Apesar de encomendada pelo mesmo proprietário, a Casa deSanta Maria não podia contrastar mais com o exuberante palacetede reminiscências gótica e manuelina imediatamente oposto,a que O’Neill chamou Torre de São Sebastião (o actual Museu-Biblioteca do Conde de Castro Guimarães). Enquanto este sugereum imaginário mítico, cruzado por estilos arquitectónicos e povoadode elementos cenográficos (um pouco como sucede na Quintada Regaleira, em Sintra), o projecto de Raul Lino assumiu a tradiçãoda arquitectura mediterrânica e da «casa portuguesa» emparticular. Esta influência haveria de transformar-se em questãoe daí em polémica, opondo-o frontalmente aos modernistas nodecurso das décadas seguintes. Mas, em 1902, a discussão aindaestava longe.Raul Lino é então um jovem arquitecto de 23 anos, sem diplomaoficial, para o que teria de esperar outro tanto. A sua formaçãofaz-se em Inglaterra e, sobretudo, na Alemanha, onde é decisiva aaprendizagem no atelier de arquitectura de Albrecht Haupt .(«a ele devo o grande amor que passei a nutrir pela minha terra»,escreve). Regressado a Portugal, viaja pelo país recolhendo ideiase executa os primeiros trabalhos, entre os quais o projecto dopavilhão português para a Exposição Universal de Paris de 1900,que perde para Ventura Terra. Estas viagens de reconhecimentocontribuem para consolidar uma linguagem em que assume osvalores nacionais e uma certa cultura natural da vivência doespaço de habitação. Não se limita ao território português.Também em 1902, deslocar-se-á a Marrocos, «um país desconhecidoque parecia recuado pelo menos três séculos no tempo». .Ali passa um mês, imbuído do espírito romântico da aventura,para depois regressar com a convicção de ter recebido influênciasque extravasam os limites do exercício da profissão: «Creio teraprendido a encarar a vida com mais compreensão e placidez», diz.A Casa de Santa Maria é a segunda das chamadas «casas marroquinas»que Raul Lino desenhou entre 1901 e 1903, e uma dasdezenas que assinou no concelho de Cascais. O ascendente surgiuatravés do pianista e amigo Alexandre Rey Colaço, cujo irmãovivia em Tânger. Para Rey Colaço, Raul Lino projectou a CasaMonsalvat, no Monte Estoril. Seguiu-se a Casa de Santa Maria e,pouco depois, a Casa Silva Gomes e Vila Tânger, ambas tambémno Monte Estoril. Diferentes entre si, todas reflectem a experiênciado Alentejo e de Marrocos, como resume Manuel Rio-<strong>Carvalho</strong> naHistória da Arte em Portugal: “Pela via marroquino-alentejana,Raul Lino adquire um particular gosto pelos valores matéricosdas paredes expostas à luz crua meridional, pelas molduraçõesque adoçam e jogam com os efeitos de sombra, pelos ambientesde frescura dos espaços-transição, quer interiorizando varandas .e alpendres, quer exteriorizando salas e átrios, jogando com aquiloque chama “almofadas de penumbra”.»A importância da luz, que o crítico sublinha ter para Raul Lino .o papel de um «material arquitectónico», é notória para quemvisite a casa e possa aperceber-se do percurso do sol ao longo dodia. «Luz em toda a parte», era um dos princípios do autor deCasas Portuguesas: «Feliz disposição da planta, convenienteorientação, boas qualidades construtivas, isolamento desejado, obom ar e luz em toda a parte», eis os elementos essenciais da suanoção material de «comodidade». A ligação à natureza, um valorde outra ordem, mas não menos relevante para Lino, tambémencontrou eco em Santa Maria. Das quatro «casas marroquinas»,é sem dúvida aquela que melhor usufrui deste privilégio.48 |
A preocupação de criar espaços de interiorização e vivência familiar,aproveitando o cenário circundante, tem exemplo no terraçoalpendrado que dá para o exterior. Uma pequena zona ajardinadafaz fronteira com o mar, quase trazendo as ondas à porta decasa. Como que prolongando essas texturas naturais, tanto oalpendre como grande parte da fachada principal se cobriram devinha virgem, planta trepadeira que surpreende com as coresrubras e ocres do Outono, e no Verão empresta frescura ao lugar.Ao longo da sua história, a Casa de Santa Maria passou por trêsproprietários. Dificuldades financeiras obrigaram Jorge O’Neill .a vender o imóvel, o mesmo tendo sucedido com a Torre de .S. Sebastião, comprada pelos Condes de Castro Guimarães apenasalguns anos antes. Neste caso, coube a sorte a José Lino, coleccionadore apreciador de arte, que acedeu em ficar com Santa Mariana condição de o irmão resgatar do abandono os azulejos e otecto da capela da Quinta da Ramada, em Frielas. Raul Lino concordoue, em 1918, iniciou a terceira fase de construção, cuja marcaé a ampliação do primeiro piso: o oratório, a sacristia e o salão dejantar. Com o saber técnico do seu tempo, «importou» para aqui .o rico património azulejar barroco e o tecto de madeira pintado .a óleo de António de Oliveira Bernardes, salvando-os da morteanunciada. Muitos visitantes, especialistas ou não, chegam com .a intenção expressa de conhecer os painéis de Oliveira Bernardes,visíveis também ao longo da escadaria principal que conduz .ao primeiro piso.| 49