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memórias póstumas de brás cubas machado de assis ao verme que ...

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<strong>de</strong>z pessoas, entre elas três senhoras, -- minha irmã Sabina,casada com o Cotrim, -- a filha, um lírio-do-vale, -- e... Tenhampaciência! daqui a pouco lhes direi <strong>que</strong>m era a terceirasenhora. Contentem-se <strong>de</strong> saber <strong>que</strong> essa anônima, ainda <strong>que</strong>não parenta, pa<strong>de</strong>ceu mais do <strong>que</strong> as parentas. É verda<strong>de</strong>,pa<strong>de</strong>ceu mais. Não digo <strong>que</strong> se carpisse, não digo <strong>que</strong> se <strong>de</strong>ixasserolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisaaltamente dramática... Um solteirão <strong>que</strong> expira <strong>ao</strong>s sessentae quatro anos, não parece <strong>que</strong> reúna em si todos os elementos<strong>de</strong> uma tragédia. E dado <strong>que</strong> sim, o <strong>que</strong> menos convinhaa essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama,com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhoramal podia crer na minha extinção.- Morto! morto! dizia consigo.E a imaginação <strong>de</strong>la, como as cegonhas <strong>que</strong> um ilustreviajante viu <strong>de</strong>sferirem o vôo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Ilisso às ribas africanas,sem embargo das ruínas e dos tempos, -- a imaginação <strong>de</strong>ssasenhora também voou por sobre os <strong>de</strong>stroços presentes até àsribas <strong>de</strong> uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tar<strong>de</strong>;lá iremos quando eu me restituir <strong>ao</strong>s primeiros anos. Agora,<strong>que</strong>ro morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo ossoluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva <strong>que</strong>tamborila nas folhas <strong>de</strong> tinhorão da chácara, e o som estrídulo<strong>de</strong> uma navalha <strong>que</strong> um amolador está afiando lá fora, à porta<strong>de</strong> um correeiro. Juro-lhes <strong>que</strong> essa or<strong>que</strong>stra da morte foimuito menos triste do <strong>que</strong> podia parecer. De certo ponto emdiante chegou a ser <strong>de</strong>liciosa. A vida estrebuchava-me nopeito, com uns ímpetos <strong>de</strong> vaga marinha, esvaía-se-me a consciência,eu <strong>de</strong>scia à imobilida<strong>de</strong> física e moral, e o corpo fazia-se-meplanta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.Morri <strong>de</strong> uma pneumonia; mas se lhe disser <strong>que</strong> foi menos apneumonia, do <strong>que</strong> uma idéia grandiosa e útil, a causa da minhamorte, é possível <strong>que</strong> o leitor me não creia, e todavia é verda<strong>de</strong>.Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.CAPÍTULO 2O EmplastoCom efeito, um dia <strong>de</strong> manhã, estando a passear na chácara,pendurou-se-me uma idéia no trapézio <strong>que</strong> eu tinha nocérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, afazer as mais arrojadas cabriolas <strong>de</strong> volantim, <strong>que</strong> é possívelcrer. Eu <strong>de</strong>ixei-me estar a contemplá-la. Súbito, <strong>de</strong>u um gran<strong>de</strong>salto, esten<strong>de</strong>u os braços e as pernas, até tomar a forma <strong>de</strong>um X: <strong>de</strong>cifra-me ou <strong>de</strong>voro-te.Essa idéia era nada menos <strong>que</strong> a invenção <strong>de</strong> um medicamentosublime, um emplasto anti-hipocondríaco, <strong>de</strong>stinadoa aliviar a nossa melancólica humanida<strong>de</strong>. Na petição <strong>de</strong> privilégio<strong>que</strong> então redigi, chamei a atenção do governo para


esse resultado, verda<strong>de</strong>iramente cristão. Todavia, não neguei<strong>ao</strong>s amigos as vantagens pecuniárias <strong>que</strong> <strong>de</strong>viam resultar dadistribuição <strong>de</strong> um produto <strong>de</strong> tamanhos e tão profundos efeitos.Agora, porém, <strong>que</strong> estou cá do outro lado da vida, possoconfessar tudo: o <strong>que</strong> me influiu principalmente foi o gosto<strong>de</strong> ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas,e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: EmplastoBrás Cubas. Para <strong>que</strong> negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído,do cartaz, do foguete <strong>de</strong> lágrimas. Talvez os mo<strong>de</strong>stos me arguamesse <strong>de</strong>feito; fio, porém, <strong>que</strong> esse talento me hão <strong>de</strong> reconheceros hábeis; "...e eu era hábil." Assim, a minha idéiatrazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público,outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; <strong>de</strong> outrolado, se<strong>de</strong> <strong>de</strong> nomeada. Digamos: -- amor da glória.Um tio meu, cônego <strong>de</strong> prebenda inteira, costumava dizer<strong>que</strong> o amor da glória temporal era a perdição das almas,<strong>que</strong> só <strong>de</strong>vem cobiçar a glória eterna. Ao <strong>que</strong> retorquia outrotio, oficial <strong>de</strong> um dos antigos terços <strong>de</strong> infantaria, <strong>que</strong> o amorda glória era a coisa mais verda<strong>de</strong>iramente humana <strong>que</strong> háno homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto <strong>ao</strong>emplasto.CAPÍTULO 3GenealogiaMas, já <strong>que</strong> falei nos meus dois tios, <strong>de</strong>ixem-me fazer aquium curto esboço genealógico.O fundador <strong>de</strong> minha família foi um certo Damião Cubas,<strong>que</strong> floresceu na primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII. Eratanoeiro <strong>de</strong> ofício, natural do Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> teriamorrido na penúria e na obscurida<strong>de</strong>, se somente exercesse atanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutouo seu produto por boas e honradas patacas, até <strong>que</strong> morreu,<strong>de</strong>ixando grosso cabedal a um filho, o licenciado LuísCubas. Neste rapaz é <strong>que</strong> verda<strong>de</strong>iramente começa a série <strong>de</strong>meus avós -- dos avós <strong>que</strong> a minha família sempre confessou- por<strong>que</strong> o Damião Cubas era afinal <strong>de</strong> contas um tanoeiro,e talvez mau tanoeiro, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> o Luís Cubas estudou emCoimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particularesdo vice-rei con<strong>de</strong> da Cunha.Como este apelido <strong>de</strong> Cubas lhe cheirasse excessivamentea tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, <strong>que</strong> o ditoapelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da Africa,em prêmio da façanha <strong>que</strong> praticou arrebatando trezentas<strong>cubas</strong> <strong>ao</strong> mouros. Meu pai era homem <strong>de</strong> imaginação; escapouà tanoaria nas asas <strong>de</strong> um calembour. Era um bom cará-


ter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verda<strong>de</strong>,uns fumos <strong>de</strong> pacholice; mas <strong>que</strong>m não é um poucopachola nesse mundo? Releva notar <strong>que</strong> ele não recorreu àinventiva senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> experimentar a falsificação; primeiramente,entroncou-se na família da<strong>que</strong>le meu famoso homônimo,o capitão-mor Brás Cubas, <strong>que</strong> fundou a vila <strong>de</strong> SãoVicente, on<strong>de</strong> morreu em 1592, e por esse motivo é <strong>que</strong> me<strong>de</strong>u o nome <strong>de</strong> Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor,e foi então <strong>que</strong> ele imaginou as trezentas <strong>cubas</strong>mouriscas.Vivem ainda alguns membros <strong>de</strong> minha família, minhasobrinha Venância, por exemplo, o lírio-do-vale, <strong>que</strong> é a flordas damas do seu tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito <strong>que</strong>...Mas não antecipemos os sucessos; acabemos <strong>de</strong> uma vez como nosso emplasto.CAPÍTULO 4A Idéia FixaA minha idéia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantas cabriolas, constituíra-seidéia fixa. Deus te livre, leitor, <strong>de</strong> uma idéia fixa; antes umargueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéiafixa da unida<strong>de</strong> italiana <strong>que</strong> o matou. Verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> Bismarcknão morreu; mas cumpre advertir <strong>que</strong> a natureza é uma gran<strong>de</strong>caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo,Suetônio <strong>de</strong>u-nos um Cláudio, <strong>que</strong> era um "verda<strong>de</strong>iro banana",-- ou "uma abóbora" como lhe chamou Sêneca, e umTito, <strong>que</strong> mereceu ser as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> Roma. Veio mo<strong>de</strong>rnamenteum professor e achou meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar <strong>que</strong> ambosesses conceitos eram errôneos e abstrusos, e <strong>que</strong> dos doiscésares, o <strong>de</strong>licioso, o verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong>licioso, foi o "abóbora"<strong>de</strong> Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, seum poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu umGregorovius incrédulo <strong>que</strong> te apagou muito essa qualida<strong>de</strong>,e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu <strong>de</strong>ixo-meestar entre o poeta e o sábio.Viva pois a história, a volúvel história <strong>que</strong> dá para tudo;e, tomando à idéia fixa, direi <strong>que</strong> é ela a <strong>que</strong> faz os varõesfortes e os doidos; a idéia móbil, vaga ou furta-cor é a <strong>que</strong> fazos Cláudios, -- formula Suetônio.Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada<strong>que</strong> seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmi<strong>de</strong>sdo Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor acomparação <strong>que</strong> melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí atorcer-me o nariz, só por<strong>que</strong> ainda não chegamos à parte narrativa<strong>de</strong>stas <strong>memórias</strong>. Lá iremos. Creio <strong>que</strong> prefere a anedotaà reflexão, como os outros leitores, seus confra<strong>de</strong>s, e acho<strong>que</strong> faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer <strong>que</strong>


este livro é escrito com pachorra, com a pachorra <strong>de</strong> um homemjá <strong>de</strong>safrontado da brevida<strong>de</strong> do século, obra supinamentefilosófica, <strong>de</strong> uma filosofia <strong>de</strong>sigual, agora austera, logobrincalhona, coisa <strong>que</strong> não edifica nem <strong>de</strong>strói, não inflamanem regela, e é todavia mais do <strong>que</strong> passatempo e menos do<strong>que</strong> apostolado.Vamos lá; retifi<strong>que</strong> o seu nariz, e tornemos <strong>ao</strong> emplasto.Deixemos a história com os seus caprichos <strong>de</strong> dama elegante.Nenhum <strong>de</strong> nós pelejou a batalha <strong>de</strong> Salamina; nenhum escreveua confissão <strong>de</strong> Augsburgo; pela minha parte, se algumavez me lembro <strong>de</strong> Cromwell, é só pela idéia <strong>de</strong> <strong>que</strong> SuaAlteza, com a mesma mão <strong>que</strong> trancara o parlamento, teriaimposto <strong>ao</strong>s ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam <strong>de</strong>ssavitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem nãosabe <strong>que</strong> <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> cada ban<strong>de</strong>ira gran<strong>de</strong>, pública, ostensiva,há muitas vezes várias outras ban<strong>de</strong>iras mo<strong>de</strong>stamente particulares,<strong>que</strong> se hasteiam e flutuam à sombra da<strong>que</strong>la, com elacaem e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, écomo a arraia-miúda, <strong>que</strong> se acolhia à sombra do castelo-feudal;caiu este e a arraia ficou. Verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> se fez graúda ecastelã... Não, a comparação não presta.CAPÍTULO 5Em Que Aparece a Orelha <strong>de</strong> Uma SenhoraVai senão quando, estando eu ocupado em preparar eapurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe <strong>de</strong> ar;adoeci logo, e não me tratei. linha o emplasto no cérebro;trazia comigo a idéia fixa dos doidos e dos fortes. Via-me, <strong>ao</strong>longe, ascen<strong>de</strong>r do chão das turbas, e remontar <strong>ao</strong> céu, comouma águia imortal, e não é diante <strong>de</strong> tão excelso espetáculo<strong>que</strong> um homem po<strong>de</strong> sentir a dor <strong>que</strong> o punge. No outro diaestava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método,nem cuidado, nem persistência, tal foi a origem do mal<strong>que</strong> me trouxe à eternida<strong>de</strong>. Sabem já <strong>que</strong> morri numa sextafeira,dia aziago, e creio haver provado <strong>que</strong> foi a minha invenção<strong>que</strong> me matou. Há <strong>de</strong>monstrações menos lúcidas e nãomenos triunfantes.Não era impossível, entretanto, <strong>que</strong> eu chegasse a galgaro cimo <strong>de</strong> um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios.Tinha saú<strong>de</strong> e robustez. Supunha-se <strong>que</strong>, em vez <strong>de</strong>estar lançando os alicerces <strong>de</strong> uma invenção farmacêutica,tratava <strong>de</strong> coligir os elementos <strong>de</strong> uma instituição política, ou<strong>de</strong> uma reforma religiosa. Vinha a corrente <strong>de</strong> ar, <strong>que</strong> venceem eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Um sopro <strong>de</strong> arfoi portanto o meu grão <strong>de</strong> areia <strong>de</strong> Cromwell. Assim corre asorte dos homens.Com esta reflexão me <strong>de</strong>spedi eu da mulher, não direi maisdiscreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneassuas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imagi-


nação à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54anos, era uma ruína, uma imponente ruína. Imagine o leitor<strong>que</strong> nos amamos, ela e eu, muitos anos antes e <strong>que</strong> um dia, jáenfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...CAPÍTULO 6Chimène, qui L Eût Dit? Rodrigue,qui L'Eût Cru?Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada<strong>de</strong> preto, e ali ficar durante uns <strong>de</strong>z segundos, sem ânimo<strong>de</strong> entrar ou <strong>de</strong>tida pela presença <strong>de</strong> um homem <strong>que</strong> estavacomigo. Da cama, on<strong>de</strong> jazia, contemplei-a durante essetempo, es<strong>que</strong>cido <strong>de</strong> lhe dizer nada ou <strong>de</strong> fazer nenhum gesto.Havia já dois anos <strong>que</strong> nos não víamos, e eu via-a agoranão qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos, por<strong>que</strong> umEzequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis.Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado <strong>de</strong> pó,<strong>que</strong> a morte ia espalhar na eternida<strong>de</strong> do nada, pô<strong>de</strong> mais do<strong>que</strong> o tempo, <strong>que</strong> é o ministro da morte. Nenhuma água <strong>de</strong>Juventa igualaria ali a simples sauda<strong>de</strong>.Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie dafelicida<strong>de</strong> presente; há nela uma gota da baba <strong>de</strong> Caim. Corridoo tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez sepo<strong>de</strong> gozar <strong>de</strong>veras, por<strong>que</strong> entre uma e outra <strong>de</strong>ssas duas ilusões,melhor é a <strong>que</strong> se gosta sem doer.Não durou muito a evocação; a realida<strong>de</strong> dominou logo;o presente expediu o passado. Talvez eu exponha <strong>ao</strong> leitor, emalgum canto <strong>de</strong>ste livro, a minha teoria das edições humanas.O <strong>que</strong> por agora importa saber é <strong>que</strong> Virgília -- chamava-seVirgília -- entrou na alcova, firme, com a gravida<strong>de</strong> <strong>que</strong> lhedavam as roupas e os anos, e veio até o meu leito. O estranholevantou-se e saiu. Era um sujeito, <strong>que</strong> me visitava todos osdias para falar do câmbio, da colonização e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver a viação férrea; nada mais interessante para ummoribundo. Saiu; Virgília <strong>de</strong>ixou-se estar <strong>de</strong> pé; durante algumtempo ficamos a olhar um para o outro, sem articularpalavra. Quem diria? De dois gran<strong>de</strong>s namorados, <strong>de</strong> duaspaixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos <strong>de</strong>pois; haviaapenas dois corações murchos, <strong>de</strong>vastados pela vida e saciados<strong>de</strong>la, não sei se em igual dose, mas enfim saciados.Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal;estava menos magra do <strong>que</strong> quando a vi, pela últimavez, numa festa <strong>de</strong> São João, na Tijuca; e por<strong>que</strong> era das <strong>que</strong>resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar-se<strong>de</strong> alguns fios <strong>de</strong> prata.- Anda visitando os <strong>de</strong>funtos? disse-lhe eu.- Ora, <strong>de</strong>funtos! respon<strong>de</strong>u Virgília com um muxoxo.E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> me apertar as mãos: -- Ando a ver se ponho osvadios para a rua.


Não tinha a carícia lacrimosa <strong>de</strong> outro tempo; mas a vozera amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com umsimples enfermeiro; podíamos falar um <strong>ao</strong> outro, sem perigo.Virgília <strong>de</strong>u-me longas notícias <strong>de</strong> fora, narrando-as com graça,com um certo travo <strong>de</strong> má língua, <strong>que</strong> era o sal da palestra;eu, prestes a <strong>de</strong>ixar o mundo, sentia um prazer satânicoem mofar <strong>de</strong>le, em persuadir-me <strong>que</strong> não <strong>de</strong>ixava nada.- Que idéias essas! interrompeu-me Virgília um tantozangada. - Olhe <strong>que</strong> eu não volto mais, Morrer! Todos nóshavemos <strong>de</strong> morrer; basta estarmos vivos.E vendo o relógio:- Jesus! são três horas. Vou-me embora.- Já?- Já; virei amanhã ou <strong>de</strong>pois.- Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirãoe a casa não tem senhoras...- Sua mana?- Há <strong>de</strong> vir cá passar uns dias, mas não po<strong>de</strong> ser antes<strong>de</strong> sábado.Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e dissecom gravida<strong>de</strong>:- Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, paracortar dúvidas, virei com o Nhonhô.Nhonhô era um bacharel, único filho <strong>de</strong> seu casamento,<strong>que</strong>, na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cinco anos, fora cúmplice inconsciente <strong>de</strong>nossos amores. Vieram juntos, dois dias <strong>de</strong>pois, e confesso <strong>que</strong>,<strong>ao</strong> vê-los ali, na minha alcova, fui tomado <strong>de</strong> um acanhamento<strong>que</strong> nem me permitiu correspon<strong>de</strong>r logo às palavras afáveisdo rapaz. Virgília adivinhou-me e disse <strong>ao</strong> filho;- Nhonhô, não repares nesse gran<strong>de</strong> manhoso <strong>que</strong> aíestá; não <strong>que</strong>r falar para fazer crer <strong>que</strong> está à morte.Sorriu o filho, eu creio <strong>que</strong> também sorri, e tudo acabouem pura galhofa, Virgília estava serena e risonha, tinha o aspectodas vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhumgesto <strong>que</strong> pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>nunciar nada; uma igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> palavra e<strong>de</strong> espírito, uma dominação sobre si mesma, <strong>que</strong> pareciam etalvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amoresilegítimos, meio secretos, meio divulgados, via-a falar com<strong>de</strong>sdém e um pouco <strong>de</strong> indignação da mulher <strong>de</strong> <strong>que</strong> se tratava,aliás sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo a<strong>que</strong>lapalavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o <strong>que</strong>diriam <strong>de</strong> nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...Era o meu <strong>de</strong>lírio <strong>que</strong> começava.CAPÍTULO 7O DelírioQue me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio<strong>de</strong>lírio; faço-o eu, e a ciência mo agra<strong>de</strong>cerá. Se o leitor nãoé dado à contemplação <strong>de</strong>stes fenômenos mentais, po<strong>de</strong> sal-


tar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso<strong>que</strong> seja, sempre lhe digo <strong>que</strong> é interessante saber o <strong>que</strong> sepassou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos,Primeiramente, tomei a figura <strong>de</strong> um barbeiro chinês,bojudo, <strong>de</strong>stro, escanhoando um mandarim, <strong>que</strong> me pagav<strong>ao</strong> trabalho com beliscões e confeitos: caprichos <strong>de</strong> mandarim.Logo <strong>de</strong>pois, senti-me transformado na Summa Theologicae São Tomás, impressa num volume, e enca<strong>de</strong>rnada emmarroquim, com fechos <strong>de</strong> prata e estampas; idéia esta <strong>que</strong>me <strong>de</strong>u <strong>ao</strong> corpo a mais completa imobilida<strong>de</strong>; e ainda agorame lembra <strong>que</strong>, sendo as minhas mãos os fechos do livro, ecruzando-as eu sobre o ventre, alguém as <strong>de</strong>scruzava (Virgília<strong>de</strong>certo), por<strong>que</strong> a atitu<strong>de</strong> lhe dava a imagem <strong>de</strong> um <strong>de</strong>funto,Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo,<strong>que</strong> me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se pormedo ou confiança; mas, <strong>de</strong>ntro em pouco, a carreira <strong>de</strong> tal modose tomou vertiginosa, <strong>que</strong> me atrevia interrogá-lo, e com algumaarte lhe disse <strong>que</strong> a viagem me parecia sem <strong>de</strong>stino.- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dosséculos.Insinuei <strong>que</strong> <strong>de</strong>veria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamonão me enten<strong>de</strong>u ou não me ouviu, se é <strong>que</strong> não fingiu uma<strong>de</strong>ssas coisas; e, perguntando-lhe, visto <strong>que</strong> ele falava, se era<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte do cavalo <strong>de</strong> Aquiles ou da asna <strong>de</strong> Balaão, retorquiu-mecom um gesto peculiar a estes dois quadrúpe<strong>de</strong>s: abanouas orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e <strong>de</strong>ixei-me ir àventura. Já agora não se me dá <strong>de</strong> confessar <strong>que</strong> sentia umas taisou quais cócegas <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, por saber on<strong>de</strong> ficava a origemdos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudose valia alguma coisa mais ou menos do <strong>que</strong> a consumaçãodos mesmos séculos, tudo isto reflexões <strong>de</strong> um cérebro enfermo.Como ia <strong>de</strong> olhos fechados, não via o caminho; lembramesó <strong>que</strong> a sensação <strong>de</strong> frio aumentava com a jornada, e <strong>que</strong>chegou uma ocasião em <strong>que</strong> me pareceu entrar na região dos geloseternos. Com efeito, abri os olhos e vi <strong>que</strong> o meu animal galopavanuma planície branca <strong>de</strong> neve, com uma ou outra montanha<strong>de</strong> neve, vegetação <strong>de</strong> neve, e vários animais gran<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> neve.Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol <strong>de</strong> neve. Tentei falar, masapenas pu<strong>de</strong> grunhir esta pergunta ansiosa:- On<strong>de</strong> estamos?- Já passamos o É<strong>de</strong>n.- Bem; paremos na tenda <strong>de</strong> Abraão.- Mas se nós caminhamos para trás! redargüiu motejandoa minha cavalgadura.Fi<strong>que</strong>i vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-meenfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta,e o resultado impalpável. E <strong>de</strong>pois -- cogitações <strong>de</strong>enfermo -- dado <strong>que</strong> chegássemos <strong>ao</strong> fim indicado, não eraimpossível <strong>que</strong> os séculos, irritados com lhes <strong>de</strong>vassarem <strong>ao</strong>rigem, me esmagassem entre as unhas <strong>que</strong> <strong>de</strong>viam ser tãoseculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos <strong>de</strong>vo-


ando caminho, e a planície voava <strong>de</strong>baixo dos nossos pés,até <strong>que</strong> o animal estacou, e pu<strong>de</strong> olhar mais tranqüilamenteem tomo <strong>de</strong> mim. Olhar somente; nada vi, além da imensabrancura da neve, <strong>que</strong> <strong>de</strong>sta vez invadira o próprio céu, atéali azul. Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta,enorme, brutesca, meneando <strong>ao</strong> vento as suas largas folhas.O silêncio da<strong>que</strong>la região era igual <strong>ao</strong> do sepulcro: dissera-se<strong>que</strong> a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.Caiu do ar? <strong>de</strong>stacou-se da terra? não sei; sei <strong>que</strong> um vultoimenso, uma figura <strong>de</strong> mulher me apareceu então, fitando-meuns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinhaa vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensãodo olhar humano, por<strong>que</strong> os contornos perdiam-seno ambiente, e o <strong>que</strong> parecia espesso era muita vez diáfano.Estupefato, não disse nada, não cheguei se<strong>que</strong>r a soltar umgrito; mas, <strong>ao</strong> cabo <strong>de</strong> algum tempo, <strong>que</strong> foi breve, perguntei<strong>que</strong>m era e como se chamava: curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio.- Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tuainimiga.Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado<strong>de</strong> susto. A figura soltou uma gargalhada, <strong>que</strong> produziu emtorno <strong>de</strong> nós o efeito <strong>de</strong> um tufão; as plantas torceram-se eum longo gemido <strong>que</strong>brou a mu<strong>de</strong>z das coisas externas.- Não te assustes, disse ela, minha inimiza<strong>de</strong> não mata; ésobretudo pela vida <strong>que</strong> se afirma. Vives: não <strong>que</strong>ro outro flagelo.- Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos,como para certificar-me da existência.- Sim, <strong>verme</strong>, tu vives. Não receies per<strong>de</strong>r esse andrajo<strong>que</strong> é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pãoda dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo <strong>que</strong> ensan<strong>de</strong>ceste,vives; e se a tua consciência reouver um instante <strong>de</strong>sagacida<strong>de</strong>, tu dirás <strong>que</strong> <strong>que</strong>res viver.Dizendo isto, a visão esten<strong>de</strong>u o braço, segurou-me peloscabelos e levantou-me <strong>ao</strong> ar, como se fora uma simples pluma.Só então, pu<strong>de</strong> ver-lhe <strong>de</strong> perto o rosto, <strong>que</strong> era enorme.Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhumaexpressão <strong>de</strong> ódio ou ferocida<strong>de</strong>; a feição única, geral, completa,era a da impassibilida<strong>de</strong> egoísta, a da eterna sur<strong>de</strong>z, ada vonta<strong>de</strong> imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradasno coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto <strong>de</strong> expressão glacial,havia um ar <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, mescla <strong>de</strong> força e viço, diantedo qual me sentia eu o mais débil e <strong>de</strong>crépito dos seres.- Enten<strong>de</strong>ste-me? disse ela, no fim <strong>de</strong> algum tempo <strong>de</strong>mútua contemplação.- Não, respondi; nem <strong>que</strong>ro enten<strong>de</strong>r-te; tu és absurda,tu és uma fábula. Estou sonhando, <strong>de</strong>certo, ou, se é verda<strong>de</strong><strong>que</strong> enlou<strong>que</strong>ci, tu não passas <strong>de</strong> uma concepção <strong>de</strong> alienado,isto é, uma coisa vã, <strong>que</strong> a razão ausente não po<strong>de</strong> reger nempalpar. Natureza, tu? a Natureza <strong>que</strong> eu conheço é só mãe enão inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esserosto indiferente, como o sepulcro. E por <strong>que</strong> Pandora?


- Por<strong>que</strong> levo na minha bolsa os bens e os males, e omaior <strong>de</strong> todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?- Sim; o teu olhar fascina-me.- Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte,e tu estás prestes a <strong>de</strong>volver-me o <strong>que</strong> te emprestei. Gran<strong>de</strong>lascivo, espera-te a voluptuosida<strong>de</strong> do nada.Quando esta palavra ecoou, como um trovão, na<strong>que</strong>le imensovale, afigurou-se-me <strong>que</strong> era o último som <strong>que</strong> chegava a meusouvidos; pareceu-me sentir a <strong>de</strong>composição súbita <strong>de</strong> mim mesmo.Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.- Pobre minuto! exclamou. Para <strong>que</strong> <strong>que</strong>res tu mais algunsinstantes <strong>de</strong> vida! Para <strong>de</strong>vorar e seres <strong>de</strong>vorado <strong>de</strong>pois!Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces <strong>de</strong> sobejotudo o <strong>que</strong> eu te <strong>de</strong>parei menos torpe ou menos aflitivo: oalvor do dia, a melancolia da tar<strong>de</strong>, a quietação da noite, osaspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhasmãos. Que mais <strong>que</strong>res tu, sublime idiota?- Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôsno coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida,por <strong>que</strong> te hás <strong>de</strong> golpear a ti mesma, matando-me?- Por<strong>que</strong> já não preciso <strong>de</strong> ti. Não importa <strong>ao</strong> tempo ominuto <strong>que</strong> passa, mas o minuto <strong>que</strong> vem. O minuto <strong>que</strong> vemé forte, jocundo, supõe trazer em si a eternida<strong>de</strong>, e traz a morte,e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizestu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação.A onça mata o novilho por<strong>que</strong> o raciocínio da onça é <strong>que</strong> ela<strong>de</strong>ve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatutouniversal. Sobe e olha.Isto dizendo, arrebatou-me <strong>ao</strong> alto <strong>de</strong> uma montanha. Inclineios olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempolargo, <strong>ao</strong> longe, através <strong>de</strong> um nevoeiro, uma coisa única.Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um <strong>de</strong>sfilar <strong>de</strong> todoseles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios,a guerra dos apetites e dos ódios, a <strong>de</strong>struição recíproca dos serese das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. Ahistória do homem e da terra tinha assim uma intensida<strong>de</strong> <strong>que</strong>lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, por<strong>que</strong> aciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto <strong>que</strong> o<strong>que</strong> eu ali via era a con<strong>de</strong>nsação viva <strong>de</strong> todos os tempos. Para<strong>de</strong>screvê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos <strong>de</strong>sfilavamnum turbilhão, e, não obstante, por<strong>que</strong> os olhos do <strong>de</strong>líriosão outros, eu via tudo o <strong>que</strong> passava diante <strong>de</strong> mim, -- flagelose <strong>de</strong>lícias, -- <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa coisa <strong>que</strong> se chama glória até essa outra<strong>que</strong> se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e viaa miséria agravando a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. Aí vinham a cobiça <strong>que</strong> <strong>de</strong>vora,a cólera <strong>que</strong> inflama, a inveja <strong>que</strong> baba, e a enxada e a pena,úmidas <strong>de</strong> suor, e a ambição, a fome, a vaida<strong>de</strong>, a melancolia, ari<strong>que</strong>za, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho,até <strong>de</strong>struí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias <strong>de</strong> ummal, <strong>que</strong> ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeavaeternamente as suas vestes <strong>de</strong> arlequim, em <strong>de</strong>rredor da


espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença,<strong>que</strong> era um sono sem sonhos, ou <strong>ao</strong> prazer, <strong>que</strong> era uma dorbastarda. Então o homem, flagelado e rebel<strong>de</strong>, corria diante dafatalida<strong>de</strong> das coisas, atrás <strong>de</strong> uma figura nebulosa e esquiva, feita<strong>de</strong> retalhos, um retalho <strong>de</strong> impalpável, outro <strong>de</strong> improvável,outro <strong>de</strong> invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulhada imaginação; e essa figura, -- nada menos <strong>que</strong> a quimera dafelicida<strong>de</strong>, -- ou lhe fugia perpetuamente, ou <strong>de</strong>ixava-se apanharpela fralda, e o homem a cingia <strong>ao</strong> peito, e então ela ria,como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.Ao contemplar tanta calamida<strong>de</strong>, não pu<strong>de</strong> reter um grito<strong>de</strong> angústia, <strong>que</strong> Natureza ou Pandora escutou sem protestarnem rir; e não sei por <strong>que</strong> lei <strong>de</strong> transtorno cerebral, fui eu<strong>que</strong> me pus a rir, -- <strong>de</strong> um riso <strong>de</strong>scompassado e idiota.-- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena,-- talvez monótona -- mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoav<strong>ao</strong> dia em <strong>que</strong> fora concebido, é por<strong>que</strong> lhe davam ganas<strong>de</strong> ver cá <strong>de</strong> cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre oventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me.A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo,e a ver os séculos <strong>que</strong> continuavam a passar, velozes e turbulentos,as gerações <strong>que</strong> se superpunham às gerações, umas tristes,como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os <strong>de</strong>vassos<strong>de</strong> Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir,mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo:-- "Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passarátambém, até o último, <strong>que</strong> me dará a <strong>de</strong>cifração da eternida<strong>de</strong>."E fixei os olhos, e continuei a ver as ida<strong>de</strong>s, <strong>que</strong> vinhamchegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei atése alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção <strong>de</strong> sombrae <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong> apatia e <strong>de</strong> combate, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> erro, e oseu cortejo <strong>de</strong> sistemas, <strong>de</strong> idéias novas, <strong>de</strong> novas ilusões; emcada um <strong>de</strong>les rebentavam as verduras <strong>de</strong> uma primavera, eamareleciam <strong>de</strong>pois, para remoçar mais tar<strong>de</strong>. Ao passo <strong>que</strong> avida tinha assim uma regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> calendário, faziam-se ahistória e a civilização, e o homem, nu e <strong>de</strong>sarmado, armava-see vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a ru<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia e Tebas<strong>de</strong> cem portas, criava a ciência, <strong>que</strong> perscruta, e a arte <strong>que</strong>enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo,<strong>de</strong>scia <strong>ao</strong> ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborandoassim na obra misteriosa, com <strong>que</strong> entretinha a necessida<strong>de</strong>da vida e a melancolia do <strong>de</strong>samparo. Meu olhar,enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás<strong>de</strong>le os futuros. A<strong>que</strong>le vinha ágil, <strong>de</strong>stro, vibrante, cheio <strong>de</strong> si,um pouco difuso, audaz, sabedor, mas <strong>ao</strong> cabo tão miserávelcomo os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros,com a mesma rapi<strong>de</strong>z e igual monotonia. Redobrei <strong>de</strong> atenção;fitei a vista; ia enfim ver o último, -- o último!; mas então já arapi<strong>de</strong>z da marcha era tal, <strong>que</strong> escapava a toda a compreensão;<strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>la o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraramos objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros mingua-


am, outros per<strong>de</strong>ram-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo-- menos o hipopótamo <strong>que</strong> ali me trouxera, e <strong>que</strong> aliás começoua diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho <strong>de</strong>um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meugato Sultão, <strong>que</strong> brincava à porta da alcova, com uma bola <strong>de</strong>papel...CAPÍTULO 8Razão Contra SandiceJá o leitor compreen<strong>de</strong>u <strong>que</strong> era a Razão <strong>que</strong> voltava àcasa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhorjus, as palavras <strong>de</strong> Tartufo:La maison est à moi, c'est à vous d'' sortir.Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias,<strong>de</strong> modo <strong>que</strong>, apenas senhora <strong>de</strong> uma, dificilmente lhafarão <strong>de</strong>spejar. É sestro; não se tira daí; há muito <strong>que</strong> lhecalejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número<strong>de</strong> casas <strong>que</strong> ocupa, umas <strong>de</strong> vez, outras durante as suasestações calmosas, concluiremos <strong>que</strong> esta amável peregrinaé o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase umdistúrbio à porta do meu cérebro, por<strong>que</strong> a adventícia não<strong>que</strong>ria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção <strong>de</strong>tomar o <strong>que</strong> era seu. Afinal, já a Sandice se contentava comum cantinho no sótão.-- Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada <strong>de</strong> lhece<strong>de</strong>r sótãos, cansada e experimentada, o <strong>que</strong> você <strong>que</strong>r épassar mansamente do sótão à sala <strong>de</strong> jantar, daí à <strong>de</strong> visitas e<strong>ao</strong> resto.-- Está bem, <strong>de</strong>ixe-me ficar algum tempo mais, estou napista <strong>de</strong> um mistério...-- Que mistério?-- De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte;peço-lhe só uns <strong>de</strong>z minutos.A Razão pôs-se a rir.-- Hás <strong>de</strong> ser sempre a mesma coisa... sempre a mesmacoisa... sempre a mesma coisa".E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a parafora; <strong>de</strong>pois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumassúplicas, ainda grunhiu algumas zangas; mas <strong>de</strong>senganou-se<strong>de</strong>pressa, <strong>de</strong>itou a língua <strong>de</strong> fora, em ar <strong>de</strong> surriada, efoi andando... foi andando... Provavelmente andará até aconsumação dos séculos.CAPÍTULO 9


TransiçãoE vejam agora com <strong>que</strong> <strong>de</strong>streza, com <strong>que</strong> fina arte façoeu a maior transição <strong>de</strong>ste livro. Vejam: o meu <strong>de</strong>lírio começouem presença <strong>de</strong> Virgília; Virgília foi o meu grão-pecadoda juventu<strong>de</strong>; não há juventu<strong>de</strong> sem meninice; meninice supõenascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço,<strong>ao</strong> dia 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1805, em <strong>que</strong> nasci. Viram? Nenhumajuntura aparente, nada <strong>que</strong> divirta a atenção pausada doleitor: nada. De modo <strong>que</strong> o livro fica assim com todas asvantagens do método, sem a rigi<strong>de</strong>z do método. Na verda<strong>de</strong>,era tempo. Que isto <strong>de</strong> método, sendo, como é, uma coisaindispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios,mas um pouco à fresca e à solta, como <strong>que</strong>m nãose lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor <strong>de</strong> quarteirão.E como a eloqüência, <strong>que</strong> há uma genuína e vibrante, <strong>de</strong> umaarte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha.Vamos <strong>ao</strong> dia 20 <strong>de</strong> outubro.CAPÍTULO 10Na<strong>que</strong>le Dia...Na<strong>que</strong>le dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor.Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteiraminhota, <strong>que</strong> se gabava <strong>de</strong> ter aberto a porta do mundo a umageração inteira <strong>de</strong> fidalgos. Não é impossível <strong>que</strong> meu pai lheouvisse tal <strong>de</strong>claração; creio, todavia, <strong>que</strong> o sentimento paternoé <strong>que</strong> o induziu a gratificá-la com duas meias dobras.Lavado e enfaixado, fui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo o herói da nossa casa. Cadaqual prognosticava a meu respeito o <strong>que</strong> mais lhe quadrava<strong>ao</strong> sabor. Meu tio João, o antigo oficial <strong>de</strong> infantaria, achavameum certo olhar <strong>de</strong> Bonaparte, coisa <strong>que</strong> meu pai não pô<strong>de</strong>ouvir sem náuseas; meu tio Il<strong>de</strong>fonso, então simples padre,farejava-me cônego.- Cônego é o <strong>que</strong> ele há <strong>de</strong> ser, e não digo mais por nãoparecer orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o <strong>de</strong>stinassea um bispado... E verda<strong>de</strong>, um bispado; não é coisa impossível.Que diz você, mano Bento?Meu pai respondia a todos <strong>que</strong> eu seria o <strong>que</strong> Deus quisesse;e alçava-me <strong>ao</strong> ar, como se intentasse mostrar-me à cida<strong>de</strong>e <strong>ao</strong> mundo; perguntava a todos se eu me parecia comele, se era inteligente, bonito...Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos<strong>de</strong>pois; ignoro a mor parte dos pormenores da<strong>que</strong>le famosodia. Sei <strong>que</strong> a vizinhança veio ou mandou cumprimentar orecém-nascido, e <strong>que</strong> durante as primeiras semanas muitasforam as visitas em nossa casa. Não houve ca<strong>de</strong>irinha <strong>que</strong> nãotrabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção. E se não


conto os mimos, os beijos, as admirações, as bênçãos, é por<strong>que</strong>,se os contasse, não acabaria mais o capítulo, e é precisoacabá-lo.Item, não posso dizer nada do meu batizado, por<strong>que</strong> nadame referiram a tal respeito, a não ser <strong>que</strong> foi uma das maisgalhardas festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na Igreja<strong>de</strong> São Domingos, uma terça-feira <strong>de</strong> março, dia claro, luminosoe puro, sendo padrinhos o Coronel Rodrigues <strong>de</strong> Matose sua senhora. Um e outro <strong>de</strong>scendiam <strong>de</strong> velhas famílias doNorte e honravam <strong>de</strong>veras o sangue <strong>que</strong> lhes corria nas veias,outrora <strong>de</strong>rramado na guerra contra Holanda. Cuido <strong>que</strong> osnomes <strong>de</strong> ambos foram das primeiras coisas <strong>que</strong> aprendi; ecertamente os dizia com muita graça, ou revelava algum talentoprecoce, por<strong>que</strong> não havia pessoa estranha diante <strong>de</strong><strong>que</strong>m me não obrigassem a recitá-los.- Nhonhô, diga a estes senhores como é <strong>que</strong> se chamaseu padrinho.- Meu padrinho? é o Coronel Paulo Vaz Lobo César <strong>de</strong>Andra<strong>de</strong> e Sousa Rodrigues <strong>de</strong> Matos; minha madrinha é aExcelentíssima Senhora Dona Mana Luisa <strong>de</strong> Macedo Resen<strong>de</strong>e Sousa Rodrigues <strong>de</strong> Matos.- E muito esperto o seu menino, comentavam os ouvintes.- Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe<strong>de</strong> orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minhacabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio <strong>de</strong> si.Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes dotempo. Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo aagarrar às ca<strong>de</strong>iras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos<strong>de</strong> pau. - Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. Eeu, atraído pelo chocalho <strong>de</strong> lata, <strong>que</strong> minha mãe agitava diante<strong>de</strong> mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava,provavelmente mal, mas andava, e fi<strong>que</strong>i andando.CAPÍTULO 11O Menino É Pai do HomemCresci; e nisso é <strong>que</strong> a família não interveio; cresci naturalmente,como crescem as magnólias e os gatos. Talvez osgatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias sãomenos inquietas do <strong>que</strong> eu era na minha infância. Um poetadizia <strong>que</strong> o menino é pai do homem. Se isto é verda<strong>de</strong>, vejamosalguns lineamentos do menino.Des<strong>de</strong> os cinco anos merecera eu a alcunha <strong>de</strong> "meninodiabo"; e verda<strong>de</strong>iramente não era outra coisa; fui dos maismalignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso..Por exemplo, um dia <strong>que</strong>brei a cabeça <strong>de</strong> uma escrava,por<strong>que</strong> me negara uma colher do doce <strong>de</strong> coco <strong>que</strong>


estava fazendo, e, não contente com o malefício, <strong>de</strong>itei umpunhado <strong>de</strong> cinza <strong>ao</strong> tacho, e, não satisfeito da travessura, fuidizer à minha mãe <strong>que</strong> a escrava é <strong>que</strong> estragara o doce "porpirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um mole<strong>que</strong><strong>de</strong> casa, era o meu cavalo <strong>de</strong> todos os dias; punha as mãos nochão, recebia um cor<strong>de</strong>l nos <strong>que</strong>ixas, à guisa <strong>de</strong> freio, eu trepava-lhe<strong>ao</strong> dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, davamil voltas a um e outro lado, e ele obe<strong>de</strong>cia, - algumas vezesgemendo, - mas obe<strong>de</strong>cia sem dizer palavra, ou, quandomuito, um - "ai, nhonhô!" - <strong>ao</strong> <strong>que</strong> eu retorquia: - "Calaa boca, besta!" - Escon<strong>de</strong>r os chapéus das visitas, <strong>de</strong>itar rabos<strong>de</strong> papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras,dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitasfaçanhas <strong>de</strong>ste jaez, eram mostras <strong>de</strong> um gênio indócil, mas<strong>de</strong>vo crer <strong>que</strong> eram também expressões <strong>de</strong> um espírito robusto,por<strong>que</strong> meu pai tinha-me em gran<strong>de</strong> admiração; e se àsvezes me repreendia, à vista <strong>de</strong> gente, fazia-o por simples formalida<strong>de</strong>:em particular dava-me beijos.Não se conclua daqui <strong>que</strong> eu levasse todo o resto da minhavida a <strong>que</strong>brar a cabeça dos outros nem a escon<strong>de</strong>r-lhesos chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor doshomens, isso fui; se não passei o tempo a escon<strong>de</strong>r-lhes oschapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras.Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana,inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la porpartes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas <strong>ao</strong>sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-mea seu modo, fazia-me <strong>de</strong>corar alguns preceitos e orações; maseu sentia <strong>que</strong>, mais do <strong>que</strong> as orações, me governavam osnervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, <strong>que</strong> a fazviver, para se tomar uma vã fórmula. De manhã, antes domingau, e <strong>de</strong> noite, antes da cama, pedia a Deus <strong>que</strong> me perdoasse,assim como eu perdoava <strong>ao</strong>s meus <strong>de</strong>vedores; masentre a manhã e a noite fazia uma gran<strong>de</strong> malda<strong>de</strong>, e meu pai,passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamavaa rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!Sim, meu pai adorava-me. Tinha-me esse amor sem mérito,<strong>que</strong> é um simples e forte impulso da carne; amor <strong>que</strong> arazão não contrasta nem rege. Minha mãe era uma senhorafraca, <strong>de</strong> pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramentepiedosa, - caseira, apesar <strong>de</strong> bonita, e mo<strong>de</strong>sta,apesar <strong>de</strong> abastada; temente às trovoadas e <strong>ao</strong> mando. Omarido era na Terra o seu <strong>de</strong>us. Da colaboração <strong>de</strong>ssas duascriaturas nasceu a minha educação, <strong>que</strong>, se tinha alguma coisaboa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa.Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos <strong>ao</strong> irmão;dizia-lhe <strong>que</strong> ele me dava mais liberda<strong>de</strong> do <strong>que</strong> ensino e maisafeição do <strong>que</strong> emenda; mas meu pai respondia <strong>que</strong> aplicavana minha educação um sistema inteiramente superior <strong>ao</strong> sistemausado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludiasea si próprio.


Havia em minha mãe uma sombra <strong>de</strong> melancolia, <strong>que</strong>eu her<strong>de</strong>i, como her<strong>de</strong>i <strong>de</strong> meu pai a fatuida<strong>de</strong>. Os aspectosda vida acrescentavam-lhe a natural tendência. Tinhacoração <strong>de</strong>mais, uma sensibilida<strong>de</strong> melindrosa, exigente,doentia.De envolta com a transmissão e a educação, houve aind<strong>ao</strong> exemplo estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamosos tios. Um <strong>de</strong>les, o João, era um homem <strong>de</strong> línguasolta, vida galante, conversa picaresca. Des<strong>de</strong> os onze anosentrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas<strong>de</strong> obscenida<strong>de</strong> ou imundície. Não me respeitava a adolescência,como não respeitava a batina do irmão; com a diferença<strong>que</strong> este fugia logo <strong>que</strong> ele enveredava por assuntoescabroso. Eu não; <strong>de</strong>ixava-me estar, sem enten<strong>de</strong>r nada, aprincípio, <strong>de</strong>pois enten<strong>de</strong>ndo e enfim achando-lhe graça. Nofim <strong>de</strong> certo tempo, <strong>que</strong>m o procurava era eu; e ele gostavamuito <strong>de</strong> mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa,quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceuachá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrarcom as escravas <strong>que</strong> batiam roupa; e aí é <strong>que</strong> era um <strong>de</strong>sfiar<strong>de</strong> anedotas, <strong>de</strong> ditos, <strong>de</strong> perguntas, e um estalar <strong>de</strong> risadas,<strong>que</strong> ninguém podia ouvir, por<strong>que</strong> o lavadouro ficava muitolonge <strong>de</strong> casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhesum palmo dos vestidos, umas <strong>de</strong>ntro do tan<strong>que</strong>,outras fora, inclinadas sobre as peças <strong>de</strong> roupa, a batê-las, aensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às pilhériasdo tio João, e a comentá-las <strong>de</strong> quando em quandocom esta palavra:- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austerida<strong>de</strong>e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espíritosuperior, apenas compensavam um espírito medíocre. Nãoera homem <strong>que</strong> visse a parte substancial da Igreja; via o ladoexterno, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, ascircunflexões. Vinha antes da sacristia <strong>que</strong> do altar. Uma lacunano ritual excitava-o mais do <strong>que</strong> uma infração dos mandamentos.Agora, a tantos anos <strong>de</strong> distância, não estou certose ele po<strong>de</strong>ria atinar facilmente com um trecho <strong>de</strong> Tertuliano,ou expor, sem titubear, a história do símbolo <strong>de</strong> Nicéia; masninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e casodas cortesias <strong>que</strong> se <strong>de</strong>viam <strong>ao</strong> oficiante. Cônego foi a únicaambição <strong>de</strong> sua vida; e dizia <strong>de</strong> coração <strong>que</strong> era a maior dignida<strong>de</strong>a <strong>que</strong> podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes,minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno,possuía algumas virtu<strong>de</strong>s, em <strong>que</strong> era exemplar, mascarecia absolutamente da força <strong>de</strong> as incutir, <strong>de</strong> as impor <strong>ao</strong>soutros.Não digo nada <strong>de</strong> minha tia materna, Dona Emerenciana,e aliás era a pessoa <strong>que</strong> mais autorida<strong>de</strong> tinha sobre mim; essadiferençava-se gran<strong>de</strong>mente dos outros; mas viveu pouco tempoem nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e


alguns íntimos não merecem a pena <strong>de</strong> ser citados; não tivemosuma vida comum, mas intermitente, com gran<strong>de</strong>s claros<strong>de</strong> separação. O <strong>que</strong> importa é a expressão geral do meio doméstico,e essa aí fica indicada, - vulgarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracteres,amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vonta<strong>de</strong>,domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e <strong>de</strong>sse estrumeé <strong>que</strong> nasceu esta flor.CAPÍTULO 12Um Episódio <strong>de</strong> 1814Mas eu não <strong>que</strong>ro passar adiante, sem contar sumariamenteum galante episódio <strong>de</strong> 1814; tinha nove anos.Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendorda glória e do po<strong>de</strong>r; era imperador e granjeara inteiramentea admiração dos homens. Meu pai, <strong>que</strong> à força <strong>de</strong> persuadiros outros da nossa nobreza acabara persuadindo-se a sipróprio, nutria contra ele um ódio puramente mental. Era issomotivo <strong>de</strong> renhidas contendas em nossa casa, por<strong>que</strong> meu tioJoão, não sei se por espírito <strong>de</strong> classe e simpatia <strong>de</strong> oficio,perdoava no déspota o <strong>que</strong> admirava no general, meu tio padreera inflexível contra o corso, os outros parentes dividiamse;daí as controvérsias e as rusgas.Chegando <strong>ao</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro a notícia da primeira <strong>que</strong>da<strong>de</strong> Napoleão, houve naturalmente gran<strong>de</strong> abalo em nossa casa,mas nenhum chasco ou remo<strong>que</strong>. Os vencidos, testemunhasdo regozijo público, julgaram mais <strong>de</strong>coroso o silêncio; algunsforam além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre,não regateou <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> afeto à real família; houveiluminações, salvas, Te Deum, cortejo e aclamações. Figureinesses dias com um espadim novo, <strong>que</strong> meu padrinho me <strong>de</strong>rano dia <strong>de</strong> Santo Antônio; e, francamente, interessava-me maiso espadim do <strong>que</strong> a <strong>que</strong>da <strong>de</strong> Bonaparte. Nunca me es<strong>que</strong>ceuesse fenômeno. Nunca mais <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> pensar comigo <strong>que</strong> o nossoespadim é sempre maior do <strong>que</strong> a espada <strong>de</strong> Napoleão. E notem<strong>que</strong> eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita páginarumorosa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s idéias e maiores palavras, mas nãosei por <strong>que</strong>, no fundo dos aplausos <strong>que</strong> me arrancavam da boca,lá ecoava alguma vez este conceito <strong>de</strong> experimentado:- Vai-te embora, tu só cuidas do espadim.Não se contentou a minha família em ter um quinhãoanônimo no regozijo público; enten<strong>de</strong>u oportuno e indispensávelcelebrar a <strong>de</strong>stituição do imperador com um jantar, e taljantar <strong>que</strong> o ruído das aclamações chegasse <strong>ao</strong>s ouvidos <strong>de</strong>Sua Alteza, ou quando menos, <strong>de</strong> seus ministros. Dito e feito.Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô LuísCubas; vieram as toalhas <strong>de</strong> Flandres, as gran<strong>de</strong>s jarras daÍndia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres <strong>de</strong>Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se,poliram-se as salas, escadas, castiçais, aran<strong>de</strong>las, as vastas


mangas <strong>de</strong> vidro, todos os aparelhos do luxo clássico.Dada a hora, achou-se reunida uma socieda<strong>de</strong> seleta, o juiz<strong>de</strong> fora, três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantese letrados, vários funcionários da administração, uns com suasmulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> atolar a memória <strong>de</strong> Bonaparte no papo <strong>de</strong> um peru.Não era um jantar, mas um Te Deum, foi o <strong>que</strong> pouco mais oumenos disse um dos letrados presentes, o Doutor Vilaça, glosadorinsigne, <strong>que</strong> acrescentou <strong>ao</strong>s pratos <strong>de</strong> casa o acepipe dasmusas. Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me <strong>de</strong> o vererguer-se, com a sua longa cabeleira <strong>de</strong> rabicho, casaca <strong>de</strong> seda,uma esmeralda no <strong>de</strong>do, pedir a meu tio padre <strong>que</strong> lhe repetisseo mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa <strong>de</strong> umasenhora, <strong>de</strong>pois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menoso <strong>de</strong>do índice, <strong>que</strong> apontava para o teto; e, assim posto e composto,<strong>de</strong>volver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três;<strong>de</strong>pois jurou <strong>ao</strong>s seus <strong>de</strong>uses não acabar mais. Pedia um mote,davam-lho, ele glosava-o prontamente, e logo pedia outro e maisoutro; a tal ponto <strong>que</strong> uma das senhoras presentes não pô<strong>de</strong>calar a sua gran<strong>de</strong> admiração.- A senhora diz isso, retorquia mo<strong>de</strong>stamente o Vilaça,por<strong>que</strong> nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século,em Lisboa. Aquilo sim! <strong>que</strong> facilida<strong>de</strong>! e <strong>que</strong> versos! Tivemoslutas <strong>de</strong> uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos,no meio <strong>de</strong> palmas e bravos. Imenso talento o do Bocage!Era o <strong>que</strong> me dizia, há dias, a Senhora du<strong>que</strong>sa <strong>de</strong> Cadaval...E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase,produziram em toda a assembléia um frêmito <strong>de</strong> admiração epasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além <strong>de</strong> pleitearcom poetas, discreteava com du<strong>que</strong>sas! Um Bocage e umaCadaval! Ao contato <strong>de</strong> tal homem, as damas sentiam-sesuperfinas; os varões olhavam-no com respeito, alguns cominveja, não raros com incredulida<strong>de</strong>. Ele, entretanto, ia caminho,a acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio sobre advérbio,a <strong>de</strong>sfiar todas as rimas <strong>de</strong> tirano e <strong>de</strong> usurpador. Era àsobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas,corria um burburinho alegre, um palavrear <strong>de</strong> estômagossatisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-seou saltitavam <strong>de</strong> uma ponta à outra da mesa, atulhada<strong>de</strong> doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão emtalhadas, as compoteiras <strong>de</strong> cristal <strong>de</strong>ixando ver o doce <strong>de</strong> coco,finamente ralado, amarelo como uma gema, - ou então omelado escuro e grosso, não longe do <strong>que</strong>ijo e do cará. De quandoem quando um riso jovial, amplo, <strong>de</strong>sabotoado, um riso <strong>de</strong>família, vinha <strong>que</strong>brar a gravida<strong>de</strong> política do ban<strong>que</strong>te. Nomeio do interesse gran<strong>de</strong> e comum, agitavam-se também os pe<strong>que</strong>nose particulares. As moças falavam das modinhas <strong>que</strong>haviam <strong>de</strong> cantar <strong>ao</strong> cravo, e do minuete e do solo inglês; nemfaltava matrona <strong>que</strong> prometesse bailar um oitavado <strong>de</strong> compasso,só para mostrar como folgara nos seus bons tempos <strong>de</strong>criança. Um sujeito, <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> mim, dava a outro notícia recen-


te dos negros novos, <strong>que</strong> estavam a vir, segundo cartas <strong>que</strong> recebera<strong>de</strong> Luanda, uma carta em <strong>que</strong> o sobrinho lhe dizia ter jánegociado cerca <strong>de</strong> quarenta cabeças, e outra carta em <strong>que</strong>...Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler na<strong>que</strong>l<strong>ao</strong>casião. O <strong>que</strong> afiançava é <strong>que</strong> podíamos contar, só nessa viagem,uns cento e vinte negros, pelo menos.- Trás... trás... trás... fazia o Vilaça batendo com as mãosuma na outra. O rumor cessava <strong>de</strong> súbito, como um estacado<strong>de</strong> or<strong>que</strong>stra, e todos os olhos se voltavam para o glosador.Quem ficava longe aconcheava a mão atrás da orelha paranão per<strong>de</strong>r palavra; a mor parte, antes mesmo da glosa, tinhajá um meio riso <strong>de</strong> aplauso, trivial e cândido.Quanto a mim, lá estava, solitário e <strong>de</strong>slembrado, a namoraruma certa compota da minha feição. No fim <strong>de</strong> cada glosaficava muito contente, esperando <strong>que</strong> fosse a última, mas nãoera, e a sobremesa continuava intacta. Ninguém se lembrava<strong>de</strong> dar a primeira voz. Meu pai, à cabeceira, saboreava a golesextensos a alegria dos convivas, mirava-se todo nos carões alegres,nos pratos, nas flores, <strong>de</strong>liciava-se com a familiarida<strong>de</strong>travada entre os mais distantes espíritos, influxo <strong>de</strong> um bomjantar. Eu via isso, por<strong>que</strong> arrastava os olhos da compota paraele e <strong>de</strong>le para a compota, como a pedir-lhe <strong>que</strong> ma servisse;mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E asglosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a recolhero <strong>de</strong>sejo e o pedido. Pacientei quanto pu<strong>de</strong>; e não pu<strong>de</strong>muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bra<strong>de</strong>i, berrei, bati comos pés. Meu pai, <strong>que</strong> seria capaz <strong>de</strong> me dar o sol, se eu lho exigisse,chamou um escravo para me servir o doce; mas era tar<strong>de</strong>.A tia Emerenciana arrancara-me da ca<strong>de</strong>ira e entregara-me auma escrava, não obstante os meus gritos e repelões.Não foi outro o <strong>de</strong>lito do glosador: retardara a compota e<strong>de</strong>ra causa à minha exclusão. Tanto bastou para <strong>que</strong> eu cogitasseuma vingança, qual<strong>que</strong>r <strong>que</strong> fosse, mas gran<strong>de</strong> e exemplar,coisa <strong>que</strong> <strong>de</strong> alguma maneira o tomasse ridículo. Queele era um homem grave o Doutor Vilaça, medido e lento,quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo<strong>de</strong> papel nem o rabicho da cabeleira; havia <strong>de</strong> ser coisa pior.Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tar<strong>de</strong>, a segui-lo, nachácara <strong>ao</strong>n<strong>de</strong> todos <strong>de</strong>sceram a passear. Vio-o conversar comDona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robustadonzelona, <strong>que</strong> se não era bonita, também não era feia.- Estou muito zangada com o senhor, dizia ela.- Porquê?- Por<strong>que</strong>... não sei por <strong>que</strong>... por<strong>que</strong> é a minha sina...creio às vezes <strong>que</strong> é melhor morrer...Tinham penetrado numa pe<strong>que</strong>na moita; era lusco-fusco;eu segui-os. O Vilaça levava nos olhos umas chispas <strong>de</strong>vinho e <strong>de</strong> volúpia.- Deixe-me, disse ela.- Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias sãoessas! Você sabe <strong>que</strong> eu morrerei também... <strong>que</strong> digo?... mor-


o todos os dias, <strong>de</strong> paixão, <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s...Dona Eusébia levou o lenço <strong>ao</strong>s olhos. O glosador vasculhavana memória algum pedaço literário e achou este, <strong>que</strong>mais tar<strong>de</strong> verifi<strong>que</strong>i ser <strong>de</strong> uma das óperas do Ju<strong>de</strong>u:- Não chores, meu bem; não <strong>que</strong>iras <strong>que</strong> o dia amanheçacom duas auroras.Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas<strong>de</strong>ixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito <strong>ao</strong> <strong>de</strong>leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.- O Doutor Vilaça <strong>de</strong>u um beijo em Dona Eusébia! bra<strong>de</strong>ieu correndo pela chácara. Foi um estouro esta minha palavra;a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se auma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, asmães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-meas orelhas, disfarçadamente, irritado <strong>de</strong>veras com aindiscrição; mas, no dia seguinte, <strong>ao</strong> almoço, lembrando o caso,sacudiu-me o nariz, a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!CAPÍTULO 13Um SaltoUnamos agora os pés e <strong>de</strong>mos um salto por cima da escola,a enfadonha escola, on<strong>de</strong> aprendi a ler, escrever, contar,dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros,ora nas praias, on<strong>de</strong> <strong>que</strong>r <strong>que</strong> fosse propício a ociosos.Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos,as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve.Só era pesada a palmatória, e ainda assim... O palmatória, terrordos meus dias pueris, tu <strong>que</strong> foste ocompefle inrrare com <strong>que</strong>um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto,a prosódia, a sintaxe, e o mais <strong>que</strong> ele sabia, bentapalmatória, tão praguejada dos mo<strong>de</strong>rnos, <strong>que</strong>m me <strong>de</strong>ra ter ficadosob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias,e o meu espadim, a<strong>que</strong>le espadim <strong>de</strong> 1814, tão superior àespada <strong>de</strong> Napoleão! Que <strong>que</strong>rias tu, afinal, meu velho mestre<strong>de</strong> primeiras letras? Lição <strong>de</strong> cor e compostura na aula; nadamais, nada menos do <strong>que</strong> <strong>que</strong>r a vida, <strong>que</strong> é a mestra das últimasletras; com a diferença <strong>que</strong> tu, se me metias medo, nuncame meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com astuas chinelas <strong>de</strong> couro branco, capote, lenço na mão, calva àmostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorveruma pitada inicial, e chamar-nos <strong>de</strong>pois à lição. E fizeste istodurante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metidonuma casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com atua mediocrida<strong>de</strong>, até <strong>que</strong> um dia <strong>de</strong>ste o gran<strong>de</strong> mergulho nastrevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém,nem eu, <strong>que</strong> te <strong>de</strong>vo os rudimentos da escrita.Chamava-se Ludgero o mestre; <strong>que</strong>ro escrever-lhe o nome


todo nesta página: Ludgero Barata, - um nome funesto, <strong>que</strong>servia <strong>ao</strong>s meninos <strong>de</strong> eterno mote a chufas. Um <strong>de</strong> nós, oQuincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem.Duas, três vezes por semana, havia <strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>ixar na algibeiradas calças, - umas largas calças <strong>de</strong> enfiar -, ou na gavetada mesa, ou <strong>ao</strong> pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele aencontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulav<strong>ao</strong>s olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramossevandijas, capadócios, malcriados, mole<strong>que</strong>s. - Uns tremiam,outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, <strong>de</strong>ixava-seestar quieto, com os olhos espetados no ar.Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância,nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso,inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão <strong>de</strong>toda a cida<strong>de</strong>. A mãe, viúva, com alguma coisa <strong>de</strong> seu, adorava ofilho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistosopajem atrás, um pajem <strong>que</strong> nos <strong>de</strong>ixava gazear a escola, ir caçarninhos <strong>de</strong> pássaros, ou perseguir lagartixas no morro do Livramentoe da Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, comodois peraltas sem emprego. E <strong>de</strong> imperador! Era um gosto ver oQuincas Borba fazer <strong>de</strong> imperador nas festas do Espírito Santo.De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel<strong>de</strong> rei, ministro, general, uma supremacia, qual<strong>que</strong>r <strong>que</strong> fosse.Tinha garbo o traquinas, e gravida<strong>de</strong>, certa magnificência nasatitu<strong>de</strong>s, nos meneios. Quem diria <strong>que</strong>... Suspendamos a pena;não adiantemos os sucessos. Fujamos sobretudo <strong>de</strong>sse passadotão remoto, tão coberto, ai <strong>de</strong> mim! <strong>de</strong> cruzes fúnebres. Vamos<strong>de</strong> um salto a 1822, data da nossa in<strong>de</strong>pendência política, e domeu primeiro cativeiro pessoal.CAPÍTULO 14O Primeiro BeijoTinha <strong>de</strong>zessete anos; pungia-me um buçozinho <strong>que</strong> euforcejava por trazer a bigo<strong>de</strong>. Os olhos, vivos e resolutos, erama minha feição verda<strong>de</strong>iramente máscula. Como ostentassecerta arrogância, não se distinguia bem se era uma criançacom fumos <strong>de</strong> homem, se um homem com ares <strong>de</strong> menino.Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, <strong>que</strong> entrava navida <strong>de</strong> botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias,cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel dasantigas baladas, <strong>que</strong> o romantismo foi buscar <strong>ao</strong> castelo medieval,para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é<strong>que</strong> o estafaram a tal ponto, <strong>que</strong> foi preciso <strong>de</strong>itá-lo à margem,on<strong>de</strong> o realismo o veio achar, comido <strong>de</strong> lazeira e <strong>verme</strong>s,e, por compaixão, o transportou para os seus livros.Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmentese imagina <strong>que</strong> mais <strong>de</strong> uma dama inclinou diante <strong>de</strong> mim a


fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. Detodas porém a <strong>que</strong> me cativou logo foi uma... uma... não sei sediga; este livro é casto, <strong>ao</strong> menos na intenção; na intenção écastíssimo. Mas vá lá; ou se há <strong>de</strong> dizer tudo ou nada. A <strong>que</strong> mecativou foi uma dama espanhola. Marcela, a "linda Marcela",como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão osrapazes. Era filha <strong>de</strong> um hortelão das Astúrias; disse-mo elamesma, num dia <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>, por<strong>que</strong> a opinião aceita é <strong>que</strong> nascera<strong>de</strong> um letrado <strong>de</strong> Madrid, vítima da invasão francesa, ferido,encarcerado, espingar<strong>de</strong>ado, quando ela tinha apenas dozeanos. Cosas <strong>de</strong> España. Quem <strong>que</strong>r <strong>que</strong> fosse, porém, o pai, letradoou hortelão, a verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> Marcela não possuía a inocênciarústica, e mal chegava a enten<strong>de</strong>r a moral do código. Era boamoça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austerida<strong>de</strong>do tempo, <strong>que</strong> lhe não permitia arrastar pelas ruas os seusestouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga <strong>de</strong> dinheiro e<strong>de</strong> rapazes. Na<strong>que</strong>le ano, ela morria <strong>de</strong> amores por um certoXavier, sujeito abastado e tísico, - uma pérola.Via-a, pela primeira vez, no Rossio Gran<strong>de</strong>, na noite dasluminárias, logo <strong>que</strong> constou a <strong>de</strong>claração da in<strong>de</strong>pendência,uma festa <strong>de</strong> primavera, um amanhecer da alma pública. Eramosdois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todosos arrebatamentos da juventu<strong>de</strong>. Via-a sair <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>irinha,airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um <strong>de</strong>sgarre,alguma coisa <strong>que</strong> nunca achara nas mulheres puras. -Segue-me, disse ela <strong>ao</strong> pajem. E eu seguia-a, tão pajem comoo outro, como se a or<strong>de</strong>m me fosse dada, <strong>de</strong>ixei-me ir namorado,vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho,chamaram-lhe "linda Marcela", lembrou-me <strong>que</strong> ouvira talnome a meu tio João, e fi<strong>que</strong>i, confesso <strong>que</strong> fi<strong>que</strong>i tonto.Três dias <strong>de</strong>pois perguntou-me meu tio, em segredo, se<strong>que</strong>ria ir a uma ceia <strong>de</strong> moças, nos Cajueiros. Fomos; era emcasa <strong>de</strong> Marcela. O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia<strong>ao</strong> ban<strong>que</strong>te noturno, em <strong>que</strong> eu pouco ou nada comi,por<strong>que</strong> só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil <strong>que</strong>estava a espanhola! Havia mais uma meia dúzia <strong>de</strong> mulheres,- todas <strong>de</strong> partido -, e bonitas, cheias <strong>de</strong> graça, mas a espanhola...O entusiasmo, alguns goles <strong>de</strong> vinho, o gênio imperioso,estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; àsaída, à porta da rua, disse a meu tio <strong>que</strong> esperasse um instante,e tornei a subir as escadas.- Es<strong>que</strong>ceu alguma coisa? perguntou Marcela <strong>de</strong> pé nopatamar.- O lenço.Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhenas mãos, puxei-a para mim, e <strong>de</strong>i-lhe um beijo. Não sei seela disse alguma coisa, se gritou, se chamou alguém; não seinada; sei <strong>que</strong> <strong>de</strong>sci outra vez as escadas, veloz como um tufão,e incerto como um ébrio.


CAPÍTULO 15MarcelaGastei trinta dias para ir do Rossio Gran<strong>de</strong> <strong>ao</strong> coração <strong>de</strong>Marcela, não já cavalgando o corcel do cego <strong>de</strong>sejo, mas oasno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso. Que, naverda<strong>de</strong>, há dois meios <strong>de</strong> granjear a vonta<strong>de</strong> das mulheres: oviolento, como o touro <strong>de</strong> Europa, e o insinuativo, como ocisne <strong>de</strong> Leda e a chuva <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> Dânae, três inventos dopadre Zeus, <strong>que</strong>, por estarem fora da moda, aí ficam trocadosno cavalo e no asno. Não direi as traças <strong>que</strong> urdi, nem as peitas,nem as alternativas <strong>de</strong> confiança e temor, nem as esperasbaldadas, nem nenhuma outra <strong>de</strong>ssas coisas preliminares. Afirmo-lhes<strong>que</strong> o asno foi digno do corcel, - um asno <strong>de</strong> Sancho,<strong>de</strong>veras filósofo, <strong>que</strong> me levou à casa <strong>de</strong>la, no fim do citadoperíodo; apeei-me, bati-lhe na anca e man<strong>de</strong>i-o pastar.Primeira comoção da minha juventu<strong>de</strong>, <strong>que</strong> doce <strong>que</strong> mefoste! Tal <strong>de</strong>via ser, na criação bíblica, o efeito do primeirosol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater <strong>de</strong> chapana face <strong>de</strong> um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa, leitoramigo, e se alguma vez contaste <strong>de</strong>zoito anos, <strong>de</strong>ves lembrarte<strong>que</strong> foi assim mesmo.Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qual<strong>que</strong>r outronome, <strong>que</strong> eu <strong>de</strong> nomes não curo; teve a fase consular e afase imperial. Na primeira, <strong>que</strong> foi curta, regemos o Xavier eeu, sem <strong>que</strong> ele jamais acreditasse dividir comigo o governo <strong>de</strong> Roma;mas, quando a credulida<strong>de</strong> não pô<strong>de</strong> resistir à evidência, oXavier <strong>de</strong>pôs as insígnias, e eu concentrei todos os po<strong>de</strong>res na minhamão; foi a fase cesariana. Era meu universo; mas, ai triste!não o era <strong>de</strong> graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo,inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas <strong>de</strong> meu pai; ele davametudo o <strong>que</strong> eu lhe pedia, sem repreensão, sem <strong>de</strong>mora, semfrieza; dizia a todos <strong>que</strong> eu era rapaz e <strong>que</strong> ele o fora também.Mas a tal extremo chegou o abuso, <strong>que</strong> ele restringiu um poucoas fran<strong>que</strong>zas, <strong>de</strong>pois mais, <strong>de</strong>pois mais. Então recorri a minhamãe, e induzi-a a <strong>de</strong>sviar alguma coisa, <strong>que</strong> me dava às escondidas.Era pouco; lancei mão <strong>de</strong> um recurso último; entrei a sacarsobre a herança <strong>de</strong> meu pai, a assinar obrigações, <strong>que</strong> <strong>de</strong>via resgatarum dia com usura.Na verda<strong>de</strong>, dizia-me Marcela, quando eu lhe levava algumaseda, alguma jóia; na verda<strong>de</strong>, você <strong>que</strong>r brigar comigo...Pois isto é coisa <strong>que</strong> se faça... um presente tão caro...E, se era jóia, dizia isto a contemplá-la entre os <strong>de</strong>dos, aprocurar melhor luz, a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-mecom uma reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando,<strong>de</strong>rramava-se-lhe a felicida<strong>de</strong> dos olhos, e eu sentia-mefeliz com vê-la assim. Gostava muito das nossas antigas dobras<strong>de</strong> ouro, e eu levava-lhe quantas podia obter; Marcelajuntava-as todas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma caixinha <strong>de</strong> ferro, cuja chave


ninguém nunca jamais soube on<strong>de</strong> ficava; escondia-a pormedo dos escravos. A casa em <strong>que</strong> morava, nos Cajueiros, eraprópria. Era sólidos e bons os móveis, <strong>de</strong> jacarandá lavrado, etodas as <strong>de</strong>mais alfaias, espelhos, jarras, baixela, - uma lindabaixela da Índia, <strong>que</strong> lhe doara um <strong>de</strong>sembargador. Baixelado diabo, <strong>de</strong>ste-me gran<strong>de</strong>s repelões <strong>ao</strong>s nervos. Disse-o muitavez à própria dona; não lhe dissimulava o tédio <strong>que</strong> me faziamesses e outros <strong>de</strong>spojos dos seus amores <strong>de</strong> antanho. El<strong>ao</strong>uvia-me e ria, com uma expressão cândida, - cândida eoutra coisa, <strong>que</strong> eu nesse tempo não entendia bem: mas agora,relembrando o caso, penso <strong>que</strong> era um riso misto, como<strong>de</strong>via ter a criatura <strong>que</strong> nascesse, por exemplo, <strong>de</strong> uma bruxa<strong>de</strong> Shakespeare com um serafim <strong>de</strong> Klopstock. Não sei se meexplico. E por<strong>que</strong> tinha notícia dos meus zelos tardias, parece<strong>que</strong> gostava <strong>de</strong> os açular mais. Assim foi <strong>que</strong> um dia, como eulhe não pu<strong>de</strong>sse dar certo colar, <strong>que</strong> ela vira num joalheiro,retorquiu-me <strong>que</strong> era um simples gracejo, <strong>que</strong> o nosso amornão precisava <strong>de</strong> tão vulgar estímulo.- Não lhe perdôo, se você fizer <strong>de</strong> mim essa triste idéia,concluiu ameaçando-me com o <strong>de</strong>do.E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos,cingiu-me com elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeitogracioso, um momo <strong>de</strong> criança. Depois, reclinada na mar<strong>que</strong>sa,continuou a falar daquilo, com simplicida<strong>de</strong> e fran<strong>que</strong>za.jamais consentiria <strong>que</strong> lhe comprassem os afetos. Ven<strong>de</strong>ramuita vez as aparências, mas a realida<strong>de</strong>, guardava-a parapoucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, <strong>que</strong> elaamara <strong>de</strong>veras, dois anos antes, só a custo conseguia dar-lhealguma coisa <strong>de</strong> valor, como me acontecia a mim; ela só lheaceitava sem relutância os mimos <strong>de</strong> escasso preço, como acruz <strong>de</strong> ouro, <strong>que</strong> lhe <strong>de</strong>u, uma vez, <strong>de</strong> festas.- Esta cruz...Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina,<strong>de</strong> ouro, presa a uma fita azul e pendurada <strong>ao</strong> colo.- Mas essa cruz, observei eu, não me disseste <strong>que</strong> erateu pai <strong>que</strong>...Marcela abanou a cabeça com um ar <strong>de</strong> lástima:- Não percebeste <strong>que</strong> era mentira, <strong>que</strong> eu dizia isso parate não molestar? Vem cá, chiquito , não sejas assim <strong>de</strong>sconfiadocomigo... Amei a outro; <strong>que</strong> importa, se acabou? Um dia,quando nos separarmos...- Não digas isso! bra<strong>de</strong>i eu.- Tudo cessa! Um dia...Não pô<strong>de</strong> acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; esten<strong>de</strong>uas mãos, tomou das minhas, conchegou-me <strong>ao</strong> seio, esussurrou-me baixo <strong>ao</strong> ouvido: - Nunca, nunca, meu amor!Eu agra<strong>de</strong>ci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte leveilheo colar <strong>que</strong> havia recusado.- Para te lembrares <strong>de</strong> mim, quando nos separarmos,disse eu.Marcela teve primeiro um silêncio indignado, <strong>de</strong>pois fez


um gesto magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lheo braço; pedi-lhe muito <strong>que</strong> não me fizesse tal <strong>de</strong>sfeita, <strong>que</strong>ficasse com a jóia. Sorriu e ficou.Entretanto, pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava osmeus mais recônditos pensamentos; não havia <strong>de</strong>sejo a <strong>que</strong>não acudisse com alma, sem esforço, por uma espécie <strong>de</strong> leida consciência e necessida<strong>de</strong> do coração. Nunca o <strong>de</strong>sejo erarazoável, mas um capricho puro, uma criancice, vê-la trajar<strong>de</strong> certo modo, com tais e tais enfeites, este vestido e nãoa<strong>que</strong>le, ir a passeio ou outra coisa assim, e ela cedia a tudo,risonha e palreira.- Você é das Arábias, dizia-me.E ia pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediência<strong>de</strong> encantar.CAPÍTULO 16Uma Reflexão ImoralOcorre -me uma reflexão imoral, <strong>que</strong> é <strong>ao</strong> mesmo tempouma correção <strong>de</strong> estilo. Cuido haver dito, no capitulo 13, <strong>que</strong>Marcela morria <strong>de</strong> amores pelo Xavier. Não morria, vivia.Viver não é a mesma coisa <strong>que</strong> morrer; assim o afirmam todosos joalheiros <strong>de</strong>sse mundo, gente muito vista na gramática.Bons joalheiros, <strong>que</strong> seria do amor se não fossem os vossosdixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comérciodos corações. Esta é a reflexão imoral <strong>que</strong> eu pretendia fazer,a qual é ainda mais obscura do <strong>que</strong> imoral, por<strong>que</strong> não seenten<strong>de</strong> bem o <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ro dizer. O <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ro dizer é<strong>que</strong> a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a cingirum dia<strong>de</strong>ma <strong>de</strong> pedras finas; nem menos bela, nem menosamada. Marcela, por exemplo, <strong>que</strong> era bem bonita, Marcelaamou-me...CAPÍTULO 17Do Trapézio e Outras Coisas...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contosréis; nada menos. Meu pai, logo <strong>que</strong> teve aragem dos onzecontos, sobressaltou-se <strong>de</strong>veras; achou <strong>que</strong> o caso excedia asraias <strong>de</strong> um capricho juvenil.- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar umaUniversida<strong>de</strong>, provavelmente Coimbra; <strong>que</strong>ro-te para homemsério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto<strong>de</strong> espanto: - Gatuno, sim senhor; não é outra coisa umfilho <strong>que</strong> me faz isto...


Sacou da algibeira os meus títulos <strong>de</strong> dívida, já resgatadospor ele, e sacudiu-mos na cara. - Vês, peralta? é assim <strong>que</strong>um moço <strong>de</strong>ve zelar o nome dos seus? Pensas <strong>que</strong> eu e meusavós ganhamos o dinheiro em casas <strong>de</strong> jogo ou a vadiar pelasruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem coisanenhuma.Estava furioso, mas <strong>de</strong> um furor temperado e curto. Euouvi-o calado, e nada opus à or<strong>de</strong>m da viagem, como <strong>de</strong> outrasvezes fizera; ruminava a idéia <strong>de</strong> levar Marcela comigo.Fui ter com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcel<strong>ao</strong>uviu-me com os olhos no ar, sem respon<strong>de</strong>r logo; como insistisse,disse-me <strong>que</strong> ficava, <strong>que</strong> não podia ir para a Europa.- Por <strong>que</strong> não?- Não posso, disse ela com ar dolente; não posso ir respirara<strong>que</strong>les ares, enquanto me lembrar <strong>de</strong> meu pobre pai,morto por Napoleão...- Qual <strong>de</strong>les: o hortelão ou o advogado?Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre<strong>de</strong>ntes; <strong>de</strong>pois <strong>que</strong>ixou-se do calor, e mandou vir um copo <strong>de</strong>aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva <strong>de</strong> prata, <strong>que</strong> fazia partedos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente orefresco; minha resposta foi dar com a mão no copo e na salva;entornou-se-lhe o líquido no regaço, a preta <strong>de</strong>u um grito, eubra<strong>de</strong>i-lhe <strong>que</strong> se fosse embora. Ficando a sós, <strong>de</strong>rramei todo o<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> meu coração; disse-lhe <strong>que</strong> ela era um monstro,<strong>que</strong> jamais me tivera amor, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong>scer a tudo, semter <strong>ao</strong> menos a <strong>de</strong>sculpa da sincerida<strong>de</strong>; chamei-lhe muitosnomes feios, fazendo muitos gestos <strong>de</strong>scompostos. Marcela<strong>de</strong>ixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos <strong>de</strong>ntes, friacomo um pedaço <strong>de</strong> mármore. Tive ímpetos <strong>de</strong> a estrangular; <strong>de</strong> ahumilhar <strong>ao</strong> menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo;mas a ação trocou-se noutra; fui eu <strong>que</strong> me atirei <strong>ao</strong>s pés <strong>de</strong>la,contrito e súplice, beijei-lhos, recor<strong>de</strong>i a<strong>que</strong>les meses da nossafelicida<strong>de</strong> solitária, repeti-lhe os nomes <strong>que</strong>ridos <strong>de</strong> outro tempo,sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos <strong>de</strong>la, apertando-lhemuito as mãos; ofegante <strong>de</strong>svairado, pedi-lhe comlágrimas <strong>que</strong> me não <strong>de</strong>samparasse... Marcela esteve algunsinstantes a olhar para mim, calados ambos, até <strong>que</strong> brandamenteme <strong>de</strong>sviou e, com um ar enfastiado:- Não me aborreça, disse.Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhoupara a alcova. - Não! bra<strong>de</strong>i eu; não hás <strong>de</strong> entrar...não <strong>que</strong>ro... Ia a lançar-lhe as mãos: era tar<strong>de</strong>; ela entrara efechara-se.Saí <strong>de</strong>satinado; gastei duas mortais horas a vaguear pelosbairros mais excêntricos e <strong>de</strong>sertos, on<strong>de</strong> fosse difícil dar comigo.Ia mastigando o meu <strong>de</strong>sespero, com uma espécie <strong>de</strong>gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio,e ora me comprazia em crer <strong>que</strong> eles eram eternos, <strong>que</strong>tudo aquilo era um pesa<strong>de</strong>lo, ora, enganando-me a mim mesmo,tentava rejeitá-los <strong>de</strong> mim, como um fardo inútil. Então


esolvia embarcar imediatamente para cortar a minha vida emduas meta<strong>de</strong>s, e <strong>de</strong>leitava-me com a idéia <strong>de</strong> <strong>que</strong> Marcela,sabendo da partida, ficaria ralada <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s e remorsos. Queela amara-me a tonta, <strong>de</strong>via <strong>de</strong> sentir alguma coisa, uma lembrançaqual<strong>que</strong>r, como do alferes Duarte... Nisto, o <strong>de</strong>nte dociúme enterrava-se-me no coração; e toda a natureza me bradava<strong>que</strong> era preciso levar Marcela comigo.- Por força... por força... dizia eu ferindo o ar com umapunhada.Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! trapézio dos meuspecados, trapézio das concepções abstrusas! A idéia salvadoratrabalhou nele, como a do emplasto (capítulo 2). Era nadamenos <strong>que</strong> fasciná-la, fasciná-la muito, <strong>de</strong>slumbrá-la, arrastála;lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto do <strong>que</strong>a súplica. Não medi as conseqüências: recorri a um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iroempréstimo; fui à rua dos Ourives, comprei a melhor jóiada cida<strong>de</strong>, três diamantes gran<strong>de</strong>s, encastoados num pente <strong>de</strong>marfim; corri à casa <strong>de</strong> Marcela.Marcela estava reclinada numa re<strong>de</strong>, o gesto mole e cansado,uma das pernas pen<strong>de</strong>ntes, a ver-se-lhe o pezinho calçado<strong>de</strong> meia <strong>de</strong> seda, os cabelos soltos, <strong>de</strong>rramados, o olharquieto e sonolento.- Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos muitodinheiro, terás tudo o <strong>que</strong> quiseres... Olha, toma.E mostrei-lhe o pente com os diamantes. Marcela teve umleve sobressalto; a pupila rutilou como a <strong>de</strong> um gavião faminto;ela ergueu meta<strong>de</strong> do corpo, e, apoiada num cotovelo,olhou para o pente durante alguns instantes curtos; <strong>de</strong>poisretirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe asmãos <strong>ao</strong>s cabelos, coligi-os, enlacei-os à pressa, improvisei umtoucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o pente <strong>de</strong>diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhes as ma<strong>de</strong>ixas,abaixei-as <strong>de</strong> um lado, bus<strong>que</strong>i alguma simetria na<strong>que</strong>la<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, tudo com uma minuciosida<strong>de</strong> e um carinho <strong>de</strong> mãe.- Pronto, disse eu.- Doudo! foi a sua primeira resposta.A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifíciocom um beijo, o mais ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> todos. Depois tirou o pente,admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços paramim, e abanando a cabeça, com um ar <strong>de</strong> repreensão:- Ora você! dizia.- Vens comigo?Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com<strong>que</strong> passeava os olhos <strong>de</strong> mim para a pare<strong>de</strong>, e da pare<strong>de</strong> paraa jóia; mas toda a má impressão se <strong>de</strong>svaneceu, quando elame respon<strong>de</strong>u resolutamente:- Vou. Quando embarcas?- Daqui a dois ou três dias.- Vou.Agra<strong>de</strong>ci-lho <strong>de</strong> joelhos. Tinha achado a minha Marcelados primeiros dias, e disse-lho; ela sorriu, e foi guardar a


jóia, enquanto eu <strong>de</strong>scia a escada.CAPÍTULO 18Visão do CorredorNo fim da escada, <strong>ao</strong> fundo do corredor escuro, parei algunsinstantes para respirar, apalpar-me, convocar as idéiasdispersas, reaver-me enfim no meio <strong>de</strong> tantas sensações profundase contrárias. Achava-me feliz. Certo é <strong>que</strong> os diamantescorrompiam-me um pouco a felicida<strong>de</strong>; mas não é menoscerto <strong>que</strong> uma dama bonita po<strong>de</strong> muito bem amar os gregos eos seus presentes. E <strong>de</strong>pois eu confiava na minha boa Marcela;podia ter <strong>de</strong>feitos, mas amava-me...- Um anjo! murmurei eu olhando para o teto do corredor.E aí, como um escárnio, vi o olhar <strong>de</strong> Marcela, a<strong>que</strong>le olhar<strong>que</strong> pouco antes me <strong>de</strong>ra uma sombra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança, o qualchispava <strong>de</strong> cima <strong>de</strong> um nariz, <strong>que</strong> era <strong>ao</strong> mesmo tempo o nariz<strong>de</strong> Bakbarah e o meu. Pobre namorado das Mil e Uma Noites!Vi-te ali mesmo correr atrás da mulher do vizir, <strong>ao</strong> longo dagaleria, ela a acenar-te com a posse, e tu a correr, a correr, acorrer, até a alameda comprida, don<strong>de</strong> saíste à rua, on<strong>de</strong> todosos correeiros te apuparam e <strong>de</strong>sancaram. Então pareceume<strong>que</strong> o corredor <strong>de</strong> Marcela era a alameda, e <strong>que</strong> a rua eraa <strong>de</strong> Bagdá. Com efeito, olhando para a porta, vi na calçadatrês dos correeiros, um <strong>de</strong> batina, outro <strong>de</strong> libré, outro à paisana,os quais todos três entraram no corredor, tomaram-mepelos braços, meteram-me numa sege, meu pai à direita, meutio cônego à es<strong>que</strong>rda, o da libré na boléia, e lá me levaram àcasa do inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> polícia, don<strong>de</strong> fui transportado a umagalera <strong>que</strong> <strong>de</strong>via seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mastoda a resistência era inútil.Três dias <strong>de</strong>pois segui barra fora, abatido e mudo. Nãochorava se<strong>que</strong>r, tinha uma idéia fixa... Malditas idéias fixas!A <strong>de</strong>ssa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo onome <strong>de</strong> Marcela.CAPÍTULO 19A BordoÉramos onze passageiros, um homem doido, acompanhadopela mulher, dois rapazes <strong>que</strong> iam a passeio, quatro comerciantese dois criados. Meu pai recomendou-me a todos, começandopelo capitão do navio, <strong>que</strong> aliás tinha muito <strong>que</strong>cuidar <strong>de</strong> si, por<strong>que</strong>, além do mais, levava a mulher tísica emúltimo grau.Não sei se o capitão suspeitou alguma coisa do meu fúne-


e projeto, ou se meu pai opôs <strong>de</strong> sobreaviso; sei <strong>que</strong> não metirava os olhos <strong>de</strong> cima; chamava-me para toda a parte. Quandonão podia estar comigo, levava-me para a mulher. A mulheria quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito, e aafiançar <strong>que</strong> me havia <strong>de</strong> mostrar os arredores <strong>de</strong> Lisboa. Nãoestava magra, estava transparente; era impossível <strong>que</strong> nãomorresse <strong>de</strong> uma hora para outra. O capitão fingia não crerna morte próxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu nãosabia nem pensava nada. Que me importava a mim o <strong>de</strong>stino<strong>de</strong> uma mulher tísica, no meio do oceano? O mundo para mimera Marcela.Uma noite, logo no fim <strong>de</strong> uma semana, achei ensejo propíciopara morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capitão,<strong>que</strong> junto à amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.- Algum temporal? disse eu.- Não, respon<strong>de</strong>u ele estremecendo; não; admiro o esplendorda noite. Veja; está celestial!O estilo <strong>de</strong>smentia da pessoa, assaz ru<strong>de</strong> e aparentementealheia a locuções rebuscadas. Fitei-o; ele pareceu saborearo meu espanto. No fim <strong>de</strong> alguns segundos, pegou-me na mãoe apontou para a lua, perguntando-me por <strong>que</strong> não fazia um<strong>ao</strong><strong>de</strong> à noite; respondi-lhe <strong>que</strong> não era poeta. O capitão rosnoualguma coisa, <strong>de</strong>u dois passos, meteu a mão no bolso,sacou um pedaço <strong>de</strong> papel, muito amarrotado; <strong>de</strong>pois à luz <strong>de</strong>uma lanterna, leu uma o<strong>de</strong> horaciana sobre a liberda<strong>de</strong> da vidamarítima. Eram versos <strong>de</strong>le.- Que tal?Não me lembra o <strong>que</strong> lhe disse; lembra-me <strong>que</strong> ele meapertou a mão com muita força e muitos agra<strong>de</strong>cimentos; logo<strong>de</strong>pois recitou-me dois sonetos; ia recitar-me outro, quandoo vieram chamar da parte da mulher. - Lá vou, disse ele; erecitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor.Fi<strong>que</strong>i só; mas a musa do capitão varrera-me do espíritoos pensamentos maus; preferi dormir, <strong>que</strong> é modo interino <strong>de</strong>morrer. No dia seguinte, acordamos <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um temporal,<strong>que</strong> meteu medo a toda a gente, menos <strong>ao</strong> doido; esse entroua dar pulos, a dizer <strong>que</strong> a filha o mandava buscar, numaberlinda; a morte <strong>de</strong> uma filha fora a causa da loucura. Não,nunca me há <strong>de</strong> es<strong>que</strong>cer a figura hedionda do pobre homem,no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolare a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido,a coma hirsuta e <strong>de</strong>scomposta. As vezes parava, erguia <strong>ao</strong> aras mãos ossudas, fazia uma cruzes com os <strong>de</strong>dos, <strong>de</strong>pois umxadrez, <strong>de</strong>pois umas argolas, e ria muito, <strong>de</strong>sesperadamente.A mulher não podia já cuidar <strong>de</strong>le; entregue <strong>ao</strong> terror damorte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Enfim, atempesta<strong>de</strong> amainou. Confesso <strong>que</strong> foi uma diversão excelenteà tempesta<strong>de</strong> do meu coração. Eu, <strong>que</strong> meditava ir ter com amorte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.Amainou o temporal, o capitão veio perguntar-me se tiveramedo, se estivera em risco, se não achara sublime o es-


petáculo; tudo isso com um interesse <strong>de</strong> amigo. Naturalmentea conversa versou sobre a vida do mar; o capitão perguntou-mese não gostava <strong>de</strong> idílios piscatórios; eu respondi-lheingenuamente <strong>que</strong> não sabia o <strong>que</strong> era.- Vai ver, respon<strong>de</strong>u ele.E recitou-me um poemazinho, <strong>de</strong>pois outro, - uma égloga,- e enfim cinco sonetos, com os quais rematou nesse diaa confidência literária. No dia seguinte, antes <strong>de</strong> me recitarnada, explicou-me o capitão <strong>que</strong> só por motivos graves abraçaraa profissão marítima, por<strong>que</strong> a avó <strong>que</strong>ria <strong>que</strong> ele fossepadre, e com efeito possuía algumas letras latinas; não chegoua ser padre, mas não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser poeta, <strong>que</strong> era a suavocação natural; e em prova <strong>de</strong> <strong>que</strong> tal era a sua vocação,recitou-me logo, <strong>de</strong> corpo presente, uma centena <strong>de</strong> versos.Notei um fenômeno: os a<strong>de</strong>manes <strong>que</strong> ele usava eram tais,<strong>que</strong> uma vez me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava,<strong>de</strong> tal sorte olhava para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si mesmo, <strong>que</strong> não viu nemouviu nada.Os dias passavam, e as águas, e os versos, e com eles iatambém passando a vida da mulher. Estava por pouco. Umdia, logo <strong>de</strong>pois do almoço, disse-me o capitão <strong>que</strong> a enfermatalvez não chegasse <strong>ao</strong> fim da semana.- Já! exclamei.- Passou muito mal a noite.Fui vê-la; achei-a, na verda<strong>de</strong>, quase moribunda, mas falandoainda <strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar em Lisboa alguns dias, antes <strong>de</strong> ircomigo a Coimbra, por<strong>que</strong> era seu propósito levar-me à Universida<strong>de</strong>.Deixei-a consternado; fui achar o marido a olharpara as vagas, <strong>que</strong> vinham morrer no costado do navio, e tratei<strong>de</strong> o consolar; ele agra<strong>de</strong>ceu-me, relatou-me a história dosseus amores, elogiou a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>dicação da mulher,relembrou os versos <strong>que</strong> lhe fez, e recitou-mos. Neste pontovieram buscá-lo da parte <strong>de</strong>la; corremos ambos; era uma crise.Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte;eu fugi <strong>ao</strong> espetáculo, tinha-lhe repugnância. Meia hora<strong>de</strong>pois encontrei o capitão, sentado num molho <strong>de</strong> cabos, coma cabeça nas mãos; disse-lhe alguma coisa <strong>de</strong> conforto.- Morreu como uma santa, respon<strong>de</strong>u ele; e, para <strong>que</strong>estas palavras não pu<strong>de</strong>ssem ser levadas à conta <strong>de</strong> fra<strong>que</strong>za,ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com umgesto longo e profundo. - Vamos, continuou, entreguemolaà cova <strong>que</strong> nunca mais se abre.Efetivamente, poucas horas <strong>de</strong>pois, era o cadáver lançado<strong>ao</strong> mar, com as cerimônias do costume. A tristeza murcharatodos os rostos; o do viúvo trazia a expressão <strong>de</strong> um cabeçorijamente lascado pelo raio. Gran<strong>de</strong> silêncio. A vaga abriu oventre, acolheu o <strong>de</strong>spojo, fechou-se, - uma leve ruga, - ea galera foi andando. Eu <strong>de</strong>ixei-me estar alguns minutos, àpopa, com os olhos na<strong>que</strong>le ponto incerto do mar em <strong>que</strong> ficavaum <strong>de</strong> nós... Fui dali ter com o capitão, para distraí-lo.- Obrigado, disse-me ele compreen<strong>de</strong>ndo a intenção;


creia <strong>que</strong> nunca me es<strong>que</strong>cerei dos seus bons serviços. Deus é<strong>que</strong> lhos há <strong>de</strong> pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás <strong>de</strong> nósno céu.Enxugou com a manga uma lágrima importuna; eu bus<strong>que</strong>ium <strong>de</strong>rivativo na poesia, <strong>que</strong> era a paixão <strong>de</strong>le. Falei-lhedos versos, <strong>que</strong> me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Osolhos do capitão animaram-se um pouco. - Talvez aceite,disse ele; mas não sei... são bem frouxos versos. Jurei-lhe <strong>que</strong>não; pedi <strong>que</strong> os reunisse e me <strong>de</strong>sse antes do <strong>de</strong>sembar<strong>que</strong>.- Pobre Leocádia! murmurou ele sem respon<strong>de</strong>r <strong>ao</strong> pedido.Um cadáver... o mar... o céu... o navio...No dia seguinte veio ler-me um epicédio composto <strong>de</strong> fresco,em <strong>que</strong> estavam memoradas as circunstâncias da morte eda sepultura da mulher; leu-mo com a voz comovida <strong>de</strong>veras,e a mão trêmula; no fim perguntou-me se os versos eram dignosdo tesouro <strong>que</strong> per<strong>de</strong>ra.- São, disse eu.- Não haverá estro, pon<strong>de</strong>rou ele, no fim <strong>de</strong> um instante,mas ninguém me negará sentimento, se não é <strong>que</strong> o própriosentimento prejudicou a perfeição...- Não me parece; acho os versos perfeitos.- Sim, eu creio <strong>que</strong>... Versos <strong>de</strong> marujo.- De marujo poeta.Ele levantou os ombros, olhou para o papel, e tornou arecitar a composição, mas já então sem tremuras, acentuandoas intenções literárias, dando relevo às imagens e melodia<strong>ao</strong>s versos. No fim, confessou-me <strong>que</strong> era a sua obra mais acabada;eu disse-lhe <strong>que</strong> sim; ele apertou-me muito a mão epredisse-me um gran<strong>de</strong> futuro.CAPÍTULO 20Bacharelo-meUm gran<strong>de</strong> futuro! Enquanto esta palavra me batia noouvido, <strong>de</strong>volvia eu os olhos, <strong>ao</strong> longe, no horizonte misteriosoe vago. Uma idéia expelia outra, a ambição <strong>de</strong>smontavaMarcela. Um gran<strong>de</strong> futuro? Talvez naturalista, literato, ar<strong>que</strong>ólogo,ban<strong>que</strong>iro, político ou até bispo, - bispo <strong>que</strong> fosse,- uma vez <strong>que</strong> fosse um cargo, uma preeminência, umagran<strong>de</strong> reputação, uma posição superior. A ambição, dado <strong>que</strong>fosse águia, <strong>que</strong>brou nessa ocasião o ovo, e <strong>de</strong>svendou a pupilafulva e penetrante. A<strong>de</strong>us, amores! a<strong>de</strong>us, Marcela; dias<strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio, jóias sem preço, vida sem regime, a<strong>de</strong>us. Cá me vouàs fadigas e à glória; <strong>de</strong>ixo-vos com as calcinhas da primeiraida<strong>de</strong>.E foi assim <strong>que</strong> <strong>de</strong>sembar<strong>que</strong>i em Lisboa e segui paraCoimbra. A Universida<strong>de</strong> esperava-me com as suas matériasárduas, e não sei se profundas; estu<strong>de</strong>i-as muito mediocremen-


te, e nem por isso perdi o grau <strong>de</strong> bacharel; <strong>de</strong>ram-mo com asolenida<strong>de</strong> do estilo, após os anos da lei; uma bela festa <strong>que</strong>me encheu <strong>de</strong> orgulho e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s, - principalmente <strong>de</strong>sauda<strong>de</strong>s. Tinha eu conquistado em Coimbra uma gran<strong>de</strong>nomeada <strong>de</strong> folião; era um acadêmico estróina, superficial,tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismoprático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dosolhos pretos e das constituições escritas. No dia em <strong>que</strong> aUniversida<strong>de</strong> me atestou, em pergaminho, uma ciência <strong>que</strong>eu estava longe <strong>de</strong> trazer arraigada no cérebro, confesso <strong>que</strong>me achei <strong>de</strong> algum modo logrado, ainda <strong>que</strong> orgulhoso. Explico-me:o diploma era uma carta <strong>de</strong> alforria; se me dava aliberda<strong>de</strong>, dava-me a responsabilida<strong>de</strong>. Guar<strong>de</strong>i-o, <strong>de</strong>ixei asmargens do Mon<strong>de</strong>go, e vim por ali fora assaz <strong>de</strong>sconsolado,mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosida<strong>de</strong>, um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>acotovelar os outros, <strong>de</strong> influir, <strong>de</strong> gozar, <strong>de</strong> viver, - <strong>de</strong> prolongara Universida<strong>de</strong> pela vida adiante...CAPÍTULO 21O AlmocreveVai então, empacou o jumento em <strong>que</strong> eu vinha montado;fustiguei-o, ele <strong>de</strong>u dois corcovos, <strong>de</strong>pois mais três, enfim maisum, <strong>que</strong> me sacudiu fora da sela, e com tal <strong>de</strong>sastre, <strong>que</strong> o pées<strong>que</strong>rdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me <strong>ao</strong> ventredo animal, mas já então, espantado, disparou pela estradafora. Digo mal; tentou disparar, e efetivamente <strong>de</strong>u doissaltos, mas um almocreve, <strong>que</strong> ali estava, acudiu a tempo <strong>de</strong> lhe pegarna ré<strong>de</strong>a e <strong>de</strong>tê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado obruto, <strong>de</strong>svencilhei-me do estribo e pus-me <strong>de</strong> pé.- Olhe do <strong>que</strong> vosmecê escapou, disse o almocreve.E era verda<strong>de</strong>; se o juramento corre por ali fora, contundia-me<strong>de</strong>veras, e não sei se a morte não estaria no fim do<strong>de</strong>sastre; cabeça partida, uma congestão, qual<strong>que</strong>r transtornocá <strong>de</strong>ntro, e lá se me ia a bacharelice em flor. O almocrevesalvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue<strong>que</strong> me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornavaà consciência <strong>de</strong> mim mesmo, ele cuidava <strong>de</strong> consertaros arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhetrês moedas <strong>de</strong> ouro das cinco <strong>que</strong> trazia comigo; não por<strong>que</strong>tal fosse o preço da minha vida, - essa era inestimável; maspor<strong>que</strong> era uma recompensa digna da <strong>de</strong>dicação com <strong>que</strong> eleme salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.- Pronto, disse ele, apresentando-me a ré<strong>de</strong>a da cavalgadura.- Daqui a nada, respondi; <strong>de</strong>ixa-me, <strong>que</strong> ainda não estouem mim...- Ora qual!


- Pois não é certo <strong>que</strong> ia morrendo?- Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com aajuda do Senhor, viu vosmecê <strong>que</strong> não aconteceu nada.Fui <strong>ao</strong>s alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia ascinco moedas <strong>de</strong> ouro, e durante esse tempo cogitei se não eraexcessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvezuma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções<strong>de</strong> alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo,<strong>que</strong> nunca jamais vira uma moeda <strong>de</strong> ouro. Portanto, urna moeda.Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve,por<strong>que</strong> eu tinha lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entroua falar <strong>ao</strong> jumento <strong>de</strong> um modo significativo; dava-lhe conselhos,dizia-lhe <strong>que</strong> tomasse juízo, <strong>que</strong> o "senhor doutor" podiacastigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalarum beijo: era o almocreve <strong>que</strong> lhe beijava a testa.- Olé! exclamei.- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está <strong>ao</strong>lhar para a gente com tanta graça...Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalgueio jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado,melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas aalgumas braças <strong>de</strong> distância, olhei para trás, o almocreve faziamegran<strong>de</strong>s cortesias, com evi<strong>de</strong>ntes mostras <strong>de</strong> contentamento.Adverti <strong>que</strong> <strong>de</strong>via ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem,pagara-lhe talvez <strong>de</strong>mais. Meti os <strong>de</strong>dos no bolso do colete <strong>que</strong>trazia no corpo e senti umas moedas <strong>de</strong> cobre; eram os vinténs<strong>que</strong> eu <strong>de</strong>vera ter dado <strong>ao</strong> almocreve, em lugar do cruzado emprata. Por<strong>que</strong>, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompens<strong>ao</strong>u virtu<strong>de</strong>, ce<strong>de</strong>u a um impulso natural, <strong>ao</strong> temperamento,<strong>ao</strong>s hábitos do ofício; acresce <strong>que</strong> a circunstância <strong>de</strong> estar,não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do<strong>de</strong>sastre, parecia constituí-lo simples instrumento <strong>de</strong> Providência;e <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro modo, o mérito do ato era positivamentenenhum. Fi<strong>que</strong>i <strong>de</strong>sconsolado com esta reflexão, chamei-mepródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipaçõesantigas; tive (por <strong>que</strong> não direi tudo?) tive remorsos.CAPÍTULO 22Volta <strong>ao</strong> RioJumento <strong>de</strong> uma figa, cortaste-me o fio às reflexões. Jáagora não digo o <strong>que</strong> pensei dali até Lisboa, nem o <strong>que</strong> fiz emLisboa, na península e em outros lugares da Europa, da velhaEuropa, <strong>que</strong> nesse tempo parecia remoçar. Não, não direi <strong>que</strong><strong>assis</strong>ti às alvoradas do romantismo, <strong>que</strong> também eu fui fazerpoesia efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma.Teria <strong>de</strong> escrever um diário <strong>de</strong> viagem e não umas <strong>memórias</strong>,como estas são, nas quais só entra a substância da vida.Ao cabo <strong>de</strong> alguns anos <strong>de</strong> peregrinação, atendi às súpli-


cas <strong>de</strong> meu pai: - "Vem, dizia ele na última carta; se não vieres<strong>de</strong>pressa acharás tua mãe morta!" Esta última palavra foi paramim um golpe. Eu amava minha mãe; tinha ainda diante dosolhos as circunstâncias da última bênção <strong>que</strong> ela me <strong>de</strong>ra, abordo do navio. "Meu triste filho, nunca mais te verei", soluçavaa pobre senhora apertando-me <strong>ao</strong> peito. E essas palavrasressoavam-me agora, como uma profecia realizada.Note-se <strong>que</strong> eu estava em Veneza, ainda recen<strong>de</strong>nte <strong>ao</strong>sversos <strong>de</strong> lord Byron; lá estava, mergulhado em pleno sonho,revivendo o pretérito, crendo-me na Sereníssima República.É verda<strong>de</strong>; uma vez aconteceu-me perguntar <strong>ao</strong> locan<strong>de</strong>irose o doge ia a passeio nesse dia. - Que doge, signor mio? Caíem mim, mas não confessei a ilusão; disse-lhe <strong>que</strong> a minhapergunta era um gênero <strong>de</strong> charada americana; ele mostroucompreen<strong>de</strong>r, e acrescentou <strong>que</strong> gostava muito das charadasamericanas. Era um locan<strong>de</strong>iro. Pois <strong>de</strong>ixei tudo isso, o locan<strong>de</strong>iro,o doge, a ponte dos Suspiros, a gôndola, os versos dolord, as damas do Rialto, <strong>de</strong>ixei tudo, e disparei como uma balana direção do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Vim... Mas não; não alonguemos este capítulo. As vezes,es<strong>que</strong>ço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com graveprejuízo meu, <strong>que</strong> sou autor. Capítulos compridos quadrammelhor a leitores pesadões; e nós não somos um público infolio,mas in- 12, pouco texto, larga margem, tipo elegante,corte dourado e vinhetas.., principalmente vinhetas... Não,não alonguemos o capítulo.CAPÍTULO 23Triste, Mas CurtoVim; e não nego <strong>que</strong>, <strong>ao</strong> avistar a cida<strong>de</strong> natal, tive umasensação nova. Não era efeito da minha pátria política, era-odo lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, amulher <strong>de</strong> mantilha, o preto do ganho, as coisas e cenas dameninice, buriladas na memória. Nada menos <strong>que</strong> uma renascença.O espírito, como um pássaro, não se lhe <strong>de</strong>u dacorrente dos anos, arrepiou o vôo na direção da fonte original,e foi beber da água fresca e pura, ainda não mesclada doenxurro da vida.Reparando bem, há aí um lugar-comum. Outro lugar- comum,tristemente comum, foi a consternação da família. Meupai abraçou-me com lágrimas. - Tua mãe não po<strong>de</strong> viver,disse-me ele. Com efeito, não era já o reumatismo <strong>que</strong> a matava,era um cancro no estômago. A infeliz pa<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> ummodo cru, por<strong>que</strong> o cancro é indiferente às virtu<strong>de</strong>s do sujeito;quando rói, rói; roer é o seu ofício. Minha irmã Sabina, jáentão casada com o Cotrim, andava a cair <strong>de</strong> fadiga. Pobremoça! dormia três horas por noite, nada mais. O próprio tioJoão estava abatido e triste. Dona Eusébia e algumas outras


senhoras lá estavam também, não menos tristes e não menos<strong>de</strong>dicadas.- Meu filho!A dor suspen<strong>de</strong>u por um pouco as tenazes; um sorriso alumiouo rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna.Era menos um rosto do <strong>que</strong> uma caveira: a beleza passara,como um dia brilhante; restavam os ossos, <strong>que</strong> não emagrecemnunca. Mal po<strong>de</strong>ria conhecê-la; havia oito ou nove anos<strong>que</strong> nos não víamos. Ajoelhado, <strong>ao</strong> pé da cama, com as mãos<strong>de</strong>la entre as minhas, fi<strong>que</strong>i mudo e quieto, sem ousar falar,por<strong>que</strong> cada palavra seria um soluço, e nós temíamos avisá-lado fim. Vão temor! Ela sabia <strong>que</strong> estava prestes a acabar; disse-mo;verificamo-lo na seguinte manhã.Longa foi a agonia, longa e cruel, <strong>de</strong> uma cruelda<strong>de</strong> minuciosa,fria, repisada, <strong>que</strong> me encheu <strong>de</strong> dor e estupefação.Era a primeira vez <strong>que</strong> eu via morrer alguém. Conhecia a morte<strong>de</strong> oitiva; quando muito tinha-a visto já petrificada no rosto<strong>de</strong> algum cadáver, <strong>que</strong> acompanhei <strong>ao</strong> cemitério, ou trazialhea idéia embrulhada nas amplificações <strong>de</strong> retórica dos professores <strong>de</strong> coisas antigas, - a morte aleivosa <strong>de</strong> César, a austera<strong>de</strong> Sócrates, a orgulhosa <strong>de</strong> Catão. Mas esse duelo do sere do não-ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa,sem aparelho político ou filosófico, a morte <strong>de</strong> uma pessoaamada, essa foi a primeira vez <strong>que</strong> a pu<strong>de</strong> encarar. Não chorei;lembra-me <strong>que</strong> não chorei durante o espetáculo: tinha osolhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta.Quê? uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, <strong>que</strong> nuncajamais fizera verter uma lágrima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto, mãe carinhosa,esposa imaculada, era força <strong>que</strong> morresse assim, trateada,mordida pelo <strong>de</strong>nte tenaz <strong>de</strong> uma doença sem misericórdia?Confesso <strong>que</strong> tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente,insano...Triste capitulo; passemos a outro mais alegre.CAPÍTULO 24Curto, Mas AlegreFi<strong>que</strong>i prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fielcompêndio <strong>de</strong> trivialida<strong>de</strong> e presunção. Jamais o problema davida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me<strong>de</strong>bruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial,<strong>que</strong> é o estimulo, a vertigem...Para lhes dizer a verda<strong>de</strong> toda, eu refletia as opiniões <strong>de</strong>um cabeleireiro, <strong>que</strong> achei em Mó<strong>de</strong>na, o qual se distinguia pornão as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais<strong>de</strong>morada <strong>que</strong> fosse a operação do toucado, não enfadava nunca;ele intercalava as pentea<strong>de</strong>las com muitos motes e pulhas,cheios <strong>de</strong> um pico, <strong>de</strong> um sabor... E não tinha outra filosofia.Nem eu. Não digo <strong>que</strong> a Universida<strong>de</strong> me não tivesse ensinadoalguma; mas eu <strong>de</strong>corei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o


es<strong>que</strong>leto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos <strong>de</strong>Virgílio, dois <strong>de</strong> Horácio, uma dúzia <strong>de</strong> locuções morais e politicas, para as <strong>de</strong>spesas da conversação. Tratei-os como tratei aHistória e a Jurisprudência. Colhi <strong>de</strong> todas as coisas afraseologia, a casca, a omamentação, <strong>que</strong> eram para o meu espírito, vaidosoenu, o mesmo <strong>que</strong>, para o peito do selvagem, são as conchasdo mar e os <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> pessoa morta.Talvez espante <strong>ao</strong> leitor a fran<strong>que</strong>za com <strong>que</strong> lhe exponhoe realço a minha mediocrida<strong>de</strong>; advirta <strong>que</strong> a fran<strong>que</strong>zaé a primeira virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>funto. Na vida, o olhar da opinião,o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam agente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos,a não esten<strong>de</strong>r <strong>ao</strong> mundo as revelações <strong>que</strong> faz àconsciência; e o melhor da obrigação é quando, à força <strong>de</strong>embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, por<strong>que</strong>em tal caso poupa-se o vexame, <strong>que</strong> é uma sensação penosa,e a hipocrisia, <strong>que</strong> é um vício hediondo. Mas, na morte,<strong>que</strong> diferença! <strong>que</strong> <strong>de</strong>sabafo! <strong>que</strong> liberda<strong>de</strong>! Como a gentepo<strong>de</strong> sacudir fora a capa, <strong>de</strong>itar <strong>ao</strong> fosso as lentejoulas, <strong>de</strong>spregar-se,<strong>de</strong>spintar-se, <strong>de</strong>safeitar-se, confessar lisamente o<strong>que</strong> foi e o <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser! Por<strong>que</strong>, em suma, já não há vizinhos,nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos,não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudoe judicial, per<strong>de</strong> a virtu<strong>de</strong>, logo <strong>que</strong> pisamos o território damorte; não digo <strong>que</strong> ele se não estenda para cá, e nos nãoexamine e julgue; mas a nós é <strong>que</strong> não se nos dá do examenem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurávelcomo o <strong>de</strong>sdém dos finados.CAPÍTULO 25Na TijucaUi! lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamossimples, como era simples a vida <strong>que</strong> levei na Tijuca, duranteas primeiras semanas <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> minha mãe.No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei <strong>de</strong> umaespingarda, alguns livros, roupa, charutos, um mole<strong>que</strong>, - oPrudêncio do capitulo 11, - e fui meter-me numa velha casa<strong>de</strong> nossa proprieda<strong>de</strong>. Meu pai forcejou por me torcer a resolução,mas eu é <strong>que</strong> não podia nem <strong>que</strong>ria obe<strong>de</strong>cer-lhe.Sabina <strong>de</strong>sejava <strong>que</strong> eu fosse morar com ela algum tempo -duas semanas, <strong>ao</strong> menos; meu cunhado esteve a ponto <strong>de</strong> melevar à fina força. Era um bom rapaz este Cotrim; passara <strong>de</strong>estróina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros <strong>de</strong>estiva, labutava <strong>de</strong> manhã até à noite, com ardor, com perseverança.De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças,não pensava em outra coisa. Amava a mulher e um filho, <strong>que</strong>então tinha, e <strong>que</strong> lhe morreu alguns anos <strong>de</strong>pois. Diziam <strong>que</strong>era avaro.


Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio <strong>que</strong> porentão é <strong>que</strong> começou a <strong>de</strong>sabotoar em mim a hipocondria,essa flor amarela, solitária e mórbida, <strong>de</strong> um cheiro inebriantee sutil. - "Que bom <strong>que</strong> é estar triste e não dizercoisa nenhuma!" - Quando esta palavra <strong>de</strong> Shakespeareme chamou a atenção, confesso <strong>que</strong> senti em mim um eco,um eco <strong>de</strong>licioso. Lembra-me <strong>que</strong> estava sentado, <strong>de</strong>baixo<strong>de</strong> um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos,e o espírito ainda mais cabisbaixo do <strong>que</strong> a figura, - oujururu, como dizemos das galinhas tristes. Apertava <strong>ao</strong> peitoa minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coisaa <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ria chamar volúpia do aborrecimento. Volúpiado aborrecimento: <strong>de</strong>cora esta expressão, leitor; guarda-a,examina-a, e se não chegares a entendê-la, po<strong>de</strong>s concluir<strong>que</strong> ignoras uma das sensações mais sutis <strong>de</strong>sse mundo eda<strong>que</strong>le tempo.As vezes caçava, outras dormia, outras lia, - lia muito,- outras enfim não fazia nada; <strong>de</strong>ixava-me atoar <strong>de</strong> idéia emidéia, <strong>de</strong> imaginação em imaginação, como uma borboletavadia ou faminta. E as horas iam pingando uma a uma, o solcaía, as sombras da noite velavam a montanha e a cida<strong>de</strong>.Ninguém me visitava; recomen<strong>de</strong>i expressamente <strong>que</strong> me<strong>de</strong>ixassem só. Um dia, dois dias, três dias, uma semana inteirapassada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-meda Tijuca fora e restituir-me <strong>ao</strong> bulício. Com efeito, <strong>ao</strong>cabo <strong>de</strong> sete dias, estava farto da solidão; a dor aplacara; oespírito já se não contentava com o uso da espingarda e doslivros, nem com a vista do arvoredo e do céu.Reagia a mocida<strong>de</strong>, era preciso viver. Meti no baú o problemada vida e da morte, os hipocondríacos do poeta, as camisas,as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo, quando omole<strong>que</strong> Prudêncio me disse <strong>que</strong> uma pessoa do meu conhecimentose mudara na véspera para uma casa roxa, situada aduzentos passos da nossa.- Quem?- Nhonhô talvez não se lembre mais <strong>de</strong> Dona Eusébia...- Lembra-me... E ela?- Ela e a filha. Vieram ontem <strong>de</strong> manhã.Ocorreu-me logo o episódio <strong>de</strong> 1814, e senti-me vexado;mas adverti <strong>que</strong> os acontecimentos tinham-me dadorazão. Na verda<strong>de</strong>, fora impossível evitar as relações Intimasdo Vilaça com a irmã do sargento-mor; antes mesmodo meu embar<strong>que</strong>, já se bo<strong>que</strong>java misteriosamente nonascimento <strong>de</strong> uma menina. Meu tio João mandou-me dizer<strong>de</strong>pois <strong>que</strong> o Vilaça, <strong>ao</strong> morrer, <strong>de</strong>ixara um bom legadoa Dona Eusébia, coisa <strong>que</strong> <strong>de</strong>u muito <strong>que</strong> falar em todo obairro. O próprio tio João, guloso <strong>de</strong> escândalos, não tratou<strong>de</strong> outro assunto na carta, aliás <strong>de</strong> muitas folhas. Tinham-medado razão os acontecimentos. Ainda porém <strong>que</strong>ma não <strong>de</strong>ssem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura,e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas rela-


ções estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo essareflexão e acabei <strong>de</strong> fechar o baú.- Nhonhô não vai visitar sinhá Dona Eusébia? perguntou-meo Prudêncio. Foi ela <strong>que</strong>m vestiu o corpo da minha<strong>de</strong>funta senhora.Lembrei-me <strong>que</strong> a vira, entre outras senhoras, por ocasiãoda morte e do enterro; ignorava porém <strong>que</strong> ela houvesseprestado a minha mãe esse <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro obséquio. A pon<strong>de</strong>raçãodo mole<strong>que</strong> era razoável; eu <strong>de</strong>via-lhe uma visita; <strong>de</strong>termineifazê-la imediatamente, e <strong>de</strong>scer.CAPÍTULO 26O Autor HesitaSúbito ouço uma voz: - Olá, meu rapaz, isto não é vida!Era meu pai, <strong>que</strong> chegava com duas propostas na algibeira.Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve algunsinstantes <strong>de</strong> pé, a olhar para mim; <strong>de</strong>pois esten<strong>de</strong>u-me a mãocom um gesto comovido:- Meu filho, conforma-te com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.- Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe amão.Não tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum <strong>de</strong> nósaludiu <strong>ao</strong> triste motivo da minha reclusão. Uma só vez falamosnisso, <strong>de</strong> passagem, quando meu pai fez recair a conversana Regência: foi então <strong>que</strong> aludiu à carta <strong>de</strong> pêsames<strong>que</strong> um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta consigo,já bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a muitas outraspessoas. Creio haver dito <strong>que</strong> era <strong>de</strong> um dos Regentes.Leu-ma duas vezes.Já lhe fui agra<strong>de</strong>cer este sinal <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração, concluiumeu pai, e acho <strong>que</strong> <strong>de</strong>ves ir também...- Eu?- Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes <strong>de</strong> Imperador.Demais trago comigo uma idéia, um projeto, ou... sim,digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>putado e umcasamento.Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, masdando às palavras um jeito e disposição, cujo fim era cavá-lasmais profundamente no meu espírito. A proposta, porém,<strong>de</strong>sdizia tanto das minhas sensações últimas, <strong>que</strong> eu chegueia não entendê-la bem. Meu pai não fra<strong>que</strong>ou e repetiu-a;encareceu o lugar e a noiva.- Aceitas?- Não entendo <strong>de</strong> política, disse eu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um instante;quanto à noiva.., <strong>de</strong>ixe-me viver como um urso, <strong>que</strong>sou.- Mas os ursos casam-se, replicou ele.- Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa Maior...


Riu-se meu pai, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> rir, tornou a falar sério. Eramenecessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantasrazões, <strong>que</strong> <strong>de</strong>duziu com singular volubilida<strong>de</strong>, ilustrando-ascom exemplos <strong>de</strong> pessoas do nosso conhecimento.Quanto à noiva, bastava <strong>que</strong> eu a visse; se a visse, iria logopedi-la <strong>ao</strong> pai, logo, sem <strong>de</strong>mora <strong>de</strong> um dia. Experimentouassim a fascinação, <strong>de</strong>pois a persuasão, <strong>de</strong>pois a intimação;eu não dava resposta, afiava a ponta <strong>de</strong> um palito ou faziabolas <strong>de</strong> miolo <strong>de</strong> pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudodizer, nem dócil nem rebel<strong>de</strong> à proposta. Sentia-me aturdido.Uma parte <strong>de</strong> mim mesmo dizia <strong>que</strong> sim, <strong>que</strong> umaesposa formosa e uma posição política eram bens dignos <strong>de</strong>apreço; outra dizia <strong>que</strong> não; e a morte <strong>de</strong> minha mãe meaparecia como um exemplo da fragilida<strong>de</strong> das coisas, dasafeições, da família...- Não vou daqui sem uma resposta <strong>de</strong>finitiva, dissemeu pai. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as sílabas com o<strong>de</strong>do.Bebeu o último gole <strong>de</strong> café; repotreou-se, e entrou a falar<strong>de</strong> tudo, do Senado, da Câmara, da Regência, da restauração,do Evaristo, <strong>de</strong> um coche <strong>que</strong> pretendia comprar, danossa casa <strong>de</strong> Matacavalos... Eu <strong>de</strong>ixava-me estar <strong>ao</strong> cantoda mesa, a escrever <strong>de</strong>svairadamente num pedaço <strong>de</strong> papel,com uma ponta <strong>de</strong> lápis; traçava uma palavra, uma frase, umverso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, semor<strong>de</strong>m, <strong>ao</strong> acaso, assim:arma virum<strong>que</strong> canoAArma virum<strong>que</strong> canoarma virum<strong>que</strong> canoarma virum<strong>que</strong>arma virum<strong>que</strong> canovirum<strong>que</strong>Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certalógica, certa <strong>de</strong>dução; por exemplo, foi o virum<strong>que</strong> <strong>que</strong> me fezchegar <strong>ao</strong> nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba;ia a escrever virum<strong>que</strong>, - e sai-me Virgílio, então continuei:Vir VirgílioVirgílio VirgílioVirgílioVirgílioMeu pai, um pouco <strong>de</strong>speitado com a<strong>que</strong>la indiferença,ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos <strong>ao</strong> papel...- Virgílio! exclamou. Es tu, meu rapaz; a tua noiva chama-sejustamente Virgília.CAPÍTULO 27


Virgília?Virgília? Mas então era a mesma senhora <strong>que</strong> alguns anos<strong>de</strong>pois...? A mesma; era justamente a senhora, <strong>que</strong> em 1869<strong>de</strong>via <strong>assis</strong>tir <strong>ao</strong>s meus últimos dias, e <strong>que</strong> antes, muito antes,teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Na<strong>que</strong>letempo contava apenas uns quinze ou <strong>de</strong>zesseis anos; e era talveza mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, amais voluntariosa. Não digo <strong>que</strong> já lhe coubesse a primazia da beleza,entre as mocinhas do tempo, por<strong>que</strong> isto não é romance,em <strong>que</strong> o autor sobredoura a realida<strong>de</strong> e fecha os olhos às sardase espinhas; mas também não digo <strong>que</strong> lhe maculasse o rostonenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala dasmãos da natureza, cheia da<strong>que</strong>le feitiço, precário e eterno, <strong>que</strong>o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos dacriação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira,ignorante, pueril, cheia <strong>de</strong> uns ímpetos misteriosos; muita preguiçae alguma <strong>de</strong>voção, - <strong>de</strong>voção, ou talvez medo; creio <strong>que</strong> medo.Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral dapessoa <strong>que</strong> <strong>de</strong>via influir mais tar<strong>de</strong> na minha vida; era aquilocom <strong>de</strong>zesseis anos. Tu <strong>que</strong> me lês, se ainda fores viva, quando estaspáginas vierem à luz, - tu <strong>que</strong> me lês, Virgília amada, não reparasna diferença entre a linguagem <strong>de</strong> hoje e a <strong>que</strong> primeiro empregueiquando te vi? Crê <strong>que</strong> era tão sincero então como agora;a morte não me tornou rabugento, nem injusto.- Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da memóriaa imagem do <strong>que</strong> fui, como é <strong>que</strong> po<strong>de</strong>s assim discernira verda<strong>de</strong> da<strong>que</strong>le tempo, e exprimi-la <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos?Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo <strong>que</strong>nos faz senhores da terra, é esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> restaurar o passado,para tocar a instabilida<strong>de</strong> das nossas impressões e a vaida<strong>de</strong>dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal <strong>que</strong> o homem é umcaniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cadaestação da vida é uma edição, <strong>que</strong> corrige a anterior, e <strong>que</strong>será corrigida também, até a edição <strong>de</strong>finitiva, <strong>que</strong> o editordá <strong>de</strong> graça <strong>ao</strong>s <strong>verme</strong>s.CAPÍTULO 28Contanto Que...Virgília? interrompi eu.- Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta,um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, <strong>de</strong>sta altura,viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra...- Que Dutra?- O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influênciapolítica. Vamos lá, aceitas?Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do


otim; <strong>de</strong>clarei <strong>de</strong>pois <strong>que</strong> estava disposto a examinar as duascoisas, a candidatura e o casamento, contanto <strong>que</strong>...- Contanto <strong>que</strong>?- Contanto <strong>que</strong> não fi<strong>que</strong> obrigado aceitar as duas; creio<strong>que</strong> posso ser separadamente homem casado ou homem público...- Todo o homem público <strong>de</strong>ve ser casado, interrompeusentenciosamente meu pai. Mas seja como <strong>que</strong>res; estou portudo; fico certo <strong>de</strong> <strong>que</strong> a vista fará fé! Demais, a noiva e ocasamento são a mesma coisa... isto é, não... saberás <strong>de</strong>pois...Vá; aceito a dilação, contanto <strong>que</strong>...- Contanto <strong>que</strong>?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.- Ah! brejeiro! Contanto <strong>que</strong> não te <strong>de</strong>ixes ficar aíinútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos,para te não ver brilhar, como <strong>de</strong>ves, e te convém,e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuáloe ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos,mas se fosse necessário começar vida nova, começava semhesitar um só minuto. Teme a obscurida<strong>de</strong>, Brás; foge do<strong>que</strong> é ínfimo. Olha <strong>que</strong> os homens valem por diferentesmodos, e <strong>que</strong> o mais seguro <strong>de</strong> todos é valer pela opiniãodos outros homens. Não estragues as vantagens da tuaposição, os teus meios...E foi por diante o mágico, a agitar diante <strong>de</strong> mim um chocalho,como me faziam, em pe<strong>que</strong>no, para eu andar <strong>de</strong>pressa,e a flor da hipocondria recolheu-se <strong>ao</strong> botão para <strong>de</strong>ixar <strong>ao</strong>utra flor menos amarela, e nada mórbida, - o amor da nomeada,o emplasto Brás Cubas.CAPÍTULO 29A VisitaVencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casamento,Virgília e a Câmara dos Deputados. - As duas Virgílias,disse ele num assomo <strong>de</strong> ternura política. Aceitei-os;meu pai <strong>de</strong>u-me dois fortes abraços. Era o seu próprio sangue<strong>que</strong> ele, enfim, reconhecia. Rigorosamente, o filho <strong>de</strong>le acabava<strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarcar na<strong>que</strong>le instante, <strong>de</strong> roda<strong>que</strong> <strong>de</strong> linho emãos nos bolsos. Havia então nos olhos <strong>de</strong> meu pai algumacoisa do velho Cid; era a alma <strong>que</strong> coligira numa só flama todasas últimas centelhas.- Desces comigo?- Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita aDona Eusébia...Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; <strong>de</strong>spediu-see <strong>de</strong>sceu. Eu, na tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse mesmo dia, fui visitar DonaEusébia. Achei-a a repreen<strong>de</strong>r um preto jardineiro, mas <strong>de</strong>ixoutudo para vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tãosincero, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>sacanhou logo. Creio <strong>que</strong> chegou a cingirmecom o seu par <strong>de</strong> braços robustos. Fez-me sentar <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>


si, na varanda, entre muitas exclamações <strong>de</strong> contentamento:- Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos...Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra bem<strong>de</strong> mim...Disse-lhe <strong>que</strong> sim, <strong>que</strong> não era possível es<strong>que</strong>cer umaamiga tão familiar <strong>de</strong> nossa casa. Dona Eusébia começou afalar <strong>de</strong> minha mãe, com muitas sauda<strong>de</strong>s, com tantas sauda<strong>de</strong>s,<strong>que</strong> me cativou logo, posto me entristecesse. Ela percebeu-onos meus olhos, e torceu a ré<strong>de</strong>a à conversação; pediume<strong>que</strong> lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim,os namoros também; confessou-me <strong>que</strong> era uma velha patusca.Nisto recor<strong>de</strong>i-me do episódio <strong>de</strong> 1814, ela, o Vilaça, a moita,o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger<strong>de</strong> porta, um farfalhar <strong>de</strong> saias e esta palavra:- Mamãe... mamae...CAPÍTULO 30A Flor da MoitaA voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, <strong>que</strong>se <strong>de</strong>teve à porta, alguns instantes, <strong>ao</strong> ver gente estranha.Silêncio curto e constrangido. Dona Eusébia <strong>que</strong>brou-o, enfim,com resolução e fran<strong>que</strong>za:- Vem cá, Eugênia, disse ela, cumprimenta o DoutorBrás Cubas, filho do Senhor Cubas; veio da Europa.E voltando-se para mim:- Minha filha Eugênia.Eugênia, a flor da moita, mal respon<strong>de</strong>u <strong>ao</strong> gesto <strong>de</strong> cortesia<strong>que</strong> lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamentese aproximou da ca<strong>de</strong>ira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma dastranças do cabelo, cuja ponta se <strong>de</strong>smanchara. - Ah! travessa!dizia. Não imagina, doutor, o <strong>que</strong> isto é... E beijou-acom tão expansiva ternura <strong>que</strong> me comoveu um pouco; lembrou-meminha mãe, e - direi tudo, - tive umas cócegas <strong>de</strong>ser pai.- Travessa? disse eu. Pois já não está em ida<strong>de</strong> própria,<strong>ao</strong> <strong>que</strong> parece.- Quantos lhe dá?- Dezessete.- Menos um.- Dezesseis. Pois então! é uma moça.Não pô<strong>de</strong> Eugênia encobrir a satisfação <strong>que</strong> sentia comesta minha palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes,ereta, fria e muda. Em verda<strong>de</strong>, ela parecia ainda maismulher do <strong>que</strong> era; seria criança nos seus folgares <strong>de</strong> moça;mas assim quieta, impassível, tinha a compostura da mulhercasada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco dagraça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe


gran<strong>de</strong>s elogios, eu escutava-os <strong>de</strong> boa sombra, e ela sorria,com os olhos fúlgidos, como se lá <strong>de</strong>ntro do cérebro lhe estivessea voar uma borboletinha <strong>de</strong> asas <strong>de</strong> ouro e olhos <strong>de</strong> diamante...Digo lá <strong>de</strong>ntro, por<strong>que</strong> cá fora o <strong>que</strong> esvoaçou foi umaborboleta preta, <strong>que</strong> subitamente penetrou na varanda, ecomeçou a bater as asas em <strong>de</strong>rredor <strong>de</strong> Dona Eusébia. DonaEusébia <strong>de</strong>u um grito, levantou-se, praguejou umas palavrassoltas: - T'esconjuro!... sai, diabo!... Virgem Nossa Senhora!- Não tenha medo, disse eu; e, tirando o lenço, expelia borboleta. Dona Eusébia sentou-se outra vez, ofegante,um pouco envergonhada; a filha, po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> pálida<strong>de</strong> medo, dissimulava a impressão com muita força <strong>de</strong>vonta<strong>de</strong>. Apertei-lhes a mão e sai, a rir comigo da superstiçãodas duas mulheres, um rir filosófico, <strong>de</strong>sinteressante,superior. De tar<strong>de</strong>, vi passar a cavalo a filha <strong>de</strong> DonaEusébia, seguida <strong>de</strong> um pajem; fez-me um cumprimentocom a ponta do chicote; e confesso <strong>que</strong> me lisonjeei com aidéia <strong>de</strong> <strong>que</strong>, alguns passos adiante, ela voltaria a cabeçapara trás; mas não voltou.CAPÍTULO 31A Borboleta PretaNo dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para<strong>de</strong>scer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negracomo a outra, e muito maior do <strong>que</strong> ela. Lembrou-me o casoda véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha <strong>de</strong> DonaEusébia, no susto <strong>que</strong> tivera e na dignida<strong>de</strong> <strong>que</strong>, apesar<strong>de</strong>le, soube conservar. A borboleta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> esvoaçarmuito em torno <strong>de</strong> mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, elafoi pousar na vidraça; e, por<strong>que</strong> eu sacudisse <strong>de</strong> novo, saiudali e veio parar em cima <strong>de</strong> um velho retrato <strong>de</strong> meu pai.Era negra como a noite; e o gesto brando com <strong>que</strong>, umavez posta, começou a mover as asas, tinha um certo arescarninho, uma espécie <strong>de</strong> ironia mefistofélica, <strong>que</strong> meaborreceu muito. Dei <strong>de</strong> ombros, saí do quarto; mas tornandolá, minutos <strong>de</strong>pois, e achando-a ainda no mesmolugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão <strong>de</strong> uma toalha,bati-lhe e ela caiu.Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhasda cabeça. Apie<strong>de</strong>i-me; tomei-a na palma da mão e fui <strong>de</strong>pôlano peitoril da janela. Era tar<strong>de</strong>; a infeliz expirou <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> alguns segundos. Fi<strong>que</strong>i um pouco aborrecido, incomodado.- Também por <strong>que</strong> diabo não era ela azul? disse eu comigo.


E esta reflexão, - uma das mais profundas <strong>que</strong> se temfeito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a invenção das borboletas, - me consolou domalefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estara contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei<strong>que</strong> ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã eralinda. Veio por ali fora, mo<strong>de</strong>sta e negra, espairecendo as suasborboletices, sob a vasta cúpula <strong>de</strong> um céu azul, <strong>que</strong> é sempreazul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dácomigo. Suponho <strong>que</strong> nunca teria visto um homem; não sabia,portanto, o <strong>que</strong> era o homem; <strong>de</strong>screveu infinitas voltasem torno do meu corpo, e viu <strong>que</strong> me movia, <strong>que</strong> tinha olhos,braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disseconsigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas."A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, <strong>que</strong> é tambémsugestivo, insinuou-lhe <strong>que</strong> o melhor modo <strong>de</strong> agradar <strong>ao</strong>seu criador era beijá-lo na testa, e ela beijou-me na testa.Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali oretrato <strong>de</strong> meu pai, e não é impossível <strong>que</strong> <strong>de</strong>scobrisse meiaverda<strong>de</strong>, a saber, <strong>que</strong> estava ali o pai do inventor das borboletas,e voou a pedir-lhe misericórdia.Pois um golpe <strong>de</strong> toalha rematou a aventura. Não lhevaleu a imensida<strong>de</strong> azul, nem a alegria das flores, nem apompa das folhas ver<strong>de</strong>s, contra uma toalha <strong>de</strong> rosto, doispalmos <strong>de</strong> linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas!Por<strong>que</strong>, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor <strong>de</strong>laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível <strong>que</strong>eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos.Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o<strong>de</strong>do gran<strong>de</strong> <strong>ao</strong> polegar, <strong>de</strong>spedi um piparote e o cadáver caiuno jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas...Não, volto à primeira idéia; creio <strong>que</strong> para ela era melhorter nascido azul.4CAPÍTULO 32Coxa <strong>de</strong> NascençaFui dali acabar os preparativos da viagem. já agora nãome <strong>de</strong>moro mais. Desço imediatamente; <strong>de</strong>sço, ainda <strong>que</strong>algum leitor circunspecto me <strong>de</strong>tenha para perguntar se ocapítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega aempulhação... Ai <strong>de</strong> mim! Não contava com Dona Eusébia.Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidarmepara transferir a <strong>de</strong>scida, e ir lá jantar nesse dia. Chegueia recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, <strong>que</strong> não pu<strong>de</strong><strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> aceitar, <strong>de</strong>mais, era-lhe <strong>de</strong>vida a<strong>que</strong>la compensação;fui.Eugênia <strong>de</strong>sataviou-se nesse dia por minha causa. Creio<strong>que</strong> foi por minha causa, - se é <strong>que</strong> não andava muita vez


assim. Nem as bichas <strong>de</strong> ouro, <strong>que</strong> trazia na véspera, lhe pendiamagora das orelhas, duas orelhas finamente recortadasnuma cabeça <strong>de</strong> ninfa. Um simples vestido branco, <strong>de</strong> cassa,sem enfeites, tendo <strong>ao</strong> colo, em vez <strong>de</strong> broche, um botão <strong>de</strong>madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas,e nem sombra <strong>de</strong> pulseira.Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéiasclaras, maneiras chás, certa graça natural, um ar <strong>de</strong> senhora,e não sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a bocada mãe, a qual me lembrava o episódio <strong>de</strong> 1814, e então davameímpetos <strong>de</strong> glosar o mesmo mote à filha...- Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo<strong>que</strong> esgotamos o último gole <strong>de</strong> café.Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então <strong>que</strong> noteiuma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco,<strong>que</strong> eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãecalou-se; a filha respon<strong>de</strong>u sem titubear:- Não, senhor, sou coxa <strong>de</strong> nascença.Man<strong>de</strong>i-me a todos os diabos; chamei-me <strong>de</strong>sastrado, grosseirão.Com efeito, a simples possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser coxa erabastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me <strong>que</strong>da primeira vez <strong>que</strong> a vi - na véspera - a moça chegara-selentamente à ca<strong>de</strong>ira da mãe, e <strong>que</strong> na<strong>que</strong>le dia, já a achei àmesa <strong>de</strong> jantar. Talvez fosse para encobrir o <strong>de</strong>feito; mas por<strong>que</strong> razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei <strong>que</strong> iatriste.Tratei <strong>de</strong> apagar os vestígios <strong>de</strong> meu <strong>de</strong>sazo; não me foidifícil, por<strong>que</strong> a mãe era, segundo confessara, uma velhapatusca, e prontamente travou <strong>de</strong> conversa comigo. Vimostoda a chácara, árvores, flores, tan<strong>que</strong> <strong>de</strong> patos, tan<strong>que</strong> <strong>de</strong>lavar, uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas, <strong>que</strong> ela me ia mostrando, ecomentando, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> eu, <strong>de</strong> soslaio, perscrutava os olhos<strong>de</strong> Eugênia...Palavra <strong>que</strong> o olhar <strong>de</strong> Eugênia não era coxo, mas direito,perfeitamente são; vinha <strong>de</strong> uns olhos pretos e tranqüilos.Creio <strong>que</strong> duas ou três vezes baixaram eles à terra, um poucoturvados; mas duas ou três somente; em geral fitavam-me comfran<strong>que</strong>za, sem temerida<strong>de</strong>, nem biocos.CAPÍTULO 33Bem-Aventurados os <strong>que</strong> Não DescemO pior é <strong>que</strong> era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma bocatão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contrastefaria suspeitar <strong>que</strong> a natureza é às vezes um imenso escárnio.Por <strong>que</strong> bonita, se coxa? por <strong>que</strong> coxa, se bonita? Talera a pergunta <strong>que</strong> eu vinha fazendo a mim mesmo <strong>ao</strong> voltarpara casa, <strong>de</strong> noite, e não atinava com a solução do enigma.O melhor <strong>que</strong> há, quando se não resolve um enigma, é sacu-


di-lo pela janela fora; foi o <strong>que</strong> eu fiz; lancei mão <strong>de</strong> uma toalhae enxotei essa outra borboleta preta, <strong>que</strong> me a<strong>de</strong>java nocérebro. Fi<strong>que</strong>i aliviado e fui dormir. Mas o sonho, <strong>que</strong> é umafresta do espírito, <strong>de</strong>ixou novamente entrar o bichinho, e aifi<strong>que</strong>i eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.Amanheceu chovendo, transferi a <strong>de</strong>scida; mas no outrodia, a manhã era límpida e azul, e apesar disso <strong>de</strong>ixei-meficar, não menos <strong>que</strong> no terceiro dia, e no quarto, até o fimda semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixoa família a chamar-me, e a noiva, e o parlamento, e eusem acudir a coisa nenhuma, enlevado <strong>ao</strong> pé da minha VênusManca. Enlevado é uma maneira <strong>de</strong> realçar o estilo; nãohavia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral.Queria-lhe, é verda<strong>de</strong>; <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>ssa criatura tão singela, filhaespúria e coxa, feita <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong>sprezo, <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>la sentiamebem, e ela creio <strong>que</strong> ainda se sentia melhor, <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> mim.E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava-nos,mas pouco; temperava a necessida<strong>de</strong> com a convivência.A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava-mea alma em flor.- O senhor <strong>de</strong>sce amanhã? disse-me ela no sábado.- Pretendo.- Não <strong>de</strong>sça.Não <strong>de</strong>sci, e acrescentei um versículo <strong>ao</strong> Evangelho: -Bem-aventurados os <strong>que</strong> não <strong>de</strong>scem, por<strong>que</strong> <strong>de</strong>les é o primeirobeijo das damas. Com efeito, foi no domingo esse primeirobeijo <strong>de</strong> Eugênia, - o primeiro <strong>que</strong> nenhum outro varãojamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamenteentregue, como um <strong>de</strong>vedor honesto paga uma dívida.Pobre Eugênia! Se tu soubesses <strong>que</strong> idéias me vagavampela mente fora na<strong>que</strong>la ocasião! Tu, trêmula <strong>de</strong> comoção,com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teubem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, noVilaça, e a suspeitar <strong>que</strong> não podias mentir <strong>ao</strong> teu sangue, àtua origem...Dona Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita,<strong>que</strong> nos apanhasse <strong>ao</strong> pé um do outro. Eu fui até à janela.Eugênia sentou-se a consertar uma das tranças. Que dissimulaçãograciosa! <strong>que</strong> arte infinita e <strong>de</strong>licada! <strong>que</strong> tartuficeprofunda! e tudo isso natural, vivo, não estudado, naturalcomo o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! DonaEusébia não suspeitou nada.CAPÍTULO 34A Uma Alma SensívelHá aí, entre as cinco ou <strong>de</strong>z pessoas <strong>que</strong> me lêem, há aíuma alma sensível, <strong>que</strong> está <strong>de</strong>certo um pouquito agastada


com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte <strong>de</strong> Eugênia,e talvez.., sim, talvez, lá no fundo <strong>de</strong> si mesma, me chamecínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa <strong>de</strong> Diana! estainjúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavassealguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não soucínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em <strong>que</strong> se<strong>de</strong>ram peças <strong>de</strong> todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas,a comédia louçã, a <strong>de</strong>sgrenhada farsa, os autos, as bufonerias,um pan<strong>de</strong>mônio, alma sensível, uma barafunda <strong>de</strong>coisas e pessoas, em <strong>que</strong> podias ver tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a rosa <strong>de</strong>Esmirna até a arruda do teu quintal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o magnífico leito<strong>de</strong> Cleópatra até o recanto da praia em <strong>que</strong> o mendigo tirita oseu sono. Cruzavam-se nele pensamentos <strong>de</strong> vária casta e feição.Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beijaflor;havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão,alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, -<strong>que</strong> isso às vezes é dos óculos, - e acabemos <strong>de</strong> uma vez comesta flor da moita.CAPÍTULO 35O Caminho <strong>de</strong> DamascoOra aconteceu, <strong>que</strong>, oito dias <strong>de</strong>pois, como eu estivesseno caminho <strong>de</strong> Damasco, ouvi uma voz misteriosa, <strong>que</strong> mesussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): "Levanta-te,e entra na cida<strong>de</strong>." Essa voz saia <strong>de</strong> mim mesmo, e tinha duasorigens: a pieda<strong>de</strong>, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>sarmava ante a candura da pe<strong>que</strong>na,e o terror <strong>de</strong> vir a amar <strong>de</strong>veras, e <strong>de</strong>sposá-la. Umamulher coxa! Quanto a este motivo da minha <strong>de</strong>scida, nãohá duvidar <strong>que</strong> ela o achou e mo disse. Foi na varanda, natar<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma segunda-feira, <strong>ao</strong> anunciar-lhe <strong>que</strong> na seguintemanhã viria para baixo. - A<strong>de</strong>us, suspirou ela esten<strong>de</strong>ndomea mão com simplicida<strong>de</strong>; faz bem. - E como eu nada dissesse,continuou: - Faz bem em fugir <strong>ao</strong> ridículo <strong>de</strong> casarcomigo. Ia dizer-lhe <strong>que</strong> não; ela retirou-se lentamente, engolindoas lágrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhepor todos os santos do céu <strong>que</strong> eu era obrigado a <strong>de</strong>scer, mas<strong>que</strong> não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> lhe <strong>que</strong>rer e muito; tudo hipérboles frias,<strong>que</strong> ela escutou sem dizer nada.- Acredita-me? perguntei eu no fim.- Não, e digo-lhe <strong>que</strong> faz bem.Quis retê-la, mas o olhar <strong>que</strong> me lançou não foi já <strong>de</strong> súplica,senão <strong>de</strong> império. Eu <strong>de</strong>sci da Tijuca, na manhã seguinte,um pouco amargurado, outro pouco satisfeito; e vinha dizendoa mim mesmo <strong>que</strong> era justo obe<strong>de</strong>cer a meu pai, <strong>que</strong> eraconveniente abraçar a carreira política.., <strong>que</strong> a constituição...<strong>que</strong> a minha noiva.., <strong>que</strong> o meu cavalo...


CAPÍTuLO 36A Propósito <strong>de</strong> BotasMeu pai, <strong>que</strong> me não esperava, abraçou-me cheio <strong>de</strong> ternurae agra<strong>de</strong>cimento. - Agora é <strong>de</strong>veras? disse ele. Possoenfim...?Deixei-o nessa reticência, e fui <strong>de</strong>scalçar as botas, <strong>que</strong>estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e <strong>de</strong>itei-mea fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás <strong>de</strong>les,entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então consi<strong>de</strong>rei<strong>que</strong> as botas apertadas são uma das maiores venturas daterra, por<strong>que</strong>, fazendo doer os pés, dão azo <strong>ao</strong> prazer <strong>de</strong> as <strong>de</strong>scalçar.Mortifica os pés, <strong>de</strong>sgraçado, <strong>de</strong>smortifica-os <strong>de</strong>pois, eaí tens a felicida<strong>de</strong> barata, <strong>ao</strong> sabor dos sapateiros e <strong>de</strong>Epicuro.Enquanto esta idéia me trabalhava no famoso trapézio, lançavaeu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha per<strong>de</strong>r-seno horizonte do pretérito, e sentia <strong>que</strong> o meu coração nãotardaria também a <strong>de</strong>scalçar as suas botas. E <strong>de</strong>scalçou-as olascivo. Quatro ou cinco dias <strong>de</strong>pois, saboreava esse rápido,inefável e incoercível momento <strong>de</strong> gozo, <strong>que</strong> suce<strong>de</strong> a umador pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daquiinferi eu <strong>que</strong> a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, por<strong>que</strong>só aguça a fome, com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>parar a ocasião <strong>de</strong> comer,e não inventou os calos, senão por<strong>que</strong> eles aperfeiçoama felicida<strong>de</strong> terrestre. Em verda<strong>de</strong> vos digo <strong>que</strong> toda a sabedoriahumana não vale um par <strong>de</strong> botas curtas.Tu, minha Eugênia, é <strong>que</strong> não as <strong>de</strong>scalçaste nunca; foste aípela estrada da vida, man<strong>que</strong>jando da perna e do amor, tristecomo os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até <strong>que</strong>vieste também para esta outra margem... O <strong>que</strong> eu não sei é se atua existência era muito necessária <strong>ao</strong> século. Quem sabe? Talvezum comparsa <strong>de</strong> menos fizesse patear a tragédia humana.CAPÍTULO 37Enfim!Enfim! eis aqui Virgília. Antes <strong>de</strong> ir à casa do ConselheiroDutra, perguntei a meu pai se havia algum ajuste prévio <strong>de</strong>casamento.- Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele ateu respeito, confessei-lhe o <strong>de</strong>sejo <strong>que</strong> tinha <strong>de</strong> te ver <strong>de</strong>putado;e <strong>de</strong> tal modo falei, <strong>que</strong> ele prometeu fazer alguma coisa,e creio <strong>que</strong> o fará. Quanto à noiva, é o nome <strong>que</strong> dou auma criaturinha, <strong>que</strong> é uma jóia, uma flor, uma estrela, umacoisa rara... é a filha <strong>de</strong>le; imaginei <strong>que</strong>, se casasses com ela,mais <strong>de</strong>pressa serias <strong>de</strong>putado.


- Só isto?- Só isto.Fomos dali à casa do Dutra. Era uma pérola esse homem,risonho, jovial, patriota, um pouco irritado com os males públicos,mas não <strong>de</strong>sesperando <strong>de</strong> os curar <strong>de</strong>pressa. Achou <strong>que</strong>a minha candidatura era legítima; convinha, porém, esperaralguns meses. E logo me apresentou à mulher, - uma estimávelsenhora, - e à filha, <strong>que</strong> não <strong>de</strong>smentiu em nada opanegírico <strong>de</strong> meu pai. Juro-vos <strong>que</strong> em nada. Rele<strong>de</strong> o capitulo28. Eu, <strong>que</strong> levava idéias a respeito da pe<strong>que</strong>na, fitei-a<strong>de</strong> certo modo; ela, <strong>que</strong> não sei se as tinha, não me fitou <strong>de</strong>modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmenteconjugal. No fim <strong>de</strong> um mês estávamos íntimos.CAPÍTULO 38A Quarta Edição- Venha cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.Aceitei o convite. No dia seguinte, man<strong>de</strong>i <strong>que</strong> a sege meesperasse no largo <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula, e fui dar váriasvoltas. Lembra-vos ainda a minha teoria das edições humanas?Pois sabei <strong>que</strong>, na<strong>que</strong>le tempo, estava eu na quarta edição,revista e emendada, mas ainda inçada <strong>de</strong> <strong>de</strong>scuidos ebarbarismos; <strong>de</strong>feito <strong>que</strong>, aliás, achava alguma compensaçãono tipo, <strong>que</strong> era elegante, e na enca<strong>de</strong>rnação, <strong>que</strong> era luxuosa.Dadas as voltas, <strong>ao</strong> passar pela rua dos Ourives, consulto orelógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja<strong>que</strong> tinha à mão; era um cubículo, - pouco mais, - empoeiradoe escuro.Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher,cujo rosto amarelo e bexiguento não se <strong>de</strong>stacava logo à primeiravista; mas logo <strong>que</strong> se <strong>de</strong>stacava era um espetáculo curioso.Não podia ter sido feia; <strong>ao</strong> contrário, via-se <strong>que</strong> forabonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, <strong>de</strong>strufram-lhea flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis;os sinais, gran<strong>de</strong>s e muitos, faziam saliências e encarnas,<strong>de</strong>clives e aclives, e davam uma sensação <strong>de</strong> lixa grossa, enormementegrossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliástinham uma expressão singular e repugnante, <strong>que</strong> mudou, entretanto,logo <strong>que</strong> eu comecei a falar. Quanto <strong>ao</strong> cabelo penteado<strong>ao</strong> <strong>de</strong>sdém, estava ruço e quase tão poento como os portaisda loja. Num dos <strong>de</strong>dos da mão es<strong>que</strong>rda fulgia-lhe um diamante.Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.Não a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-meapenas lhe dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram aexpressão usual por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe ummovimento como para escon<strong>de</strong>r-se ou fugir; era o instinto davaida<strong>de</strong>, <strong>que</strong> não durou mais <strong>de</strong> um instante. Marcela acomodou-see sorriu.- Quer comprar alguma coisa? disse ela esten<strong>de</strong>ndo-me


a mão.Não respondi nada. Marcela compreen<strong>de</strong>u a causa do meusilêncio (não era difícil), e só hesitou, creio eu, em <strong>de</strong>cidir o<strong>que</strong> dominava mais, se o assombro do presente, se a memóriado passado. Deu-me uma ca<strong>de</strong>ira, e, com o balcão permeio,falou-me longamente <strong>de</strong> si, da vida <strong>que</strong> levara, das lágrimas<strong>que</strong> eu lhe fizera verter, das sauda<strong>de</strong>s, dos <strong>de</strong>sastres, enfim dasbexigas, <strong>que</strong> lhe escalavraram o rosto, e do tempo, <strong>que</strong> ajudoua moléstia, adiantando-lhe a <strong>de</strong>cadência. Verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong>tinha a alma <strong>de</strong>crépita. Ven<strong>de</strong>ra tudo, quase tudo; um homem,<strong>que</strong> a amara outrora, e lhe morreu nos braços, <strong>de</strong>ixara-lhea<strong>que</strong>la loja <strong>de</strong> ourivesaria, mas, para <strong>que</strong> a <strong>de</strong>sgraça fosse completa,era agora pouco buscada a loja - talvez pela singularida<strong>de</strong><strong>de</strong> a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me <strong>que</strong> lhecontasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lha; nãoera longa, nem interessante.- Casou? disse Marcela no fim <strong>de</strong> minha narração.- Ainda não, respondi secamente.Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia <strong>de</strong> <strong>que</strong>mreflete ou relembra; eu <strong>de</strong>ixei-me ir então <strong>ao</strong> passado, e, nomeio das recordações e sauda<strong>de</strong>s, perguntei a mim mesmo por<strong>que</strong> motivo fizera tanto <strong>de</strong>satino. Não era esta certamente aMarcela <strong>de</strong> 1822; mas a beleza <strong>de</strong> outro tempo valia uma terçaparte dos meus sacrifícios? Era o <strong>que</strong> eu buscava saber, interrogandoo rosto <strong>de</strong> Marcela. O rosto dizia-me <strong>que</strong> não; <strong>ao</strong>mesmo tempo os olhos me contavam <strong>que</strong>, já outrora, comohoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é <strong>que</strong> não souberamver-lha; eram olhos da primeira edição.- Mas por <strong>que</strong> entrou aqui? Viu-me da rua? perguntouela, saindo da<strong>que</strong>la espécie <strong>de</strong> torpor.- Não, supunha entrar numa casa <strong>de</strong> relojoeiro; <strong>que</strong>riacomprar um vidro para este relógio; vou a outra parte; <strong>de</strong>sculpe-me;tenho pressa.Marcela suspirou com tristeza. A verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> eu mesentia pungido e aborrecido, <strong>ao</strong> mesmo tempo, e ansiava porme ver fora da<strong>que</strong>la casa. Marcela, entretanto, chamou ummole<strong>que</strong>, <strong>de</strong>u-lhe o relógio, e, apesar da minha oposição,mandou-o, a uma loja na vizinhança, comprar o vidro. Nãohavia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela então <strong>que</strong> <strong>de</strong>sejavater a proteção dos conhecidos <strong>de</strong> outro tempo; pon<strong>de</strong>rou<strong>que</strong> mais tar<strong>de</strong> ou mais cedo era natural <strong>que</strong> me casasse,e afiançou <strong>que</strong> me daria finas jóias por preços baratos. Nãodisse preços baratos, mas usou uma metáfora <strong>de</strong>licada e transparente.Entrei a <strong>de</strong>sconfiar <strong>que</strong> não pa<strong>de</strong>cera nenhum <strong>de</strong>sastre(salvo a moléstia), <strong>que</strong> tinha o dinheiro a bom recado,e <strong>que</strong> negociava com o único fim <strong>de</strong> acudir paixão do lucro,<strong>que</strong> era o <strong>verme</strong> roedor da<strong>que</strong>la existência; foi isso mesmo <strong>que</strong>me disseram <strong>de</strong>pois.CAPÍTULO 39


O VizinhoEnquanto eu fazia comigo mesmo a<strong>que</strong>la reflexão, entrouna loja um sujeito baixo, sem chapéu, trazendo pela mão umamenina <strong>de</strong> quatro anos.- Como passou <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong> manhã? disse ele a Marcela.- Assim, assim. Vem cá, Maricota.O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para<strong>de</strong>ntro do balcão.- Anda, disse ele; pergunta a Dona Marcela como passoua noite. Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe não tinhapodido vesti-la... Então, Maricota? Toma a bênção... Olha avara <strong>de</strong> marmelo! Assim... Não imagina o <strong>que</strong> ela é lá em casa;fala na senhora a todos os instantes, e aqui parece umapamonha. Ainda ontem... Digo, Maricota?- Não diga, não, papai.- Então foi alguma coisa feia? perguntou Marcela batendona cara da menina.- Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noitesum padre-nosso e uma ave-maria, oferecidos a Nossa Senhora;mas a pe<strong>que</strong>na ontem veio pedir-me com voz muito humil<strong>de</strong>...imagine o quê?... <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria oferecê-los a SantaMarcela.- Coitadinha! disse Marcela beijando-a.- E um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina...A mãe diz <strong>que</strong> é feitiço...Contou mais algumas coisas o sujeito, todas mui agradáveis,até <strong>que</strong> saiu levando a menina, não sem <strong>de</strong>itar-me umolhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela <strong>que</strong>mera ele.- É um relojoeiro <strong>de</strong> vizinhança, um bom homem; amulher também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito<strong>de</strong> mim... é boa gente.Ao proferir estas palavras havia um tremor <strong>de</strong> alegria navoz <strong>de</strong> Marcela; e no rosto como <strong>que</strong> se lhe espraiou uma onda<strong>de</strong> ventura...CAPÍTULO 40Na SegeNisto entrou o mole<strong>que</strong> trazendo o relógio com o vidronovo. Era tempo; já me custava estar ali; <strong>de</strong>i uma moedinha<strong>de</strong> prata <strong>ao</strong> mole<strong>que</strong>; disse a Marcela <strong>que</strong> voltaria noutra ocasião,e saí a passo largo. Para dizer tudo, <strong>de</strong>vo confessar <strong>que</strong> ocoração me batia um pouco; mas era uma espécie <strong>de</strong> dobre<strong>de</strong> finados. O espírito ia travado <strong>de</strong> impressões opostas. Notem<strong>que</strong> a<strong>que</strong>le dia amanhecera alegre para mim. Meu pai, <strong>ao</strong>almoço, repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso <strong>que</strong>


eu tinha <strong>de</strong> proferir na Câmara dos Deputados; rimo-nosmuito, e o sol também, <strong>que</strong> estava brilhante, como nos maisbelos dias do mundo; do mesmo modo <strong>que</strong> Virgília <strong>de</strong>via rir,quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vaisenão quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeiraloja <strong>que</strong> me fica à mão; e eis me surge o passado, ei-lo <strong>que</strong> melacera e beija; ei-lo <strong>que</strong> me interroga, com um rosto cortado<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s e bexigas...Lá o <strong>de</strong>ixei; meti-me às pressas na sege, <strong>que</strong> me esperavano largo <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula, e or<strong>de</strong>nei <strong>ao</strong> boleeiro <strong>que</strong>rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a segeentrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavamrapidamente a lama <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixara a chuva recente, e tudo issome parecia estar parado. Não há, às vezes, um certo ventomorno <strong>que</strong> não bochorno, não forte nem áspero, mas abafadiço,<strong>que</strong> nos não leva o chapéu da cabeça, nem rodomoinhanas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do <strong>que</strong>se fizesse uma e outra coisa, por<strong>que</strong> abate, afrouxa, e como<strong>que</strong> dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e,certo <strong>de</strong> <strong>que</strong> ele me soprava por achar-me na<strong>que</strong>la espécie <strong>de</strong>garganta entre o passado e o presente, almejava por sair à planíciedo futuro. O pior é <strong>que</strong> a sege não andava.- João, bra<strong>de</strong>i eu <strong>ao</strong> boleeiro. Esta sege anda ou nãoanda?- Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta <strong>de</strong> sinhôConselheiro.CAPÍTULO 41A AlucinaçãoE era verda<strong>de</strong>. Entrei apressado, achei Virgília ansiosa,mau humor, fronte nublada. A mãe, <strong>que</strong> era surda, estava nasala com ela. No fim dos cumprimentos disse-me a moça comsequidão:- Esperávamos <strong>que</strong> viesse mais cedo.Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo <strong>que</strong> empacara,e <strong>de</strong> um amigo, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>tivera. De repente morre-mea voz nos lábios, fico tolhido <strong>de</strong> assombro. Virgília...seria Virgília a<strong>que</strong>la moça? Fitei-a muito, e a sensação foitão penosa, <strong>que</strong> recuei um passo e <strong>de</strong>sviei a vista. Tomei <strong>ao</strong>lhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, aindana véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agoraamarela, estigmada pelo mesmo flagelo <strong>que</strong> <strong>de</strong>vastara orosto da espanhola. Os olhos, <strong>que</strong> eram travessos, fizeramsemurchos; tinha o lábio triste e a atitu<strong>de</strong> cansada. Olheiabem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim.Não me enganava; eram as bexigas. Creio <strong>que</strong> fiz um gesto<strong>de</strong> repulsa.Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fi<strong>que</strong>i algum


tempo a olhar para os meus próprios pés. Devia sair ou ficar?Rejeitei o primeiro alvitre, <strong>que</strong> era simplesmente absurdo, eencaminhei-me para Virgília, <strong>que</strong> lá estava sentada e calada.Céus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Emvão procurei no rosto <strong>de</strong>la algum vestígio da doença; nenhumhavia; era a pele fina e branca do costume.- Nunca me viu? perguntou Virgília, vendo <strong>que</strong> a encaravacom insistência.- Tão bonita, nunca.Sentei-me, enquanto Virgília, calada, fazia estalar asunhas. Seguiram-se alguns segundos <strong>de</strong> pausa. Falei-lhe <strong>de</strong>coisas estranhas <strong>ao</strong> inci<strong>de</strong>nte; ela porém não me respondianada, nem olhava para mim. Menos o estalido, era a estátuado Silêncio. Uma só vez me <strong>de</strong>itou os olhos, mas muito <strong>de</strong>cima, soerguendo a pontinha es<strong>que</strong>rda do lábio, contraindoas sobrancelhas, <strong>ao</strong> ponto <strong>de</strong> as unir; e todo esse conjunto <strong>de</strong>coisas dava-lhe <strong>ao</strong> rosto uma expressão média entre cômica etrágica.Havia alguma afetação na<strong>que</strong>le <strong>de</strong>sdém; era um arrebi<strong>que</strong>do gesto. Lá <strong>de</strong>ntro, ela pa<strong>de</strong>cia, e não pouco, - oufosse mágoa pura, ou só <strong>de</strong>speito; e por<strong>que</strong> a dor <strong>que</strong> se dissimuladói mais, é mui provável <strong>que</strong> Virgília pa<strong>de</strong>cesse emdobro do <strong>que</strong> realmente <strong>de</strong>via pa<strong>de</strong>cer. Creio <strong>que</strong> isto émetafísica.CAPÍTULO 42Que Escapou a AristótelesOutra coisa <strong>que</strong> também me parece metafísica é isto: -Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontr<strong>ao</strong>utra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola arolar como a primeira rolou. Suponhamos <strong>que</strong> a primeira bolase chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda,Brás Cubas; - a terceira, Virgília. Temos <strong>que</strong> Marcela, recebendoum piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas,- o qual, ce<strong>de</strong>ndo à força impulsiva, entrou a rolar tambématé esbarrar em Virgília, <strong>que</strong> não tinha nada com a primeirabola; e eis aí como, pela simples transmissão <strong>de</strong> uma força, setocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa <strong>que</strong> po<strong>de</strong>remoschamar - solidarieda<strong>de</strong> do aborrecimento humano.Como é <strong>que</strong> este capítulo escapou a Aristóteles?CAPÍTULO 43Mar<strong>que</strong>sa, Por<strong>que</strong> Eu Serei MarquêsPositivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angé-


lico, se <strong>que</strong>rem, mas era-o, e então...E então apareceu o Lobo Neves, um homem <strong>que</strong> não eramais esbelto <strong>que</strong> eu, nem mais elegante, nem mais lido, nemmais simpático, e todavia foi <strong>que</strong>m me arrebatou Virgília e acandidatura, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucas semanas, com um ímpeto verda<strong>de</strong>iramentecesariano. Não prece<strong>de</strong>u nenhum <strong>de</strong>speito; nãohouve a menor violência <strong>de</strong> família. Dutra veio dizer-me, umdia, <strong>que</strong> esperasse outra aragem, por<strong>que</strong> a candidatura <strong>de</strong> LoboNeves era apoiada por gran<strong>de</strong>s influências. Cedi; e tal foi ocomeço da minha <strong>de</strong>rrota. Uma semana <strong>de</strong>pois, Virgília perguntou<strong>ao</strong> Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.- Pela minha vonta<strong>de</strong>, já; pela dos outros, daqui a um ano.Virgília replicou:- Promete <strong>que</strong> algum dia me fará baronesa?- Mar<strong>que</strong>sa, por<strong>que</strong> eu serei marquês.Des<strong>de</strong> então fi<strong>que</strong>i perdido. Virgília comparou a águia e opavão, e elegeu a águia, <strong>de</strong>ixando o pavão com o seu espanto,o seu <strong>de</strong>speito, e três ou quatro beijos <strong>que</strong> lhe <strong>de</strong>ra. Talvezcinco beijos; mas <strong>de</strong>z <strong>que</strong> fossem não <strong>que</strong>ria dizer coisa nenhuma.O lábio do homem não é como a pata do cavalo <strong>de</strong> Atila, <strong>que</strong>esterilizava o solo em <strong>que</strong> batia; é justamente o contrário.CAPÍTULO 44Um Cubas!Meu pai ficou atônito com o <strong>de</strong>senlace, e <strong>que</strong>r-me parecer<strong>que</strong> não morreu <strong>de</strong> outra coisa. Eram tantos os castelos <strong>que</strong>engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, <strong>que</strong> não podia vêlosassim esboroados, sem pa<strong>de</strong>cer um forte abalo no organismo.A princípio não quis crê-lo. Um Cubas! um galho da árvoreilustre dos Cubas! E dizia isto com tal convicção, <strong>que</strong> eu, jáentão informado da nossa tanoaria, es<strong>que</strong>ci um instante a volúveldama, para só contemplar a<strong>que</strong>le fenômeno, não raro, mascurioso: uma imaginação graduada em consciência.- Um Cubas! repetia-me ele na seguinte manhã, <strong>ao</strong> almoço.Não foi alegre o almoço; eu próprio estava a cair <strong>de</strong> sono.Tinha velado uma parte da noite. De amor? Era impossível;não se ama duas vezes a mesma mulher, e eu, <strong>que</strong> tinha <strong>de</strong>amar a<strong>que</strong>la, tempos <strong>de</strong>pois, não lhe estava agora preso pornenhum outro vínculo, além <strong>de</strong> uma fantasia passageira, algum<strong>ao</strong>bediência e muita fatuida<strong>de</strong>. E isto basta a explicar avigília; era <strong>de</strong>speito, um <strong>de</strong>speitozinho agudo como ponta <strong>de</strong>alfinete, o qual se <strong>de</strong>sfez, com charutos, murros, leiturastruncadas, até romper a aurora, a mais tranqüila das auroras.Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meupai é <strong>que</strong> não pô<strong>de</strong> suportar facilmente a pancada. Pensandobem, po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> não morresse precisamente do <strong>de</strong>sastre; mas


<strong>que</strong> o <strong>de</strong>sastre lhe complicou as últimas dores, é positivo.Morreu dai a quatro meses, - acabrunhado, triste, com umapreocupação intensa e contínua, à semelhança <strong>de</strong> remorso,um <strong>de</strong>sencanto mortal <strong>que</strong> lhe substituiu os reumatismos etosses. Teve ainda uma meia hora <strong>de</strong> alegria; foi quando umdos ministros o visitou. Vi-lhe, - lembra-me bem, - vi-lheo grato sorriso <strong>de</strong> outro tempo, e nos olhos uma concentração<strong>de</strong> luz, <strong>que</strong> era por assim dizer, o último lampejo da almaexpirante. Mas a tristeza tomou logo, a tristeza <strong>de</strong> morrer semme ver posto em algum lugar alto, como aliás me cabia.- Um Cubas!Morreu alguns dias <strong>de</strong>pois da visita do ministro, umamanhã <strong>de</strong> maio, entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tioIl<strong>de</strong>fonso e meu cunhado. Morreu sem lhe po<strong>de</strong>r valer a ciênciados médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, <strong>que</strong>foram muitos, nem coisa nenhuma; tinha <strong>de</strong> morrer, morreu.- Um Cubas!CAPÍTULO 45NotasSoluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais,um homem <strong>que</strong> veio vestir o cadáver, outro <strong>que</strong> tomou amedida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados<strong>que</strong> entravam. Lentamente, a passo surdo, e apertavam amão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre esacristão, rezas, aspersões d'água benta, o fechar do caixão aprego e martelo, seis pessoas <strong>que</strong> o tomam da essa, e o levantam,e o <strong>de</strong>scem a custo pela escada, não obstante os gritos,soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre,e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias,o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto <strong>que</strong> pareceum simples inventário, eram notas <strong>que</strong> eu havia tomadopara um capítulo extremamente suculento, em <strong>que</strong> provava<strong>que</strong> a terra <strong>de</strong>ve continuar a girar em volta do sol; porquanto:- a) a natureza não inventou a morte, senão com o fim<strong>de</strong> dar vida a algumas indústrias - armadores, segeiros, empresasfunerárias, tipografias, e outras <strong>que</strong> ela sagazmente previu;- b) mortas essas indústrias, pela ausência da mortehumana, não é improvável <strong>que</strong> viessem a morrer os respectivosindustriais; o <strong>que</strong> dava na mesma. Mas tudo isto são apenasnotas <strong>de</strong> um capítulo <strong>que</strong> não escrevo.CAPÍTULO 46A HerançaVeja-nos agora o leitor, oito dias <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> meupai, - minha irmã sentada num sofá, - pouco adiante, o


Cotrim, <strong>de</strong> pé, encostado a um consolo, com os braços cruzadose a mor<strong>de</strong>r o bigo<strong>de</strong>, - eu a passear <strong>de</strong> um lado para outro,com os olhos no chão. Luto pesado. Profundo silêncio.- Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais po<strong>de</strong>valer <strong>de</strong> trinta contos; <strong>de</strong>mos <strong>que</strong> valha trinta e cinco...- Vale cinqüenta, pon<strong>de</strong>rei; a Sabina sabe <strong>que</strong> custoucinqüenta e oito...- Podia custar até sessenta, tomou Cotrim; mas não sesegue <strong>que</strong> os valesse, e menos ainda <strong>que</strong> os valha hoje. Vocêsabe <strong>que</strong> as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se estavale os cinqüenta contos, quantos não vale a <strong>que</strong> você <strong>de</strong>sejapara si, a do Campo?- Não fale nisso! Uma casa velha.- Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos <strong>ao</strong> teto.- Parece-lhe nova, aposto?- Ora, mano, <strong>de</strong>ixe-se <strong>de</strong>ssas coisas, disse Sabina, erguendo-sedo sofá; po<strong>de</strong>mos arranjar tudo em boa amiza<strong>de</strong>, ecom lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, <strong>que</strong>rsó o boleeiro <strong>de</strong> papai e o Paulo...- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei <strong>de</strong>ir comprar outro.- Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio.- O Prudêncio está livre.- Livre?- Há dois anos.- Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa,sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio<strong>que</strong> não libertou a prata?Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo <strong>de</strong>Dom José I, a porção mais grave da herança, já pelo lavor, jápela vetustez, já pela origem da proprieda<strong>de</strong>; dizia meu pai <strong>que</strong>o Con<strong>de</strong> da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a <strong>de</strong>ra <strong>de</strong> presentea meu bisavô Luís Cubas.- Quanto à prata, continuou o Cotrim, eu não faria <strong>que</strong>stãonenhuma, se não fosse o <strong>de</strong>sejo <strong>que</strong> sua irmã tem <strong>de</strong> ficarcom ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa <strong>de</strong> umacopa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não...- Mas posso casar.- Para quê? interrompeu Sabina.Era tão sublime esta pergunta, <strong>que</strong> por alguns instantesme fez es<strong>que</strong>cer os interesses. Sorri; peguei na mão <strong>de</strong> Sabina,bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra,<strong>que</strong> o Cotrim interpretou o gesto como <strong>de</strong> aquiescência, eagra<strong>de</strong>ceu-mo.- Que é lá? redargüi; não cedi coisa nenhuma, nemcedo.- Nem ce<strong>de</strong>?Abanei a cabeça.- Deixa, Cotrim, disse minha irmã <strong>ao</strong> marido; vê se ele<strong>que</strong>r ficar também com a nossa roupa do corpo, é só o <strong>que</strong>falta.


- Não falta mais nada. Quer a sege, <strong>que</strong>r o boleeiro, <strong>que</strong>ra prata, <strong>que</strong>r tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos ajuízo e provar com testemunhas <strong>que</strong> Sabina não é sua irmã, <strong>que</strong> eunão sou seu cunhado, e <strong>que</strong> Deus não é Deus. Faça isto, enão per<strong>de</strong> nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outrooficio!Estava tão agastado, e eu não menos, <strong>que</strong> entendi oferecerum meio <strong>de</strong> conciliação: dividir a prata. Riu-se e perguntou-mea <strong>que</strong>m caberia o bule e a <strong>que</strong>m o açucareiro; e<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta pergunta, <strong>de</strong>clarou <strong>que</strong> teríamos tempo <strong>de</strong> liquidara pretensão, quando menos em juízo. Entretanto,Sabina fora até janela <strong>que</strong> dava para a chácara, - e <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> um instante, voltou, e propôs ce<strong>de</strong>r o Paulo e outropreto, com a condição <strong>de</strong> ficar com a prata; eu ia dizer <strong>que</strong>não me convinha, mas o Cotrim adiantou-se e disse a mesmacoisa.- Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu sobremesa,e ainda presenciou uma pe<strong>que</strong>na altercação.- Meus filhos, disse ele, lembrem-se <strong>que</strong> meu irmão<strong>de</strong>ixou um pão bem gran<strong>de</strong> para ser repartido por todos.Mas o Cotrim:- Creio, creio. A <strong>que</strong>stão, porém, não é <strong>de</strong> pão, é <strong>de</strong>manteiga. Pão seco é <strong>que</strong> eu não engulo.Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamosbrigados. E digo-lhes, <strong>que</strong> ainda assim, custou-me muito abrigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias <strong>de</strong>crianças, risos e tristezas da ida<strong>de</strong> adulta, dividimos muita vezesse pão da alegria e da miséria, irmamente, como bons irmãos<strong>que</strong> éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a beleza <strong>de</strong>Marcela, <strong>que</strong> se esvaiu com as bexigas.CAPÍTULO 47O ReclusoMarcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos oscontrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem maisdo <strong>que</strong> modos <strong>de</strong> ser da minha afeição anterior. Pena <strong>de</strong> mauscostumes, ata uma gravata <strong>ao</strong> teu estilo, veste-lhe um coletemenos sórdido; e <strong>de</strong>pois sim, <strong>de</strong>pois vem comigo, entra nessacasa, estira-te nessa re<strong>de</strong> <strong>que</strong> me embalou a melhor parte dosanos <strong>que</strong> <strong>de</strong>correram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inventário <strong>de</strong> meu pai até 1842.Vem; se te cheirar a algum aroma <strong>de</strong> toucador, não cui<strong>de</strong>s <strong>que</strong>o man<strong>de</strong>i <strong>de</strong>rramar para meu regalo; é um vestígio da N. ouda Z. ou da U. - <strong>que</strong> todas essas letras maiúsculas embalaramaí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma, quiseresoutra coisa, fica-te com o <strong>de</strong>sejo, por<strong>que</strong> eu não guar<strong>de</strong>iretratos, nem cartas, nem <strong>memórias</strong>; a mesma comoção esvaiu-see só me ficaram as letras iniciais.


Vivi meio recluso, indo <strong>de</strong> longe em longe a algum baile,ou teatro, ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-acomigo mesmo. Vivia; <strong>de</strong>ixava-me ir <strong>ao</strong> curso e recurso dossucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambiçãoe o <strong>de</strong>sânimo. Escrevia política e fazia literatura. Mandavaartigos e versos para as folhas públicas e cheguei a alcançarcerta reputação <strong>de</strong> polemista e <strong>de</strong> poeta. Quando me lembravado Lobo Neves, <strong>que</strong> era já <strong>de</strong>putado, e <strong>de</strong> Virgília, futuramar<strong>que</strong>sa, perguntava a mim mesmo por <strong>que</strong> não seria melhor<strong>de</strong>putado e melhor marquês do <strong>que</strong> o Lobo Neves, -eu, <strong>que</strong> valia mais, muito mais do <strong>que</strong> ele, - e dizia isto <strong>ao</strong>lhar para a ponta do nariz...CAPÍTULO 48Um Primo <strong>de</strong> Virgília- Sabe <strong>que</strong>m chegou ontem <strong>de</strong> São Paulo? perguntoumeuma noite o Luis Dutra.O Luís Dutra era um primo <strong>de</strong> Virgília, <strong>que</strong> também privavacom as musas. Os versos <strong>de</strong>le agradavam e valiam maisdo <strong>que</strong> os meus; mas ele tinha necessida<strong>de</strong> da sanção <strong>de</strong> alguns,<strong>que</strong> lhe confirmasse o aplauso dos outros. Como fosseacanhado, não interrogava a ninguém; mas <strong>de</strong>leitava-se comouvir alguma palavra <strong>de</strong> apreço; então criava novas forças earremetia juvenilmente <strong>ao</strong> trabalho.Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corriaà minha casa, e entrava a girar em volta <strong>de</strong> mim, espreita <strong>de</strong>um juízo, <strong>de</strong> uma palavra, <strong>de</strong> um gesto, <strong>que</strong> lhe aprovasse arecente produção, e eu falava-lhe <strong>de</strong> mil coisas diferentes, -do último baile do Catete, da discussão das câmaras, <strong>de</strong>berlindas e cavalos, - <strong>de</strong> tudo, menos dos seus versos ou prosas.Ele respondia-me, a principio com animação, <strong>de</strong>pois maisfrouxo, torcia a ré<strong>de</strong>a da conversa para o assunto <strong>de</strong>le, abriaum livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eudizia-lhe <strong>que</strong> sim ou <strong>que</strong> não, mas torcia a ré<strong>de</strong>a para o outrolado, e lá ia ele atrás <strong>de</strong> mim, até <strong>que</strong> empacava <strong>de</strong> todo e salatriste. Minha intenção era fazê-lo duvidar <strong>de</strong> si mesmo,<strong>de</strong>sanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta donariz...CAPÍTULO 49A Ponta do NarizNariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito navida... Já meditaste alguma vez no <strong>de</strong>stino do nariz, amadoleitor? A explicação do Doutor Pangloss é <strong>que</strong> o nariz foi criadopara uso dos óculos, - e tal explicação confesso <strong>que</strong> até certotempo me pareceu <strong>de</strong>finitiva; mas veio um dia, em <strong>que</strong>,estando a ruminar esse e outros pontos obscuros <strong>de</strong> filosofia,


atinei com a única, verda<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong>finitiva explicação.Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabeo leitor <strong>que</strong> o faquir gasta longas horas a olhar para a pontado nariz, com o fim único <strong>de</strong> ver a luz celeste. Quando elefinca os olhos na ponta do nariz, per<strong>de</strong> o sentimento das coisasexternas, embeleza-se no invisível, apreen<strong>de</strong> o impalpável,<strong>de</strong>svincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimaçãodo ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso doespírito, e a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> a obter não pertence <strong>ao</strong> faquir somente:é universal. Cada homem tem necessida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>contemplar o seu próprio nariz, para o fim <strong>de</strong> ver a luz celeste,e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universoa um nariz somente, constitui o equilíbrio das socieda<strong>de</strong>s.Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns <strong>ao</strong>soutros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos:extinguia-se com as primeiras tribos.Ouço daqui uma objeção do leitor: - Como po<strong>de</strong> serassim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem oshomens a contemplar o seu próprio nariz?Leitor obtuso, isso prova <strong>que</strong> nunca entraste no cérebro <strong>de</strong>um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja <strong>de</strong> chapéus;é a loja <strong>de</strong> um rival, <strong>que</strong> a abriu há dois anos; tinha então duasportas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraçasostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram osfregueses do rival; o chapeleiro compara a<strong>que</strong>la loja com a sua, <strong>que</strong> é maisantiga e tem só duas portas, e a<strong>que</strong>les chapéus com os seus,menos buscados, ainda <strong>que</strong> <strong>de</strong> igual preço. Mortifica-se naturalmente;mas vai andando, concentrado, com os olhos parabaixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperida<strong>de</strong> dooutro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muitomelhor chapeleiro do <strong>que</strong> o outro chapeleiro... Nesse instanteé <strong>que</strong> os olhos se fixam na ponta do nariz.A conclusão, portanto, é <strong>que</strong> há duas forças capitais: oamor, <strong>que</strong> multiplica a espécie, e o nariz, <strong>que</strong> a subordina <strong>ao</strong>indivíduo. Procriação, equilíbrio.CAPÍTULO 50Virgília Casada- Quem chegou <strong>de</strong> São Paulo foi minha prima Virgília,casada com o Lobo Neves, continuou Luis Dutra.- Ah!- E só hoje é <strong>que</strong> eu soube uma coisa, seu maganão...- Que foi?- Que você quis casar com ela.- Idéias <strong>de</strong> meu pai. Quem lhe disse isso?- Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-metudo.No dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, porta da


tipografia do Plancher, vi assomar, a distância, uma mulheresplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outraestava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o últimoapuro. Cortejamo-nos; ela seguiu; entrou com o maridona carruagem, <strong>que</strong> os esperava um pouco acima; eu fi<strong>que</strong>iatônito.Oito dias <strong>de</strong>pois, encontrei-a num baile; creio <strong>que</strong> chegamosa trocar duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado daia um mês, em casa <strong>de</strong> uma senhora, <strong>que</strong> ornara os salões doprimeiro reinado, e não <strong>de</strong>sornava então os do segundo, a aproximaçãofoi maior e mais longa, por<strong>que</strong> conversamos e valsamos.A valsa é uma <strong>de</strong>liciosa coisa. Valsamos; e não nego <strong>que</strong>,<strong>ao</strong> conchegar <strong>ao</strong> meu corpo a<strong>que</strong>le corpo flexível e magnífico,tive uma singular sensação, uma sensação <strong>de</strong> homem roubado.- Está muito calor, disse ela, logo <strong>que</strong> acabamos. Vamos<strong>ao</strong> terraço?- Não; po<strong>de</strong> constipar-se. Vamos a outra sala.Na outra sala estava o Lobo Neves, <strong>que</strong> me fez muitoscumprimentos, acerca dos meus escritos políticos, acrescentando<strong>que</strong> nada dizia dos literários, por não enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>les;mas os políticos eram excelentes, bem pensados e bem escritos.Respondi-lhe com iguais esmeros <strong>de</strong> cortesia, e separamonoscontentes um com o outro.Cerca <strong>de</strong> três semanas <strong>de</strong>pois recebi um convite <strong>de</strong>le parauma reunião intima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosapalavra: - O senhor hoje há <strong>de</strong> valsar comigo. - Na verda<strong>de</strong>,eu tinha fama e era valsista emérito; não admira <strong>que</strong> elame preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livroper<strong>de</strong>u Francesca; cá foi a valsa <strong>que</strong> nos per<strong>de</strong>u. Creio <strong>que</strong>nessa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela <strong>de</strong>ixouaficar, como es<strong>que</strong>cida, e eu a abraçá-la e todos com os olhosem nós, e nos outros <strong>que</strong> também se abraçavam e giravam...Um <strong>de</strong>lírio.CAPÍTULO 51É Minha- E minha! disse eu comigo, logo <strong>que</strong> a passei a outrocavalheiro; e confesso <strong>que</strong> durante o resto da noite, foi-semea idéia entranhando no espírito, não à força <strong>de</strong> martelo,mas <strong>de</strong> verruma, <strong>que</strong> é mais insinuativa.- E minha! dizia eu <strong>ao</strong> chegar à porta <strong>de</strong> casa.Mas aí, como se o <strong>de</strong>stino ou o acaso, ou o <strong>que</strong> <strong>que</strong>r <strong>que</strong>fosse, se lembrasse <strong>de</strong> dar algum pasto <strong>ao</strong>s meus arroubospossessórios, luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela.Abaixei-me; era uma moeda <strong>de</strong> ouro, uma meia dobra.- E minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte,recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma


voz <strong>que</strong> me perguntava por <strong>que</strong> diabo seria minha uma moeda<strong>que</strong> eu não herdara nem ganhara, mas somente achara narua. Evi<strong>de</strong>ntemente não era minha; era <strong>de</strong> outro, da<strong>que</strong>le <strong>que</strong>a per<strong>de</strong>ra, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário<strong>que</strong> não teria com <strong>que</strong> dar <strong>de</strong> comer à mulher e <strong>ao</strong>s filhos;mas se fosse rico, o meu <strong>de</strong>ver ficava o mesmo. Cumpria restituira moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo porintermédio <strong>de</strong> um anúncio ou da polícia. Enviei um carta <strong>ao</strong>chefe <strong>de</strong> polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe <strong>que</strong>,pelos meios a seu alcance, fizesse <strong>de</strong>volvê-lo às mãos do verda<strong>de</strong>irodono.Man<strong>de</strong>i a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer <strong>que</strong>jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, <strong>que</strong>chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição dameia dobra foi uma janela <strong>que</strong> se abriu para o outro lado damoral; entrou uma onda <strong>de</strong> ar puro, e a pobre dama respirouà larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia,<strong>de</strong>spido <strong>de</strong> quais<strong>que</strong>r outras circunstâncias, o meu atoera bonito, por<strong>que</strong> exprimia um justo escrúpulo, um sentimento<strong>de</strong> alma <strong>de</strong>licada. Era o <strong>que</strong> me dizia a minha dama interior,com um modo austero e meigo a um tempo; é o <strong>que</strong> elame dizia, reclinada <strong>ao</strong> peitoril da janela aberta.- Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar nãoé só puro, é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins.Queres ver o <strong>que</strong> fizeste, Cubas?E a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dosolhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda,brilhante, nítida, multiplicando-se por si mesma, - ser<strong>de</strong>z - <strong>de</strong>pois trinta - <strong>de</strong>pois quinhentas, - exprimindoassim o benefício <strong>que</strong> me daria na vida e na morte o simplesato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contemplaçãoda<strong>que</strong>le ato, revia-me nele, achava-me bom, talvezgran<strong>de</strong>. Uma simples moeda, hem? Vejam o <strong>que</strong> é ter valsadoum pouquinho mais.Assim, eu, Brás Cubas, <strong>de</strong>scobri uma lei sublime, a lei daequivalência das janelas, e estabeleci <strong>que</strong> o modo <strong>de</strong> compensaruma janela fechada é abrir outra, a fim <strong>de</strong> <strong>que</strong> a moral possaarejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o<strong>que</strong> ai fica; talvez <strong>que</strong>iras uma coisa mais concreta, um embrulho,por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma láo embrulho misterioso.CAPÍTULO 52O Embrulho MisteriosoFoi o caso <strong>que</strong>, alguns dias <strong>de</strong>pois, indo eu a Botafogo,tropecei num embrulho, <strong>que</strong> estava na praia. Não digo bem;houve menos tropeção <strong>que</strong> pontapé. Vendo um embrulho, não


gran<strong>de</strong>, mas limpo e corretamente feito, atado com um barbanterijo, uma coisa <strong>que</strong> parecia alguma coisa, lembrou-mebater-lhe com o pé, assim por experiência, e bati, e o embrulhoresistiu. Relanceei os olhos em volta <strong>de</strong> mim; a praia estava<strong>de</strong>serta; <strong>ao</strong> longe uns meninos brincavam, - um pescadorcurava as re<strong>de</strong>s ainda mais longe, - ninguém <strong>que</strong> pu<strong>de</strong>ssever a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui.Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha <strong>de</strong> rapazes.Tive idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver o achado à praia, mas apalpei-o erejeitei a idéia. Um pouco adiante, <strong>de</strong>san<strong>de</strong>i o caminho e guieipara casa.- Vejamos, disse eu <strong>ao</strong> entrar no gabinete.E hesitei um instante, creio <strong>que</strong> por vergonha; assaltoumeoutra vez o receio da pulha. E certo <strong>que</strong> não havia alinenhuma testemunha externa; mas eu tinha <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mimmesmo um garoto, <strong>que</strong> havia <strong>de</strong> assobiar, guinchar, grunhir,patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me visse abrir oembrulho e achar <strong>de</strong>ntro um dúzia <strong>de</strong> lenços velhos ou duasdúzias <strong>de</strong> goiabas ver<strong>de</strong>s. Era tar<strong>de</strong>; a curiosida<strong>de</strong> estavaaguçada, como <strong>de</strong>ve estar a do leitor; <strong>de</strong>sfiz o embrulho, e vi...achei... contei... recontei nada menos <strong>de</strong> cinco contos <strong>de</strong> réis.Nada menos. Talvez uns <strong>de</strong>z mil-réis mais. Cinco contos emboas notas e dobras, tudo asseadinho e arranjadinho, um achadoraro. Embrulhei-as <strong>de</strong> novo. Ao jantar pareceu-me <strong>que</strong> umdos mole<strong>que</strong>s falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado?Interroguei-os discretamente, e concluí <strong>que</strong> não. Sobreo jantar, fui outra vez <strong>ao</strong> gabinete, examinei o dinheiro, e rimedos meus cuidados maternais a respeito <strong>de</strong> cinco contos,- eu, <strong>que</strong> era abastado.Para não pensar mais naquilo fui <strong>de</strong> noite à casa do LoboNeves, <strong>que</strong> instara muito comigo não <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> freqüentaras recepções da mulher. Lá encontrei o chefe <strong>de</strong> polícia; fuilheapresentado; ele lembrou-se logo da carta e da meia dobra<strong>que</strong> eu lhe remetera alguns dias antes. Aventou o caso.Virgília pareceu saborear o meu procedimento, e cada um dospresentes acertou <strong>de</strong> contar uma anedota análoga, <strong>que</strong> eu ouvicom impaciência <strong>de</strong> mulher histérica.De noite, no dia seguinte, em toda a<strong>que</strong>la semana penseio menos <strong>que</strong> pu<strong>de</strong> nos cinco contos, e até confesso <strong>que</strong> os<strong>de</strong>ixei muito quietinhos na gaveta da secretária. Gostava <strong>de</strong>falar <strong>de</strong> todas as coisas, menos <strong>de</strong> dinheiro, e principalmente<strong>de</strong> dinheiro achado; todavia não era crime achar dinheiro, erauma felicida<strong>de</strong>, um bom acaso, era talvez um lance da Providência.Não podia ser outra coisa. Não se per<strong>de</strong>m cinco contos,como se per<strong>de</strong> um lenço <strong>de</strong> tabaco. Cinco contos levamsecom trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhestiram os olhos <strong>de</strong> cima, nem as mãos, nem o pensamento, epara se per<strong>de</strong>rem assim tolamente, numa praia, é necessário<strong>que</strong>... Crime é <strong>que</strong> não podia ser o achado; nem crime, nem<strong>de</strong>sonra, nem nada <strong>que</strong> embaciasse o caráter <strong>de</strong> um homem.Era um achado, um acerto feliz, como a sorte gran<strong>de</strong>, como


as apostas <strong>de</strong> cavalo, como os ganhos <strong>de</strong> um jogo honesto eaté direi <strong>que</strong> a minha felicida<strong>de</strong> era merecida, por<strong>que</strong> eu nãome sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.- Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas <strong>de</strong>pois,hei <strong>de</strong> empregá-los em alguma ação boa, talvez um dotea alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei <strong>de</strong> ver...Nesse mesmo dia levei-os <strong>ao</strong> Banco do Brasil. Lá me receberamcom muitas e <strong>de</strong>licadas alusões <strong>ao</strong> caso da meia dobra,cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meuconhecimento; respondi enfadado <strong>que</strong> a coisa não valia a pena<strong>de</strong> tamanho estrondo; louvaram-me então a modéstia - epor<strong>que</strong> eu me encolerizasse, replicaram-me <strong>que</strong> era simplesmentegran<strong>de</strong>.CAPÍTULO 53. . . . . . . . . .Virgília é <strong>que</strong> já se não lembrava da meia dobra; toda elaestava concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida,no meu pensamento; - era o <strong>que</strong> dizia, e era verda<strong>de</strong>.Há umas plantas <strong>que</strong> nascem e crescem <strong>de</strong>pressa; outrassão tardias e pecas. O nosso amor era da<strong>que</strong>las; brotou comtal ímpeto e tanta seiva, <strong>que</strong>, <strong>de</strong>ntro em pouco, era a maisvasta, folhuda e exuberante criatura dos bos<strong>que</strong>s. Não lhespo<strong>de</strong>rei dizer, <strong>ao</strong> certo, os dias <strong>que</strong> durou esse crescimento.Lembra-me, sim, <strong>que</strong>, em certa noite, abotoou-se a flor, ou obeijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo <strong>que</strong> ela me <strong>de</strong>u,trêmula, - coitadinha, - trêmula <strong>de</strong> medo, por<strong>que</strong> era <strong>ao</strong>portão da chácara, à vista das estrelas, - das castas estrelas<strong>de</strong> Otelo, - you chaste starts! Uniu-nos esse beijo único, -breve como a ocasião, ar<strong>de</strong>nte como o amor, prólogo <strong>de</strong> umavida <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias, <strong>de</strong> terrores, <strong>de</strong> remorsos, <strong>de</strong> prazeres <strong>que</strong> rematavamem dor, <strong>de</strong> aflições <strong>que</strong> <strong>de</strong>sabrochavam em alegria,- uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio <strong>de</strong> umapaixão sem freio, - vida <strong>de</strong> agitações, <strong>de</strong> cóleras, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperose <strong>de</strong> ciúmes, <strong>que</strong> uma hora pagava à farta e <strong>de</strong> sobra;mas outra hora vinha e engolia a<strong>que</strong>la, com tudo mais, para<strong>de</strong>ixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, <strong>que</strong> éo fastio e a sacieda<strong>de</strong>: tal foi o livro da<strong>que</strong>le prólogo.CAPÍTULO 54A PêndulaSaí dali a saborear o beijo. Não pu<strong>de</strong> dormir; estirei-me


na cama, é certo, mas foi o mesmo <strong>que</strong> nada. Ouvi as horastodas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o baterda pêndula fazia-me muito mal; esse ti<strong>que</strong> -ta<strong>que</strong> soturno,vagaroso e seco, parecia dizer a cada golpe <strong>que</strong> eu ia ter uminstante menos <strong>de</strong> vida. Imaginava então um velho diabo,sentado entre dois sacos, o da vida e da morte, a tirar as moedasda vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:- Outra <strong>de</strong> menos...- Outra <strong>de</strong> menos...- Outra <strong>de</strong> menos...- Outra <strong>de</strong> menos...O mais singular é <strong>que</strong>, se o relógio parava, eu dava-lhecorda, para <strong>que</strong> ele não <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> bater nunca, e eu pu<strong>de</strong>ssecontar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, <strong>que</strong>se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem;o relógio é <strong>de</strong>finitivo e perpétuo; o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro homem, <strong>ao</strong><strong>de</strong>spedir-se do sol frio e gasto, há <strong>de</strong> ter um relógio naalgibeira, para saber a hora exata em <strong>que</strong> morre.Na<strong>que</strong>la noite não pa<strong>de</strong>ci essa triste sensação <strong>de</strong> enfado,mas outra, e <strong>de</strong>leitosa. As fantasias tumultuavam-me cá <strong>de</strong>ntro,vinham umas sobre outras, à semelhança <strong>de</strong> <strong>de</strong>votas <strong>que</strong>se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvi<strong>ao</strong>s instantes perdidos, mas os minutos ganhados; e <strong>de</strong> certotempo em diante não ouvi coisa nenhuma, por<strong>que</strong> o meupensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora ebateu as asas na direção da casa <strong>de</strong> Virgília. Aí achou <strong>ao</strong> peitoril<strong>de</strong> uma janela o pensamento <strong>de</strong> Virgília, saudaram-se eficaram <strong>de</strong> palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,necessitados <strong>de</strong> repouso, e os dois vadios ali postos, a repetiremo velho diálogo <strong>de</strong> Adão e Eva.CAPÍTULO 55O Velho Diálogo <strong>de</strong> Adão e EvaBrás Cubas.......?Virgília.......Brás Cubas..............................Virgília..................!Brás Cubas...............Virgília..........................................................................................................? ......................................................


...............................................................................Brás Cubas.....................Virgília.......Brás Cubas............................................................................................................................................................ .............................................................! ...........................! ...........................................................!Virgília.......................................?Brás Cubas.....................!Virgília.....................!CAPÍTULO 56O Momento OportunoMas, com a breca! <strong>que</strong>m me explicará a razão <strong>de</strong>sta diferença?Um dia vimo-nos, tratamos o casamento, <strong>de</strong>sfizemo-lo eseparamo-nos, a frio, sem dor, por<strong>que</strong> não houvera paixãonenhuma; mor<strong>de</strong>u-me apenas algum <strong>de</strong>speito e nada mais.Correm anos, torno a vê-la, damos três ou quatro giros <strong>de</strong>valsa, e eis-nos a amar um <strong>ao</strong> outro com <strong>de</strong>lírio. A beleza <strong>de</strong>Virgília chegara, é certo, a um alto grau <strong>de</strong> apuro, mas nóséramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, nãome tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicaráa razão <strong>de</strong>ssa diferença?A razão não podia ser outra senão o momento oportuno.Não era oportuno o primeiro momento, por<strong>que</strong>, se nenhum<strong>de</strong> nós estava ver<strong>de</strong> para o amor, ambos o estávamospara o nosso amor; distinção fundamental. Não há amorpossível sem a oportunida<strong>de</strong> dos sujeitos. Esta explicaçãoachei-a eu mesmo, dois anos <strong>de</strong>pois do beijo, um dia <strong>que</strong>Virgília se me <strong>que</strong>ixava <strong>de</strong> um pintalegrete <strong>que</strong> lá ia e tenazmentea galanteava.- Que importuno! dizia ela fazendo uma careta <strong>de</strong> raiva.Estremeci, fitei-a, vi <strong>que</strong> a indignação era sincera; entãoocorreu-me <strong>que</strong> talvez eu tivesse provocado alguma vez a<strong>que</strong>lamesma careta, e compreendi logo toda a gran<strong>de</strong>za da minhaevolução. Tinha vindo <strong>de</strong> importuno a oportuno.CAPÍTULO 57


DestinoSim senhor, amávamos. Agora, <strong>que</strong> todas as leis sociaisno-lo impediam, agora é <strong>que</strong> nos amávamos <strong>de</strong>veras. Achávamo-nosjungidos um <strong>ao</strong> outro, como as duas almas <strong>que</strong> opoeta encontrou no Purgatório:Di pari, come buoi, che vanno a giogo;e digo mal, comparando-nos a bois, por<strong>que</strong> nós éramos outraespécie <strong>de</strong> animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eisnosa caminhar sem saber até on<strong>de</strong>, nem por <strong>que</strong> estradasescusas; problema <strong>que</strong> me assustou, durante algumas semanas,mas cuja solução entreguei <strong>ao</strong> <strong>de</strong>stino. Pobre Destino!On<strong>de</strong> andarás agora, gran<strong>de</strong> procurador dos negócios humanos?Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras,outro nome, e não é impossível <strong>que</strong>... Já me não lembr<strong>ao</strong>n<strong>de</strong> estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo<strong>que</strong> já agora seria o <strong>que</strong> Deus quisesse. Era a nossa sorte amarnos;se assim não fora, como explicaríamos a valsa e o resto?Virgília pensava a mesma coisa. Um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> me confessar<strong>que</strong> tinha momentos <strong>de</strong> remorsos, como eu lhe dissesse<strong>que</strong>, se tinha remorsos, é por<strong>que</strong> me não tinha amor, Virgíliacingiu-me com os seus magníficos braços, murmurando:- Amo-te, é a vonta<strong>de</strong> do céu.E esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa.Não ouvia missa <strong>ao</strong>s domingos, é verda<strong>de</strong>, e creio até<strong>que</strong> só ia às igrejas em dia <strong>de</strong> festa, e quando havia lugar vagoem alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor,ou pelo menos, com sono. Tinha medo às trovoadas; nessasocasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as oraçõesdo catecismo. Na alcova <strong>de</strong>la havia um oratoriozinho <strong>de</strong>jacarandá, obra <strong>de</strong> talha, <strong>de</strong> três palmos <strong>de</strong> altura, com trêsimagens <strong>de</strong>ntro; mas não falava <strong>de</strong>le às amigas; <strong>ao</strong> contrário,tachava <strong>de</strong> beatas as <strong>que</strong> eram só religiosas. Algum tempo<strong>de</strong>sconfiei <strong>que</strong> havia nela certo vexame <strong>de</strong> crer, e <strong>que</strong> a suareligião era uma espécie <strong>de</strong> camisa <strong>de</strong> flanela preservativa eclan<strong>de</strong>stina; mas evi<strong>de</strong>ntemente era engano meu.CAPÍTULO 58ConfidênciaO Lobo Neves, a princípio, metia-me gran<strong>de</strong>s sustos. Purailusão! Como adorasse a mulher, não se vexava <strong>de</strong> mo dizermuitas vezes; achava <strong>que</strong> Virgília era a perfeição mesma, umconjunto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s sólidas e finas, amorável, elegante,austera, um mo<strong>de</strong>lo. E a confiança não parava aí. De fresta


<strong>que</strong> era, chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me<strong>que</strong> trazia uma triste carcoma na existência; faltava-lhe a glóriapública. Animei-o; disse-lhe muitas coisas bonitas, <strong>que</strong> eleouviu com a<strong>que</strong>la unção religiosa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>que</strong> não <strong>que</strong>racabar <strong>de</strong> morrer; então compreendi <strong>que</strong> a ambição <strong>de</strong>le andavacansada <strong>de</strong> bater as asas, sem po<strong>de</strong>r abrir o vôo. Dias<strong>de</strong>pois disse-me todos os seus tédios e <strong>de</strong>sfalecimentos, asamarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me <strong>que</strong> a vidapolítica era um tecido <strong>de</strong> invejas, <strong>de</strong>speitos, intrigas,perfídias, interesses, vaida<strong>de</strong>s. Evi<strong>de</strong>ntemente havia aí uma crise <strong>de</strong>melancolia; tratei <strong>de</strong> combatê-la.- Sei o <strong>que</strong> lhe digo, replicou-me com tristeza. Não po<strong>de</strong>imaginar o <strong>que</strong> tenho passado. Entrei na política por gosto,por família, por ambição, e um pouco por vaida<strong>de</strong>. Já vê <strong>que</strong>reuni em mim só todos os motivos <strong>que</strong> levam o homem à vidapública; faltou-me só o interesse <strong>de</strong> outra natureza. Vira oteatro pelo lado da platéia; e, palavra, <strong>que</strong> era bonito! Soberbocenário, vida, movimento e graça na representação. Escriturei-me;<strong>de</strong>ram-me um papel <strong>que</strong>... Mas para <strong>que</strong> o estou afatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofinações.Creia <strong>que</strong> tenho passado horas e dias... Não há constância <strong>de</strong>sentimentos, não há gratidão, não há nada... nada... nada...Calou-se profundamente abatido, com os olhos no ar,parecendo não ouvir coisa nenhuma, a não ser o eco <strong>de</strong> seuspróprios pensamentos. Após alguns instantes, ergueu-se eesten<strong>de</strong>u-me a mão: - O senhor há <strong>de</strong> rir-se <strong>de</strong> mim, disseele; mas <strong>de</strong>sculpe a<strong>que</strong>le <strong>de</strong>sabafo; tinha um negócio, <strong>que</strong> memordia o espírito. E ria, <strong>de</strong> um jeito sombrio e triste; <strong>de</strong>poispediu-me <strong>que</strong> não referisse a ninguém o <strong>que</strong> se passara entrenós; pon<strong>de</strong>rei-lhe <strong>que</strong> a rigor não se passara nada. Entraramdois <strong>de</strong>putados e um chefe político da paróquia. O Lobo Nevesrecebeu-os com alegria, a princípio um tanto postiça, maslogo <strong>de</strong>pois natural. No fim <strong>de</strong> meia hora, ninguém diria <strong>que</strong>ele não era o mais afortunado dos homens; conversava, chas<strong>que</strong>ava,e ria, e riam todos.CAPÍTULO 59Um EncontroDeve ser um vinho bem enérgico a política, dizia eu comigo,<strong>ao</strong> sair da casa <strong>de</strong> Lobo Neves; e fui andando, fui andando,até <strong>que</strong> na rua dos Barbonos vi uma sege, e <strong>de</strong>ntro umdos ministros, meu antigo companheiro <strong>de</strong> colégio. Cortejamo-nosafetuosamente, a sege seguiu, e eu fui andando... andando...andando...- Por <strong>que</strong> não serei eu ministro?Esta idéia, rútila e gran<strong>de</strong>, - trajada <strong>ao</strong> bizarro, como diri<strong>ao</strong> padre Bernar<strong>de</strong>s, - esta idéia começou uma vertigem <strong>de</strong>


cabriolas e eu <strong>de</strong>ixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhegraça. E não pensei mais na tristeza <strong>de</strong> Lobo Neves; senti aatração do abismo. Recor<strong>de</strong>i a<strong>que</strong>le companheiro <strong>de</strong> colégio,as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei omenino com o homem, e perguntei a mim mesmo por <strong>que</strong> nãoseria eu como ele. Entrava então no Passeio Público, e tudome parecia dizer a mesma coisa. - Por <strong>que</strong> não serás ministro,Cubas? - Cubas, por <strong>que</strong> não serás ministro <strong>de</strong> Estado?Ao ouvi-lo, uma <strong>de</strong>liciosa sensação me refrescava todo o sistema.Entrei, fui sentar-me num banco, a cavar comigo a<strong>que</strong>laidéia. E Virgília <strong>que</strong> havia <strong>de</strong> gostar! Alguns minutos <strong>de</strong>poisvejo encaminhar-se para mim uma cara, <strong>que</strong> me não pareceu<strong>de</strong>sconhecida. Conhecia-a, fosse don<strong>de</strong> fosse.Imaginem um homem <strong>de</strong> trinta e oito a quarenta anos,alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam terescapado <strong>ao</strong> cativeiro <strong>de</strong> Babilônia; o chapéu era contemporâneodo <strong>de</strong> Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca maislarga do <strong>que</strong> pediam as carnes, - ou, literalmente, os OSSOSda pessoa; a cor preta ia ce<strong>de</strong>ndo o passo a um amarelo sembrilho; o pêlo <strong>de</strong>saparecia <strong>ao</strong>s poucos; dos oito primitivos botõesrestavam três. As calças, <strong>de</strong> brim pardo, tinham duasfortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roldas pelo tacão<strong>de</strong> um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavamas pontas <strong>de</strong> uma gravata <strong>de</strong> duas cores, ambas <strong>de</strong>smaiadas,apertando um colarinho <strong>de</strong> oito dias. Creio <strong>que</strong> traziatambém colete, um colete <strong>de</strong> seda escura, roto a espaços, e<strong>de</strong>sabotoado.- Aposto <strong>que</strong> me não conhece, Senhor Doutor Cubas?disse ele.- Não me lembra...- Sou o Borba, o Quincas Borba.Recuei espantado... Quem me <strong>de</strong>ra agora o verbo solene<strong>de</strong> um Bossuet ou <strong>de</strong> Vieira, para contar tamanha <strong>de</strong>solação!Era o Quincas Borba, o gracioso menino <strong>de</strong> outro tempo, omeu companheiro <strong>de</strong> colégio, tão inteligente e abastado. OQuincas Borba! Não; impossível; não po<strong>de</strong> ser. Não podiaacabar <strong>de</strong> crer <strong>que</strong> essa figura esquálida, essa barba pintada<strong>de</strong> branco, esse maltrapilho avelhentado, <strong>que</strong> toda essa ruínafosse o Quincas Borba. E era. Os olhos tinham um resto daexpressão <strong>de</strong> outro tempo, e o sorriso não per<strong>de</strong>ra certo arescarninho, <strong>que</strong> lhe era peculiar. Entretanto, ele suportavacom firmeza o meu espanto. No fim <strong>de</strong> algum tempo arre<strong>de</strong>ios olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.- Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhoradivinha tudo. Uma via <strong>de</strong> misérias, <strong>de</strong> atribulações e<strong>de</strong> lutas. Lembra-se das nossas festas, em <strong>que</strong> eu figurava <strong>de</strong>rei? Que trambolhão! Acabo mendigo...E alçando a mão direita e os ombros, com um ar <strong>de</strong> indiferença,parecia resignado <strong>ao</strong>s golpes da fortuna, e não sei atése contente. Talvez contente. Com certeza, impassível. Nãohavia nele a resignação cristã, nem a conformida<strong>de</strong> filosófica.


Parece <strong>que</strong> a miséria lhe calejara a alma, a ponto <strong>de</strong> lhe tirara sensação da lama. Arrastava os andrajos, como outrora apúrpura: com certa graça indolente.- Procure-me, disse eu, po<strong>de</strong>rei arranjar-lhe algumacoisa.Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. - Não é o primeiro<strong>que</strong> me promete alguma coisa, replicou, e não sei se seráo último <strong>que</strong> não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, anão ser dinheiro; dinheiro sim, por<strong>que</strong> é necessário comer, eas casas <strong>de</strong> pasto não fiam. Nem as quitan<strong>de</strong>iras. Uma coisa<strong>de</strong> nada, uns dois vinténs <strong>de</strong> angu, nem isso fiam as malditasquitan<strong>de</strong>iras... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Uminferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não aímocei.- Não?- Não; sai muito cedo <strong>de</strong> casa. Sabe on<strong>de</strong> moro? Noterceiro <strong>de</strong>grau das escadas <strong>de</strong> São Francisco, à es<strong>que</strong>rda <strong>de</strong><strong>que</strong>m sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamentefresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...Tirei a carteira, escolhi uma nota <strong>de</strong> cinco mil-réis, - amenos limpa, - e <strong>de</strong>i-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes<strong>de</strong> cobiça. Levantou a nota <strong>ao</strong> ar, e agitou-a entusiasmado.- In hoc signo vinces! bradou.E <strong>de</strong>pois beijou-a, com muitos a<strong>de</strong>manes <strong>de</strong> ternura, e tãoruidosa expansão, <strong>que</strong> me produziu um sentimento misto <strong>de</strong>nojo e lástima. Ele, <strong>que</strong> era arguto, enten<strong>de</strong>u-me; ficou sério,grotescamente sério, e pediu-me <strong>de</strong>sculpa da alegria, dizendo<strong>que</strong> era alegria <strong>de</strong> pobre <strong>que</strong> não via, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muitos anos, umanota <strong>de</strong> cinco mil-réis.- Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.- Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.- Trabalhando, conclui eu.Fez um gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém; calou-se alguns instantes; <strong>de</strong>poisdisse-me positivamente <strong>que</strong> não <strong>que</strong>ria trabalhar. Eu estavaenjoado <strong>de</strong>ssa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-mepara sair.- Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria,disse ele, escarranchando-se diante <strong>de</strong> mim.CAPÍTULO 60O AbraçoCui<strong>de</strong>i <strong>que</strong> o pobre-diabo estivesse doido, e ia afastar-me,quando ele me pegou no pulso, e olhou alguns instantes par<strong>ao</strong> brilhante <strong>que</strong> eu trazia no <strong>de</strong>do. Senti-lhe na mão unsestremeções <strong>de</strong> cobiça, uns pruridos <strong>de</strong> posse.- Magnífico! disse ele.


Depois começou a andar à roda <strong>de</strong> mim e a examinar-memuito.- O senhor trata-se, disse ele. jóias, roupa fina, elegantee... Compare esses sapatos <strong>ao</strong>s meus; <strong>que</strong> diferença! Pu<strong>de</strong>ranão! Digo-lhe <strong>que</strong> se trata. E moças? Como vão elas? Estácasado?- Não.- Nem eu.- Moro na rua...- Não <strong>que</strong>ro saber on<strong>de</strong> mora, atalhou Quincas Borba.Se alguma vez nos virmos, dê-me outra nota <strong>de</strong> cincomil-réis; mas permita-me <strong>que</strong> não a vá buscar à sua casa. Euma espécie <strong>de</strong> orgulho... Agora, a<strong>de</strong>us; vejo <strong>que</strong> está impaciente.- A<strong>de</strong>us!- E obrigado. Deixa-me agra<strong>de</strong>cer-lhe <strong>de</strong> mais perto?E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto <strong>que</strong> eu nãopu<strong>de</strong> evitá-lo. Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, coma camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominavaem mim a parte simpática da sensação, mas a outra.Quisera ver-lhe a miséria digna. Contudo, não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> comparar outra vez o homem <strong>de</strong> agora com o <strong>de</strong> outrora,entristecer-me e encarar o abismo <strong>que</strong> separa as esperanças<strong>de</strong> um tempo da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro tempo...- Ora a<strong>de</strong>us! Vamos jantar, disse comigo.Meto a mão no colete e não acho o relógio. Ultima <strong>de</strong>silusão!o Borba furtara-mo no abraço.CAPÍTULO 61Um ProjetoJantei triste. Não era a falta do relógio <strong>que</strong> me pungia,era a imagem do autor do furto, e as reminiscências <strong>de</strong> criança,e outra vez a comparação, e a conclusão... Des<strong>de</strong> asopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida docapítulo 25, e então jantei <strong>de</strong>pressa, para correr à casa <strong>de</strong>Virgília. Virgília era o presente; eu <strong>que</strong>ria refugiar-me nele,para escapar às opressões do passado, por<strong>que</strong> o encontrodo Quincas Borba tornara-me <strong>ao</strong>s olhos o passado, não qualfora <strong>de</strong>veras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.Saí <strong>de</strong> casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vezpensei no Quincas Borba, e tive então um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> tomar<strong>ao</strong> Passeio Público, a ver se o achava; a idéia <strong>de</strong> o regenerarsurgiu-me como uma forte necessida<strong>de</strong>. Fui; mas já não oachei. Indaguei do guarda; disse-me <strong>que</strong> efetivamente essesujeito" ia por ali às vezes.- A <strong>que</strong> horas?- Não tem hora certa.Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi


a mim mesmo lá voltar. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o regenerar, <strong>de</strong> otrazer <strong>ao</strong> trabalho e <strong>ao</strong> respeito <strong>de</strong> sua pessoa enchia-me ocoração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação,uma admiração <strong>de</strong> mim próprio... Nisto caia a noite; fui tercom Virgília.CAPÍTULO 62O TravesseiroFui ter com Virgilia; bem <strong>de</strong>pressa es<strong>que</strong>ci o QuincasBorba. Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiromole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia ebruxelas. Era ali <strong>que</strong> ele costumava repousar <strong>de</strong> todas as sensaçõesmás, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas. E,bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência <strong>de</strong>Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidarinteiramente o Quincas Borba; cinco minutos <strong>de</strong> uma contemplaçãomútua, com as mãos presas umas nas outras; cincominutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba...Escrófula da vida, andrajo do passado, <strong>que</strong> me importa <strong>que</strong>exista, <strong>que</strong> molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos<strong>de</strong> um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?CAPÍTULO 63FujamosAi! nem sempre dormir. Três semanas <strong>de</strong>pois, indo à casa <strong>de</strong>Virgilia, - eram quatro horas da tar<strong>de</strong>, - achei-a triste eabatida. Não me quis dizer o <strong>que</strong> era; mas, como eu instasse muito:- Creio <strong>que</strong> o Damião <strong>de</strong>sconfia alguma coisa. Noto agoraumas esquisitices nele... Não sei... Trata-me bem, não há dúvida;mas o olhar parece <strong>que</strong> não é o mesmo. Durmo mal; aindaesta noite acor<strong>de</strong>i, aterrada, estava sonhando <strong>que</strong> ele me iamatar. Talvez seja ilusão, mas eu penso <strong>que</strong> ele <strong>de</strong>sconfia...Tranqüilizei-a como pu<strong>de</strong>; disse <strong>que</strong> podiam ser cuidadospolíticos. Virgília concordou <strong>que</strong> seriam, mas ficou ainda muitoexcitada e nervosa. Estávamos na sala <strong>de</strong> visitas, <strong>que</strong> davajustamente para a chácara, on<strong>de</strong> trocáramos o beijo inicial.Uma janela aberta <strong>de</strong>ixava entrar o vento, <strong>que</strong> sacudia frouxamenteas cortinas, e eu fi<strong>que</strong>i a olhar para as cortinas, semas ver. Empunhara o binóculo da imaginação; lobrigava, <strong>ao</strong>longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um mundo nosso, em<strong>que</strong> não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nemnenhum outro liame, <strong>que</strong> nos tolhesse a expansão da vonta<strong>de</strong>.Esta idéia embriagou-me; eliminados assim o mundo, amoral e o marido, não haveria mais <strong>que</strong> penetrar na<strong>que</strong>lahabitação dos anjos.- Virgília, disse, eu proponho-te uma coisa.- Que é?- Amas-me?


- Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços <strong>ao</strong> pescoço.Virgília amava-me com fúria; a<strong>que</strong>la resposta era a verda<strong>de</strong>patente. Com os braços <strong>ao</strong> meu pescoço, calada, respirandomuito, <strong>de</strong>ixou-se ficar a olhar para mim, com os seus gran<strong>de</strong>s ebelos olhos, <strong>que</strong> davam uma sensação singular <strong>de</strong> luz úmida; eeu <strong>de</strong>ixei-me estar a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca comoa madrugada, e insaciável como a morte. A beleza <strong>de</strong> Virgíliatinha agora um tom grandioso, <strong>que</strong> não possuira antes <strong>de</strong> casar.Era <strong>de</strong>ssas figuras talhadas em pentélico, <strong>de</strong> um lavor nobre,rasgado e puro, tranqüilamente bela, como as estátuas, mas nãoapática nem fria. Ao contrário, tinha o aspecto das naturezascálidas, e podia-se dizer <strong>que</strong>, na realida<strong>de</strong>, resumia todo oamor.Resumia-o sobretudo na<strong>que</strong>la ocasião, em <strong>que</strong> exprimia mudamentetudo quanto po<strong>de</strong> dizer a pupila humana. Mas o tempourgia; <strong>de</strong>slacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fitonela, perguntei-lhe se tinha coragem.- De quê?- De fugir. Iremos para on<strong>de</strong> nos for mais cômodo, umacasa gran<strong>de</strong> ou pe<strong>que</strong>na, à tua vonta<strong>de</strong>, na roça ou na cida<strong>de</strong>,ou na Europa, on<strong>de</strong> te parecer, on<strong>de</strong> ninguém nos aborreça,e não haja perigos para ti, on<strong>de</strong> vivamos um para o outro...Sim? fujamos. Tar<strong>de</strong> ou cedo, ele po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir algumacoisa, e estarás perdida... ouves? perdida... morta... e eletambém, por<strong>que</strong> eu o matarei, juro-te.Interrompi-me; Virgília empali<strong>de</strong>cera muito, <strong>de</strong>ixou cairos braços e sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instantes,sem me dizer palavra, não sei se vacilante na escolha, seaterrada com a idéia da <strong>de</strong>scoberta e da morte. Fui-me a ela,insisti na proposta, disse-lhe todas as vantagens <strong>de</strong> uma vidaa sós, sem zelos, nem terrores, nem aflições. Virgília ouvia-mecalada; <strong>de</strong>pois disse:- Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-medo mesmo modo.Mostrei-lhe <strong>que</strong> não. O mundo era assaz vasto, e eu tinh<strong>ao</strong>s meios <strong>de</strong> viver on<strong>de</strong> <strong>que</strong>r <strong>que</strong> houvesse ar puro e muitosol; ele não chegaria até lá; só as gran<strong>de</strong>s paixões são capazes<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s ações, e ele não a amava tanto <strong>que</strong> pu<strong>de</strong>sse ir buscála,se ela estivesse longe. Virgília fez um gesto <strong>de</strong> espanto equase indignação; murmurou <strong>que</strong> o marido gostava muito <strong>de</strong>la.- Po<strong>de</strong> ser, respondi eu; po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> sim...E fui até a janela, e comecei a assobiar e a rufar com os<strong>de</strong>dos no peitoril. Virgília chamou-me; eu <strong>de</strong>ixei-me estar, aremoer os meus zelos, a <strong>de</strong>sejar estrangular o marido, se o tivesseali à mão... Justamente, nesse instante, apareceu nachácara o Lobo Neves. Não tremas assim, leitora pálida; <strong>de</strong>scansa,<strong>que</strong> não hei <strong>de</strong> rubricar esta lauda com um pingo <strong>de</strong>sangue. Logo <strong>que</strong> o Lobo Neves entrou na chácara, fiz-lhe umgesto amigo, acompanhado <strong>de</strong> uma palavra graciosa; Virgíliaretirou-se apressadamente da sala, e ele entrou daí a três minutos.


- Está cá há muito tempo? disse-me ele.- Não.Entrara sério, pesado, <strong>de</strong>rramando os olhos <strong>de</strong> um mododistraído, costume seu, <strong>que</strong> trocou logo por uma verda<strong>de</strong>iraexpansão <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong>, quando viu chegar o filho, o nhonhô,o futuro bacharel do capítulo 8; tomou-o nos braços, levantou-o<strong>ao</strong> ar, beijou-o muitas vezes. Eu, <strong>que</strong> tinha ódio <strong>ao</strong>menino, afastei-me <strong>de</strong> ambos. Virgília tomou à sala- Ah! respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamenteno sofá.- Cansado? perguntei eu.- Muito; aturei duas maçadas <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, umana câmara e outra na rua. E ainda temos terceira, acrescentou,olhando para a mulher.- Que é? perguntou Virgília.- Um... Adivinha!Virgília sentara-se <strong>ao</strong> lado <strong>de</strong>le, pegou-lhe numa das mãos,compós-lhe a gravata, e tomou a perguntar o <strong>que</strong> era.- Nada menos <strong>que</strong> um camarote.- Para a Candiani?- Para a Candiani.Virgília bateu palmas, levantou-se, <strong>de</strong>u um beijo no filho,com um ar <strong>de</strong> alegria pueril, <strong>que</strong> <strong>de</strong>stoava muito da figura;<strong>de</strong>pois perguntou se o camarote era <strong>de</strong> boca ou do centro,consultou o marido, em voz baixa, acerca da toilette <strong>que</strong> faria,da ópera <strong>que</strong> se cantava, e <strong>de</strong> não sei <strong>que</strong> outras coisas.- Você janta conosco, doutor, disse-me o Lobo Neves.- Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz <strong>que</strong>você possui o melhor vinho do Rio <strong>de</strong> Janeiro.- Nem por isso bebe muito.Ao jantar, <strong>de</strong>smenti-o; bebi mais do <strong>que</strong> costumava; aindaassim, menos do <strong>que</strong> era preciso para per<strong>de</strong>r a razão. Jáestava excitado, fi<strong>que</strong>i um pouco mais. Era a primeira gran<strong>de</strong>cólera <strong>que</strong> eu sentia contra Virgília. Não olhei uma só vez paraela durante o jantar; falei <strong>de</strong> política, da imprensa, do ministério,creio <strong>que</strong> falaria <strong>de</strong> teologia, se a soubesse, ou se melembrasse. O Lobo Neves acompanhava-me com muita placi<strong>de</strong>ze dignida<strong>de</strong>, e até com certa benevolência superior; etudo aquilo me irritava também, e me tomava mais amargo elongo o jantar. Despedi-me apenas nos levantamos da mesa.- Até logo, não? perguntou o Lobo Neves.- Po<strong>de</strong> ser.E saí.CAPÍTULO 64A TransaçãoVaguei pelas ruas e recolhi-me às nove horas. Não po<strong>de</strong>ndodormir, atirei-me a ler e escrever. As onze horas estavaarrependido <strong>de</strong> não ter ido <strong>ao</strong> teatro, consultei o relógio, quis


vestir-me, e sair. Julguei, porém, <strong>que</strong> chegaria tar<strong>de</strong>; <strong>de</strong>mais,era dar prova <strong>de</strong> fra<strong>que</strong>za. Evi<strong>de</strong>ntemente, Virgília começavaa aborrecer-se <strong>de</strong> mim, pensava eu. E esta idéia fez-me sucessivamente<strong>de</strong>sesperado e frio, disposto a es<strong>que</strong>cê-la e a matála.Via-a dali mesmo, reclinada no camarote, com os seusmagníficos braços nus, - os braços <strong>que</strong> eram meus, só meus- fascinando os olhos <strong>de</strong> todos, com o vestido soberbo <strong>que</strong>havia <strong>de</strong> ter, o colo <strong>de</strong> leite, os cabelos postos em bandós, àmaneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios <strong>que</strong> os olhos<strong>de</strong>la... Via-a assim, e doía-me <strong>que</strong> a vissem outros. Depois,começava a <strong>de</strong>spi-la, a pôr <strong>de</strong> lado as jóias e sedas, a <strong>de</strong>spenteálacom as minhas mãos sôfregas e lascivas, a tomá-la, - nãosei se mais bela, se mais natural, - a tomá-la minha, somenteminha, unicamente minha.No dia seguinte, não me pu<strong>de</strong> ter; fui cedo à casa <strong>de</strong>Virgília; achei-a com os olhos <strong>verme</strong>lhos <strong>de</strong> chorar.- Que houve? perguntei.- Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve amenor soma <strong>de</strong> amor. Tratou-me ontem como se me tivesseódio. Se eu <strong>ao</strong> menos soubesse o <strong>que</strong> é <strong>que</strong> fiz! Mas não sei.Não me dirá o <strong>que</strong> foi?- Que foi o quê? Creio <strong>que</strong> não houve nada.- Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lágrimasrebentaram-lhe dos olhos.- Acabou, acabou, disse eu.Não tive ânimo <strong>de</strong> argüir, e, aliás, argüi-la <strong>de</strong> quê? Nãoera culpa <strong>de</strong>la se o marido a amava. Disse-lhe <strong>que</strong> não me fizeracoisa nenhuma, <strong>que</strong> eu tinha necessariamente ciúmes dooutro, <strong>que</strong> nem sempre o podia suportar <strong>de</strong> cara alegre; acrescentei<strong>que</strong> talvez houvesse nele muita dissimulação, e <strong>que</strong> omelhor meio <strong>de</strong> fechar a porta <strong>ao</strong>s sustos e às dissensões eraaceitar a minha idéia da véspera.- Pensei nisso, acudiu Virgília; uma casinha só nossa,solitária, metida num jardim, em alguma rua escondida, nãoé? Acho a idéia boa; mas para <strong>que</strong> fugir?Disse isto com o tom ingênuo e preguiçoso <strong>de</strong> <strong>que</strong>m nãocuida em mal, e o sorriso <strong>que</strong> lhe <strong>de</strong>rreava os cantos da bocatrazia a mesma expressão <strong>de</strong> candi<strong>de</strong>z. Então, afastando-me,respondi:- Você é <strong>que</strong> nunca me teve amor.- Eu?- Sim, é uma egoísta! prefere ver-me pa<strong>de</strong>cer todos osdias... é uma egoísta sem nome!Virgília <strong>de</strong>satou a chorar, e para não atrair gente, meti<strong>ao</strong> lenço na boca, recalcava os soluços; explosão <strong>que</strong> me <strong>de</strong>sconcertou.Se alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-mepara ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe os nomes maisdoces da nossa intimida<strong>de</strong>; mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.- Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não <strong>de</strong>ixo


meu filho; se o levar, estou certa <strong>de</strong> <strong>que</strong> ele me irá buscar <strong>ao</strong>fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quiser, ou <strong>de</strong>ixe-memorrer... Ah! meu Deus! meu Deus!- Sossegue; olhe <strong>que</strong> po<strong>de</strong>m ouvi-la.- Que ouçam! Não me importa.Estava ainda excitada; pedi-lhe <strong>que</strong> es<strong>que</strong>cesse tudo, <strong>que</strong>me perdoasse, <strong>que</strong> eu era um doido, mas <strong>que</strong> a minha insâniaprovinha <strong>de</strong>la e com ela acabaria. Virgília enxugou os olhose esten<strong>de</strong>u-me a mão. Sorrimos ambos; minutos <strong>de</strong>pois, tornávamos<strong>ao</strong> assunto da casinha solitária, em alguma rua escusa...CAPÍTULO 65Olheiros e EscutasInterrompeu-nos o rumor <strong>de</strong> um carro na chácara. Veioum escravo dizer <strong>que</strong> era a baronesa X. Virgília consultou-mecom os olhos.- Se a senhora está assim com dor <strong>de</strong> cabeça, disse eu,parece <strong>que</strong> o melhor é não receber.- Já se apeou? perguntou Virgília <strong>ao</strong> escravo.- Já se apeou; diz <strong>que</strong> precisa muito <strong>de</strong> falar com sinhá!- Que entre!A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comigona sala; mas era impossível mostrar maior alvoroço.- Bons olhos o vejam! explodiu ela. On<strong>de</strong> se mete osenhor <strong>que</strong> não aparece em parte nenhuma? Pois olhe, ontemadmirou-me não o ver no teatro. A Candiani esteve <strong>de</strong>liciosa.Que mulher! Gosta da Candiani? E natural. Os senhoressão todos os mesmos. O barão dizia ontem, no camarote,<strong>que</strong> uma só italiana vale por cinco brasileiras. Que <strong>de</strong>saforo!e <strong>de</strong>saforo <strong>de</strong> velho, <strong>que</strong> é pior. Mas por <strong>que</strong> é <strong>que</strong> osenhor não foi ontem <strong>ao</strong> teatro?- Uma enxa<strong>que</strong>ca.- Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meuamigo, apresse-se, por<strong>que</strong> o senhor <strong>de</strong>ve estar com quarentaanos... ou perto disso... Não tem quarenta anos?- Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas seme dá licença vou consultar a certidão <strong>de</strong> batismo.- Vá, vá... E esten<strong>de</strong>ndo-me a mão: - Até quando?Sábado ficamos em casa; o barão está com umas sauda<strong>de</strong>s suas...Chegando à rua, arrependi-me <strong>de</strong> ter saído. A baronesa erauma das pessoas <strong>que</strong> mais <strong>de</strong>sconfiavam <strong>de</strong> nós. Cinqüenta ecinco anos, <strong>que</strong> pareciam quarenta, macia, risonha, vestígios<strong>de</strong> beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muitonem sempre; possuía a gran<strong>de</strong> arte <strong>de</strong> escutar os outros, espiando-os;reclinava-se então na ca<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong>sembainhava um olharafiado e comprido, e <strong>de</strong>ixava-se estar. Os outros, não sabendoo <strong>que</strong> era, falavam, olhavam, gesticulavam, <strong>ao</strong> tempo <strong>que</strong> el<strong>ao</strong>lhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia <strong>ao</strong> ponto <strong>de</strong>


olhar às vezes para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, por<strong>que</strong> <strong>de</strong>ixava cair as pálpebras;mas, como as pestanas eram rótulas, o olhar continuava oseu oficio, remexendo a alma e a vida dos outros.A segunda pessoa era um parente <strong>de</strong> Virgília, o Viegas, umcangalho <strong>de</strong> setenta invernos, chupado e amarelado, <strong>que</strong> pa<strong>de</strong>cia<strong>de</strong> um reumatismo teimoso, <strong>de</strong> uma asma não menos teimosae <strong>de</strong> uma lesão do coração: era um hospital concentrado. Osolhos porém luziam <strong>de</strong> muita vida e saú<strong>de</strong>. Virgília, nasprimeiras semanas, não lhe tinha medo nenhum; dizia-me <strong>que</strong>, quando oViegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmentecontando dinheiro. Com efeito, era um gran<strong>de</strong> avaro.Havia ainda o primo <strong>de</strong> Virgília, o Luís Dutra, <strong>que</strong> eu, entretanto,agora <strong>de</strong>sarmava à força <strong>de</strong> lhe falar nos versos e prosas,e <strong>de</strong> o apresentar <strong>ao</strong>s conhecidos. Quando estes, ligando onome à pessoa, se mostravam contentes da apresentação, nãohá dúvida <strong>que</strong> Luís Dutra exultava <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>; mas eu curava-meda felicida<strong>de</strong> com a esperança <strong>de</strong> <strong>que</strong> ele nos não <strong>de</strong>nunciassenunca. Havia, enfim, umas duas ou três senhoras,vários gamenhos, e os fâmulos, <strong>que</strong> naturalmente se <strong>de</strong>sforravamassim da condição servil, e tudo isso constituía uma verda<strong>de</strong>irafloresta <strong>de</strong> olheiros e escutas, por entre os quaistínhamos <strong>de</strong> resvalar com a tática e maciez das cobras.CAPÍTULO 66As PernasOra, enquanto eu pensava na<strong>que</strong>la gente, iam-me as pernaslevando, ruas abaixo, <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> insensivelmente meachei à porta do hotel Pharoux. De costume jantava ai; mas,não tendo <strong>de</strong>liberadamente andado, nenhum merecimentoda ação me cabe, e sim às pernas, <strong>que</strong> a fizeram. Abençoadaspernas! E há <strong>que</strong>m vos trate com <strong>de</strong>sdém ou indiferença. Eumesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quandovos fatigáveis, quando não podíeis ir além <strong>de</strong> certo ponto,e me <strong>de</strong>ixáveis com o <strong>de</strong>sejo a avoaçar, à semelhança <strong>de</strong> galinhaatada pelos pés.A<strong>que</strong>le caso, porém, foi um raio <strong>de</strong> luz. Sim, pernas amigas,vós <strong>de</strong>ixastes à minha cabeça o trabalho <strong>de</strong> pensar emVirgília, e dissestes uma à outra: - Ele precisa comer, sãohoras <strong>de</strong> jantar, vamos levá-lo <strong>ao</strong> Pharoux; dividamos a consciência<strong>de</strong>le, uma parte fi<strong>que</strong> lá com a dama, tomemos nós a outra,para <strong>que</strong> ele vá direito, não abalroe as gentes e as carroças,tire o chapéu <strong>ao</strong>s conhecidos, e finalmente chegue são esalvo <strong>ao</strong> hotel. E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveispernas, o <strong>que</strong> me obriga a imortalizar-vos nesta página.CAPÍTULO 67


A CasinhaJantei e fui a casa. Lá achei uma caixa <strong>de</strong> charutos, <strong>que</strong>me mandara o Lobo Neves, embrulhada em papel <strong>de</strong> seda, eornada <strong>de</strong> fitinhas cor-<strong>de</strong>-rosa. Entendi, abria-a, e tirei estebilhete:"Meu B...Desconfiam <strong>de</strong> nós; tudo está perdido; es<strong>que</strong>ça-me parasempre. Não nos veremos mais. A<strong>de</strong>us; es<strong>que</strong>ça-se da infelizV.. a."Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou anoite, corri à casa <strong>de</strong> Virgília. Era tempo; estava arrependida.Ao vão <strong>de</strong> uma janela, contou-me o <strong>que</strong> se passara com abaronesa. A baronesa disse-lhe francamente <strong>que</strong> se falaramuito, no teatro, na noite anterior, a propósito da minha ausênciado camarote do Lobo Neves; tinham comentado asminhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeitapública. Concluiu dizendo <strong>que</strong> não sabia <strong>que</strong> fazer.- O melhor é fugirmos, insinuei.- Nunca, respon<strong>de</strong>u ela abanando a cabeça.Vi <strong>que</strong> era impossível separar duas coisas <strong>que</strong> no espírito<strong>de</strong>la estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consi<strong>de</strong>raçãopública. Virgília era capaz <strong>de</strong> iguais e gran<strong>de</strong>ssacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe <strong>de</strong>ixavauma. Talvez senti alguma coisa semelhante a <strong>de</strong>speito; mas ascomoções da<strong>que</strong>les dois dias eram já muitas, e o <strong>de</strong>speitomorreu <strong>de</strong>pressa. Vá lá; arranjemos a casinha.Com efeito, achei-a, dias <strong>de</strong>pois, expressamente feita emum recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada <strong>de</strong> fresco,com quatro janelas na frente e duas <strong>de</strong> cada lado - todascom venezianas cor <strong>de</strong> tijolo, - trepa<strong>de</strong>ira nos cantos, jardimna frente; mistério e solidão. Um brinco!Convencionamos <strong>que</strong> iria morar ali uma mulher, conhecida<strong>de</strong> Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada.Virgília exercia sobre ela verda<strong>de</strong>ira fascinação. Não se lhe diria tudo;ela aceitaria facilmente o resto.Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor,uma aparência <strong>de</strong> posse exclusiva, <strong>de</strong> domínio absoluto, algumacoisa <strong>que</strong> me faria adormecer a consciência e resguardaro <strong>de</strong>coro. Já estava cansado das cortinas do outro, das ca<strong>de</strong>iras,do tapete, do canapé, <strong>de</strong> todas essas coisas, <strong>que</strong> me traziam<strong>ao</strong>s olhos constantemente a nossa duplicida<strong>de</strong>. Agorapodia evitar os jantares freqüentes, o chá <strong>de</strong> todas as noites,enfim a presença do filho <strong>de</strong>les, meu cúmplice e meu inimigo.A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria àporta - dali para <strong>de</strong>ntro era o infinito, um mundo eterno,superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, seminstituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, - umsó mundo, um só casal, uma só vida, uma só vonta<strong>de</strong>, uma sóafeição - a unida<strong>de</strong> moral <strong>de</strong> todas as coisas pela exclusão


das <strong>que</strong> me eram contrárias.CAPÍTULO 68O VergalhoTais eram as reflexões <strong>que</strong> eu vinha fazendo, por a<strong>que</strong>leValongo fora, logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver e ajustar a casa. Interrompeu-masum ajuntamento; era um preto <strong>que</strong> vergalhava outrona praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somenteestas únicas palavras: - "Não, perdão, meu senhor; meu senhor,perdão!" Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica,respondia com uma vergalhada nova.- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!- Meu senhor! gemia o outro.- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.Parei, olhei... justos céus! Quem havia <strong>de</strong> ser o do vergalho?Nada menos <strong>que</strong> o meu mole<strong>que</strong> Prudêncio - o <strong>que</strong>meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele <strong>de</strong>teveselogo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se a<strong>que</strong>le pretoera escravo <strong>de</strong>le.- E, sim, nhonhô.- Fez-te alguma coisa?- É um vadio e um bêbado muito gran<strong>de</strong>. Ainda hoje<strong>de</strong>ixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cida<strong>de</strong>,e ele <strong>de</strong>ixou a quitanda para ir na venda beber.- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.- Pois não, nhonhô manda, não pe<strong>de</strong>. Entra para casa,bêbado!Saí do grupo, <strong>que</strong> me olhava espantado e cochichava assuas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá <strong>de</strong>ntro uma infinida<strong>de</strong><strong>de</strong> reflexões, <strong>que</strong> sinto haver inteiramente perdido;aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre.Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente,era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente.Logo <strong>que</strong> meti mais <strong>de</strong>ntro a faca do raciocínio achei-lheum miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo <strong>que</strong> oPrudêncio tinha <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfazer das pancadas recebidas, -transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punhalheum freio na boca, e <strong>de</strong>sancava-o sem compaixão; elegemia e sofria. Agora, porém, <strong>que</strong> era livre, dispunha <strong>de</strong> simesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir,<strong>de</strong>sagrilhoado da antiga condição, agora é <strong>que</strong> ele se<strong>de</strong>sbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com altojuro, as quantias <strong>que</strong> <strong>de</strong> mim recebera. Vejam as sutilezas domaroto!


CAPÍTULO 69Um Grão <strong>de</strong> SandkeEste caso faz-me lembrar um doido <strong>que</strong> conheci. Chamava-seRomualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua gran<strong>de</strong> e únicamania, e tinha uma curiosa maneira <strong>de</strong> a explicar.- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo,mas adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tantotártaro, tanto tártaro, <strong>que</strong> fi<strong>que</strong>i Tártaro, e até rei dos Tártaros.O tártaro tem a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer Tártaros.Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável<strong>que</strong> o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe achograça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assimcontada, no papel, e a propósito <strong>de</strong> um vergalho recebidoe transferido, força é confessar <strong>que</strong> é muito melhor voltarà casinha da Gamboa; <strong>de</strong>ixemos os Romualdos e Prudêncios.CAPÍTULO 70Dona PlácidaVoltemos à casinha. Não serias capaz <strong>de</strong> lá entrar hoje,curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário<strong>de</strong>itou-a abaixo para substitui-la por outra, três vezesmaior, mas juro-te <strong>que</strong> muito menor <strong>que</strong> a primeira. O mundoera estreito para Alexandre; um <strong>de</strong>svão <strong>de</strong> telhado é o infinitopara as andorinhas.E vejam agora a neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste globo, <strong>que</strong> nos leva,através dos espaços, como uma lancha <strong>de</strong> náufragos, <strong>que</strong> vaidar à costa: dorme hoje um casal <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s no mesmo espaço<strong>de</strong> chão <strong>que</strong> sofreu um casal <strong>de</strong> pecados. Amanhã po<strong>de</strong> ládormir um eclesiástico, <strong>de</strong>pois um assassino, <strong>de</strong>pois um ferreiro,<strong>de</strong>pois um poeta, e todos abençoarão esse canto <strong>de</strong> terra,<strong>que</strong> lhes <strong>de</strong>u algumas ilusões.Virgília fez daquilo um brinco; <strong>de</strong>signou as alfaias maisidôneas, e dispô-las com a intuição estética da mulher elegante;eu levei para lá alguns livros, e tudo ficou sob a guarda<strong>de</strong> Dona Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verda<strong>de</strong>iradona da casa.Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção, edoía-lhe o ofício; mas afinal ce<strong>de</strong>u. Creio <strong>que</strong> chorava, a princípio:tinha nojo <strong>de</strong> si mesma. Ao menos, é certo <strong>que</strong> não levantouos olhos para mim durante os primeiros dois meses;falava-me com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste.Eu <strong>que</strong>ria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-acom carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência,<strong>de</strong>pois a confiança. Quando obtive a confiança, imagineiuma história patética dos meus amores com Virgília, um casoanterior <strong>ao</strong> casamento, a resistência do pai, a dureza do mari-


do, e não sei <strong>que</strong> outros to<strong>que</strong>s <strong>de</strong> novela. Dona Plácida nãorejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era umanecessida<strong>de</strong> da consciência. Ao cabo <strong>de</strong> seis meses <strong>que</strong>m nosvisse a todos três juntos diria <strong>que</strong> Dona Plácida era minhasogra.Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio <strong>de</strong> cinco contos, - oscinco contos achados em Botafogo, - como um pão para avelhice. Dona Plácida agra<strong>de</strong>ceu-me com lágrimas nos olhos,e nunca mais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> rezar por mim, todas as noites, diante<strong>de</strong> uma imagem da Virgem <strong>que</strong> tinha no quarto. Foi assim <strong>que</strong>lhe acabou o nojo.CAPÍTULO 71O Senão do LivroComeço a arrepen<strong>de</strong>r-me <strong>de</strong>ste livro. Não <strong>que</strong> ele mecanse; eu não tenho <strong>que</strong> fazer; e, realmente, expedir algunsmagros capítulos para esse mundo sempre é tarefa <strong>que</strong> distraium pouco da eternida<strong>de</strong>. Mas o livro é enfadonho, cheira asepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliásínfimo, por<strong>que</strong> o maior <strong>de</strong>feito <strong>de</strong>ste livro és tu, leitor. Tutens pressa <strong>de</strong> envelhecer, e o livro anda <strong>de</strong>vagar; tu amas a narraçãodireita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livroe o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à es<strong>que</strong>rda,andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam océu, escorregam e caem...E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis <strong>de</strong>cair, como quais<strong>que</strong>r outras belas e vistosas; e, se eu tivesseolhos, dar-vos-ia uma lágrima <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>. Esta é a gran<strong>de</strong>vantagem da morte, <strong>que</strong>, se não <strong>de</strong>ixa boca para rir, tambémnão <strong>de</strong>ixa olhos para chorar... Heis <strong>de</strong> cair. Turvo é oar <strong>que</strong> respirais, amadas folhas. O sol <strong>que</strong> vos alumia, comser <strong>de</strong> toda gente, é um sol opaco e reles, <strong>de</strong> cemitério ecarnaval.CAPÍTULO 72O BibliômanoTalvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos,há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com <strong>de</strong>spropósito,e eu não <strong>que</strong>ro dar pasto à crítica do futuro.Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo,grisalho, <strong>que</strong> não ama nenhuma outra coisa além dos livros,inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe <strong>de</strong>scobre o <strong>de</strong>spropósito;lê, relê, treslê, <strong>de</strong>sengonça as palavras, saca umasílaba, <strong>de</strong>pois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por<strong>de</strong>ntro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espanejaas,esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo<strong>de</strong>spropósito.


E um bibliômano. Não conhece o autor; este nome <strong>de</strong> BrásCubas não vem nos seus dicionários biográficos. Achou ovolume, por acaso, no pardieiro <strong>de</strong> um alfarrabista. Comprouopor duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a<strong>de</strong>scobrir <strong>que</strong> era um exemplar único... Unico! Vós, <strong>que</strong> nãosó amais os livros, senão <strong>que</strong> pa<strong>de</strong>ceis a mania <strong>de</strong>les, vós sabeismui bem o valor <strong>de</strong>sta palavra, e adivinhais, portanto, as <strong>de</strong>lícias<strong>de</strong> meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, opapado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse<strong>de</strong> trocar por esse único exemplar; e não por<strong>que</strong> seja odas minhas Memórias, fazia a mesma coisa com o Almanac <strong>de</strong>Laemmert, uma vez <strong>que</strong> fosse único.O pior é o <strong>de</strong>spropósito. Lá continua o homem inclinadosobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregueà nobre e áspera função <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar o <strong>de</strong>spropósito. Já prometeua si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate oachado do livro e a <strong>de</strong>scoberta da sublimida<strong>de</strong>, se a houverpor baixo da<strong>que</strong>la frase obscura. Ao cabo, não <strong>de</strong>scobre nadae contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o,chega-se à janela e mostra-o <strong>ao</strong> sol. Um exemplar único. Nessemomento passa-lhe por baixo da janela um César ou umCromwell, a caminho do po<strong>de</strong>r. Ele dá <strong>de</strong> ombros, fecha ajanela, estira-se na re<strong>de</strong> e folheia o livro <strong>de</strong>vagar, com amor,<strong>ao</strong>s goles... Um exemplar único!CAPÍTULO 73O LunchO <strong>de</strong>spropósito fez-me per<strong>de</strong>r outro capítulo. Que melhornão era dizer as coisas lisamente, sem todos estes solavancos!Já comparei o meu estilo <strong>ao</strong> andar dos ébrios. Se aidéia vos parece in<strong>de</strong>corosa, direi <strong>que</strong> ele é o <strong>que</strong> eram asminhas refeições com Virgilia, na casinha da Gamboa, on<strong>de</strong>às vezes fazíamos a nossa patuscada, o nosso lunch. Vinho,frutas, compotas. Comíamos, é verda<strong>de</strong>, mas era um comervirgulado <strong>de</strong> palavrinhas doces, <strong>de</strong> olhares temos, <strong>de</strong> criancices,uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses apartes do coração, aliás o verda<strong>de</strong>iro,o ininterrupto discurso do amor. As vezes vinha oarrufo temperar o nímio adocicado da situação. Ela <strong>de</strong>ixavame,refugiava-se num canto do canapé, ou ia para o interiorouvir as <strong>de</strong>nguices <strong>de</strong> Dona Plácida. Cinco ou <strong>de</strong>z minutos<strong>de</strong>pois, reatávamos a palestra, como eu reato a narração, para<strong>de</strong>satá-la outra vez. Note-se <strong>que</strong>, longe <strong>de</strong> termos horror <strong>ao</strong>método, era nosso costume convidá-lo, na pessoa <strong>de</strong> DonaPlácida, a sentar-se conosco à mesa; mas Dona Plácida nãoaceitava nunca.- Você parece <strong>que</strong> não gosta mais <strong>de</strong> mim, disse-lhe umdia Virgília.


- Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçandoas mãos para o teto. Não gosto <strong>de</strong> Iaiá! Mas então <strong>de</strong> <strong>que</strong>mé <strong>que</strong> eu gostaria neste mundo?E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente,fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, <strong>de</strong> tão fixo <strong>que</strong> era.Virgília acariciou-a muito; eu <strong>de</strong>ixei-lhe uma pratinha naalgibeira do vestido.CAPÍTULO 74História <strong>de</strong> Dona PlácidaNão te arrependas <strong>de</strong> ser generoso; a pratinha ren<strong>de</strong>u-meuma confidência <strong>de</strong> Dona Plácida, e conseguintemente estecapitulo. Dias <strong>de</strong>pois, como eu a achasse só em casa, travamospalestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Erafilha natural <strong>de</strong> um sacristão da Sé e <strong>de</strong> uma mulher <strong>que</strong> faziadoces para fora. Per<strong>de</strong>u o pai <strong>ao</strong>s <strong>de</strong>z anos. Já então ralava cocoe fazia não sei <strong>que</strong> outros misteres <strong>de</strong> doceira, compatíveis coma ida<strong>de</strong>. Aos quinze ou <strong>de</strong>zesseis casou com um alfaiate, <strong>que</strong>morreu tísico algum tempo <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>ixando-lhe uma filha.Viúva, com pouco mais <strong>de</strong> vinte anos, ficaram a seu cargo afilha, com dois, e a mãe, cansada <strong>de</strong> trabalhar. Tinha <strong>de</strong> sustentara três pessoas. Fazia doces, <strong>que</strong> era o seu ofício, mascosia também, <strong>de</strong> dia e <strong>de</strong> noite, com afinco, para três ou quatrolojas e ensinava algumas crianças do bairro, a <strong>de</strong>z tostões pormês. Com isto iam-se passando os anos, não, não a beleza, por<strong>que</strong>não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas,seduções, a <strong>que</strong> resistia.- Se eu pu<strong>de</strong>sse encontrar outro marido, disse-me ela,creia <strong>que</strong> me teria casado; mas ninguém <strong>que</strong>ria casar comigo.Um dos preten<strong>de</strong>ntes conseguiu fazer-se aceito; não sendo,porém, mais <strong>de</strong>licado <strong>que</strong> os outros, Dona Plácida <strong>de</strong>spediu-odo mesmo modo, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o <strong>de</strong>spedir, chorou muito.Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãetinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessida<strong>de</strong>:mortificava a filha para <strong>que</strong> tomasse um dos maridos <strong>de</strong>empréstimo e <strong>de</strong> ocasião <strong>que</strong> lixa pediam. E bradava:- Queres ser melhor do <strong>que</strong> eu? Não sei don<strong>de</strong> te vemessas fidúcias <strong>de</strong> pessoa rica. Minha camarada, a vida não searranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bonscomo o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo,não é?Dona Plácida jurou-me <strong>que</strong> não esperava fidalgo nenhum.Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem <strong>que</strong> a mãe onão fora, e conhecia algumas <strong>que</strong> tinham só o seu moço <strong>de</strong>las;mas era gênio e <strong>que</strong>ria ser casada. Não <strong>que</strong>ria também<strong>que</strong> a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, <strong>que</strong>imandoos <strong>de</strong>dos <strong>ao</strong> fogão, e os olhos <strong>ao</strong> can<strong>de</strong>eiro, para comer e nãocair. Emagreceu, adoeceu, per<strong>de</strong>u a mãe, enterrou-a por subs-


crição, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorzeanos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não sernamorar os capadócios <strong>que</strong> lhe rondavam a rótula. Dona Plácidavivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quandotinha <strong>de</strong> ir entregar costuras, e a gente das lojas arregalava episcava os olhos, convencida <strong>de</strong> <strong>que</strong> ela a levava para colhermarido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos;a mãe chegou a receber propostas <strong>de</strong> dinheiro...Interrompeu-se um instante, e continuou logo:- Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem <strong>que</strong>rosaber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, <strong>que</strong> penseimorrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quasevelha e doente. Foi por esse tempo <strong>que</strong> conheci a família <strong>de</strong>Iaiá: boa gente, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>u <strong>que</strong> fazer, e até chegou a me darcasa. Estive lá muitos meses, um ano, mais <strong>de</strong> um ano, agregada,costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi comoDeus foi servido. Olhe os meus <strong>de</strong>dos, olhe estas mãos... Emostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos <strong>de</strong>dospicadas da agulha. - Não se cria isto à toa, meu senhor; Deussabe como é <strong>que</strong> isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, eo senhor doutor também... Eu tinha um medo <strong>de</strong> acabar narua, pedindo esmola...Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio.Depois, como se tomasse a si, pareceu atentar na inconveniênciada<strong>que</strong>la confissão <strong>ao</strong> amante <strong>de</strong> uma mulher casada,e começou a rir, a <strong>de</strong>sdizer-se, a chamar-se tola, "cheia<strong>de</strong> fidúcias", como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meusilêncio, retirou-se da sala. Eu fi<strong>que</strong>i a olhar para a ponta dobotim.CAPÍTULO 75ComigoPo<strong>de</strong>ndo acontecer <strong>que</strong> algum dos meus leitores tenhapulado o capitulo anterior, observo <strong>que</strong> é preciso lê-lo paraenten<strong>de</strong>r o <strong>que</strong> eu disse comigo, logo <strong>de</strong>pois <strong>que</strong> Dona Plácidasaiu da sala. O <strong>que</strong> eu disse foi isto:- Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando àmissa, viu entrar a dama, <strong>que</strong> <strong>de</strong>via ser sua colaboradorana vida <strong>de</strong> Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanasinteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé,<strong>ao</strong> acen<strong>de</strong>r os altares, nos dias <strong>de</strong> festa. Ela gostou <strong>de</strong>le,acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção <strong>de</strong> luxúriasvadias brotou Dona Plácida. E <strong>de</strong> crer <strong>que</strong> Dona Plácidanão falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer<strong>ao</strong>s autores <strong>de</strong> seus dias: - Aqui estou. Para <strong>que</strong> mechamastes? E o sacristão e a sacristia naturalmente lhe respon<strong>de</strong>riam:- Chamamos-te para <strong>que</strong>imar os <strong>de</strong>dos nostachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar<strong>de</strong> um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando,


com o fim <strong>de</strong> tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora,logo <strong>de</strong>sesperada, amanhã resignada, mas sempre comas mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um diana lama ou no hospital; foi para isso <strong>que</strong> te chamamos, nummomento <strong>de</strong> simpatia.CAPÍTULO 76O EstrumeSúbito <strong>de</strong>u-me a consciência um repelão, acusou-me <strong>de</strong>ter feito capitular a probida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Dona Plácida, obrigando-aa um papel torpe, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa vida <strong>de</strong> trabalho e privações.Medianeira não era melhor <strong>que</strong> concubina, e eu tinha-abaixado a esse ofício, à custa <strong>de</strong> obséquios e dinheiros.Foi o <strong>que</strong> me disse a consciência; e eu fi<strong>que</strong>i uns <strong>de</strong>z minutossem saber <strong>que</strong> lhe replicasse. Ela acrescentou <strong>que</strong> eu me aproveitarada fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira,da gratidão <strong>de</strong>sta, enfim da necessida<strong>de</strong>. Notou a resistência<strong>de</strong> Dona Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as carasfeias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportartudo isso, até vencê-la. E repuxou-me outra vez <strong>de</strong> um modoirritado e nervoso.Concor<strong>de</strong>i <strong>que</strong> assim era mas aleguei <strong>que</strong> a velhice <strong>de</strong>Dona Plácida estava agora <strong>ao</strong> abrigo da mendicida<strong>de</strong>: era umacompensação. E raciocinei então <strong>que</strong>, se não fossem os meusamores, provavelmente Dona Plácida acabaria como tantasoutras criaturas humanas; don<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>duzir <strong>que</strong> o vícioé muitas vezes o estrume da virtu<strong>de</strong>, O <strong>que</strong> não impe<strong>de</strong> <strong>que</strong> avirtu<strong>de</strong> seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou,e eu fui abrir a porta a Virgília.CAPÍTULO 77EntrevistaVirgília entrou risonha e sossegada. Os tempos tinhamlevado os sustos e vexames. Que doce <strong>que</strong> era vê-la chegar,nos primeiros dias, envergonhada e trêmula! Ia <strong>de</strong> sege, veladoo rosto, envolvido numa espécie <strong>de</strong> mantéu, <strong>que</strong> lhe disfarçavaas ondulações do talhe. Da primeira vez <strong>de</strong>ixou-se cairno canapé, ofegante, escarlate, com os olhos no chão; e, palavra!em nenhuma outra ocasião a achei tão bela, talvez por<strong>que</strong>nunca me senti mais lisonjeado.Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos evexames; as entrevistas entravam no período cronométrico.A intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor era a mesma; a diferença é <strong>que</strong> a chamaper<strong>de</strong>ra o tresloucado dos primeiros dias para constituirseum simples feixe <strong>de</strong> raios, tranqüilo e constante, como nos


casamentos.- Estou muito zangada com você, disse ela sentando-se.- Porquê?- Por<strong>que</strong> não foi lá ontem, como me tinha dito. ODamião perguntou muitas vezes se você não iria, <strong>ao</strong> menos,tomar chá. Por <strong>que</strong> é <strong>que</strong> não foi?Com efeito, eu havia faltado à palavra <strong>que</strong> <strong>de</strong>ra, e a culpaera toda <strong>de</strong> Virgília. Questão <strong>de</strong> ciúmes. Essa mulheresplêndida sabia <strong>que</strong> o era, e gostava <strong>de</strong> o ouvir dizer, fosseem voz alta ou baixa. Na antevéspera, em casa da baronesa,valsara duas vezes com o mesmo peralta <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lheescutar as cortesanices, <strong>ao</strong> canto <strong>de</strong> uma janela. Estava tãoalegre! tão <strong>de</strong>rramada! tão cheia <strong>de</strong> si! Quando <strong>de</strong>scobriu,entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora,não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamenteséria; mas <strong>de</strong>itou <strong>ao</strong> mar o peralta e as cortesanices.Veio <strong>de</strong>pois a mim, tomou-me o braço, e levou-me até outrasala, menos povoada, on<strong>de</strong> se me <strong>que</strong>ixou <strong>de</strong> cansaço,e disse muitas outras coisas, com o ar pueril <strong>que</strong> costumavater, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase sem respon<strong>de</strong>rnada.Agora mesmo, custava-me respon<strong>de</strong>r alguma coisa, masenfim contei-lhe o motivo da minha ausência... Não, eternasestrelas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta,as sobrancelhas ar<strong>que</strong>adas, uma estupefação visível, tangível,<strong>que</strong> se não podia negar, tal foi a primeira réplica <strong>de</strong> Virgília;abanou a cabeça com um sorriso <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e ternura, <strong>que</strong>inteiramente me confundiu.- Ora você!E foi tirar o chapéu, lépida, jovial, como a menina <strong>que</strong>torna do colégio; <strong>de</strong>pois veio a mim, <strong>que</strong> estava sentado, <strong>de</strong>umepancadinhas na testa, com um só <strong>de</strong>do, a repetir: - Isto,isto; - e eu não tive remédio senão rir também, e tudo acabouem galhofa. Era claro <strong>que</strong> me enganara.CAPÍTULO 78A PresidênciaCerto dia, meses <strong>de</strong>pois, entrou Lobo Neves em casa,dizendo <strong>que</strong> iria talvez ocupar uma presidência <strong>de</strong> província.Olhei para Virgília, <strong>que</strong> empali<strong>de</strong>ceu; ele, <strong>que</strong> a viu empali<strong>de</strong>cer,perguntou-lhe:- A modo <strong>que</strong> não gostaste, Virgília?Virgília abanou a cabeça.- Não me agrada muito, foi a sua resposta.Não se disse mais nada; mas <strong>de</strong> noite o Lobo Neves insistiuno projeto, um pouco mais resolutamente do <strong>que</strong> <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>;e dois dias <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>clarou à mulher <strong>que</strong> a presidência era


coisa <strong>de</strong>finitiva. Virgília não pô<strong>de</strong> dissimular a repugnância<strong>que</strong> isto lhe causava. O marido respondia a tudo com as necessida<strong>de</strong>spolíticas. E acrescentava:- Não posso recusar o <strong>que</strong> me pe<strong>de</strong>m; é até conveniêncianossa, do nosso futuro, dos teus brasões, meu amor, por<strong>que</strong>eu prometi <strong>que</strong> serias mar<strong>que</strong>sa, e nem baronesa estás.Dirás <strong>que</strong> sou ambicioso? Sou-o <strong>de</strong>veras, mas é preciso <strong>que</strong>me não ponhas um peso nas asas da ambição.Virgília ficou <strong>de</strong>sorientada. No dia seguinte achei-a triste,na casa da Gamboa, à minha espera; tinha dito tudo a DonaPlácida, <strong>que</strong> buscava consolá-la como podia. Não fi<strong>que</strong>i menosabatido.- Você há <strong>de</strong> ir conosco, disse-me Virgília.- Está doida? Seria uma insensatez.- Mas então...?- Então, é preciso <strong>de</strong>sfazer o projeto.- É impossível.- Já aceitou?- Parece <strong>que</strong> sim.Levantei-me, atirei o chapéu a uma ca<strong>de</strong>ira, e entrei apassear <strong>de</strong> um lado para outro, sem saber o <strong>que</strong> faria. Cogiteilargamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília,<strong>que</strong> estava sentada, e travei-lhe da mão; Dona Plácida foi àjanela.- Nesta pe<strong>que</strong>nina mão está toda a minha existência,disse eu; você é responsável por ela; faça o <strong>que</strong> lhe parecer.Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me <strong>ao</strong> consolofronteiro. Decorreram alguns instantes <strong>de</strong> silêncio; ouvíamossomente o latir <strong>de</strong> um cão, e não sei se o rumor da água<strong>que</strong> morria na praia. Vendo <strong>que</strong> não falava, olhei para ela.Virgília tinha os olhos no chão, parados, sem luz, as mãos<strong>de</strong>ixadas sobre os joelhos, com os <strong>de</strong>dos cruzados, na atitu<strong>de</strong><strong>de</strong> suprema <strong>de</strong>sesperança. Noutra ocasião, por diferente motivo,é certo <strong>que</strong> eu me lançaria <strong>ao</strong>s pés <strong>de</strong>la, e a amparariacom a minha razão e a minha ternura; agora, porém, era precisocompeli-la <strong>ao</strong> esforço <strong>de</strong> si mesma, <strong>ao</strong> sacrifício à responsabilida<strong>de</strong>da nossa vida comum, e conseguintemente<strong>de</strong>sampará-la, <strong>de</strong>ixá-la, e sair; foi o <strong>que</strong> fiz.- Repito, a minha felicida<strong>de</strong> está nas tuas mãos, disseeu.Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta.Cheguei a ouvir um prorromper <strong>de</strong> lágrimas, e digo-lhes <strong>que</strong>estive a ponto <strong>de</strong> voltar, para as enxugar com um beijo; massubjuguei-me e saí.CAPÍTULO 79Compromisso <strong>de</strong> gatoNão acabaria se houvesse <strong>de</strong> contar pelo miúdo o <strong>que</strong>


pa<strong>de</strong>ci nas primeiras horas. Vacilava entre um <strong>que</strong>rer e umnão <strong>que</strong>rer, entre a pieda<strong>de</strong> <strong>que</strong> me empuxava à casa <strong>de</strong> Virgíliae outro sentimento, - egoísmo, suponhamos, - <strong>que</strong> me dizia:- Fica; <strong>de</strong>ixa-a a sós com o problema, <strong>de</strong>ixa-a <strong>que</strong> ela oresolverá no sentido do amor. Creio <strong>que</strong> essas duas forças tinhamigual intensida<strong>de</strong>, investiam e resistiam <strong>ao</strong> mesmo tempo,com ardor, com tenacida<strong>de</strong>, e nenhuma cedia <strong>de</strong>finitivamente.As vezes sentia um <strong>de</strong>ntezinho <strong>de</strong> remorso; pareciame<strong>que</strong> abusava da fra<strong>que</strong>za <strong>de</strong> uma mulher amante e culpada,sem nada sacrificar nem arriscar <strong>de</strong> mim próprio; e, quandoia capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conselhoegoísta, e eu ficava irresoluto e inquieto, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> aver, e receoso <strong>de</strong> <strong>que</strong> a vista me levasse a compartir a responsabilida<strong>de</strong>da solução.Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e apieda<strong>de</strong>; eu iria vê-la em casa, e só em casa, em presença domarido, para lhe não dizer nada, à espera do efeito da minhaintimação. Deste modo po<strong>de</strong>ria conciliar as duas forças. Agora,<strong>que</strong> isto escrevo, <strong>que</strong>r-me parecer <strong>que</strong> o compromisso era umaburla, <strong>que</strong> essa pieda<strong>de</strong> era ainda uma forma <strong>de</strong> egoísmo, e<strong>que</strong> a resolução <strong>de</strong> ir consolar Virgília não passava <strong>de</strong> umasugestão <strong>de</strong> meu próprio pa<strong>de</strong>cimento. Ocorre-me a este propósitoum naturalista, - não me lembra qual, - mas era umnaturalista, - em <strong>que</strong> li esta observação curiosa: "O gato nãonos afaga, afaga-se em nós." Vejo <strong>que</strong> eu fazia um compromisso<strong>de</strong> gato.CAPÍTULO 80De SecretárioNa noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Neves;estavam ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial.juro <strong>que</strong> ela sentiu certo alívio quando os nossos olhos se encontraram,cheios <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> e ternura; e não direi o <strong>que</strong>senti, por<strong>que</strong> isso já ficou expresso no capítulo anterior, in fine. OLobo Neves contou-me os planos <strong>que</strong> levava para a presidência,as dificulda<strong>de</strong>s locais, as esperanças, as resoluções;estava tão contente! tão esperançado! Virgília, <strong>ao</strong> pé da mesa, fingialer um livro, mas por cima da página olhava-me <strong>de</strong> quandoem quando, interrogativa e ansiosa.- O pior, disse-me <strong>de</strong> repente o Lobo Neves, é <strong>que</strong> aindanão achei secretário.- Não?- Não, e tenho uma idéia.-Ah!- Uma idéia... Quer você dar um passeio <strong>ao</strong> Norte?Não sei o <strong>que</strong> lhe disse.- Você é rico, continuou ele, não precisa <strong>de</strong> um magroor<strong>de</strong>nado; mas se quisesse obsequiar-me, ia <strong>de</strong> secretáriocomigo.


Meu espírito <strong>de</strong>u um salto para trás, como se <strong>de</strong>scobrisseuma serpente diante <strong>de</strong> si. Encarei o Lobo Neves, fixamente,imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamentooculto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, aplaci<strong>de</strong>z do rosto era natural, não violenta, uma placi<strong>de</strong>zsalpicada <strong>de</strong> alegria. Respirei, e não tive ânimo <strong>de</strong> olhar paraVirgília; senti por cima da página o olhar <strong>de</strong>la, <strong>que</strong> me pediatambém a mesma coisa, e disse <strong>que</strong> sim, <strong>que</strong> iria. Na verda<strong>de</strong>,um presi<strong>de</strong>nte, uma presi<strong>de</strong>nta, um secretário, era resolver ascoisas <strong>de</strong> um modo administrativo.CAPÍTULO 81A ReconciliaçãoE contudo, <strong>ao</strong> sair <strong>de</strong> lá, tive umas sombras <strong>de</strong> dúvida;cogitei se não ia expor insanamente a reputação <strong>de</strong> Virgília, senão haveria outro meio razoável <strong>de</strong> combinar o Estado e aGamboa. Não achei nada. No dia seguinte, <strong>ao</strong> levantar-me dacama, trazia o espírito feito e resoluto a aceitar a nomeação.Ao meio-dia, veio o criado dizer-me <strong>que</strong> estava na sala umasenhora, coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina.- Isto não po<strong>de</strong> continuar assim, disse ela; é preciso <strong>que</strong>,<strong>de</strong> uma vez por todas, façamos as pazes. Nossa família estáacabando; não havemos <strong>de</strong> ficar como dois inimigos.- Mas se eu não te peço outra coisa, mana! bra<strong>de</strong>i euesten<strong>de</strong>ndo-lhe os braços.Sentei-a <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> mim, e falei-lhe do marido, da filha, dosnegócios, <strong>de</strong> tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como osamores. O marido viria mostrar-ma, se eu consentisse.- Ora essa! irei eu mesmo vê-la.- Sim?- Palavra.- Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo <strong>de</strong> acabarcom isto.Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinteanos, e contava mais <strong>de</strong> trinta. Graciosa, afável, nenhum acanhamento,nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro,com as mãos seguras, falando <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> nada, como doisnamorados. Era a minha infância <strong>que</strong> ressurgia, fresca, travessae loura; os anos iam caindo como as fileiras <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> jogarencurvadas, com <strong>que</strong> eu brincava em pe<strong>que</strong>no, e <strong>de</strong>ixavammever a nossa casa, a nossa família, as nossas festas.Suportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhançalembrou-se <strong>de</strong> zangarrear na clássica rabeca, e essa voz -por<strong>que</strong> até então a recordação era muda, - essa voz do passado,fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu, <strong>que</strong>...Os olhos <strong>de</strong>la estavam secos. Sabina não herdara a floramarela e mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue,um pedaço <strong>de</strong> minha mãe, e eu disse-lho com ternura,


com sincerida<strong>de</strong>... Súbito, ouço bater à porta da sala; vouabrir; era um anjinho <strong>de</strong> cinco anos.- Entra, Sara, disse Sabina.Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitasvezes; a pe<strong>que</strong>na, espantada, empurrava-me o ombro com amãozinha, <strong>que</strong>brando o corpo para <strong>de</strong>scer... Nisto, aparece-meporta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos<strong>que</strong> o Cotrim. Eu estava tão comovido, <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixei a filha e lancei-me<strong>ao</strong>s braços do pai. Talvez essa efusão o <strong>de</strong>sconcertou umpouco; é certo <strong>que</strong> me pareceu acanhado. Simples prólogo. Daía pouco falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma alusão<strong>ao</strong> passado, muitos planos <strong>de</strong> futuro, promessa <strong>de</strong> jantarmos emcasa um do outro. E não <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> dizer <strong>que</strong> essa troca <strong>de</strong> jantarespodia ser <strong>que</strong> tivesse uma curta interrupção, por<strong>que</strong> euandava com idéias <strong>de</strong> uma viagem <strong>ao</strong> Norte. Sabina olhou par<strong>ao</strong> Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram <strong>que</strong> essasidéias não tinham senso comum. Que diacho podia eu acharno Norte? Pois não era na corte, em plena corte, <strong>que</strong> <strong>de</strong>viacontinuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo?Que, na verda<strong>de</strong>, nenhum havia <strong>que</strong> se me comparasse; ele,Cotrim, acompanhava-me <strong>de</strong> longe, e, não obstante uma brigaridícula, teve sempre interesse, orgulho, vaida<strong>de</strong> nos meustriunfos. Ouvia o <strong>que</strong> se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas;era um concerto <strong>de</strong> louvores e admirações. E <strong>de</strong>ixa-se isso parair passar alguns meses na província, sem necessida<strong>de</strong>, sem motivosério? A menos <strong>que</strong> não fosse política...- Justamente política, disse eu.- Nem assim, replicou ele dai a um instante. - E <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> outro silêncio: - Seja como for, venha jantar hoje conosco.- Certamente <strong>que</strong> vou; mas, amanhã ou <strong>de</strong>pois, hão <strong>de</strong>vir jantar comigo.- Não sei, não sei, objetou Sabina; em casa <strong>de</strong> homemsolteiro... Você precisa casar, mano. Também eu <strong>que</strong>ro umasobrinha, ouviu?Cotrim reprimiu-a com um gesto, <strong>que</strong> não entendi bem.Não importa; a reconciliação <strong>de</strong> uma família vale bem umgesto enigmático.CAPÍTULO 82Questão <strong>de</strong> BotânicaDigam o <strong>que</strong> quiserem dizer os hipocondríacos: a vida éuma coisa doce. Foi o <strong>que</strong> eu pensei comigo, <strong>ao</strong> ver Sabina, omarido e a filha <strong>de</strong>scerem <strong>de</strong> tropel as escadas, dizendo muitaspalavras afetuosas para cima, on<strong>de</strong> eu ficava - no patamar,- a dizer-lhes outras tantas para baixo. E continuei apensar <strong>que</strong>, na verda<strong>de</strong>, era feliz. Amava-me uma mulher, tinhaa confiança do marido, ia por secretário <strong>de</strong> ambos, e re-


conciliava-me com os meus. Que podia <strong>de</strong>sejar mais, em vintee quatro horas?Nesse mesmo dia, tratando <strong>de</strong> aparelhar os ânimos, comeceia espalhar <strong>que</strong> talvez fosse para o Norte como secretário<strong>de</strong> província, a fim <strong>de</strong> realizar certos <strong>de</strong>sígnios políticos,<strong>que</strong> me eram pessoais. Disse-o na rua do Ouvidor, repeti-ono dia seguinte, no Pharoux e no teatro. Alguns, ligando aminha nomeação à do Lobo Neves, <strong>que</strong> já andava em boatos,sorriam maliciosamente, outros batiam-me no ombro. No teatrodisse-me uma senhora <strong>que</strong> era levar muito longe o amorda escultura. Referia-se às belas formas <strong>de</strong> Virgília.Mas a alusão mais rasgada <strong>que</strong> me fizeram foi em casa <strong>de</strong>Sabina, três dias <strong>de</strong>pois. Fê-la um certo Garcez, velho cirurgião,pe<strong>que</strong>nino, trivial e grulha, <strong>que</strong> podia chegar <strong>ao</strong>s setenta,<strong>ao</strong>s oitenta, <strong>ao</strong>s noventa anos, sem adquirir jamais a<strong>que</strong>lacompostura austera, <strong>que</strong> é a gentileza do ancião. A velhiceridícula é, porventura, a mais triste e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira surpresa danatureza humana.- Já sei, <strong>de</strong>sta vez vai ler Cícero, disse-me ele, <strong>ao</strong> saberda viagem.- Cicero! exclamou Sabina.- Pois então? Seu mano é um gran<strong>de</strong> latinista. TraduzVirgílio <strong>de</strong> relance. Olhe <strong>que</strong> é Virgílio e não Virgília... nãoconfunda...E ria, <strong>de</strong> um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina empali<strong>de</strong>ceue olhou para mim, receosa <strong>de</strong> alguma réplica; mas sorriu,quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá-lo. Asoutras pessoas olhavam-me com um ar <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, indulgênciae simpatia; era transparente <strong>que</strong> não acabavam <strong>de</strong> ouvirnenhuma novida<strong>de</strong>. O caso dos meus amores andava maispúblico do <strong>que</strong> eu podia supor. E entretanto sorri, um sorrisocurto, fugitivo e guloso, - palreiro como as pegas <strong>de</strong> Sintra.Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro!Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia algumaalusão <strong>ao</strong>s nossos amores; mas palavra <strong>de</strong> honra! sentia cá<strong>de</strong>ntro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém,aconteceu-me sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes.Não sei se há aí algum Hobbes ou Spinosa <strong>que</strong> expli<strong>que</strong> o fenômeno.Eu explico-o assim: a princípio, o contentamento,sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado;andando o tempo, <strong>de</strong>sabotoou-se em flor, e apareceu <strong>ao</strong>solhos do próximo. Simples <strong>que</strong>stão <strong>de</strong> botânica.CAPÍTULO 8313O Cotrim tirou-me da<strong>que</strong>le gozo, levando-me à janela.- Você <strong>que</strong>r <strong>que</strong> lhe diga uma coisa? perguntou ele; -não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.


- Porquê?- Você bem sabe por<strong>que</strong>, tomou ele: é, sobretudo, perigosa,muito perigosa. Aqui na corte, um caso <strong>de</strong>sses per<strong>de</strong>-sena multidão da gente e dos interesses; mas na província muda<strong>de</strong> figura; e tratando-se <strong>de</strong> personagens políticos, é realmenteinsensatez. As gazetas <strong>de</strong> oposição, logo <strong>que</strong> farejarem onegócio, passam a imprimi-lo com todas as letras, e aí virão aschufas, os remo<strong>que</strong>s, as alcunhas...- Mas não entendo...- Enten<strong>de</strong>, enten<strong>de</strong>; e na verda<strong>de</strong>, seria bem poucoamigo nosso, se me negasse o <strong>que</strong> toda a gente sabe. Eu seidisso há longos meses. Repito, não faça semelhante viagem;suporte a ausência, <strong>que</strong> é melhor, e evite algum gran<strong>de</strong> escândaloe maior <strong>de</strong>sgosto...Disse isto, e foi para <strong>de</strong>ntro. Eu <strong>de</strong>ixei-me estar com os olhosno lampião da esquina, - um antigo lampião <strong>de</strong> azeite, - triste,obscuro e recurvado, como um ponto <strong>de</strong> interrogação. Que mecumpria fazer? Era o caso <strong>de</strong> Hamlet: ou dobrar-me à fortuna,ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ounão embarcar. Esta era a <strong>que</strong>stão. O lampião não me dizia nada.As palavras do Cotrim ressoavam-me <strong>ao</strong>s ouvidos da memória,<strong>de</strong> um modo mui diverso do das palavras do Garcez. Talvez oCotrim tivesse razão; mas podia eu separar-me <strong>de</strong> Virgília?Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em <strong>que</strong> estavapensando. Respondi <strong>que</strong> em coisa nenhuma, <strong>que</strong> tinha sonoe ia para casa. Sabina esteve um instante calada. - O <strong>que</strong>você precisa, sei eu; é uma noiva. Deixe, <strong>que</strong> eu ainda arranjouma noiva para você. Saí <strong>de</strong> lá opresso, <strong>de</strong>sorientado. Tudopronto para embarcar, - espírito e coração, - e eis aí mesurge esse porteiro das conveniências, <strong>que</strong> me pe<strong>de</strong> o cartão<strong>de</strong> ingresso. Dei <strong>ao</strong> diabo as conveniências, e com elas a constituição,o corpo legislativo, o ministério, tudo.No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia <strong>de</strong><strong>que</strong>, por <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> 13, tínhamos sido nomeados presi<strong>de</strong>nte esecretário da província <strong>de</strong> *** o Lobo Neves e eu. Escrevi imediatamentea Virgília, e segui duas horas <strong>de</strong>pois para a Gamboa.Coitada <strong>de</strong> Dona Plácida! Estava cada vez mais aflita; perguntou-mese es<strong>que</strong>ceríamos a nossa velha, se a ausência era gran<strong>de</strong>e se a província ficava longe. Consolei-a; mas eu próprioprecisava <strong>de</strong> consolações; a objeção do Cotrim afligia-me profundamente.Virgília chegou daí a pouco, lépida como umaandorinha; mas, <strong>ao</strong> ver-me triste, ficou muito séria.- Que aconteceu?- Vacilo, disse eu; não sei se <strong>de</strong>vo aceitar...Virgília <strong>de</strong>ixou-se cair, no canapé, a rir. - Por quê? disseela.- Não é conveniente, dá muito na vista...- Mas nós já não vamos.- Como assim?Contou-me <strong>que</strong> o marido ia recusar a nomeação, e pormotivo <strong>que</strong> só lhe disse, a ela, pedindo-lhe o maior segredo;


não podia confessá-lo a ninguém mais. - É pueril, observouele, é ridículo; mas em suma, é um motivo po<strong>de</strong>roso para mim.E referiu-lhe <strong>que</strong> o <strong>de</strong>creto trazia a data <strong>de</strong> 13, e <strong>que</strong> esse númerosignificava para ele uma recordação fúnebre. O pai morreunum dia 13, treze dias <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um jantar em <strong>que</strong> haviatreze pessoas. A casa em <strong>que</strong> morrera a mãe tinha o n 13. Etcaetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar semelhantecoisa <strong>ao</strong> ministro; dir-lhe-ia <strong>que</strong> tinha razões particularespara não aceitar. Eu fi<strong>que</strong>i como há <strong>de</strong> estar o leitor, - um poucoassombrado com esse sacrifício a um número; mas sendo eleambicioso, o sacrifício <strong>de</strong>via ser sincero... E ficávamos. Paraalguma coisa há <strong>de</strong> servir a superstição dos homens.CAPÍTULO 84O ConflitoNúmero fatídico, lembras-te <strong>que</strong> te abençoei muitas vezes?Assim também as virgens ruivas <strong>de</strong> Tebas <strong>de</strong>viam abençoara égua, <strong>de</strong> ruiva crina, <strong>que</strong> as substituiu no sacrifício <strong>de</strong>Pelópidas, - uma donosa égua, <strong>que</strong> lá morreu, coberta <strong>de</strong> flores,sem <strong>que</strong> ninguém lhe <strong>de</strong>sse nunca uma palavra <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela morte havida,como por<strong>que</strong>, entre as donzelas escapas, não é impossível <strong>que</strong>figurasse uma avó dos Cubas... Número fatídico, tu foste anossa salvação. Não me confessou o marido a causa <strong>de</strong> recusa;disse-me também <strong>que</strong> eram negócios particulares, e o rostosério, convencido, com <strong>que</strong> eu o escutei, fez honra à dissimulaçãohumana. Ele é <strong>que</strong> mal podia encobrir a tristeza profunda<strong>que</strong> o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se emcasa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e riamuito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no duas coisas,- a ambição, <strong>que</strong> um escrúpulo <strong>de</strong>sazara, e logo <strong>de</strong>pois adúvida, e talvez o arrependimento, - mas um arrependimento,<strong>que</strong> viria outra vez, se se repetisse a hipótese, por<strong>que</strong> ofundo supersticioso existia. Duvidava da superstição, semchegar a rejeitá-la. Essa persistência <strong>de</strong> um sentimento, <strong>que</strong>repugna <strong>ao</strong> mesmo indivíduo, era um fenômeno digno <strong>de</strong> algumaatenção. Mas eu preferia a pura ingenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> DonaPlácida, quando confessava não po<strong>de</strong>r ver um sapato voltadopara o ar.- Que tem isso? perguntava-lhe eu.- Faz mal, era a sua resposta.Isto somente, esta única resposta, <strong>que</strong> valia para ela o livrodos sete selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, semoutra explicação, e ela contentava-se com a certeza do mal.Já não acontecia a mesma coisa quando se falava <strong>de</strong> apontaruma estrela com o <strong>de</strong>do; aí sabia perfeitamente <strong>que</strong> era caso<strong>de</strong> criar uma verruga.Ou verruga ou outra coisa, <strong>que</strong> valia isso, para <strong>que</strong>m nãoper<strong>de</strong> uma presidência <strong>de</strong> província? Tolera-se uma supersti-


ção gratuita ou barata; é insuportável a <strong>que</strong> leva uma parteda vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo dadúvida e do terror <strong>de</strong> haver sido ridículo. E mais este outroacréscimo, <strong>que</strong> o ministro não acreditou nos motivos particulares;atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos políticos,ilusão complicada <strong>de</strong> algumas aparências; tratou-o mal, comunicoua <strong>de</strong>sconfiança <strong>ao</strong>s colegas; sobrevieram inci<strong>de</strong>ntes;enfim, com o tempo, o presi<strong>de</strong>nte resignatário foi para a oposição.CAPÍTULO 85O Cimo da MontanhaQuem escapa a um perigo ama a vida com outra intensida<strong>de</strong>.E entrei a amar Virgília com muito mais ardor, <strong>de</strong>pois<strong>que</strong> estive a pi<strong>que</strong> <strong>de</strong> a per<strong>de</strong>r, e a mesma coisa lhe aconteceua ela. Assim, a presidência não fez mais do <strong>que</strong> avivara afeição primitiva; foi a droga <strong>de</strong> Malabar, com <strong>que</strong> tomamosmais saboroso o nosso amor, e mais prezado também.Nos primeiros dias, <strong>de</strong>pois da<strong>que</strong>le inci<strong>de</strong>nte, folgávamos <strong>de</strong>imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tristeza<strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro, à proporção <strong>que</strong> o mar, como umatoalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantesàs crianças, <strong>que</strong> se achegam <strong>ao</strong> regaço das mães, para fugir auma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertandonoscom abraços.- Minha boa Virgília!- Meu amor!- Tu és minha, não?- Tua, tua...E assim reatamos o fio da aventura, como a sultanaScheheraza<strong>de</strong> o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o pontomáximo do nosso amor, o cimo da montanha, don<strong>de</strong> por algumtempo divisamos os vales <strong>de</strong> leste e <strong>de</strong> oeste, e por cima<strong>de</strong> nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, começamosa <strong>de</strong>scer a encosta, com as mãos presas ou soltas, masa <strong>de</strong>scer, a <strong>de</strong>scer...CAPÍTULO 86O MistérioSerra abaixo, como eu a visse um pouco diferente, nãosei se abatida ou outra coisa, perguntei-lhe o <strong>que</strong> tinha; calou-se,fez um gesto <strong>de</strong> enfado, <strong>de</strong> mal-estar, <strong>de</strong> fadiga;ateimei, ela disse-me <strong>que</strong>... Um fluido sutil percorreu todo o meu corpo;sensação forte, rápida, singular, <strong>que</strong> eu não chegarei jamaisa fixar no papel. Travei-lhe das mãos, puxei-a levementea mim, e beijei-a na testa, com uma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong> zéfiro e


uma gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Abraão. Ela estremeceu, colheu-me a cabeçaentre as palmas, fitou-me os olhos, <strong>de</strong>pois afagou-me comum gesto maternal... Eis aí um mistério; <strong>de</strong>ixemos <strong>ao</strong> leitor otempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar este mistério.CAPÍTULO 87GeologiaSuce<strong>de</strong>u por esse tempo um <strong>de</strong>sastre: a morte do Viegas.O Viegas passou aí <strong>de</strong> relance, num capítulo, com os seus setentaanos, abafados <strong>de</strong> asma, <strong>de</strong>sconjuntados <strong>de</strong> reumatismo,e uma lesão <strong>de</strong> coração por <strong>que</strong>bra. Foi um dos finosespreitadores da nossa aventura. Virgília nutria gran<strong>de</strong>s esperançasem <strong>que</strong> esse velho parente, avaro como um sepulcro,lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se omarido tinha iguais pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os.Tudo se <strong>de</strong>ve dizer: havia no Lobo Neves certa dignida<strong>de</strong>fundamental, uma camada <strong>de</strong> rocha, <strong>que</strong> resistia <strong>ao</strong> comérciodos homens. As outras, as camadas <strong>de</strong> cima, terra soltae areia, levou-lhes a vida, <strong>que</strong> é um enxurro perpétuo. Se oleitor ainda se lembra do capítulo 23, observará <strong>que</strong> é agora asegunda vez <strong>que</strong> eu comparo a vida a um enxurro; mas tambémhá <strong>de</strong> reparar <strong>que</strong> <strong>de</strong>sta vez acrescento-lhe um adjetivo- perpétuo. E Deus sabe a força <strong>de</strong> um adjetivo, principalmenteem países novos e cálidos.O <strong>que</strong> é novo neste livro é a geologia moral do Lobo Neves,e provavelmente a do cavalheiro, <strong>que</strong> me está lendo. Sim,essas camadas <strong>de</strong> caráter, <strong>que</strong> a vida altera, conserva ou dissolve,conforme a resistência <strong>de</strong>las, essas camadas mereciamum capitulo, <strong>que</strong> eu não escrevo, por não alongar a narração.Digo apenas <strong>que</strong> o homem mais probo <strong>que</strong> conheci em minhavida foi um certo Jacó Me<strong>de</strong>iros ou Jacó Valadares, nãome recorda bem o nome. Talvez fosse Jacó Rodrigues; emsuma, Jacó. Era a probida<strong>de</strong> mesma; podia ser rico, violentandoum pe<strong>que</strong>nino escrúpulo, e não quis; <strong>de</strong>ixou ir pelasmãos fora nada menos <strong>de</strong> uns quatrocentos contos; tinha aprobida<strong>de</strong> tão exemplar, <strong>que</strong> chegava a ser miúda e cansativa.Um dia, como nos achássemos, a sós, em casa <strong>de</strong>le, emboa palestra, vieram dizer <strong>que</strong> o procurava o Doutor B., umsujeito enfadonho. Jacó mandou dizer <strong>que</strong> não estava em casa.- Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou <strong>de</strong><strong>de</strong>ntro.E, com efeito, era o Doutor B., <strong>que</strong> apareceu logo à portada sala. O Jacó foi recebê-lo, afirmando <strong>que</strong> cuidava ser outrapessoa, e não ele, e acrescentando <strong>que</strong> tinha muito prazer coma visita, o <strong>que</strong> nos ren<strong>de</strong>u hora e meia <strong>de</strong> enfado mortal, eisto mesmo por<strong>que</strong> o Jacó tirou o relógio; o Doutor B. perguntou-lheentão se ia sair.- Com minha mulher, disse o Jacó.Retirou-se o Doutor B. e respiramos. Uma vez respirados,disse eu <strong>ao</strong> Jacó <strong>que</strong> ele acabava <strong>de</strong> mentir quatro vezes, em


menos <strong>de</strong> duas horas: a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-secom a presença do importuno; a terceira, dizendo<strong>que</strong> ia sair; a quarta, acrescentando <strong>que</strong> com a mulher. O Jacórefletiu um instante, <strong>de</strong>pois confessou a justeza da minh<strong>ao</strong>bservação, mas <strong>de</strong>sculpou-se dizendo <strong>que</strong> a veracida<strong>de</strong> absolutaera incompatível com um estado social adiantado, e <strong>que</strong>a paz das cida<strong>de</strong>s só se podia obter à custa <strong>de</strong> embaça<strong>de</strong>lasrecíprocas... Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares.CAPÍTULO 88O EnfermoNão é preciso dizer <strong>que</strong> refutei tão perniciosa doutrina,com os mais elementares argumentos; mas ele estava tão vexadodo meu reparo, <strong>que</strong> resistiu até o fim, mostrando cerrocalor fictício, talvez para atordoar a consciência.Ocaso <strong>de</strong> Virgília tinha alguma gravida<strong>de</strong> mais. Ela era menosescrupulosa <strong>que</strong> o marido; manifestava claramente as esperanças<strong>que</strong> trazia no legado, cumulava o parente <strong>de</strong> todas as cortesias,atenções e afagos <strong>que</strong> po<strong>de</strong>riam ren<strong>de</strong>r, pelo menos, umcrocodilo. Propriamente, adulava-o; mas eu observei <strong>que</strong> a adulaçãodas mulheres não é a mesma coisa <strong>que</strong> a dos homens. Est<strong>ao</strong>rça pela servilida<strong>de</strong>; a outra confun<strong>de</strong>-se com a afeição. Asformas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fra<strong>que</strong>za físicadão à ação lisonjeira da mulher uma cor local, um aspectolegítimo. Não importa a ida<strong>de</strong> do adulado; a mulher há <strong>de</strong> tersempre para ele uns ares <strong>de</strong> mãe ou <strong>de</strong> irmã, - ou ainda <strong>de</strong> enfermeira,outro ofício feminil, em <strong>que</strong> o mais hábil dos homenscarecerá sempre <strong>de</strong> um quid, um fluido, alguma coisa.Era o <strong>que</strong> eu pensava comigo, quando Virgília se <strong>de</strong>sfaziatoda em afagos <strong>ao</strong> velho parente. Ela ia recebê-lo porta, falandoe rindo, tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o braçoe levava-o a uma ca<strong>de</strong>ira, ou até à ca<strong>de</strong>ira, por<strong>que</strong> havia lána casa a "ca<strong>de</strong>ira do Viegas", obra especial, conchegada, feitapara gente enferma ou anciã. Ia fechar a janela próxima, sehavia alguma brisa, ou abri-la, se estava calor, mas com cuidado, combinando<strong>de</strong> modo <strong>que</strong> lhe não <strong>de</strong>sse um golpe <strong>de</strong> ar.- Então? hoje está mais fortezinho...- Qual! Passei mal a noite; o diabo da asma não me<strong>de</strong>ixa.E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do cansaçoda entrada e da subida, não do caminho, por<strong>que</strong> ia sempre<strong>de</strong> sege. Ao lado, um pouco mais para a frente, sentavaseVirgília, numa banquinha, com as mãos nos joelhos doenfermo. Entretanto, o nhonhô chegava à sala, sem os pulosdo costume, mas discreto, meigo, sério. Viegas gostavamuito <strong>de</strong>le.- Vem cá, nhonhô, dizia-lhe; e a custo introduzia a mãona ampla algibeira, tirava uma caixinha <strong>de</strong> pastilhas, metia


uma na boca e dava outra <strong>ao</strong> pe<strong>que</strong>no. Pastilhas antiasmáticas.O pe<strong>que</strong>no dizia <strong>que</strong> eram muito boas.Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse<strong>de</strong> jogar damas, Virgília cumpria-lhe o <strong>de</strong>sejo, aturando-o porlargo tempo, a mover as pedras com a mão frouxa e tarda.Outras vezes, <strong>de</strong>sciam a passear na chácara, dando-lhe ela obraço, <strong>que</strong> ele nem sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz<strong>de</strong> andar uma légua. Iam, sentavam-se, tornavam a ir, a falar<strong>de</strong> coisas várias, ora <strong>de</strong> um negócio <strong>de</strong> família, ora <strong>de</strong> umabisbilhotice <strong>de</strong> alcova, ora enfim <strong>de</strong> uma casa <strong>que</strong> ele meditavaconstruir, para residência própria, casa <strong>de</strong> feitio mo<strong>de</strong>rno,por<strong>que</strong> a <strong>de</strong>le era das antigas, contemporânea <strong>de</strong> el-rei DomJoão VI, à maneira <strong>de</strong> algumas <strong>que</strong> ainda hoje (creio eu) sepo<strong>de</strong>m ver no bairro <strong>de</strong> São Cristóvão, com as suas grossascolunas na frente. Parecia-lhe <strong>que</strong> o casarão em <strong>que</strong> moravapodia ser substituído, e já tinha encomendado o risco a umpedreiro <strong>de</strong> fama. Ah! então sim, então é <strong>que</strong> Virgília chegariaa ver o <strong>que</strong> era um velho <strong>de</strong> gosto.Falava, como se po<strong>de</strong> supor, lentamente e a custo, intervalado<strong>de</strong> uma arfagem incômoda para ele e para os outros.De quando em quando, vinha um acesso <strong>de</strong> tosse; curvo, gemendo,levava o lenço à boca, e investigava-o; passado o acesso,tornava <strong>ao</strong> plano da casa, <strong>que</strong> <strong>de</strong>via ter tais e tais quartos,um terraço, cocheira, um primor.CAPÍTULO 89"In Extremis"- A.manhã vou passar o dia em casa do Viegas, dissemeela uma vez. Coitado! não tem ninguém...Viegas cafra na cama, <strong>de</strong>finitivamente; a filha, casada, adoecerajustamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgíliaia lá <strong>de</strong> quando em quando. Eu aproveitei a circunstância parapassar todo a<strong>que</strong>le dia <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>la. Eram duas horas da tar<strong>de</strong>quando cheguei. O Viegas tossia com tal força <strong>que</strong> me fazia ar<strong>de</strong>ro peito; no intervalo dos acessos <strong>de</strong>batia o preço <strong>de</strong> uma casa,com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, o Viegasexigia quarenta. O comprador instava como <strong>que</strong>m receia per<strong>de</strong>ro trem da estrada <strong>de</strong> ferro, mas Viegas não cedia; recusouprimeiramente os trinta contos, <strong>de</strong>pois mais dois, <strong>de</strong>pois maistrês; enfim teve um forte acesso, <strong>que</strong> lhe tolheu a fala durantequinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lheos travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.- Nunca! gemeu o enfermo.Mandou buscar um maço <strong>de</strong> papéis à escrivaninha; nãotendo forças para tirar a fita <strong>de</strong> borracha <strong>que</strong> prendia os papéis,pediu-me <strong>que</strong> os <strong>de</strong>slaçasse: fi-lo. Eram as contas das<strong>de</strong>spesas com a construção da casa: contas <strong>de</strong> pedreiro, <strong>de</strong>carpinteiro, <strong>de</strong> pintor; contas do papel da sala <strong>de</strong> visitas, da


sala <strong>de</strong> jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas dasferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão trêmula,e pedia-me <strong>que</strong> as lesse, e eu lia-as.- Veja; mil e duzentos, papel <strong>de</strong> mil e duzentos a peça.Dobradiças francesas... Veja, é <strong>de</strong> graça, concluiu ele <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> lida a última conta.- Pois bem... mas...- Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros...faça a conta dos juros...Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas,como se fossem migalhas <strong>de</strong> um pulmão <strong>de</strong>sfeito. Nas órbitasfundas rolavam os olhos lampejantes, <strong>que</strong> me faziam lembrara lamparina da madrugada. Sob o lençol <strong>de</strong>senhava-se a estruturaóssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhose nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas acaveira <strong>de</strong> um rosto sem expressão; uma carapuça <strong>de</strong> algodãobranco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.- Então? disse o sujeito magro.Fiz-lhe sinal para <strong>que</strong> não insistisse, e ele calou-se por algunsinstantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, aarfar muito: Virgília empali<strong>de</strong>ceu, levantou-se, foi até à janela.Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar <strong>de</strong> outrascoisas. O sujeito magro contou uma anedota, e tomou atratar da casa, alteando a proposta.- Trinta e oito contos, disse ele.- Am?... gemeu o enfermo.O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão,e sentiu-a fria. Eu acheguei-me <strong>ao</strong> doente, perguntei-lhe sesentia alguma coisa, se <strong>que</strong>ria tomar um cálice <strong>de</strong> vinho.- Não... não... quar... quaren... quar... quar...Teve um acesso <strong>de</strong> tosse, e foi o último; daí a pouco expiravaele, com gran<strong>de</strong> consternação do sujeito magro, <strong>que</strong> meconfessou <strong>de</strong>pois a disposição em <strong>que</strong> estava <strong>de</strong> oferecer osquarenta contos; mas era tar<strong>de</strong>.CAPÍTULO 90O Velho Colóquio <strong>de</strong> Adão e CaimE nada. Nenhuma lembrança testamentária, uma pastilha<strong>que</strong> fosse, com <strong>que</strong> do todo em todo não parecesse ingratoou es<strong>que</strong>cido. Nada. Virgília tragou raivosa esse malogro, edisse-mo com certa cautela, não pela coisa em si, senão por<strong>que</strong>entendia com o filho, <strong>de</strong> <strong>que</strong>m sabia <strong>que</strong> eu não gostavamuito, nem pouco. Insinuei-lhe <strong>que</strong> não <strong>de</strong>via pensar maisem semelhante negócio. O melhor <strong>de</strong> tudo era es<strong>que</strong>cer o<strong>de</strong>funto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar <strong>de</strong> coisasalegres; o nosso filho por exemplo...Lá me escapou a <strong>de</strong>cifração do mistério, esse doce mistério<strong>de</strong> algumas semanas antes, quando Virgília me pareceu um


pouco diferente do <strong>que</strong> era. Um filho! Um ser tirado do meuser! Esta era a minha preocupação exclusiva da<strong>que</strong>le tempo.Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada meinteressava por então, nem conflitos políticos, nem revoluções,nem terromotos, nem nada. Eu só pensava na<strong>que</strong>leembrião anônimo, <strong>de</strong> obscura paternida<strong>de</strong>, e uma voz secretame dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras,com certa voluptuosida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finível, e não sei <strong>que</strong> assomos<strong>de</strong> orgulho. Sentia-me homem.O melhor é <strong>que</strong> conversávamos os dois, o embrião e eu,falávamos <strong>de</strong> coisas presentes e futuras. O maroto amava-me,era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara comas mãozinhas gordas, ou então traçava a beca <strong>de</strong> bacharel,por<strong>que</strong> ele havia <strong>de</strong> ser bacharel, e fazia um discurso na Câmarados Deputados. E o pai a ouvi-lo <strong>de</strong> uma tribuna, comos olhos rasos <strong>de</strong> lágrimas. De bacharel passava outra vez àescola, pe<strong>que</strong>nino, lousa e livros <strong>de</strong>baixo do braço, ou entãocaia no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscavafixar no espírito uma ida<strong>de</strong>, uma atitu<strong>de</strong>: esse embrião tinhaa meus olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava,ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites <strong>de</strong>um quarto <strong>de</strong> hora, -baby e <strong>de</strong>putado, colegial e pintalegrete.As vezes, <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> Virgília, es<strong>que</strong>cia-me <strong>de</strong>la e <strong>de</strong> tudo;Virgília sacudia-me, reprochava-me o silêncio; dizia <strong>que</strong> eu já lhe não<strong>que</strong>ria nada. A verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> estava em diálogo com o embrião;era o velho colóquio <strong>de</strong> Adão e Caim, uma conversasem palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério.CAPÍTULO 91Uma Carta Extr<strong>ao</strong>rdináriaPor esse tempo recebi uma carta extr<strong>ao</strong>rdinária, acompanhada<strong>de</strong> um objeto não menos extr<strong>ao</strong>rdinário. Eis o <strong>que</strong> acarta dizia:"Meu caro Brás Cubas,"Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe <strong>de</strong> empréstimoum relógio. Tenho a satisfação <strong>de</strong> restituir-lho com esta carta.A diferença é <strong>que</strong> não é o mesmo, porém outro, não digo superior,mas igual <strong>ao</strong> primeiro. Que voulez-vous, monseigneur -como dizia Figaro, - c'est la misère. Muitas coisas se <strong>de</strong>ram<strong>de</strong>pois do nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me nãofechar a porta. Saiba <strong>que</strong> já não trago a<strong>que</strong>las botas caducas,nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiamna noite dos tempos. Cedi o meu <strong>de</strong>grau da escada <strong>de</strong> São Francisco;finalmente, almoço."Dito isto, peço licença para ir um dia <strong>de</strong>stes expor-lheum trabalho, fruto <strong>de</strong> longo estudo, um novo sistema <strong>de</strong> filosofia,<strong>que</strong> não só explica e <strong>de</strong>screve a origem e a consumaçãodas coisas, como faz dar um gran<strong>de</strong> passo adiante <strong>de</strong> Zenon e


Sêneca, cujo estoicismo era um verda<strong>de</strong>iro brinco <strong>ao</strong> pé daminha receita moral. E singularmente espantoso este meu sistema;retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura afelicida<strong>de</strong>, enche <strong>de</strong> imensa glória o nosso país. Chamo-lheHumanitismo, <strong>de</strong> Humanitas princípio das coisas. Minha primeiraidéia revela uma gran<strong>de</strong> enfatuação; era chamar-lheborbismo, <strong>de</strong> Borba; <strong>de</strong>nominação vaidosa, além <strong>de</strong> ru<strong>de</strong> emolesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro BrásCubas, verá <strong>que</strong> é <strong>de</strong>veras um monumento; e se alguma coisahá <strong>que</strong> possa fazer-me es<strong>que</strong>cer as amarguras da vida, é o gosto<strong>de</strong> haver enfim apanhado a verda<strong>de</strong> e a felicida<strong>de</strong>. Ei-lasna minha mão, essas duas esquivas; após tantos séculos <strong>de</strong>lutas, pesquisas, <strong>de</strong>scobertas, sistemas e <strong>que</strong>das, ei-las nasmãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Sauda<strong>de</strong>s doVelho amigoJoaquim Borba dos Santos."Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma bocetacontendo um bonito relógio com as minhas iniciais gravadas, eesta frase: Lembrança do velho Quincas. Voltei à carta, reli-acom pausa, com atenção. A restituição do relógio excluia toda aidéia <strong>de</strong> burla; a luci<strong>de</strong>z, a serenida<strong>de</strong>, a convicção, - um poucojactanciosa, é certo, - pareciam excluir a suspeita <strong>de</strong> insensatez.Naturalmente o Quincas Borba herdara <strong>de</strong> algum dos seusparentes <strong>de</strong> Minas, e a abastança <strong>de</strong>volvera-lhe a primitiva dignida<strong>de</strong>.Não digo tanto; há coisas <strong>que</strong> se não po<strong>de</strong>m reaverintegralmente; mas enfim a regeneração não era impossível.Guar<strong>de</strong>i a carta e o relógio, e esperei a filosofia.CAPÍTULO 92Um Homem Extr<strong>ao</strong>rdinárioJá agora acabo com as coisas extr<strong>ao</strong>rdinárias. Vinha <strong>de</strong>guardar a carta e o relógio, quando me procurou um homemmagro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-mepara jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim,chegara poucos dias antes do Norte, chamava-se Damasceno,e fizera a revolução <strong>de</strong> 1831. Foi ele mesmo <strong>que</strong> me disse isto,no espaço <strong>de</strong> cinco minutos. Saíra do Rio <strong>de</strong> Janeiro, por <strong>de</strong>sacordocom o Regente, <strong>que</strong> era um asno, pouco menos asnodo <strong>que</strong> os ministros <strong>que</strong> serviram com ele. De resto, a revoluçãoestava outra vez às portas. Neste ponto, conquanto trouxesseas idéias políticas um pouco baralhadas, consegui organizare formular o governo <strong>de</strong> suas preferências: era um <strong>de</strong>spotismotemperado, - não por cantigas, como dizem alhures,- mas por penachos da guarda nacional. Só não pu<strong>de</strong> alcançarse ele <strong>que</strong>ria o <strong>de</strong>spotismo <strong>de</strong> um, <strong>de</strong> três, <strong>de</strong> trinta ou <strong>de</strong>trezentos. Opinava por várias coisas, entre outras, o <strong>de</strong>senvolvimentodo tráfico dos africanos e a expulsão dos ingleses.


Gostava muito <strong>de</strong> teatro; logo <strong>que</strong> chegou foi <strong>ao</strong> teatro <strong>de</strong> SãoPedro, on<strong>de</strong> viu um drama soberbo, a Maria Joana, e umacomédia muito interessante, Kettly ou a volta à Suíça. Tambémgostara muito da Deperini, na Safo, ou na Ana Bolena,não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era papafina.Agora <strong>que</strong>ria ouvir o Ernani, <strong>que</strong> a filha <strong>de</strong>le cantavaem casa, <strong>ao</strong> piano: Ernani, Ernani, involami - E dizia istolevantando-se e cantarolando a meia voz. - No Norte essascoisas chegavam como um eco. A filha morna por ouvir todasas óperas. Tinha uma voz muito mimosa a filha. E gosto,muito gosto. Ah! ele estava ansioso por voltar <strong>ao</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.Já havia corrido a cida<strong>de</strong> toda, com umas sauda<strong>de</strong>s...Palavra! em alguns lugares teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar. Mas nãoembarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos os outrospassageiros, exceto um inglês... Que os levasse o diabo osingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barrafora. Que é <strong>que</strong> a Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrassealgumas pessoas <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>, era obra <strong>de</strong> uma noite a expulsãodos tais go<strong>de</strong>mes... Graças a Deus, tinha patriotismo,- e batia no peito, - o <strong>que</strong> não admirava por<strong>que</strong> era <strong>de</strong> família;<strong>de</strong>scendia <strong>de</strong> um antigo capitão-mor muito patriota.Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a ocasião, e ele havia<strong>de</strong> mostrar <strong>de</strong> <strong>que</strong> pau era a canoa... Mas fazia-se tar<strong>de</strong>, iadizer <strong>que</strong> eu não faltaria <strong>ao</strong> jantar, e lá me esperava para maior palestra.- Levei-o até à porta da sala; ele parou dizendo <strong>que</strong>simpatizava muito comigo. Quando casara, estava eu na Europa.Conheceu meu pai, um homem às direitas, com <strong>que</strong>mdançara num célebre baile da Praia Gran<strong>de</strong>... Coisas! Falaria<strong>de</strong>pois, fazia-se tar<strong>de</strong>, tinha <strong>de</strong> ir levar a resposta <strong>ao</strong> Cotrim.Saiu; fechei-lhe a porta... Uf!CAPÍTULO 93O JantarQue suplício <strong>que</strong> foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-mesentar <strong>ao</strong> pé da filha do Damasceno, uma Dona Eulália, oumais familiarmente Nhá-loló, moça bem graciosa, um tantoacanhada a princípio, mas só a princípio. Faltava-lhe elegância,mas compensava-a com os olhos, <strong>que</strong> eram soberbos e sótinham o <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> se não arrancarem <strong>de</strong> mim, exceto quando<strong>de</strong>sciam <strong>ao</strong> prato; mas Nhã-loló comia tão pouco, <strong>que</strong> quasenão olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizi<strong>ao</strong> pai, "muito mimosa". Não obstante, esquivei-me. Sabina veioaté à porta, e perguntou-me <strong>que</strong> tal achara a filha do Damasceno.- Assim, assim.- Muito simpática, não é? acudiu ela; falta-lhe um poucomais <strong>de</strong> corte. Mas <strong>que</strong> coração! é uma pérola. Bem boa


noiva para você.- Não gosto <strong>de</strong> pérolas.- Casmurro! Para quando é <strong>que</strong> você se guarda? paraquando estiver a cair <strong>de</strong> maduro, já sei. Pois, meu rico, <strong>que</strong>rvocê <strong>que</strong>ira <strong>que</strong>r não, há <strong>de</strong> casar com Nhá-loló.E dizia isto a bater-me na face com os <strong>de</strong>dos, meiga comouma pomba, e <strong>ao</strong> mesmo tempo intimativa e resoluta. SantoDeus! seria esse o motivo da reconciliação? Fi<strong>que</strong>i umpouco <strong>de</strong>sconsolado com a idéia, mas uma voz misteriosachamava-me à casa do Lobo Neves; disse a<strong>de</strong>us a Sabina eàs suas ameaças.CAPÍTULO 94A Causa Secreta- Como está a minha <strong>que</strong>rida mamãe?A esta palavra, Virgília amuou-se, como sempre. Estava<strong>ao</strong> canto <strong>de</strong> uma janela, sozinha, a olhar para a lua, erecebeu-me alegremente; mas quando lhe falei no nossofilho amuou-se. Não gostava <strong>de</strong> semelhante alusão, aborreciam-lheas minhas antecipadas carícias paternais. E eu,para <strong>que</strong>m ela era já uma pessoa sagrada, uma âmbula divina,<strong>de</strong>ixava-a estar quieta. Supus a princípio <strong>que</strong> o embrião,esse perfil do incógnito, projetando-se na nossa aventura,lhe restituira a consciência do mal. Enganava-me.Nunca Virgília me parecera mais expansiva, mais sem reservas,menos preocupada dos outros e do marido. Nãoeram remorsos. Imaginei também <strong>que</strong> a concepção seria umpuro invento, um modo <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r-me a ela, recurso semlonga eficácia, <strong>que</strong> talvez começava <strong>de</strong> oprimi-la. Não eraabsurda esta hipótese; a minha doce Virgília mentia às vezescom tanta graça!Na<strong>que</strong>la noite <strong>de</strong>scobri a causa verda<strong>de</strong>ira. Era medo doparto e vexame da gravi<strong>de</strong>z. Pa<strong>de</strong>cera muito quando lhe nasceuo primeiro filho; e essa hora, feita <strong>de</strong> minutos <strong>de</strong> vida eminutos <strong>de</strong> morte, dava-lhe já imaginariamente os calafriosdo patíbulo. Quanto <strong>ao</strong> vexame, complicava-se ainda da forçadaprivação <strong>de</strong> certos hábitos da vida elegante. Com certeza,era isso mesmo; <strong>de</strong>i-lho a enten<strong>de</strong>r, repreen<strong>de</strong>ndo-a,um pouco em nome dos meus direitos <strong>de</strong> pai. Virgília fitoume;em seguida <strong>de</strong>sviou os olhos e sorriu <strong>de</strong> um jeito incrédulo.CAPÍTULO 95Flores <strong>de</strong> AntanhoOn<strong>de</strong> estão elas, as flores <strong>de</strong> antanho? Uma tar<strong>de</strong>, apósalgumas semanas <strong>de</strong> gestação, esboroou-se todo o edifício dasminhas quimeras paternais. Foi-se o embrião, na<strong>que</strong>le ponto


em <strong>que</strong> se não distingue Laplace <strong>de</strong> uma tartaruga. Tive anotícia por boca do Lobo Neves, <strong>que</strong> me <strong>de</strong>ixou na sala, eacompanhou o médico à alcova da frustrada mãe. Eu encostei-meà janela, a olhar para a chácara, on<strong>de</strong> ver<strong>de</strong>javam aslaranjeiras sem flores. On<strong>de</strong> iam elas as flores <strong>de</strong> antanho?CAPÍTULO 96A Carta AnônimaSenti tocar-me no ombro; era o Lobo Neves. Encaramonosalguns instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei <strong>de</strong>Virgília, <strong>de</strong>pois ficamos a conversar uma meia hora. No fim<strong>de</strong>sse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empali<strong>de</strong>ceumuito, e fechou-a com a mão trêmula. Creio <strong>que</strong> lhe vifazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mim; mas nãome lembra bem. O <strong>que</strong> me lembra claramente é <strong>que</strong> duranteos dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim Virgíliacontou-me tudo, daí a dias na Gamboa.O marido mostrou-lhe a carta, logo <strong>que</strong> ela se restabeleceu.Era anônima e <strong>de</strong>nunciava-nos. Não dizia tudo; não falava,por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitavasea precavê-lo contra a minha intimida<strong>de</strong>, e acrescentava <strong>que</strong>a suspeita era pública. Virgília leu a carta e disse com indignação<strong>que</strong> era uma calúnia infame.- Calúnia? perguntou Lobo Neves.- Infame.O marido respirou; mas, tomando à carta, parece <strong>que</strong>cada palavra <strong>de</strong>la lhe fazia com o <strong>de</strong>do um sinal negativo,cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem,aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas.Talvez a imaginação lhe mostrou, <strong>ao</strong> longe, o famoso olhoda opinião a fitá-lo sarcasticamente, com um ar <strong>de</strong> pulha;talvez uma boca invisível lhe repetiu <strong>ao</strong> ouvido as chulas <strong>que</strong>ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher <strong>que</strong> lheconfessasse tudo, por<strong>que</strong> tudo lhe perdoaria. Virgília compreen<strong>de</strong>u<strong>que</strong> estava salva; mostrou-se irritada com a insistência,jurou <strong>que</strong> da minha parte só ouvira palavras <strong>de</strong> gracejoe cortesia. A carta havia <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> algum namorado semventura. E citou alguns, - um <strong>que</strong> a galante ara francamente,durante algumas semanas, outro <strong>que</strong> lhe escrevera umacarta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, comcircunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiudizendo <strong>que</strong>, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia<strong>de</strong> maneira <strong>que</strong> eu não voltaria lá.Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo <strong>de</strong>dissimulação <strong>que</strong> era preciso empregar <strong>de</strong> ora em diante, atéafastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranqüilida<strong>de</strong>moral <strong>de</strong> Virgília, pela falta <strong>de</strong> comoção, <strong>de</strong> susto,


<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s, e até <strong>de</strong> remorsos. Virgília notou a minha preocupação,levantou-me a cabeça, por<strong>que</strong> eu olhava então par<strong>ao</strong> soalho, e disse com certa amargura:- Você não merece os sacrifícios <strong>que</strong> lhe faço.Não lhe disse nada; era ocioso pon<strong>de</strong>rar-lhe <strong>que</strong> um pouco<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e terror daria à nossa situação o sabor cáusticodos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível<strong>que</strong> ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero e terror. Não lhe disse nada. Ela batia nervosamentecom a ponta do pé no chão; aproximei-me e beijei-a na testa.Virgília recuou, como se fosse um beijo <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto.CAPÍTULO 97Entre a Boca e a TestaSinto <strong>que</strong> o leitor estremeceu, - ou <strong>de</strong>via estremecer.Naturalmente a última palavra sugeriu-lhe três ou quatro reflexões.Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duaspessoas <strong>que</strong> se amam há muito tempo, uma inclinada para <strong>ao</strong>utra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como sesentisse o contato <strong>de</strong> uma boca <strong>de</strong> cadáver. Há aí, no breveintervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e <strong>de</strong>pois dobeijo, há aí largo espaço para muita coisa, - a contração <strong>de</strong>um ressentimento -, a ruga da <strong>de</strong>sconfiança - ou enfim onariz pálido e sonolento da sacieda<strong>de</strong>...CAPÍTULO 98SuprimidoSeparamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com asituação. A carta anônima restituia à nossa aventura o sal domistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom <strong>que</strong>Virgília não per<strong>de</strong>sse na<strong>que</strong>la crise a posse <strong>de</strong> si mesma. Denoite fui <strong>ao</strong> teatro <strong>de</strong> São Pedro; representava-se uma gran<strong>de</strong>peça, em <strong>que</strong> a Estela arrancava lágrimas. Entro; corro os olhospelos camarotes; vejo em um <strong>de</strong>les o Damasceno e a família.Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, coisa difícil<strong>de</strong> explicar, por<strong>que</strong> o pai ganhava apenas o necessário paraendividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.No intervalo fui visitá-los. O Damasceno recebeu-me commuitas palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nhãloló,não tirou mais os olhos <strong>de</strong> mim; e realmente parecia-meagora mais bonita <strong>que</strong> no dia do jantar. Achei-lhe certa suavida<strong>de</strong>etérea casada <strong>ao</strong> polido das formas terrenas: - expressãovaga, e condigna <strong>de</strong> um capítulo em <strong>que</strong> tudo há <strong>de</strong> servago. Realmente, não sei como lhes diga <strong>que</strong> não me senti


mal, <strong>ao</strong> pé da moça, trajando garridamente um vestido fino,um vestido <strong>que</strong> me dava cócegas <strong>de</strong> Tartufo. Ao contemplálo,cobrindo casta e redondamente o joelho, foi <strong>que</strong> eu fiz uma<strong>de</strong>scoberta sutil, a saber, <strong>que</strong> a natureza previu a vestidurahumana, condição necessária <strong>ao</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da nossaespécie. A nu<strong>de</strong>z habitual, dada a multiplicação das obras edos cuidados do indivíduo, ten<strong>de</strong>ria a embotar os sentidos e aretardar os sexos, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> o vestuário, negaceando anatureza, aguça e atrai as vonta<strong>de</strong>s, ativa-as, reprodu-las, econseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso <strong>que</strong>nos <strong>de</strong>u Otelo e os pa<strong>que</strong>tes transatlânticos!Estou com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> suprimir este capítulo. O <strong>de</strong>clive éperigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas <strong>memórias</strong> e não astuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-metomado <strong>de</strong> uma sensação dupla e in<strong>de</strong>finível. Ela exprimiainteiramente a dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pascal, l'ange er la bête, com adiferença <strong>que</strong> o jansenista não admitia a simultaneida<strong>de</strong> dasduas naturezas, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> elas aí estavam bem juntinhas,- 1'ange, <strong>que</strong> dizia algumas coisas do céu, - e la bête, <strong>que</strong>...Não; <strong>de</strong>cididamente suprimo este capítulo.CAPÍTULO 99Na PlatéiaNa platéia achei o Lobo Neves, <strong>de</strong> conversa com algunsamigos; falamos por alto, a frio, constrangidos um e outro. Masno intervalo seguinte, prestes a levantar o pano, encontramonosnum dos corredores, em <strong>que</strong> não havia ninguém. Ele veioa mim, com muita afabilida<strong>de</strong> e riso, puxou-me a um dos óculosdo teatro, e falamos muito, principalmente ele, <strong>que</strong> pareci<strong>ao</strong> mais tranqüilo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe pelamulher; respon<strong>de</strong>u <strong>que</strong> estava boa, mas torceu logo a conversaçãopara assuntos gerais, expansivo, quase risonho. Adivinhe<strong>que</strong>m quiser a causa da diferença; eu fujo <strong>ao</strong> Damasceno<strong>que</strong> me espreita ali da porta do camarote.Não ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores,nem as palmas do público. Reclinado na ca<strong>de</strong>ira, apanhava<strong>de</strong> memória os retalhos da conversação do Lobo Neves, refaziaas maneiras <strong>de</strong>le, e concluía <strong>que</strong> era muito melhor a novasituação. Bastava-nos a Gamboa. A freqüência da outra casaaguçaria as invejas. E rigorosamente podíamos dispensar-nos<strong>de</strong> falar todos os dias; era até melhor, metia a sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> permeionos amores. Ao <strong>de</strong>mais, eu galgara os quarenta anos, enão era nada, nem simples eleitor <strong>de</strong> paróquia. Urgia fazeralguma coisa, ainda por amor <strong>de</strong> Virgília, <strong>que</strong> havia <strong>de</strong> ufanar-sequando visse luzir o meu nome... Creio <strong>que</strong> nessa ocasiãohouve gran<strong>de</strong>s aplausos, mas não juro; eu pensava emoutra coisa.


Multidão, cujo amor cobicei até à morte, era assim <strong>que</strong>eu me vingava às vezes <strong>de</strong> ti; <strong>de</strong>ixava burburinhar em voltado meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu<strong>de</strong> Esquilo fazia <strong>ao</strong>s seus verdugos. Ah! tu cuidavas enca<strong>de</strong>ar-me<strong>ao</strong> rochedo da tua frivolida<strong>de</strong>, da tua indiferença, ouda tua agitação? Frágeis ca<strong>de</strong>ias, amiga minha; eu rompia-as<strong>de</strong> um gesto <strong>de</strong> Gulliver. Vulgar coisa é ir consi<strong>de</strong>rar no ermo.O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no meio <strong>de</strong>um mar <strong>de</strong> gestos e palavras, <strong>de</strong> nervos e paixões, <strong>de</strong>cretar-sealheado, inacessível, ausente. O mais <strong>que</strong> po<strong>de</strong>m dizer, quandoele tomar a si, - isto é, quando toma <strong>ao</strong>s outros, - é <strong>que</strong>baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse <strong>de</strong>svão luminosoe recatado do cérebro, <strong>que</strong> outra coisa é senão a afirmação<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa da nossa liberda<strong>de</strong> espiritual? Vive Deus!eis um bom fecho <strong>de</strong> capitulo.CAPÍTULO 100O Caso ProvávelSe esse mundo não fosse uma região <strong>de</strong> espíritos <strong>de</strong>satentos,era escusado lembrar <strong>ao</strong> leitor <strong>que</strong> eu só afirmo certasleis quando as possuo <strong>de</strong>veras; em relação a outras restrinjo-meà admissão da probabilida<strong>de</strong>. Um exemplo da segundaclasse constitui o presente capítulo, cuja leitura recomendoa todas as pessoas <strong>que</strong> amam o estudo dos fenômenossociais. Segundo parece, e não é improvável, existeentre os fatos da vida pública e os da vida particular umacerta ação recíproca, regular, e talvez periódica, - ou, parausar <strong>de</strong> uma imagem, há alguma coisa semelhante às marésda praia do Flamengo e <strong>de</strong> outras igualmente marulhosas.Com efeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitospalmos a <strong>de</strong>ntro; mas esta mesma água toma <strong>ao</strong> mar, comvariável força, e vai engrossar a onda <strong>que</strong> há <strong>de</strong> vir, e <strong>que</strong>terá <strong>de</strong> tomar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos aaplicação.Deixei dito noutra página <strong>que</strong> o Lobo Neves, nomeadopresi<strong>de</strong>nte da província, recusou a nomeação por motivo dadata do <strong>de</strong>creto, <strong>que</strong> era 13; ato grave, cuja conseqüência foiseparar do ministério o marido da Virgília. Assim, o fato particularda ojeriza <strong>de</strong> um número produziu o fenômeno da dissidênciapolítica. Resta ver como, tempos <strong>de</strong>pois, um ato político<strong>de</strong>terminou na vida particular uma cessação <strong>de</strong> movimento.Não convindo <strong>ao</strong> método <strong>de</strong>ste livro <strong>de</strong>screver imediatamenteesse outro fenômeno, limito-me a dizer por ora<strong>que</strong> o Lobo Neves, quatro meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nosso encontrono teatro, reconciliou-se com o ministério; fato <strong>que</strong> o leitornão <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, se quiser penetrar a sutileza do meupensamento.CAPÍTULO 101


A Revolução DálmataFoi Virgília <strong>que</strong>m me <strong>de</strong>u notícia da viravolta política domarido, certa manhã <strong>de</strong> outubro, entre onze e meio-dia; falou-me<strong>de</strong> reuniões, <strong>de</strong> conversas, <strong>de</strong> um discurso...- De maneira <strong>que</strong> <strong>de</strong>sta vez fica você baronesa, interrompieu.Ela <strong>de</strong>rreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um eoutro lado; mas esse gesto <strong>de</strong> indiferença era <strong>de</strong>smentido poralguma coisa menos <strong>de</strong>finível, menos clara, uma expressão <strong>de</strong>gosto e <strong>de</strong> esperança. E não sei por <strong>que</strong>, imaginei <strong>que</strong> a cartaimperial da nomeação podia atrai-la à virtu<strong>de</strong>, não digo pelavirtu<strong>de</strong> em si mesma, mas por gratidão <strong>ao</strong> marido. Que elaamava cordialmente a nobreza; e um dos maiores <strong>de</strong>sgostos<strong>de</strong> nossa vida foi o aparecimento <strong>de</strong> certo pelintra <strong>de</strong> legação,- da legação da Dalmácia, suponhamos, - o con<strong>de</strong> B.V., <strong>que</strong> a namorou durante três meses. Esse homem, vero fidalgo<strong>de</strong> raça, transtornara um pouco a cabeça <strong>de</strong> Virgília, <strong>que</strong>,além do mais, possuía a vocação diplomática. Não chego aalcançar o <strong>que</strong> seria <strong>de</strong> mim, se não rebentasse na Dalmáciauma revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio<strong>que</strong> chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam osangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia <strong>de</strong> indignaçãoe pieda<strong>de</strong>... Eu não; eu abençoava interiormente essatragédia, <strong>que</strong> me tirara uma pedrinha do sapato. E <strong>de</strong>pois aDalmácia era tão longe!CAPÍTULO 102De RepousoMas este mesmo homem, <strong>que</strong> se alegrou com a partidado outro, praticou daí a tempos... Não, não hei <strong>de</strong> contá-lonesta página; fi<strong>que</strong> esse capítulo para repouso do meu vexame.Uma ação grosseira, baixa, sem explicação possível...Repito, não contarei o caso nesta página.CAPÍTULO 103Distração- Não, senhor Doutor, isto não se faz. Perdoe-me, istonão se faz.Tinha razão Dona Plácida. Nenhum cavalheiro chega umahora mais tar<strong>de</strong> <strong>ao</strong> lugar em <strong>que</strong> o espera a sua dama. Entreiesbaforido; Virgília tinha ido embora. Dona Plácida contoume<strong>que</strong> ela esperara muito, <strong>que</strong> se irritara, <strong>que</strong> chorara, <strong>que</strong>jurara votar-me <strong>ao</strong> <strong>de</strong>sprezo, e outras mais coisas <strong>que</strong> a nossa


caseira dizia com lágrimas na voz, pedindo-me <strong>que</strong> não <strong>de</strong>samparasseIaiá, <strong>que</strong> era ser muito injusto com uma moça <strong>que</strong>me sacrificaria tudo. Expli<strong>que</strong>i-lhe então <strong>que</strong> um equivoco...E não era; cuido <strong>que</strong> foi simples distração. Um dito, uma conversa,uma anedota, qual<strong>que</strong>r coisa; simples distração.Coitada <strong>de</strong> Dona Plácida! Estava aflita <strong>de</strong>veras. Andava<strong>de</strong> um lado para outro, abanando a cabeça, suspirando comestrépito, espiando pela rótula. Coitada <strong>de</strong> Dona Plácida! Com<strong>que</strong> arte conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentavaas manhas do nosso amor! <strong>que</strong> imaginação fértil em tornar ashoras mais aprazíveis e breves! Flores, doces, - os bons doces<strong>de</strong> outros dias, - e muito riso, muito afago, um riso e umafago <strong>que</strong> cresciam com o tempo, como se ela quisesse fixar anossa aventura; ou restituir-lhe a primeira flor. Nada es<strong>que</strong>ciaa nossa confi<strong>de</strong>nte e caseira; nada, nem a mentira, por<strong>que</strong>a um e outro referia suspiros e sauda<strong>de</strong>s <strong>que</strong> não presenciara;nada, nem a calúnia, por<strong>que</strong> uma vez chegou a atribuirmeuma paixão nova. - Você sabe <strong>que</strong> não posso gostar <strong>de</strong>outra mulher, foi a minha resposta, quando Virgília me falouem semelhante coisa. E esta só palavra, sem nenhum protestoou admoestação, dissipou o aleive <strong>de</strong> Dona Plácida, <strong>que</strong>ficou triste.- Está bem, disse-lhe eu, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um quarto <strong>de</strong> hora;Virgília há <strong>de</strong> reconhecer <strong>que</strong> não tive culpa nenhuma... Quervocê levar-lhe uma carta agora mesmo?- Ela há <strong>de</strong> estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não<strong>de</strong>sejo a morte <strong>de</strong> ninguém; mas, se o senhor Doutor algumdia chegar a casar com Iaiá, então sim, é <strong>que</strong> há <strong>de</strong> ver o anjo<strong>que</strong> ela é!Lembra-me <strong>que</strong> <strong>de</strong>sviei o rosto e baixei os olhos <strong>ao</strong> chão.Recomendo este gesto às pessoas <strong>que</strong> não tiverem uma palavrapronta para respon<strong>de</strong>r, ou ainda as <strong>que</strong> recearem encarara pupila <strong>de</strong> outros olhos. Em tais casos, alguns preferem recitaruma oitava dos Lusíadas, outros adotam o recurso <strong>de</strong> assobiara Norma; eu atenho-me <strong>ao</strong> gesto indicado; é mais simples,exige menos esforço.Três dias <strong>de</strong>pois, estava tudo explicado. Suponho <strong>que</strong>Virgília ficou um pouco admirada, quando lhe pedi <strong>de</strong>sculpadas lágrimas <strong>que</strong> <strong>de</strong>rramara na<strong>que</strong>la triste ocasião. Nemme lembra se interiormente as atribuí a Dona Plácida. Comefeito, podia acontecer <strong>que</strong> Dona Plácida chorasse, <strong>ao</strong> vê-la<strong>de</strong>sapontada, e, por um fenômeno da visão, as lágrimas <strong>que</strong>tinha nos próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos <strong>de</strong>Virgília. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas nãoperdoado, e menos ainda es<strong>que</strong>cido. Virgília dizia-me umaporção <strong>de</strong> coisas duras, ameaçava-me com a separação, enfimlouvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muitosuperior a mim, <strong>de</strong>licado, um primor <strong>de</strong> cortesia e afeição;é o <strong>que</strong> ela dizia, enquanto eu, sentado, com os braçosfincados nos joelhos, olhava para o chão, on<strong>de</strong> uma moscaarrastava uma formiga <strong>que</strong> lhe mordia o pé. Pobre mosca!


pobre formiga!- Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgília, parandodiante <strong>de</strong> mim.- Que hei <strong>de</strong> dizer? Já expli<strong>que</strong>i tudo; você teima emzangar-se; <strong>que</strong> hei <strong>de</strong> dizer? Sabe o <strong>que</strong> me parece? Pareceme<strong>que</strong> você está enfastiada, <strong>que</strong> se aborrece, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r acabar...- Justamente!Foi dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa... -A<strong>de</strong>us, Dona Plácida, bradou ela para <strong>de</strong>ntro. Depois foi atéà porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. - Estábom, está bom, disse-lhe. Virgília ainda forcejou por sair. Euretive-a, pedi-lhe <strong>que</strong> ficasse, <strong>que</strong> es<strong>que</strong>cesse; ela afastou-seda porta e foi cair no canapé. Sentei-me <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>la, disse-lhemuitas coisas meigas, outras humil<strong>de</strong>s, outras graciosas. Nãoafirmo se os nossos lábios chegaram à distância <strong>de</strong> um fio <strong>de</strong>cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me,sim, <strong>que</strong> na agitação caiu um brinco <strong>de</strong> Virgília, <strong>que</strong> eu inclinei-mea apanhá-lo, e <strong>que</strong> a mosca <strong>de</strong> há pouco trepou <strong>ao</strong>brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za nativa <strong>de</strong> um homem do nosso século, pus na palmada mão a<strong>que</strong>le casal <strong>de</strong> mortificados; calculei toda a distância<strong>que</strong> ia da minha mão <strong>ao</strong> planeta Saturno, e pergunteia mim mesmo <strong>que</strong> interesse podia haver num episódio tãomofino. Se concluis daí <strong>que</strong> eu era um bárbaro, enganas-te,por<strong>que</strong> eu pedi um grampo a Virgília, a fim <strong>de</strong> separar os doisinsetos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asase foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga! E Deus viu <strong>que</strong>isto era bom, como se diz na Escritura.CAPÍTULO 104Era Ele!Restitui o grampo a Virgília, <strong>que</strong> o repregou nos cabelos,e preparou-se para sair. Era tar<strong>de</strong>; tinham dado três horas.Tudo estava es<strong>que</strong>cido e perdoado. Dona Plácida, <strong>que</strong> espreitavaa ocasião idônea para a salda, fecha subitamente a janelae exclama:- Virgem Nossa Senhora! aí vem o marido <strong>de</strong> Iaiá!O momento <strong>de</strong> terror foi curto, mas completo. Virgília fezseda cor das rendas do vestido, correu até a porta da alcova;Dona Plácida, <strong>que</strong> fechara a rótula, <strong>que</strong>ria fechar também aporta <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Essecurto instante passou. Virgília tomou a si, empurrou-me paraa alcova, disse a Dona Plácida <strong>que</strong> voltasse janela; a confi<strong>de</strong>nteobe<strong>de</strong>ceu.Era ele. Dona Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações<strong>de</strong> pasmo: - O senhor por aqui! honrando a casa<strong>de</strong> sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe <strong>que</strong>m está cá... Nãotem <strong>que</strong> adivinhar, não veio por outra coisa... Apareça, Iaiá.Virgília, <strong>que</strong> estava a um canto, atirou-se <strong>ao</strong> marido. Eu


espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entroulentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento,e circulou um olhar em volta da sala.- Que é isto? exclamou Virgília. Você por aqui?- Ia passando, vi Dona Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.- Muito obrigada, acudiu esta. E digam <strong>que</strong> as velhasnão valem alguma coisa... Olhai, gentes! Iaiá parece estar comciúmes. E acariciando-a muito: - Este anjinho é <strong>que</strong> nuncase es<strong>que</strong>ceu da velha Plácida. Coitadinha! é mesmo a cara damãe. Sente-se, senhor Doutor...- Não me <strong>de</strong>moro.- Você vai para casa? disse Virgília. Vamos juntos.- Vou.- Dê cá o meu chapéu, Dona Plácida.- Está aqui.Dona Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante <strong>de</strong>la.Virgília punha o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos,falando <strong>ao</strong> marido, <strong>que</strong> não respondia nada. A nossa boa ve -lha tagarelava <strong>de</strong>mais; era um modo <strong>de</strong> disfarçar as tremurasdo corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tomara àposse <strong>de</strong> si mesma.- Pronta! disse ela. A<strong>de</strong>us, Dona Plácida; não se es<strong>que</strong>ça<strong>de</strong> aparecer, ouviu? A outra prometeu <strong>que</strong> sim, e abriu-lhes aporta.CAPÍTULO 105Equivalência das JanelasDona Plácida fechou a porta e caiu numa ca<strong>de</strong>ira. Eu<strong>de</strong>ixei imediatamente a alcova, e <strong>de</strong>i dois passos para sair àrua, com o fim <strong>de</strong> arrancar Virgília <strong>ao</strong> marido; foi o <strong>que</strong> disse,e em bem <strong>que</strong> o disse, por<strong>que</strong> Dona Plácida <strong>de</strong>teve-mepor um braço. Tempo houve em <strong>que</strong> eu cheguei a supor <strong>que</strong>não dissera aquilo senão para <strong>que</strong> ela me <strong>de</strong>tivesse; mas asimples reflexão basta para mostrar <strong>que</strong>, <strong>de</strong>pois dos <strong>de</strong>z minutosda alcova, o gesto mais genuíno e cordial não podiaser senão esse. E isto por a<strong>que</strong>la famosa lei da equivalênciadas janelas, <strong>que</strong> eu tive a satisfação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir e formular,no capítulo 51. Era preciso arejar a consciência. A alcovafoi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto <strong>de</strong> sair, erespirei.CAPÍTULO 106Jogo PerigosoRespirei e sentei-me. Dona Plácida atroava a sala com


exclamações e lástimas. Eu ouvia, sem lhe dizer coisa nenhuma;refletia comigo se não era melhor ter fechado Virgília naalcova e ficado na sala; mas adverti logo <strong>que</strong> seria pior; confirmariaa suspeita, chegaria o fogo à pólvora, e uma cena <strong>de</strong>sangue... Foi muito melhor assim. Mas <strong>de</strong>pois? <strong>que</strong> ia acontecerem casa <strong>de</strong> Virgília? matá-la-ia o marido? espancá-la-ia?encerrá-la-ia? expulsá-la-ia? Estas interrogações percorriamlentamente o meu cérebro, como os pontinhos e vírgulas escuraspercorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados.Iam e vinham, com o seu aspecto seco e trágico, e eunão podia agarrar um <strong>de</strong>les e dizer: és tu, tu e não outro.De repente vejo um vulto negro; era Dona Plácida, <strong>que</strong>fora <strong>de</strong>ntro, enfiara a mantilha, e vinha oferecer-se-me parair casa do Lobo Neves. Pon<strong>de</strong>rei-lhe <strong>que</strong> era arriscado, por<strong>que</strong>ele <strong>de</strong>sconfiaria da visita tão próxima.- Sossegue, interrompeu ela; eu saberei arranjar as coisas.Se ele estiver em casa não entro.Saiu; eu fi<strong>que</strong>i a ruminar o sucesso e as consequências possíveis.Ao cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntavaa mim mesmo se não era tempo <strong>de</strong> levantar e espairecercomo um parceiro doWhist. E então sentia-me tomado <strong>de</strong> umasauda<strong>de</strong> do casamento, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> canalizar a vida. Por<strong>que</strong> não? Meu coração tinha ainda <strong>que</strong> explorar; não me sentiaincapaz <strong>de</strong> um amor casto, severo e puro. Na verda<strong>de</strong>, asaventuras são parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, aexceção; eu estava enfarado <strong>de</strong>las; não sei até se me pungiaalgum remorso. Mal pensei naquilo, <strong>de</strong>ixei-me ir atrás da imaginação;vi-me logo casado, <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> uma mulher adorável,diante <strong>de</strong> um baby, <strong>que</strong> dormia no regaço da ama, todos nós nofundo <strong>de</strong> uma chácara sombria e ver<strong>de</strong>, a espiarmos através dasárvores uma nesga do céu azul, extremamente azul...CAPÍTULO 107Bilhete"Não houve nada, mas ele suspeita alguma coisa; estámuito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente,para nhonhô, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o fitar muito tempo, carrancudo. Nãome tratou mal nem bem. Não sei o <strong>que</strong> vai acontecer; Deus<strong>que</strong>ira <strong>que</strong> isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela."CAPÍTULO 108Que Se Não Enten<strong>de</strong>Eis aio drama, eis aia ponta da orelha trágica <strong>de</strong> Shakespeare.


Esse retalhinho <strong>de</strong> papel, garatujado em partes, machucado dasmãos, era um documento <strong>de</strong> análise, <strong>que</strong> eu não farei neste capitulo,nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Po<strong>de</strong>riaeu tirar <strong>ao</strong> leitor o gosto <strong>de</strong> notar por si mesmo a frieza, aperspicácia e o ânimo <strong>de</strong>ssas poucas linhas traçadas pressa; e por trás<strong>de</strong>las a tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro cérebro, a raiva dissimulada, o <strong>de</strong>sespero<strong>que</strong> se constrange e medita, por<strong>que</strong> tem <strong>de</strong> resolver-sena lama, ou nas lágrimas?Quanto a mim, se vos disser <strong>que</strong> li o bilhete três ou quatrovezes, na<strong>que</strong>le dia, acreditai-o, <strong>que</strong> é verda<strong>de</strong>; se vos dissermais <strong>que</strong> o reli no dia seguinte, antes e <strong>de</strong>pois do almoço,po<strong>de</strong>is crê-lo, é a realida<strong>de</strong> pura. Mas se vos disser a comoção<strong>que</strong> tive, duvidai um pouco da asserção, e não a aceiteis semprovas. Nem então, nem ainda agora cheguei a discemir o <strong>que</strong>experimentei. Era medo, e não era medo; era dó e não era dó;era vaida<strong>de</strong> e não era vaida<strong>de</strong>; enfim, era amor sem amor, istoé, sem <strong>de</strong>lírio; e tudo isso dava uma combinação assaz complexae vaga, uma coisa <strong>que</strong> não po<strong>de</strong>reis enten<strong>de</strong>r, como eunão entendi. Suponhamos <strong>que</strong> não disse nada.CAPÍTULO 109O FilósofoSabido <strong>que</strong> reli a carta, antes e <strong>de</strong>pois do almoço, sabidofica <strong>que</strong> almocei, e só resta dizer <strong>que</strong> essa refeição foi dasmais parcas da minha vida: um ovo, uma fatia <strong>de</strong> pão, uma xícara<strong>de</strong> chá. Não me es<strong>que</strong>ceu esta circunstância mínima; no meio<strong>de</strong> tanta coisa importante obliterada escapou esse almoço. Arazão principal po<strong>de</strong>ria ser justamente o meu <strong>de</strong>sastre; masnão foi; a principal razão foi a reflexão <strong>que</strong> me fez o QuincasBorba, cuja visita recebi na<strong>que</strong>le dia. Disse-me ele <strong>que</strong> a frugalida<strong>de</strong>não era necessária para enten<strong>de</strong>r o Humanitismo, emenos ainda praticá-lo; <strong>que</strong> esta filosofia acomodava-se facilmentecom os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espetáculoe os amores; e <strong>que</strong>, <strong>ao</strong> contrário, a frugalida<strong>de</strong> podia indicarcerta tendência para o ascetismo, o qual era a expressãoacabada da tolice humana.- Veja São João, continuou ele; mantinha-se <strong>de</strong> gafanhotos,no <strong>de</strong>serto, em vez <strong>de</strong> engordar tranqüilamente na cida<strong>de</strong>,e fazer emagrecer o farisaísmo na sinagoga. Deus me livre <strong>de</strong>contar a história do Quincas Borba, <strong>que</strong> aliás ouvi toda na<strong>que</strong>latriste ocasião, uma história longa, complicada, mas interessante.E se não conto a história, dispenso-me outrossim <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver-lhea figura, aliás mui diversa da <strong>que</strong> me apareceu noPasseio Público. Calo-me; digo somente <strong>que</strong> se o principal característicodo homem não são as feições, mas o vestuário, elenão era o Quincas Borba; era um <strong>de</strong>sembargador sem beca, umgeneral sem farda, um negociante sem <strong>de</strong>ficit. Notei-lhe a perfeiçãoda sobrecasaca, a alvura da camisa, o asseio das botas. A


mesma voz, roufenha outrora, parecia restituida à primitivasonorida<strong>de</strong>. Quanto à gesticulação, sem <strong>que</strong> houvesse perdidoa viveza <strong>de</strong> outro tempo, não tinha já a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, sujeitava-sea um certo método. Mas eu não <strong>que</strong>ro <strong>de</strong>screvê-lo. Se falasse,por exemplo, no botão <strong>de</strong> ouro <strong>que</strong> trazia <strong>ao</strong> peito, e na qualida<strong>de</strong>do couro das botas, iniciaria uma <strong>de</strong>scrição, <strong>que</strong> omitopor brevida<strong>de</strong>. Contentem-se <strong>de</strong> saber <strong>que</strong> as botas eram <strong>de</strong>verniz. Saibam mais <strong>que</strong> ele herdara alguns pares <strong>de</strong> contos <strong>de</strong>réis <strong>de</strong> um velho tio <strong>de</strong> Barbacena.Meu espírito (permitam-me aqui uma comparação <strong>de</strong> criança!),meu espírito era na<strong>que</strong>la ocasião uma espécie <strong>de</strong> peteca.A narração do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, elesubia; quando ia a cair, o bilhete <strong>de</strong> Virgília dava-lhe outrapalmada, e ele era <strong>de</strong> novo arremessado <strong>ao</strong>s ares; <strong>de</strong>scia, e o episódiodo Passeio Público recebia-o com outra palmada, igualmenterija e eficaz. Cuido <strong>que</strong> não nasci para situações complexas.Esse puxar e empuxar <strong>de</strong> coisas opostas, <strong>de</strong>sequilibrava-me; tinhavonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> embrulhar o Quincas Borba, o Lobo Neves e o bilhete<strong>de</strong> Virgília na mesma filosofia, e mandá-los <strong>de</strong> presente aAristóteles. E contudo, era instrutiva a narração do nosso filósofo;admirava-lhe sobretudo o talento <strong>de</strong> observação com <strong>que</strong><strong>de</strong>screvia a gestação e o crescimento do vício, as lutas interiores,as capitulações vagarosas, o uso da lama.- Olhe, observou ele; a primeira noite <strong>que</strong> passei naescada <strong>de</strong> São Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a maisfina pluma. Por quê? Por<strong>que</strong> fui gradualmente <strong>de</strong> cama <strong>de</strong>esteira <strong>ao</strong> catre <strong>de</strong> pau, do quarto próprio <strong>ao</strong> corpo da guarda,do corpo da guarda <strong>ao</strong> xadrez, do xadrez à rua...Quis expor-me finalmente a filosofia; eu pedi-lhe <strong>que</strong> não.- Estou assaz preocupado hoje e não po<strong>de</strong>ria atendê-lo; venha<strong>de</strong>pois; estou sempre em casa. Quincas Borba sorriu <strong>de</strong> ummodo malicioso; talvez soubesse da minha aventura, mas nãoacrescentou nada. Só me disse estas últimas palavras à porta:- Venha para o Humanitismo; ele é o gran<strong>de</strong> regaço dosespíritos, o mar eterno em <strong>que</strong> mergulhei para arrancar <strong>de</strong> láa verda<strong>de</strong>. Os gregos faziam-na sair <strong>de</strong> um poço. Que concepçãomesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo <strong>que</strong> nuncaatinaram com ela. Gregos, subgregos, antigregos, toda alonga série dos homens tem-se <strong>de</strong>bruçado sobre o poço, paraver sair a verda<strong>de</strong>, <strong>que</strong> não está lá. Gastaram cordas e caçambas;alguns mais afoitos <strong>de</strong>sceram <strong>ao</strong> fundo e trouxeram umsapo. Eu fui diretamente <strong>ao</strong> mar. Venha para o Humanitismo.CAPÍTULO 11031Uma semana <strong>de</strong>pois, Lobo Neves foi nomeado presi<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> província. Agarrei-me à esperança da recusa, se o <strong>de</strong>cretoviesse outra vez datado <strong>de</strong> 13; trouxe, porém, a data <strong>de</strong>


31, e esta simples transposição <strong>de</strong> algarismos eliminou <strong>de</strong>les asubstância diabólica. Que profundas <strong>que</strong> são as molas da vida!CAPÍTULO 111O MuroNão sendo meu costume dissimular ou escon<strong>de</strong>r nada,contarei nesta página o caso do muro. Eles estavam prestes aembarcar. Entrando em casa <strong>de</strong> Dona Plácida, vi um papelinhodobrado sobre a mesa; era um bilhete <strong>de</strong> Virgília; dizia <strong>que</strong>me esperava à noite, na chácara, sem falta. E concluía: "Omuro é baixo do lado do beco."Fiz um gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagrado. A carta pareceu-me <strong>de</strong>scomunalmenteaudaciosa, mal pensada e até ridícula. Não era sóconvidar o escândalo, era convidá-lo <strong>de</strong> parceria com a risota.Imaginei-me a saltar o muro, embora baixo e do lado do beco;e, quando ia a galgá-lo, via-me agarrado por um pe<strong>de</strong>stre <strong>de</strong>polícia, <strong>que</strong> me levava <strong>ao</strong> corpo da guarda. O muro é baixo! E<strong>que</strong> tinha <strong>que</strong> fosse baixo? Naturalmente Virgília não soube o<strong>que</strong> fez; era possível <strong>que</strong> já estivesse arrependida. Olhei par<strong>ao</strong> papel, um pedaço <strong>de</strong> papel amarrotado, mas inflexível. Tivecomichões <strong>de</strong> o rasgar, em trinta mil pedaços, e atirá-los <strong>ao</strong>vento, como o último <strong>de</strong>spojo da minha aventura; mas recueia tempo; o amor-próprio, o vexame da fuga, a idéia do medo...Não havia remédio senão ir.- Diga-lhe <strong>que</strong> vou.- Aon<strong>de</strong>? perguntou Dona Plácida.- On<strong>de</strong> ela disse <strong>que</strong> me espera.- Não me disse nada.- Neste papel.Dona Plácida arregalou os olhos: - Mas esse papel, acheiohoje <strong>de</strong> manhã, nesta sua gaveta, e pensei <strong>que</strong>...Tive uma sensação esquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o;era, em verda<strong>de</strong>, um antigo bilhete <strong>de</strong> Virgília, recebidono começo dos nossos amores, uma certa entrevistana chácara, <strong>que</strong> me levou efetivamente a saltar o muro, ummuro baixo e discreto. Guar<strong>de</strong>i o papel e... Tive uma sensaçãoesquisita.CAPÍTULO 112A OpiniãoMas estava escrito <strong>que</strong> esse dia <strong>de</strong>via ser o dos lancesdúbios. Poucas horas <strong>de</strong>pois, encontrava-me eu com o LoboNeves, na rua do Ouvidor; e falamos da presidência e da política.Ele aproveitou o primeiro conhecido <strong>que</strong> nos passou àilharga, e <strong>de</strong>ixou-me, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos cumprimentos. Lem-


a-me <strong>que</strong> estava retraído, mas <strong>de</strong> um retraimento <strong>que</strong> forcejavapor dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à critica,se este meu juízo for temerário!) pareceu-me <strong>que</strong> ele tinhamedo - não medo <strong>de</strong> mim, nem <strong>de</strong> si, nem do código,nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus <strong>que</strong> essetribunal anônimo e invisível, em <strong>que</strong> cada membro acusa ejulga, era o limite posto à vonta<strong>de</strong> do Lobo Neves. Talvez <strong>que</strong>ele já não amasse a mulher; e, assim, po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> o coraçãofosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e<strong>de</strong> novo insto pela boa vonta<strong>de</strong> da crítica!) cuido <strong>que</strong> ele estariapronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado<strong>de</strong> muitas relações pessoais; mas a opinião, essa opinião<strong>que</strong> lhe arrastaria a vida por todas as ruas, <strong>que</strong> abririaminucioso inquérito acerca do caso, <strong>que</strong> coligiria uma a umatodas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, <strong>que</strong>as relataria na palestra das chácaras <strong>de</strong>socupadas, essa terrívelopinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família.Ao mesmo tempo tornou impossível o <strong>de</strong>sforço <strong>que</strong> seriaa divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo, semigualmente buscar a separação conjugal; e teve então <strong>de</strong> simulara mesma ignorância <strong>de</strong> outrora, e, por <strong>de</strong>dução, iguaissentimentos.Que lhe custasse creio; na<strong>que</strong>les dias, principalmente, vio<strong>de</strong> modo <strong>que</strong> <strong>de</strong>via custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outroponto em <strong>que</strong> eu espero a indulgência dos homens pensadores!),o tempo caleja a sensibilida<strong>de</strong>, e oblitera a memóriadas coisas; era <strong>de</strong> supor <strong>que</strong> os anos lhe <strong>de</strong>spontassem os espinhos,<strong>que</strong> a distância dos fatos apagasse os respectivos contornos,<strong>que</strong> uma sombra <strong>de</strong> dúvida retrospectiva cobrisse anu<strong>de</strong>z da realida<strong>de</strong>; enfim, <strong>que</strong> a opinião se ocupasse um poucocom outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazeras ambições do pai; seria o her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> todos os seus afetos.Isso, e a ativida<strong>de</strong> externa, e o prestígio público, e a velhice<strong>de</strong>pois, a doença, o <strong>de</strong>clínio, a morte, um responso, uma notíciabiográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhumapágina <strong>de</strong> sangue.CAPÍTULO 113A SoldaA conclusão, se há alguma no capitulo anterior, é <strong>que</strong> <strong>ao</strong>pinião é uma boa solda das instituições domésticas. Não éimpossível <strong>que</strong> eu <strong>de</strong>senvolva este pensamento, antes <strong>de</strong> acabaro livro; mas também não é impossível <strong>que</strong> o <strong>de</strong>ixe comoestá. De um ou <strong>de</strong> outro modo, é uma boa solda a opinião, etanto na or<strong>de</strong>m doméstica, como na política. Alguns metafísicosbiliosos têm chegado <strong>ao</strong> extremo <strong>de</strong> a darem como simplesproduto da gente chocha ou medíocre; mas é evi<strong>de</strong>nte<strong>que</strong>, ainda quando um conceito tão extremado não trouxesseem si mesmo a resposta, bastava consi<strong>de</strong>rar os efeitos saluta-


es da opinião, para concluir <strong>que</strong> ela é a obra superfina da flordos homens, a saber, do maior número.CAPÍTULO 114Fim <strong>de</strong> um Diálogo- Sim, é amanhã. Você vai a bordo?- Está doida? É impossível.- Então, a<strong>de</strong>us!- A<strong>de</strong>us!- Não se es<strong>que</strong>ça <strong>de</strong> Dona Plácida. Vá vê-la algumasvezes. Coitada! Foi ontem <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> nós; chorou muito,disse <strong>que</strong> eu não a veria mais... É uma boa criatura, não é?- Certamente.- Se tivermos <strong>de</strong> escrever, ela receberá as cartas. Agoraaté daqui a...- Talvez dois anos?- Qual! ele diz <strong>que</strong> só até fazer as eleições.- Sim? então até breve. Olhe <strong>que</strong> estão olhando paranós.- Quem?- Ali do sofá. Separemo-nos.- Custa-me muito.- Mas é preciso; a<strong>de</strong>us, Virgília!- Até breve. A<strong>de</strong>us!CAPÍTULO 115O AlmoçoNão a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa<strong>que</strong> não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e sauda<strong>de</strong>,tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor comesta confissão. Eu bem sei <strong>que</strong>, para titilar-lhe os nervos dafantasia, <strong>de</strong>via pa<strong>de</strong>cer um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, <strong>de</strong>rramar algumaslágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seriabiográfico. A realida<strong>de</strong> pura é <strong>que</strong> eu almocei, como nos <strong>de</strong>maisdias, acudindo <strong>ao</strong> coração com as lembranças da minhaaventura, e <strong>ao</strong> estômago com os acepipes <strong>de</strong> M. Prudhon......Velhos do meu tempo, lembrai-vos <strong>de</strong>sse mestre cozinheirodo hotel Pharoux, um sujeito <strong>que</strong>, segundo dizia o dono dacasa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, <strong>de</strong> Paris, e maisnos palácios do Con<strong>de</strong> Molé e do Du<strong>que</strong> <strong>de</strong> la Rochefoucauld?Era insigne. Entrou no Rio <strong>de</strong> janeiro com a polca... A polca,M. Prudhon, o Tivoli, o baile dos estrangeiros, o Cassino, eisalgumas das melhores recordações da<strong>que</strong>le tempo; mas sobretudoos acepipes do mestre eram <strong>de</strong>liciosos.


Eram, e na<strong>que</strong>la manhã parece <strong>que</strong> o diabo do homemadivinhara a nossa catástrofe. jamais o engenho e a arte lheforam tão propícios. Que requinte <strong>de</strong> temperos! <strong>que</strong> ternura<strong>de</strong> carnes! <strong>que</strong> rebuscado <strong>de</strong> formas! Comia-se com a boca, comos olhos, com o nariz. Não guar<strong>de</strong>i a conta <strong>de</strong>sse dia; do contrário,é mui provável <strong>que</strong> a <strong>de</strong>ixasse nestas páginas; sei <strong>que</strong>foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os meusamores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e euficava-me ali numa ponta <strong>de</strong> mesa, com os meus quarenta etantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não vernunca mais, por<strong>que</strong> ela po<strong>de</strong>ria tomar e tomou, mas o eflúvioda manhã <strong>que</strong>m é <strong>que</strong> o pediu <strong>ao</strong> crepúsculo da tar<strong>de</strong>?CAPÍTULO 116Filosofia das Folhas VelhasFi<strong>que</strong>i tão triste com o fim do último capítulo <strong>que</strong> estavacapaz <strong>de</strong> não escrever este, <strong>de</strong>scansar um pouco, purgar oespírito da melancolia <strong>que</strong> a empacha, e continuar <strong>de</strong>pois. Masnão, não <strong>que</strong>ro per<strong>de</strong>r tempo.A partida <strong>de</strong> Virgília <strong>de</strong>u-me uma amostra da viuvez. Nosprimeiros dias meti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano,se não mente o Suetônio, mas a fisgá-las <strong>de</strong> um modoparticular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo <strong>de</strong>uma sala gran<strong>de</strong>, estirado na re<strong>de</strong> com um livro aberto entreas mãos. Era tudo: sauda<strong>de</strong>s, ambições, um pouco <strong>de</strong> tédio, emuito <strong>de</strong>vaneio solto. Meu tio cônego morreu nesse intervalo;item, dois primos; e eu não me <strong>de</strong>i por abalado; levei-os <strong>ao</strong>cemitério, como <strong>que</strong>m leva dinheiro a um banco. Que digo?como <strong>que</strong>m leva cartas <strong>ao</strong> correio: selei as cartas, meti-as nacaixinha, e <strong>de</strong>ixei <strong>ao</strong> carteiro o cuidado <strong>de</strong> as entregar em mãoprópria. Foi também por esse tempo <strong>que</strong> nasceu minha sobrinhaVenância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros:eu continuava às moscas.Outras vezes agitava-me. Ia às gavetas, entomava as cartasantigas, dos amigos, dos parentes, das namoradas (até as<strong>de</strong> Marcela), e abria-as todas, li-as uma a uma, e recompunh<strong>ao</strong> pretérito... Leitor ignaro, se não guardas as cartas da juventu<strong>de</strong>,não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, nãogostarás o prazer <strong>de</strong> ver-te, <strong>ao</strong> longe, na penumbra, com umchapéu <strong>de</strong> três bicos, botas <strong>de</strong> sete léguas e longas barbasassírias, a bailar <strong>ao</strong> som <strong>de</strong> uma gaita anacreôntica. Guarda astuas cartas da juventu<strong>de</strong>!Ou, se te não apraz o chapéu <strong>de</strong> três bicos, empregarei alocução <strong>de</strong> um velho marujo, familiar da casa <strong>de</strong> Cotrim; direi<strong>que</strong>, se guardares as cartas da juventu<strong>de</strong>, acharás ocasião<strong>de</strong> "cantar uma sauda<strong>de</strong>". Parece <strong>que</strong> os nossos marujos dãoeste nome às cantigas <strong>de</strong> terra, entoadas no alto-mar. Comoexpressão poética, é o <strong>que</strong> se po<strong>de</strong> exigir mais triste.


CAPÍTULO 117O HumanitismoDuas forças, porém, além <strong>de</strong> uma terceira, compeliam-sea tomar à vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba.Minha irmã encaminhou a candidatura conjugal <strong>de</strong> Nhá-loló<strong>de</strong> um modo verda<strong>de</strong>iramente impetuoso. Quando <strong>de</strong>i pormim estava com a moça quase nos braços. Quanto <strong>ao</strong> QuincasBorba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema <strong>de</strong> filosofia<strong>de</strong>stinado a arruinar todos os <strong>de</strong>mais sistemas.- Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outrosenão o mesmo homem repartido por todos os homens. Contatrês fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação;a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, aparecimento dohomem; e contará mais uma, a contrativa absorção do homeme das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitaso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> o gozar, e dai a dispersão, <strong>que</strong> não é maisdo <strong>que</strong> a multiplicação personificada da substância original.Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, QuincasBorba <strong>de</strong>senvolveu-a <strong>de</strong> um modo profundo, fazendo notar asgran<strong>de</strong>s linhas do sistema. Explicou-me <strong>que</strong>, por um lado, oHumanitismo ligava-se <strong>ao</strong> Bramanismo, a saber, na distribuiçãodos homens pelas diferentes partes do corpo <strong>de</strong> Humanitas; masaquilo <strong>que</strong> na religião indiana tinha apenas uma estreitasignificação teológica e política, era no Humanitismo a gran<strong>de</strong> lei dovalor pessoal. Assim, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r do peito ou dos rins <strong>de</strong> Humanitas,isto é, ser um forte, não era o mesmo <strong>que</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r doscabelos ou da ponta do nariz. Dai a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cultivar etemperar o músculo. Hércules ou Herakles não foi senão um símboloantecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borbapon<strong>de</strong>rou <strong>que</strong> o paganismo po<strong>de</strong>ria ter chegado à verda<strong>de</strong>, se senão houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos.Nada disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja novanão há aventuras fáceis, nem <strong>que</strong>das, nem tristezas, nem alegriaspueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução umritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não hámendigo <strong>que</strong> não prefira a miséria à morte (o <strong>que</strong> é um <strong>de</strong>liciosoinfluxo <strong>de</strong> Humanitas), segue-se <strong>que</strong> a transmissão da vida, longe<strong>de</strong> ser uma ocasião <strong>de</strong> galanteio, é a hora suprema da missaespiritual. Porquanto, verda<strong>de</strong>iramente há só uma <strong>de</strong>sgraça: é nãonascer.- Imagina, por exemplo, <strong>que</strong> eu não tinha nascido, continuouo Quincas Borba; é positivo <strong>que</strong> não teria agora o prazer<strong>de</strong> conversar contigo, comer esta batata, ir <strong>ao</strong> teatro, epara tudo dizer numa só palavra: viver. Nota <strong>que</strong> não faço do homemum simples veículo <strong>de</strong> Humanitas; não, ele é <strong>ao</strong> mesmotempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitasreduzido; dai a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adorar-se a si próprio. Queresuma prova da superiorida<strong>de</strong> do meu sistema? Contempla a in-


veja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano,<strong>que</strong> troveje contra o sentimento da inveja, O acordo é universal,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os campos da Iduméia até o Alto da Tijuca. Ora bem;abre mão dos velhos preconceitos, es<strong>que</strong>ce as retóricas rafadas,e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendocada homem uma redução <strong>de</strong> Humanitas, é claro <strong>que</strong> nenhumhomem é fundamentalmente oposto a outro homem, quais<strong>que</strong>r<strong>que</strong> sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz<strong>que</strong> executa o con<strong>de</strong>nado po<strong>de</strong> excitar o vão clamor dos poetas;mas substancialmente é Humanitas <strong>que</strong> corrige em Humanitasuma infração da lei <strong>de</strong> Humanitas. O mesmo direi doindivíduo <strong>que</strong> estripa a outro; é uma manifestação da força <strong>de</strong>Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) <strong>que</strong> ele seja igualmenteestripado. Se enten<strong>de</strong>ste bem, facilmente compreen<strong>de</strong>rás <strong>que</strong>a inveja não é senão uma admiração <strong>que</strong> luta, e sendo a luta agran<strong>de</strong> função do gênero humano, todos os sentimentos belicosossão os mais a<strong>de</strong>quados à sua felicida<strong>de</strong>. Dai vem <strong>que</strong> ainveja é uma virtu<strong>de</strong>.Para <strong>que</strong> negá-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposição,a lógica dos princípios, o rigor das consequências,tudo isso parecia superiormente gran<strong>de</strong>, e foi-me preciso suspen<strong>de</strong>ra conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofianova. Quincas Borba mal podia encobrir a satisfação dotriunfo. Tinha uma asa <strong>de</strong> frango no prato, e trincava-a comfilosófica serenida<strong>de</strong>. Eu fiz-lhe ainda algumas objeções, mastão frouxas, <strong>que</strong> ele não gastou muito tempo em <strong>de</strong>struí-las.- Para enten<strong>de</strong>r bem o meu sistema, concluiu ele, importanão es<strong>que</strong>cer nunca o princípio universal, repartido e resumidoem cada homem. Olha: a guerra, <strong>que</strong> parece uma calamida<strong>de</strong>, éuma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos<strong>de</strong>dos <strong>de</strong> Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente aasa do frango), a fome é uma prova a <strong>que</strong> Humanitas submete aprópria víscera. Mas eu não <strong>que</strong>ro outro documento da sublimida<strong>de</strong>do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se <strong>de</strong>milho, <strong>que</strong> foi plantado por um africano, suponhamos, importado<strong>de</strong> Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; umnavio o trouxe, um navio construído <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira cortada no matopor <strong>de</strong>z ou doze homens, levado por velas, <strong>que</strong> oito ou <strong>de</strong>z homensteceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelhonáutico. Assim, este frango, <strong>que</strong> eu almocei agora mesmo, éo resultado <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> esforços e lutas, executados como único fim <strong>de</strong> dar mate <strong>ao</strong> meu apetite.Entre o <strong>que</strong>ijo e o café, <strong>de</strong>monstrou-me o Quincas Borba<strong>que</strong> o seu sistema era a <strong>de</strong>struição da dor. A dor, segundo oHumanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçadapor um pau, antes mesmo <strong>de</strong> ter sido espancada, fech<strong>ao</strong>s olhos e treme; essa predisposição é <strong>que</strong> constitui a base dailusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamentea adoção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável;o resto é a natural evolução das coisas. Uma vez <strong>que</strong>o homem se compenetra bem <strong>de</strong> <strong>que</strong> ele é o próprio Hu-


manitas, não tem mais do <strong>que</strong> remontar o pensamento à substânci<strong>ao</strong>riginal para obstar qual<strong>que</strong>r sensação dolorosa. Aevolução, porém, é tão profunda, <strong>que</strong> mal se lhe po<strong>de</strong>m assinaralguns milhares <strong>de</strong> anos.Quincas Borba leu-me daí a dias a sua gran<strong>de</strong> obra. Eramquatro volumes manuscritos, <strong>de</strong> cem páginas cada um, comletra miúda e citações latinas. O último volume compunhase<strong>de</strong> um tratado político, fundado no Humanitismo; era talveza parte mais enfadonha do sistema, posto <strong>que</strong> concebiacom um formidável rigor <strong>de</strong> lógica. Reorganizada a socieda<strong>de</strong>pelo método <strong>de</strong>le, nem por isso ficavam eliminadas a guerra,a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, afome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos verda<strong>de</strong>irosequívocos do entendimento, por<strong>que</strong> não passariam <strong>de</strong>movimentos externos da substância interior, <strong>de</strong>stinados a nãoinfluir sobre o homem, senão como simples <strong>que</strong>bra da monotoniauniversal, claro estava <strong>que</strong> a sua existência não impediriaa felicida<strong>de</strong> humana. Mas ainda quando tais flagelos (o <strong>que</strong>era radicalmente falso) correspon<strong>de</strong>ssem no futuro à concepçãoacanhada <strong>de</strong> antigos tempos, nem por isso ficava <strong>de</strong>struídoo sistema, e por dois motivos: 1o por<strong>que</strong> sendo Humanitas asubstância criadora e absoluta, cada indivíduo <strong>de</strong>veria achara maior <strong>de</strong>lícia do mundo em sacrificar-se <strong>ao</strong> principio <strong>de</strong> <strong>que</strong><strong>de</strong>scen<strong>de</strong>; 2o por<strong>que</strong>, ainda assim, não diminuiria o po<strong>de</strong>r espiritualdo homem sobre a terra, inventada unicamente paraseu recreio <strong>de</strong>le, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e oruibarbo. Pangloss, dizia-me ele <strong>ao</strong> fechar o livro, não era tãotolo como o pintou Voltaire.CAPÍTULO 118A Terceira ForçaA terceira força (veja a primeira linha do capítulo passado).A terceira força <strong>que</strong> me chamava <strong>ao</strong> bulício era a impaciência<strong>de</strong> luzir e, sobretudo, a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver só. Amultidão atraía-me, o aplauso namorava-me, a gala, o tumulto,o rufo, eram outros tantos objetos <strong>de</strong> sedução. Se a idéiado emplasto me tem aparecido nesse tempo, <strong>que</strong>m sabe? Nãoteria morrido logo e estaria célebre. Mas o emplasto não veio.Veio o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> agitar-me em alguma coisa, com alguma coisae por alguma coisa. Tout norre mal vient <strong>de</strong> ne pouvoir êtreseuls. Esta máxima <strong>de</strong> la Bruyère sempre me pareceu gran<strong>de</strong>disparate. Não há dúvida <strong>que</strong> a sociabilida<strong>de</strong> é a primeira virtu<strong>de</strong>dos homens, a segunda é a curiosida<strong>de</strong>, a terceira é apontualida<strong>de</strong> dos pagamentos, a quarta o valor militar, e assimpor diante.CAPÍTULO 119Parêntesis


(Haverá uma crítica tão perversa <strong>que</strong> possa atribuir aminha opinião sobre la Bruyère à inveja das suas máximas?Eu aparo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já esse golpe, transcrevendo algumas das <strong>que</strong>compus por a<strong>que</strong>le tempo, e rasguei logo <strong>de</strong>pois, por não meparecerem dignas do prelo. Fi-las num período em <strong>que</strong> a floramarela do capitulo 25 tomara a abrir; eram bocejos <strong>de</strong> enfado.E se não vejam:-------------------------------------Suporta-se com paciência a cólica do próximo.-------------------------------------Matamos o tempo; o tempo nos enterra.-------------------------------------Um cocheiro filósofo costumava dizer <strong>que</strong> o gosto da carruagemseria diminuto, se todos andassem <strong>de</strong> carruagem.-------------------------------------Crê em ti; mas nem sempre duvi<strong>de</strong>s dos outros.-------------------------------------Não se compreen<strong>de</strong> <strong>que</strong> um botocudo fure o beiço paraenfeitá-lo com um pedaço <strong>de</strong> pau. Esta reflexão é <strong>de</strong> um joalheiro.-------------------------------------Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cairdas nuvens, <strong>que</strong> <strong>de</strong> um terceiro andar.)CAPÍTULO 120Compelie IntrareNão, senhor, agora <strong>que</strong>r você <strong>que</strong>ira, <strong>que</strong>r não, há <strong>de</strong> casar,disse-me Sabina. Que belo futuro! Um solteirão sem filhos.Sem filhos! Eis o dardo secreto. A idéia <strong>de</strong> ter filhos <strong>de</strong>u-meum sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido misterioso. Sim,cumpria ser pai. A vida celibata podia ter certas vantagens próprias,mas seriam tênues, e compradas a troco da solidão. Semfilhos! Não; impossível. Dispus-me a aceitar tudo, ainda mesmoa aliança do Damasceno. Sem filhos! Como já então <strong>de</strong>positassegran<strong>de</strong> confiança no Quincas Borba, fui ter com ele e expus-lheos movimentos internos da minha paternida<strong>de</strong>. O filósofo ouviu-mecom alvoroço; <strong>de</strong>clarou-me <strong>que</strong> Humanitas se agitava em


meu seio; animou- me <strong>ao</strong> casamento; pon<strong>de</strong>rou <strong>que</strong> eram maisalguns convivas <strong>que</strong> batiam à porta, etc. Compelle intrare, comodizia jesus. E não me <strong>de</strong>ixou sem provar <strong>que</strong> o apólogo evangéliconão era mais do <strong>que</strong> um prenúncio do Humanitismo, erradamenteinterpretado pelos padres.CAPÍTULO 121Morro AbaixoNo fim <strong>de</strong> três meses, ia tudo à maravilha. O fluido,Sabina, os olhos da moça, os <strong>de</strong>sejos do pai, eram outros tantosimpulsos <strong>que</strong> me levavam <strong>ao</strong> matrimônio. A lembrança<strong>de</strong> Virgília aparecia <strong>de</strong> quando em quando, à porta, e com elaum diabo negro, <strong>que</strong> me metia à cara um espelho, no qual euvia <strong>ao</strong> longe Virgília <strong>de</strong>sfeita em lágrimas; mas outro diabovinha, cor-<strong>de</strong>-rosa, com outro espelho, em <strong>que</strong> se refletia afigura <strong>de</strong> Nhã-loló, tema, luminosa, angélica.Não falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até <strong>que</strong>os <strong>de</strong>itara fora, certo domingo, em <strong>que</strong> fui à missa na capelado Livramento. Como o Damasceno morava nos Cajueiros,eu acompanhava-os muitas vezes à missa. O morro estavaainda nu <strong>de</strong> habitações, salvo o velho palacete do alto, on<strong>de</strong>era a capela. Pois um domingo, <strong>ao</strong> <strong>de</strong>scer com Nhá-loló pelobraço, não sei <strong>que</strong> fenômeno se <strong>de</strong>u <strong>que</strong> fui <strong>de</strong>ixando aquidois anos, ali quatro, logo adiante cinco, <strong>de</strong> maneira <strong>que</strong>,quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tãolépidos como tinham sido.Agora, se <strong>que</strong>rem saber em <strong>que</strong> circunstâncias se <strong>de</strong>u ofenômeno basta-lhes ler este capítulo até o fim. Vínhamos damissa, ela, o pai e eu. No meio do morro achamos um grupo<strong>de</strong> homens. O Damasceno, <strong>que</strong> vinha <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong> nós, percebeuo <strong>que</strong> era e adiantou-se alvoroçado; nós fomos atrás <strong>de</strong>le. Evimos isto; homens <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s, tamanhos e cores, unsem mangas <strong>de</strong> camisa, outros <strong>de</strong> ja<strong>que</strong>ta, outros metidos emsobrecasacas esfrangalhadas; atitu<strong>de</strong>s diversas, uns <strong>de</strong> cócoras,outros com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentadosem pedras, a<strong>que</strong>les encostados <strong>ao</strong> muro, e todos com os olhosfixos no centro, e as almas <strong>de</strong>bruçadas das pupilas.- Que é? perguntou-me Nhã-loló.Fiz-lhe sinal <strong>que</strong> se calasse; abri sutilmente caminho, e todosme foram ce<strong>de</strong>ndo espaço, sem <strong>que</strong> positivamente ninguémme visse. O centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga <strong>de</strong>galos. Vi os dois contendores, dois galos <strong>de</strong> esporão agudo, olho<strong>de</strong> fogo e bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; opeito <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro estava <strong>de</strong>splumado e rubro; invadia-oso cansaço. Mas lutavam ainda assim, olhos fitos nos olhos, bicoabaixo, bico acima, golpe <strong>de</strong>ste, golpe da<strong>que</strong>le, vibrantes e raivosos.O Damasceno não sabia mais nada; o espetáculo elimi-


nou para ele todo o universo. Em vão lhe disse <strong>que</strong> era tempo<strong>de</strong> <strong>de</strong>scer: ele não respondia, não ouvia, concentrara-se noduelo. A briga <strong>de</strong> galos era uma <strong>de</strong> suas paixões.Foi nessa ocasião <strong>que</strong> Nhã-loló me puxou brandamentepelo braço, dizendo <strong>que</strong> nos fôssemos embora. Aceitei o conselhoe vim com ela por ali abaixo. Já disse <strong>que</strong> o morro eraentão <strong>de</strong>sabitado; disse-lhes também <strong>que</strong> vínhamos da missa,e não lhes tendo dito <strong>que</strong> chovia, era claro <strong>que</strong> fazia bom tempo,um sol <strong>de</strong>licioso. E forte. Tão forte <strong>que</strong> abri logo o guarda-sol,segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por modo<strong>que</strong> ajuntei uma página à filosofia do Quincas Borba: Humanitasosculou Humanitas... Foi assim <strong>que</strong> os anos me vieramcaindo pelo morro abaixo.Ao sopé <strong>de</strong>tivemo-nos alguns minutos, à espera <strong>de</strong> Damasceno;ele veio dai a pouco ro<strong>de</strong>ado dos apostadores, a comentarcom eles a briga. Um <strong>de</strong>stes, tesoureiro das apostas,distribuia um velho maço <strong>de</strong> notas <strong>de</strong> <strong>de</strong>z tostões, <strong>que</strong> ostriunfadores recebiam duplamente alegres. Quanto <strong>ao</strong>s galos,vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um <strong>de</strong>les trazia acrista tão comida e ensanguentada, <strong>que</strong> vi logo nele o vencido;mas era engano, - o vencido era o outro, <strong>que</strong> não traziacrista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando acusto, esfalfados. Os apostadores, <strong>ao</strong> contrário, vinham alegres,sem embargo das fortes comoções da luta; biografavamos contendores, relembravam as proezas <strong>de</strong> ambos. Eu fuiandando, vexado; Nhã-loló vexadissima.CAPÍTULO 122Uma Intenção Mui FinaO <strong>que</strong> vexava a Nhã-loló era o pai. A facilida<strong>de</strong> com<strong>que</strong> ele se metera com os apostadores punha em relevo antigoscostumes e afinida<strong>de</strong>s sociais, e Nhá-loló chegara atemer <strong>que</strong> tal sogro me parecesse indigno. Era notável a diferença<strong>que</strong> ela fazia <strong>de</strong> si mesma; estudava-se e estudavame.A vida elegante e polida atraía-a, principalmente por<strong>que</strong>lhe parecia o meio mais seguro <strong>de</strong> ajustar as nossas pessoas.Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; <strong>ao</strong> mesmotempo dava-se <strong>ao</strong> esforço <strong>de</strong> mascarar a inferiorida<strong>de</strong> dafamília. Na<strong>que</strong>le dia, porém, a manifestação do pai foi tamanha<strong>que</strong> a entristeceu gran<strong>de</strong>mente. Eu bus<strong>que</strong>i entãodiverti-la do assunto, dizendo-lhe muitas chanças e motes<strong>de</strong> bom-tom; vãos esforços, <strong>que</strong> não a alegravam mais. Eratão profundo o abatimento, tão expressivo o <strong>de</strong>sânimo, <strong>que</strong>eu cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva <strong>de</strong> separar,no meu espírito, a sua causa da causa do pai. Este sentimento pareceu-me <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> elevação; era uma afinida<strong>de</strong>mais entre nós.


- Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar estaflor a este pântano.CAPÍTULO 123O Verda<strong>de</strong>iro CotrimNão obstante os meus quarenta e tantos anos, como euamasse a harmonia da família, entendi não tratar o casamentosem primeiro falar <strong>ao</strong> Cotrim. Ele ouviu-me e respon<strong>de</strong>umeseriamente <strong>que</strong> não tinha opinião em negócio <strong>de</strong> parentesseus. Podiam supor-lhe algum interesse, se acaso louvasseas raras prendas <strong>de</strong> Nhá-loló; por isso calava-se. Mais:estava certo <strong>de</strong> <strong>que</strong> a sobrinha nutria por mim verda<strong>de</strong>irapaixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria negativo.Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhasboas qualida<strong>de</strong>s, - não se fartava <strong>de</strong> as elogiar, como era <strong>de</strong>justiça; e pelo <strong>que</strong> respeita a Nhã-loló, não chegaria jamaisa negar <strong>que</strong> era noiva excelente; mas daí a aconselhar o casamentoia um abismo.- Lavo inteiramente as mãos, concluiu ele.- Mas você achava outro dia <strong>que</strong> eu <strong>de</strong>via casar quantoantes...- Isso é outro negócio. Acho <strong>que</strong> é indispensável casar,principalmente tendo ambições políticas. Saiba <strong>que</strong> na polític<strong>ao</strong> celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não possoter voto, não <strong>que</strong>ro, não <strong>de</strong>vo, não é <strong>de</strong> minha honra. Parece-me<strong>que</strong> Sabina foi além, fazendo-lhe certas confidências,segundo me disse; mas em todo caso ela não é tia carnal <strong>de</strong>Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não... não digo...- Diga.- Não, não digo nada.Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a <strong>que</strong>mnão souber <strong>que</strong> ele possuía um caráter ferozmente honrado.Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos <strong>que</strong> se seguiram<strong>ao</strong> inventário <strong>de</strong> meu pai. Reconheço <strong>que</strong> era um mo<strong>de</strong>lo.Arguiam-no <strong>de</strong> avareza, e cuido <strong>que</strong> tinham razão; mas aavareza é apenas a exageração <strong>de</strong> uma virtu<strong>de</strong>, e as virtu<strong>de</strong>s<strong>de</strong>vem ser como os orçamentos: melhor é o saldo <strong>que</strong> o <strong>de</strong>ficit.Como era muito seco <strong>de</strong> maneiras tinha inimigos, <strong>que</strong> chegavama acusá-lo <strong>de</strong> bárbaro. O único fato alegado neste particularera o <strong>de</strong> mandar com freqüência escravos <strong>ao</strong> calabouço,don<strong>de</strong> eles <strong>de</strong>sciam a escorrer sangue; mas, além <strong>de</strong> <strong>que</strong> elesó mandava os perversos e os fujões, ocorre <strong>que</strong>, tendo longamentecontraban<strong>de</strong>ado em escravos, habituara-se <strong>de</strong> certomodo <strong>ao</strong> trato um pouco mais duro <strong>que</strong> esse gênero <strong>de</strong> negóciore<strong>que</strong>ria, e não se po<strong>de</strong> honestamente atribuir à índoleoriginal <strong>de</strong> um homem o <strong>que</strong> é puro efeito <strong>de</strong> relações sociais.A prova <strong>de</strong> <strong>que</strong> o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-


se no seu amor <strong>ao</strong>s filhos, e na dor <strong>que</strong> pa<strong>de</strong>ceu quando morreuSara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e nãoúnica. Era tesoureiro <strong>de</strong> uma confraria, e irmão <strong>de</strong> várias irmanda<strong>de</strong>s,e até irmão remido <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>stas, o <strong>que</strong> não secoaduna muito com a reputação da avareza; verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong> obenefício não caíra no chão: a irmanda<strong>de</strong> (<strong>de</strong> <strong>que</strong> ele fora juiz),mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito, <strong>de</strong>certo;tinha, por exemplo, o sestro <strong>de</strong> mandar para os jornais a noticia<strong>de</strong> um ou outro beneficio <strong>que</strong> praticava, - sestro repreensívelou não louvável, concordo; mas ele <strong>de</strong>sculpava-sedizendo <strong>que</strong> as boas ações eram contagiosas, quando públicas;razão a <strong>que</strong> se não po<strong>de</strong> negar algum peso. Creio mesmo(e nisto faço o seu maior elogio) <strong>que</strong> ele não praticava, <strong>de</strong>quando em quando, esses benefícios senão com o fim <strong>de</strong>espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito,força é confessar <strong>que</strong> a publicida<strong>de</strong> tornava-se uma condição sine quanon. Em suma, po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ver algumas atenções, mas não <strong>de</strong>viaum real a ninguém.CAPÍTULO 124Vá <strong>de</strong> IntermédioQue há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Nãoobstante, se eu não compusesse este capitulo, pa<strong>de</strong>ceria o leitorum forte abalo, assaz danoso <strong>ao</strong> efeito do livro. Saltar <strong>de</strong>um retrato a um epitáfio, po<strong>de</strong> ser real e comum; o leitor,entretanto, não se refugia no livro, senão para escapar à vida.Não digo <strong>que</strong> este pensamento seja meu; digo <strong>que</strong> há nele umadose <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, e <strong>que</strong>, <strong>ao</strong> menos, a forma é pitoresca. E repito:não é meu.Vá <strong>de</strong> intermédio, e contemos a este propósito <strong>de</strong> umaanedota. Foi no tempo da minha vida parlamentar; éramoscinco; falávamos <strong>de</strong> coisas e lousas, e aconteceu tocar nosnegócios do Rio da Prata. Então, disse um: - O governonão <strong>de</strong>ve es<strong>que</strong>cer <strong>que</strong> o dinheiro é o nervo da guerra. Ao<strong>que</strong> eu redargüi <strong>que</strong> não, <strong>que</strong> o nervo da guerra eram os bonssoldados. Um dos ouvintes coçou o nariz, outro consultou orelógio, o terceiro tamborilou sobre o joelho, o quarto <strong>de</strong>ualgumas pernadas pela sala, o quinto era eu. Mas, continuandoa falar, pon<strong>de</strong>rei <strong>que</strong> esta idéia, inteiramente justa, nãoera minha, e sim <strong>de</strong> Machiavelli; circunstância <strong>que</strong> levou oprimeiro a não coçar o nariz, o segundo a não consultar orelógio, o terceiro a não tamborilar sobre o joelho, e o quartoa não dar pernadas; e todos me ro<strong>de</strong>aram, e me pediram<strong>que</strong> repetisse o dito, e repeti, e eles extasiavam-se, e batiamcom a cabeça aprovando, saboreando, <strong>de</strong>corando. O <strong>que</strong>estimei, por<strong>que</strong> fui sempre amador <strong>de</strong> idéias justas. Mas vamos<strong>ao</strong> epitáfio.


CAPÍTULO 125Epitáfio--------------------------AQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENADE BRITO MORTAAOS DEZENOVE ANOS DE IDADEORAI POR ELA!--------------------------CAPÍTULO 126DesconsolaçãoO epitáfio diz tudo. Vale mais do <strong>que</strong> se lhes narrasse amoléstia <strong>de</strong> Nhã-loló, a morte, o <strong>de</strong>sespero da família, oenterro. Ficam sabendo <strong>que</strong> morreu; acrescentarei <strong>que</strong> foi por ocasião daprimeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a nãoser <strong>que</strong> a acompanhei até o último jazigo, e me <strong>de</strong>spedi triste,mas sem lágrimas. Concluí <strong>que</strong> talvez não a amasse <strong>de</strong>veras.Vejam agora a <strong>que</strong> excessos po<strong>de</strong> levar uma inadvertência;doeu-me um pouco a cegueira da epi<strong>de</strong>mia <strong>que</strong>, matandoà direita e à es<strong>que</strong>rda, levou também uma jovem dama,<strong>que</strong> tinha <strong>de</strong> ser minha mulher; e não cheguei a enten<strong>de</strong>r anecessida<strong>de</strong> da epi<strong>de</strong>mia, e menos ainda da<strong>que</strong>la morte. Creioaté <strong>que</strong> esta me pareceu ainda mais absurda <strong>que</strong> todas as outrasmortes. O Quincas Borba, porém, explicou-me <strong>que</strong> epi<strong>de</strong>miaseram úteis à espécie, embora <strong>de</strong>sastrosas para umacerta porção <strong>de</strong> indivíduos; e fez-me notar <strong>que</strong>, por mais horrendo<strong>que</strong> fosse o espetáculo, havia uma vantagem <strong>de</strong> muitopeso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntarmese, no meio do luto geral, não sentia eu algum secretoencanto em ter escapado às garras da peste; mas esta perguntaera tão insensata, <strong>que</strong> ficou sem resposta.Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do sétimodia. A tristeza <strong>de</strong> Damasceno era profunda; esse pobre homemparecia uma ruína. Quinze dias <strong>de</strong>pois estive com ele; continuavainconsolável, e dizia <strong>que</strong> a dor gran<strong>de</strong> com <strong>que</strong> Deus ocastigara fora ainda aumentada com a <strong>que</strong> lhe infligiram os homens.Não me disse mais nada. Três semanas <strong>de</strong>pois tornou <strong>ao</strong>assunto, e então confessou-me <strong>que</strong>, no meio do <strong>de</strong>sastre irreparável,quisera ter a consolação da presença dos amigos. Dozepessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim, acompanharamà cova o cadáver <strong>de</strong> sua <strong>que</strong>rida filha. E ele fizera expediroitenta convites. Pon<strong>de</strong>rei-lhe <strong>que</strong> as perdas eram tão gerais<strong>que</strong> bem se podia <strong>de</strong>sculpar essa <strong>de</strong>satenção aparente. Damascenoabanava a cabeça <strong>de</strong> um modo incrédulo e triste.


- Qual! gemia ele, <strong>de</strong>sampararam-me.Cotrim, <strong>que</strong> estava presente:- Vieram os <strong>que</strong> <strong>de</strong>veras se interessam por você e pornós. Os oitenta viriam por formalida<strong>de</strong>, falariam da inérciado governo, das panacéias dos boticários, do preço das casas,ou uns dos outros...Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, esuspirou:- Mas viessem!CAPÍTULO 127Formalida<strong>de</strong>Gran<strong>de</strong> coisa é haver recebido do céu uma partícula dasabedoria, o dom <strong>de</strong> achar as relações das coisas, a faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> as comparar e o talento <strong>de</strong> concluir! Eu tive essa distinçãopsíquica; eu a agra<strong>de</strong>ço ainda agora do fundo do meu sepulcro.De fato, o homem vulgar <strong>que</strong> ouvisse a última palavra doDamasceno, não se lembraria <strong>de</strong>la, quando, tempos <strong>de</strong>pois,houvesse <strong>de</strong> olhar para uma gravura representando seis damasturcas. Pois eu lembrei-me. Eram seis damas <strong>de</strong> Constantinopla,- mo<strong>de</strong>rnas, - em trajos <strong>de</strong> rua, cara tapada, não tapada <strong>ao</strong>utra maneira, com um espesso pano <strong>que</strong> as cobrisse <strong>de</strong>veras,mas com um véu tenuíssimo, <strong>que</strong> simulava <strong>de</strong>scobrir somenteos olhos, e na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobria a cara inteira. E eu acheigraça a essa esperteza da faceirice muçulmana, <strong>que</strong> assim escon<strong>de</strong>o rosto, - e cumpre o uso, - mas não o escon<strong>de</strong>, - e divulgaa beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e oDamasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (eduvido muito <strong>que</strong> me negues isso), compreen<strong>de</strong>rás <strong>que</strong>, tantonum como noutro caso, surge aí a orelha <strong>de</strong> uma rígida e meigacompanheira do homem social...Amável Formalida<strong>de</strong>, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamodos corações, a medianeira entre os homens, o vínculo daterra e do céu; tu enxugas as lágrimas <strong>de</strong> um pai, tu captas aindulgência <strong>de</strong> um Profeta; se a dor adormece, e a consciênciase acomoda, a <strong>que</strong>m, senão a ti, <strong>de</strong>verão esse imenso benefício?A estima <strong>que</strong> passa <strong>de</strong> chapéu na cabeça não diz nada àalma; mas a indiferença <strong>que</strong> corteja <strong>de</strong>ixa-lhe uma <strong>de</strong>leitosaimpressão. A razão é <strong>que</strong>, <strong>ao</strong> contrário <strong>de</strong> uma velha fórmulaabsurda, não é a letra <strong>que</strong> mata; a letra dá vida; o espírito é<strong>que</strong> é objeto <strong>de</strong> controvérsia, <strong>de</strong> dúvida, <strong>de</strong> interpretação, e conseguintemente<strong>de</strong> luta e <strong>de</strong> morte. Vive tu, amável Formalida<strong>de</strong>,para sossego do Damasceno e glória <strong>de</strong> Muhammed.CAPÍTULO 128Na Câmara


E notai bem <strong>que</strong> eu vi a gravura turca, dois anos <strong>de</strong>pois daspalavras <strong>de</strong> Damasceno, e via-a na Câmara dos Deputados, emmeio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> burburinho, enquanto um <strong>de</strong>putado discutia umparecer da comissão do orçamento, sendo eu também <strong>de</strong>putado.Para <strong>que</strong>m há lido este livro é escusado encarecer a minhasatisfação, e para os outros é igualmente inútil. Era <strong>de</strong>putado,e vi a gravura turca, recostado na minha ca<strong>de</strong>ira, entre um colega<strong>que</strong> contava uma anedota, e outro, <strong>que</strong> tirava a lápis, nas costas<strong>de</strong> urna sobrecarta, o perfil do orador. O orador era o Lobo Neves.A onda da vida trouxe-nos à mesma praia, como duasbotelhas <strong>de</strong> náufragos, ele contendo o seu ressentimento, eu<strong>de</strong>vendo conter o meu remorso; e emprego esta forma suspensiva,dubitativa ou condicional, para o fim <strong>de</strong> dizer <strong>que</strong> efetivamentenão continha nada, a não ser a ambição <strong>de</strong> ser ministro.CAPÍTULO 129Sem RemorsosNão tinha remorsos. Se possuísse os aparelhos próprios,incluía neste livro uma página <strong>de</strong> química, por<strong>que</strong> havia <strong>de</strong><strong>de</strong>compor o remorso até os mais simples elementos, com o fim<strong>de</strong> saber, <strong>de</strong> um modo positivo e conclu<strong>de</strong>nte, por <strong>que</strong> razãoAquiles passeia roda <strong>de</strong> Tróia o cadáver do adversário, e ladyMacbeth passeia à volta da sala a sua mancha <strong>de</strong> sangue. Maseu não tenho aparelhos químicos, como não tinha remorsos;tinha vonta<strong>de</strong> ser ministro <strong>de</strong> Estado. Contudo, se hei <strong>de</strong>acabar este capítulo, direi <strong>que</strong> não quisera ser Aquiles nemlady Macbeth; e <strong>que</strong>, a ser alguma coisa, antes Aquiles, antespassear ovante o cadáver do <strong>que</strong> a mancha; ouvem-se no fimas súplicas do Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militare literária. Eu não ouvia as súplicas <strong>de</strong> Príamo, mas o discursodo Lobo Neves, e não tinha remorsos.CAPÍTULO 130Para Intercalar no Capítulo 129A primeira vez <strong>que</strong> pu<strong>de</strong> falar a Virgília, <strong>de</strong>pois da presidência,foi num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido <strong>de</strong>gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par <strong>de</strong> ombros <strong>de</strong>outro tempo. Não era a frescura da primeira ida<strong>de</strong>; <strong>ao</strong> contráno;mas ainda estava formosa, <strong>de</strong> uma formosura outoniça,realçada pela noite. Lembra-me <strong>que</strong> falamos muito; e lembrame<strong>que</strong> não aludíamos a coisa nenhuma do passado. Subentendia-setudo. Um dito remoto, vago, ou então um olhar, emais coisa nenhuma. Pouco <strong>de</strong>pois, retirou-se; eu fui vê-la <strong>de</strong>s-


cer as escadas, e não sei por <strong>que</strong> fenômeno <strong>de</strong> ventriloquismocerebral (perdoem-me os filólogos essa frase bárbara) murmureicomigo esta palavra profundamente retrospectiva:- Magnífica!Convém intercalar este capítulo entre a primeira oraçãoe a segunda do capitulo 129.CAPÍTULO 131De Uma CalúniaComo eu acabava <strong>de</strong> dizer aquilo, pelo processo ventrílococerebral,- o <strong>que</strong> era simples opinião e não remorso, - senti<strong>que</strong> alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era umantigo companheiro, oficial <strong>de</strong> marinha, jovial, um pouco <strong>de</strong>spejado<strong>de</strong> maneiras. Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:- Seu maganão! Recordações do passado, hem?- Viva o passado!- Você naturalmente foi reintegrado no emprego.- Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o <strong>de</strong>do.Confesso <strong>que</strong> este diálogo era uma indiscrição, - principalmentea última réplica. E com tanto maior prazer o confesso,quanto <strong>que</strong> as mulheres é <strong>que</strong> têm fama <strong>de</strong> indiscretas,e não <strong>que</strong>ro acabar o livro sem retificar essa noção do espíritohumano. Em pontos <strong>de</strong> aventura amorosa, achei homens <strong>que</strong>sorriam; ou negavam a custo, <strong>de</strong> um modo frio, monossilábico,etc., <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> as parceiras não davam por si, e jurariam<strong>ao</strong>s Santos Evangelhos <strong>que</strong> era tudo uma calúnia. A razão<strong>de</strong>sta diferença é <strong>que</strong> a mulher (salva a hipótese do capítulo101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão <strong>de</strong>Stendhal, ou o puramente físico <strong>de</strong> algumas damas romanas,por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong>outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem <strong>de</strong>uma socieda<strong>de</strong> culta e elegante - o homem conjuga a suavaida<strong>de</strong> <strong>ao</strong> outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre<strong>ao</strong>s casos <strong>de</strong>fesos), a mulher, quando ama outro homem,parece-lhe <strong>que</strong> mente a um <strong>de</strong>ver, e portanto tem <strong>de</strong> dissimularcom arte maior, tem <strong>de</strong> refinar a aleivosia; <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> ohomem, sentindo-se causa da infração e vencedor <strong>de</strong> outrohomem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outrosentimento menos ríspido e menos secreto, - essa meiga fatuida<strong>de</strong><strong>que</strong> é a transpiração luminosa do mérito.Mas seja ou não verda<strong>de</strong>ira a minha explicação, basta-me<strong>de</strong>ixar escrito nesta página, para uso dos óculos, <strong>que</strong> a indiscriçãodas mulheres é uma burla inventada pelos homens; emamor, pelo menos, elas são um verda<strong>de</strong>iro sepulcro. Per<strong>de</strong>msemuita vez por <strong>de</strong>sastradas, por inquietas, por não saberemresistir <strong>ao</strong>s gestos, <strong>ao</strong>s olhares; e é por isso <strong>que</strong> uma gran<strong>de</strong>dama e fino espírito, a rainha <strong>de</strong> Navarra, empregou alguresesta metáfora para dizer <strong>que</strong> toda a aventura amorosa vinha a


<strong>de</strong>scobrir-se por força, mais tar<strong>de</strong> ou mais cedo: "Não há cachorrinhotão a<strong>de</strong>strado, <strong>que</strong> alfim lhe não ouçamos o latir."CAPÍTULO 132Que Não É SérioCitando o dito da rainha <strong>de</strong> Navarra, ocorre-me <strong>que</strong> entreo nosso povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada,costuma perguntar-lhe: "Gentes, <strong>que</strong>m matou seus cachorrinhos?"como se disesse: - "<strong>que</strong>m lhe levou os amores, asaventuras secretas, etc." Mas este capítulo não é sério.CAPÍTULO 133O Princípio <strong>de</strong> HelvetiusEstávamos no ponto em <strong>que</strong> o oficial <strong>de</strong> marinha me arrancoua confissão dos amores <strong>de</strong> Virgília, e aqui emendo euo princípio <strong>de</strong> Helvetius, - ou, por outra, explico-o. O meuinteresse era calar; confirmar a suspeita <strong>de</strong> uma coisa antigafora provocar algum ódio supitado, dar origem a um escândalo,quando menos adquirir a reputação <strong>de</strong> indiscreto. Era esseo interesse; e enten<strong>de</strong>ndo-se o princípio <strong>de</strong> Helvetius <strong>de</strong> ummodo superficial, isso é o <strong>que</strong> <strong>de</strong>via ter feito. Mas eu já <strong>de</strong>i omotivo da indiscrição masculina: antes da<strong>que</strong>le interesse <strong>de</strong>segurança, havia outro, o do <strong>de</strong>svanecimento, <strong>que</strong> é mais íntimo,mais imediato: o primeiro era reflexo, supunha um silogismoanterior; o segundo era espontâneo, instintivo, vinhadas entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeitoremoto, o segundo próximo. Conclusão: o princípio <strong>de</strong>Helvetius é verda<strong>de</strong>iro no meu caso; - a diferença é <strong>que</strong> nãoera o interesse aparente, mas o recôndito.CAPÍTULO 134Cinqüenta AnosNão lhes disse ainda, - mas digo-o agora, - <strong>que</strong> quandoVirgília <strong>de</strong>scia a escada, e o oficial <strong>de</strong> marinha me tocavano ombro, tinha eu cinqüenta anos. Era portanto a minha vida<strong>que</strong> <strong>de</strong>scia pela escada abaixo, - ou a melhor parte, <strong>ao</strong> menos,uma parte cheia <strong>de</strong> prazeres, <strong>de</strong> agitações, <strong>de</strong> sustos, -capeada <strong>de</strong> dissimulação e duplicida<strong>de</strong>, - mas enfim a melhor,se <strong>de</strong>vemos falar a linguagem usual. Se, porém, empregamosoutra sublime, a melhor parte foi a restante, como eu


terei honra <strong>de</strong> lhes dizer nas poucas páginas <strong>de</strong>ste livro.Cin<strong>que</strong>nta anos! Não era preciso confessá-lo. já se vaisentindo <strong>que</strong> o meu estilo não é tão lesto como os primeirosdias. Na<strong>que</strong>la ocasião, cessado o diálogo com o oficial <strong>de</strong>marinha, <strong>que</strong> enfiou a capa e saiu, confesso <strong>que</strong> fi<strong>que</strong>i umpouco triste. Voltei à sala, lembrou-me dançar uma polca,embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos,e do burburinho surdo e ligeiro das conversas particulares.E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora <strong>de</strong>pois,quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o <strong>que</strong> é <strong>que</strong>fui achar no fundo do carro? Os meus cinqüenta anos. Lá estavameles os teimosos, não tolhidos <strong>de</strong> frio, nem reumáticos,- mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos <strong>de</strong> camae <strong>de</strong> repouso. Então, - e vejam até <strong>que</strong> ponto po<strong>de</strong> ir a imaginação<strong>de</strong> um homem, com sono, - então pareceu-me ouvir<strong>de</strong> um morcego encarapitado no tejadilho: Senhor BrásCubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes,nas sedas, - enfim, nos outros.CAPÍTULO 135OblivionE agora sinto <strong>que</strong>, se alguma dama tem seguido estas páginas,fecha o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiuseo interesse da minha vida, <strong>que</strong> era o amor. Cinqüentaanos! Não é ainda a invali<strong>de</strong>z, mas já não é a frescura. Venhammais <strong>de</strong>z, e eu enten<strong>de</strong>rei o <strong>que</strong> um inglês dizia, enten<strong>de</strong>rei<strong>que</strong> "coisa é não achar já <strong>que</strong>m se lembre <strong>de</strong> meuspais, e <strong>de</strong> <strong>que</strong> modo me há <strong>de</strong> encarar o próprio ESQUECI-MENTO".Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é <strong>que</strong> sedêem todas as honras a um personagem tão <strong>de</strong>sprezado e tãodigno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama<strong>que</strong> luziu na aurora do atual reinado, e mais dolorosamentea <strong>que</strong> ostentou suas graças em flor sob o ministério Paraná,por<strong>que</strong> esta acha-se mais perto do triunfo, e sente já <strong>que</strong>outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna <strong>de</strong> si mesma,não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; nãobusca no olhar <strong>de</strong> hoje a mesma saudação do olhar <strong>de</strong> ontem,quando eram outros os <strong>que</strong> encetavam a marcha davida, <strong>de</strong> alma alegre e pé veloz. Tempora mutantur. E elacompreen<strong>de</strong>rá <strong>que</strong> este turbilhão é assim mesmo, leva asfolhas do mato e o farrapos do caminho, sem exceção nempieda<strong>de</strong>; e se tiver um pouco <strong>de</strong> filosofia, não invejará, maslastimará as <strong>que</strong> lhe tomaram o carro, por<strong>que</strong> também elashão <strong>de</strong> ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo,cujo fim é divertir o planeta Saturno, <strong>que</strong> anda muito aborrecido.


CAPÍTULO 136Inutilida<strong>de</strong>Mas, ou muito me engano, ou acabo <strong>de</strong> escrever um capítuloinútil.CAPÍTULO 137A BarretinaE daí, não; ele resume as reflexões <strong>que</strong> fiz no dia seguinte<strong>ao</strong> Quincas Borba, acrescentando <strong>que</strong> me sentia acabrunhado,e mil outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevadotino <strong>de</strong> <strong>que</strong> dispunha, bradou-me <strong>que</strong> eu ia escorregandona la<strong>de</strong>ira fatal da melancolia.- Meu caro Brás Cubas, não te <strong>de</strong>ixes vencer <strong>de</strong>sses vapores.Que diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer!brilhar! influir! dominar! Cinqüenta anos é a ida<strong>de</strong> daciência e do governo. Ânimo, Brás Cubas; não me sejas palerma.Que tens tu com essa sucessão <strong>de</strong> ruína ou <strong>de</strong> flor a flor? Trata<strong>de</strong> saborear a vida; e fica sabendo <strong>que</strong> a pior filosofia é a dochoramingas <strong>que</strong> se <strong>de</strong>ita à margem do rio para o fim <strong>de</strong> lastimaro curso incessante das águas. O ofício <strong>de</strong>las é não pararnunca; acomoda-te com a lei, e trata <strong>de</strong> aproveitá-la.Vê-se nas menores coisas o <strong>que</strong> vale a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umgran<strong>de</strong> filósofo. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão<strong>de</strong> sacudir o torpor moral e mental em <strong>que</strong> andava. Vamoslá; façamo-nos governo. Crê-lo-eis pósteros? Eu não haviaintervindo até então nos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>bates. Cortejava a pastapor meio <strong>de</strong> rapapés, chás, comissões <strong>de</strong> votos; e a pasta nãovinha. Urgia apo<strong>de</strong>rar-me da tribuna.Comecei <strong>de</strong>vagar. Três dias <strong>de</strong>pois, discutindo-se o orçamentoda Justiça, aproveitei o ensejo para perguntar mo<strong>de</strong>stamente<strong>ao</strong> ministro se não julgava útil diminuir a barretinana guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta;mas ainda assim <strong>de</strong>monstrei <strong>que</strong> não era indigno dascogitações <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> Estado; e citei Filopêmen, <strong>que</strong>or<strong>de</strong>nou a substituição dos broquéis <strong>de</strong> suas tropas, <strong>que</strong> erampe<strong>que</strong>nos, por outros maiores, e bem assim as lanças, <strong>que</strong> eram<strong>de</strong>masiado leves; fato <strong>que</strong> a história não achou <strong>que</strong> <strong>de</strong>smentissea gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas páginas. O tamanho das nossasbarretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem<strong>de</strong>selegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nasparadas, <strong>ao</strong> sol, o excesso do calor produzido por elas podiaser fatal. Sendo certo <strong>que</strong> um dos preceitos <strong>de</strong> Hipócrates eratrazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um cidadão, porsimples consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> uniforme, a arriscar a saú<strong>de</strong> e a vida,e conseqüentemente o futuro da família. A Câmara e o Go-


verno <strong>de</strong>viam lembrar-se <strong>que</strong> a Guarda Nacional era o anteparoda liberda<strong>de</strong> e da in<strong>de</strong>pendência, e <strong>que</strong> o cidadão, chamadoa um serviço gratuito, freqüente e penoso, tinha direitoa <strong>que</strong> se lhe diminuísse o ônus, <strong>de</strong>cretando um uniforme levee maneiro. Acrescia <strong>que</strong> a barretina, por seu peso, abatia acabeça dos cidadãos, e a pátria precisava <strong>de</strong> cidadãos cuja frontepu<strong>de</strong>sse levantar-se altiva e serena diante do po<strong>de</strong>r; e concluicom esta idéia; o chorão, <strong>que</strong> inclina os seus galhos paraa terra, é árvore <strong>de</strong> cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvoredo <strong>de</strong>serto, das praças e dos jardins.Vária foi a impressão <strong>de</strong>ste discurso. Quanto à forma, <strong>ao</strong>rapto eloqüente, à parte literária e filosófica, a opinião foisó uma; disseram-me todos <strong>que</strong> era completo, e <strong>que</strong> <strong>de</strong> umabarretina ninguém ainda conseguira tirar tantas idéias. Mas aparte política foi consi<strong>de</strong>rada por muitos <strong>de</strong>plorável; algunsachavam o meu discurso um <strong>de</strong>sastre parlamentar; enfim, vieramdizer-me <strong>que</strong> outros me davam já em oposição, entrandonesse número os oposicionistas da câmara, <strong>que</strong> chegaram ainsinuar a convivência <strong>de</strong> uma moção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança. Repelienergicamente tal interpretação, <strong>que</strong> não era só errônea,mas caluniosa, à vista da notorieda<strong>de</strong> com <strong>que</strong> eu sustentav<strong>ao</strong> Gabinete; acrescentei <strong>que</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diminuir abarretina não era tamanha <strong>que</strong> não pu<strong>de</strong>sse esperar algunsanos; e <strong>que</strong>, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte,contentando-me com três quartos <strong>de</strong> polegada ou menos;enfim; dado mesmo <strong>que</strong> a minha idéia não fosse adotada,bastava-me tê-la iniciado no parlamento.O Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Nãosou homem político, disse-me ele <strong>ao</strong> jantar; não sei se andastebem ou mal; sei <strong>que</strong> fizeste um excelente discurso. E entãonotou as partes mais salientes, as belas imagens, os argumentosfortes, com esse comedimento <strong>de</strong> louvor <strong>que</strong> tão bem ficaa um gran<strong>de</strong> filósofo; <strong>de</strong>pois, tomou o assunto à sua conta, eimpugnou a barretina com tal força, com tamanha luci<strong>de</strong>z,<strong>que</strong> acabou convencendo-me efetivamente do seu perigo.CAPÍTULO 138A Um CríticoMeu caro crítico,Algumas páginas atrás, dizendo eu <strong>que</strong> tinha cinqüentaanos, acrescentei: "Já se vai sentindo <strong>que</strong> o meu estilo não étão lesto como nos primeiros dias." Talvez aches esta fraseincompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas euchamo a tua atenção para a sutileza da<strong>que</strong>le pensamento.O <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ro dizer não é <strong>que</strong> esteja agora mais velho do<strong>que</strong> quando comecei o livro. A morte não envelhece. Querodizer, sim, <strong>que</strong> em cada fase da narração da minha vidaexperimento a sensação correspon<strong>de</strong>nte. Valha-me Deus! é


preciso explicar tudo.CAPÍTULO 139De Como Não Fui Ministro d'Estado....................................................................................................................................................................................CAPÍTULO 140Que Explica o AnteriorHá coisas <strong>que</strong> melhor se dizem calando; tal é a matériado capítulo anterior. Po<strong>de</strong>m entendê-lo os ambiciosos malogrados.Se a paixão do po<strong>de</strong>r é a mais forte <strong>de</strong> todas, comoalguns inculcam, imaginem o <strong>de</strong>sespero, a dor, o abatimentodo dia em <strong>que</strong> perdi a ca<strong>de</strong>ira da Câmara dos Deputados. Iamse-meas esperanças todas; terminava a carreira política. Enotem <strong>que</strong> o Quincas Borba, por induções filosóficas <strong>que</strong> fez,achou <strong>que</strong> a minha ambição não era a paixão verda<strong>de</strong>ira dopo<strong>de</strong>r, mas um capricho, um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> folgar. Na opinião <strong>de</strong>le,este sentimento, não sendo mais profundo <strong>que</strong> o outro, amofinamuito mais, por<strong>que</strong> orça pelo amor <strong>que</strong> as mulheres têmàs rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentavaele, por isso mesmo <strong>que</strong> os <strong>que</strong>ima a paixão do po<strong>de</strong>r,lá chegam à fina força ou pela escada da direita, ou pela daes<strong>que</strong>rda. Não era assim o meu sentimento; este, não tendoem si a mesma força, não tem a mesma certeza do resultado;e dai a maior aflição, o maior <strong>de</strong>sencanto, a maior tristeza. Omeu sentimento, segundo o Humanitismo...- Vai para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o;estou farto <strong>de</strong> filosofias <strong>que</strong> me não levam a coisa nenhuma.A dureza da interrupção, tratando-se <strong>de</strong> tamanho filósofo,equivalia a um <strong>de</strong>scaso; mas ele próprio <strong>de</strong>sculpou a irritaçãocom <strong>que</strong> lhe falei. Trouxeram-nos café; era uma hora da tar<strong>de</strong>, estávamosna minha sala <strong>de</strong> estudo, uma bela sala, <strong>que</strong> dava para ofundo da chácara, bons livros, objetos d'arte, um Voltaire entreeles, um Voltaire <strong>de</strong> bronze, <strong>que</strong> nessa ocasião parecia acentuaro risinho <strong>de</strong> sarcasmo, com <strong>que</strong> me olhava, o ladrão; ca<strong>de</strong>irasexcelentes; fora, o sol, um gran<strong>de</strong> sol, <strong>que</strong> o Quincas Borba, nãosei se por chalaça ou poesia, chamou um dos ministros da natureza;corria um vento fresco, o céu estava nitidamente azul. Decada janela, - eram três - pendia uma gaiola com pássaros,<strong>que</strong> chilreavam as suas óperas rústicas. Tudo tinha a aparência<strong>de</strong> uma conspiração das coisas contra o homem; e, conquantoeu estivesse na minha sala, olhando para a minha chácara, senta-


do na minha ca<strong>de</strong>ira, ouvindo meus pássaros <strong>ao</strong> pé dos meus livros,alumiado pelo meu sol, não chegava a curar-me das sauda<strong>de</strong>sda<strong>que</strong>la outra ca<strong>de</strong>ira, <strong>que</strong> não era minha.CAPÍTULO 141Os Cães- Mas, enfim, <strong>que</strong> preten<strong>de</strong>s fazer agora? perguntou-meo Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito <strong>de</strong> umadas janelas.- Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir <strong>ao</strong>s homens.Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caroBorba, tantos sonhos, e não sou nada.- Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto<strong>de</strong> indignação.Para distrair-me, convidou-me a sair; saimos para os ladosdo Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas.Nunca me há <strong>de</strong> es<strong>que</strong>cer o benefício <strong>de</strong>sse passeio, <strong>que</strong> merestituiu o sossego e a força. A palavra da<strong>que</strong>le gran<strong>de</strong> homemera o cordial da sabedoria. Disse-me ele <strong>que</strong> eu não podiafugir <strong>ao</strong> combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-meabrir um jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada,mostrando assim <strong>que</strong> a língua filosófica podia, uma ou outravez, retemperar-se no calão do povo. Funda um jornal, dissemeele, e "<strong>de</strong>smancha toda esta igrejinha".- Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachálos,vou...- Lutar. Po<strong>de</strong>s escachá-los ou não; o essencial é <strong>que</strong> lutes.Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro doorganismo universal.Daí a pouco <strong>de</strong>mos com uma briga <strong>de</strong> cães; fato <strong>que</strong> <strong>ao</strong>solhos <strong>de</strong> um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fezmeparar e observar os cães. Eram dois. Notou <strong>que</strong> <strong>ao</strong> pé <strong>de</strong>lesestava um osso, motivo da guerra, e não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> chamar aminha atenção para a circunstância <strong>de</strong> <strong>que</strong> o osso não tinhacarne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, comfuror nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala <strong>de</strong>baixo dobraço, encostou o <strong>que</strong>ixo no costão e parecia em êxtase.- Que belo <strong>que</strong> isto é! dizia ele <strong>de</strong> quando em quando.Quis arrancar-me dali, mas não pu<strong>de</strong>; ele estava arraigado<strong>ao</strong> chão, e só continuou a andar, quando a briga cessouinteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar asua fome a outra parte. Notei <strong>que</strong> ficara sinceramente alegre,posto contivesse a alegria, segundo convinha a um gran<strong>de</strong> filósofo.Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou oobjeto da luta, concluiu <strong>que</strong> os cães tinham fome; mas a privaçãodo alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia.Nem <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> recordar <strong>que</strong> em algumas partes do globo o


espetáculo é mais grandioso; as criaturas humanas é <strong>que</strong> disputam<strong>ao</strong>s cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis;luta <strong>que</strong> se complica muito, por<strong>que</strong> entra em ação a inteligênciado homem, com todo o acúmulo <strong>de</strong> sagacida<strong>de</strong> <strong>que</strong>lhe <strong>de</strong>ram os séculos, etc.CAPÍTULO 142O Pedido SecretoQuanta coisa num minuete! como dizia o outro. Quantacoisa numa briga <strong>de</strong> cães! Mas eu não era um discípulo servilou medroso, <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> fazer uma ou outra objeção a<strong>de</strong>quada.Andando, disse-lhe <strong>que</strong> tinha uma dúvida; não estavabem certo da vantagem <strong>de</strong> disputar a comida <strong>ao</strong>s cães. Elerespon<strong>de</strong>u-me com excepcional brandura:- Disputá-la <strong>ao</strong>s outros homens é mais lógico, por<strong>que</strong> acondição dos contendores é a mesma, e leva o osso o <strong>que</strong> formais forte. Mas por <strong>que</strong> não será um espetáculo grandiosodisputá-lo <strong>ao</strong>s cães? Voluntariamente, comem-se gafanhotos,como o Precursor, ou coisa pior, como Ezequiel; logo, o ruimé comível; resta saber se é mais digno do homem disputá-lo,por virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> natural, ou preferi-lo, par<strong>ao</strong>be<strong>de</strong>cer a uma exaltação religiosa, isto é, modificável, <strong>ao</strong>passo <strong>que</strong> a fome é eterna, como a vida e como a morte.Estávamos à porta <strong>de</strong> casa; <strong>de</strong>ram-me uma carta, dizendo<strong>que</strong> vinha <strong>de</strong> uma senhora. Entramos, e o Quincas Borba, coma discrição própria <strong>de</strong> um filósofo, foi ler a lombada dos livros<strong>de</strong> uma estante, enquanto eu lia a carta, <strong>que</strong> era <strong>de</strong> Virgília:"Meu bom amigo,Dona Plácida está muito mal. Peço-lhe o favor <strong>de</strong> fazeralguma coisa por ela; mora no Beco das Escadinhas; veja sealcança metê-la na Misericórdia.Sua amiga sincera, "Não era a letra fina e correta <strong>de</strong> Virgília, mas grossa e<strong>de</strong>sigual; o V da assinatura não passava <strong>de</strong> um rabisco semintenção alfabética; <strong>de</strong> maneira <strong>que</strong>, se a carta aparecesse, eramui difícil atribuir-lhe a autoria. Virei e revirei o papel.Pobre Dona Plácida! Mas eu tinha-lhe <strong>de</strong>ixado os cinco contos dapraia da Gamboa, e não podia compreen<strong>de</strong>r <strong>que</strong>...- Vais compreen<strong>de</strong>r, disse Quincas Borba, tirando umlivro da estante.- O quê? perguntei espantado.- Vais compreen<strong>de</strong>r <strong>que</strong> eu só te disse a verda<strong>de</strong>. Pascalé um dos meus avós espirituais; e, conquanto a minha filosofiavalha mais <strong>que</strong> a <strong>de</strong>le, não posso negar <strong>que</strong> era um gran<strong>de</strong>homem. Ora, <strong>que</strong> diz ele nesta página? - E, chapéu na cabeça,bengala sobraçada, apontava o lugar com o <strong>de</strong>do. - Quediz ele? Diz <strong>que</strong> o homem tem "uma gran<strong>de</strong> vantagem sobre o


esto do universo: sabe <strong>que</strong> morre, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> o universoignora-o absolutamente". Vês? Logo, o homem <strong>que</strong> disputa oosso a um cão tem sobre este a gran<strong>de</strong> vantagem <strong>de</strong> saber <strong>que</strong>tem fome; e é isto <strong>que</strong> torna grandiosa a luta, como eu dizia."Sabe <strong>que</strong> morre" é uma expressão profunda; creio todavia<strong>que</strong> é mais profunda a minha expressão: sabe <strong>que</strong> tem fome.Porquanto, o fato da morte limita, por assim dizer, o entendimentohumano; a consciência da extinção dura um breveinstante e acaba para nunca mais, <strong>ao</strong> passo <strong>que</strong> a fome tem avantagem <strong>de</strong> voltar, <strong>de</strong> prolongar o estado consciente. Parece-me(se não vai nisso alguma imodéstia), <strong>que</strong> a fórmula <strong>de</strong>Pascal é inferior à minha, sem todavia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um gran<strong>de</strong>pensamento, e Pascal um gran<strong>de</strong> homem.CAPÍTULO 143Não VouEnquanto ele restituia o livro à estante, relia eu o bilhete.Ao jantar, vendo <strong>que</strong> eu falava pouco, mastigava sem acabar<strong>de</strong> engolir, fitava o canto da sala, a ponta da mesa, umprato, uma ca<strong>de</strong>ira, uma mosca invisível, disse-me ele: -Tensalguma coisa; aposto <strong>que</strong> foi a<strong>que</strong>la carta? - Foi. Realmente,sentia-me aborrecido, incomodado, com o pedido <strong>de</strong> Virgília.Tinha dado a Dona Plácida cinco contos <strong>de</strong> réis; duvido muito<strong>que</strong> ninguém fosse mais generoso do <strong>que</strong> eu, nem tanto. Cincocontos! E <strong>que</strong> fizera <strong>de</strong>les? Naturalmente botou-os fora,comeu-os em gran<strong>de</strong>s festas, e agora roca para a Misericórdia,e eu <strong>que</strong> a leve! Morre-se em qual<strong>que</strong>r parte. Acresce<strong>que</strong> eu não sabia ou não me lembrava do tal Beco das Escadinhas;mas, pelo nome, parecia-me algum recanto estreito eescuro da cida<strong>de</strong>. Tinha <strong>de</strong> lá ir, chamar a atenção dos vizinhos,bater à porta, etc. Que maçada! Não vou.CAPÍTULO 144Utilida<strong>de</strong> RelativaMas a noite, <strong>que</strong> é boa conselheira, pon<strong>de</strong>rou <strong>que</strong> a cortesiamandava obe<strong>de</strong>cer <strong>ao</strong>s <strong>de</strong>sejos da minha antiga dama.- Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu <strong>ao</strong> levantar-me.Depois do almoço fui à casa <strong>de</strong> Dona Plácida; achei ummolho <strong>de</strong> ossos, envolto em molambos, estendido sobre umcatre velho e nauseabundo; <strong>de</strong>i-lhe algum dinheiro. No diaseguinte fi-la transportar para a Misericórdia; on<strong>de</strong> ela morreuuma semana <strong>de</strong>pois. Minto: amanheceu morta; saiu davida às escondidas, tal qual entrara. Outra vez perguntei, amim mesmo, como no capítulo 75, se era para isto <strong>que</strong> o sacristãoda Sé e a doceira trouxeram Dona Plácida à luz, num


momento <strong>de</strong> simpatia específica. Mas adverti logo <strong>que</strong>, se nãofosse Dona Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessemsido interrompidos, ou imediatamente <strong>que</strong>brados, emplena efervescência; tal foi, portanto, a utilida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong>Dona Plácida. Utilida<strong>de</strong> relativa, convenho; mas <strong>que</strong> diachohá absoluto nesse mundo?CAPÍTULO 145Simples RepetiçãoQuanto <strong>ao</strong>s cinco contos, não vale a pena dizer <strong>que</strong> umcanteiro da vizinhança fingiu-se enamorado <strong>de</strong> Dona Plácida,logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaida<strong>de</strong>, e casou com ela;no fim <strong>de</strong> alguns meses inventou um negócio, ven<strong>de</strong>u as apólicese fugiu com o dinheiro. Não vale a pena. É o caso dos cãesdo Quincas Borba. Simples repetição <strong>de</strong> um capítulo.CAPÍTULO 146O ProgramaUrgia fundar o jornal. Redigi o programa, <strong>que</strong> era umaaplicação política do Humanitismo; somente, como o QuincasBorba não houvesse ainda publicado o livro (<strong>que</strong> aperfeiçoava<strong>de</strong> ano em ano) assentamos <strong>de</strong> lhe não fazer nenhuma referência.O Quincas Borba exigiu apenas uma <strong>de</strong>claração,autógrafa e reservada, <strong>de</strong> <strong>que</strong> alguns princípios novos aplicadosà política eram tirados do livro <strong>de</strong>le, ainda inédito.Era a fina flor dos programas; prometia curar a socieda<strong>de</strong>,<strong>de</strong>struir os abusos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os sãos princípios <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> econservação; fazia um apelo <strong>ao</strong> comércio e à lavoura; citavaGuizot e Ledru-Rollin, e acabava com esta ameaça, <strong>que</strong> oQuincas Borba achou mesquinha e local: "A nova doutrina <strong>que</strong>professamos há <strong>de</strong> inevitavelmente <strong>de</strong>rribar o atual ministério."Confesso <strong>que</strong>, nas circunstâncias políticas da ocasião, o programapareceu-me uma obra-prima. A ameaça do fim, <strong>que</strong> oQuincas Borba achou mesquinha, <strong>de</strong>monstrei-lhe <strong>que</strong> erasaturada do mais puro Humanitismo, e ele mesmo o confessou<strong>de</strong>pois. Porquanto, o Humanitismo não excluia nada; as guerras<strong>de</strong> Napoleão e uma contenda <strong>de</strong> cabras eram, segundo anossa doutrina, a mesma sublimida<strong>de</strong>, com a diferença <strong>que</strong> ossoldados <strong>de</strong> Napoleão sabiam <strong>que</strong> morriam, coisa <strong>que</strong> aparentementenão acontece às cabras. Ora, eu não fazia mais do <strong>que</strong>aplicar às circunstâncias a nossa fórmula filosófica: Humanitas<strong>que</strong>ria substituir Humanitas para consolação <strong>de</strong> Humanitas.- Tu és o meu discípulo amado, o meu califa, bradouQuincas Borba, com uma nota <strong>de</strong> ternura, <strong>que</strong> até então lhenão ouvira. Posso dizer como o gran<strong>de</strong> Muhammed: nem <strong>que</strong>venham agora contra mim o sol e a lua, não recuarei das minhasidéias. Crê, meu caro Brás Cubas, <strong>que</strong> esta é a verda<strong>de</strong>


eterna, anterior <strong>ao</strong>s mundos, posterior <strong>ao</strong>s séculos.CAPÍTULO 147O DesatinoMan<strong>de</strong>i logo para a imprensa uma noticia discreta, dizendo<strong>que</strong> provavelmente começaria a publicação <strong>de</strong> um jornaloposicionista, daí a algumas semanas, redigido pelo DoutorBrás Cubas. O Quincas Borba, a <strong>que</strong>m li a notícia, pegou dapena, e acrescentou <strong>ao</strong> meu nome, com uma fraternida<strong>de</strong>verda<strong>de</strong>iramente humanista, esta frase: "um dos mais gloriososmembros da passada câmara".No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha umpouco transtornado, mas dissimulava, afetando sossego e atéalegria. Vira a noticia do jornal, e achou <strong>que</strong> <strong>de</strong>via, comoamigo e parente, dissuadir-me <strong>de</strong> semelhante idéia. Era umerro, um erro fatal. Mostrou <strong>que</strong> eu ia colocar-me numa situaçãodifícil e <strong>de</strong> certa maneira trancar as portas do parlamento.O ministério, não só lhe parecia excelente, o <strong>que</strong> aliáspodia não ser a minha opinião, mas com certeza viveria muito; e<strong>que</strong> podia eu ganhar com indispô-lo contra mim? Sabia <strong>que</strong>alguns dos ministros me eram afeiçoados; não era impossíveluma vaga, e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe dizer <strong>que</strong>meditara muito o passo <strong>que</strong> ia dar, e não podia recuar umalinha. Cheguei a propor-lhe a leitura do programa, mas elerecusou energicamente, dizendo <strong>que</strong> não <strong>que</strong>ria ter a mínimaparte no meu <strong>de</strong>satino.- E um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>satino, repetiu ele; pense aindaalguns dias, e verá <strong>que</strong> é um <strong>de</strong>satino.A mesma coisa disse Sabina, à noite, no teatro. Deixou afilha no camarote, com Cotrim, e trouxe-me <strong>ao</strong> corredor.- Mano Brás, <strong>que</strong> é <strong>que</strong> você vai fazer? perguntou-meaflita. Que idéia é essa <strong>de</strong> provocar o governo, sem necessida<strong>de</strong>,quando podia...Expli<strong>que</strong>i-lhe <strong>que</strong> não me convinha mendigar uma ca<strong>de</strong>irano parlamento; <strong>que</strong> a minha idéia era <strong>de</strong>rribar o ministério,por não me parecer a<strong>de</strong>quado à situação - e a certa fórmulafilosófica; afiancei <strong>que</strong> empregaria sempre uma linguagemcortês, embora enérgica. A violência não era especiaria do meupaladar. Sabina bateu com o le<strong>que</strong> na ponta dos <strong>de</strong>dos, abanoua cabeça, e tornou <strong>ao</strong> assunto com um ar <strong>de</strong> súplica eameaça, alternadamente; eu disse-lhe <strong>que</strong> não, <strong>que</strong> não, e <strong>que</strong>não. Desenganada, lançou-me em rosto preferir os conselhos<strong>de</strong> pessoas estranhas e invejosas <strong>ao</strong>s <strong>de</strong>la e do marido. - Poissiga o <strong>que</strong> lhe parecer, concluiu; nós cumprimos a nossa obrigação.Deu-me as costas e voltou <strong>ao</strong> camarote.CAPÍTULO 148


O Problema InsolúvelPubli<strong>que</strong>i o jornal. Vinte e quatro horas <strong>de</strong>pois, apareciaem outros uma <strong>de</strong>claração do Cotrim, dizendo, em substância,<strong>que</strong> "posto não militasse em nenhum dos partidos em <strong>que</strong>se dividia a pátria, achava conveniente <strong>de</strong>ixar bem claro <strong>que</strong>não tinha influência nem parte direta ou indireta na folha <strong>de</strong>seu cunhado, o Doutor Brás Cubas, cujas idéias e procedimentopolítico inteiramente reprovava. O atual ministério (comoaliás qual<strong>que</strong>r outro composto <strong>de</strong> iguais capacida<strong>de</strong>s) parecia-lhe<strong>de</strong>stinado a promover a felicida<strong>de</strong> pública".Não podia acabar <strong>de</strong> crer nos meus olhos. Esfreguei-os umae duas vezes, e reli a <strong>de</strong>claração inoportuna, insólita eenigmática. Se ele nada tinha com os partidos, <strong>que</strong> importava um inci<strong>de</strong>ntetão vulgar como a publicação <strong>de</strong> uma folha? Nem todos oscidadãos <strong>que</strong> acham bom ou mau um ministério fazem <strong>de</strong>claraçõestais pela imprensa, nem são obrigados a fazê-las. Realmente,era um mistério a intrusão do Cotrim neste negócio, nãomenos <strong>que</strong> a sua agressão pessoal. Nossas relações até então tinhamsido lhanas e benévolas; não me lembrava nenhum dissentimento,nenhuma sombra, nada, <strong>de</strong>pois da reconciliação. Ao contrário,as recordações eram <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros obséquios; assim, por exemplo,sendo eu <strong>de</strong>putado, pu<strong>de</strong> obter-lhe uns fornecimentos par<strong>ao</strong> arsenal <strong>de</strong> marinha, fornecimentos <strong>que</strong> ele continuava a fazercom a maior pontualida<strong>de</strong>, e dos quais me dizia algumas semanasantes <strong>que</strong>, no fim <strong>de</strong> mais três anos, podiam dar-lhe uns duzentoscontos. Pois a lembrança <strong>de</strong> tamanho obséquio não teveforça para obstar <strong>que</strong> ele viesse a público enxovalhar o cunhado?Devia ser mui po<strong>de</strong>roso o motivo da <strong>de</strong>claração, <strong>que</strong> o fazia cometer<strong>ao</strong> mesmo tempo um <strong>de</strong>stempero e uma ingratidão; confesso<strong>que</strong> era um problema insolúvel.CAPÍTULO 149Teoria do Benefício..Tão insolúvel <strong>que</strong> o Quincas Borba não pô<strong>de</strong> dar comele, apesar <strong>de</strong> estudá-lo longamente e com boa vonta<strong>de</strong>. -Ora a<strong>de</strong>us! concluiu; nem todos os problemas valem cincominutos <strong>de</strong> atenção.Quanto à censura <strong>de</strong> ingratidão, Quincas Borba rejeitou-ainteiramente, não como improvável, mas como absurda, pornão obe<strong>de</strong>cer às conclusões <strong>de</strong> uma boa filosofia humanística.- Não me po<strong>de</strong>s negar um fato, disse ele; é <strong>que</strong> o prazerdo beneficiador é sempre maior <strong>que</strong> o do beneficiado. Que éo benefício? é um ato <strong>que</strong> faz cessar certa privação do beneficiado.Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vezcessada a privação, toma o organismo <strong>ao</strong> estado anterior, <strong>ao</strong>


estado indiferente. Supõe <strong>que</strong> tens apertado em <strong>de</strong>masia o cósdas calças; para fazer cessar o incômodo, <strong>de</strong>sabotoas o cós,respiras, saboreias um instante <strong>de</strong> gozo, o organismo torna àindiferença, e não te lembras dos teus <strong>de</strong>dos <strong>que</strong> praticaramo ato. Não havendo nada <strong>que</strong> perdure, é natural <strong>que</strong> a <strong>memórias</strong>e esvaeça, por<strong>que</strong> ela não é uma planta aérea, precisa<strong>de</strong> chão. A esperança <strong>de</strong> outros favores, é certo, conservasempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato,aliás um dos mais sublimes <strong>que</strong> a filosofia po<strong>de</strong> achar em seucaminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando <strong>de</strong>outra fórmula, pela privação continuada na memória, <strong>que</strong>repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédiooportuno. Não digo <strong>que</strong>, ainda sem esta circunstância, nãoaconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio,acompanhada <strong>de</strong> certa afeição mais ou menos intensa; massão verda<strong>de</strong>iras aberrações, sem nenhum valor <strong>ao</strong>s olhos <strong>de</strong>um filósofo.- Mas, repli<strong>que</strong>i eu, se nenhuma razão há para <strong>que</strong> perdurea memória do obséquio no obsequiado, menos há <strong>de</strong>haver em relação <strong>ao</strong> obsequiador. Quisera <strong>que</strong> me explicasseeste ponto.- Não se explica o <strong>que</strong> é <strong>de</strong> natureza evi<strong>de</strong>nte, retorquiuo Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistênciado benefício e seus efeitos. Primeiramente, há o sentimento<strong>de</strong> uma boa ação, e <strong>de</strong>dutivamente a consciência <strong>de</strong><strong>que</strong> somos capazes <strong>de</strong> boas ações; em segundo lugar, recebeseuma convicção <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> sobre outra criatura, superiorida<strong>de</strong>no estado e nos meios; e esta é uma das coisasmais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões,<strong>ao</strong> organismo humano. Erasmo, <strong>que</strong> no seu Elogio da Sandiceescreveu algumas coisas boas, chamou a atenção para a complacênciacom <strong>que</strong> dois burros se coçam um <strong>ao</strong> outro. Estoulonge <strong>de</strong> rejeitar essa observação <strong>de</strong> Erasmo; mas direi o <strong>que</strong>ele não disse, a saber, <strong>que</strong> se um dos burros coçar melhor ooutro, esse há <strong>de</strong> ter nos olhos algum indício especial <strong>de</strong> satisfação.Por <strong>que</strong> é <strong>que</strong> uma mulher bonita olha muitas vezespara o espelho, senão por<strong>que</strong> se acha bonita, e por<strong>que</strong> issolhe dá certa superiorida<strong>de</strong> sobre uma multidão <strong>de</strong> outrasmulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciênciaé a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando se achabela. Nem o remorso é outra coisa mais do <strong>que</strong> o trejeito <strong>de</strong>uma consciência <strong>que</strong> se vê hedionda. Não es<strong>que</strong>ças <strong>que</strong>, sendotudo uma simples irradiação <strong>de</strong> Humanitas, o benefício eseus efeitos são fenômenos perfeitamente admiráveis.CAPÍTULO 150Rotação e Translação


Há em cada empresa, afeição ou ida<strong>de</strong> um ciclo inteiroda vida humana. O primeiro número do meu jornal encheumea alma <strong>de</strong> uma vasta aurora, coroou-me <strong>de</strong> verduras, restituiu-mea lepi<strong>de</strong>z da mocida<strong>de</strong>. Seis meses <strong>de</strong>pois batia a horada velhice, e daí a duas semanas a da morte, <strong>que</strong> foi clan<strong>de</strong>stina,como a <strong>de</strong> Dona Plácida. No dia em <strong>que</strong> o jornal amanheceumorto, respirei como um homem <strong>que</strong> vem <strong>de</strong> longocaminho. De modo <strong>que</strong>, se eu disser <strong>que</strong> a vida humana nutre<strong>de</strong> si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras, comoo corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma coisainteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menosnítida e a<strong>de</strong>quada, prefiro uma imagem astronômica: ohomem executa à roda do gran<strong>de</strong> mistério um movimentoduplo <strong>de</strong> rotação e translação; tem os seus dias, <strong>de</strong>siguais comoos <strong>de</strong> Júpiter, e <strong>de</strong>les compõe o seu ano mais ou menos longo.No momento em <strong>que</strong> eu terminava o meu movimento <strong>de</strong>rotação, concluía Lobo Neves o seu movimento <strong>de</strong> translação.Morria com o pé na escada ministerial. Correu, <strong>ao</strong> menosdurante algumas semanas, <strong>que</strong> ele ia ser ministro; e pois <strong>que</strong>o boato me encheu <strong>de</strong> muita irritação e inveja, não é impossível<strong>que</strong> a notícia da morte me <strong>de</strong>ixasse alguma tranqüilida<strong>de</strong>,alívio, e um ou dois minutos <strong>de</strong> prazer. Prazer é muito, masé verda<strong>de</strong>; juro <strong>ao</strong>s séculos <strong>que</strong> é a pura verda<strong>de</strong>.Fui <strong>ao</strong> enterro. Na sala mortuária achei Virgília, <strong>ao</strong> pé doféretro, a soluçar. Quando levantou a cabeça, vi <strong>que</strong> chorava<strong>de</strong>veras. Ao sair o enterro, abraçou-se <strong>ao</strong> caixão, aflita; vieramtirá-la e levá-la para <strong>de</strong>ntro. Digo-vos <strong>que</strong> as lágrimas eramverda<strong>de</strong>iras. Eu fui <strong>ao</strong> cemitério; e, para dizer tudo, não tinhamuita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar; levava uma pedra na garganta ou naconsciência. No cemitério, principalmente quando <strong>de</strong>ixei caira pá <strong>de</strong> cal sobre o caixão, no fundo da cova, o ba<strong>que</strong> surdoda cal <strong>de</strong>u-me um estremecimento passageiro, é certo, mas<strong>de</strong>sagradável; e <strong>de</strong>pois a tar<strong>de</strong> tinha o peso e a cor do chumbo;o cemitério, as roupas pretas...CAPÍTULO 151Filosofia dos EpitáfiosSaí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios.E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada,uma expressão da<strong>que</strong>le pio e secreto egoísmo <strong>que</strong> induz ohomem a arrancar à morte um farrapo <strong>ao</strong> menos da sombra<strong>que</strong> passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos <strong>que</strong>sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes <strong>que</strong> a podridãoanônima os alcança a eles mesmos.CAPÍTULO 152A Moeda <strong>de</strong> Vespasiano


Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono.Acendi um charuto; afastei-me do cemitério. Não podia sacudirdos olhos a cerimônia do enterro, nem dos ouvidos ossoluços <strong>de</strong> Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o somvago e misterioso <strong>de</strong> um problema. Virgília trafra o marido,com sincerida<strong>de</strong>, e agora chorava-o com sincerida<strong>de</strong>. Eis umacombinação difícil <strong>que</strong> não pu<strong>de</strong> fazer em todo o trajeto; emcasa, porém, apeando-me do carro, suspeitei <strong>que</strong> a combinaçãoera possível, e até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor écomo a moeda do bem. A moral repreen<strong>de</strong>rá, porventura, aminha cúmplice; é o <strong>que</strong> te não importa, implacável amiga,uma vez <strong>que</strong> lhe recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga,três vezes meiga Natura!CAPÍTULO 153O AlienistaComeço a ficar patético; e prefiro dormir. Dormi, sonhei<strong>que</strong> era nababo, e acor<strong>de</strong>i com a idéia <strong>de</strong> ser nababo. Eu gostava,às vezes, <strong>de</strong> imaginar esses contrastes <strong>de</strong> região, estadoe credo. Alguns dias antes tinha pensado na hipótese <strong>de</strong> umarevolução social, religiosa e política, <strong>que</strong> transferisse o arcebispo<strong>de</strong> Cantuária a simples coletor <strong>de</strong> Petrópolis, e fiz longoscálculos para saber se o coletor eliminaria o arcebispo, ouse o arcebispo rejeitaria o coletor, ou <strong>que</strong> porção <strong>de</strong> arcebispopo<strong>de</strong> jazer num coletor, ou <strong>que</strong> soma <strong>de</strong> coletor po<strong>de</strong> combinarcom um arcebispo, etc. Questões insolúveis, aparentemente,mas na realida<strong>de</strong> perfeitamente solúveis, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>que</strong> se atenda<strong>que</strong> po<strong>de</strong> haver num arcebispo dois arcebispos, - o da bulae o outro. Está dito, vou ser nababo.Era um simples gracejo; disse-o, todavia, <strong>ao</strong> QuincasBorba, <strong>que</strong> olhou para mim com certa cautela e pena, levandoa sua bonda<strong>de</strong> a comunicar-me <strong>que</strong> eu estava doido.Ri-me a princípio; mas a nobre convicção do filósofo incutiu-mecerto medo. A única objeção contra a palavra doQuincas Borba é <strong>que</strong> não me sentia doido, mas não tendogeralmente os doidos outro conceito <strong>de</strong> si mesmos, tal objeçãoficava sem valor. E ve<strong>de</strong> se há algum fundamento nacrença popular <strong>de</strong> <strong>que</strong> os filósofos são homens alheios àscoisas mínimas. No dia seguinte, mandou-me o QuincasBorba um alienista. Conheci-o, fi<strong>que</strong>i aterrado. Ele, porém,houve-se com a maior <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e habilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spedindosetão alegremente <strong>que</strong> me animou a perguntar-lhe se <strong>de</strong>verasme não achava doido.- Não, disse ele sorrindo; raros homens terão tanto juízocomo o senhor.- Então o Quincas Borba enganou-se?- Redondamente. E <strong>de</strong>pois: - Ao contrário, se é ami-


go <strong>de</strong>le... peço-lhe <strong>que</strong> o distraia... <strong>que</strong>...- Justos céus! Parece-lhe?... Um homem <strong>de</strong> tamanhoespírito, um filósofo!- Não importa; a loucura entra em todas as casas.Imaginem a minha aflição. O alienista, vendo o efeito <strong>de</strong>suas palavras, reconheceu <strong>que</strong> eu era amigo do Quincas Borba,e tratou <strong>de</strong> diminuir a gravida<strong>de</strong> da advertência. Observou<strong>que</strong> podia não ser nada, e acrescentou até <strong>que</strong> um grãozinhoda sandice, longe <strong>de</strong> fazer mal, dava certo pico à vida. Comoeu rejeitasse com horror esta opinião, o alienista sorriu e disse-meuma coisa tão extr<strong>ao</strong>rdinária, tão extr<strong>ao</strong>rdinária, <strong>que</strong>não merece menos <strong>de</strong> um capítulo.CAPITULO 154Os Navios do Pireu- Há <strong>de</strong> lembrar-se, disse-me o alienista, da<strong>que</strong>le famosomaníaco ateniense, <strong>que</strong> supunha <strong>que</strong> todos os navios entradosno Pireu eram <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong>. Não passava <strong>de</strong> umpobretão, <strong>que</strong> talvez não tivesse, para dormir, a cuba <strong>de</strong>Diógenes; mas a posse imaginária dos navios valia por todasas dracmas da Héla<strong>de</strong>. Ora bem, há em todos nós um maníaco<strong>de</strong> Atenas; e <strong>que</strong>m jurar <strong>que</strong> não possuiu alguma vez, mentalmente,dois ou três patachos, pelo menos, po<strong>de</strong> crer <strong>que</strong>jura falso.- Também o senhor! perguntei-lhe.- Também eu.- Também eu?- Também o senhor; e o seu criado, não menos, se éseu criado esse homem <strong>que</strong> ali está sacudindo os tapetes àjanela.De fato, era um dos meus criados <strong>que</strong> batia os tapetes,enquanto nós falávamos no jardim, <strong>ao</strong> lado. O alienista notouentão <strong>que</strong> ele escancarara as janelas todas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> longotempo, <strong>que</strong> alçara as cortinas, <strong>que</strong> <strong>de</strong>vassara o mais possível asala, ricamente alfaiada, para <strong>que</strong> a vissem <strong>de</strong> fora, econcluiu: - Este seu criado tem a mania do ateniense: crê <strong>que</strong> os naviossão <strong>de</strong>le; uma hora <strong>de</strong> ilusão <strong>que</strong> lhe dá a maior felicida<strong>de</strong>da terra.CAPÍTULO 155Reflexão Cordial- Se o alienista tem razão, disse eu comigo, não haverámuito <strong>que</strong> lastimar o Quincas Borba; é uma <strong>que</strong>stão<strong>de</strong> mais ou <strong>de</strong> menos. Contudo, é justo cuidar <strong>de</strong>le, e evitar<strong>que</strong> lhe entrem no cérebro maníacos <strong>de</strong> outras para-


gens.CAPÍTULO 156Orgulho da Servilida<strong>de</strong>O Quincas Borba divergiu do alienista em relação <strong>ao</strong>meu criado. - Po<strong>de</strong>-se, por imagem, disse ele, atribuir <strong>ao</strong>teu criado a mania <strong>de</strong> ateniense; mas imagens não são idéiasnem observações tomadas à natureza. O <strong>que</strong> o teu criadotem é um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leisdo Humanitismo: é o orgulho da servilida<strong>de</strong>. A intenção <strong>de</strong>leé mostrar <strong>que</strong> não é criado <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r. - Depois chamou aminha atenção para os cocheiros <strong>de</strong> casa-gran<strong>de</strong>, maisimpertigados <strong>que</strong> o amo, para os criados <strong>de</strong> hotel, cuja solicitu<strong>de</strong>obe<strong>de</strong>ce às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu<strong>que</strong> era tudo a expressão da<strong>que</strong>le sentimento <strong>de</strong>licadoe nobre, - prova cabal <strong>de</strong> <strong>que</strong> muitas vezes o homem, aindaa engraxar botas, é sublime.CAPÍTULO 157Fase Brilhante- Sublime és tu, bra<strong>de</strong>i eu, lançando-lhe os braços <strong>ao</strong>pescoço. Com efeito era impossível crer <strong>que</strong> um homem tãoprofundo pu<strong>de</strong>sse chegar à <strong>de</strong>mência; foi o <strong>que</strong> lhe disse apóso meu abraço, <strong>de</strong>nunciando-lhe a suspeita do alienista. Nãoposso <strong>de</strong>screver a impressão <strong>que</strong> lhe fez a <strong>de</strong>núncia; lembrame<strong>que</strong> ele estremeceu e ficou muito pálido.Foi por esse tempo <strong>que</strong> eu me reconciliei outra vez com oCotrim, sem chegar a saber a causa do dissentimento. Reconciliaçãooportuna, por<strong>que</strong> a solidão pesava-me, como um remorso,e a vida era para mim a pior das fadigas, <strong>que</strong> é a fadiga semtrabalho. Pouco <strong>de</strong>pois fui convidado por ele a filiar-me numaOr<strong>de</strong>m Terceira; o <strong>que</strong> eu não fiz sem consultar o Quincas Borba.- Vai, se <strong>que</strong>res, disse-me este, mas temporariamente.Eu trato <strong>de</strong> anexar à minha filosofia uma parte dogmática elitúrgica. O Humanitismo há <strong>de</strong> ser também uma religião, ado futuro, a única verda<strong>de</strong>ira. O cristianismo é bom para asmulheres e os mendigos, e as outras religiões não valem maisdo <strong>que</strong> essa: orçam todas pela mesma vulgarida<strong>de</strong> ou fra<strong>que</strong>za.O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano;e quanto <strong>ao</strong> nirvana <strong>de</strong> Buda não passa <strong>de</strong> uma concepção<strong>de</strong> paralíticos. Verás o <strong>que</strong> é a religião humanística. Aabsorção final, a fase contractiva é a reconstituição da substância,não o seu aniquilamento, etc. Vai <strong>ao</strong>n<strong>de</strong> te chamam;não es<strong>que</strong>ças, porém, <strong>que</strong> és o meu califa.E ve<strong>de</strong> agora a minha modéstia; filiei-me na Or<strong>de</strong>m Terceira<strong>de</strong> ***, exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais


ilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo nada,não conto os meus serviços, o <strong>que</strong> fiz <strong>ao</strong>s pobres e <strong>ao</strong>s enfermos,nem as recompensas <strong>que</strong> recebi, nada, não digo absolutamentenada.Talvez a economia social pu<strong>de</strong>sse ganhar alguma coisa, seeu mostrasse como todo e qual<strong>que</strong>r prêmio estranho vale pouco<strong>ao</strong> lado do prêmio subjetivo e imediato; mas seria rompero silêncio <strong>que</strong> jurei guardar neste ponto. Demais, os fenômenosda consciência são <strong>de</strong> difícil análise; por outro lado, secontasse um, teria <strong>de</strong> contar todos os <strong>que</strong> a ele se pren<strong>de</strong>ssem,e acabava fazendo um capítulo <strong>de</strong> psicologia. Afirmosomente <strong>que</strong> foi a fase mais brilhante da minha vida. Os quadroseram tristes; tinham a monotonia da <strong>de</strong>sgraça, <strong>que</strong> é tãoaborrecida como a do gozo, e talvez pior. Mas a alegria <strong>que</strong> sedá à alma dos doentes e dos pobres é recompensa <strong>de</strong> algumvalor; e não me digam <strong>que</strong> é negativa, por só recebê-la o obsequiado.Não; eu recebia-a <strong>de</strong> um modo reflexo, e ainda assimgran<strong>de</strong>, tão gran<strong>de</strong> <strong>que</strong> me dava excelente idéia <strong>de</strong> mimmesmo.CAPÍTULO 158Dois EncontrosNo fim <strong>de</strong> alguns anos, três ou quatro, estava enfaradodo ofício e <strong>de</strong>ixei-o, não sem um donativo importante, <strong>que</strong>me <strong>de</strong>u direito <strong>ao</strong> retrato na sacristia. Não acabarei, porém, ocapítulo, sem dizer <strong>que</strong> vi morrer no hospital da Or<strong>de</strong>m, adivinhem<strong>que</strong>m?... a linda Marcela; e via-a morrer no mesmodia em <strong>que</strong>, visitando um cortiço, para distribuir esmolas,achei... Agora é <strong>que</strong> não são capazes <strong>de</strong> adivinhar.., achei aflor da moita, Eugênia, a filha <strong>de</strong> Dona Eusébia e do Vilaça,tão coxa como a <strong>de</strong>ixara, e ainda mais triste.Esta, <strong>ao</strong> reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos;mas foi obra <strong>de</strong> um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-mecom muita dignida<strong>de</strong>. Compreendi <strong>que</strong> não receberia esmolasda minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa<strong>de</strong> um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubículo.Nunca mais a vi; não soube nada da vida <strong>de</strong>la, nem se a mãeera morta, nem <strong>que</strong> <strong>de</strong>sastre a trouxera a tamanha miséria.Sei <strong>que</strong> continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda<strong>que</strong> cheguei <strong>ao</strong> hospital, on<strong>de</strong> Marcela entrara na véspera,e on<strong>de</strong> a vi expirar meia hora <strong>de</strong>pois, feia, magra,<strong>de</strong>crépita...CAPÍTULO 159A Semi<strong>de</strong>mência


Compreendi <strong>que</strong> estava velho, e precisava <strong>de</strong> uma força;mas o Quincas Borba partira seis meses antes para MinasGerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatromeses <strong>de</strong>pois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase noestado em <strong>que</strong> eu o vira no Passeio Público. A diferença é <strong>que</strong>o olhar era outro. Vinha <strong>de</strong>mente. Contou-me <strong>que</strong>, para o fim<strong>de</strong> aperfeiçoar o Humanitismo, <strong>que</strong>imara o manuscrito todoe ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, emboranão escrita; era a verda<strong>de</strong>ira religião do futuro.- Juras por Humanitas? perguntou-me.- Sabes <strong>que</strong> sim.A voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha <strong>de</strong>scobertotoda a cruel verda<strong>de</strong>. O Quincas Borba não só estavalouco, mas sabia <strong>que</strong> estava louco, e esse resto <strong>de</strong> consciência,como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicavamuito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritavacontra o mal; <strong>ao</strong> contrário, dizia-me <strong>que</strong> era ainda uma prova<strong>de</strong> Humanitas, <strong>que</strong> assim brincava consigo mesmo. Recitavamelongos capítulos do livro, e antífonas, e litaniasespirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra <strong>que</strong> inventarapara as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com <strong>que</strong> elelevantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica.Outras vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar,uns olhos em <strong>que</strong>, <strong>de</strong> longe em longe, fulgurava um raio persistenteda razão, triste como uma lágrima...Morreu pouco tempo <strong>de</strong>pois, em minha casa, jurando erepetindo sempre <strong>que</strong> a dor era uma ilusão, e <strong>que</strong> Pangloss, ocaluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.CAPÍTULO 160Das NegativasEntre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram ossucessos narrados na primeira parte do livro. O principal <strong>de</strong>lesfoi a invenção do emplasto Brás Cubas, <strong>que</strong> morreu comigo,por causa da moléstia <strong>que</strong> apanhei. Divino emplasto, tume darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciênciae da ri<strong>que</strong>za, por<strong>que</strong> eras a genuína e direta inspiração do céu.O acaso <strong>de</strong>terminou o contrário; e ai vos ficais eternamentehipocondríacos.Este último capítulo é todo <strong>de</strong> negativas. Não alcancei acelebrida<strong>de</strong> do emplasto, não fui ministro, não fui califa, nãoconheci o casamento. Verda<strong>de</strong> é <strong>que</strong>, <strong>ao</strong> lado <strong>de</strong>ssas faltas,coube-me a boa fortuna <strong>de</strong> não comprar o pão com o suor domeu rosto. Mais; não pa<strong>de</strong>ci a morte <strong>de</strong> Dona Plácida, nem asemi<strong>de</strong>mência do Quincas Borba. Somadas umas coisas eoutras, qual<strong>que</strong>r pessoa imaginará <strong>que</strong> não houve míngua nemsobra, e conseguintemente <strong>que</strong> sai quite com a vida. E imagi-


nará mal; por<strong>que</strong> <strong>ao</strong> chegar a este outro lado do mistério,achei-me com um pe<strong>que</strong>no saldo, <strong>que</strong> é a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira negativa<strong>de</strong>ste capítulo <strong>de</strong> negativas: - Não tive filhos, não transmitia nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

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