Aprimeira vez que viu luz surgir numa pequenabola de vidro não terá sido há mais 15 anos,e só porque a senhoria da casa que habita, numbairro antigo e degradado construído há cemanos, foi obrigada, pela autarquia, a proceder .à instalação do contador. Até então, Laurinda não sabia o bemque sabe ler as histórias que se contam em livro do herói daterra, D. Nuno Álvares Pereira, muito para lá das horas desol. «Sou velhinha e sou mulher e felizmente tive a sorte deaprender as letras e os números».Escrever é exercício que as artroses nas mãos já não lhe permitemhá muito. Ler, «graças a Deus», tem olhos que ainda lhe concedemessa generosidade. «É das poucas capacidades que tenho, o meucorpo já não funciona. As pernas já quase não andam. Sou umamulher doente...». Foi apoiada aos móveis que conseguiu arrastaros pés até à porta para ver «quem é?». E, a custo, alcançou a cadeirade plástico branca, junto à soleira, onde se senta sempre que .a temperatura no interior da habitação exige que sinta a frescurada brisa que vem de um fio do Tejo, aqui mesmo ao lado.Laurinda sabia que a electricidade existia antes de ter em casalâmpadas alimentadas a energia eléctrica, que lhe prolongaramos momentos de prazer - «ler é o que mais gosto» - e atenuaram .a sensação de solidão – «sou viúva há 50 anos, tenho um filho .que é muito seco para mim». Mas do potencial da energia sóconhecia o do sol, através da secagem de roupa no estendal, .e o da água, tendo como referência o moinho de maré da terraque trabalhava dia e noite e mesmo assim «não chegava para as .encomendas de farinha».A Região de Lisboa e Vale doLaurindaTem 82 anos e lembra-se como se ontem fosse. «Quando era garota,tinha seis, sete, dez anos, andava aos caranguejos acolá ao pédo moinho e aquilo era um corropio de barcos a chegar e a partir.Vinham buscar a farinha de trigo com que antigamente se fazia opão». O cereal, «não sei se vinha de fora ou se daqui da nação.»Aqui de Corróios não, que isto dantes era um deserto» em gentemas muito povoado em «mato». Laurinda sabe bem do que fala,porque é das «raras pessoas de Corroios» que permanece na terraonde nasceu e de onde nunca saiu. E por isso tem presente .na memória o movimento de outrora do moinho de maré.Tejo, em particular, é uma zonade elevado potencial renovável,sobretudo solar e eólico, que«podem contribuir para tornara cidade de Lisboa uma dascapitais do mundoenergeticamente maissustentáveis».Nessa altura, e nesta de resto, energia renovável é termo estranhopara Laurinda. Mas já antes da sua meninice houve alguém, .português, visionário, que percebeu que o país e o mundo deviamtirar partido de fontes de energia como o sol e o vento. Era padre,chamava-se Manuel António Gomes (nasceu em 1869) e a suaestatura, alta, fez com que os amigos lhe chamassem Himalaya,que acabou por adoptar. Este homem foi o primeiro a defender .o desenvolvimento de um país através do aproveitamento dassuas forças naturais e, para fazer valer a sua tese, inventou .a primeira máquina solar: um forno para transformar o azoto .da atmosfera em azotatos, com os quais pretendia produzir .fertilizantes para a agricultura. A revista Scientific American noticiouo invento, que ficou credibilizado junto da comunidadetécnico-científica da época.O pioneirismo deste sacerdote no investimento em energiasrenováveis inspirou o actual «Concurso Solar Padre Himalaya», .de âmbito nacional, organizado em seis escalões de competição eabordando os diferentes ciclos do ensino básico, secundário, pro-22 |
Moinho de Maré de Corroiosfissional ou superior. Dirigido a equipas de professores e alunos detodas as escolas nacionais, a ideia do concurso, segundo o seucoordenador, David Loureiro, é contrariar «o atraso da sociedadeportuguesa em despertar para as energias renováveis», por umlado, e «estimular os gosto pela actividade experimental», .por outro.Laurinda nunca ouviu falar do padre Himalaya, que «não deve tersido homem importante», seguramente não tanto como o seuconterrâneo D. Nuno Álvares Pereira, «esse sim, homem de .primeira e de grande coragem», que com meia dúzia de pessoasvenceu o inimigo mouro que queria tirar-lhe esta terra e as outrasà volta. Isto tudo conta Laurinda com a lágrima a querer formar-se,tal a emoção quando fala do herói de Corroios. Herói, porque heróié quem luta para defender até à morte a sua propriedade, e nãoalguém que tem a coragem de falar ao mundo de um conceitofuturista chamado sustentabilidade e que passa pela aposta nasenergias renováveis. Mas o padre Himalaya tem mais em comumcom D. Nuno Álvares Pereira do que Laurinda imagina, pois tambémele tirou proveito de uma fonte energética renovável como .a água: mandou construir o moinho de Corroios, o primeironaquela região (D. Nuno Álvares Pereira era proprietário de quasetodos os terrenos banhados pelo braço do rio Tejo que entra .no Seixal).Laurinda sabe de cor e salteado a história deste engenho, quedesde 1984 é um Edifício Classificado de Interesse Público. Dessahistória fazem parte as obras «que nunca mais acabam» e queimpõem um interregno forçado na sua função actual: a de .satisfazer a curiosidade de turistas que querem saber como é quedos cereais se fazia farinha - a figura do moleiro era aqui representadopor um funcionário da câmara, «o senhor Vítor», antesdo moinho fechar para recuperação. Aproveitado ao longo dosúltimos anos como atracção de cartaz turístico, integrando .o núcleo museológico da Câmara Municipal do Seixal, está .em obras há «seis anos, pelo menos», se não se engana o povo,representado por uma ínfima amostra constituída por MariaFilomena Mateus, Ana Maria Duarte, Felismina Veiguinha .e Joaquim Esteves.Os moinhos de maré representam uma utilização precursora .de um recurso renovável: a energia das marés. No passado, .os estuários dos principais rios portugueses estavam cheios destastecnologias seculares, simples mas eficazes. Já no século xvi existiamcerca de 60 engenhos entre Almada e o Montijo, mas desses nemsequer restam ruínas. Só o de Corroios se mantém em bom .estado e capaz de funcionar, apesar das obras.| 23