong>em</strong>, sendo eleuma reali<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> e, portanto, dota<strong>da</strong> de uma forma específica, e não apenas umatendência ao ser, como afirmará acerca <strong>da</strong> matéria prima. O t<strong>em</strong>po surge, <strong>em</strong>Confessionum, desde o ponto de vista cosmológico, como uma tendência ao na<strong>da</strong>.Ora, como justificar que Deus tenha criado uma reali<strong>da</strong>de tão imperfeita? Defacto, se a matéria informe, também cria<strong>da</strong>, é condição de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s formas, o t<strong>em</strong>po parece ser o el<strong>em</strong>ento contrário, tendendo a aniquilar as formas noseu ser específico, precisamente mediante a duração. A dificul<strong>da</strong>de é complexa e,818 Cf. Conf. XI, VIII, 10 ( CCL 27, p. 199). A este propósito, Solignac nota que não se deverá entenderesta acção divina como uma continuação <strong>da</strong> Criação, pois <strong>da</strong><strong>da</strong> a dicção eterna de to<strong>da</strong> a criação no Verbonão haverá criação de novos géneros, mas antes como uma acção de governação e desenvolvimento dosgéneros criados, mediantes as leis próprias conti<strong>da</strong>s nas suas razões causais ou s<strong>em</strong>inais: “ (...) Augustininsiste avant tout sur la continuation de l’action divine et, corrélativ<strong>em</strong>ent, sur la dépendence radicale dela créature. Dieu et la causa subsistendi de toute créature qui trouve en lui seul la vie, son mouv<strong>em</strong>ent etson être (De gen. ad. litt. IV, XII, 22 ; cf. Act. 17 : 28)” [A. SOLIGNAC, « le repos de Dieu au septièmejour », in Bibliothèque augustinienne. Œuvres de saint Augustin 48 , p. 642].555


inclusivamente, faz surgir no horizonte o espectro maniqueísta: uma cosmologiamarca<strong>da</strong> pelo ritmo dual matéria/ t<strong>em</strong>po 819 . Esta aporia será uma <strong>da</strong>s razões pelas quaisSto. <strong>Agostinho</strong> compreende que o t<strong>em</strong>po não pode ser entendido no plano cosmológico,mas sim como reali<strong>da</strong>de metafísica inerente ao cogito humano e <strong>da</strong> qual ele só émedi<strong>da</strong>, pois nele, de modo privilegiado, mediante a iluminação que conduz ao diálogo,se manifesta o Verbo Eterno de Deus. Por conseguinte, é no domínio de um cogito deestrutura trinitária, capaz de dialogar com a Trin<strong>da</strong>de divina, que se pode entender arelação entre t<strong>em</strong>po e Eterni<strong>da</strong>de, sendo um facto que a consideração isola<strong>da</strong> do t<strong>em</strong>ponão faz sentido, para <strong>Agostinho</strong>. Enquanto criatura, ele deve ser entendido na relaçãoôntica com o Criador e só ao ser humano, <strong>em</strong> comunhão com o Verbo, é <strong>da</strong>dodescortinar o sentido desta enigmática relação.Com efeito, como <strong>Agostinho</strong> não cessa de proclamar, a Criação é obra <strong>da</strong>Trin<strong>da</strong>de e, se nela se espelha a Mediação do Verbo, ela tende à uni<strong>da</strong>de do Espírito, ouseja, ao repouso de to<strong>da</strong>s as criaturas <strong>em</strong> Deus, pela realização <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de própria deca<strong>da</strong> uma e <strong>da</strong>quela que corresponde à uni<strong>da</strong>de do Universo. Não obstante estaconcepção augustiniana do repouso <strong>em</strong> Deus como fun<strong>da</strong>mento último <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>dede to<strong>da</strong>s as criaturas retomar a ideia neoplatónica do retorno ao Uno de todos os seresque dele proced<strong>em</strong>, a diferença entre ambas as propostas é abissal. Se o neoplatonismopropunha uma fusão de tudo na Uniformi<strong>da</strong>de do Uno, na indiferenciação <strong>em</strong> que elepróprio consiste, a proposta augustiniana significa a subsistência de ca<strong>da</strong> forma na suaespecifici<strong>da</strong>de e na máxima perfeição do seu ser 820 . Trata-se de uma Uni<strong>da</strong>de no819 Em De gen. ad litt. V, 5, Sto. <strong>Agostinho</strong> aprofun<strong>da</strong> a questão e relaciona a criação do t<strong>em</strong>po com acriação simultânea, na qual se incluiria o programa para o funcionamento do próprio cosmos, na sucessãot<strong>em</strong>poral. Deus teria criado to<strong>da</strong>s as coisas de uma só vez – omnia simul – conferindo-lhes tambémord<strong>em</strong>, a qual significa aqui não a sucessão dos intervalos de t<strong>em</strong>po, mas o conjunto <strong>da</strong>s conexõescausais: “ (...) quapropter cum primam condition<strong>em</strong> creaturarum cogitamus, a quibus operibus suis deusin die septimo requieuit, nec illos dies sicut istos solares nec ipsam operation<strong>em</strong> ita cogitare deb<strong>em</strong>us,qu<strong>em</strong>admodum nunc aliquid deus operatur in t<strong>em</strong>pore, sed qu<strong>em</strong>admodum operatus est, unde inciperentt<strong>em</strong>pora, qu<strong>em</strong>admodum operatus est omnia simul, praestans eis etiam ordin<strong>em</strong> non interuallis t<strong>em</strong>porum,sed conexione causarum, ut ea, quae simul facta sunt, senario quoque illius diei numero praesentatoperficerentur.” ( CSEL 28/1, p. 145-146).820 Em De gen. ad litt. IV, XVIII ( CSEL 28/1, p. 117), Sto. <strong>Agostinho</strong> assim o afirma: é a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>própria criação - ipsa uniuersitas creatura – que será reconduzi<strong>da</strong> por Deus, mediante o governo eprovidência, ao repouso do sabath eterno. To<strong>da</strong>via, não deixa de ser uma questão de difícil solução omodo como se poderá entender esta passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de contingente, material e espiritual, para a556


Espírito mediante a cari<strong>da</strong>de, e não numa fusão ou confusão <strong>da</strong> diferença ontológica noprincípio indiferenciado. Com efeito, o próprio Princípio é já, na metafísicaaugustiniana, Diferença e <strong>Ord<strong>em</strong></strong>, o fieri <strong>da</strong> Criação é acção dessa dinâmica de vi<strong>da</strong>onde Identi<strong>da</strong>de e Diferença, na relação de Amor <strong>em</strong> que consiste a Essência divina, sãoum só Deus. Esta uni<strong>da</strong>de no Espírito que é Deus e na essência Dele, que é Cari<strong>da</strong>de, é,afinal, o finis optimus de to<strong>da</strong> a Criação, tal como é ela o motor dessa Dicção Eterna doVerbo, pela qual to<strong>da</strong>s as coisas foram feitas. Por isso, são to<strong>da</strong>s as criaturas, e nãoapenas o ser humano, que caminham para a uni<strong>da</strong>de no Espírito, mediante a cari<strong>da</strong>de,não obstante Sto. <strong>Agostinho</strong> não ter esclarecido de que modo se <strong>da</strong>rá esta presençaescatológica de to<strong>da</strong>s as criaturas na Paz <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de Deus.O filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> esclarecer-se-á, portanto, à luz <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong>natureza do Ver<strong>da</strong>deiro Mediador e do modo como, na história, se constrói e se caminhapara essa Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s no repouso divino, ou na Paz, <strong>em</strong>que consiste a própria essência divina.estabili<strong>da</strong>de derradeira, intimamente conecta<strong>da</strong> com a eterni<strong>da</strong>de ou repouso divinos. Sobre este aspectov. também, De ciu. dei XX, XVI ( CCL 48, p. 726-727).557


CONCLUSÃOMEDIATORO modo como se articulou o filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> na obra augustiniana conduziua um paroxismo. Se é ver<strong>da</strong>de que Deus está perto dos humanos, Ele permaneceInefável. Se é ver<strong>da</strong>de que Ele é, para o ser humano, Luz e princípio de iluminação,também é um facto que o Absoluto permanece numa Luz Inacessível. Se é ver<strong>da</strong>de queEle cria os seres destinando-os a um aperfeiçoamento <strong>da</strong> própria forma e inscrevendo,neles, um apelo à união com o <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o, também é um facto que o sofrimento e amorte são companheiros de itinerário e que n<strong>em</strong> o mais sábio dos homens se podeesquivar a estes domínios de existência.A questão derradeira imbrica<strong>da</strong> no filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> pode, então, congregar-seneste conjunto de interrogações: de que modo se realiza a mediação entre o Uno e oMúltiplo, de forma a que, permanecendo a diferença, se possa falar de uma ver<strong>da</strong>deiraunião? De que forma a acção universal do Verbo que ilumina to<strong>da</strong>s as inteligênciasgarante essa uni<strong>da</strong>de na diversi<strong>da</strong>de? Por último, o Absoluto está nos assuntos humanos,também no sofrimento e na morte, expressões aparent<strong>em</strong>ente irracionais, porquecontrárias à ord<strong>em</strong>? Ou aquela reali<strong>da</strong>de superna alheia-se destas reali<strong>da</strong>des humanas?A derradeira resposta de <strong>Agostinho</strong> a estas in<strong>da</strong>gações encontra-se no modo comoconcebe a natureza <strong>da</strong> Mediação e a função do Mediador.Como se viu, a formulação augustiniana do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> v<strong>em</strong> ao encontro<strong>da</strong> questão essencial de to<strong>da</strong> a metafísica, a saber, o ensaio de compreensão sobre omodo como se relacionam o Uno e o Múltiplo. O Mundo Antigo encontrara soluçõesdíspares para esta enigmática reali<strong>da</strong>de e Sto. <strong>Agostinho</strong> dialogou com elas. O filósofoestá convicto de que, no modo de equacionar o probl<strong>em</strong>a, estão envolvidos não apenas oesclarecimento lógico ou conceptual do filosof<strong>em</strong>a, mas a própria vivência <strong>da</strong> formahumana, na dimensão mais radical que a constitui – enquanto relação ou religio 821 .821 A definição <strong>da</strong><strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> <strong>em</strong> VR LV, 111 ( CCL 32, p. 258-259), é ratifica<strong>da</strong> <strong>em</strong> Retract. I,XIII, 9, como aquela que mais agra<strong>da</strong> ao filósofo: “ It<strong>em</strong> alio loco Ad unum deum tendentes, inquam, et eiuni religantes animas nostras, unde religio dicta creditur, omni superstitione careamus. In his uerbismeis ratio quae reddita est, unde sit dicta religio, plus mihi placuit.” ( CCL 57, p. 40-41). A noção de558


É precisamente à luz deste princípio de máxima radicali<strong>da</strong>de que Sto. <strong>Agostinho</strong>se aplica a elaborar uma crítica profun<strong>da</strong> à religião romana, aplicando-se a elaespecialmente <strong>em</strong> De ciuitate dei. Neste labor mais destrutivo do que apologético, é umnovo conceito de ciuitas que o Hiponense quer evidenciar, mostrando, a um t<strong>em</strong>po, queele s<strong>em</strong>pre esteve presente na história <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, e que o Império, cujo coração é aVrbs Romae, não obstante o seu esplendor e a função que teve no desenvolvimentocivilizacional e, até, na expansão do próprio cristianismo, t<strong>em</strong> uma orig<strong>em</strong> perversa,necessita<strong>da</strong>, também ela, de um movimento de conuersio ad deum 822 .Só assim Roma ou qualquer civilização pode ser, no t<strong>em</strong>po, uma manifestação <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de Divina, espelhando a ord<strong>em</strong> e prestando o seu efectivo contributo à realização<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Eterna.A ideia de uma mediação entre o Uno e o Múltiplo opera<strong>da</strong> através deintermediários é, ao t<strong>em</strong>po de <strong>Agostinho</strong>, um lugar comum, quer do ponto de vistateórico, quer no âmbito <strong>da</strong>s práticas cultuais ou telúricas, de recurso abun<strong>da</strong>nte naprópria Urbe, não obstante ser um facto que Sto. <strong>Agostinho</strong> se atém a uma crítica dopassado. Mais do que a reali<strong>da</strong>de presente, o filósofo in<strong>da</strong>ga acerca <strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>ções <strong>da</strong>Ci<strong>da</strong>de.Na reali<strong>da</strong>de, a concepção platónica segundo a qual a procura <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de não sefaz s<strong>em</strong> a intervenção e o auxílio de intermediários, seres de natureza versátil, cujasubstância se constitui numa mistura de mortali<strong>da</strong>de e imortali<strong>da</strong>de, de corporei<strong>da</strong>de ereligio que mais lhe apraz evidencia a relação entre a Dei<strong>da</strong>de e o ser humano, mas considera<strong>da</strong> sobforma de tensão do espírito, realiza<strong>da</strong> como tal e esquivando to<strong>da</strong> a vã superstição. Sto. <strong>Agostinho</strong>conhece outras interpretações para o termo, entendendo o verbo religare como um composto de legere /eligere: “ (...) Quod uerbum compositum est a legendo, id est eligendo, ut ira latinum uideatur ‘religio’sicut eligo” ( Ibid.: CCL 57, p. 41). Esta é a acepção de Cícero que, <strong>em</strong> De nat. deor. II, 28, 72 ( p. 77-78), propõe para o termo, como reconsideração perpétua do espírito sobre as reali<strong>da</strong>des supernas.<strong>Agostinho</strong> retoma esta definição <strong>em</strong> De ciu. dei X, III, fazendo entrar <strong>em</strong> simbiose ambos os sentidos: “(...) Hunc [ deum] eligentes uel potius religentes (...) unde et religio dicta prohibetur, ad eum dilectionetendimus (...).” (CCL 47, p. 275).822 O parágrafo 9 do <strong>Ser</strong>mo LXXXI é <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático, para a compreensão <strong>da</strong> análise que <strong>Agostinho</strong> faz <strong>da</strong>que<strong>da</strong> de Roma. Não é a Ci<strong>da</strong>de, mas o seu fun<strong>da</strong>mento que está <strong>em</strong> ruína. É este que deve ser ponderado.A própria que<strong>da</strong> de Roma deve ser enquaciona<strong>da</strong> com o alicerce de todos os acontecimentos intrahistóricos:a uoluntas dei, que tudo sustenta e governa: “ (...) Ecce, inquit, christianis t<strong>em</strong>poribus Romaperit. (...) Cadit? Non Romae, sed forte artifici eius. Conditori eius faciamus iniuriam, quia dicimus,Roma ruit, quam condidit Romulus? Mundus arsurus est, qu<strong>em</strong> condidit Deus. Sed nec quod fecit homo,ruit, nisi quando uoluerit Deus, nec quod fecit Deus, ruit, nisi quando uoluerit Deus.” ( PL 38, 505).559


espirituali<strong>da</strong>de, de pondus terrestre e leuitas celeste, encontra-se <strong>em</strong> Apúleo, nadescrição que faz destes mediadores, <strong>em</strong> De deo socratis 823 . Estas reali<strong>da</strong>desintermediárias (mediae) são naturezas commixtae 824 . A partir do conhecimento que t<strong>em</strong><strong>da</strong> d<strong>em</strong>onologia clássica, Sto. <strong>Agostinho</strong> insiste na limitação desta enti<strong>da</strong>des paralevar<strong>em</strong> a efeito a função que lhes é incumbi<strong>da</strong>: estabelecer a relação entre o divino e ohumano, o infinito e o finito, entre a Uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Forma Supr<strong>em</strong>a e a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sformas humanas, sujeitas ao t<strong>em</strong>po e às contingências <strong>da</strong> história 825 . É assim que oHiponense apresenta aquela proposta, que se fun<strong>da</strong>menta numa disposição triparti<strong>da</strong> dosseres dotados de vi<strong>da</strong> racional. Assim, os deuses têm a sua sede nos céus, os <strong>da</strong><strong>em</strong>onesocupam os aeres, como lugar intermédio entre o céu e a terra e, por último, os homens,seres inferiores, habitam a terra. A esta disposição geográfica corresponde umadegra<strong>da</strong>ção ontológica, na qual os deuses são seres supr<strong>em</strong>os, os <strong>da</strong><strong>em</strong>ones, reali<strong>da</strong>desmédias, e os humanos, naturezas ínfimas 826 .823 Cf. APVLEIVS MADAVRENSIS, De deo socratis IX in Opera Omnia II, ed. G. F. HILDEBRAND(Darmstad 1968), p. 135.824 Ibid., XIII: “ (...) Sunt enim inter nos et deos ut loco regionis ita ingenio mentis intersiti, habentes cumsuperis commun<strong>em</strong> immortalitat<strong>em</strong>, cum inferis passion<strong>em</strong>. Nam proinde ut nos, pati possunt omniaanimorum placamenta vel incitamenta, et ira incitantur et misericordia flectuntur ut donis invitantur etprecibus leniuntur et contumelis exasperantur et honoribus mulcentur aliisque omnibus ad simil<strong>em</strong> nobismodum variantur: quippe, ut in fine comprehen<strong>da</strong>m, <strong>da</strong><strong>em</strong>ones sunt genere animalia, ingenio rationabilia,animo passiva, corpore aëria, t<strong>em</strong>pore aeterna.” ( p. 141-142).825 De ciu. dei VIII, XIV : “ Haec si ita sunt (quae licet apud alios quoque reperiantur, Apuleius tamenPlatonicus Ma<strong>da</strong>urensis de hac re sola unum scripsit librum, cuius esse titulum uoluit "de deo Socratis",ubi disserit et exponit, ex quo genere numinum Socrates habebat adiunctum et amicitia qua<strong>da</strong>mconciliatum, a quo perhibetur solitus admoneri, ut desisteret ab agendo, quando id quod agere uolebat,non prospere fuerat euenturum; dicit enim apertissime et copiosissime asserit non illum deum fuisse, sed<strong>da</strong><strong>em</strong>on<strong>em</strong>, diligenti disputatione pertractans istam platonis de deorum sublimitate et hominum humilitateet <strong>da</strong><strong>em</strong>onum medietate sententiam) - haec ergo si ita sunt, quonam modo ausus est Plato, etiamsi nondiis, quos ab omni humana contagione s<strong>em</strong>ouit, certe ipsis <strong>da</strong><strong>em</strong>onibus poetas urbe pellendo auferretheatricas uoluptates, nisi quia hoc pacto admonuit animum humanum, quamuis adhuc in his moribundism<strong>em</strong>bris positum, pro splendore honestatis impura <strong>da</strong><strong>em</strong>onum iussa cont<strong>em</strong>nere eorumque inmunditiamdetestari? ” ( CCL 47, p. 231).826 De ciu. dei VIII, XIV : “ (...) Sicut eis diuersa dignitas est locorum, ita etiam naturarum. Proinde diisunt hominibus <strong>da</strong><strong>em</strong>onibusque potiores; homines uero infra deos et <strong>da</strong><strong>em</strong>ones constituti sunt, utel<strong>em</strong>entorum ordine, sic differentia meritorum. Da<strong>em</strong>ones igitur medii, qu<strong>em</strong> ad modum diis, quibusinferius habitant, postponendi, ita hominibus, quibus superius, praeferendi sunt.” ( CCL 47, p. 230). Jáaqui se evidencia a diferença radical de mundividências, pois para o Hiponense é o ser humano que ocupa560


Os <strong>da</strong><strong>em</strong>ones têm <strong>em</strong> comum com os deuses a imortali<strong>da</strong>de do corpo. Com oshumanos, eles partilham as paixões do espírito. Sto. <strong>Agostinho</strong> lança-se à tarefa d<strong>em</strong>ostrar até que ponto esta mediação contraria a hierarquia ontológica e quais asconsequências, individuais e comunitárias, de assumir uma tal proposta. É esta a raiz <strong>da</strong>crítica augustiniana aos deuses pagãos: mostrar o limite e a falsi<strong>da</strong>de de uma talmediação, máxime no equacionamento do filosof<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>. Assim, é a partir <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de histórica do saque de Roma, e <strong>da</strong>s suas consequências, de sofrimento e d<strong>em</strong>orte, na vi<strong>da</strong> dos ci<strong>da</strong>dãos e <strong>da</strong> população <strong>em</strong> geral, que Sto. <strong>Agostinho</strong> assume aquelatarefa. Por conseguinte, a proposta augustiniana de um Mediador esclarece,fun<strong>da</strong>mentalmente, o sentido radical que o Hiponense confere à religio, evidenciando oseu alcance ontológico, domínio no qual entre esta noção e a ideia de Ordo o filósofoestabelece sinonímia. A par deste esclarecimento, manifesta-se o sentido augustiniano<strong>da</strong> ciuitas, na sua dimensão plena e escatológica, já germina<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po, mas sótotalmente realiza<strong>da</strong> na Eterni<strong>da</strong>de.Com base na hierarquia ontológica que serve de coluna vertebral a to<strong>da</strong> a suamundividência – esse, uiuere, intellegere –, <strong>Agostinho</strong> mostra o absurdo do pensamentoantigo sobre a superiori<strong>da</strong>de dos <strong>da</strong><strong>em</strong>ones <strong>em</strong> face dos humanos. Antes de mais, elabaseia-se <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos materiais, aqueles que ocupam o grau esse, na disposição dosseres. É por possuír<strong>em</strong> um corpo imortal e por ocupar<strong>em</strong> um lugar geográfico acima dotopos destinado ao ser humano que tais naturezas são considera<strong>da</strong>s superiores à humana.Este raciocínio perverte a reali<strong>da</strong>de, pois não é <strong>em</strong> função do grau esse, n<strong>em</strong> mesmo dograu uiuere – de facto, ambos se integram, também na forma do ser humano - que sedefine o lugar deste na ord<strong>em</strong>, mas <strong>em</strong> função <strong>da</strong> presença, nele, <strong>da</strong> mens rationalis 827 .Inversamente, o que une os <strong>da</strong><strong>em</strong>ones aos seres humanos é o facto de participar<strong>em</strong> <strong>da</strong>smesmas afecções do espírito, pudendo irritar-se com as ofensas que lhes são feitas oualegrar-se com as dádivas. Estranhas enti<strong>da</strong>des, aproximam-se dos humanos no queestes têm de mais inconstante e variável: os humores do espírito. <strong>Agostinho</strong> conclui que,atendendo à mediação, tais enti<strong>da</strong>des contrariam a ordo rerum. Na ver<strong>da</strong>de, elaslevariam a deus aquilo que o ser humano t<strong>em</strong> de inferior – o corpo – e aproximar-se-iamlugar intermédio entre as criaturas dota<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong> racional e a Dei<strong>da</strong>de. As criaturas angélicas nãopossu<strong>em</strong> a mesma estrutura ontológica <strong>da</strong>quelas que se sujeitam ao movimento e à corrupção, e por issorelacionam-se de modo peculiar com o Absoluto e com o Universo. Não há, entre estas e os <strong>da</strong><strong>em</strong>ones <strong>da</strong>Antigui<strong>da</strong>de, qualquer s<strong>em</strong>elhança.827 Cf. De ciu. dei VIII, XV ( CCL 47, p. 232).561


dos homens naquilo que estes têm de comum com os animais – as paixões ouperturbações do espírito.O Hiponense recusa-se a aceitar que estas enti<strong>da</strong>des possam religar o humano e odivino. Analisando, nos primeiros dez Livros de De ciuitate dei, as dei<strong>da</strong>des pagãs <strong>da</strong>Roma antiga, tendo por horizonte, entre outros, o escrito de Varrão Antiquitatum rerumhumanarum et diuinarum libri XLI 828 , o filósofo evidencia que uma estruturacomunitária basea<strong>da</strong> <strong>em</strong> tais enti<strong>da</strong>des estabelece uma relação degra<strong>da</strong><strong>da</strong> e degra<strong>da</strong>nteentre o <strong>Ser</strong> divino e o ser humano, inviabilizando quer a transcendência do humano parao divino, quer a percepção de uma efectiva intervenção do divino no âmago do humano.Decidi<strong>da</strong>mente, estes mediadores são d<strong>em</strong>asiado humanos para servir<strong>em</strong> de escala parao divino 829 . Não serv<strong>em</strong> o exercício <strong>da</strong> uera religio, antes o inviabilizam 830 .In<strong>da</strong>gando qual o princípio que legitima a existência destas reali<strong>da</strong>des mediadoras,<strong>Agostinho</strong> encontra a resposta dos platónicos: nullus deus miscetur hominum 831 . Essefacto obriga a que to<strong>da</strong> a relação entre o humano e o divino seja media<strong>da</strong>. Ela é,portanto, efectivamente impossível e inviável, s<strong>em</strong>pre necessita<strong>da</strong> destes bizarros<strong>em</strong>baixadores, facto que se justifica quer <strong>em</strong> função <strong>da</strong> debili<strong>da</strong>de humana, quer <strong>em</strong>função <strong>da</strong>quilo que se poderia designar por excelência divina. Quanto a esta última, Sto.<strong>Agostinho</strong> desmascara tal pretensa sublimi<strong>da</strong>de que, pelo abismo traçado entre o divinoe o humano, acaba por atribuir ao divino a ignorância <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de. De facto, nadescrição de Apúleo e segundo a tradição platónica, para que os deuses tivess<strong>em</strong>conhecimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des humanas, necessitariam de receber informaçãodos <strong>da</strong><strong>em</strong>ones. Tais deuses não apenas estão longe dos assuntos humanos como sãoain<strong>da</strong> ignorantes e incapazes de uma efectiva prouidentia sobre o Universo 832 .828 Cf. S. ANGUS, The sources of the First Ten Books of Augustine’s De ciuitate dei ( Princeton 1906).Gerard J.P. O’DALY, “Ciuitate dei ( De-)”, in Augustinus Lexikon I, p. 998-1003.B. CARDANUNS, M. Terentio Varro. “Antiquitates rerum diuinarum” ( Wiesbanden 1976).829 Cf. De ciu. dei VIII, XVI-XVII ( CCL 47, p. 233-234).830 Cf. De ciu. dei VIII, XVII ( CCL 47, p. 234-235).831 Cf. De ciu. dei VIII, XVIII; VIII, XX; IX, XVI ( CCL 47, p. 235-237; p. 237; p. 263).832 De ciu. dei, VIII, XXI : “ (...) O mirabil<strong>em</strong> sapientiam! Quid aliud de diis isti sentiunt, quos omnesoptimos uolunt, nisi eos et humana curare, ne cultu uideantur indigni, et propter el<strong>em</strong>entorum distantiamhumana nescire, ut cre<strong>da</strong>ntur <strong>da</strong><strong>em</strong>ones necessarii et ob hoc etiam ipsi putentur colendi, per quos diipossint et quid in rebus humanis agatur addiscere et ubi oportet hominibus subuenire?” ( CCL 47, p. 237).Sobre a interpretação augustiniana <strong>da</strong> d<strong>em</strong>onologia de Apúleo, v. G. RÉMY, Le Christ médiateur <strong>da</strong>nsl’oeuvre de saint Augustin ( Université de Lille III, 1979), p. 253-265.562


Em derradeira análise, os deuses do paganismo não são apenas projecções doespírito humano. No acto de criação dessas mesmas divin<strong>da</strong>des, é o próprio espíritohumano que se erige <strong>em</strong> divin<strong>da</strong>de, tenha ou não consciência desse facto. Dito de outromodo, na perspectiva augustiniana os deuses pagãos são criados à imag<strong>em</strong> do serhumano e pela potência do espírito humano, que se considera, neste processo, comoinstância supr<strong>em</strong>a. Inversamente, o Deus do cristianismo, nomea<strong>da</strong>mente o Mediadorque é o próprio Cristo, é uma criatura peculiaríssima e irrepetível, cuja existênciahistórica é irrefragável e inconcussa. E a orig<strong>em</strong> desta criatura singular não é o espíritohumano, n<strong>em</strong> uma evolução peculiar do mesmo, que teria criado um heróifantasmagórico, espécie de super-hom<strong>em</strong>, mas é o próprio Deus que, podendo fazer-sehom<strong>em</strong> e querendo assumir a humani<strong>da</strong>de, realiza, efectivamente, esta vontade.Neste subtil el<strong>em</strong>ento diferenciador – Deus que se faz hom<strong>em</strong>, ou o hom<strong>em</strong> quefaz os seus deuses 833 – passa, para Sto. <strong>Agostinho</strong>, a possibili<strong>da</strong>de, ou não, de o serhumano realizar, efectivamente, a sua forma, através <strong>da</strong> assunção <strong>da</strong> relação com odivino. Sendo esta a dimensão ontológica mais radical do ser humano, na atitude que ainteligência humana assuma para com o Mediador decide-se a vivência <strong>da</strong> uera religioou a rejeição dessa possibili<strong>da</strong>de radical do ser.No confronto com uma tal concepção de Mediador, torna-se mais clara a totaldivergência <strong>da</strong> proposta augustiniana <strong>em</strong> face <strong>da</strong>s concepções do Mundo Antigo. Noteseque está <strong>em</strong> questão a natureza do Mediador enquanto aquele que é capaz de vir aoencontro <strong>da</strong> condição trágica do ser humano, que experimenta uma existência vota<strong>da</strong> aosofrimento, sendo esta reali<strong>da</strong>de considera<strong>da</strong> mais do que como factor natural de umanatureza que se degra<strong>da</strong>, o efeito <strong>da</strong> violência que o s<strong>em</strong>elhante é capaz de exercer sobreo s<strong>em</strong>elhante, a qual pode ir até à usurpação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> alheia. Na reali<strong>da</strong>de, é todo umconjunto de consequências nefastas, resultantes <strong>da</strong>s designa<strong>da</strong>s invasões bárbaras, que oHiponense descreve no Livro I de De ciuitate dei, mostrando, a um t<strong>em</strong>po, que aproposta cristã de libertação não fixa a realização humana <strong>em</strong> nenhum b<strong>em</strong> perecedouro– riquezas materiais, integri<strong>da</strong>de corporal, b<strong>em</strong>-estar físico ou fisiológico, liber<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>ovimentos ou, sequer, a própria vi<strong>da</strong> –, e que os deuses pagãos não são capazes delibertar os seus adoradores dos padecimentos que estes suportam. Entendi<strong>da</strong> deste833 Um bom resumo desta diferença essencial entre as mediações do paganismo e o Mediador, propostopelo cristianismo, pode ler-se <strong>em</strong> <strong>Ser</strong>mo CXCII, I, 1: “ (...) Deos facturus qui homines erant, homo factusest qui deus erat: nec amittens quod erat, fieri uoluit ipse quod fecerat.ipse fecit quod esset, quia homin<strong>em</strong>deo addidit, non deum in homine perdidit” ( PL 38, 1012).563


modo, é a função libertadora e salvífica do Mediador – vindo ao encontro, não apenas<strong>da</strong> contingência humana mas <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong>de e debili<strong>da</strong>de dela –, que é coloca<strong>da</strong> àconsideração <strong>da</strong>queles a qu<strong>em</strong> o filósofo se dirige 834 .Por isso, também <strong>em</strong> De ciuitate dei a reflexão sobre o Mediador <strong>em</strong>erge pelanecessi<strong>da</strong>de de permitir ao ser humano a superação <strong>da</strong> morte, essa reali<strong>da</strong>de que lheimpede realizar o seu fim natural, ou seja, a beata uita. El<strong>em</strong>ento alheio a uma vi<strong>da</strong>racional, a extinção do ser opõe-se, como reali<strong>da</strong>de irrefragável, ao conhecimento que,num movimento de auto-gnose, o ser humano possui de si mesmo como tendendo àfelici<strong>da</strong>de. Ao longo <strong>da</strong> sua obra, <strong>Agostinho</strong> considera que a posse <strong>da</strong> b<strong>em</strong>-aventurança,enquanto desejo de eterni<strong>da</strong>de, é incompatível com o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, com um términoderradeiro <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> forma do ser humano, quer enquanto dota<strong>da</strong> de almaracional, quer enquanto uni<strong>da</strong>de de corpo e alma. Este facto implicaria uma enormedesord<strong>em</strong>, absolutamente inconciliável com a tendência a ser que o Criador imprimenas formas cria<strong>da</strong>s. Abissalmente desordenado seria o movimento que reduzisse àexistência exânime a forma que é, vive e entende, a vi<strong>da</strong> racional humana, que ocupaexcelência entre as criaturas, colocando-a no primeiro degrau na hierarquia ontológica.Tal metamorfose é irracional, na perspectiva augustiniana.Assim, é um facto que a mediação é necessária, antes de mais para permitircontornar esta dificul<strong>da</strong>de: a morte do ser humano, essa reali<strong>da</strong>de que a ele se uniu poracréscimo, como algo que não lhe pertence ex natura. É um facto que a presença no834 Entre os escritos augustinianos contra o paganismo são <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>áticos De consensu evangelistarum, o<strong>Ser</strong>mo contra paganos [edição princeps apresenta<strong>da</strong> por F. DOLBEAU <strong>em</strong> Recherches augustiniennes 26(1992), p. 69-141; v., espec.,§§ 38-44, p. 119-125], a Ep. CXX, a Volusiano, e a magna obra De ciuitatedei. A tessitura de fundo <strong>da</strong> crítica augustiniana incide sobre a distinção entre os falsos mediadores e oMediador Ver<strong>da</strong>deiro, facto que entra <strong>em</strong> estreita conexão com a experiência feita pelo filósofo na relaçãocom os libri Platonicorum, como se lê v. gr., <strong>em</strong> Conf. VII, IX, 15 ( CCL 27, p. 102-103), no apelo feitopara que se distinga entre o ouro e os ídolos do Egipto, fabricados desse metal precioso. Sobre o público aqu<strong>em</strong> Sto. <strong>Agostinho</strong> dirige <strong>em</strong> De ciuitate dei v. Colin J. STARNES, “Augustine's audience in the firstten books of the "City of God" an the logic of his argument” in E.A. LIVINGSTONE (ed.), StudiaPatristica 27: Cappadocian fathers, Greek authors after Nicaea, Augustine, Donatism and Pelagianism.Papers presented at the 11th international conference on patristic studies held in Oxford, 19-24 August1991. [ reed. <strong>em</strong>: “El público de los primeros diez libros de la Ciu<strong>da</strong>d de Dios y la lógica de suargumento”: Augustinus 40 (1995) 273-282.]. Quanto à natureza do título de De ciuitate dei, O’DALYmostra, a partir de argumentos de crítica filológica, que a expressão Contra paganos é um acrescentopóstumo, cuja autoria não se deve a <strong>Agostinho</strong> ( Cf. Gerard J.P. O’DALY, “Ciuitate Dei ( De-)” inAugustinus-Lexikon I ( 1986-1994), p. 970.564


espírito humano de el<strong>em</strong>entos perversores, e a consequente necessi<strong>da</strong>de de purificação,a fim de que aquele se torne capaz de realizar o seu fim – a união com o divino - serelaciona directamente, na obra de <strong>Agostinho</strong>, com a convicção de que a condiçãoactual do ser humano é a <strong>da</strong> posse de uma natureza perturba<strong>da</strong> por uma dimensão dedecadência ontológica que afecta to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de.Na ver<strong>da</strong>de, a exegese augustiniana de Gen. 1:26 afirma que Adão é figura de todoo género humano. Adão exprime a dimensão simultânea <strong>da</strong> Criação para o ser humano.Nele indica-se e contém-se o acto criador de Deus correspondente à forma do serhumano genericamente considera<strong>da</strong>, como animal racional e centro para o qualconverge to<strong>da</strong> a acção divina criadora. Ora, considera<strong>da</strong> a Criação divina na suadimensão sucessiva, Adão recolhe virtualmente tudo aquilo que o ser humano poderávirá a ser, no percurso histórico <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de imersa no curso dos t<strong>em</strong>pos e destina<strong>da</strong>a proliferar nele. Por isso, o que sucedeu historicamente na vontade de Adão, transmitese,sucessivamente, mediante as rationes s<strong>em</strong>inales, a todo o ser humano.<strong>Agostinho</strong> descreve as principais consequências <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original <strong>em</strong> função <strong>da</strong>ideia de desord<strong>em</strong>. Antes de mais, é a introdução de um desequilíbrio entre as funções<strong>da</strong> mente e as facul<strong>da</strong>des do corpo que está <strong>em</strong> causa, fazendo nidificar, no ser humano,uma anarquia entre esses dois componentes antropogenéticos que são o corpo e a alma.Expressão máxima dessa desord<strong>em</strong> é a condição limite <strong>da</strong> desavença entre ambos,designa<strong>da</strong> por morte. Na ver<strong>da</strong>de, já <strong>em</strong> De ordine, quando <strong>Agostinho</strong> analisa adefinição dos antiquii segundo a qual o hom<strong>em</strong> é um animal racional mortal, sublinhaque a morte foi acrescenta<strong>da</strong> à definição. Tendo sido estabelecido o género – animal –,introduziram-se duas diferenças específicas <strong>em</strong> si mesmas contraditórias: aracionali<strong>da</strong>de e a morte. Ambas têm função de admonitio, na definição. No que dizrespeito à racionali<strong>da</strong>de, mediante um processo de purificação cuja proposta seaproxima <strong>da</strong> neoplatónica – um movimento de conversão, catártico e realizado peloregresso <strong>da</strong> mente sobre si mesma -, o ser humano haveria de regressar à ord<strong>em</strong>,recuperando o seu lugar na hierarquia ontológica, <strong>da</strong>do que a razão é o princípio que oespecifica e o distingue dos d<strong>em</strong>ais seres vivos 835 .835 DO II, XI, 31: “ (...) nam illud nos mouere maxime debet, quod ipse homo a ueteribus sapientibus itadifinitus est: homo est animal rationale mortale. Hic genere posito, quod animal dictum est, uid<strong>em</strong>usadditas duas differentias, quibus, credo, admonendus erat homo et quo sibi redeundum esset et undefugiendum. Nam ut progressus animae usque ad mortalia lapsus est, ita regressus esse in ration<strong>em</strong> debet.”( CCL 29, p.124).565


No que se refere à morte, <strong>Agostinho</strong> adverte que, por ela, o ser humano se afasta<strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des divinas 836 . Ora, só escapando à morte poderá conseguir o seu fim último:unir-se a Deus e realizar a s<strong>em</strong>elhança com o divino, impressa na mente humana comocaracterística ontológica de máxima radicali<strong>da</strong>de. Esta proposta de vi<strong>da</strong> – viver segundoa mente racional e afastar-se <strong>da</strong> morte – esboça<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine segundo um modeloapreendido pela leitura dos Platonicorum, esclarece-se plenamente na pessoa doMediador, sendo esta identifica<strong>da</strong>, na obra augustiniana, com o Cristo histórico. Comefeito, só a ver<strong>da</strong>deira mediação de Cristo realiza o projecto traçado para o ser humanopelo próprio Criador: alcançar a eterni<strong>da</strong>de, identificando-se com a divin<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong>prescindir do modus próprio, <strong>da</strong> mensura específica, do numerus que identifica o serhumano, enquanto forma cria<strong>da</strong>, configura<strong>da</strong> pela contingência e o limite.Ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> De ordine, Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve o modo como a razão adverte que amortali<strong>da</strong>de lhe foi acrescenta<strong>da</strong>, não lhe pertencendo ex radice: se a razão é imortal –pois nela resid<strong>em</strong> razões eternas, como as dos números -; e se o ser humano, que usa arazão mediante o exercício <strong>da</strong> dialéctica, é racional, distinguindo-se, por isso mesmo,dos animais, então aquilo pelo qual se designa como mortal não lhe pertence. A morte éuma reali<strong>da</strong>de acrescenta<strong>da</strong> ao ser humano como uma proprie<strong>da</strong>de acidental, <strong>da</strong> qual sedeve libertar, a fim de realizar a sua humani<strong>da</strong>de e perfeição próprias 837 . Ora, esteprojecto de recuperação de uma harmonia entre o corpo e a alma, que permitirá ao serhumano restaurar o seu lugar na hierarquia ontológica, situando-se entre os irracionais eo divino, recuperando a firmeza e a estabili<strong>da</strong>de do seu ser, necessita de um movimentode purificação, por um lado, e de um instrumento que lhe confira a possibili<strong>da</strong>de desuperar a mortali<strong>da</strong>de, por outro. Esta dupla finali<strong>da</strong>de é atribuí<strong>da</strong> por <strong>Agostinho</strong> aoCristo histórico.De facto, que intermediário poderia escolher o ser humano - mortal e infeliz,separado dos seres imortais e felizes por um fosso intransponível, de carácter ôntico –que lhe permitisse alcançar a imortali<strong>da</strong>de e a felici<strong>da</strong>de? 838 Se escolhesse aimortali<strong>da</strong>de proposta pelos <strong>da</strong><strong>em</strong>ones ater-se-ia à infelici<strong>da</strong>de de uma vi<strong>da</strong> eternamenteperturba<strong>da</strong> pelas paixões do espírito e uni<strong>da</strong> a um corpo incorruptível. Esta definição deimortali<strong>da</strong>de, conferi<strong>da</strong> àquelas reali<strong>da</strong>des intermédias, coincide com a definição836 Ibid.: “ (...) uno uerbo a bestiis, quod rationale, alio a diuinis separatur, quod mortale dicitur. Illudigitur nisi tenuerit, bestia erit, hinc nisi se auerterit, diuina non erit.” ( CCL 29, p. 124).837 Cf. DO II, XIX, 49-50 ( CCL 29, p. 134-135).838 Cf. De ciu. dei IX, XV ( CCL 47, p. 262-263).566


augustiniana de condenação ou infelici<strong>da</strong>de eterna. A alternativa proposta por<strong>Agostinho</strong> a esta mediação é leva<strong>da</strong> a efeito não por um <strong>em</strong>baixador ou intermediário,mas por um Mediador que possui exactamente as características inversas <strong>da</strong>queles.Sendo imortal e feliz, ele é capaz de conferir aos humanos, uma vez atravessado olimiar <strong>da</strong> morte a que estão sujeitos por decréscimo de ser, uma imortali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong>elhanteà que Ele próprio conquistou: a <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna, à qual se une o próprio corpo,associando-se à felici<strong>da</strong>de conquista<strong>da</strong> para o espírito. Se os falsos mediadorespromulgam uma eterni<strong>da</strong>de onde corpo e espírito permanec<strong>em</strong> <strong>em</strong> eterno conflito, oVer<strong>da</strong>deiro Mediador propõe uma vi<strong>da</strong> eterna in pace, na qual a categoria de pondusnão é uma proprie<strong>da</strong>de do corpo, mas uma quali<strong>da</strong>de conquista<strong>da</strong> pelo espírito. Esta, hádereflectir-se na própria corporei<strong>da</strong>de, elevando-a à condição de espirituali<strong>da</strong>de,conferindo uma derradeira harmonia e congruência à forma humana 839 .Sto. <strong>Agostinho</strong> rejeita liminarmente a tese platónica <strong>da</strong> incomunicabili<strong>da</strong>de entreDeus e os humanos. Outra coisa não é, na óptica do Hiponense, a história do Universo,criado In Principio, a não ser o diálogo e a comunicação entre o Absoluto <strong>em</strong>ultiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> formas. Mais ain<strong>da</strong>, sendo esse Principium o Verbo, per qu<strong>em</strong> omniafacta sunt, a proximi<strong>da</strong>de de Deus com os humanos é media<strong>da</strong> precisamente por sinais,os quais, independent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> forma que assumam, são expressões <strong>da</strong> Palavra Eterna.Por conseguinte, to<strong>da</strong>s as expressões de reali<strong>da</strong>de são mediações e declarações, mais oumenos intensas, mas s<strong>em</strong>pre significantes <strong>da</strong> Palavra Criadora. Destarte, na perspectivaaugustiniana, não só Deus está perto dos humanos como comunica com eles numamesma linguag<strong>em</strong>, a qual t<strong>em</strong> uma única finali<strong>da</strong>de: revelar-lhes progressivamente opróprio Verbo Eterno que Ele É 840 .De que forma Cristo realiza aquela mediação que os <strong>da</strong><strong>em</strong>ones jamais poderiamlevar a efeito? O esclarecimento desta questão obriga a justificar uma existência que nãoseja a de uma reali<strong>da</strong>de intermédia entre Deus e os humanos ou que reúna <strong>em</strong> si partes839 Cf. Ibid. O modelo <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de eterna é aqui proposto pelo Cristo histórico, na sua morte eressurreição. A concepção augustiniana do Mediador propõe um acréscimo ontológico à própria condiçãooriginária do ser humano. De facto, ele foi criado <strong>em</strong> corpo animal, mas a sua destinação é a <strong>da</strong> realização<strong>da</strong> sua forma <strong>em</strong> corpo espiritual. Essa t<strong>em</strong>ática, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> envolta <strong>em</strong> enigma, é trata<strong>da</strong> pelo Hiponensev. gr. <strong>em</strong> De ciu. dei XXII, <strong>em</strong> De gen. ad litt. Livro XII e na Ep. CLXVII.840 É este o sentido <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s teofanias do Antigo Testamento. Em De trinitate Sto. <strong>Agostinho</strong> detémsea analisá-las nos Livros I a III, como preparação para a expositio do Livro IV, onde aprofun<strong>da</strong>precisamente o momento cume <strong>da</strong> revelação <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de que se dá na Incarnação do Verbo.567


ou el<strong>em</strong>entos atribuídos a ambas as naturezas, como sucedia com as propostas doMundo Antigo, mas que seja, efectivamente, na uni<strong>da</strong>de de uma só pessoa, Deus eHom<strong>em</strong>. Só assim a pessoa do Mediador será não apenas uma mediação mais, umaespécie de degrau <strong>da</strong> esca<strong>da</strong> que eleva o ser humano a Deus, mas a própria esca<strong>da</strong>. Sóassim tal reali<strong>da</strong>de se constituirá como o itinerário <strong>em</strong> si mesmo e não apenas ummomento do trajecto, viabilizando uma efectiva relação entre a Uni<strong>da</strong>de Supr<strong>em</strong>a <strong>da</strong>Dei<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas cria<strong>da</strong>s.É precisamente porque <strong>Agostinho</strong> considera ser esta a função central do Mediador– estabelecer uma comunicação derradeira entre o Uno e o Múltiplo – que se entende orecurso à numerologia e à noção de ordo como congruentia, ou concinentia, a querecorre quando, <strong>em</strong> De trinitate, expõe a sua concepção <strong>da</strong> Pessoa do VerboIncarnado 841 . De facto, ele é plenamente conforme com a sua identi<strong>da</strong>de divina, por umlado, e também plenamente idêntico à natureza humana. Paradoxalmente, mas s<strong>em</strong>contradição ontológica, Cristo assume esta forma s<strong>em</strong> deixar aquela. Assume ahumani<strong>da</strong>de, s<strong>em</strong> afectar, com esse facto, a Dei<strong>da</strong>de. Mais ain<strong>da</strong>, é a própriahumani<strong>da</strong>de que é integra<strong>da</strong> no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, pois de contrário introduzir-se-ia, naTrin<strong>da</strong>de divina, com a Incarnação do Verbo, uma quarta pessoa.Com efeito, respeitando o princípio <strong>da</strong> hierarquia ontológica, uma naturezainferior não poderia afectar uma superior. Mas o movimento inverso é possível erealiza-se de facto, no Verbo Incarnado. Ao assumir a humani<strong>da</strong>de, a Dei<strong>da</strong>de eleva estaa um peculiar modo de comunhão com a essência divina, viabilizando-lhe o acesso, s<strong>em</strong>a constranger a prosseguir o caminho. Além do mais, a reali<strong>da</strong>de que é a Pessoa deCristo não se dá por justaposição de duas naturezas, divina e humana, mas por perfeitaunião entre ambas, numa mesma reali<strong>da</strong>de subsistente.Cristo é hom<strong>em</strong> ver<strong>da</strong>deiro, s<strong>em</strong> deixar de ser Deus. Por isso, traz aos humanos anatureza divina, sendo ele mesmo a plenitude <strong>da</strong> revelação do Deus-trinitário.Inversamente, na união com a humani<strong>da</strong>de de Cristo, os seres humanos pod<strong>em</strong> acederdirectamente, não obstante por mediação, à Dei<strong>da</strong>de Una e Trina, que está presente de841 Cf. DT IV, II, 4 (CCL 50, p. 163-165). V., também, DT IV, IV,7-VI, 10 ( CCL 50, p. 169-175). EntreDeus e os seres humanos há uma relação do simples ao duplo, a qual se expressa <strong>em</strong> conveniência,congruência, consonância, harmonia. É essa reali<strong>da</strong>de que fica expressa na assunção <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de pelaDei<strong>da</strong>de, como revelação plena <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de naturezas que é a destinação <strong>da</strong> forma humana. Não se trataapenas de afirmar que há comunicação entre o divino e o humano, mas de proclamar que s<strong>em</strong> umaperfeita comunhão entre ambos não haveria humani<strong>da</strong>de.568


modo pleno na Pessoa do Verbo Incarnado. <strong>Agostinho</strong> explica esta relação enigmáticaque se opera no Cristo histórico mediante uma análise <strong>da</strong> expressão paulina segundo aqual <strong>em</strong> Cristo se encontra a forma de servo, pela qual ele é ver<strong>da</strong>deiramente hom<strong>em</strong>, ea forma de Deus, pela qual Ele permanece aquilo que É, na Eterni<strong>da</strong>de – Verbo geradopelo Pai 842 .A reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> estrutura antropológica do Cristo histórico t<strong>em</strong>, antes de mais, umamissão inerente: a de colmatar a debili<strong>da</strong>de humana que, querendo chegar ao Absolutomas sendo incapaz de o fazer, encontra <strong>em</strong> si mesma, na luz divina que se revela nointerior <strong>da</strong> mente, uma incompatibili<strong>da</strong>de crónica entre o seu estado de enfermi<strong>da</strong>de e apureza de Deus 843 . Este realismo, que confere ao ser humano o reconhecimento <strong>da</strong>própria condição histórica, é já efeito <strong>da</strong> mediação do Verbo, enquanto acção divina,iluminadora do espírito humano. To<strong>da</strong>via, o abismo que, no confronto com esta luzespiritual, a debili<strong>da</strong>de humana reconhece interpor-se entre ela e a Dei<strong>da</strong>de, éintransponível, pois é algo que aquela transporta <strong>em</strong> si mesma, apesar dos seus esforçose do seu desejo de identificação com essa pureza que reconhece ser Deus.O ser humano, na sua singulari<strong>da</strong>de, enfrenta uma debili<strong>da</strong>de que o transcende,pois é herança <strong>da</strong> comunhão com to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de. Confronta-se, de facto, com apresença, no seu interior, de um espólio de decadência, ao qual acrescenta adefectibili<strong>da</strong>de dos seus actos livres, executados no t<strong>em</strong>po. Mas é fun<strong>da</strong>mentalmenteaquele fosso, impregnado no ser humano por um decaimento do primitus homo, que setorna intransponível para ca<strong>da</strong> ser humano singular e que t<strong>em</strong> a sua justa expressão namortali<strong>da</strong>de que o afecta. Ora, na sua função justificadora, sanante, ou medicinal,metáforas de que Sto. <strong>Agostinho</strong> se socorre para exprimir esta vertente <strong>da</strong> missão doVerbo Incarnado, v<strong>em</strong> <strong>em</strong> auxílio destes germes de degra<strong>da</strong>ção que afectam a formahumana, nela introduzindo uma contradição ontológica.Para explicar a função justificadora do Verbo Incarnado, indissociável <strong>da</strong> suacondição de Mediador, Sto. <strong>Agostinho</strong> necessita de esclarecer a união, <strong>em</strong> Cristo, <strong>da</strong>dupla natureza, divina e humana. Como ficou dito, porventura o instrumento mais eficaz842 DT IV, XX, 30: “ Verbo itaque dei ad unitat<strong>em</strong> personae copulatus, et quo<strong>da</strong>m modo commixtus esthomo, cum ueniente plenitudine t<strong>em</strong>poris missus est in hunc mundum (...).” ( CCL 50, p. 201).843 DT IV, I, 1: “ (...) Qui uero iam euigilauit in deum, spiritus sancti calore excitatus, atque in eius amorecoram se uiluit, ad eumque intrare uolens nec ualens, eoque sibi lucente adtendit in se, inuenitque se,suamque aegritudin<strong>em</strong> illius munditiae cont<strong>em</strong>perari non posse cognouit (…). » (CCL 50, p. 159).569


de que se socorre para o fazer é a glosa do texto de S. Paulo aos Filipenses 844 , onde seencontra a integração, numa mesma forma, de duas reali<strong>da</strong>des, a divina e a contingente,a do Senhor e Rei, a do Criador e a do servo.Cristo unifica numa só pessoa a forma de Deus e a forma de servo. Este facto éenigmático e suscita interrogações. À in<strong>da</strong>gação: ‘quomodo fiat?’, Sto. <strong>Agostinho</strong>responde: assumindo a forma de servo, s<strong>em</strong> deixar a forma de Deus. Trata-se de umacto perfeitamente ordenado, pois é o superior que assume o inferior, sendo um factoque Ele é Senhor Soberano, quer no seio <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, quer <strong>em</strong> relação à humani<strong>da</strong>decria<strong>da</strong>. Por isso, a expressão de S. Paulo é preciosa, para o Hiponense. O Verbo, nãoquis apropriar-se <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de – non rapinam aequalis est deo. Nesta atitude, Elecontraria, ao Incarnar, o movimento de auaritia, pelo qual o primitus homo quis possuirmais do que aquilo que lhe era devido, desejando assumir a própria Divin<strong>da</strong>de. Porconseguinte, o facto <strong>da</strong> Incarnação é, só por si, restaurador <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> primeva,contrariando aquele movimento <strong>da</strong> vontade adâmica. Por seu turno, enquanto formaDei, Cristo é por natureza Idipsum, não podendo adquiri-la por usurpação: ao Incarnarapenas realiza, com liberali<strong>da</strong>de e gratui<strong>da</strong>de, uma possibili<strong>da</strong>de do <strong>Ser</strong> Soberano. É umfacto que Cristo não pode acrescentar perfeição ontológica à Dei<strong>da</strong>de que o constitui,enquanto forma Dei. Também neste facto se manifesta a gratui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua epifania not<strong>em</strong>po. Porém, o movimento inverso é-lhe possível: aniquilar, s<strong>em</strong> prescindir dela, aDei<strong>da</strong>de própria <strong>da</strong> sua Pessoa, e assumir uma natureza inferior, como a humana,viabilizando-lhe o caminho <strong>da</strong> divinização.Também neste caso não se trata de uma rapina <strong>da</strong> natureza humana, como se nelao Verbo viesse <strong>em</strong> busca de preencher alguma indigência. Por isso, quando interrogadosobre o motivo derradeiro <strong>da</strong> incarnação do Verbo, prescindindo <strong>da</strong>s missões e <strong>da</strong>snecessi<strong>da</strong>des humanas ao encontro <strong>da</strong>s quais v<strong>em</strong>, Sto. <strong>Agostinho</strong> responde: quia uoluit.Na ver<strong>da</strong>de, se há constrangimento, ele provém <strong>da</strong> indigência humana, necessita<strong>da</strong> depurificação 845 , e não <strong>da</strong> Incarnação do Verbo, to<strong>da</strong> ela efeito <strong>da</strong> liberali<strong>da</strong>de divina, querenquanto missão específica, quer na concreção de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s acções de Cristo not<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> ao cumprimento <strong>da</strong> missão e máxime, na assunção <strong>da</strong> própria mortecorporal e violenta 846 . Nesta unificação <strong>da</strong>s naturezas divina e humana, a função sanante844 Cf. Phil. 2, 5:11.845 Cf. DT IV, XVIII, 24 ( CCL 50, p. 191-193).846 Cf. DT IV, XIII, 16 ( CCL 50, p. 181-182).570


e medicinal de Cristo realiza-se pela reposição <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>. Mediante um acto deliberali<strong>da</strong>de, ela é um facto de justiça e, por isso, torna-se justificadora.Não deixa de ser curioso o modo como Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve esta reposição <strong>da</strong>ordo rerum, mediante a Incarnação do Verbo e a sua morte, às mãos <strong>da</strong> ignorância doss<strong>em</strong>elhantes. Em última instância, essa mesma ignorância, consegui<strong>da</strong> peloofuscamento mental <strong>da</strong>queles que lhe deram a morte, é instrumento <strong>da</strong> reposição <strong>da</strong>ord<strong>em</strong>. Por seu turno, tal ignorância só é possível pela própria ocultação, voluntária, <strong>da</strong>forma Dei, reuni<strong>da</strong> na humani<strong>da</strong>de do Verbo. Estando aí realmente presente, ela só serevela aos que a pod<strong>em</strong> ver. Essa é a condição necessária para reconhecer os signa Deinas multíplices formas <strong>da</strong> sua presença no Mundo. Desde cedo <strong>Agostinho</strong> proclamara aord<strong>em</strong> universal e a harmonia plena de que o universo está impregnado. Mas reclamara,para o seu reconhecimento, uma capaci<strong>da</strong>de peculiar de ver – oculos quaerunt 847 – <strong>da</strong>qual faz parte a conversão <strong>da</strong> intentio animi, essa tensão interior do espírito que aspira amais ser, numa atenção <strong>da</strong> mente àquelas reali<strong>da</strong>des que contribu<strong>em</strong>, no t<strong>em</strong>po, para umaumento <strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de ontológica do espírito ou pondus animae.Assim, o argumento augustiniano para explicar o modo como se realizou a missãojustificadora do Verbo Incarnado t<strong>em</strong> por base, mais uma vez, a noção de ordoentendi<strong>da</strong> como disposição hierárquica de seres. Recor<strong>da</strong>ndo que a sujeição do serhumano à morte é efeito de estar sob o jugo de criaturas superiores a ele, e porconversão às quais rejeitou uma primitiva condição de felici<strong>da</strong>de, <strong>Agostinho</strong> indica queesta situação não é apenas de facto, mas também de iure. Na reali<strong>da</strong>de, a conversão àscriaturas que viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> estado permanente e definitivo de auersio dei, como são ascriaturas angélicas perverti<strong>da</strong>s, faz que o ser humano esteja dominado por elas porjustiça. Por um lado, elas são-lhe superiores. Por outro, essa sujeição t<strong>em</strong> por base umadecisão livre e voluntária do ser humano. Assim, não obstante se tratar <strong>da</strong> dimensãomais ínfima do agir, de uma afecção que atinge o domínio radical <strong>da</strong>quilo quecaracteriza a forma do ser humano, tal situação histórica de sujeição respeita o serhumano, naquilo que esta forma de existência possui de essencial: o exercício do seuarbítrio e a sujeição ao ser superior.847 Em DO II, IV, 13, a propósito de uma harmonia que se percebe na contradição, no contraste, narelação entre diferentes, <strong>Agostinho</strong> proclama: “ Talia, credo, sunt omnia, sed oculos quaerunt.” ( CCL 29,p. 114).571


Esta situação é também irrefragável, pois libertar-se dela exigirá a acção de umareali<strong>da</strong>de superior aos próprios anjos pervertidos. Com efeito, só uma enti<strong>da</strong>de superiora eles poderá agir ordena<strong>da</strong>mente sobre eles, não para neles realizar um processo deconversão, mas para lhes resgatar a natureza humana, sobre a qual têm, <strong>em</strong> função <strong>da</strong>degra<strong>da</strong>ção do exercício primitivo do arbítrio <strong>da</strong> vontade adâmica, um domínio efectivoe justo.To<strong>da</strong>via, para libertar a humani<strong>da</strong>de no seu conjunto e não um ser humanosingular, respeitando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a ordo rerum, este Mediador necessita de reunir<strong>em</strong> si não uma expressão singular de humani<strong>da</strong>de, mas o senhorio sobre to<strong>da</strong>s as formashumanas. Ora tal prerrogativa é exclusiva do Criador. Pelos dois motivos indicados, sóo Criador, superior aos anjos, e Verbo, per qu<strong>em</strong> omnia facta sunt, pode levar a efeitoesta tarefa. Contudo, a missão não será efectua<strong>da</strong> s<strong>em</strong> a assunção definitiva de to<strong>da</strong>s asconsequências decorrentes do domínio <strong>da</strong>quela criatura espiritual sobre o ser humano: osofrimento e a morte. É na totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua estrutura antropogenética que o ser humanose submete à criatura angélica perversa, pois só neste aspecto ele é inferior a ela.<strong>Agostinho</strong> explica que a morte corporal é efeito <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção do espírito humano,alcança<strong>da</strong> pela auaritia ou movimento de auersio ao B<strong>em</strong> Comum.Se, como se viu, é esta a essência <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, é ela que penetra na quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>mente humana, deformando a imago dei nela impressa, s<strong>em</strong>, contudo, aniquilar essaefígie. Distinguindo uma dupla morte, a do corpo e a <strong>da</strong> alma, o filósofo explica que osanjos prevaricadores, ausentes de corpo, apenas pod<strong>em</strong> padecer <strong>da</strong> morte espiritual,novo paroxismo que significa a subsistência de uma vi<strong>da</strong> espiritual <strong>em</strong> estado derejeição <strong>da</strong> relação ao <strong>Ser</strong> Supr<strong>em</strong>o. Mas, ao arrastar<strong>em</strong> para o mesmo estado de alma oser humano, esse facto t<strong>em</strong>, na estrutura ontológica deste, o efeito <strong>da</strong> morte corpórea, aque se une o sofrimento inerente à separação de duas reali<strong>da</strong>des – corpo e alma –cria<strong>da</strong>s para uma convivência <strong>em</strong> harmonia.Nestas condições, a acção justificadora do Mediador, para assumir a condiçãohistórica do ser humano, teria de passar pelo sofrimento e a morte. Sendo Ele mesmo oJusto, e não estando submetido a nenhuma criatura, a missão redentora do Mediadorteria de assumir, livr<strong>em</strong>ente, a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza humana, dota<strong>da</strong> de corpo e alma.Com igual liberali<strong>da</strong>de e senhorio, assumiria o sofrimento e a morte, inerentes àcondição histórica <strong>da</strong>quela.Na gratui<strong>da</strong>de plena desta missão, por parte de uma Dei<strong>da</strong>de que até este extr<strong>em</strong>ose aproxima dos humanos, manifesta-se uma necessi<strong>da</strong>de inerente à contingência572


humana. S<strong>em</strong> este movimento de aproximação do divino ao humano, este jamaisrecuperaria a liber<strong>da</strong>de original, mediante a qual, percorrendo o único itinerário que lhepermite ass<strong>em</strong>elhar-se à Dei<strong>da</strong>de - a união com o Verbo -, poderá realizar a sua formaprópria, configura<strong>da</strong> pela efígie divina que leva impressa, <strong>em</strong> comunhão com a Dei<strong>da</strong>de,Una e Trina. Por conseguinte, o acto justificador de Cristo, se é ver<strong>da</strong>de que convergena paixão e morte do Redentor, a qual não seria possível s<strong>em</strong> a Incarnação do Verbo,não t<strong>em</strong> como finali<strong>da</strong>de definitiva, n<strong>em</strong> mesmo exclusiva a assunção do sofrimento e<strong>da</strong> morte, por parte <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de, como numa espécie de paixão masoquista. Não é,sequer, um acto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de do divino com o humano que está subjacente namissão do Redentor, mas uma acção de liberali<strong>da</strong>de, tal como a Criação o é 848 .Enquanto acções <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de sobre o Universo, tanto a Criação do cosmos, como amorte de Cristo manifestam a essência do Absoluto, não obstante ca<strong>da</strong> uma destasacções a desvelar a seu modo. Em última instância, a liberali<strong>da</strong>de divina, na Incarnaçãodo Verbo e <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> à libertação <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de t<strong>em</strong> a finali<strong>da</strong>de de unificar o Divinoe o Humano 849 . É esta missão que se realiza no Cristo histórico, assumindo, nele, aplenitude <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e indissolubili<strong>da</strong>de entre ambas as naturezas. É ver<strong>da</strong>de que848 <strong>Agostinho</strong> d<strong>em</strong>ora-se a descrever a liberali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> paixão e morte de Cristo, contrastando-a com osofrimento e morte humanos, estes irrefragáveis. Cristo padece porque quer, como quer, quando e quantoquer. A sua alma e o seu corpo separam-se porque Ele quer. Tais factos são <strong>em</strong> si mesmos expressão deliberali<strong>da</strong>de, de omnipotência e, indubitavelmente, de ord<strong>em</strong>, pois na pessoa do Verbo Incarnado a formaDei age sobre a forma servi tendo pleno senhorio sobre ela ( Cf. DT IV, X, 13 - IV, XIII, 18: CCL 50, p.178-186).849 Sto. <strong>Agostinho</strong> descreve a missão justificadora <strong>da</strong> incarnação do Verbo precisamente <strong>em</strong> termos dorestabelecimento <strong>da</strong> harmonia entre a uni<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de, sendo um facto que esta última padecede dispersão, na condição histórica decadente: “ (...) Quia enim ab uno deo summo et uero per impietatisiniquitat<strong>em</strong> resilientes et dissonantes defluxeramus et euanueramus in multa discissi per multa etinhaerentes in multis, oportebat nutu et imperio dei miserantis ut ipsa multa uenturum conclamarentunum, et a multis conclamatus ueniret unus, et multa contestarentur uenisse unum, et a multis exoneratiuenir<strong>em</strong>us ad unum, et multis peccatis in anima mortui et propter peccatum in carne morituri amar<strong>em</strong>ussine peccato mortuum in carne pro nobis unum, et in resuscitatum credentes et cum illo per fid<strong>em</strong> spirituresurgentes iustificar<strong>em</strong>ur in uno iusto facti unum, nec in ipsa carne nos resurrecturos desperar<strong>em</strong>us cummulta m<strong>em</strong>bra intuer<strong>em</strong>ur praecessisse nos caput unum in quo nunc per fid<strong>em</strong> mun<strong>da</strong>ti et tunc perspeci<strong>em</strong> redintegrati et per mediator<strong>em</strong> deo reconciliati haereamus uni, fruamur uno, permaneamusunum.” (DT IV, VII, 11: CCL 50, p. 175-176). Em última instância, o Mediador realiza o que <strong>Agostinho</strong>manifestava já na invocação <strong>da</strong> oratio de Solil. I, I, 3: “ (...) Deus, per qu<strong>em</strong> mors absorbetur invictoriam.” (CSEL 89, p. 6).573


aquela missão é executa<strong>da</strong> por um acto de justiça, no sentido fraco do termo, a saber,enquanto o resgate <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de ao domínio dos anjos prevaricadores respeita ahierarquia ontológica. Mas a dimensão <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> que é aqui revela<strong>da</strong>, como <strong>em</strong> to<strong>da</strong> aactivi<strong>da</strong>de divina, é a que espelha a própria natureza <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de: relação potenciadorade uma outra reali<strong>da</strong>de, inteiramente nova, e sustentáculo dela.É esta revelação <strong>da</strong> Dei<strong>da</strong>de enquanto relação com o Mundo e, de modoabsolutamente insuspeitado, com o ser humano, que está subjacente na Incarnação doVerbo. Se é ver<strong>da</strong>de que a missão redentora esclarece um sentido estrito de justiça, elaenraiza-se no sentido mais pleno que o termo assume na obra do Hiponense, a saber,como caritas seu dilectio. A ela se orienta e nela converge.De facto, <strong>Agostinho</strong> descreve a missão justificadora do Verbo Incarnado como oacto mediante o qual o Criador recupera para si aquilo que é seu – o ser humano e, comele, a possibili<strong>da</strong>de de instaurar uma nova criação, pois todo o Universo havia sidocriado <strong>em</strong> vista <strong>da</strong> acção desse ser que, livr<strong>em</strong>ente, e <strong>em</strong> uníssono com a realização <strong>da</strong>sua forma própria, haveria de oferen<strong>da</strong>r à Dei<strong>da</strong>de to<strong>da</strong>s as criaturas, todo o cosmos, nadiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas nele conti<strong>da</strong>s, fazendo uso delas mediante um acto de dilecção.To<strong>da</strong>via, ao recuperar para si o ser humano, é a conquista <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de originária deleque está <strong>em</strong> causa, e não o desejo de domínio por parte do Criador sobre a criatura.Prova disso é o facto de que essa gratui<strong>da</strong>de divina, expressa na Criação e leva<strong>da</strong> aextr<strong>em</strong>o na paixão e morte do Justo, permanece s<strong>em</strong>pre sujeita ao arbítrio <strong>da</strong> vontadehumana. Por isso, a dimensão radical <strong>da</strong> justiça ou ord<strong>em</strong> divina manifesta-se não tantono facto <strong>da</strong> paixão e morte do Justo, mas na finali<strong>da</strong>de desse acto: a união ou religaçãode todos os seres com o divino 850 .Duas conclusões ressaltam desta finali<strong>da</strong>de derradeira <strong>da</strong> Incarnação, as quais sóanaliticamente se distingu<strong>em</strong>. Por um lado, ela não se esgota na presença do Cristohistórico, espacio-t<strong>em</strong>poralmente determina<strong>da</strong>. Por outro lado, esta presença inaugurauma reali<strong>da</strong>de inteiramente nova, sendo essa a característica de to<strong>da</strong> a uera religio.850 Cf. DT IV, XVIII, 24 ( CCL 50, p.176-177), onde se lê que a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Incarnação é a união <strong>da</strong>humani<strong>da</strong>de não com o Verbo, mas com a Trin<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> qual o próprio Verbo é expressão. Em DT IV,XVIII, 24 a mesma finali<strong>da</strong>de é expressa <strong>em</strong> termos <strong>da</strong> união <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de e mutabili<strong>da</strong>de humanas àeterni<strong>da</strong>de e imutabili<strong>da</strong>de divinas, como fazendo parte de uma destinação essencial <strong>da</strong> criatura: “ (...) Itaergo nos purgari oportebat ut ille nobis fieret ortus qui maneret aeternus ne alter nobis esset in fide, alterin ueritate; nec ab eo quod orti sumus ad aeterna transire poss<strong>em</strong>us nisi aeterno per ortum nostrum nobissociato ad aeternitat<strong>em</strong> ipsius traicer<strong>em</strong>ur.” ( CCL 50, p. 192).574


Desta forma, <strong>em</strong> relação à Criação, Cristo é expressão plena <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong>: realiza <strong>em</strong>si a união plena do divino e do humano; permite, através <strong>da</strong> sua missão justificadora, arecuperação <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de; e potencia uma nova dimensão dessa uni<strong>da</strong>de com o divino, aqual não se projecta na recuperação de uma identi<strong>da</strong>de perdi<strong>da</strong> mas na concreção deuma nova reali<strong>da</strong>de: a <strong>da</strong> união, não apenas de ca<strong>da</strong> um, mas de todos os seres humanoscom o Verbo. Com efeito, a sua presença incarna<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po revela a Trin<strong>da</strong>de de ummodo inteiramente novo, quando comparado com as manifestações vestigiais <strong>da</strong>trin<strong>da</strong>de nas criaturas, com a manifestação dela na efígie impressa na mente humana ou,mesmo, quando confronta<strong>da</strong> com as teofanias veterotestamentárias.Este é um aspecto definitivo do sentido <strong>da</strong> <strong>Ord<strong>em</strong></strong> como Mediação. Na ver<strong>da</strong>de,<strong>Agostinho</strong> não postula o regresso às origens, quando confronta a humani<strong>da</strong>de com aproposta de uma redenção. O processo de conuersio a fim <strong>da</strong> formatio não é um apelo àconquista do paraíso perdido, mas à construção, no t<strong>em</strong>po e a partir <strong>da</strong> revelaçãohistórica <strong>da</strong> plenitude que este assumiu <strong>em</strong> Cristo, <strong>da</strong> Ciuitas Dei. Por conseguinte,absolutamente intrínsecas e inseparáveis <strong>da</strong> epifania de Cristo no seu advento histórico,encontram-se, na obra do Hiponense, a dimensão <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de na Singulari<strong>da</strong>de – deca<strong>da</strong> um com o Verbo Eterno que ilumina interiormente – e a <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de naDiversi<strong>da</strong>de – de ca<strong>da</strong> um com o s<strong>em</strong>elhante, enquanto nele reconhece a imag<strong>em</strong> doHom<strong>em</strong> Novo.Estas duas dimensões <strong>da</strong> mediação orientam-se à edificação de um Novo Adventode Cristo, na sua Realeza, e só manifestam a <strong>Ord<strong>em</strong></strong> que é Deus na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> queantecipam, já no t<strong>em</strong>po, essa presença de Eterni<strong>da</strong>de glorifica<strong>da</strong>, não obstante o façamde modo imperfeito e germinalmente. Ora, esta continuação <strong>da</strong> missão de Cristo not<strong>em</strong>po é acção do Espírito, donum dei. Daí a sua dimensão absolutamente arcana,inefável, incompreensível mesmo aos puros de coração. Com efeito, esta acção é transhistóricae o pondus definitivo dessa Ordo só pode ser revelado no final dos t<strong>em</strong>pos,pois só então, aboli<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de progresso e de acréscimo de densi<strong>da</strong>deontológica para as formas imersas no t<strong>em</strong>po, se poderá avaliar o peso de ca<strong>da</strong> uma. Porconseguinte, é também nessa dimensão escatológica que se realiza a ord<strong>em</strong> como paxomnium rerum, na consagra<strong>da</strong> definição augustiniana.To<strong>da</strong>s as formas repousarão, finalmente, no seu lugar próprio. No caso <strong>da</strong>scriaturas espirituais, este lugar é aferido de acordo com a quali<strong>da</strong>de de dilecção que pesanas suas mentes, a qual se define <strong>em</strong> função <strong>da</strong> maior ou menor uni<strong>da</strong>de com oMediador. Assim, na multiplici<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de de itinerários que ca<strong>da</strong> ser humano575


terá trilhado na história, se o fez <strong>em</strong> união com o Verbo, mediante o Espírito, teráreproduzido, no t<strong>em</strong>po e na história, no momento e no lugar geográfico no qual lhecorrespondeu exercer a sua forma própria, uma expressão do B<strong>em</strong> Comum: umaimag<strong>em</strong> do Criador, Dei<strong>da</strong>de Una e Trina. Terá reproduzido a imag<strong>em</strong> possível, poisEle assumiu to<strong>da</strong>s, e ca<strong>da</strong> ser humano descreve, na sua existência, apenas uma, quecorresponde ao modo - singularíssimo e absolutamente único, também ele incarnado eimerso nas circunstâncias históricas - como estabelece relação com a Trin<strong>da</strong>de. Ao fazêlo,e precisamente enquanto percorre esse itinerário como imago dei, não pode alhear-se<strong>da</strong> união com o s<strong>em</strong>elhante e com to<strong>da</strong>s as criaturas. A Mediação do Verbo realiza-ses<strong>em</strong>pre, para <strong>Agostinho</strong>, nessa dupla dinâmica, singular e comunitária. Por isso, o lugarque um tal ser humano ocupa na ord<strong>em</strong> é s<strong>em</strong>pre de paz, de tranquili<strong>da</strong>de e repouso,pois essa união com o Verbo forjou nele a Eterni<strong>da</strong>de e Imutabili<strong>da</strong>de.Inversamente, se um ser humano percorreu durante a sua existência t<strong>em</strong>poral, umitinerário de aversão ao Verbo, se negou o apelo eterno a assumir a própria forma,ocupará, no final dos t<strong>em</strong>pos, um lugar distante, <strong>em</strong> relação ao Mediador. Um tal serdegra<strong>da</strong>-se, não pelo peso do seu corpo, mas pela falta de consistência, no seu espírito.E, contudo, ocupa o seu lugar próprio, na hierarquia ontológica. Por isso, também nessaforma humana se realiza uma dimensão de paz, máxime <strong>em</strong> face <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de dos seres.É no confronto consigo mesma que se gera a intranquili<strong>da</strong>de e a instabili<strong>da</strong>de eternas, asquais decorr<strong>em</strong> <strong>da</strong> permanência de um apelo eterno ao sabath eterno, no interior de umamente que s<strong>em</strong>pre rejeitou essa presença. De alguma forma, é a intranquili<strong>da</strong>de o lugarpróprio destes seres, a qual, ao realizar-se neles, pacifica o conjunto, não obstante estaproposta evidenciar mais um dos mistérios <strong>da</strong> noção augustiniana de ord<strong>em</strong>.Um e outro dos itinerários percorridos tê-lo-ão sido no Verbo, pois fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>na<strong>da</strong> se realiza. Fora <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> é a total ausência de forma, esse nihil a partir do qualto<strong>da</strong> a forma <strong>em</strong>erge no t<strong>em</strong>po, mediante a gratui<strong>da</strong>de do Absoluto. Por conseguinte, nocurso dos t<strong>em</strong>pos, ambos itinerários se cruzam: caminham permixtos e nenhum serimerso no t<strong>em</strong>po, ou mesmo apartado desta reali<strong>da</strong>de, pode avaliar a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>svontades e a densi<strong>da</strong>de ontológica dessa ord<strong>em</strong> que se constrói no t<strong>em</strong>po, a caminho <strong>da</strong>Eterni<strong>da</strong>de.É este o paradoxo <strong>da</strong> noção de ordo rerum proclamado por Sto. <strong>Agostinho</strong>. Se éum facto que ela se evidencia na harmonia <strong>da</strong>s formas, também é uma reali<strong>da</strong>de ques<strong>em</strong>pre se oculta e, quando a mente humana parece vislumbrar algo sobre a suaessência, imediatamente ela se recolhe, querendo com isso indicar que resiste à576


contingência, e se nega a uma hermenêutica uniforme, mesmo quando esta provém deuma uera ratio. O seu domínio é mais fundo, enraizando-se na uera religio. E esta exigeuma comunhão universal de to<strong>da</strong>s as criaturas no Verbo.Com efeito, só ao Verbo - razão <strong>da</strong> subsistência de to<strong>da</strong>s as formas, e InteligênciaEterna de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de - é <strong>da</strong>do ponderar o sentido <strong>da</strong> história e revelá-lo àHumani<strong>da</strong>de. A seu t<strong>em</strong>po.577


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In Iohannis epistulam ad Parthos PL 35, 1977-2062.tractatusIn Iohannis euangelium tractatus CCL 36 ( R. Will<strong>em</strong>s, 1954)Retractationum libri duo CCL 57 ( A. Mutzenbecher, 1984).Soliloquiorum libri duo CSEL 89 ( W. Hörmann, 1986 ), p. 3-98.2. Fontes secundárias2.1. AVGVSTINVS HIPPONENSISCollatio cum Maximino PL 42, 709-742Contra Faustum Manichaeum CSEL 25/1 ( J. Zycha, 1891 ), p. 249- 797.Contra Iulianum PL 44, 641-874.Contra Iulianum opus imperfectum CSEL 85/ 1 ( M. Zelzer, 1974).Contra Maximum PL 42, 745-814.Contra sermon<strong>em</strong> Arianorum CSEL 92 ( Max Joseph Su<strong>da</strong>, 2000), p. 46-113.De bono uiduitatis CSEL 41 ( J. Zycha, 1900), p. 303-343.De catechizandis rudibus CCL 46 ( Bauer, 1969), p. 121-178.De consensu euangelistarum CSEL 43 ( F. Weirich, 1904).De cura pro mortis geren<strong>da</strong> CSEL 41 ( J. Zycha, 1900), p. 619-660.De duabus animabus CSEL 25/1 ( J. Zycha, 1891), p. 51-80.De fide et symbolo CSEL 41 ( J. Zycha, 1900), p. 1-32.De fide rerum inuisibilium CCL 41 A (Mutzenbecher, 1975), p. 251-297.De haeresibus CCL 46 ( Vander Plaetse / Beukers, 1969),p. 286-345.De natura et origine animae CSEL 60 ( C.F. Vrba / J. Zycha, 1913), p.301-419.De nuptiis et concupiscentia CSEL 42 (C.F. Vrba / J. Zycha, 1902), p.207-319.Enarrationes in PsalmosCCL 38-39-40 ( E. Dekkers/ J. Fraipont1956).Enchiridion de fide, spe et caritate CCL 46 ( E. Evans, 1969), p. 49-114.581


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(1995) 281-289.<strong>Ser</strong>mo contra paganos (=Dolbeau 26) Recherches augustiniennes 26(1992), p. 69-141.<strong>Ser</strong>mo de excidio urbis Romae CCL 46 ( M.-V. O’Reilly, 1969), p. 249-262.EPISTVLAEEp. III CSEL 34/1, p. 4-9.Ep. VII CSEL 34/1, p. 13-14.Ep. XI CSEL 34/1, p. 25-28.Ep. XII CSEL 34/1, p. 29.Ep. XXV CSEL 34/1, p. 78-83.Ep. XXVI CSEL 34/1, p. 83-95.Ep. LIV CSEL 34/2, p. 158-168.Ep. LV CSEL 34/2, p. 169-213.Ep. CI CSEL 34/2, p. 539-543.Ep. CIV CSEL 34/2, p. 582-595.Ep. CIX CSEL 34/2, p. 634-638.Ep. CXVIII CSEL 34/2, p. 665-698.Ep. CXX CSEL 34/2, p. 704-722.Ep. CXXXVII CSEL 44, p. 96-125.Ep. CXXXVIIICSEL 44, p.126-148.Ep. CXL CSEL 44, p. 155-234.Ep. CXLIII CSEL 44, p. 250-262.Ep. CLIX CSEL 44, p. 497-502.Ep. CLV CSEL 44, p. 430-447.Ep. CLXIII CSEL 44, p. 520-521.Ep. CLXVI CSEL 44, p. 545-585.Ep. CLXVII CSEL 44, p. 586-609.Ep. CLXX CSEL 44, p. 622-631.Ep. CLXXIV CSEL 44, p. 650-651.Ep. CLXXV CSEL 44, p. 652- 662.Ep. CLXXVI CSEL 44, p. 663-668.583


Ep. CLXXXI CSEL 44, p. 701-715.Ep. CLXXXII CSEL 44, p. 715-723.Ep. CLXXXIV A CSEL 44, p. 732-736.Ep. CLXXXVI CSEL 57, p. 45-80.Ep. CXC CSEL 57, p. 137-162.Ep. CXCIV CSEL 57, p. 176-214.Ep. CCII A CSEL 57, p. 302-315.Ep. CCV CSEL 57, p. 323-339.Ep. CCXXXI CSEL 57, p. 504-510.Ep. CCXXXVIII CSEL 57, p. 533-556.2.2. ALTERI2.2.1. AMBROSIVM MEDIOLANENSISHymniAmbroise de Milan, Hymnes. Texteétabli, traduit et annoté. J. FONTAINE(dir.), Cerf (Paris 1992).<strong>Ser</strong>mo De Isaac seu anima CSEL 32/1 ( SCHENKL, 1897), p. 641-700.Exameron CSEL 32/1 ( SCHENKL, 1897), p. 3-261.584


2.2.2. BONAVENTURAItinerarium mentis in deum Opera omnia, t. V, ed. PP. Colegii a S.Bonaventura (Quaracchi 1891), p. 295-313.De reductione artium ad theologiam Opera omnia, t. V, ed. PP. Colegii a S.Bonaventura (Quaracchi 1891), p. 319-325.2.2.3. TOMAE AQVINATISSumma Theologiae Pars Prima Texto <strong>da</strong> ed. Leonina (Marietti 1952), 1-559.2.3. AVCTORES ANTIQVII2.3.1. Pre-SocraticiDie Fragmenta der VorsokratikerEd. H. Diels e W. Kranz, I-III, Berlin,Weidmannsche Verlagsbuch-Handlung,8 1956.2.3.2. StoiciiStoicorum Veterum Fragmenta I. von Armin, I-IV ( Sttutgard 1964).585


2.3.3. PLATOPhaedoMenonRespublicaTimaeusPlatonis Opera I, Tetralogia I ( Oxonii,1958, 5ª reimp.).Platonis Opera III, Tetralogia VI(Oxonii, 1957,10ª reimp.).Platonis Opera IV, Tetralogia VIII(Oxonii, 1957, 15ª reimp.).Platonis Opera IV, Tetralogia VIII(Oxonii, 1949, 7ª reimp.).2.3.4. ARISTOTELESMetafísicaProtrépticoEd. Trinlingue V. García Yebra, trad.Latina G. Moerbeke, trad. Castelhana V.García Yebra, Madrid, Gredos, 2 1982.W.D. ROSS, Fragmenta selecta (Oxford1974), 5ª reimp., p. 26-55.2.3.5. APVLEIVS MADAVRENSISDe deo socratisOpera Omnia II, ed. G. F. HILDEBRAND( Darmstad 1968) p. 102-169586


2.3.6. CICEROAcad<strong>em</strong>ici libri quattor(Acad<strong>em</strong>icorum reliquiae cum Lucullo)De natura deorumDe fatoTimaeusBiblioteca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana(Stutgardiae/Lipsiae, 1996). [Recognovited. Otto PLASBERG ( 1922)].Biblioteca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana (Stutgardiae,1980). [Recognovit ed. W. AX (1933)].Biblioteca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana (Stutgardiae,1980). [Recognovit ed. W. AX (1938), p.130b-153b].Biblioteca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana (Stutgardiae,1980). [Recognovit ed. W. AX (1938), p.154b-187b].2.3.7. PLOTINVSEnneadesPlotini Opera ( ed. Paul HENRY &Hans-Rudolf SHWYZER).Tomus I –Enneades I – III ( Oxoni, 1974); TomusII – Enneades IV- V ( Oxoni, 1977);Tomus III – Enneades VI ( Oxoni 1982).[trad. francesa: E. Bréhier, Enneades I-VI( Paris 4 1976 ; 3 1964 ; 3 1963 ; 4 1964;2 1956 ; 3 1963 (1ª Parte)/ 3 1963 (2ªParte)].2.3.8. PORPHYRIUS ❄ ❄ Bibliotheca scriptorum Graecorum etSententiae ad intellegibilia ducentes Romanorum Teubneriana, Ed. E.Lamberz (Lipsiae 1975), p. 1-59 [trad.it.: Giuseppe GIRGENTI, Sentenze587


De regressu animaeIsagoge et In Aristotelis Categoriascommentariumsugli intelligibili. Rusconi ( Milano1996)].Ed. A. SMITH, Porphyrius Fragmenta.(Stuttgardiae/Lipziae, 1993).[Bibliotheca scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana], p. 319-350.Ed. A. Busse (Berolini, Reimer, 1887),p. 55-142 ( Commentaria inAristotel<strong>em</strong> Graeca, t. IV/ I). [ trad.franc. Isagoge. Texte grec, TranslatioBoethii, A. DE LIBERA et A. Ph.SECONDS, intord., trad. et notes parA. DE LIBERA ( Paris 1998).2.3.9. QUINTILIANVSInstitutio Oratoria L. RADERMACHER (Leipzig 1971)[Biblioteca Scriptorum Graecorum etRomanorum Teubneriana], Pars Prior,Libros I-VI.2.3.10. SIMPLICIVSIn Aristotelis Categorias comm.K. Kalbfleisch ( Commentaria inAristotel<strong>em</strong> Graeca, t. VIII, 1907).2.3.11. M. T. VARROAntiquitates rerum diuinarumed. B. CARDANUNS, (Wiesbanden1976).588


2.4. MANICHAÏSMVSKephalaiaManichäische Handschriften desStaallichen Museen Berlin ( 1940-2000).1-10: H. J. JAKOB & A. BÖHLIG.11-12: A. BÖHLIG13-14/ 15-16: Wolf-Peter FUNK( trad. ing. The Kephalaia of the Teacher.Trad. e comentário de Iain GARDNER,Leiden/New York/ Köln 1995).589


B - ESTUDOSI – Estudos Genéricos1. <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong>ALICI, Luigi, “Introducción a la filosofía de San Agustín” in J. OROZ RETA & J.A.GALINDO RODRIGO (dir.), El pensamiento de san Agustín para el hombre dehoy 1. La filosofía agustiniana (Valencia 1998) 103-193.BONNER, Gerald, “Augustinus (uita)” in C. MAYER (dir.), Augustinus-Lexikon 1(1986-1994) 519-550.BOYER, Charles, Essais anciens et nouveaux sur la doctrine de saint Augustin ( Milano1970).BROWN, Peter, Augustine of Hippo. A Biography (Berkeley/Los Angeles 2000).BURT, Donald X., Augustine's World. An Introduction to his Speculative Philosophy(Lanham/London 1996).CALVO MADRID, Teodoro, “Agustín, peregrino hacia la ver<strong>da</strong>d”: Augustinus 39(1994) 93-122.CLARK, Mary T., “Augustine's Christian Humanism”: The University of DaytonReview 22 (1994) 309-328. “El humanismo cristiano de san Agustín”: Augustinus47 (2002) 333-361. Augustine (London/Washington 1994).CAMPELO, Moisés M., Agustín de Tagaste: T<strong>em</strong>as de su filosofía (Valladolid 1994).Siguiendo a San Agustín: Persona, Historia, Ti<strong>em</strong>po (Valladolid 1997).CAPÁNAGA, Victorino, “Probl<strong>em</strong>as fun<strong>da</strong>mentales de la filosofía agustiniana”:Augustinus 23 (1978) 87-108.CERQUEIRA GONÇALVES, J., “ <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> e as marcas <strong>da</strong> cultura ocidental”,pref. à ed. port. <strong>da</strong> obra de F. FERRIER, <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong> (Lisboa 1994), p. 9-24.CHADWICK, Henry, Augustine (Oxford/New York 1986; 1991).590


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2. A obra de <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong>, no seu t<strong>em</strong>po e no curso dos t<strong>em</strong>pos.2.1. Contexto filosófico e historiográficoBALDAROTTA, Donatella, “Tracce dell'antico e bagliori del medioevo nel De doctrinachristiana di Agostino” in "De doctrina christiana" di Agostino d'Ippona, LectioAugustini. Settimana Agostiniana Pavese 11 (Roma 1995) 143-150.BERNSTEIN, Alan E., The Formation of Hell, Death and Retribution in the Ancientand Early Christian Worlds (London 1993).BESSNER, Wolfgang, Augustins Bekenntnisse als Erneuerung des Philosophierens. 13Vorlesungen zur Geschichte der Philosophie von Augustinus bis Boethius(Cuxhaven 1991).BOSIO, Guido & DAL COVOLO, Enrico & MARITANO, M., Introduzione ai padridella Chiesa (Torino 1995).BRUGGISSER, Philippe, “R<strong>em</strong>us conditor urbis, l'<strong>em</strong>pereur Maxence, le grammairien<strong>Ser</strong>vius et le théologien Augustin” in S. RATTI (ed.), Antiquité et citoyenneté.Actes du colloque international tenu à Besançon les 3, 4 et 5 nov<strong>em</strong>bre 1999 (Paris2002) 125-149.BRUNSCHICG, Léon, La raison et la religion (Paris 1939).BURNS, James Patout, “Ambrose Preaching to Augustine: The Shaping of Faith” inJ.C. SCHNAUBELT & F. VAN FLETEREN (ed.), Augustine: "Second Founder ofthe Faith" (New York 1990) 373-386.CALTABIANO, Matilde, “Rapporti tra le chiese d'Africa e la corte imperiale: alcuneriflessioni sulle lettere 19* e 22* di S. Agostino” in G. CRIFÒ & S. GIGLIO (dir.),Atti dell'Accad<strong>em</strong>ia romanistica costantiniana. XIII convegno internazionale inm<strong>em</strong>oria di André Chastagnol (Napoli 2001) 373-388.CAMERON, Alan, The Later Roman Empire, AD 284-430 (Cambridge, Mass. 1993).CAMPENHAUSEN, Hans von, Lateinische Kirchenväter (Stuttgart 1960, 7. Aufl.1995).CAVALCANTI, Elena, “Etica cristiana nei secoli III e IV: Principali el<strong>em</strong>enti distrutturazione” in L'etica cristiana nei secoli III e IV: eredità e confronti (Roma1996) 11-38.593


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