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representações da sociabilidade feminina na imprensa do século xix

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REPRESENTAÇÕES DA SOCIABILIDADEFEMININA NA IMPRENSA DO SÉCULO XIX ∗Lucia M. A. Ferreira **Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro – UNIRIOlmaf@connection.com.brRESUMO: As práticas discursivas <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> constituem-se como espaço sócio-histórico em que searticulam o poder e as transformações sociais e participam <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de cultural e <strong>da</strong>memória social. Os resulta<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s neste trabalho fazem parte de um estu<strong>do</strong> sobre asrepresentações <strong>da</strong> figura <strong>femini<strong>na</strong></strong> <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> brasileira durante o século XIX. O discurso jor<strong>na</strong>lístico écompara<strong>do</strong> ao discurso <strong>da</strong> história e às <strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong>s viajantes estrangeiros que registraram suas visõesacerca <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira. Se, no início <strong>do</strong> século XIX, as mulheres eram praticamente invisíveis <strong>na</strong><strong>imprensa</strong>, as mu<strong>da</strong>nças <strong>na</strong>s configurações <strong>da</strong>s representações ao longo <strong>do</strong> tempo indicam mu<strong>da</strong>nças nospadrões relacio<strong>na</strong>is e um crescente questio<strong>na</strong>mento acerca de uma identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong> até entãoconstruí<strong>da</strong> com referência exclusiva ao <strong>do</strong>mínio familiar <strong>do</strong>méstico.PALAVRAS-CHAVE: Imprensa brasileira – Século XIX – Representação – Figura <strong>femini<strong>na</strong></strong>.ABSTRACT: The discursive practices of the press can be seen as socio-historic spaces where power andsocial changes are articulated and, as such, participate in the construction of cultural identity and socialmemory. The results presented in the article are part of a study about the representation of the femininefigure in the Brazilian press during the 19 th century. Jour<strong>na</strong>listic discourse is compared to that of historyand to the <strong>na</strong>rratives of the foreign travelers who registered their views of Brazilian society. If, at thebeginning of the century, women were virtually absent from the press registers, the changes in theconfiguration of representation along the period also indicate changes in relatio<strong>na</strong>l patterns and a growingquestioning of the feminine identity up till then constructed exclusively with reference to the family andthe <strong>do</strong>mestic sphere.KEYWORDS: Brazilian press – 19 th century – Representation – Feminine figure.Compreenden<strong>do</strong> o discurso <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> como espaço sócio-histórico em quese articulam o poder e as transformações sociais, partícipe ativo <strong>da</strong> construção <strong>da</strong>sidenti<strong>da</strong>des culturais e <strong>da</strong> memória social, examino, neste artigo, algumas marcas <strong>da</strong>∗**Trabalho desenvolvi<strong>do</strong> no âmbito <strong>do</strong> Projeto Representações no Discurso Midiático, apoia<strong>do</strong> peloCNPq. Versões prelimi<strong>na</strong>res foram apresenta<strong>da</strong>s em encontros acadêmicos durante o ano de 2007.Doutora em Linguística pela UFRJ. Docente (Profa. Associa<strong>da</strong>) <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação emMemória Social – PPGMS/UNIRIO.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br2construção <strong>da</strong> figura <strong>femini<strong>na</strong></strong> em periódicos <strong>do</strong> século XIX, época em que a <strong>imprensa</strong>surge no Brasil e passa a constituir-se, ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong>s instâncias tradicio<strong>na</strong>is ─ família,igreja, escola e vizinhança ─ em espaço de formação e expressão <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de.Para exami<strong>na</strong>r esses processos históricos <strong>da</strong> produção de senti<strong>do</strong>s, em primeirolugar situo o tema <strong>da</strong>s práticas discursivas media<strong>da</strong>s no âmbito mais geral de umadiscussão a respeito de seu papel <strong>na</strong> manutenção e transformação social e <strong>na</strong> construção<strong>da</strong> memória. Em segui<strong>da</strong> descrevo brevemente as condições sócio-históricas em que sefun<strong>da</strong> a <strong>imprensa</strong> brasileira, e identifico, a partir de algumas práticas discursivas, marcas<strong>da</strong> construção <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> mulher em periódicos de <strong>do</strong>is momentos históricosdiferentes <strong>do</strong> século XIX: o perío<strong>do</strong> joanino, aqui representa<strong>do</strong> pelos periódicos Gazeta<strong>do</strong> Rio de Janeiro e Correio Braziliense 1 , e o fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século, com exemplos <strong>da</strong><strong>imprensa</strong> <strong>femini<strong>na</strong></strong>.A EXPERIÊNCIA MEDIADA E A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA MEMÓRIAOs meios de comunicação são frequentemente aponta<strong>do</strong>s como vetores quevieram a oferecer, no mun<strong>do</strong> moderno, os estímulos e suportes mais poderosos para osrearranjos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> memória, e que irão proporcio<strong>na</strong>r as transformações maisdramáticas <strong>na</strong>s relações espaço-temporais. A expansão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>da</strong>s instituições,intimamente relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> à mediação <strong>do</strong> texto impresso é ape<strong>na</strong>s um <strong>do</strong>s exemplosdessas transformações, indican<strong>do</strong> que, de fato, “a moderni<strong>da</strong>de é inseparável de sua‘própria’ mídia: os textos impressos e, em segui<strong>da</strong>, o si<strong>na</strong>l eletrônico”. 2 Também comrelação à contemporanei<strong>da</strong>de, os discursos construí<strong>do</strong>s pelos e nos meios decomunicação afiguram-se como os mais significativos dentre aqueles que estabelecemos lugares a partir <strong>do</strong>s quais nos posicio<strong>na</strong>mos como indivíduos e a partir <strong>do</strong>s quaispodemos falar 3 .Para que se possa melhor exami<strong>na</strong>r o papel social <strong>do</strong>s meios de comunicação, énecessário entender, portanto, que, mais <strong>do</strong> que suporte para a transmissão de123Os periódicos foram pesquisa<strong>do</strong>s nos microfilmes <strong>da</strong> Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l, no Rio de Janeiro.Recentemente a BN tornou disponível a versão digitaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> Gazeta <strong>do</strong> Rio de Janeiro noendereço: GIDDENS, Anthony. Moderni<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 29.HUYSSEN, Andreas. Seduzi<strong>do</strong>s pela memória – arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2000.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br3informação e conteú<strong>do</strong> simbólico, sua atuação implica a transformação <strong>da</strong>s interaçõesno mun<strong>do</strong> social e o surgimento de novas formas de práticas sociais.De um mo<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mental, o uso <strong>do</strong>s meios de comunicaçãotransforma a organização espacial e temporal <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, crian<strong>do</strong>novas formas de ação e interação, e novas maneiras de exercer opoder, que não está mais liga<strong>do</strong> ao compartilhamento local comum 4 .Mas de que tipo de poder se fala? De que forma os meios de comunicaçãoexercem poder sobre seus usuários? De que forma participam <strong>da</strong> construção <strong>do</strong>ssujeitos, <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> memória <strong>do</strong>s grupos sociais? Na visão de Foucault, oexercício <strong>do</strong> poder consiste em “conduzir condutas”, em “estruturar o eventual campode ação <strong>do</strong>s outros”:[o exercício <strong>do</strong> poder] é um conjunto de ações sobre ações possíveis;ele opera sobre o campo <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de onde se inscreve ocomportamento <strong>do</strong>s sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita outor<strong>na</strong> mais difícil, amplia ou limita, tor<strong>na</strong> mais ou menos provável; nolimite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre umamaneira de agir sobre uns ou vários sujeitos ativos, e o quanto elesagem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações 5 .Nas socie<strong>da</strong>des moder<strong>na</strong>s ocidentais frequentemente compreendemos osacontecimentos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e mesmo <strong>do</strong> presente a partir de formas simbólicasmedia<strong>da</strong>s, ou seja, por intermédio de livros, filmes e pela televisão. Diferentemente <strong>do</strong>que ocorre <strong>na</strong> interação face a face, o intercâmbio simbólico por intermédio <strong>da</strong> mídiapermite um distanciamento espaço-temporal, um distanciamento <strong>da</strong> forma simbólica <strong>do</strong>seu contexto de produção e seu deslocamento para um novo contexto, com novasconfigurações espaciais e temporais. Soma-se a isso o fato de que a apropriação <strong>da</strong>sformas simbólicas não se dá ape<strong>na</strong>s no contexto inicial <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de de recepção. Épossível que se esten<strong>da</strong> muito além, pois as apropriações são elabora<strong>da</strong>sdiscursivamente e compartilha<strong>da</strong>s por indivíduos que não participaram <strong>do</strong> processoinicial.Esta forma de apropriação <strong>da</strong>s formas simbólicas produzi<strong>da</strong>s pela mídia éparticularmente significativa no contexto social brasileiro <strong>do</strong> século XIX. Estaremosconsideran<strong>do</strong> um país majoritariamente a<strong>na</strong>lfabeto, onde quase metade <strong>da</strong> população era45THOMPSON, John. B. A mídia e a moderni<strong>da</strong>de: uma teoria social <strong>da</strong> mídia. Petrópolis: Vozes,1998, p. 14.FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, umatrajetória filosófica (para além <strong>do</strong> estruturalismo e <strong>da</strong> hermenêutica). Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1995, p. 243-244.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br4de escravos, excluí<strong>do</strong>s de qualquer direito civil ou político. A relação estabeleci<strong>da</strong> coma palavra impressa era, então, frequentemente media<strong>da</strong> pela orali<strong>da</strong>de.As mensagens media<strong>da</strong>s são, portanto, transforma<strong>da</strong>s em um processo contínuode repetição, reinterpretação, comentário e crítica, fornecen<strong>do</strong>, nesse processo deelaboração discursiva, estruturas <strong>na</strong>rrativas a partir <strong>da</strong>s quais os sujeitos posicio<strong>na</strong>m-sediante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que vivem. Tal constatação revela-se extremamente significativaquan<strong>do</strong> se pensa <strong>na</strong> memória social e no papel <strong>do</strong>s meios de comunicação em suaconstrução.Os meios de comunicação produzem “uma idéia de história” e, neste processo,legitimam-se como lugar social. Não se pode, to<strong>da</strong>via, perder de vista que, ao registraros fatos <strong>do</strong> cotidiano, os meios de comunicação engajam-se em operações discursivasde seleção e de atribuição de senti<strong>do</strong>s, orienta<strong>da</strong>s por uma economia discursiva e pormecanismos ideológicos que lhes são próprios 6 . Assim, as (re)interpretações podemprovocar efeitos de senti<strong>do</strong> distintos: <strong>do</strong> esquecimento, ou <strong>do</strong> retorno de algum senti<strong>do</strong>antes silencia<strong>do</strong>, e inclusive a irrupção de um novo senti<strong>do</strong>, que poderá até vir adesestabilizar as configurações de poder. Configura-se, portanto, um campo de disputasde senti<strong>do</strong>s. Se, por um la<strong>do</strong>, a memória pode ser vista como uma conquista, é precisoque a reconheçamos também como objeto e instrumento de poder 7 .É a partir <strong>da</strong> perspectiva acima esboça<strong>da</strong> que as práticas discursivas <strong>da</strong><strong>imprensa</strong> <strong>do</strong> século XIX são toma<strong>da</strong>s como espaço de enunciação em que se constroem(e deixam vestígios) processos de subjetivação <strong>da</strong> mulher. Exami<strong>na</strong>r estas marcasimplica compreendê-las em sua relação com as formações sociais históricas em queforam produzi<strong>da</strong>s e as redes de senti<strong>do</strong>s a que se filiam; dito de outra forma, implicaexami<strong>na</strong>r as posições ocupa<strong>da</strong>s pelos sujeitos e as formações discursivas <strong>na</strong>s quais ossenti<strong>do</strong>s se origi<strong>na</strong>m e com as quais mantêm relações mais ou menos tensas.Do ponto de vista <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> memória social, o que se pretende, a partir<strong>da</strong> análise de um corpus heterogêneo, construí<strong>do</strong> a partir de discursos publica<strong>do</strong>s emdiferentes periódicos, em momentos distintos <strong>da</strong> história, é perceber, em meio aos67RIBEIRO, A<strong>na</strong> Paula Goulart. A mídia e o lugar <strong>da</strong> história. In: HERSCHMANN, M.; PEREIRA, C.A. M. Mídia, memória e celebri<strong>da</strong>des. Rio de Janeiro: E-papers, 2005, p. 121.LE GOFF, Jacques. História e memória. Campi<strong>na</strong>s: Unicamp, 1996.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br5rituais enunciativos <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong>, si<strong>na</strong>is de possíveis rupturas com o status quo evestígios <strong>da</strong>s transformações <strong>do</strong>s sujeitos e <strong>da</strong>s práticas discursivas que os constituíram.OS PRIMEIROS TEMPOS DA IMPRENSA BRASILEIRA – A GAZETA DO RIO DEJANEIRO E O CORREIO BRAZILIENSENa investigação <strong>da</strong>s configurações <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des e <strong>da</strong> memória construí<strong>da</strong>sno âmbito <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> é preciso lembrar que, “apesar de ter a heterogenei<strong>da</strong>de comouma característica constitutiva”, a <strong>imprensa</strong> “funcio<strong>na</strong> desambiguizan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>,homogeneizan<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s e instituin<strong>do</strong> ‘ver<strong>da</strong>des’ que ela mesma coloca emcirculação”. No discurso jor<strong>na</strong>lístico, a construção <strong>do</strong> noticiário já vem impreg<strong>na</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong>memória <strong>da</strong> própria constituição histórica <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> e, em decorrência disso, “asnotícias se reinscrevem, sob o efeito ideológico <strong>da</strong> evidência, <strong>da</strong> obvie<strong>da</strong>de, <strong>na</strong> direçãode senti<strong>do</strong>s deseja<strong>da</strong>/determi<strong>na</strong><strong>da</strong> politicamente pela formação discursiva hegemônica”. 8As ativi<strong>da</strong>des tipográficas e a <strong>imprensa</strong> periódica surgem no Brasil sob osauspícios <strong>da</strong> Corte, em 1808, juntamente com as primeiras medi<strong>da</strong>s toma<strong>da</strong>s pelasautori<strong>da</strong>des portuguesas no senti<strong>do</strong> de estimular as ativi<strong>da</strong>des culturais, crian<strong>do</strong>academias, bibliotecas, instituições científicas, em um esforço de modernização <strong>da</strong>Colônia. Com a transferência <strong>da</strong> Corte, para alguns o acontecimento mais importantedepois <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> frota de Cabral, o Brasil deixa de ser colônia para se tor<strong>na</strong>r a sede<strong>da</strong> mo<strong>na</strong>rquia portuguesa, e a ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Rio de Janeiro, capital <strong>da</strong> Colônia desde 1763,recebe entre 15 a 16 mil novos habitantes, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se o centro <strong>do</strong> Império e palco degrandes mu<strong>da</strong>nças sociais 9 . Em 1808, havia ape<strong>na</strong>s três livrarias no Brasil; 13 anosdepois, <strong>na</strong> época em que D. João retornou a Portugal, havia 16. Com relação aosperiódicos, no perío<strong>do</strong> joanino foram publica<strong>do</strong>s oito jor<strong>na</strong>is, duas revistas e quatroalma<strong>na</strong>ques 10 .8910MARIANI, Bethânia. Narrativas e rituais enunciativos <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong>: a “intento<strong>na</strong>” de 35. In: RUBIM,A. A. C.; BENTZ, I. M. G; PINTO, M. J. (Orgs.). Produção e recepção <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s midiáticos.Petrópolis: Vozes, 1998, p. 29-30.CARDOSO, Tereza Maria Rolo Facha<strong>da</strong> Levy. A Gazeta <strong>do</strong> Rio de Janeiro: subsídios para ahistória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de (1808-1822). Dissertação (Mestra<strong>do</strong>). IFICS – Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Rio deJaneiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 1988.IPANEMA, Cybelle de. A tipografia, o livro, o jor<strong>na</strong>l, a revista, a charge. In: PEREIRA, PauloRoberto (Org.). Brasilia<strong>na</strong> <strong>da</strong> Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Fun<strong>da</strong>çãoBiblioteca Nacio<strong>na</strong>l, 2001, p. 385-397.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br6As ativi<strong>da</strong>des de impressão eram, contu<strong>do</strong>, fortemente censura<strong>da</strong>s. Eranecessário solicitar permissão para imprimir qualquer coisa: livros, elogios fúnebres,orações de ação de graça, trata<strong>do</strong>s de teologia, textos comerciais e até escritoscomemorativos de eventos históricos. Tentava-se evitar a propagação de ideiasconsidera<strong>da</strong>s perigosas e perturba<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> ordem pública. O jor<strong>na</strong>l que i<strong>na</strong>ugura atradição de impressão periódica no Brasil é a Gazeta <strong>do</strong> Rio de Janeiro, a voz <strong>da</strong>Corte, com sua primeira edição publica<strong>da</strong> pela Impressão Régia em 10 de setembro de1808. Alguns meses antes, no entanto, já circulava clandesti<strong>na</strong>mente no Brasil oCorreio Braziliense. Publica<strong>do</strong> em Londres, era obra de Hipólito <strong>da</strong> Costa, considera<strong>do</strong>por alguns o pai <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo brasileiro, talvez pelo caráter independente <strong>do</strong> seujor<strong>na</strong>lismo. Era maçom, persegui<strong>do</strong> pela Inquisição, um mo<strong>na</strong>rquista constitucio<strong>na</strong>l.Os <strong>do</strong>is periódicos eram muito diferentes em vários outros aspectos. A Gazetatinha periodici<strong>da</strong>de curta e preço baixo. Volta<strong>da</strong> para a divulgação <strong>do</strong>s atos <strong>do</strong>sgover<strong>na</strong>ntes, veiculava notícias inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, informes sobre <strong>na</strong>vegação e relatos eboletins referentes às batalhas e situações vivi<strong>da</strong>s pelas tropas alia<strong>da</strong>s contra Napoleão.Na última pági<strong>na</strong>, uma seção trazia pequenos anúncios de interesse mais local, porintermédio <strong>do</strong>s quais é possível conhecer um pouco <strong>do</strong> cotidiano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong>Rio de Janeiro, <strong>do</strong>s valores e <strong>da</strong>s expectativas <strong>da</strong> época. O Correio Braziliense, por suavez, em suas volumosas edições mensais, apresentava um jor<strong>na</strong>lismo opi<strong>na</strong>tivo, maisinterpretativo e a<strong>na</strong>lítico, comentan<strong>do</strong> atos oficiais e acontecimentos. O jor<strong>na</strong>l nãoretratava o cotidiano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.Tanto a Gazeta quanto o Correio foram veículos de divulgação deacontecimentos inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is importantes <strong>na</strong> orientação <strong>do</strong> comércio exterior e também<strong>do</strong>s decretos régios, exercen<strong>do</strong> sua influência de formas diferentes. Enquanto a Gazeta,porta-voz <strong>do</strong> governo, foi aos poucos amplian<strong>do</strong> seus serviços e sua influência nocotidiano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, o Correio Braziliense exercia influência política sem censura,ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> papel relevante <strong>na</strong> defesa <strong>da</strong> permanência de D. João no Brasil, após a derrotade Napoleão, e <strong>na</strong> campanha pela autonomia <strong>do</strong> Brasil em relação às Cortesportuguesas 11 .11BARBOSA LIMA SOBRINHO, Alexandre. Hipólito <strong>da</strong> Costa e o Correio Braziliense. In: COSTA,Hipólito José <strong>da</strong>. Correio Braziliense, ou Armazém Literário. São Paulo/Brasília: Imprensa Oficial<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>/ Correio Braziliense, 2001, p.ix-xvi.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br7O SILÊNCIO DAS MULHERES NOS PRIMEIROS JORNAIS BRASILEIROSUm primeiro olhar sobre os primeiros periódicos brasileiros revela a poucavisibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> figura <strong>femini<strong>na</strong></strong> no espaço discursivo <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> joanino.Mas esta quase-ausência não surpreende, porque a mulher está excluí<strong>da</strong> <strong>do</strong> espaçopúblico <strong>do</strong>s homens, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que conta, principalmente <strong>da</strong> esfera econômica epolítica. Ela está ausente não ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>s periódicos, mas também <strong>do</strong>sarquivos públicos e <strong>do</strong>s relatos <strong>da</strong> história. Sua trajetória se faz contar ape<strong>na</strong>s nosarquivos priva<strong>do</strong>s, <strong>na</strong> correspondência familiar, nos diários íntimos.No caso brasileiro, o sistema patriarcal aqui instala<strong>do</strong>, encontran<strong>do</strong> reforço <strong>na</strong>orientação <strong>da</strong> Igreja Católica, para quem a mulher era submissa e inferior, deixou àsmulheres pouco espaço para uma ação mais explícita. Com relação à educação, observeseque, no perío<strong>do</strong> colonial, enquanto no restante <strong>da</strong> Europa escolas públicas, paroquiaise conventos já ofereciam às meni<strong>na</strong>s a oportuni<strong>da</strong>de de aprender a ler e escrever, emPortugal a instrução <strong>femini<strong>na</strong></strong> era assunto menor. A primeira escola de meni<strong>na</strong>s surgiuem 1782, no convento <strong>da</strong> Visitação. Se uma mu<strong>da</strong>nça no que diz respeito à educação<strong>femini<strong>na</strong></strong> pode ser observa<strong>da</strong> em Portugal no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século XVIII, a novi<strong>da</strong>de custou achegar <strong>na</strong> Colônia 12 . A este respeito escreveu Debret em 1825:Desde a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte ao Brasil tu<strong>do</strong> se preparara, mas <strong>na</strong><strong>da</strong> depositivo se fizera em prol <strong>da</strong> educação <strong>da</strong>s jovens brasileiras. Esta, em1815, se restringia, como antigamente, a recitar preces de cor e acalcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações.Somente o trabalho de agulha ocupava seus lazeres, pois os demaiscui<strong>da</strong><strong>do</strong>s relativos ao lar são entregues sempre às escravas 13 .Na época <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte portuguesa, as mulheres <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s altas emédias <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de viviam reclusas em suas casas, ocupan<strong>do</strong>-se de supervisio<strong>na</strong>r asnegras e de bor<strong>da</strong>r ou fazer <strong>do</strong>ces. Raramente vistas fora de casa, frequentavam a missamuito ce<strong>do</strong>, pelas quatro <strong>da</strong> manhã. A vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte veio trazer grandes mu<strong>da</strong>nças noque diz respeito a este recolhimento imposto à mulher colonial <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s mais altas<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. As mulheres pobres e as escravas, por outro la<strong>do</strong>, não eram submeti<strong>da</strong>s aestas restrições porque precisavam sobreviver trabalhan<strong>do</strong> fora de casa.1213PRIORE, Mary Del. Mulheres no Brasil colonial. São Paulo: Contexto, 2000.Cita<strong>do</strong> em LEITE, Miriam Moreira. A condição <strong>femini<strong>na</strong></strong> no Rio de Janeiro, século XIX –antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo/Brasília: Hucitec/Instituto Nacio<strong>na</strong>l <strong>do</strong>Livro/Fun<strong>da</strong>ção Nacio<strong>na</strong>l Pró-Memória, 1984, p. 68.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br8Mas seria possível traçar uma memória <strong>da</strong>s mulheres <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>speriódicos? É possível identificar sua voz? A despeito <strong>da</strong> pouca frequência às pági<strong>na</strong>s<strong>do</strong>s periódicos, diferentes imagens <strong>femini<strong>na</strong></strong>s são forja<strong>da</strong>s <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>do</strong> início <strong>do</strong>século XIX, refletin<strong>do</strong> o imaginário <strong>da</strong> época e, concomitantemente, construin<strong>do</strong> novossenti<strong>do</strong>s e projetan<strong>do</strong> novas vozes. Mas de que forma esses senti<strong>do</strong>s sobre o femininosão construí<strong>do</strong>s? É possível perceber alguma mu<strong>da</strong>nça ao longo <strong>do</strong> tempo?Tanto no Correio quanto <strong>na</strong> Gazeta, durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> joanino,aparecem, em espaços discursivos bem marca<strong>do</strong>s nos jor<strong>na</strong>is ─ os relatos <strong>do</strong>sacontecimentos <strong>na</strong> Europa ─, mulheres de diferentes hierarquias nobiliárquicas: rainhas,princesas de diferentes casas reais, duquesas, marquesas, etc. Em geral, aparecem comocoadjuvantes de seus mari<strong>do</strong>s, em relatos sobre eventos sociais e políticos.A partir de 1816, as referências às mulheres nobres passam não ape<strong>na</strong>s aocupar um espaço discursivo diferente ─ a peque<strong>na</strong> seção de Avisos <strong>da</strong> Gazeta ─, comotambém a integrar uma outra cadeia de construção de senti<strong>do</strong>s em que se estabelece anobreza como modelo de atuali<strong>da</strong>de, condizente com a vontade de modernização <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> social e política vigente <strong>na</strong> época. O anúncio a seguir ilustra o papel <strong>da</strong> realeza nocenário <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s em decorrência <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte à Colônia:Girard, Cabelleireiro de Sua Alteza Real a Senhora D. CARLOTAPrinceza <strong>do</strong> Brazil, de Sua Alteza Real a Princeza de Galles, e de SuaAlteza Real a Duqueza de Angouleme; Pentêa as Senhoras <strong>na</strong> ultimamo<strong>da</strong> de Paris e de Londres; corta o cabello aos Homens e ásSenhoras; faz cabelleiras de Homens e Senhoras, e tu<strong>do</strong> o que consiste<strong>na</strong> sua Arte; tinge com os pós de George com a ultima perfeição ocabello, as sombrancelhas, e as suiças, sem causar <strong>da</strong>mno algum ápelle nem á roupa; e tem huma Poma<strong>da</strong>, que faz crescer e augmentar ocabello; agoa maravilhoza de M. me Martin de Paris, para fazer a pelle<strong>da</strong> cara branca. Assiste <strong>na</strong> rua <strong>do</strong> Rozario N.º 11 <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> <strong>na</strong>caza de Pasto 14 .Também as mulheres escravas têm espaço reserva<strong>do</strong> <strong>na</strong> seção de anúncios <strong>da</strong>Gazeta. Como merca<strong>do</strong>ria, ora são vendi<strong>da</strong>s ou aluga<strong>da</strong>s por seus senhores, ora têm suafuga denuncia<strong>da</strong>. A materni<strong>da</strong>de recente lhes agregava valor, e eram vendi<strong>da</strong>s oualuga<strong>da</strong>s como amas-de-leite, como ilustra o anúncio:Vende-se huma escrava ladi<strong>na</strong> de i<strong>da</strong>de de 20 annos, boa ama de leite<strong>da</strong> primeira barriga, sabe lavar, engomar, e to<strong>do</strong> o serviço de huma14GAZETA DO Rio de Janeiro, 2 de março de 1816.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br9caza, e he meio boa cozinheira, quem a quizer comprar procure <strong>na</strong>Ci<strong>da</strong>de Nova, rua <strong>do</strong> Sabão, <strong>na</strong> caza onde se vende a polvora 15 .Essas mulheres eram aluga<strong>da</strong>s por seus senhores a famílias abasta<strong>da</strong>s, quefaziam questão de ostentá-las como símbolo de status. O viajante francês Jean CharlesExpilly observou que as amas-de-leite eram bem trata<strong>da</strong>s, bem vesti<strong>da</strong>s: “o luxo <strong>da</strong> amaexprime a prosperi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> casa”. Além disso, não podia ser contraria<strong>da</strong> em seuscaprichos por receio de que isso pudesse alterar a quali<strong>da</strong>de de seu leite. Para poderusufruir as regalias <strong>da</strong>s amas-de-leite, as jovens negras procuravam a materni<strong>da</strong>de. “Éuma idéia fixa, que toma conta de seu espírito desde que se tor<strong>na</strong>m núbeis, e querealizam assim que têm ocasião”. 16Anúncios <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de escravas continuarão a ser publica<strong>do</strong>s por muitasdéca<strong>da</strong>s, indican<strong>do</strong> uma cadeia parafrástica de senti<strong>do</strong>s perfeitamente ajusta<strong>da</strong> àspráticas discursivas de uma socie<strong>da</strong>de escravocrata que não levará a uma reconfiguração<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s sobre a mulher negra.Mas, e a mulher comum, livre? Como a <strong>imprensa</strong> joani<strong>na</strong> constrói suaimagem? Que posições ocupam <strong>na</strong>s representações? Podem ser identifica<strong>da</strong>s diferentescadeias parafrásticas de senti<strong>do</strong>s relativos a esta mulher. Identifica<strong>da</strong>s nos relatos <strong>da</strong>guerra, são mães e esposas <strong>do</strong>s militares europeus que integram os pelotões <strong>da</strong>s forçasalia<strong>da</strong>s contra Napoleão. Fazem-se presentes nos periódicos por intermédio de mençõesa cartas que receberam de seus filhos ou mari<strong>do</strong>s, e que servem como pano de fun<strong>do</strong> esuporte para os relatos <strong>da</strong>s campanhas <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>s periódicos. O cotidiano <strong>da</strong> guerraé reconstituí<strong>do</strong> a partir <strong>da</strong>s cartas. De uma forma indireta, essas mulheres são vítimas <strong>da</strong>guerra, por se encontrarem longe de seus entes queri<strong>do</strong>s. Mas são as mulheresespanholas as que sofrem diretamente as atroci<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s tropas francesas e integramuma cadeia parafrástica que as constrói como frágeis e indefesas, juntamente com ascrianças e os velhos, carentes <strong>da</strong> proteção <strong>da</strong>s tropas alia<strong>da</strong>s.É ain<strong>da</strong> no contexto <strong>do</strong>s relatos <strong>da</strong> guerra, contu<strong>do</strong>, que se percebe uma<strong>na</strong>rrativa que "rompe" a cadeia parafrástica espera<strong>da</strong>. Trata-se de um relato sobre umamulher espanhola que, ten<strong>do</strong> participa<strong>do</strong> diretamente no campo de batalha, é1516GAZETA DO Rio de Janeiro, 22 de junho de 1816.Cita<strong>do</strong> em LEITE, Miriam Moreira. A condição <strong>femini<strong>na</strong></strong> no Rio de Janeiro, século XIX –antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo/Brasília: Hucitec/Instituto Nacio<strong>na</strong>l <strong>do</strong>Livro/Fun<strong>da</strong>ção Nacio<strong>na</strong>l Pró-Memória, 1984, p. 91.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br10reconheci<strong>da</strong> publicamente pelas autori<strong>da</strong>des locais (espanholas), por sua bravura epatriotismo.D. Catheri<strong>na</strong> Martins Lopes, sobrinha <strong>do</strong> senhor Coman<strong>da</strong>nte D.Toribio Bustamante, companhia inseparável <strong>da</strong>s gloriosas expediçõesde seu Tio, nesta jor<strong>na</strong><strong>da</strong> não só se fez superior ao seu sexo, mas atéexcedeo aos valentes militares, pois não obstante estar feri<strong>da</strong>, deo ellaa morte ao mesmo de quem tinha recebi<strong>do</strong> a feri<strong>da</strong> portan<strong>do</strong>-se commaior Constancia e bizarria 17 .Observe-se, no entanto, que o desempenho de D. Catheri<strong>na</strong> <strong>na</strong> guerra écompara<strong>do</strong> ao de um homem: “bate com a mais desencanta<strong>da</strong> firmeza a tão infamesvân<strong>da</strong>los, manifestan<strong>do</strong> no seu ardente patriotismo um caráter ver<strong>da</strong>deiramentevaronil”; “portan<strong>do</strong>-se [...] como o mais valente sol<strong>da</strong><strong>do</strong>”. A bravura de D. Catheri<strong>na</strong> éreconheci<strong>da</strong> pelas autori<strong>da</strong>des, que lhe conferem o título de Alferes <strong>da</strong> Cavalaria.É, contu<strong>do</strong>, <strong>na</strong>s sequências discursivas em que se consegue vislumbrar ocotidiano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Rio de Janeiro no perío<strong>do</strong> joanino – a seção Avisos <strong>da</strong> Gazeta<strong>do</strong> Rio de Janeiro ─, que as mulheres livres que residem <strong>na</strong> Corte começam a aparecer.Construí<strong>da</strong>s pela voz <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l, timi<strong>da</strong>mente se projetam como sujeitos <strong>na</strong> ordem socialvigente. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, os anúncios se referem principalmente a viúvas quealugam ou vendem algum imóvel ou que aparecem como beneficiárias de uma licença<strong>do</strong> Príncipe para <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de aos negócios <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> faleci<strong>do</strong>. Com menorfrequência, no entanto, a partir de 1809, começam a ser publica<strong>do</strong>s anúncios em quemulheres livres oferecem-se para ensi<strong>na</strong>r outras mulheres e, por vezes, anunciam aabertura de escolas, i<strong>na</strong>uguran<strong>do</strong> uma cadeia parafrástica de senti<strong>do</strong>s que irá perdurarpor déca<strong>da</strong>s:Na rua <strong>do</strong>s Ourives N.º 27, mora huma Ingleza com casa de educaçãopara meni<strong>na</strong>s, que queirão aprender a lêr, escrever, contar, e fallarInglez e Portuguez, cozer, e bor<strong>da</strong>r. 18D. Maria <strong>do</strong> Carmo <strong>da</strong> Silva, <strong>na</strong>tural de Lisboa, assistente nesta Corte,<strong>na</strong> rua de S. José, faz saber ao publico, que <strong>na</strong> caza no. 31 por cima <strong>do</strong>bor<strong>da</strong><strong>do</strong>r, tem Collegio de educação de meni<strong>na</strong>s, a quem prometteesmerar-se em to<strong>do</strong> o gênero de educação. To<strong>da</strong> a pessoa, que quizerservir-se <strong>do</strong> seu préstimo, pode fallar-lhe; o preço he módico.Empenhar-se-há com to<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong>de, a fim de que em pouco temposejão perfeitas as suas educan<strong>da</strong>s 19 .171819CORREIO BRAZILIENSE, seção Política, p. 334, abril de 1810.GAZETA DO Rio de Janeiro, 6 de Setembro de 1809.Ibid., 2 de fevereiro de 1814.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br11Enquanto no primeiro anúncio, de 1809, a anunciante apresenta-seanonimamente, no segun<strong>do</strong>, de 1814, ela se apresenta pelo nome, como alguém quedetém conhecimento valoriza<strong>do</strong> socialmente e que anuncia seus serviços publicamente,inclusive projetan<strong>do</strong>-se como porta<strong>do</strong>ra de atributos como qualificação e eficiência. Oespaço <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l é percebi<strong>do</strong> como espaço de construção <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>sociabili<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong>, além de afigurar-se também como indício de que a socie<strong>da</strong>debrasileira começava a valorizar a educação <strong>femini<strong>na</strong></strong>.No anúncio a seguir, decerto desti<strong>na</strong><strong>do</strong> às cama<strong>da</strong>s mais abasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de, publica<strong>do</strong> em dezembro de 1812, a proprietária <strong>da</strong> escola descrevedetalha<strong>da</strong>mente as habili<strong>da</strong>des a serem ensi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, além de outros serviços ofereci<strong>do</strong>spela escola.D. Cathari<strong>na</strong> Jacob toma a liber<strong>da</strong>de de fazer sciente ao Publico, queella tem estabeleci<strong>do</strong> huma Academia para instrucção de Meni<strong>na</strong>s <strong>na</strong>rua <strong>da</strong> Lapa, defronte <strong>da</strong> Ex. ma Duqueza, em que ensi<strong>na</strong>rá a lêr,escrever e fallar as linguas Portugueza, e Ingleza Grammaticalmente;to<strong>da</strong> a quali<strong>da</strong>de de costura e bor<strong>da</strong><strong>do</strong>, e o manejo <strong>da</strong> Caza. Estáesperança<strong>da</strong> que, em consequencia <strong>do</strong> seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, e attenção <strong>na</strong>educação, Religião, e Moral, merecerá eter<strong>na</strong>mente a protecção <strong>do</strong>sPais, parentes, e pessoas, que lhe confiarem esta honra: ca<strong>da</strong> Meni<strong>na</strong>trará a cama completa, tres toalhas de mãos, hum talher completo, ecópo de prata, pagarão por ca<strong>da</strong> Meni<strong>na</strong> dezoito mil réis por mez,sen<strong>do</strong> a quarteis adianta<strong>do</strong>s. Igualmente to<strong>da</strong>s as pessoas, quequizerem, que as suas Meni<strong>na</strong>s aprendão Muzica, Dança, e Desenho,será pago á parte [...] 20 .Este anúncio é publica<strong>do</strong> mais uma vez <strong>na</strong> Gazeta, <strong>na</strong> íntegra, e quatro mesesapós a abertura <strong>da</strong> Academia, a proprietária publica novo anúncio, desta vez informan<strong>do</strong>que a Princesa Carlota, demonstran<strong>do</strong> seu interesse pela instrução pública, haviapermiti<strong>do</strong> que as alu<strong>na</strong>s pensionistas passassem a usar uma me<strong>da</strong>lhinha com seu retrato.O trabalho que vem sen<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong> por D. Cathari<strong>na</strong> Jacob legitima-se com aaprovação explícita <strong>da</strong> Princesa.Tu<strong>do</strong> indica, delineava-se uma mu<strong>da</strong>nça no que diz respeito à construção <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong>. Ler e escrever passam a ser habili<strong>da</strong>des <strong>femini<strong>na</strong></strong>s valoriza<strong>da</strong>ssocialmente. Observe-se, no entanto, que D. Cathari<strong>na</strong> Jacob, embora delineie comobjetivi<strong>da</strong>de aspectos <strong>do</strong> serviço que anuncia, inclusive preços, e também se utilize desofistica<strong>da</strong>s estratégias merca<strong>do</strong>lógicas para atrair futuras alu<strong>na</strong>s, solicita, em primeiro20 GAZETA DO Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1812; 6 de janeiro de 1813.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br12lugar, a proteção eter<strong>na</strong> <strong>da</strong>s famílias <strong>da</strong>s alu<strong>na</strong>s, em uma espécie de escambo que amoe<strong>da</strong> parece ape<strong>na</strong>s complementar.SAINDO DA SOMBRA ─ A IMPRENSA FEMININA DA SEGUNDA METADEDO SÉCULO XIXO século XIX foi palco de grandes transformações sociais, políticas e culturais<strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, e são inúmeros os estu<strong>do</strong>s sobre o papel <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> comopartícipe ativa nessas mu<strong>da</strong>nças. Fala-se <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>da</strong> Independência a partir de 1820,quan<strong>do</strong> se dá a passagem de um espaço público marca<strong>do</strong> pelas formas de comunicaçãotípicas <strong>do</strong>s Antigos Regimes, <strong>da</strong>s gazetas, pregões, exibição de cartazes <strong>na</strong>s ruas,leituras coletivas, para um espaço público onde se consoli<strong>da</strong>vam debates por meio <strong>da</strong><strong>imprensa</strong>.A partir de 1840, começa a prevalecer o conceito de opinião públicaidentifica<strong>da</strong> à vontade <strong>da</strong> maioria 21 .A conexão entre jor<strong>na</strong>lismo e literatura se acentua. Buscava-se uma identi<strong>da</strong>de<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, descola<strong>da</strong> <strong>da</strong> portuguesa: era o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Romantismo. A influência <strong>do</strong>sescritores cresceu por meio <strong>do</strong>s folhetins, e os jor<strong>na</strong>is e revistas estavam ca<strong>da</strong> vez maispresentes <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas letra<strong>da</strong>s. Temia-se o fim <strong>do</strong> livro. Muitas vezes, apublicação de uma obra sob a forma de livro dependia de seu sucesso como folhetim.Diversas obras de relevância <strong>na</strong> literatura brasileira foram escritas para folhetins: OGuarani, A viuvinha, de José de Alencar, Memórias de um sargento de milícias deJoaquim Manuel de Mace<strong>do</strong>. Macha<strong>do</strong> de Assis teve Quincas Borba, A mão e a luva eIaiá Garcia publica<strong>do</strong>s em folhetim, ten<strong>do</strong>, ao longo de sua carreira, colabora<strong>do</strong>simultaneamente em diversos jor<strong>na</strong>is, inclusive o Jor<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s Famílias, de largo públicofeminino 22 .A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1870, as ideias republica<strong>na</strong>s conquistavam a <strong>imprensa</strong> e ofluxo <strong>do</strong>s acontecimentos propicia o surgimento de inúmeros jor<strong>na</strong>is. A <strong>imprensa</strong> eraprincipalmente abolicionista e republica<strong>na</strong> e o que se fazia era combater a pretensasacrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s instituições: <strong>da</strong> escravidão, <strong>da</strong> mo<strong>na</strong>rquia, <strong>do</strong> latifúndio 23 .212223MOREL, Marco; BARROS, Maria<strong>na</strong> Monteiro de. Palavra, imagem e poder – o surgimento <strong>da</strong><strong>imprensa</strong> no Brasil <strong>do</strong> século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.Ibid.SODRÉ, Nelson Werneck. História <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br13Talvez por esta razão, a fecun<strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século XIX sejafrequentemente aponta<strong>da</strong> como partícipe ativa <strong>na</strong> construção de uma nova identi<strong>da</strong>de<strong>femini<strong>na</strong></strong>, até então construí<strong>da</strong> com referência ao <strong>do</strong>mínio familiar e <strong>do</strong>méstico e <strong>na</strong>visão <strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de enquanto uma função biológica 24 . No fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século XIX,acompanhan<strong>do</strong> as tendências européias, surge no Brasil a <strong>imprensa</strong> <strong>femini<strong>na</strong></strong>,i<strong>na</strong>uguran<strong>do</strong> um novo espaço de expressão para a palavra <strong>femini<strong>na</strong></strong>.Era forte a vinculação entre os periódicos femininos e a literatura. Váriosjor<strong>na</strong>is e revistas foram publica<strong>do</strong>s por associações literárias <strong>femini<strong>na</strong></strong>s, abrin<strong>do</strong>-seentão para as mulheres um espaço no mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> literatura, antes ocupa<strong>do</strong> quase queexclusivamente por homens 25 . Além <strong>da</strong> literatura, a mo<strong>da</strong> também tinha papelsignificativo <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>femini<strong>na</strong></strong>. As colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>ras ansiavam pelas publicações quetraziam, além <strong>do</strong> noticiário cultural, a continuação <strong>do</strong>s romances li<strong>do</strong>s em série e aúltima mo<strong>da</strong> de Paris.Delineava-se a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mulher urba<strong>na</strong>, burguesa, instruí<strong>da</strong>, que passava aexpressar o desejo de atuar mais decidi<strong>da</strong>mente no seu meio. Os jor<strong>na</strong>is projetavam umamulher percebi<strong>da</strong> à luz <strong>do</strong>s discursos que construíam a sua subjetivi<strong>da</strong>de <strong>na</strong> ordem <strong>do</strong>priva<strong>do</strong>. Muitos periódicos tinham a forma de diários, memórias e escritos íntimos,gêneros discursivos femininos comuns <strong>na</strong> época que, juntamente com os figurinos,receitas culinárias, moldes de trabalhos manuais, contos, folhetins, tentavam normatizara conduta <strong>femini<strong>na</strong></strong> em seu novo papel de esposa-mãe-<strong>do</strong><strong>na</strong> de casa. A nova identi<strong>da</strong>de<strong>femini<strong>na</strong></strong> calca<strong>da</strong> <strong>na</strong> valorização <strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de, <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com o mari<strong>do</strong> e os filhos,era construí<strong>da</strong> a partir <strong>do</strong> discurso de médicos, higienistas, moralistas, pe<strong>da</strong>gogos 26 . Ofragmento de uma matéria <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l A Família, de 1889, é ilustrativo:Da alegria <strong>da</strong> mesa depende a alegria <strong>do</strong> lar; <strong>da</strong> economia de to<strong>do</strong>s osinstantes depende o bom-humor <strong>da</strong>s festas de família; <strong>da</strong> elegância eprimoroso asseio <strong>da</strong> mulher depende a ternura inesgotável <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>;242526Cf. BICALHO, M. Fer<strong>na</strong>n<strong>da</strong> Baptista. O bello sexo: <strong>imprensa</strong> e identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong> no Rio de Janeiroem fins <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX. In: COSTA, Alberti<strong>na</strong> de O.; BRUSCHINI, Cristi<strong>na</strong>(orgs.). Rebeldia e submissão – estu<strong>do</strong>s sobre condição <strong>femini<strong>na</strong></strong>. São Paulo: Vértice, 1989;SOIHET, Rachel. Condição <strong>femini<strong>na</strong></strong> e formas de violência ─ mulheres pobres e ordem urba<strong>na</strong>. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1989; FERREIRA, Lucia M. A. A escrita de si <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> –exemplos <strong>da</strong> fala <strong>femini<strong>na</strong></strong> <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>do</strong> século XIX. In: MARIANI, Bethânia (Org.). A escrita e osescritos: reflexões em análise <strong>do</strong> discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa <strong>femini<strong>na</strong></strong>. São Paulo: Ática, 1990.Cf. TADDEI; TURACK; FERREIRA. Imagens <strong>da</strong> mulher <strong>na</strong> literatura e <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong> no Brasiloitocentista. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v. 18, n. 2, p. 311-24, 2007.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br14<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> por que ela rege e <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> o seu pequeno império <strong>do</strong>mésticodepende a educação <strong>do</strong>s filhos, a morali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> interior [...].Por que não fazemos <strong>da</strong> nossa casa um ninho alegre e fofo, que onosso mari<strong>do</strong> prefira ao botequim, ao grêmio, ao clube, ao restaurante,à casa de seus amigos, e onde ele esteja certo de encontrar o alimentomais saboroso e mais higiênico, o ar mais puro e lava<strong>do</strong>, a poltro<strong>na</strong>mais cômo<strong>da</strong>, a conversa mais anima<strong>da</strong>, mais substancial, maischistosa e menos pe<strong>da</strong>nte?Pouco a pouco, à regeneração <strong>da</strong> mulher, seguir-se-ia a regeneração<strong>do</strong> homem 27 .Inseri<strong>da</strong> no imaginário social <strong>da</strong> época, afeta<strong>da</strong> pela memória e pelos discursos,a mulher enuncia-se como sujeito a partir <strong>do</strong>s lugares sociais que lhe são reserva<strong>do</strong>s:deve cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> casa, mantê-la limpa e organiza<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> educação <strong>do</strong>s filhos emanter o mari<strong>do</strong> dentro de casa. Consoli<strong>da</strong>-se, portanto, no espaço público <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong>,uma cadeia de senti<strong>do</strong>s sobre o papel social <strong>da</strong> mulher que tenderá à homogeneização ecristalização <strong>na</strong> memória social.Mas os rearranjos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de social se sucedem e se sobrepõemcontinuamente no mesmo espaço discursivo. As formações discursivas não são fixasnem estáveis. Pelo contrário, são invadi<strong>da</strong>s por outras formações discursivas,provocan<strong>do</strong> deslocamentos e o surgimento de novos senti<strong>do</strong>s. É por este motivo que, nomesmo A Família, que muitas vezes veicula discursos extremamente conserva<strong>do</strong>res,são construí<strong>do</strong>s veementes discursos favoráveis ao sufrágio feminino, como ilustra ofragmento a seguir, também de 1890, em que a autora comenta o parecer <strong>do</strong>sparlamentares encarrega<strong>do</strong>s <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong> Constituição, desfavorável ao votofeminino:[...] claro está que as nossas aptidões não podem ser delimita<strong>da</strong>s pelospreconceitos de sexo, principalmente nos casos em que tenhamos deafirmar a nossa soberania pelo direito de voto. O direito de votar nãopode, não deve, não é justo que tenha outra restrição além <strong>da</strong>emancipação intelectual, <strong>da</strong> consciência <strong>do</strong> ato, <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de dediscrimi<strong>na</strong>ção.Ain<strong>da</strong> mesmo – o que não admito – que não tenhamos o direito de servota<strong>da</strong>s, devemos possuir o de voto, isto é, o <strong>da</strong> livre escolha <strong>da</strong>quelesque sejam chama<strong>do</strong>s a reger os destinos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em quevivemos, e que alentamos com a vi<strong>da</strong> e educação de nossos filhos 28 .2728Cita<strong>do</strong> em BICALHO, M. Fer<strong>na</strong>n<strong>da</strong> Baptista. O bello sexo: <strong>imprensa</strong> e identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong> no Rio deJaneiro em fins <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX. In: COSTA, Alberti<strong>na</strong> de O.; BRUSCHINI,Cristi<strong>na</strong>. (Orgs.). Rebeldia e submissão – estu<strong>do</strong>s sobre condição <strong>femini<strong>na</strong></strong>. São Paulo: Vértice, 1989,p. 91.Ibid.


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br15A <strong>imprensa</strong> que se convencionou chamar de <strong>imprensa</strong> <strong>femini<strong>na</strong></strong> <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>século XIX não se apoiava exclusivamente <strong>na</strong> literatura e <strong>na</strong> mo<strong>da</strong> para reivindicar ainstrução <strong>da</strong> mulher como condição indispensável à sua emancipação. De acor<strong>do</strong> com oimaginário <strong>da</strong> época, reconhecia a função forma<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> mulher, ampliava seu poder <strong>na</strong>esfera <strong>do</strong>méstica e enfatizava sua capaci<strong>da</strong>de de intervenção moraliza<strong>do</strong>ra <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de,mas também projetava vozes que clamavam por mais <strong>do</strong> que sua atuação <strong>na</strong> esferapriva<strong>da</strong>: denunciavam a discrimi<strong>na</strong>ção sexual e reivindicavam o sufrágio feminino.Inscreve-se, portanto, <strong>na</strong> escrita jor<strong>na</strong>lística, um processo de subjetivação e deconstrução <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> feminino que, por manifestar-se no discurso <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong>,poderá vir a constituir memória e agen<strong>da</strong>r processos identitários futuros.CONSIDERAÇÕES FINAISNa análise ora empreendi<strong>da</strong>, procurou-se entender as representações <strong>da</strong>sociabili<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong> projeta<strong>da</strong>s pelos jor<strong>na</strong>is como construções discursivas que, alémde sua dimensão constitutiva <strong>na</strong> construção social <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, são também práticasocial que projeta e forja a mu<strong>da</strong>nça social e cultural. Pretendeu-se, com a análise,captar aspectos que permitissem flagrar a mu<strong>da</strong>nça social e os sucessivos rearranjos <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong> e, em decorrência disso, <strong>da</strong> construção discursiva de gênero e <strong>da</strong>memória social.A literatura sobre a <strong>imprensa</strong> em geral, e em particular sobre a <strong>imprensa</strong>brasileira <strong>do</strong> século XIX, com frequência mostra que a discussão crítica estimula<strong>da</strong> pela<strong>imprensa</strong> periódica teve um impacto transforma<strong>do</strong>r <strong>na</strong>s instituições e <strong>na</strong>s práticaspolíticas. No que diz respeito às mulheres, observa-se, a partir <strong>do</strong> exame <strong>do</strong>s periódicos<strong>do</strong> início <strong>do</strong> século e <strong>do</strong>s periódicos <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>femini<strong>na</strong></strong> <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século, profun<strong>da</strong>smu<strong>da</strong>nças relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s à reconfiguração <strong>do</strong> espaço público feminino, no que dizrespeito às representações <strong>na</strong> <strong>imprensa</strong>. Se no início <strong>do</strong> século as mulheres eram quaseinvisíveis no espaço público <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong>, no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século elas não ape<strong>na</strong>s sãorepresenta<strong>da</strong>s com maior frequência como suas vozes ecoam em veículos que lhes sãoespecíficos, muitas vezes empreendimentos de mulheres. Mas, o que pode ter mu<strong>da</strong><strong>do</strong>?Análises <strong>da</strong> condição <strong>femini<strong>na</strong></strong> <strong>na</strong> Europa <strong>do</strong> século XIX apontam para umaclara exclusão <strong>da</strong>s mulheres <strong>do</strong> espaço político, <strong>na</strong> maior parte <strong>da</strong>s vezes inseparável <strong>do</strong>público. Os princípios de organização política delinea<strong>do</strong>s pelos filósofos destacam que,


Fênix – Revista de História e Estu<strong>do</strong>s CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br16em virtude de sua i<strong>na</strong>ptidão radical para as coisas <strong>da</strong> política, as mulheres colocariam oEsta<strong>do</strong> em perigo. Além disso, há também um discurso <strong>do</strong>s ofícios que acentua adivisão <strong>da</strong>s esferas de atuação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sexos: “Ao homem, a madeira e os metais. Àmulher, a família e os teci<strong>do</strong>s”. Nos meios populares urbanos, a ausência <strong>do</strong> pai,distancia<strong>do</strong> pelo trabalho, reforça o papel social <strong>da</strong> mãe que conquista o direito deadministrar o pagamento <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, constituin<strong>do</strong> um “matriarca<strong>do</strong> orçamentário”,principalmente <strong>na</strong> esfera burguesa 29 . Também faz parte de suas atribuições <strong>na</strong>administração <strong>do</strong> lar a iniciação <strong>do</strong>s filhos <strong>na</strong>s primeiras letras.É compreensível que transformações semelhantes no que diz respeito àreconfiguração <strong>do</strong> espaço feminino estivessem ocorren<strong>do</strong> no Brasil no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> séculoXIX. É fun<strong>da</strong>mental, to<strong>da</strong>via, que se tenha em mente que estes novos rearranjos <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de <strong>femini<strong>na</strong></strong>, flagra<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s representações <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong> <strong>da</strong> época, foramconstruí<strong>do</strong>s no interior <strong>do</strong>s movimentos <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século, quan<strong>do</strong> as campanhasabolicionista e republica<strong>na</strong> clamavam ideais de liber<strong>da</strong>de e igual<strong>da</strong>de. Construí<strong>do</strong> emmeio às transformações econômicas e sociais decorrentes <strong>da</strong> inserção <strong>do</strong> País <strong>na</strong> eracapitalista, este discurso colocou a mulher ca<strong>da</strong> vez mais em contato com a esferapública e com o merca<strong>do</strong>. Reorganiza-se, portanto, o contexto sociopolítico e oimaginário e, no espaço público <strong>da</strong> <strong>imprensa</strong>, a mulher sai <strong>da</strong> sombra e faz ecoar a suavoz.29 PERROT. Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s <strong>da</strong> história: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1992, p. 178.

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