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Protocolo de Istambul - DHnet

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Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos HumanosGENEBRA<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong>Série <strong>de</strong> Formação Profissional n. o 08MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃOE DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURAE OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,DESUMANOS OU DEGRADANTESNAÇÕES UNIDASNova Iorque e Genebra, 2001


Dr. Hernan Reyes, Center for the Study of Society and Medicine,Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Columbia, Nova IorqueAnn Sommerville, British Medical Association, LondresDr. Numfondo Walaza, The Trauma Centre for Survivors of Violenceand Torture, Cida<strong>de</strong> do CaboAutores que contribuíramDr. Suat Alptekin, Departamento <strong>de</strong> Medicina Legal, <strong>Istambul</strong>Dr. Zuhal Amato, Departamento <strong>de</strong> Ética, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> MedicinaDokuz Eylül, EsmirnaDr. Alp Ayan, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia, EsmirnaDr. Semih Aytaçlar, Sonomed, <strong>Istambul</strong>Dr. Metin Bakkalci, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia,AncaraDr. Ümit Biçer, Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Especialistas em Medicina Legal,<strong>Istambul</strong>Dr. Yes |im Can, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia, <strong>Istambul</strong>Dr. John Chisholm, British Medical Association, LondresDr. Lis Danielsen, Conselho Internacional <strong>de</strong> Reabilitação para Vítimas<strong>de</strong> Tortura, CopenhagaDr. Hanan Diab, Physicians for Human Rights Palestine, GazaJean-Michel Diez, Association for the Prevention of Torture, GenebraDr. Yusuf Doapplear, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia,<strong>Istambul</strong>Dr. Morten Ekstrom, Conselho Internacional <strong>de</strong> Reabilitação para Vítimas<strong>de</strong> Tortura, CopenhagaProfessor Ravindra Fernando, Department of Forensic Medicine andToxicology, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Colombo, ColomboDr. John Fitzpatrick, Cook County Hospital, ChicagoCamille Giffard, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Essex, InglaterraDr. Jill Glick, Hospital Pediátrico da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Chicago,ChicagoDr. Emel Gökmen, Departamento <strong>de</strong> Neurologia, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>Istambul</strong>, <strong>Istambul</strong>Dr. Norbert Gurris, Behandlungszentrum für Folteropfer, BerlimDr. Hakan Gürvit, Departamento <strong>de</strong> Neurologia, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>Istambul</strong>, <strong>Istambul</strong>Dr. Karin Helweg-Larsen, Associação Médica Dinamarquesa,CopenhagaDr. Gill Hinshelwood, The Medical Foundation for the Care ofVictims of Torture, LondresDr. Uwe Jacobs, Survivors International, São FranciscoDr. Jim Jaranson, The Center for Victims of Torture, MinneapolisCecilia Jimenez, Association for the Prevention of Torture, GenebraKaren Johansen Meeker, University of Minnesota Law School,MinneapolisIV


Dr. Emre Kapkin, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia,EsmirnaDr. Cem Kaptanoapplelu, Departamento <strong>de</strong> Psiquiatria, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Medicina da Universida<strong>de</strong> Osmangazi, Eski˛ehirProfessora Ioanna Kuçuradi, Centro para a Pesquisa e Aplicação daFilosofia e dos Direitos Humanos, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hacettepe,AncaraBasem Lafi, Programa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental da Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gaza, GazaDr. Elizabeth Lira, Instituto Latinoamericano <strong>de</strong> Salud Mental,SantiagoDr. Veli Lök, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia, EsmirnaDr. Michèle Lorand, Cook County Hospital, ChicagoDr. Ruchama Marton, Physicians for Human Rights Israel, Tel AvivElisa Massimino, Lawyers Committee for Human Rights, Nova IorqueCarol Mottet, consultora juridica, BernaDr. Fikri Öztop, Departamento <strong>de</strong> Patologia, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicinada Universida<strong>de</strong> Ege, EsmirnaAlan Parra, Gabinete do Relator Especial sobre Tortura, GenebraDr. Beatrice Patsali<strong>de</strong>s, Survivors International, São FranciscoDr. Jean Pierre Restellini, Unida<strong>de</strong> para a Divulgação dos DireitosHumanos, Direcção <strong>de</strong> Direitos Humanos, Conselho da Europa,EstrasburgoNigel Rodley, Relator Especial sobre Tortura, GenebraDr. Füsun Sayek, Associação Médica Turca, AncaraDr. Françoise Sironi, Centre Georges Devereux, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Paris VIII, ParisDr. Bent Sorensen, Conselho Internacional <strong>de</strong> Reabilitação para Vítimas<strong>de</strong> Tortura, Copenhaga, e Comité contra a Tortura, GenebraDr. Nezir Suyugül, Departamento <strong>de</strong> Medicina Legal, <strong>Istambul</strong>Asmah Tareen, University of Minnesota Law School, MinneapolisDr. Henrik Klem Thomsen, Departamento <strong>de</strong> Patologia, HospitalBispebjerg, CopenhagaDr. Morris Tidball-Binz, Programa para a Prevenção da Tortura, InstitutoInteramericano <strong>de</strong> Direitos Humanos, São José, Costa RicaDr. Nuray Türksoy, Fundação <strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia,<strong>Istambul</strong>Hülya Üçpinar, Gabinete <strong>de</strong> Direitos Humanos, Associação Izmir Bar,EsmirnaDr. Adriaan van Es, Fundação Johannes Wier, AmesterdãoRalf Wie<strong>de</strong>mann, University of Minnesota Law School, MinneapolisDr. Mark Williams, The Center for Victims of Torture, MinneapolisParticipantesAlessio Bruni, Comité contra a Tortura, GenebraDr. Eyad El Sarraj, Programa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental da Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gaza,GazaV


Dr. Rosa Garcia-Peltoniemi, The Center for Victims of Torture,MinneapolisDr. Ole Hartling, Associação Médica Dinamarquesa, CopenhagaDr. Hans Petter Hougen, Associação Médica Dinamarquesa, CopenhagaDr. Delon Human, World Medical Association, Ferney-VoltaireDr. Dario Lagos, Equipo Argentino <strong>de</strong> Trabajo e Investigación Psicosocial,Buenos AiresDr. Frank Ulrich Montgomery, Associação Médica Alemã, BerlimDaniel Prémont, Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Vítimas<strong>de</strong> Tortura, GenebraDr. Jagdish C. Sobti, Associação Médica Indiana, Nova DeliTrevor Stevens, Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, EstrasburgoTurgut Tarhanli, Departamento <strong>de</strong> Relações Internacionais e DireitosHumanos, Universida<strong>de</strong> Boappleazici, <strong>Istambul</strong>Wil<strong>de</strong>r Taylor, Human Rights Watch, Nova IorqueDr. Joergen Thomsen, Conselho Internacional <strong>de</strong> Reabilitação paraVítimas <strong>de</strong> Tortura, CopenhagaEste projecto foi financiado com o generoso apoio do Fundo Voluntáriodas Nações Unidas para as Vítimas <strong>de</strong> Tortura, da Divisão <strong>de</strong> DireitosHumanos e Política Humanitária do Departamento Fe<strong>de</strong>ral dosNegócios Estrangeiros, Suíça, do Gabinete para as Instituições Democráticase Direitos Humanos (ODIHR) da Organização para a Segurançae Cooperação na Europa, da Cruz Vermelha Suiça, da Fundação<strong>de</strong> Direitos Humanos da Turquia e da organização Physicians forHuman Rights. Conce<strong>de</strong>ram também o seu apoio as seguintes entida<strong>de</strong>s:The Center for Torture Victims, Associação Médica Turca,Conselho Internacional <strong>de</strong> Reabilitação para Vítimas <strong>de</strong> Tortura,Amnistia Internacional – Suíça e Associação Cristã para a Aboliçãoda Tortura – Suíça.VI


IntroduçãoPara os efeitos do presente manual, a tortura é<strong>de</strong>finida nos termos constantes da Convenção dasNações Unidas contra a Tortura, <strong>de</strong> 1984:“Tortura significa qualquer actopor meio do qual uma dor ousofrimentos agudos, físicos oumentais, são intencionalmentecausados a uma pessoa com osfins <strong>de</strong>, nomeadamente, obter<strong>de</strong>la ou <strong>de</strong> uma terceira pessoa informações ou confissões,a punir por um acto que ela ou uma terceirapessoa cometeu ou se suspeita que tenhacometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceirapessoa, ou por qualquer outro motivobaseado numa forma <strong>de</strong> discriminação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queessa dor ou esses sofrimentos sejam infligidospor um agente público ou qualquer outra pessoaagindo a título oficial, a sua instigação ou com oseu consentimento expresso ou tácito. Este termonão compreen<strong>de</strong> a dor ou os sofrimentos resultantesunicamente <strong>de</strong> sanções legítimas, inerentes aessas sanções ou por elas ocasionados.” 1. 1O Conselho <strong>de</strong> Administraçãodo Fundo Voluntáriodas Nações Unidas para asVítimas <strong>de</strong> Tortura <strong>de</strong>cidiurecentemente utilizar no seutrabalho a Declaração sobrea Protecção <strong>de</strong> Todas asPessoas contra a Tortura eOutras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanos ouDegradantes.2 Vi<strong>de</strong> Iacopino, “Treatmentof survivors of politicaltorture: commentary”[em português: Tratamentodos sobreviventes<strong>de</strong> tortura política: comentário],The Journal ofAmbulatory Care Management,21 (2), 1998,pp. 5 a 13.A tortura é objecto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>preocupação para a comunida<strong>de</strong>internacional. Visa <strong>de</strong>liberadamente<strong>de</strong>struir, não apenas obem-estar físico e mental do indivíduo,mas também, em <strong>de</strong>terminadoscasos, a dignida<strong>de</strong> e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>sinteiras. Diz respeito a todos os membros da famíliahumana, uma vez que põe em causa o próprio significadoda nossa existência e compromete as nossasesperanças num futuro melhor. 2Embora as normas internacionais <strong>de</strong> direitoshumanos e direito humanitário proíbam reiteradamentea prática da tortura3 Amnistia Internacional,Relatório <strong>de</strong> 1999 daem quaisquer circunstâncias Amnistia Internacional(Londres, AIP, 1999).(vi<strong>de</strong> capítulo I), a tortura e os4 M. Ba_o_lu, “Preventionmaus tratos acontecem em of torture and care of survivors:an integratedmais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> dos países approach” [em português:do mundo. 3, 4 Prevenção da tortura e tratamentodos sobreviven-A flagrante disparida<strong>de</strong>entre a proibição absoluta integrada], The Journal oftes: uma abordagemthe American Medicalda tortura e a sua subsistência no Association (JAMA), 2701993: 606-611).mundo contemporâneo <strong>de</strong>monstraa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que os Estados i<strong>de</strong>ntifiqueme ponham em prática medidas eficazes <strong>de</strong> protecçãodas pessoas contra a tortura e os maus tratos.O presente manual foi elaborado com o objectivo<strong>de</strong> auxiliar os Estados a dar resposta a uma das exigênciasmais fundamentais na protecção dos indivíduoscontra a tortura: a documentação eficaz.Esta documentação permite recolher provas daprática da tortura e maus tratos, assim possibilitandoa responsabilização dos infractores pelosseus actos e servindo os interesses da justiça.Os métodos <strong>de</strong> documentação indicados no presentemanual são também aplicáveis a outros contextos,nomeadamente activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investigaçãoe supervisão em matéria <strong>de</strong> direitos humanos,avaliação <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> asilo político, <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>indivíduos que “confessam” a prática <strong>de</strong> crimes sobtortura e avaliação das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamentodas vítimas <strong>de</strong> tortura, entre outros.Ao longo das últimas duas décadas, muito seapren<strong>de</strong>u a respeito da tortura e suas consequências,mas não existiam quaisquer directrizes internacionaispara a sua documentação antes daelaboração do presente manual. O Manual sobrea Investigação e Documentação Eficazes da Torturae Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanosou Degradantes (<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong>)preten<strong>de</strong> funcionar como um documento <strong>de</strong> refe-VII


ência internacional para a avaliaçãoda situação das pessoasalegadamente vítimas <strong>de</strong> torturae maus tratos, para a investigaçãodos presumíveis casos<strong>de</strong> tortura e para a comunicaçãodos factos apurados aopo<strong>de</strong>r judicial ou outros órgãos5 Os Princípios sobre aInvestigação e DocumentaçãoEficazes da Tortura eOutras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanos ouDegradantes foram anexadosà resolução 55/89 daAssembleia Geral (4 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 2000) e àresolução 2000/43 daComissão dos Direitos doHomem, ambas adoptadaspor consenso.com competência no domínio da investigação.O manual inclui os Princípios para a investigaçãoe documentação eficazes da tortura e outras penasou tratamentos cruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes(vi<strong>de</strong> anexo I). Estes Princípios consagram normasmínimas a aplicar pelos Estados a fim <strong>de</strong>garantir uma documentação eficaz da tortura 5 .As directrizes enunciadas no presente manual não<strong>de</strong>vem ser vistas como um protocolo rígido.Representam antes normas mínimas elaboradascom base nos Princípios acima referidos e <strong>de</strong>verãoser utilizadas tendo em conta os recursos disponíveis.O manual e os princípios são o resultado<strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> análise, pesquisa e redacção, levadasa cabo por mais <strong>de</strong> 75 peritos nas áreas dodireito, medicina e direitos humanos em representação<strong>de</strong> 40 organizações ou instituições <strong>de</strong> 15países. A concepção e preparação do presentemanual resultou <strong>de</strong> um esforço conjunto <strong>de</strong> especialistasem medicina e medicina legal, psiquiatras,psicólogos, observadores <strong>de</strong> direitos humanos ejuristas a trabalhar na África do Sul, Alemanha,Chile, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos daAmérica, França, Holanda, Índia, Israel, SriLanka, Suíça, Reino Unido, Turquia e territóriospalestinianos ocupados.VIII


ÍndiceCo-autores e outros participantesIntroduçãoPáginaIIIVIIParágrafosCap.01 Normas jurídicas internacionais aplicáveis 1-46a. Direito internacional humanitário 2-6b. As Nações Unidas 7-231. OBRIGAÇÕES JURÍDICAS NO DOMÍNIO DA PREVENÇÃO DA TORTURA 102. ÓRGÃOS E MECANISMOS DAS NAÇÕES UNIDAS 11-23c. Organizações regionais 24-451. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E TRIBUNALINTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS 25-312. TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM 32-373. COMITÉ EUROPEU PARA A PREVENÇÃO DA TORTURA E DAS PENAS OUTRATAMENTOS DESUMANOS OU DEGRADANTES 38-424. COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOSE TRIBUNAL AFRICANO DOS DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS 43-45d. Tribunal Penal Internacional 4611234779101112Cap.02 Códigos éticos aplicáveis 47-72a. Ética dos profissionais da área da justiça 48-49b. Ética médica 50-551. DECLARAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS APLICÁVEIS AOS PROFISSIONAISNA ÁREA DA SAÚDE 51-522. DECLARAÇÕES DOS ORGANISMOS PROFISSIONAIS INTERNACIONAIS 53-543. CÓDIGOS NACIONAIS DE ÉTICA MÉDICA 55c. Princípios comuns a todos os códigos <strong>de</strong> ética médica 56-641. O DEVER DE ASSISTÊNCIA 57-612. CONSENTIMENTO ESCLARECIDO 62-633. SIGILO PROFISSIONAL 6413131414151616161718IX


Parágrafosd. Profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obrigações 65-721. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OS MÉDICOS COM DUALIDADEDE OBRIGAÇÕES 662. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES 67-72Página191919Cap.03 Inquéritos legais sobre a prática da tortura 73-118a. Objectivos <strong>de</strong> um inquérito <strong>de</strong> tortura 76b. Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Torturae Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes 77-83c. Procedimentos a adoptar na investigação da tortura 84-1051. DETERMINAÇÃO DO ORGANISMO RESPONSÁVEL PELAREALIZAÇÃO DO INQUÉRITO 84-862. RECOLHA DE DEPOIMENTOS DA ALEGADA VÍTIMA E OUTRASTESTEMUNHAS 87-1003. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVAS MATERIAIS 101-1024. PROVAS MÉDICAS 103-1045. FOTOGRAFIAS 105d. Comissões <strong>de</strong> inquérito 106-1181. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DO INQUÉRITO 1062. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO 1073. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROSDA COMISSÃO 108-1094. PESSOAL DA COMISSÃO 1105. PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS 1116. PROCEDIMENTO 1127. DIVULGAÇÃO DO INQUÉRITO 1138. RECOLHA DE PROVAS 1149. DIREITOS DAS PARTES 11510. AVALIAÇÃO DAS PROVAS 11611. RELATÓRIO DA COMISSÃO 117-118232324262626313132323233333334343434343535Cap.04 Consi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas 119-159a. Objectivos do inquérito, exames e documentação 120-121b. Salvaguardas processuais relativamente aos <strong>de</strong>tidos 122-125c. Visitas oficiais a centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção 126-133d. Técnicas <strong>de</strong> interrogatório 134e. Documentação dos antece<strong>de</strong>ntes 135-1401. PERFIL PSICOSSOCIAL E SITUAÇÃO ANTERIOR À DETENÇÃO 1352. RESUMO DA DETENÇÃO E DOS MAUS TRATOS 1363. CIRCUNSTÂNCIAS DA DETENÇÃO 1374. LOCAL E CONDIÇÕES DE DETENÇÃO 1385. MÉTODOS DE TORTURA E MAUS TRATOS 139-140f. Avaliação dos antece<strong>de</strong>ntes 141-142g. Análise dos métodos <strong>de</strong> tortura 143-144h. Risco <strong>de</strong> re-traumatização das pessoas interrogadas 145-148i. Utilização <strong>de</strong> intérpretes 149-152j. Questões <strong>de</strong> género 153-154k. Encaminhamento para outros serviços 155l. Interpretação dos factos e conclusões 156-159373738394141414142424243434445464747X


ParágrafosCap.05 Indícios físicos da tortura 160-232a. Estrutura das entrevistas 162-166b. Historial médico 167-1711. SINTOMAS AGUDOS 1692. SINTOMAS CRÓNICOS 1703. RESUMO DA ENTREVISTA 171c. Exame físico 172-1851. PELE 1752. ROSTO 176-1813. PEITO E ABDÓMEN 1824. SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO 1835. SISTEMA GENITO-URINÁRIO 1846. SISTEMAS NERVOSOS CENTRAL E PERIFÉRICO 185d. Exame e avaliação subsequentes a formas específicas <strong>de</strong> tortura 186-2311. ESPANCAMENTOS E OUTRAS CONTUSÕES 188-2012. ESPANCAMENTO DOS PÉS 202-2043. SUSPENSÃO 205-2084. OUTRAS FORMAS DE TORTURA POSICIONAL 209-2105. TORTURA POR CHOQUES ELÉCTRICOS 2116. TORTURA DENTÁRIA 2127. ASFIXIA 2138. TORTURA SEXUAL, INCLUINDO A VIOLAÇÃO 214-231e. Testes <strong>de</strong> diagnóstico especializados 232Página4949505151515252525454545555555860616162626267Cap.06 Indícios psicológicos da tortura 233-314a. Consi<strong>de</strong>rações gerais 233-2381. O PAPEL FUNDAMENTAL DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA 233-2362. CONTEXTO DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA 237-238b. Consequências psicológicas da tortura 239-2581. ADVERTÊNCIAS 2392. REACÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS 240-2483. CLASSIFICAÇÕES DE DIAGNÓSTICO 249-258c. Avaliação psicológica/psiquiátrica 259-3141. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E CLÍNICAS 259-2612. PROCESSO DE ENTREVISTA 262-2733. COMPONENTES DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA/PSIQUIÁTRICA 274-2904. AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA 291-3085. CRIANÇAS E TORTURA 309-3146969697071717173767677808488ANEXOSI. PRINCÍPIOS SOBRE A INVESTIGAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO EFICAZESII.III.IV.DA TORTURA E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,DESUMANOS OU DEGRADANTESTESTES DE DIAGNÓSTICOESQUEMAS ANATÓMICOS PARA A DOCUMENTAÇÃO DA TORTURAE DOS MAUS TRATOSDIRECTRIZES PARA A AVALIAÇÃO MÉDICA DA TORTURA E DOS MAUS TRATOS9195101109XI


capítulo* 01Normas jurídicas internacionaisaplicáveis1. A proibição da tortura encontra-se firmementeconsagrada no direito internacional.A Declaração Universal dos Direitos do Homem,o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis ePolíticos e a Convenção contra a Tortura e OutrasPenas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ouDegradantes proíbem expressamente a tortura.De forma semelhante, diversos instrumentosregionais estabelecem a mesma proibição. A ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos, aCarta Africana dos Direitos do Homem e dosPovos e a Convenção para a Protecção dos Direitosdo Homem e das Liberda<strong>de</strong>s Fundamentaisdo Conselho da Europa contêm disposições queproíbem expressamente a prática da tortura.a. Direito internacional humanitário2. Os tratados internacionaisque regulamentam os conflitosarmados estabelecem o direitointernacional humanitário oudireito da guerra. A proibiçãoda tortura ao abrigo do direitointernacional humanitário éapenas uma parte, pequenaN.T.1A 13 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong>2002, o número <strong>de</strong> EstadosPartes ascendia já a 190.Portugal aprovou para ratificaçãoas quatro Convenções<strong>de</strong> Genebra peloDecreto-Lei n. o 42 991, <strong>de</strong>26 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1960, tendo<strong>de</strong>positado os respectivosinstrumentos <strong>de</strong> ratificaçãoa 14 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1961.Estes tratados entraram emvigor na or<strong>de</strong>m jurídica portuguesaa 14 <strong>de</strong> Setembro<strong>de</strong> 1961.mas importante, da ampla protecção que estes tratadosconferem a todas as vítimas da guerra. Asquatro Convenções <strong>de</strong> Genebra <strong>de</strong> 1949 foramratificadas por 188 Estados N.T.1 . Estabelecem regraspara a condução dos conflitosarmados internacionais e, emespecial, para o tratamento <strong>de</strong>pessoas que não tomam partenas hostilida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong>ixaramN.T.2 A 13 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong>2002, o número <strong>de</strong> EstadosPartes no <strong>Protocolo</strong> I ascendiaa 160.N.T.3154 até 13 <strong>de</strong> Novembro<strong>de</strong> 2002.<strong>de</strong> o fazer, nomeadamente feridos, prisioneiros ecivis. Cada uma das quatro convenções proíbe aprática da tortura e outras formas <strong>de</strong> maus tratos.Os dois <strong>Protocolo</strong>s <strong>de</strong> 1977 Adicionais às Convenções<strong>de</strong> Genebra alargam a protecção conferidapor estas convenções e o respectivo âmbito <strong>de</strong>aplicação. O <strong>Protocolo</strong> I (ratificado até à data por153 Estados N.T.2 ) abrange os conflitos armadosinternacionais e o <strong>Protocolo</strong> II (ratificado até aomomento por 145 Estados N.T.3 ) os conflitos armadosnão internacionais.3. O chamado “Artigo 3. o comum”, que serepete nas quatro convenções, assume particularimportância neste domínio. O artigo 3. o comumaplica-se aos conflitos armados “que não apresente[m]um carácter internacional”, não sendodada qualquer outra <strong>de</strong>finição. Consi<strong>de</strong>ra-se queestabelece as obrigações fundamentais a respeitarem todos os conflitos armados, e não apenas nasguerras internacionais entre países. Em geral,enten<strong>de</strong>-se que isto significa que, seja qual for anatureza da guerra ou do conflito, existem <strong>de</strong>terminadasregras básicas que não po<strong>de</strong>m ser afastadas.A proibição da tortura é uma <strong>de</strong>las eNormas jurídicas internacionais aplicáveis* 1


epresenta um elemento comum ao direito internacionalhumanitário e aos direitos humanos.4. O Artigo 3. o comum estipula o seguinte:[...] são e manter-se-ão proibidas, em qualquer ocasiãoe lugar [...] as ofensas contra a vida e integrida<strong>de</strong>física, especialmente o homicídio sob todasas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, torturase suplícios; [...] as ofensas à dignida<strong>de</strong> das pessoas,especialmente os tratamentos humilhantese <strong>de</strong>gradantes [...]5. Nas palavras do Relator Especial sobre Tortura,Nigel Rodley:A proibição da tortura e outrosmaus tratos dificilmente po<strong>de</strong>riaser formulada em termos maisperemptórios. De acordo com ocomentário oficial ao texto elaboradopelo Comité Internacional da Cruz Vermelha(CICV), não existe qualquer excepção; nãoexistem quaisquer <strong>de</strong>sculpas, quaisquer circunstânciasatenuantes 6 .6. Uma outra ligação entre odireito internacional humanitárioe os direitos humanos po<strong>de</strong> serencontrada no preâmbulo do <strong>Protocolo</strong> II, que regeos conflitos armados não internacionais (tais comoas guerras civis <strong>de</strong>claradas) e on<strong>de</strong> se afirma oseguinte: “[...] os instrumentos internacionais relativosaos direitos do homem oferecem à pessoahumana uma protecção fundamental. 7 ”b. As Nações Unidas6 N. Rodley, The Treatmentof Prisoners un<strong>de</strong>r InternationalLaw [em português:“O Tratamento dosPresos ao abrigo do DireitoInternacional”], 2. a edição,Oxford, Claredon Press,1999, p. 58.7 Segundo parágrafo preambulardo <strong>Protocolo</strong> II Adicionalàs Convenções <strong>de</strong>Genebra <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong>1949.7. Para assegurar a protecção a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> todasas pessoas contra a tortura e outras penas ou tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes, asNações Unidas trabalham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muitos anos naelaboração <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> aplicação universal. Asconvenções, <strong>de</strong>clarações e resoluções adoptadaspelos Estados Membros das Nações Unidas afirmamclaramente que não po<strong>de</strong> existir qualquerexcepção para a proibição da tortura e estabelecemoutras obrigações para garantir a protecção daspessoas contra tais abusos.Entre os mais importantes <strong>de</strong>stesinstrumentos, contam-se: aDeclaração Universal dos Direitosdo Homem (DUDH) 8 , N.T.4 , oPacto Internacional sobre osDireitos Civis e Políticos(PIDCP) 9 , N.T.5 , as Regras Mínimaspara o Tratamento dosReclusos (RMTR) 10 , N.T.6 , a Declaraçãodas Nações Unidas sobre aProtecção <strong>de</strong> Todas as Pessoascontra a Tortura e Outras Penasou Tratamentos Cruéis, Desumanosou Degradantes (Declaraçãocontra a Tortura) 11 , N.T.7 , oCódigo <strong>de</strong> Conduta para os FuncionáriosResponsáveis pelaAplicação da Lei (CCFRAL) 12 , N.T.8 ,os Princípios <strong>de</strong> DeontologiaMédica aplicáveis à actuação dopessoal dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,especialmente aos médicos,para a protecção <strong>de</strong> pessoas presasou <strong>de</strong>tidas contra a tortura eoutras penas ou tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes(Princípios <strong>de</strong> DeontologiaMédica) 13 , N.T.9 , a Convençãocontra a Tortura e Outras Penasou Tratamentos Cruéis, Desumanosou Degradantes (Convençãocontra a Tortura) 14 , N.T.10 ,o Conjunto <strong>de</strong> Princípios para aProtecção <strong>de</strong> Todas as PessoasSujeitas a Qualquer Forma <strong>de</strong>Detenção ou Prisão (Conjunto<strong>de</strong> Princípios sobre Detenção)15 , N.T.11 e os Princípios BásicosRelativos ao Tratamento <strong>de</strong>Reclusos (PBTR) 16 , N.T.12 .8. A Convenção contra a Torturanão se aplica à dor ou aossofrimentos resultantes unicamente<strong>de</strong> sanções legítimas,inerentes a essas sanções oupor elas ocasionados. 178 Resolução 217 A (III) daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1948, artigo5. o ; vi<strong>de</strong> General AssemblyOfficial Documents, ThirdSession (A/810), p.71.N.T.4 A Declaração Universaldos Direitos do Homem foipublicada no Diário daRepública, I Série A, n. o57/78, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong>1978, mediante aviso doMinistério dos NegóciosEstrangeiros. O seu textointegral em português po<strong>de</strong>ser encontrado na páginaINTERNET do GDDC:www.gddc.pt.9 Resolução 2200 A (XXI)da Assembleia Geral, <strong>de</strong> 16<strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1966,anexo, artigo 7. o ; vi<strong>de</strong>General Assembly OfficialDocuments, Twenty FirstSession, GAOR Supplement(No. 16) (A/6316),p.56 e United NationsTreaty Series, volume 999,p.171. O PIDCP entrou emvigor na or<strong>de</strong>m jurídicainternacional a 23 <strong>de</strong> Março<strong>de</strong> 1976.N.T.5 Aprovado para ratificaçãopor Portugal pela Lein. o 29/78, <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> Junho,publicada no Diário daRepública, I Série A,n. o 133/78. O instrumento<strong>de</strong> ratificação foi <strong>de</strong>positadojunto do Secretário-Geraldas Nações Unidas a 15 <strong>de</strong>Junho <strong>de</strong> 1978, tendo oPIDCP entrado em vigor naor<strong>de</strong>m jurídica interna portuguesaa 15 <strong>de</strong> Setembro<strong>de</strong> 1978. Para o texto integralem português, consultea webpage do GDDC.10 Adoptadas a 30 <strong>de</strong>Agosto <strong>de</strong> 1955 pelo PrimeiroCongresso dasNações Unidas sobre a Prevençãodo Crime e o Tratamentodos Delinquentes eaprovadas pelo ConselhoEconómico e Social dasNações Unidas através dassuas resoluções 663 C(XXIV), <strong>de</strong> 31 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>1957 e 2076 (LXII), <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong>Maio <strong>de</strong> 1977; vi<strong>de</strong>documento da Nações Unidascom a cotaA/CONF/611, anexo I,artigo 31. o ; resolução 663 C(XXIV), Economic andSocial Council OfficialDocuments, Twenty-Fourth Session, SupplementNo. 1 (E/3048), p.12,emendada pela resolução2076 (LXII), Economic andSocial Council OfficialDocuments, Sixty-SecondSession, Supplement No.1(E/5988), p.37.N.T.6 O texto integral em portuguêsestá também disponívelna webpage do GDDC.11 Resolução 3452 (XXX) daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1975, anexo,artigos 2. o e 4. o , vi<strong>de</strong> GeneralAssembly OfficialDocuments, Thirtieth Session,Supplement No. 34(A/10034), p. 96.N.T.7 Para o texto em português,consulte a página doGDDC na INTERNET.2 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


9. Outros organismos e mecanismos<strong>de</strong> direitos humanos dosistema das Nações Unidas têmvindo a tomar iniciativas com oobjectivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver normaspara a prevenção da tortura, bemcomo normas que obriguem osEstados a investigar os alegadoscasos <strong>de</strong> tortura. De entre estesorganismos e mecanismos, <strong>de</strong>stacamoso Comité contra a Tortura,o Comité dos Direitos doHomem, a Comissão dos Direitosdo Homem, o Relator Especialsobre Tortura, a Relatora Especialsobre Violência contra Mulherese os Relatores Especiais nomeadospela Comissão dos Direitos doHomem para acompanhar asituação <strong>de</strong> direitos humanos <strong>de</strong><strong>de</strong>terminados países.1. OBRIGAÇÕES JURÍDICAS NODOMÍNIO DA PREVENÇÃO DATORTURA10. Os instrumentos jurídicossupra citados estabelecem <strong>de</strong>terminadasobrigações que os Estados<strong>de</strong>vem cumprir a fim <strong>de</strong>assegurar protecção contra a tortura.Eis algumas:a) A adopção das medidaslegislativas, administrativas,judiciais ou quaisquer outrasque se afigurem eficazes paraimpedir a ocorrência <strong>de</strong> actos<strong>de</strong> tortura. Nenhuma circunstânciaexcepcional, incluindo aguerra, po<strong>de</strong>rá ser invocadapara justificar a tortura (artigo 2. oda Convenção contra a Tortura eartigo 3. o da Declaração sobre aProtecção contra a Tortura);b) A proibição <strong>de</strong> expulsar,entregar (refouler) ou extraditar12 Resolução 34/169 daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1979, anexo,artigo 5. o ; vi<strong>de</strong> GeneralAssembly Official Documents,Thirty-Fourth Session,Supplement No. 46(A/34/46), p. 209.N.T.8 Texto em português disponívelna webpage doGDDC (www.gddc.pt).13 Resolução 37/194 daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1982, anexo,princípios 2 a 5; vi<strong>de</strong> GeneralAssembly OfficialDocuments, Thirty-Seventh Session, SupplementNo. 51 (A/37/51),p262.N.T.9 Veja o texto em portuguêsna página do GDDC.14 Entrada em vigor naor<strong>de</strong>m jurídica internacionala 26 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1987; vi<strong>de</strong>resolução 39/46 da AssembleiaGeral, <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1984, anexo,artigo 2. o , GeneralAssembly Official Documents,Thirty-Ninth Session,Supplement No. 51(A/39/51), p. 206.N.T.10 Aprovada para ratificaçãopela resolução daAssembleia da Repúblican. o 11/88, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> Maio,publicada no Diário daRepública, I Série,n. o 118/88 e ratificada pelo<strong>de</strong>creto do Presi<strong>de</strong>nte daRepública n. o 57/88, <strong>de</strong> 20<strong>de</strong> Julho, publicado no Diárioda República, I Série,n. o 166/88. O instrumento<strong>de</strong> ratificação foi <strong>de</strong>positadojunto do Secretário-Geraldas Nações Unidas a 9 <strong>de</strong>Fevereiro <strong>de</strong> 1989, tendoesta convenção entrado emvigor na or<strong>de</strong>m jurídica portuguesaa 11 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong>1989. O seu texto oficial emportuguês po<strong>de</strong> ser encontradona webpage doGDDC.15 Resolução 43/173 daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1998, anexo,princípio 6; vi<strong>de</strong> GeneralAssembly OfficialDocuments, Fourty-ThirdSession, SupplementNo. 49 (A/43/49), p. 311.N.T.11 Também estedocumento está disponível,em português, no en<strong>de</strong>reçowww.gddc.pt.16 Resolução 45/111 daAssembleia Geral, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1990, anexo,princípio 1; vi<strong>de</strong> GeneralAssembly Official Documents,Fourty-Fifth Session,Supplement No. 49(A/45/49), p. 216.N.T.12 Texto em portuguêsdisponível na webpage doGDDC.17 Para uma interpretaçãoacerca do que se consi<strong>de</strong>ram“sanções legítimas”,vi<strong>de</strong> o relatório apresentadopelo Relator Especial sobreTortura à Comissão dosDireitos do Homem na sua53. a sessão (E/CN.4/1997/7,uma pessoa para um outroEstado quando existam motivossérios para crer que possa sersubmetida a tortura (artigo 3. o daConvenção contra a Tortura);c) A criminalização <strong>de</strong> todosos actos <strong>de</strong> tortura, incluindo acumplicida<strong>de</strong> ou a participaçãonos mesmos (artigo 4. o da Convençãocontra a Tortura, princípio7 do Conjunto <strong>de</strong> Princípiossobre Detenção, artigo 7. o daDeclaração sobre a Protecçãoparágrafos 3 a 11), no qualo Relator Especial <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>uque a aplicação <strong>de</strong> penastais como a morte por lapidação,flagelação e amputação<strong>de</strong> membros nãopo<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada legítimaunicamente <strong>de</strong>vido aofacto <strong>de</strong> a pena ter sidoautorizada na sequência <strong>de</strong>um procedimento formalmentelegítimo. A interpretaçãoavançada peloRelator Especial, que coinci<strong>de</strong>as posições do Comitédos Direitos do Homem eoutros mecanismos dasNações Unidas, foi endossadapela resolução1998/38 da Comissão dosDireitos do Homem, a qual“recorda aos Governos queos castigos corporais po<strong>de</strong>mresultar em tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantesou mesmo em tortura”.contra a Tortura e parágrafos 31 a 33 das RegrasMínimas para o Tratamento dos Reclusos);d) A adopção das medidas necessárias para quea tortura constitua um crime passível <strong>de</strong> extradiçãoe a colaboração com os outros Estados Partesno âmbito dos processos criminais instauradosrelativamente a casos <strong>de</strong> tortura (artigos 8. o e 9. oda Convenção contra a Tortura);e) Limitação do recurso à <strong>de</strong>tenção em regime<strong>de</strong> incomunicabilida<strong>de</strong>; garantia <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>tidossão mantidos em locais oficialmente reconhecidoscomo locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção; garantia <strong>de</strong> que osnomes das pessoas responsáveis pela <strong>de</strong>tençãosão inscritos em registos facilmente disponíveise acessíveis a todos os interessados, incluindofamília e amigos; registo do local, hora e data <strong>de</strong>todos os interrogatórios, juntamente com osnomes <strong>de</strong> todas as pessoas presentes; e garantia<strong>de</strong> acesso aos <strong>de</strong>tidos por parte <strong>de</strong> médicos, advogadose familiares (artigo 11. o da Convenção contraa Tortura; princípios 11 a 13, 15 a 19 e 23 doConjunto <strong>de</strong> Princípios sobre Detenção; parágrafos7, 22 e 37 das Regras Mínimas para o Tratamentodos Reclusos);f) Garantia <strong>de</strong> que a educação e informaçãorelativas à proibição da tortura constituam parteintegrante da formação do pessoal (civil ou militar)encarregado da aplicação da lei, do pessoalmédico, dos agentes da função pública e <strong>de</strong> quaisqueroutras pessoas interessadas (artigo 10. o da Convençãocontra a Tortura; artigo 5. o da DeclaraçãoNormas jurídicas internacionais aplicáveis* 3


sobre a Protecção contra a Tortura; parágrafo 54 dasRegras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos);g) Garantia <strong>de</strong> que qualquer <strong>de</strong>claração que seprove ter sido obtida através da tortura não possaser invocada como elemento <strong>de</strong> prova num processo,salvo se for utilizada contra a pessoa acusada da prática<strong>de</strong> tortura para provar que a <strong>de</strong>claração foi feita(artigo 15. o da Convenção contra a Tortura; artigo 12. oda Declaração sobre a Protecção contra a Tortura);h) Garantia <strong>de</strong> que as autorida<strong>de</strong>s competentesdo Estado proce<strong>de</strong>m imediatamente a um rigorosoinquérito sempre que existam motivos razoáveispara crer que foi praticado um acto <strong>de</strong> tortura(artigo 12. o da Convenção contra a Tortura; princípios33 e 34 do Conjunto <strong>de</strong> Princípios sobreDetenção; artigo 9. o da Declaração sobre a Protecçãocontra a Tortura);i) Garantia <strong>de</strong> que as vítimas <strong>de</strong> tortura dispõemdo direito <strong>de</strong> obter reparação e uma in<strong>de</strong>mnizaçãoa<strong>de</strong>quada pelos danos sofridos (artigos13. o e 14. o da Convenção contra a Tortura; artigo 11. oda Declaração sobre a Protecção contra a Tortura;parágrafos 35 e 36 das Regras Mínimas para o Tratamentodos Reclusos);j) Garantia <strong>de</strong> que seja instaurado processopenal contra o presumível autor ou autores doacto <strong>de</strong> tortura caso um inquérito revele indíciosda prática <strong>de</strong> um acto <strong>de</strong>ste tipo. Caso pareçam existirindícios sólidos da aplicação <strong>de</strong> penas ou tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes, opresumível infractor ou infractores <strong>de</strong>verão sersubmetidos a processo penal, disciplinar ou outroprocesso a<strong>de</strong>quado (artigo 7. o da Convenção contraa Tortura; artigo 10. o da Declaração sobre aProtecção contra a Tortura).2. ÓRGÃOS E MECANISMOS DAS NAÇÕES UNIDAS(a)Comité contra a tortura11. O Comité contra a Tortura controla a aplicaçãoda Convenção contra a Tortura e Outras Penasou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.Este Comité é composto por 10 peritosin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes “<strong>de</strong> elevado sentido moral e reconhecidacompetência no domínio dos direitos dohomem”. Nos termos do artigo 19. o da Convençãocontra a Tortura, os Estados Partes apresentam aoComité, através do Secretário Geral, relatóriossobre as medidas por si adoptadas para dar cumprimentoàs obrigações assumidas em virtu<strong>de</strong> daConvenção. O Comité analisa a forma como asdisposições da Convenção são incorporadas na leinacional <strong>de</strong> cada Estado Parte e verifica a respectivaaplicação prática. Cada relatório é examinadopelo Comité, que po<strong>de</strong>rá formular comentáriosgerais e recomendações e incluir esta informaçãono seu relatório anual aos Estados Partes e àAssembleia Geral. Estes procedimentos são levadosa cabo no âmbito <strong>de</strong> reuniões públicas.12. Nos termos do artigo 20. oda Convenção, caso o Comitéreceba informações idóneas quepareçam conter indicações bemfundadas <strong>de</strong> que a tortura é sistematicamentepraticada no território<strong>de</strong> um Estado parte,po<strong>de</strong>rá convidar o referidoEstado a colaborar consigo na18 Deverá salientar-se,porém, que a aplicação doartigo 20. o po<strong>de</strong> ser limitadaem virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> reservado Estado Parte, caso emque o citado artigo não seaplicará.N.T.13 Portugal não formulouqualquer reserva ao artigo20. o da Convenção (nem aqualquer outra disposiçãoda mesma), pelo que seencontra sujeito à jurisdiçãodo Comité nos termos <strong>de</strong>steartigo.análise da informação em causa e, para este fim,a apresentar os seus comentários relativamente àmesma. O Comité po<strong>de</strong>, se o julgar necessário,<strong>de</strong>signar um ou mais dos seus membros para proce<strong>de</strong>rema um inquérito confi<strong>de</strong>ncial e apresentaremas suas conclusões ao Comité com amáxima urgência. Com o acordo do Estado Parteem causa, este inquérito po<strong>de</strong>rá incluir uma visitaao respectivo território. Após examinar as conclusõesdo seu membro ou membros <strong>de</strong>signadospara conduzir o inquérito, o Comité transmite-asao Estado Parte em questão, juntamente comquaisquer sugestões ou comentários que lhe pareçama<strong>de</strong>quados face à situação. Todas as diligênciasefectuadas ao abrigo do artigo 20. o sãoconfi<strong>de</strong>nciais, procurando-se obter a colaboraçãodo Estado Parte em todas as fases do processo.Uma vez concluídos estes trabalhos, o Comitépo<strong>de</strong>, após consultas com o Estado Parte interessado,<strong>de</strong>cidir incluir um resumo dos resultados doinquérito no seu relatório anual aos outros EstadosPartes e à Assembleia Geral 18 , N.T.13 .4 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


13. Em conformida<strong>de</strong> com oartigo 22. o da Convenção contraa Tortura, um Estado Parte po<strong>de</strong>,a todo o momento, reconhecer acompetência do Comité parareceber e analisar comunicaçõesapresentadas por ou em nome<strong>de</strong> particulares sujeitos à suajurisdição e que afirmem teremsido vítimas <strong>de</strong> violação, por umEstado Parte, das disposições da Convenção contraa Tortura. O Comité consi<strong>de</strong>ra então estas comunicaçõesem sessões à porta fechada e comunica as suasconclusões ao Estado Parte interessado e ao particular.Apenas 39 dos 112 Estados Partes na Convençãoreconheceram já a aplicabilida<strong>de</strong> do artigo 22. oN.T.14 .14. Nos seus relatórios anuaisapresentados à AssembleiaGeral, o Comité insiste regularmentena necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprimento,pelos Estados Partes,das obrigações impostas pelosartigos 12. o e 13. o da Convenção,garantindo que todas as alegações<strong>de</strong> tortura são imediatamente objecto <strong>de</strong> uminquérito rigoroso. Por exemplo, o Comité <strong>de</strong>clarouconsi<strong>de</strong>rar que um atraso <strong>de</strong> 15 meses nainvestigação <strong>de</strong> um alegado caso <strong>de</strong> tortura éexcessivamente longo e viola o disposto no artigo12. o da Convenção 19 . O Comité sublinhou tambémque o artigo 13. o não exige a apresentação formal<strong>de</strong> uma queixa <strong>de</strong> tortura, “bastando que uma pessoaalegue ter sido submetida a tortura para que[o Estado Parte] esteja obrigado a proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> imediatoao exame rigoroso do caso” 20 .(b) Comité dos Direitos do HomemN.T.14 A 30 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2002,já 51 Estados haviam reconhecidoa competência doComité ao abrigo do artigo22. o , entre os quais Portugal,que apresentou <strong>de</strong>claraçãonesse sentido nomomento do <strong>de</strong>pósito doinstrumento <strong>de</strong> ratificaçãoda Convenção (9 <strong>de</strong> Fevereiro<strong>de</strong> 1999, com efeitos apartir <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> Março domesmo ano) – juntamentecom <strong>de</strong>claração reconhecendoa competência doComité ao abrigo do artigo21. o (para o exame <strong>de</strong>comunicações apresentadaspor outros Estados Partes).19 Vi<strong>de</strong> Comunicação8/1991, parágrafo 185, relatadano relatório do Comitécontra a Tortura à AssembleiaGeral (A/49/44) <strong>de</strong> 12<strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1994.20 Vi<strong>de</strong> Comunicação6/1990, parágrafo 10.4,relatada no relatório doComité contra a Tortura àAssembleia Geral (A/50/44)<strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1995.15. O Comité dos Direitos do Homem foi instituídoao abrigo do artigo 28. o do Pacto Internacionalsobre os Direitos Civis e Políticos, com a função<strong>de</strong> controlar a aplicação, pelos Estados Partes, dasdisposições <strong>de</strong>ste instrumento. O Comité é compostopor 18 peritos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes que <strong>de</strong>verão serpessoas <strong>de</strong> alta autorida<strong>de</strong> moral e possuidoras <strong>de</strong>reconhecida competência no domínio dos direitoshumanos.16. De cinco em cinco anos, osEstados Partes no Pacto <strong>de</strong>verãoapresentar relatórios nos quais indicam as medidaspor si adoptadas para tornar efectivos osdireitos reconhecidos no Pacto e os progressosalcançados no gozo <strong>de</strong>stes mesmos direitos.O Comité dos Direitos do Homem examina osrelatórios em diálogo com representantes doEstado Parte em causa, após o que adopta observaçõesfinais que resumem as suas principaispreocupações e contêm as sugestões e recomendaçõesque consi<strong>de</strong>re pertinente dirigir ao EstadoParte. O Comité elabora também comentáriosgerais interpretativos <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados artigos doPacto em particular, a fim <strong>de</strong> orientar os EstadosPartes no processo <strong>de</strong> elaboração dos relatórios, bemcomo nos seus esforços para aplicar as disposiçõesdo PIDCP. Num <strong>de</strong>sses comentários gerais, oComité propôs-se clarificar o sentido do artigo 7. odo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,que <strong>de</strong>clara que ninguém será submetido atortura nem a penas ou tratamentos cruéis, <strong>de</strong>sumanosou <strong>de</strong>gradantes. Nos seus comentáriosgerais ao citado artigo 7. o que constam do relatóriodo Comité, este observou especificamente quea proibição da tortura ou a sua criminalização nãosão suficientes para garantir a plena aplicação doartigo 7. o21 . O Comité <strong>de</strong>clarou o seguinte: “[...] osEstados <strong>de</strong>verão garantir uma protecção efectivaatravés <strong>de</strong> um qualquer mecanismo <strong>de</strong> controlo. As<strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> maus tratos <strong>de</strong>verão ser investigadas<strong>de</strong> forma eficaz pelas autorida<strong>de</strong>s competentes.”17. A 10 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1992, oComité adoptou um novocomentário geral ao artigo7. o do Pacto, <strong>de</strong>senvolvendo assuas anteriores observações.O Comité reforçou a sua leiturado artigo 7. o consi<strong>de</strong>rando que“as <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong>verão serimediatamente investigadas <strong>de</strong>forma imparcial pelas autorida<strong>de</strong>s competentes<strong>de</strong> forma a garantir a eficácia do mecanismo <strong>de</strong>recurso”. Caso o Estado Parte haja ratificado o primeiro<strong>Protocolo</strong> Facultativo referente ao PactoInternacional sobre os Direitos Civis e PolíticosN.T.15 , o particular po<strong>de</strong> apresentar uma comu-21Documento das NaçõesUnidas com a cota A/37/40(1982).NT15 Portugal aprovou esteprimeiro <strong>Protocolo</strong> paraa<strong>de</strong>são através da Lein. o 13/82, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> Junho,publicada no Diário daRepública, I Série A,n. o 135/82, tendo o instrumento<strong>de</strong> a<strong>de</strong>são sido <strong>de</strong>positadojunto doSecretário-Geral das NaçõesUnidas a 3 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong>1983. Este <strong>Protocolo</strong> entrouem vigor na or<strong>de</strong>m jurídicaportuguesa a 3 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong>1983.Normas jurídicas internacionais aplicáveis* 5


nicação ao Comité queixando-se da violação <strong>de</strong>qualquer dos seus direitos consagrados no Pacto.Se esta comunicação for consi<strong>de</strong>rada admissível,o Comité profere <strong>de</strong>cisão sobre o mérito da questão,<strong>de</strong>cisão essa que é tornada pública no seu relatórioanual.(c)Comissão dos Direitos do Homem18. A Comissão dos Direitosdo Homem (CDH) é o principalórgão das Nações Unidas com competência nodomínio dos direitos humanos. É composta por 53Estados Membros eleitos pelo Conselho Económicoe Social para mandatos <strong>de</strong> três anos.A Comissão reúne anualmente durante seis semanasem Genebra para tratar <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> direitoshumanos, po<strong>de</strong>ndo iniciar estudos e missões<strong>de</strong> inquérito, elaborar convenções e <strong>de</strong>claraçõespara aprovação pelos órgãos superiores das NaçõesUnidas e discutir <strong>de</strong>terminadas violações <strong>de</strong> direitoshumanos em particular, em sessões públicasou privadas. A 6 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1967, o Conselho Económicoe Social, na resolução 1235 (XLII), autorizoua Comissão a examinar alegações <strong>de</strong> gravesviolações <strong>de</strong> direitos humanos e a “proce<strong>de</strong>r a umestudo rigoroso <strong>de</strong> situações que revelem a existência<strong>de</strong> violações sistemáticas <strong>de</strong> direitos humanos”22 . Com este mandato, a Comissão tem vindo,<strong>de</strong>signadamente, a adoptar resoluções nas quaismanifesta preocupação pela ocorrência <strong>de</strong> violações<strong>de</strong> direitos humanos e a nomear relatores especiaisque se ocupam <strong>de</strong> violações <strong>de</strong> direitos humanosem <strong>de</strong>terminados domínios temáticos específicos.A Comissão adopta também resoluções <strong>de</strong>dicadasao problema da tortura e outras penas ou tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes. Nasua resolução 1998/38, a CDH sublinhou que“todas as alegações <strong>de</strong> tortura ou penas ou tratamentoscruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes <strong>de</strong>verãoser imediatamente examinadas, <strong>de</strong> formaimparcial, pela autorida<strong>de</strong> nacional competente”.(d) Relator Especial sobre Tortura22 Documento das NaçõesUnidas com a cota E/4393(1967).19. Em 1985, a Comissão <strong>de</strong>cidiu, na sua resolução1985/33, criar o mandato <strong>de</strong> Relator Especialsobre Tortura. O Relator Especial tem por funçãoprocurar e recolher informação credível e fi<strong>de</strong>dignasobre questões relevantes no domínio datortura, e respon<strong>de</strong>r sem <strong>de</strong>mora a tal informação.A CDH tem vindo a renovar o mandato <strong>de</strong> RelatorEspecial em ulteriores resoluções.N.T.16 Nigel Rodley (ReinoUnido) ocupou o cargo <strong>de</strong>Relator Especial sobre Torturaentre 1993 e 2001. Foisubstituído a 15 <strong>de</strong> Outubro<strong>de</strong> 2001 por Theo vanBoven (Holanda). O mandato<strong>de</strong> Relator Especialsobre tortura foi renovadopor mais três anos pelaCDH, na sua resolução2001/62.20. A competência <strong>de</strong> controlodo Relator Especial abrangetodos os Estados Membros dasNações Unidas e todos os Estadoscom estatuto <strong>de</strong> observador,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do facto <strong>de</strong>terem ou não ratificado a Convençãocontra a Tortura. O Relator Especial estabelececontacto com os Governos, solicita-lhesinformação sobre medidas legislativas e administrativasadoptadas a fim <strong>de</strong> prevenir a tortura, convida-osa remediar quaisquer consequências quedaí tenham advido e pe<strong>de</strong>-lhes que respondam ainformação que alegue a ocorrência <strong>de</strong> qualquercaso <strong>de</strong> tortura. O Relator Especial recebe tambémpedidos <strong>de</strong> acção urgente, que leva ao conhecimentodos Governos interessados a fim <strong>de</strong>garantir a protecção do direito à integrida<strong>de</strong> físicae mental da pessoa. Para além disso, o RelatorEspecial reúne-se com representantes dos governosque o <strong>de</strong>sejem contactar e, em conformida<strong>de</strong>com o seu mandato, efectua visitas ao terreno em<strong>de</strong>terminadas partes do mundo. O Relator Especialapresenta relatórios à Comissão dos Direitos doHomem e à Assembleia Geral. Estes relatóriosenunciam as iniciativas tomadas pelo RelatorEspecial no exercício do seu mandato e chamamreiteradamente a atenção para a importância <strong>de</strong>investigar imediatamente quaisquer alegações <strong>de</strong>tortura. No relatório do Relator Especial sobre Tortura<strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1995, o Relator Especial,Nigel Rodley N.T.16 , formulou uma série <strong>de</strong> recomendações.No parágrafo 926 (g) <strong>de</strong>ste relatório,po<strong>de</strong> ler-se o seguinte:Quando um <strong>de</strong>tido, seu familiar ou advogado apresenteuma queixa <strong>de</strong> tortura, <strong>de</strong>verá sempre realizar-seum inquérito [...] Deverão ser criadas autorida<strong>de</strong>s nacionaisin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, como uma comissão nacional ouprovedor <strong>de</strong> justiça com competências <strong>de</strong> investigaçãoe/ou exercício <strong>de</strong> acção penal, para receber e investigartais queixas. As queixas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>verão ser tramitadas6 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


imediatamente e <strong>de</strong>verão ser investigadaspor uma autorida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>-E/CN.4/1995/34.23 Documento das NaçõesUnidas com a cotapen<strong>de</strong>nte sem qualquer relação com a que proce<strong>de</strong> aoinquérito ou instrução do caso contra a presumívelvítima 23 .21. O Relator Especial <strong>de</strong>stacouesta recomendação no seurelatório <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>1996 24 . Referindo a sua preocupação pelas práticas<strong>de</strong> tortura, o Relator Especial lembrou no parágrafo136 que “tanto nos termos do direitointernacional geral como nos da Convenção contraa Tortura e Outras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanos ou Degradantes, os Estados têma obrigação <strong>de</strong> investigar as <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> tortura”.(e) Relatora Especial sobre Violênciacontra Mulheres22. O mandato <strong>de</strong> RelatoraEspecial sobre Violência contraMulheres foi criado em 1994pela resolução 1994/45 daComissão dos Direitos doHomem e renovado pela resolução1997/44 N.T.17 . A RelatoraEspecial instituiu procedimentos24 Documento das NaçõesUnidas com a cotaE/CN.4/1996/35.N.T.17 O cargo <strong>de</strong> RelatorEspecial é ocupado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> acriação do mandato, pelasenhora Radhika Coomaraswamy,do Sri Lanka. Poreste motivo, optou-se porreferir a <strong>de</strong>signação domandato no feminino nalíngua portuguesa. Na resolução2000/45, a CDHrenovou este mandato pormais três anos. No final <strong>de</strong>Julho <strong>de</strong> 2002, RadhikaCoomaraswamy mantinhaa titularida<strong>de</strong> do cargo.para solicitar aos Governos, num espírito humanitário,informações e esclarecimentos sobre casosconcretos <strong>de</strong> alegada violência, a fim <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificare investigar situações e <strong>de</strong>núncias concretas <strong>de</strong>violência contra mulheres em qualquer país. Estascomunicações po<strong>de</strong>m dizer respeito a um ou maisindivíduos i<strong>de</strong>ntificados pelo nome ou a informação<strong>de</strong> natureza mais geral relativa a situações emque a violência contra mulheres continua a serperpetrada ou tolerada. A Relatora Especial recorreà <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> violência contra mulheres com baseno género, constante da Declaração das NaçõesUnidas sobre a Eliminação da Violência contraMulheres, adoptada pela Assembleia Geral na suaresolução 48/104, <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1993.A Relatora Especial po<strong>de</strong> transmitir apelos urgentesnos casos <strong>de</strong> violência contra mulheres com baseno género que suponham ou possam supor umaameaça iminente ou receio <strong>de</strong> ameaça ao direito àvida ou à integrida<strong>de</strong> física da pessoa. A RelatoraEspecial insta as autorida<strong>de</strong>s nacionais competentes,não apenas a fornecer informação completasobre o caso, mas também a levar a cabo uminquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e imparcial sobre omesmo e a tomar medidas imediatas com vista aassegurar que não voltem a suce<strong>de</strong>r violações dosdireitos humanos das mulheres.23. A Relatora Especial apresenta relatóriosanuais à Comissão dos Direitos do Homem, nosquais dá conta das comunicações transmitidas aosGovernos e respostas recebidas. Com base na informaçãorecebida dos Governos e outras fontes fi<strong>de</strong>dignas,a Relatora Especial formula recomendaçõesdirigidas aos Estados em causa com o objectivo <strong>de</strong>encontrar soluções duradouras para a erradicaçãoda violência contra mulheres em qualquer país. Casonão receba qualquer resposta ou esta seja insuficiente,a Relatora Especial po<strong>de</strong> enviar nova comunicaçãoao Governo em causa. Se, em <strong>de</strong>terminadopaís, se continuar a verificar uma situação concreta<strong>de</strong> violência contra mulheres e a informação recebidapela Relatora Especial indicar que nenhumas medidasforam ou estão a ser tomadas pelo Governo paraassegurar a protecção dos direitos humanos dasmulheres, a Relatora Especial po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> pedir autorização ao Governo em causapara visitar o país a fim <strong>de</strong> levar a cabo uma missão<strong>de</strong> inquérito no terreno.c. Organizações regionais24. Os organismos regionais contribuem tambémpara o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> normas <strong>de</strong>stinadasa prevenir a tortura. É o caso, entre outros, daComissão Interamericana <strong>de</strong> Direitos Humanos,do Tribunal Interamericano <strong>de</strong> Direitos Humanos,do Tribunal Europeu dos Direitos doHomem, do Comité Europeu para a Prevenção daTortura e da Comissão Africana dos Direitos doHomem e dos Povos.1. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOSHUMANOS E TRIBUNAL INTERAMERICANO DEDIREITOS HUMANOS25. A 22 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1969, a Organização <strong>de</strong>Estados Americanos (OEA) adoptou a ConvençãoNormas jurídicas internacionais aplicáveis* 7


Americana sobre Direitos Humanos,que entrou em vigor a 18<strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1978 25 , N.T.18 . O artigo5. o <strong>de</strong>sta Convenção dispõe oseguinte:1. Toda a pessoa tem o direito<strong>de</strong> que se respeite a sua integrida<strong>de</strong>física, psíquica e moral.2. Ninguém <strong>de</strong>ve ser submetidoa torturas, nem a penas ou tratos cruéis, <strong>de</strong>sumanos ou<strong>de</strong>gradantes. Toda a pessoa privada da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>veser tratada com o respeito <strong>de</strong>vido à dignida<strong>de</strong> inerenteao ser humano.26. O artigo 33. o da Convençãoprevê a criação da ComissãoInteramericana <strong>de</strong> DireitosHumanos e do Tribunal Interamericano<strong>de</strong> Direitos Humanos.Conforme estipulado norespectivo regulamento, aprincipal função da Comissãoconsiste em promover a observânciae a <strong>de</strong>fesa dos direitos25 Organização <strong>de</strong> EstadosAmericanos, Série <strong>de</strong> TratadosN. o 36, e UnitedNations Treaty Séries, vol.1144, p.123. O texto foireimpresso na obra BasicDocuments Pertaining toHuman Rights in theInter-American System[em português: “DocumentosBásicos Relativos aosDireitos Humanos no SistemaInteramericano”],OEA/Ser.L.V/II.82,documento 6, rev.1, a pp.25(1992).N.T.18 O texto em português<strong>de</strong>ste instrumento está disponívelno website doGDDC: www.gddc.pt.26 Regulamento da ComissãoInteramericana <strong>de</strong>Direitos Humanos, Organização<strong>de</strong> Estados Americanos,OEA/Ser.L.V/II.92,documento 31, revisão 3 <strong>de</strong>3 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1996, artigo1. o , n. o 1.27 Vi<strong>de</strong> processo 10.832,relatório n. o 35/96, Relatórioanual <strong>de</strong> 1997 da ComissãoInteramericana <strong>de</strong>Direitos Humanos, parágrafo75.28 Vi<strong>de</strong> Série <strong>de</strong> Tratados daOrganização <strong>de</strong> EstadosAmericanos, N. o 67.humanos e servir <strong>de</strong> órgão consultivo da Organização<strong>de</strong> Estados Americanos nesta área 26 . No<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>sta função, a Comissão tem emconta a Convenção Interamericana para Prevenire Punir a Tortura para orientar a sua interpretação<strong>de</strong> tortura ao abrigo do artigo 5. o27 . A ConvençãoInteramericana para Prevenir e Punir aTortura foi adoptada pela OEA a 9 <strong>de</strong> Dezembro<strong>de</strong> 1985 e entrou em vigor a 28 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong>1987 28 . O seu artigo 2. o <strong>de</strong>fine tortura nosseguintes termos:[...] todo acto pelo qual são infligidos intencionalmentea uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais,com fins <strong>de</strong> investigação criminal, como meio <strong>de</strong> intimidação,como castigo pessoal, como medida preventiva,como pena ou com qualquer outro fim.Enten<strong>de</strong>r-se-á também como tortura a aplicação sobreuma pessoa, <strong>de</strong> métodos ten<strong>de</strong>ntes a anular a personalida<strong>de</strong>da vítima, ou a diminuir sua capacida<strong>de</strong> físicaou mental, embora não causem dor física ou angústiapsíquica.27. De acordo com o artigo 1. o , os Estados Partesobrigam-se a prevenir e punir a tortura, nos termosda Convenção. Os Estados Partes na Convenção<strong>de</strong>verão investigar imediatamente e <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quadaquaisquer alegações <strong>de</strong> tortura ocorrida noâmbito da sua jurisdição.28. O artigo 8. o estabelece que “os Estados Partesassegurarão a qualquer pessoa que <strong>de</strong>nunciarhaver sido submetida a tortura, no âmbito <strong>de</strong> suajurisdição, o direito <strong>de</strong> que o caso seja examinado<strong>de</strong> maneira imparcial”. Da mesma forma, sempreque haja qualquer <strong>de</strong>núncia ou razão fundadapara supor que tenha sido cometido um acto <strong>de</strong> torturano âmbito da sua jurisdição, os Estados Partes<strong>de</strong>verão garantir que as suas autorida<strong>de</strong>sinvestiguem imediatamente o caso <strong>de</strong> formaa<strong>de</strong>quada e instaurem, se for caso disso, o correspon<strong>de</strong>nteprocesso penal.29. Num dos seus relatórios<strong>de</strong> 1998 <strong>de</strong>dicado à situação <strong>de</strong><strong>de</strong>terminado país em concreto,a Comissão observou que um29 Relatório da Situação <strong>de</strong>Direitos Humanos noMéxico, 1998, ComissãoInteramericana <strong>de</strong> DireitosHumanos, parágrafo 323.30 Ibid., parágrafo 324.dos obstáculos à efectiva punição dos autores <strong>de</strong> torturaresi<strong>de</strong> na falta <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência dos inquéritos,uma vez que a realização das diligências <strong>de</strong>investigação compete a organismos fe<strong>de</strong>rais susceptíveis<strong>de</strong> terem ligações com os presumíveisautores dos actos <strong>de</strong> tortura 29 . A Comissão citouo artigo 8. o para sublinhar a importância <strong>de</strong> um“exame imparcial” <strong>de</strong> todos os casos 30 .30. O Tribunal Interamericano <strong>de</strong> Direitos Humanostem sublinhado a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigaralegadas violações da Convenção Americana sobreDireitos Humanos. Na sua sentença <strong>de</strong> 29 <strong>de</strong> Julho<strong>de</strong> 1988 relativa ao processo Velásquez Rodrigues,o tribunal formulou as seguintes consi<strong>de</strong>rações:“O Estado está obrigado a investigar qualquer situação<strong>de</strong> violação dos direitos protegidos pela Convenção. Seo aparelho do Estado agir <strong>de</strong> tal forma que a violaçãofique impune e o pleno gozo <strong>de</strong> tais direitos por parteda vítima não seja restabelecido logo que possível, oEstado está em incumprimento do seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> asseguraro livre e pleno exercício <strong>de</strong>sses direitos às pessoassujeitas à sua jurisdição.” [parágrafo 176]8 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


31. O artigo 5. o da Convenção consagra a proibiçãoda tortura. Embora o caso diga directamenterespeito à questão dos <strong>de</strong>saparecimentos,um dos direitos referidos pelo Tribunal comoestando garantidos pela Convenção Americanasobre Direitos Humanos é o direito <strong>de</strong> não sersujeito a tortura ou outras formas <strong>de</strong> maustratos.2. TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM32. A 4 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1950,o Conselho da Europa adoptoua Convenção para a Protecçãodos Direitos do Homem e dasLiberda<strong>de</strong>s Fundamentais, queentrou em vigor a 3 <strong>de</strong> Setembro<strong>de</strong> 1953 31N.T.19 . O artigo 3. o daConvenção Europeia estabeleceque “Ninguém po<strong>de</strong> ser submetidoa torturas, nem a penasou tratamentos <strong>de</strong>sumanos ou<strong>de</strong>gradantes”. A Convenção Europeia instituiu osseguintes mecanismos <strong>de</strong> controlo: o TribunalEuropeu e a Comissão Europeia dos Direitos doHomem. Des<strong>de</strong> a reforma que entrou em vigora 1 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1998, um novo Tribunalpermanente substituiu o anterior Tribunal e aComissão. O direito <strong>de</strong> apresentar queixaperante o Tribunal é agora reconhecido a todosos particulares e todas as vítimas têm acessodirecto ao Tribunal. Este último teve já a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> se pronunciar sobre a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> investigar quaisquer alegações <strong>de</strong> tortura a fim<strong>de</strong> garantir o respeito dos direitos enunciados noartigo 3. o .33. O Tribunal pronunciou-sepela primeira vez sobre estaquestão na <strong>de</strong>cisão do caso Aksoycontra Turquia, a 18 <strong>de</strong> Dezembro<strong>de</strong> 1996 32 . Neste caso, o Tribunalconsi<strong>de</strong>rou que:31 United Nations TreatySeries, vol. 213, p. 222.N.T.19 Esta Convenção foiaprovada para ratificaçãopor Portugal pela Lein. o 65/78, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> Outubro,publicada no Diário daRepública, I Série,n. o 236/78, tendo o instrumento<strong>de</strong> ratificação sido<strong>de</strong>positado junto do Secretário-Geraldo Conselho daEuropa a 9 <strong>de</strong> Novembro<strong>de</strong> 1978. Entrou em vigor naor<strong>de</strong>m jurídica portuguesa a9 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1978.O texto oficial em portuguêsestá disponível na página doGDDC na INTERNET.32 Ibid., conforme emendadapelos <strong>Protocolo</strong>s adicionaisn. os 3, 5 e 8,entrados em vigor a 21 <strong>de</strong>Setembro <strong>de</strong> 1970, 20 <strong>de</strong>Dezembro <strong>de</strong> 1971 e 1 <strong>de</strong>Janeiro <strong>de</strong> 1990, respectivamente,Série <strong>de</strong> TratadosEuropeus, n os 45, 46 e 118.Sempre que um indivíduo está <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong> no momentoem que fica sob custódia policial, mas aparece ferido nomomento da libertação, cabe ao Estado apresentar umaexplicação plausível para a causa dos ferimentos, naausência da qual uma questão secoloca claramente nos termos doartigo 3. o33 .33 Vi<strong>de</strong> Tribunal Europeudos Direitos do Homem,Recueil <strong>de</strong>s arrêts et décisions,1996-VI, parágrafo61.34. O Tribunal prosseguiu34 Ibid., parágrafo 64.dizendo que as lesões apresentadaspelo queixoso resultavam35 Ibid., parágrafo 98.<strong>de</strong> tortura e que tinha havido violação do artigo 3. o34 .Para além disso o Tribunal proce<strong>de</strong>u a uma interpretaçãodo artigo 13. o da Convenção, que estabeleceo direito a um recurso efectivo perante umainstância nacional, consi<strong>de</strong>rando que o mesmoimpõe a obrigação <strong>de</strong> investigar rigorosamentetodas as queixas <strong>de</strong> tortura. Consi<strong>de</strong>rando a“importância fundamental da proibição da tortura”e a vulnerabilida<strong>de</strong> das vítimas <strong>de</strong> tortura, oTribunal <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que “o artigo 13. o impõe aosEstados, sem prejuízo <strong>de</strong> qualquer outra via <strong>de</strong>recurso disponível ao abrigo do direito interno, aobrigação <strong>de</strong> investigar <strong>de</strong> forma rigorosa e eficaztodos os inci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> tortura” 35 .35. De acordo com a interpretaçãodo Tribunal, a noção <strong>de</strong> 37 Ibid., parágrafo 100.36 Ibid., parágrafo 98.“recurso efectivo” constante doartigo 13. o exige uma investigação rigorosa <strong>de</strong> qualquer“alegação verosímil” <strong>de</strong> tortura. O Tribunalobservou que, embora a Convenção não contenhaqualquer disposição expressa nesse sentido, comoacontece com o artigo 12. o da Convenção contra aTortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,Desumanos ou Degradantes, “tal exigência estáimplícita na noção <strong>de</strong> ‘recurso efectivo’ do artigo13. o ” 36 . O Tribunal consi<strong>de</strong>rou então que o Estadohavia violado o artigo 13. o ao abster-se <strong>de</strong> investigara <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> tortura apresentada pelo queixoso37 .36. Na sentença proferida a 28 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong>1998 no processo Assenov e outros contra Bulgária(90/1997/874/1086), o Tribunal foi aindamais longe, ao reconhecer que o Estado tem aobrigação <strong>de</strong> investigar as alegações <strong>de</strong> tortura,não apenas ao abrigo do artigo 13. o , mas tambémem virtu<strong>de</strong> do artigo 3. o . Neste caso, um jovemcigano capturado pela polícia mostrava sinais <strong>de</strong>espancamento, mas era impossível avaliar, combase nas provas disponíveis, se as lesões haviamNormas jurídicas internacionais aplicáveis* 9


sido causadas pelo seu pai oupela polícia. O Tribunal reconheceuque “a intensida<strong>de</strong> dosferimentos observados pelo38 Vi<strong>de</strong> Tribunal Europeudos Direitos do Homem,Recueil <strong>de</strong>s arrêts et décisions,1998-VIII, parágrafo95.39 Ibid., parágrafo 101.médico que examinou o Senhor Assenov indica queas lesões <strong>de</strong>ste último, quer houvessem sido causadaspelo seu pai ou pela polícia, eram suficientementegraves para serem consi<strong>de</strong>radas maustratos ao abrigo do artigo 3. o38 ”. Ao contrário daComissão, que consi<strong>de</strong>rou não ter havido violaçãodo artigo 3. o , o Tribunal não ficou por aqui. Prosseguiudizendo que “os factos levantam suspeitasrazoáveis <strong>de</strong> que as lesões tenham sido causadaspela polícia” 39 . Assim, o Tribunal <strong>de</strong>clarou que:Nestas circunstâncias, quando um40 Ibid., parágrafo 102.indivíduo apresenta uma queixaverosímil <strong>de</strong> ter sido seriamente mal tratado pela políciaou outros agentes análogos do Estado, ilegalmentee em violação do artigo 3. o , esta disposição, lida emconjunto com o artigo 1. o da Convenção no qual osEstados Partes se obrigam a reconhecer “a qualquer pessoa<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da sua jurisdição os direitos e liberda<strong>de</strong>s<strong>de</strong>finidos [na] presente Convenção”, implica aobrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> levar a cabo um inquérito oficialeficaz. Este inquérito <strong>de</strong>verá permitir a i<strong>de</strong>ntificação epunição dos responsáveis. A não ser assim, a interdiçãojurídica geral da tortura e das penas ou tratamentos<strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes, pese embora a suaimportância fundamental, ficaria <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> efeito práticoe tornaria possível que, em <strong>de</strong>terminados casos, osagentes do Estado violassem os direitos das pessoas àsua guarda com virtual impunida<strong>de</strong> 40 .37. Pela primeira vez, o Tribunal concluiu pela violaçãodo artigo 3. o , não em virtu<strong>de</strong> dos maus tratosem si mesmos, mas pelo facto <strong>de</strong> se não terlevado a cabo um inquérito oficial eficaz peranteuma alegação <strong>de</strong> maus tratos. Para além disso, oTribunal reiterou a sua posição no caso Aksoy e concluiuque também tinha havido violação do artigo13. o . O Tribunal consi<strong>de</strong>rou que:Quando uma pessoa apresenta uma queixa verosímil <strong>de</strong>ter sido sujeita a maus tratos em violação do artigo 3. o ,a noção <strong>de</strong> recurso efectivo implica, para além da realização<strong>de</strong> um inquérito rigoroso e eficaz conforme exigidotambém pelo artigo 3. o , o efectivo acesso doqueixoso ao processo <strong>de</strong> inquéritoe o pagamento <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>mnizaçãoquando a ela houver lugar 41 .3. COMITÉ EUROPEU PARA A PREVENÇÃODA TORTURA E DAS PENAS OU TRATAMENTOSDESUMANOS OU DEGRADANTES38. Em 1987, o Conselho daEuropa adoptou a ConvençãoEuropeia para a Prevenção daTortura e das Penas ou TratamentosDesumanos ou Degradantes,que entrou em vigora 1 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1989 N.T.20 , 42 .A 1 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1999, tinha jásido ratificada por todos os 40Estados Membros do Conselho daEuropa N.T.21 . Esta Convenção complementa,com um mecanismopreventivo, o aparelho judicialinstituído pela Convenção Europeiados Direitos do Homem.Intencionalmente, a Convençãonão contém quaisquer disposiçõessubstantivas. Criou oComité Europeu para a Prevençãoda Tortura e das Penas ou TratamentosDesumanos ou Degradantes,composto por ummembro por cada Estado Parte. Os membros eleitosdo Comité <strong>de</strong>verão ser pessoas <strong>de</strong> elevada condiçãomoral, imparciais e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, e estardisponíveis para a realização <strong>de</strong> missões no terreno.39. O Comité realiza visitasaos Estados Partes, algumascom carácter regular e periódicoe outras quando consi<strong>de</strong>re queas circunstâncias o exigem.A <strong>de</strong>legação visitante do Comitéserá constituída por alguns dosseus membros, acompanhados41 Ibid., parágrafo 117.N.T.20 Para a versão oficialem português, consulte awebpage do GDDC.42 Série <strong>de</strong> Tratados Europeus,n. o 126.N.T.21 A 31 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2002,o Conselho da Europa contavajá com 44 EstadosMembros, na sequência dasa<strong>de</strong>sões da Arménia(25.01.2001), Azerbeijão(25.01.2001), Bósnia e Herzegovina(24.04.2002) eGeórgia (27.04.1999), dosquais apenas esta últimaproce<strong>de</strong>u à ratificação <strong>de</strong>staConvenção, que contaassim com 41 Estados Partesdos actuais 44 Membrosdo Conselho da Europa.Portugal aprovou a Convençãopara ratificação pelaresolução da Assembleia daRepública n. o 3/90, <strong>de</strong> 30<strong>de</strong> Janeiro, publicada noDiário da República, I Série,n. o 25/90 e ratificou-amediante Decreto do Presi<strong>de</strong>nteda República,n. o 8/90, <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> Fevereiro,publicado no Diárioda República, I Série,n. o 43/90. O instrumento<strong>de</strong> ratificação foi <strong>de</strong>positadojunto do Secretário-Geral doConselho da Europa a 29 <strong>de</strong>Março <strong>de</strong> 1990, tendo aConvenção entrado emvigor na or<strong>de</strong>m jurídica portuguesaa 1 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>1990.43 Enten<strong>de</strong>-se por “pessoaprivada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>” qualquerpessoa privada <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> umaautorida<strong>de</strong> pública, como,embora não exclusivamente,pessoas capturadasou sujeitas a qualquerforma <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, presospreventivos ou con<strong>de</strong>nadose pessoas involuntariamenteinternadas em hospitais psiquiátricos.<strong>de</strong> peritos nas áreas da medicina e do direito, entreoutras, intérpretes e elementos do Secretariado.Estas <strong>de</strong>legações visitam pessoas privadas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>pelas autorida<strong>de</strong>s do país visitado 43 . Os po<strong>de</strong>res<strong>de</strong>stas <strong>de</strong>legações visitantes são bastante10 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


vastos: po<strong>de</strong>m visitar livremente qualquer localon<strong>de</strong> se encontrem pessoas privadas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>;fazer visitas sem aviso prévio a qualquer <strong>de</strong>steslocais; voltar a visitar os mesmos; falar em privadocom as pessoas privadas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>; visitarquaisquer pessoas que se encontrem nesses locaisou todas elas; e observar todas as instalações (e nãoapenas as celas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção), sem restrições.A <strong>de</strong>legação po<strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r a todos os documentos eficheiros relativos às pessoas visitadas. Todo o trabalhodo Comité se baseia nos princípios da confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong>e da cooperação.40. Após a visita, o Comité elabora um relatório.Com base nos factos observados durante a visita,o relatório comenta as condições <strong>de</strong>tectadas, formularecomendações concretas e coloca quaisquerquestões que necessitem <strong>de</strong> ser esclarecidas.O Estado Parte respon<strong>de</strong> por escrito ao relatório,assim se estabelecendo um diálogo com o Comitéque se mantém até à visita seguinte. Os relatóriosdo Comité e as respostas do Estado Parte sãodocumentos confi<strong>de</strong>nciais, mas o Estado Parte (enão o Comité) po<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir tornar público qualquer<strong>de</strong>les. Até à data, quase todos os Estados Partes têmdivulgado tanto os relatórios como as respectivasrespostas.41. No <strong>de</strong>senrolar das suas activida<strong>de</strong>s aolongo dos últimos <strong>de</strong>z anos, o Comité <strong>de</strong>senvolveugradualmente um conjunto <strong>de</strong> critériospara o tratamento das pessoas privadas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>que constituem normas gerais. Estas normasdizem respeito, não apenas às condiçõesmateriais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, mas também às garantiasprocessuais. Por exemplo, o Comité <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> oreconhecimento, às pessoas privadas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s policiais, dos seguintesdireitos:a) O direito <strong>de</strong> informar imediatamente uma terceiraparte (membro da família) da <strong>de</strong>tenção, se apessoa <strong>de</strong>tida assim o <strong>de</strong>sejar;b) O direito da pessoa privada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> terimediatamente acesso a um advogado;c) O direito da pessoa privada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> teracesso a um médico, incluindo, se assim o <strong>de</strong>sejar,a médico da sua escolha.42. Para além disso, o Comité lembra repetidamenteque um dos meios mais eficazes para preveniros maus tratos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tidos por parte <strong>de</strong>funcionários responsáveis pela aplicação da leiconsiste no exame cuidadoso, pelas autorida<strong>de</strong>scompetentes, <strong>de</strong> todas as queixas <strong>de</strong> tais abusos <strong>de</strong>que tenham conhecimento e, se for caso disso, naimposição da sanção a<strong>de</strong>quada. Isto tem um forteefeito dissuasor.4. COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS DOHOMEM E DOS POVOS E TRIBUNAL AFRICANO DOSDIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS43. Ao contrário dos sistemasEuropeu e Interamericano,África não dispõe <strong>de</strong> uma convençãorelativa à tortura e à suaprevenção. A questão da tortura44Documento da OUA coma cota CAB/LEG/67/3, rev.5(21 I.L.M.58 (1982)).N.T.22Para a versão em português,consulte a webpagedo GDDC.é posta no mesmo plano das restantes violações<strong>de</strong> direitos humanos. A tortura é abordada, em primeirolugar, na Carta Africana dos Direitos doHomem e dos Povos, adoptada pela Organização<strong>de</strong> Unida<strong>de</strong> Africana (OUA) a 27 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong>1981 e entrada em vigor a 21 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong>1986 44 , N.T.22 . O artigo 5. o da Carta Africana dispõeo seguinte:Todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignida<strong>de</strong>inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da suapersonalida<strong>de</strong> jurídica. Todas as formas <strong>de</strong> exploraçãoe <strong>de</strong> aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura,o tráfico <strong>de</strong> pessoas, a tortura física ou moral eas penas ou os tratamentos cruéis, <strong>de</strong>sumanos ou<strong>de</strong>gradantes são interditas.44. A Comissão Africana dos Direitos doHomem e dos Povos foi estabelecida em Junho<strong>de</strong> 1987, em conformida<strong>de</strong> com o artigo 30. o daCarta Africana, com a missão <strong>de</strong> “promover osdireitos do homem e dos povos e <strong>de</strong> assegurar arespectiva protecção em África”. Nas suas sessõesregulares, a Comissão tem vindo a adoptar diversasresoluções sobre matérias relativas à situação<strong>de</strong> direitos humanos em África, algumas dasquais abordam a questão da tortura, entre outrasviolações. Em algumas das suas resoluçõesNormas jurídicas internacionais aplicáveis* 11


sobre os direitos humanos em <strong>de</strong>terminadospaíses específicos, a Comissão tem manifestadopreocupação acerca da <strong>de</strong>gradação da situação <strong>de</strong>direitos humanos, incluindo a prática da tortura.45. A Comissão criou novos mecanismos, comoo Relator Especial sobre as Prisões, o Relator Especialsobre as Execuções Sumárias e Arbitrárias e oRelator Especial sobre Mulheres, cujo mandatocompreen<strong>de</strong> a apresentação <strong>de</strong> relatórios à Comissãodurante as sessões públicas da mesma. Estesmecanismos permitem que as vítimas e organizaçõesnão governamentais enviem informaçõesdirectamente aos relatores especiais. Simultaneamente,a vítima ou a organização não governamentalpo<strong>de</strong> apresentar queixa à Comissão poractos <strong>de</strong> tortura conforme <strong>de</strong>finida no artigo 5. o daCarta Africana. Na pendência <strong>de</strong> uma queixa individualperante a Comissão, a vítima ou a organizaçãonão governamental po<strong>de</strong> enviar a mesmainformação aos relatores especiais para inclusão nosrelatórios públicos que estes apresentam à Comissão.Com o objectivo <strong>de</strong> criar uma instância para<strong>de</strong>cidir sobre queixas <strong>de</strong> violação dos direitosgarantidos na Carta Africana, a Assembleia daOrganização <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong> Africana adoptou, emJunho <strong>de</strong> 1998, um protocolo que visa o estabelecimentodo Tribunal Africano dos Direitos doHomem e dos Povos.d. Tribunal Penal Internacional46. O Estatuto <strong>de</strong> Roma do TribunalPenal Internacional, adoptadoa 17 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1998,estabeleceu um tribunal penalinternacional permanente parajulgar indivíduos responsáveispela prática do genocídio, crimescontra a Humanida<strong>de</strong> e crimes<strong>de</strong> guerra (A/CONF.183/9). EsteTribunal (TPI) tem jurisdiçãosobre casos <strong>de</strong> alegada torturaque sejam elemento constitutivo<strong>de</strong> um crime <strong>de</strong> genocídio ou <strong>de</strong>um crime contra a Humanida<strong>de</strong>,caso a tortura seja cometida noN.T.23 O Estatuto <strong>de</strong> Romado TPI (cuja versão oficialintegral está disponível nawebpage do GDDC), consi<strong>de</strong>radocomo o instrumentojurídico internacional maisimportante <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Cartadas Nações Unidas, entrouem vigor no dia 1 <strong>de</strong> Julho<strong>de</strong> 2002, 1. o dia do mêsseguinte ao termo <strong>de</strong> 60dias após o <strong>de</strong>pósito do 60. oinstrumento <strong>de</strong> ratificação.Até 7 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2003,havia já sido ratificado por87 Estados. Portugal foi o51. o Estado a ratificar oEstatuto (aprovado pararatificação pela Resoluçãoda Assembleia da Repúblican. o 3/2002 e ratificado peloDecreto do Presi<strong>de</strong>nte daRepública n. o 2/2002,ambos publicados no Diárioda República I-A, n. o 15, <strong>de</strong>18.01.2002), tendo <strong>de</strong>positadoo respectivo instrumento<strong>de</strong> ratificação a 5 <strong>de</strong>Fevereiro <strong>de</strong> 2002.quadro <strong>de</strong> um ataque generalizado ou sistemático, ou<strong>de</strong> um crime <strong>de</strong> guerra nos termos <strong>de</strong>finidos nasConvenções <strong>de</strong> Genebra <strong>de</strong> 1949. O Estatuto <strong>de</strong>Roma <strong>de</strong>fine a tortura como o acto por meio do qualuma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais,são intencionalmente causados a uma pessoa queesteja sob a custódia ou o controlo do arguido. Até 25<strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 2000, o Estatuto <strong>de</strong> Roma havia sidoassinado por 113 Estados e ratificado por 21 N.T.23 . O Tribunalterá a sua se<strong>de</strong> na Haia. A competência do TPIestá limitada aos casos em que os Estados não po<strong>de</strong>mou não querem exercer acção penal contra as pessoasresponsáveis pelos crimes <strong>de</strong>scritos no Estatuto.12 *<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]


capítulo* 02Códigos éticos aplicáveis47. Todas as profissões utilizam como referênciacódigos <strong>de</strong> ética profissional, que enunciam valorescomuns e reconhecem os <strong>de</strong>veres dos profissionais,ao mesmo tempo que <strong>de</strong>finem os padrõesmorais a que estes <strong>de</strong>vem obe<strong>de</strong>cer. As normas éticassão <strong>de</strong>finidas sobretudo <strong>de</strong> duas maneiras:através <strong>de</strong> instrumentos internacionais elaboradospor órgãos como as Nações Unidas, e através<strong>de</strong> códigos <strong>de</strong> princípios elaborados pelos própriosprofissionais, através das associações que os representam,a nível nacional ou internacional. Os princípiosfundamentais são sempre os mesmos ecentram-se nas obrigações dos profissionaisperante os seus clientes ou pacientes individualmenteconsi<strong>de</strong>rados, perante a socieda<strong>de</strong> em gerale perante os colegas, tendo por objectivo a <strong>de</strong>fesada honra da classe no seu conjunto. Estas obrigaçõesreflectem e complementam os direitos <strong>de</strong>que todos <strong>de</strong>vem gozar ao abrigo dos instrumentosinternacionais.a. Ética dos profissionais da área da justiça48. Enquanto árbitros supremos da justiça, osjuízes <strong>de</strong>sempenham um papel especial na protecçãodos direitos dos cidadãos. As normas internacionaisimpõem-lhes o <strong>de</strong>ver ético <strong>de</strong> zelar pelaprotecção dos direitos dos indivíduos. O Princípio6 dos Princípios Básicos Relativos à In<strong>de</strong>pendênciada Magistratura N.T.24 estabeleceque “os magistrados têm odireito e o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> garantir queos procedimentos judiciais sãoconduzidos em conformida<strong>de</strong>com a lei e que os direitos das partessão respeitados” 45 . De formasemelhante, os magistrados doMinistério Público têm o <strong>de</strong>verético <strong>de</strong> investigar e instauraracção penal relativamente a crimes<strong>de</strong> tortura cometidos porfuncionários públicos. O artigo15. o dos Princípios OrientadoresRelativos à Função dos Magistradosdo Ministério Público N.T.25<strong>de</strong>clara: “Os magistrados doN.T.24 Consulte o texto integralem português napágina do GDDC naINTERNET.45 Adoptados pelo SétimoCongresso das Nações Unidaspara a Prevenção doCrime e o Tratamento dosDelinquentes, realizado emMilão <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Agosto a 6<strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1985, eendossados pela AssembleiaGeral das Nações Unidasnas suas resoluções 40/32,<strong>de</strong> 29 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1985e 40/146, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> Dezembro<strong>de</strong> 1985.N.T.25 Consulte o texto integralem português napágina do GDDC naINTERNET.46 Adoptados pelo OitavoCongresso das Nações Unidaspara a Prevenção doCrime e o Tratamento dosDelinquentes, realizado emHavana, Cuba, <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong>Agosto a 7 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong>1990.Ministério Público obrigam-se em especial a encetarinvestigações criminais no caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>litos cometidospor agentes do Estado, nomeadamente actos<strong>de</strong> corrupção, <strong>de</strong> abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> violações gravesdos direitos do homem e outras infracções reconhecidaspelo direito internacional e, quando a leiou a prática nacionais a isso os autoriza, a iniciar procedimentocriminal por tais infracções” 46 .49. As normas internacionais impõem tambémaos advogados o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>, no exercício das suas funçõesprofissionais, promover e proteger os direitoshumanos e as liberda<strong>de</strong>s fundamentais. O princí-Códigos éticos aplicáveis* 13


pio 14 dos Princípios BásicosRelativos à Função dos AdvogadosN.T.26 dispõe o seguinte: “Aoprotegerem os direitos dos seusclientes e ao promoverem a causa da justiça, osadvogados <strong>de</strong>vem respeitar os direitos do homeme as liberda<strong>de</strong>s fundamentais reconhecidas pelodireito nacional e internacional, e <strong>de</strong>vem, em todoo momento, actuar com liberda<strong>de</strong> e diligência,em conformida<strong>de</strong> com a lei e com as normas eregras <strong>de</strong>ontológicas reconhecidas da sua profissão.47 ”b. Ética médica50. Existem ligações muito clarasentre os conceitos <strong>de</strong> direitoshumanos e os enraizadosprincípios <strong>de</strong> ética médica. Asobrigações éticas dos profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> articulam-se atrês níveis diferentes e estãoN.T.26 O texto integral emportuguês está disponível nawebpage do GDDC.47 Vi<strong>de</strong> nota <strong>de</strong> rodapé 46,supra.48 Diversas associações <strong>de</strong>âmbito regional, como aAssociação Médica da Commonwealthe a ConferênciaInternacional das AssociaçõesMédicas Islâmicas elaboramtambémimportantes <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong>ética médica e direitoshumanos <strong>de</strong>stinadas aosseus membros.reflectidas nos documentos das Nações Unidas,da mesma forma que as obrigações dos profissionaisna área da justiça. Encontram-se tambémconsagradas em <strong>de</strong>clarações proclamadas pelasorganizações profissionais representativas dosprofissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, como a Associação MédicaMundial, a Associação Psiquiátrica Mundial e oConselho Internacional <strong>de</strong> Enfermagem 48 . Asassociações médicas nacionais e organizações <strong>de</strong>profissionais <strong>de</strong> enfermagem adoptam tambémcódigos <strong>de</strong>ontológicos que os respectivos membros<strong>de</strong>vem respeitar. O princípio básico <strong>de</strong> todaa ética médica, qualquer que seja a sua formulação,consiste no <strong>de</strong>ver fundamental <strong>de</strong> agirsempre no melhor interesse do paciente, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> quaisquer limitações, pressõesou obrigações contratuais. Em <strong>de</strong>terminados países,os princípios <strong>de</strong> ética médica, como o sigiloprofissional entre médico e paciente, foram incorporadosna respectiva legislação nacional. Mesmoque o não tenham sido, todos os profissionais <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> têm o <strong>de</strong>ver moral <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer às normasestabelecidas pelos respectivos organismos profissionais.Se lhes <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cerem sem motivojustificado, incorrem em responsabilida<strong>de</strong> disciplinar.1. DECLARAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDASAPLICÁVEIS AOS PROFISSIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE51. Os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,como todas as outras pessoasque trabalham nos estabelecimentosprisionais, <strong>de</strong>verãoobservar as Regras Mínimaspara o Tratamento dos ReclusosN.T.27 , que exigem que todos os<strong>de</strong>tidos sem discriminaçãotenham acesso a serviços médicos,incluindo serviços <strong>de</strong> medicinapsiquiátrica, e que todos os<strong>de</strong>tidos doentes ou que solicitemtratamento sejam examinadosdiariamente 49 . Estasexigências reforçam a obrigaçãoética dos médicos, abaixo <strong>de</strong>senvolvida,<strong>de</strong> ministrar tratamentoe agir no melhor interesse doN.T.27 O texto integral <strong>de</strong>stasRegras, em português, estádisponível na webpage doGDDC.49 Regras Mínimas para oTratamento dos Reclusos eProcedimentos para a AplicaçãoEfectiva das RegrasMínimas para o Tratamentodos Reclusos, adoptadospelas Nações Unidasem 1955.50 Adoptados pela AssembleiaGeral das Nações Unidasna sua resolução37/194, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Dezembro<strong>de</strong> 1982.N.T.28 Texto em portuguêsdisponível na webpage doGDDC.51 Em particular a DeclaraçãoUniversal dos Direitosdo Homem, os Pactos Internacionaissobre DireitosHumanos e a Declaraçãosobre a Protecção <strong>de</strong> Todasas Pessoas contra a Torturae Outras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanosou Degradantes.seu paciente. Para além disso, as Nações Unidas<strong>de</strong>bruçaram-se especificamente sobre as obrigaçõeséticas dos médicos e outros profissionais <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> nos Princípios <strong>de</strong> Deontologia Médica aplicáveisà actuação do pessoal dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,especialmente aos médicos, para a protecção <strong>de</strong>pessoas presas ou <strong>de</strong>tidas contra a tortura e outraspenas ou tratamentos cruéis, <strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes50 , N.T.28 . Estes Princípios estabelecem claramenteque os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm o <strong>de</strong>vermoral <strong>de</strong> proteger a saú<strong>de</strong> física e mental dos <strong>de</strong>tidos.Estão explicitamente proibidos <strong>de</strong> utilizar osseus conhecimentos e competências médicas <strong>de</strong>qualquer forma contrária às <strong>de</strong>clarações internacionais<strong>de</strong> garantia dos direitos da pessoa 51 . Emparticular, constitui grave violação dos princípios <strong>de</strong>ética médica a participação, activa ou passiva, emactos <strong>de</strong> tortura ou a sua tolerância seja <strong>de</strong> queforma for.52. A “participação em actos <strong>de</strong> tortura” inclui aavaliação das capacida<strong>de</strong>s do indivíduo para suportaros maus tratos; estar presente, supervisionar ouinfligir maus tratos; reanimar o indivíduo paraque possa continuar a ser sujeito a maus tratos ouministrar-lhe tratamento médico imediatamenteantes, durante ou <strong>de</strong>pois do acto <strong>de</strong> tortura no14 * <strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


3. CÓDIGOS NACIONAIS DE ÉTICA MÉDICA Uma das suas <strong>de</strong>corrências éAdoptado pela AssociaçãoMédica Mundial ema obrigação dos médicos <strong>de</strong> 1949.16 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong>55. Os princípios <strong>de</strong> ética médica encontram-se dar resposta a todos quantos tenham necessida<strong>de</strong>consagrados, a um terceiro nível, nos códigosnacionais. Estes reflectem os mesmos valores fundamentaisacima expostos, uma vez que a éticamédica consiste na expressão dos valores comunsa todos os médicos. Em praticamente todas as culturase códigos, po<strong>de</strong>mos encontrar as mesmas premissasbásicas, tais como os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> evitar osofrimento, ajudar os doentes, proteger os vulneráveis<strong>de</strong> cuidados médicos. O Código Internacional <strong>de</strong>Ética Médica da Associação Médica Mundialreflecte esta obrigação, ao reconhecer o <strong>de</strong>vermoral dos médicos <strong>de</strong> prestar cuidados <strong>de</strong> emergênciaenquanto imperativo humanitário 59 .O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> dar resposta às necessida<strong>de</strong>s e ao sofrimentodos pacientes encontra eco nas <strong>de</strong>claraçõestradicionais <strong>de</strong> praticamente todas as culturas.e não discriminar entre os pacientes senãocom base na urgência das suas necessida<strong>de</strong>s clínicas.58. As actuais normas <strong>de</strong> ética médica baseiamgosIdênticos valores estão presentes nos códi-que disciplinam a enfermagem. Os princípioséticos apresentam, contudo, o problema <strong>de</strong> não estabeleceremregras <strong>de</strong>finitivas para todos os problemas,exigindo alguma interpretação. Ao seremconfrontados com dilemas morais, é fundamentalque os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tenham presentes assuas obrigações <strong>de</strong>ontológicas fundamentais ditadaspelos valores comuns da sua profissão, mastambém que as apliquem <strong>de</strong> forma a reflectir o seu<strong>de</strong>ver essencial <strong>de</strong> evitar o sofrimento dos seuspacientes.-se nos princípios estabelecidos nas primeiras<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> valores profissionais que exigiam queos médicos prestassem assistência mesmo queisso comportasse alguns riscos para si próprios. Porexemplo, o Caraka Samhita, um código hindudatado do primeiro século da era cristã, or<strong>de</strong>navaaos médicos o seguinte: “entrega-te <strong>de</strong> corpo ealma ao alívio dos teus pacientes; não abandonesnem magoes os teus pacientes para salvar a tua própriavida ou pelo teu bem-estar”. Os primeiroscódigos islâmicos contêm instruções semelhantese a mo<strong>de</strong>rna Declaração do Koweit exige quec. Princípios comuns a todos os códigos <strong>de</strong>os médicos tratem dos necessitados, estejam eles“próximo ou longe, sejam virtuosos ou pecadores,ética médicaamigos ou inimigos”.56. O princípio da in<strong>de</strong>pendência profissional 59. Os valores médicos oci<strong>de</strong>ntais60 Adoptada pela Associaçãosão fortemente influen-1948.60 Médica Mundial emexige que os técnicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> se concentremsempre no objectivo fundamental da medicina, ciados pelo Juramento <strong>de</strong>que consiste em aliviar o sofrimento e a angústiae evitar causar dano ao paciente, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> quaisquer pressões. Vários outros princípioséticos, dada a sua importância fundamental,constam invariavelmente <strong>de</strong> quaisquer códigos e<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong>ontológicas. Os principais são asobrigações <strong>de</strong> prestar assistência a quem <strong>de</strong>lanecessite, <strong>de</strong> não prejudicar o paciente e <strong>de</strong> respeitaros seus direitos. Estes são os <strong>de</strong>veres fundamentais<strong>de</strong> todos os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Hipócrates e outras profissões <strong>de</strong> fé semelhantes,como a Oração <strong>de</strong> Maimóni<strong>de</strong>s. O Juramento <strong>de</strong>Hipócrates representa uma promessa solene <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong> para com os colegas e um compromisso<strong>de</strong> fazer o bem e assistir os pacientes,poupar-lhes o sofrimento e respeitar o sigilo profissional.Estes quatro conceitos encontram-sereflectidos, <strong>de</strong> diversas formas, em todos os códigos<strong>de</strong> ética médica contemporâneos. A Declaração<strong>de</strong> Genebra da Associação Médica Mundial1. O DEVER DE ASSISTÊNCIArepresenta uma reafirmação mo<strong>de</strong>rna dos valoreshipocráticos 60 . Consiste numa promessa segundo57. O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> assistência encontra-se consagradoa qual os médicos se comprometem a fazer dasaú<strong>de</strong> dos seus pacientes a sua principal preocupação<strong>de</strong> diversas formas nas <strong>de</strong>clarações e códi-gos adoptados a nível nacional e internacional. e a <strong>de</strong>dicar-se ao serviço da Humanida<strong>de</strong> comconsciência e dignida<strong>de</strong>.


60. Diversos aspectos do <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> assistência estão inscritosem muitas das <strong>de</strong>clarações da Associação MédicaMundial, que indicam claramente que os médicos<strong>de</strong>vem fazer sempre o que for melhor para os seuspacientes, incluindo <strong>de</strong>tidos e presumíveis criminosos.Este <strong>de</strong>ver é muitas vezes expresso atravésda noção <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência profissional, que exigeque os médicos façam sempre uso das melhorespráticas clínicas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quaisquerpressões a que possam estar sujeitos.O Código Internacional <strong>de</strong> Ética Médica da AssociaçãoMédica Mundial sublinha o <strong>de</strong>ver domédico <strong>de</strong> ministrar tratamento “em plena in<strong>de</strong>pendênciatécnica e moral, com compaixão e respeitopela dignida<strong>de</strong> humana”. Salienta também o<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> agir apenas no interesse do paciente e<strong>de</strong>clara que os médicos <strong>de</strong>vem lealda<strong>de</strong> total aosseus pacientes. A Declaração <strong>de</strong> Tóquio e a Declaraçãosobre a In<strong>de</strong>pendência e Liberda<strong>de</strong> Profissionaldos Médicos, ambas adoptadas pelaAssociação Médica Mundial, afirmam inequivocamenteque os médicos <strong>de</strong>vem reivindicar a liberda<strong>de</strong><strong>de</strong> agir no melhor interesse dos seusdoentes, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quaisquer outrasconsi<strong>de</strong>rações, nomeadamente instruções <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>sempregadoras, autorida<strong>de</strong>s prisionais ouforças <strong>de</strong> segurança 61 . A última das <strong>de</strong>claraçõesexige que os médicos se assegurem <strong>de</strong> que “dispõemda in<strong>de</strong>pendência profissional para representare <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> dospacientes contra todos quantos pretendam negarou restringir os cuidados necessários aos doentesou feridos”. Relativamente aos enfermeiros,encontram-se consagrados princípios semelhantesno Código do Conselho Internacional <strong>de</strong> Enfermagem.61. A Associação Médica Mundialexprime ainda o <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> assistência através do reconhecimentodos direitos dopaciente. Na sua Declaração <strong>de</strong>61 Adoptada pela AssociaçãoMédica Mundial em1986.62 Adoptada pela AssociaçãoMédica Mundial em1981; alterada pela AssembleiaGeral da Associaçãona sua quadragésimasétima sessão, em Setembro<strong>de</strong> 1995.Lisboa sobre os Direitos dos Pacientes, reconheceque todas as pessoas têm direito, sem discriminação,a cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quados e reitera queo médico <strong>de</strong>ve agir sempre no melhor interesse dopaciente 62 . De acordo com esta <strong>de</strong>claração, aospacientes <strong>de</strong>ve ser garantida autonomia e justiçae tanto os médicos como os prestadores <strong>de</strong> cuidados<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os direitos dopaciente. “Sempre que a legislação, a acção dogoverno ou <strong>de</strong> qualquer outra administração ou instituiçãonegue aos pacientes tais direitos, os médicos<strong>de</strong>vem procurar formas a<strong>de</strong>quadas para osgarantir ou restabelecer”. Os indivíduos têmdireito a cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quados, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> factores como a respectiva origemétnica, opiniões políticas, nacionalida<strong>de</strong>, sexo, religiãoou mérito pessoal. As pessoas acusadas ou con<strong>de</strong>nadaspela prática <strong>de</strong> crimes têm igual direito abeneficiar <strong>de</strong> cuidados médicos ou <strong>de</strong> enfermagema<strong>de</strong>quados. A Declaração <strong>de</strong> Lisboa da AssociaçãoMédica Mundial sublinha que o único critério <strong>de</strong>discriminação aceitável resi<strong>de</strong> na urgência relativadas necessida<strong>de</strong>s clínicas dos pacientes.2. CONSENTIMENTO ESCLARECIDO62. Embora todas as <strong>de</strong>claraçõesque consagram o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>63 Adoptada em 1983.assistência salientem a obrigação <strong>de</strong> agir nomelhor interesse do indivíduo examinado ou tratado,tal pressupõe que os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>saibam qual é o melhor interesse do paciente. Umdos preceitos absolutamente fundamentais damo<strong>de</strong>rna ética médica é o que consi<strong>de</strong>ra serem ospróprios pacientes os melhores juízes dos seusinteresses pessoais. Isto exige que os profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> dêem normalmente priorida<strong>de</strong> aos<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> um paciente adulto e capaz, sobre as opiniões<strong>de</strong> qualquer outra pessoa, por mais competenteque esta seja para se pronunciar acerca domelhor interesse do paciente em causa. Caso opaciente esteja inconsciente ou por qualquer outromotivo incapaz <strong>de</strong> prestar consentimento válido,os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>verão avaliar qual amelhor forma <strong>de</strong> proteger e promover os melhoresinteresses <strong>de</strong>ssa pessoa. Os médicos e enfermeiros<strong>de</strong>verão actuar em <strong>de</strong>fesa dos seuspacientes, conforme claramente indicado emdocumentos como a Declaração <strong>de</strong> Lisboa da AssociaçãoMédica Mundial e a <strong>de</strong>claração sobre oPapel dos Enfermeiros na Salvaguarda dos DireitosHumanos, do Conselho Internacional <strong>de</strong>Enfermagem 63 .Códigos éticos aplicáveis* 17


63. A Declaração <strong>de</strong> Lisboa da Associação MédicaMundial estabelece expressamente o <strong>de</strong>ver dosmédicos <strong>de</strong> obterem o consentimento voluntário eesclarecido dos pacientes mentalmente capazespara a realização <strong>de</strong> qualquer exame ou intervenção.Isto significa que os interessados <strong>de</strong>vem terconsciência das consequências da sua concordância,bem como da sua recusa. Antes <strong>de</strong> examinaremos pacientes, os médicos <strong>de</strong>vem, assim, explicarfrancamente o objectivo do exame ou tratamento.O consentimento obtido sob coacção ou com baseem falsas informações prestadas ao paciente é inválido,e os médicos que procedam a qualquer intervençãocom base nele são susceptíveis <strong>de</strong> violar asnormas <strong>de</strong>ontológicas. Quanto mais graves foremas potenciais consequências da intervenção, maisimperiosa será a obrigação moral <strong>de</strong> obter um consentimento<strong>de</strong>vidamente esclarecido. Ou seja,quando o exame ou o tratamento apresentam benefíciosterapêuticos claros para a pessoa, po<strong>de</strong> ser suficienteo seu consentimento implícito ao colaborarno processo. Nos casos em que o exame não temcomo objectivo principal a prestação <strong>de</strong> cuidadosterapêuticos, é necessário um maior cuidado paraassegurar que o paciente está ciente <strong>de</strong>sse facto econcorda com a intervenção, e que ela não é <strong>de</strong>forma alguma contrária aos melhores interesses dapessoa. Tal como dissemos anteriormente, os examesque se <strong>de</strong>stinam a verificar se o indivíduo estáem condições <strong>de</strong> suportar a sujeição a <strong>de</strong>terminadoscastigos, tortura ou coacção física no <strong>de</strong>curso<strong>de</strong> um interrogatório violam as normas éticas esão contrários aos fins da medicina. A única avaliaçãodo estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>tido permitidapelas regras <strong>de</strong>ontológicas é aquela que se <strong>de</strong>stinaa manter ou melhorar esse mesmo estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>– e não a que visa facilitar o castigo. Os exames físicospara fins probatórios no âmbito <strong>de</strong> um processo<strong>de</strong> inquérito exigem o consentimento esclarecidodo paciente, no sentido <strong>de</strong> que este compreenda, porexemplo, <strong>de</strong> que forma os elementos recolhidospor intermédio do exame vão ser utilizados e preservados,e quem terá acesso aos mesmos. Se estase outras questões relevantes para a <strong>de</strong>cisão dopaciente não lhe forem explicadas antecipadamente<strong>de</strong> forma clara, um consentimento eventualmenteprestado para o exame ou registo <strong>de</strong>dados será inválido.3. SIGILO PROFISSIONAL64. Todos os códigos <strong>de</strong> ética,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Juramento <strong>de</strong> Hipócratesaté aos dias <strong>de</strong> hoje, consagram o<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> sigilo profissional comoum dos respectivos princípiosfundamentais. As <strong>de</strong>clarações daAssociação Médica Mundial,como por exemplo a Declaração64 Excepto no caso <strong>de</strong> imperativoscomuns <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>pública, como a comunicaçãodo nome <strong>de</strong> pessoascom doenças infecciosas,toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes ou quesofram <strong>de</strong> doenças mentais,entre outras.65 Artigo 16. o do <strong>Protocolo</strong> I(1977) e artigo 10. o do <strong>Protocolo</strong>II (1977) adicionaisàs Convenções <strong>de</strong> Genebra<strong>de</strong> 1949.18 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> Lisboa, dão também enorme <strong>de</strong>staque a este<strong>de</strong>ver. Determinados sistemas jurídicos atribuemtal importância à obrigação <strong>de</strong> sigilo profissionalque a mesma foi incorporada nas respectivas legislaçõesnacionais. O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> sigilo não é absolutoe po<strong>de</strong> ser afastado <strong>de</strong> acordo com as normas<strong>de</strong>ontológicas em <strong>de</strong>terminadas circunstânciasexcepcionais, caso a sua manutenção possa previsivelmentedar origem a sérios danos a terceirosou graves perversões da justiça. Em geral, contudo,a obrigação <strong>de</strong> sigilo relativamente a dadosclínicos pessoais e i<strong>de</strong>ntificáveis apenas po<strong>de</strong> serafastada com o consentimento esclarecido dopaciente 64 . A informação não i<strong>de</strong>ntificável relativaaos pacientes po<strong>de</strong> ser livremente utilizadapara outros fins e <strong>de</strong>verá optar-se por ela sempreque a revelação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do paciente não sejaessencial. Po<strong>de</strong> ser o caso, por exemplo, da recolha<strong>de</strong> dados sobre a prática sistemática da torturaou dos maus tratos. As dúvidas surgem quando osprofissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> são obrigados por lei oupressionados para revelar informações i<strong>de</strong>ntificáveise susceptíveis <strong>de</strong> pôr os seus pacientes em risco.Nestes casos, prevalecem os princípios éticos fundamentais<strong>de</strong> respeito da autonomia e do interessesuperior do paciente e <strong>de</strong> lhe prestarassistência e evitar causar-lhe dano. Os médicos<strong>de</strong>verão <strong>de</strong>ixar claro ao tribunal ou à autorida<strong>de</strong>requisitante da informação que estão vinculados àobrigação <strong>de</strong> sigilo profissional. Os profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que assim procedam têm direito ao apoioda sua associação profissional e dos seus colegas.Para além disso, em período <strong>de</strong> conflito armado,o direito internacional humanitário confere protecçãoespecífica ao sigilo entre médico e paciente,proibindo que os técnicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> sejam obrigadosa divulgar informações sobre feridos e doentesque tratem ou tenham tratado 65 .


d. Profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>obrigações65. Os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm uma duplaobrigação: por um lado, a obrigação primordial <strong>de</strong>servir da melhor forma os interesses do seupaciente; por outro, o <strong>de</strong>ver geral perante a socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> garantir que se faça justiça e se impeçamas violações <strong>de</strong> direitos humanos. Os dilemasresultantes <strong>de</strong>sta dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obrigações colocam-secom particular acuida<strong>de</strong> nos casos dos profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que trabalham para a polícia,forças armadas ou outros serviços <strong>de</strong> segurança, ouno âmbito do sistema prisional. Os interesses dasua entida<strong>de</strong> empregadora e dos seus colegas nãomédicos po<strong>de</strong>m estar em conflito com os melhoresinteresses dos <strong>de</strong>tidos seus pacientes. Qualquerque seja a sua situação laboral, todos os profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm, antes <strong>de</strong> mais nada, o <strong>de</strong>ver primordial<strong>de</strong> zelar pelo bem-estar das pessoas quesão chamados a examinar ou a tratar. Não po<strong>de</strong>mser obrigados, por contrato ou em obediência a qualqueroutra consi<strong>de</strong>ração, a comprometer a suain<strong>de</strong>pendência profissional. Deverão proce<strong>de</strong>r auma avaliação imparcial dos interesses médicos dosseus pacientes e agir em conformida<strong>de</strong>.1. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OSMÉDICOS COM DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES66. Sempre que os médicosestejam ao serviço <strong>de</strong> um terceiro,têm a obrigação <strong>de</strong> assegurarque o paciente compreen<strong>de</strong>esse facto 66 . Os médicos <strong>de</strong>vem66 Estes princípios sãoextraídos da obra Doctorswith Dual Obligations [emportuguês: “Médicos comDualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Obrigações”],publicada pela AssociaçãoMédica Britânica em 1995.i<strong>de</strong>ntificar-se perante o paciente e explicar o objectivo<strong>de</strong> qualquer exame ou tratamento. Mesmoque sejam nomeados ou pagos por uma terceiraparte, continuam claramente vinculados pelo<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> assistir qualquer paciente que lhes caibaexaminar ou tratar. Têm a obrigação <strong>de</strong> se recusara fazer qualquer intervenção que cause dano aopaciente ou o torne física ou psicologicamentevulnerável a qualquer lesão. Os médicos <strong>de</strong>vemassegurar-se <strong>de</strong> que o seu contrato <strong>de</strong> trabalhonão prejudica a sua in<strong>de</strong>pendência profissionalpara formular juízos clínicos. Devem tambémassegurar-se <strong>de</strong> que todas as pessoas sujeitas a<strong>de</strong>tenção têm acesso a qualquer exame ou tratamentomédico <strong>de</strong> que necessitem. Sempre que o<strong>de</strong>tido seja menor <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> ou um adulto vulnerável,os médicos têm obrigações acrescidas para assegurara sua protecção. Mantém-se o <strong>de</strong>ver geral<strong>de</strong> sigilo, não <strong>de</strong>vendo qualquer informação relativaao paciente ser divulgado sem o conhecimento domesmo. Os médicos <strong>de</strong>vem zelar pela confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong>dos ficheiros clínicos. Sempre que, noâmbito das suas funções, observem acções oucomportamentos contrários à ética, abusivos, ina<strong>de</strong>quadosou que coloquem em risco a saú<strong>de</strong> dospacientes, <strong>de</strong>verão <strong>de</strong>nunciá-los e tomar todas asmedidas necessárias, o mais rapidamente possível,uma vez que qualquer atraso po<strong>de</strong>rá tornar maisdifícil o protesto. Deverão comunicar o caso àsautorida<strong>de</strong>s competentes ou a instâncias internacionaiscapazes <strong>de</strong> investigar a situação, mas semexpor os pacientes, as suas famílias ou a si própriosa qualquer risco grave e previsível. Os médicos erespectivas associações profissionais <strong>de</strong>verãoapoiar os colegas que assim procedam com baseem provas razoáveis.2. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DEOBRIGAÇÕES67. Os dilemas po<strong>de</strong>m surgir caso as normas éticase jurídicas estejam em contradição. Po<strong>de</strong> dar--se o caso, por exemplo, <strong>de</strong> as regras <strong>de</strong>ontológicosobrigarem os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cera <strong>de</strong>terminada disposição legal, como a obrigaçãolegal <strong>de</strong> divulgar informação médicaconfi<strong>de</strong>ncial relativa aos seus pacientes. As <strong>de</strong>claraçõesnacionais e internacionais <strong>de</strong> ética médicaconvergem na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que nenhum imperativo,incluindo os imperativos legais, po<strong>de</strong> obrigar os profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a agir em violação das normas<strong>de</strong> <strong>de</strong>ontologia médica e contra a sua consciência.Em tais circunstâncias, os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><strong>de</strong>vem recusar-se a cumprir a lei ou o regulamentoem causa, em lugar <strong>de</strong> comprometer <strong>de</strong>terminadospreceitos éticos fundamentais ou exporos seus pacientes a grave perigo.68. Em <strong>de</strong>terminados casos, duas obrigações éticaspo<strong>de</strong>m colidir entre si. Os códigos e princípioséticos internacionais exigem a comunicação aosCódigos éticos aplicáveis* 19


organismos responsáveis <strong>de</strong> todos os inci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>tortura ou maus tratos. Em <strong>de</strong>terminados sistemasjurídicos, esta é também uma exigência legal. Emcertos casos, porém, os pacientes po<strong>de</strong>m recusarsubmeter-se a exame para esse fim ou negar oconsentimento para a divulgação a terceiros dainformação recolhida através do exame. Isto po<strong>de</strong>suce<strong>de</strong>r, por exemplo, por receio <strong>de</strong> represáliascontra si ou contra a sua família. Nestas situações,os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm dois tipos <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong>s: perante o paciente e perante asocieda<strong>de</strong> no seu conjunto a qual tem interesse emassegurar a realização da justiça e que os autores<strong>de</strong> actos <strong>de</strong> tortura seja levados a julgamento.O princípio fundamental <strong>de</strong> evitar o dano <strong>de</strong>ve sera consi<strong>de</strong>ração primordial na solução <strong>de</strong>stes dilemas.Os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem procurarsoluções que promovam a justiça sem violar odireito do paciente à confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> dos seusdados médicos. Deverão aconselhar-se junto organismosfi<strong>de</strong>dignos – por exemplo, a associaçãomédica nacional ou organizações não governamentais.É também possível que, com apoio eencorajamento, alguns pacientes receosos acabempor concordar na divulgação da informação, <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados limites previamente acordados.67 Vi<strong>de</strong> V. Iacopino et al.,“Physician complicity inmisrepresentation andomission of evi<strong>de</strong>nce of torturein post-<strong>de</strong>tention medicalexaminations in Turkey”[em português: Cumplicida<strong>de</strong>dos médicos na falsificaçãoe omissão <strong>de</strong> provas<strong>de</strong> tortura nos examesmédicos subsequentes à<strong>de</strong>tenção, na Turquia], Journalof the American MedicalAssociation (JAMA),276, 1996, pp. 396 a 402.car a sua função ao paciente e <strong>de</strong>ixar claro que osigilo médico não faz habitualmente parte dassuas funções, como faria num contexto terapêutico.Determinados regulamentos po<strong>de</strong>m não permitirque o paciente se recuse a ser examinado, maspo<strong>de</strong> optar por não divulgar a causa das lesões. Osmédicos legistas não <strong>de</strong>vem falsificar os seus relatóriosmas antes incluir provas imparciais, dandoconta claramente da existência <strong>de</strong> quaisquer indícios<strong>de</strong> maus tratos, se for caso disso 67 .71. Os médicos dos estabelecimentos prisionaistêm como principal função a prestação <strong>de</strong> cuidadosterapêuticos aos <strong>de</strong>tidos, mas cabe-lhes tambémexaminar os reclusos que dão entrada noestabelecimento prisional após passagem pelasmãos da polícia. No <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>stas funções,po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>tectar sinais evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> violência inaceitávelque os próprios reclusos não estão realisticamente69. As obrigações éticas <strong>de</strong> um médico po<strong>de</strong>mem posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar. Em taisvariar <strong>de</strong> acordo com o contexto em que se estabelecea sua relação com o paciente e a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> este ter ou não liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhaquanto à divulgação da informação. Por exemplo,quando médico e doente se encontram numasituação claramente terapêutica, como aquandoda prestação <strong>de</strong> cuidados médicos num hospital,sobre o médico recai um forte imperativo moral <strong>de</strong>respeitar as habituais regras <strong>de</strong> sigilo que em geralprevalecem nas relações terapêuticas. A revelação<strong>de</strong> provas <strong>de</strong> tortura obtidas nesse contexto é, contudo,inteiramente a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o pacienteo não proíba. Os médicos <strong>de</strong>vem revelar essas provascaso os pacientes o solicitem ou dêem o seu consentimentoesclarecido para tal. O médico <strong>de</strong>verásituações, os médicos <strong>de</strong>vem tomar em consi<strong>de</strong>raçãoo melhor interesse do paciente e o seu <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> sigilo perante este, mas existem também fortesargumentos morais para que o médico <strong>de</strong>nuncieindícios manifestos <strong>de</strong> maus tratos, uma vez queo recluso não está muitas vezes em condições efectivas<strong>de</strong> o fazer. Se o recluso concorda na divulgação,não existe qualquer conflito e cria-se umaclara obrigação moral. Contudo, se o recluso nãoconsente que a informação seja divulgada, omédico <strong>de</strong>verá avaliar os riscos reais e potenciaisem que o paciente incorre, em comparação com osbenefícios que daí advêm para a população prisionalem geral e para o interesse da socieda<strong>de</strong> em prevenira repetição <strong>de</strong> tais abusos.apoiar o paciente na <strong>de</strong>cisão que este tome.72. Os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem também ter70. Os médicos legistas têm uma relação diferentepresente que a comunicação da ocorrência <strong>de</strong> abusoscom os indivíduos que examinam e sobre elesimpen<strong>de</strong> em geral a obrigação <strong>de</strong> relatar factual-às autorida<strong>de</strong>s sob cuja jurisdição se presumeque os factos tenham tido lugar po<strong>de</strong> implicar ris-mente as suas observações. Emtais situações, o paciente temmenos po<strong>de</strong>r e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>escolha e po<strong>de</strong> não estar emcondições <strong>de</strong> falar abertamentesobre o que aconteceu. Antes doinício <strong>de</strong> qualquer exame, osmédicos legistas <strong>de</strong>vem expli-


cos para o paciente ou para terceiros, incluindo opróprio <strong>de</strong>nunciante. Os médicos não <strong>de</strong>vem, <strong>de</strong>forma consciente, colocar os pacientes em risco <strong>de</strong>represálias. Não se <strong>de</strong>vendo abster <strong>de</strong> tomar medidas,<strong>de</strong>vem agir com discrição e consi<strong>de</strong>rar a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> comunicar o caso a uma autorida<strong>de</strong>fora da jurisdição imediata da estrutura directamenteem causa ou, se isto não comportar previsíveisriscos para o médico ou paciente, apresentaruma <strong>de</strong>núncia anónima. É evi<strong>de</strong>nte que, se optarpor esta última solução, o profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>veter em conta que será provavelmente sujeito apressões para que divulgue dados i<strong>de</strong>ntificáveisou que po<strong>de</strong>rá ver os seus ficheiros clínicosapreendidos. Embora não existam soluções fáceis,os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem orientar-se pelapremissa básica <strong>de</strong> evitar o dano, sobre quaisqueroutras consi<strong>de</strong>rações, <strong>de</strong>vendo procurar aconselhamento,sempre que possível, junto <strong>de</strong> organismosmédicos nacionais ou internacionais.Códigos éticos aplicáveis* 21


capítulo* 03Inquéritos legais sobre a práticada tortura73. O direito internacional impõe aos Estados aobrigação jurídica <strong>de</strong> investigar imediatamente e<strong>de</strong> forma imparcial todos os alegados casos <strong>de</strong> torturaque ocorram em territórios sob a sua jurisdição.Sempre que os elementos <strong>de</strong> prova ojustifiquem, o Estado em cujo território se encontrauma pessoa suspeita da prática da tortura ou<strong>de</strong> participação num acto <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong>verá extraditaro presumível autor para outro Estado comcompetência para julgar o caso ou submeter ocaso às suas próprias autorida<strong>de</strong>s competentespara exercício da acção penal em conformida<strong>de</strong> como direito criminal nacional ou local. Competência,imparcialida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pendência, prontidão e rigorsão os princípios fundamentais <strong>de</strong> qualquerinquérito eficaz sobre inci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> tortura. Esteselementos po<strong>de</strong>m adaptar-se a qualquer sistemajurídico e <strong>de</strong>verão orientar todas as investigaçõesrelativas a alegados casos <strong>de</strong> tortura.74. Caso os procedimentos <strong>de</strong> inquérito se revelemina<strong>de</strong>quados <strong>de</strong>vido a escassez <strong>de</strong> recursosou falta <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> técnica, possível falta <strong>de</strong>imparcialida<strong>de</strong>, indícios da existência <strong>de</strong> abusos sistemáticosou outros motivos relevantes, os Estados<strong>de</strong>verão garantir que as investigações sejam levadasa cabo por uma comissão <strong>de</strong> inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nteou mecanismo análogo. Os membros<strong>de</strong>sta comissão <strong>de</strong>verão ser seleccionados combase na sua reconhecida imparcialida<strong>de</strong>, competênciae in<strong>de</strong>pendência pessoal. Deverão, em particular,ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> quaisquer suspeitose das instituições ou agências a que estes pertençam.75. A secção A do presente capítulo <strong>de</strong>screve osobjectivos gerais <strong>de</strong> um inquérito <strong>de</strong> tortura.A secção B enuncia os princípios fundamentais<strong>de</strong> uma investigação e documentação eficazes datortura e outras penas ou tratamentos cruéis,<strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes. A secção C sugereprocedimentos para a realização dos inquéritossobre alegados casos <strong>de</strong> tortura, em primeiro lugarrelativamente à <strong>de</strong>terminação da autorida<strong>de</strong> responsávelpela condução do inquérito, <strong>de</strong>poisquanto à recolha <strong>de</strong> testemunhos orais da presumívelvítima e testemunhas, bem como à recolha<strong>de</strong> provas materiais. A secção D fornece directrizespara o estabelecimento <strong>de</strong> uma comissão <strong>de</strong>inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Estas directrizes foramformuladas com base na experiência <strong>de</strong> diversospaíses que proce<strong>de</strong>ram à criação <strong>de</strong> comissõesin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes para investigar alegadas violações<strong>de</strong> direitos humanos, nomeadamente execuçõesextrajudiciais, tortura e <strong>de</strong>saparecimentos forçados.a. Objectivos <strong>de</strong> um inquérito <strong>de</strong> tortura76. O objectivo geral <strong>de</strong> um inquérito consiste emapurar os factos relativos a alegados casos <strong>de</strong> tor-Inquéritos legais sobre a prática da tortura* 23


tura, a fim <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar os responsáveis pelosmesmos e facilitar a sua acusação no âmbito <strong>de</strong> umprocesso penal, ou para utilização no âmbito <strong>de</strong>outros processos <strong>de</strong>stinados a ressarcir as vítimas.As questões abordadas na presente secção po<strong>de</strong>mtambém ser pertinentes para outros tipos <strong>de</strong>inquéritos em matéria <strong>de</strong> tortura. Para atingir talobjectivo, as pessoas responsáveis pelo inquérito<strong>de</strong>verão, no mínimo, tentar obter o <strong>de</strong>poimento dapresumível vítima ou vítimas; recolher e conservaros elementos <strong>de</strong> prova, nomeadamente provasmédicas, relativos ao caso <strong>de</strong> tortura, a fim <strong>de</strong>informar qualquer eventual processo penal quevenha a ser instaurado contra os responsáveis;i<strong>de</strong>ntificar possíveis testemunhas e obter os seus<strong>de</strong>poimentos relativamente ao alegado caso <strong>de</strong> tortura;e <strong>de</strong>terminar como, quando e on<strong>de</strong> se produziramos alegados factos, bem como quais ascircunstâncias ou práticas que lhes possam terdado origem.b. Princípios sobre a Investigação eDocumentação Eficazes da Tortura e OutrasPenas ou Tratamentos Cruéis, Desumanosou Degradantes68 Em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias,a <strong>de</strong>ontologiaprofissional po<strong>de</strong>rá obrigara que a informação se mantenhaconfi<strong>de</strong>ncial, o que<strong>de</strong>ve ser respeitado.e estar obrigada a procurá-la 68 . As pessoas queconduzem a investigação <strong>de</strong>verão ter ao seu dispor77. Os princípios que a seguir se enunciam são todos os recursos financeiros e técnicos necessáriosobjecto <strong>de</strong> consenso entre os indivíduos e organizaçõescom experiência na investigação da tortura.A investigação e documentação eficazes da torturae outras penas ou tratamentos cruéis, <strong>de</strong>sumanosou <strong>de</strong>gradantes (<strong>de</strong> ora em diante <strong>de</strong>signados portortura ou outros maus tratos) têm, nomeadamente,os seguintes objectivos:a uma investigação eficaz. Deverão disportambém <strong>de</strong> competência para obrigar todos osfuncionários presumivelmente implicados na prática<strong>de</strong> tortura ou maus tratos a comparecer nosinterrogatórios. O mesmo se aplicará relativamentea quaisquer testemunhas. Para este fim, aautorida<strong>de</strong> responsável pelo inquérito <strong>de</strong>verá estarhabilitada a intimar as testemunhas, incluindoa) Esclarecimento dos factos, bem como o estabelecimentoquaisquer funcionários alegadamente envolvidos,e reconhecimento da responsabili-da<strong>de</strong> individual e estadual perante as vítimas esuas famílias;e a exigir a apresentação <strong>de</strong> provas. As alegadas vítimas<strong>de</strong> tortura ou maus tratos, testemunhas,investigadores e suas famílias <strong>de</strong>verão ser protegidosb) I<strong>de</strong>ntificação das medidas necessárias paracontra a violência, ameaças <strong>de</strong> violência ouevitar que os factos se repitam;qualquer outra forma <strong>de</strong> intimidação a que possamc) Facilitar o exercício da acção penal ou, sendo estar expostos em resultado do inquérito. Os suspeitoscaso disso, a aplicação <strong>de</strong> sanções disciplinares, contraas pessoas cuja responsabilida<strong>de</strong> se tenha apuradona sequência do inquérito, e <strong>de</strong>monstrar anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> plena reparação e ressarcimento porparte do Estado, incluindo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atribuiruma in<strong>de</strong>mnização justa e a<strong>de</strong>quada e <strong>de</strong> dis-<strong>de</strong> implicação em actos <strong>de</strong> tortura ou maustratos <strong>de</strong>verão ser afastados <strong>de</strong> qualquer posição <strong>de</strong>controlo ou comando, directo ou indirecto, sobreos queixosos, testemunhas ou suas famílias, bemcomo sobre as pessoas que realizam a investigação.ponibilizar os meios necessários ao tratamentomédico e à reabilitação.78. Os Estados <strong>de</strong>verão garantir que todas asqueixas e <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> tortura ou maus tratossejam pronta e eficazmente investigadas. Mesmona ausência <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>núncia expressa, <strong>de</strong>verá serinstaurado um inquérito caso existam outros indícios<strong>de</strong> que possam ter ocorrido actos <strong>de</strong> tortura oumaus tratos. Os investigadores, que <strong>de</strong>verão serin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos suspeitos e dos organismos aque estes pertencem, <strong>de</strong>vem ser competentes eimparciais. Deverão ter acesso a perícias efectuadaspor médicos ou outros peritos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,ou dispor da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar a realização<strong>de</strong> tais perícias. Os métodos utilizados para levara cabo o inquérito <strong>de</strong>verão respeitar as mais exigentesnormas profissionais, e os resultados obtidos<strong>de</strong>verão ser tornados públicos.79. A autorida<strong>de</strong> responsávelpelo inquérito <strong>de</strong>verá dispor <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res para obter toda a informaçãonecessária à investigação


80. As alegadas vítimas <strong>de</strong> tortura ou maus tratose seus representantes legais <strong>de</strong>verão ser informadosda realização <strong>de</strong> qualquer audiência e teracesso a ela, bem como a toda a informação relativaao inquérito, e dispor do direito <strong>de</strong> apresentaroutras provas.81. Nos casos em que os procedimentos<strong>de</strong> inquérito se69 Vi<strong>de</strong> nota 68.revelem ina<strong>de</strong>quados por falta <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> técnica,possível falta <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>, indícios daexistência <strong>de</strong> abusos sistemáticos ou outros motivosrelevantes, os Estados <strong>de</strong>verão garantir que asinvestigações sejam levadas a cabo por umacomissão <strong>de</strong> inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte ou mecanismoanálogo. Os membros <strong>de</strong>sta comissão<strong>de</strong>verão ser seleccionados com base na sua reconhecidaimparcialida<strong>de</strong>, competência e in<strong>de</strong>pendênciapessoal. Deverão, em particular, serin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> quaisquer suspeitos e das instituiçõesou agências a que estes pertençam. A comissão<strong>de</strong>verá ser dotada <strong>de</strong> competência para obtertoda a informação necessária e <strong>de</strong>verá conduzir oinquérito em conformida<strong>de</strong> com os Princípiossobre a Investigação e Documentação Eficazes daTortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,Desumanos ou Degradantes 69 . Num prazo razoável,<strong>de</strong>verá ser elaborado um relatório escrito do qualconste o âmbito do inquérito instaurado, os procedimentose métodos utilizados na apreciaçãodas provas, bem como as conclusões e recomendaçõeselaboradas com base nos factos apuradose no direito aplicável. Este relatório <strong>de</strong>verá ser tornadopúblico logo que se encontre concluído. O relatório<strong>de</strong>verá também <strong>de</strong>screver em <strong>de</strong>talhe osfactos específicos que se provou terem acontecidoe as provas com base nas quais foram apurados,bem como indicar os nomes das testemunhas queprestaram <strong>de</strong>clarações, à excepção daquelas cujai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não tenha sido divulgada para sua própriaprotecção. O Estado <strong>de</strong>verá dar resposta ao relatórionum prazo razoável e, se necessário, indicaras medidas a adoptar na sequência do mesmo.82. Os peritos médicos envolvidos na investigaçãoda tortura ou maus tratos <strong>de</strong>verão pautar asua conduta, em todos os momentos, <strong>de</strong> acordo comos princípios éticos mais rigorosos, <strong>de</strong>vendo, emparticular, obter o consentimento esclarecido da pessoaem causa antes da realização <strong>de</strong> qualquerexame. Os exames <strong>de</strong>vem ser efectuados em conformida<strong>de</strong>com as regras estabelecidas <strong>de</strong> práticamédica. Em particular, os exames <strong>de</strong>verão ser efectuadosem privado, sob o controlo do peritomédico e nunca na presença <strong>de</strong> agentes <strong>de</strong> segurançaou outros funcionários governamentais.O perito médico <strong>de</strong>verá elaborar imediatamenteum relatório escrito rigoroso. Este relatório <strong>de</strong>veráincluir, no mínimo, os seguintes elementos:a) As circunstâncias em que <strong>de</strong>corre o exame -- nome da pessoa examinada e nome e função <strong>de</strong>todos quantos estejam presentes no exame; horae data exactas do exame; localização, natureza emorada (incluindo, se necessário, a sala) da instituiçãoon<strong>de</strong> se realiza o exame (por exemplo, estabelecimentoprisional, clínica, casa particular);condições em que se encontra a pessoa nomomento do exame (por exemplo, natureza <strong>de</strong>quaisquer restrições que lhe tenham sido impostasaquando da chegada ao local do exame ou no<strong>de</strong>curso do mesmo, presença <strong>de</strong> forças <strong>de</strong> segurançadurante o exame, comportamento das pessoas queacompanham o <strong>de</strong>tido, ameaças proferidas contraa pessoa que efectua o exame) e quaisquer outrosfactores relevantes;b) Historial – registo <strong>de</strong>talhado dos factos relatadospela pessoa em causa no <strong>de</strong>curso do exame,incluindo os alegados métodos <strong>de</strong> tortura ou maustratos, momento em que se alega ter ocorrido a torturaou os maus tratos e todos os sintomas físicosou psicológicos que a pessoa afirme sofrer;c) Observações físicas e psicológicas – registo <strong>de</strong>todos os resultados obtidos na sequência doexame, a nível físico e psicológico, incluindo os testes<strong>de</strong> diagnóstico apropriados e, sempre que possível,fotografias a cores <strong>de</strong> todas as lesões;d) Parecer – interpretação quanto à relação provávelentre os resultados do exame físico e psicológicoe a eventual ocorrência <strong>de</strong> tortura ou maustratos. Deverá ser formulada uma recomendaçãoquanto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer tratamentomédico ou psicológico ou exame ulterior;e) Autoria – o relatório <strong>de</strong>verá i<strong>de</strong>ntificar claramenteas pessoas que proce<strong>de</strong>ram ao exame e<strong>de</strong>verá ser assinado.Inquéritos legais sobre a prática da tortura* 25


83. Este relatório <strong>de</strong>verá ser confi<strong>de</strong>ncial e comunicadoà pessoa examinada ou seu representantenomeado. A opinião da pessoa examinada ou seurepresentante quanto ao processo <strong>de</strong> exame <strong>de</strong>veráser recolhida e incluída no relatório. O relatórioescrito <strong>de</strong>verá também ser enviado, se for casodisso, à autorida<strong>de</strong> responsável pela investigaçãodos alegados actos <strong>de</strong> tortura ou maus tratos. Cabeao Estado assegurar que o relatório seja enviado emsegurança aos seus <strong>de</strong>stinatários. O relatório não<strong>de</strong>verá ser divulgado a nenhuma outra pessoa,salvo com o consentimento do interessado ouautorização do tribunal competente para or<strong>de</strong>nartal divulgação. Para mais <strong>de</strong>talhes quanto aos relatóriosescritos relativos a alegados casos <strong>de</strong> tortura,vi<strong>de</strong> o capítulo IV. Os capítulos V e VI <strong>de</strong>screvemem pormenor as avaliações físicas e psicológicas,respectivamente.c. Procedimentos a adoptar na investigaçãoda tortura1. DETERMINAÇÃO DO ORGANISMO RESPONSÁVELPELA REALIZAÇÃO DO INQUÉRITO84. Nos casos em que se suspeite da implicação<strong>de</strong> funcionários públicos na prática da tortura,nomeadamente por esta ter sido or<strong>de</strong>nada outolerada por ministros, adjuntos ministeriais,funcionários que actuam com o conhecimento dosministros, funcionários superiores dos <strong>de</strong>partamentosgovernamentais ou oficiais superioresdas forças armadas, po<strong>de</strong> não ser possível realizarum inquérito objectivo e imparcial a menosque seja estabelecida uma comissão <strong>de</strong> inquéritoespecial. Po<strong>de</strong> também ser necessária umacomissão <strong>de</strong>ste tipo caso existam dúvidas quantoà capacida<strong>de</strong> técnica ou imparcialida<strong>de</strong> dos investigadores.85. De entre os factores que po<strong>de</strong>m sugerir oenvolvimento do Estado em actos <strong>de</strong> tortura ou aexistência <strong>de</strong> circunstâncias especiais que justifiquema criação <strong>de</strong> um mecanismo ad hoc <strong>de</strong>inquérito imparcial, <strong>de</strong>stacam-se os seguintes:a) A vítima ter sido vista pela última vez ilesa esub custódia policial ou <strong>de</strong>tida à guarda da polícia;b) O modus operandi ser característico dosmétodos <strong>de</strong> tortura encorajados pelo Estado;c) Tentativas <strong>de</strong> obstrução ou atraso do inquéritopor parte <strong>de</strong> representantes do Estado ou pessoasassociadas com o Estado;d) O interesse público po<strong>de</strong>r ser prosseguido damelhor maneira através <strong>de</strong> um inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte;e) A investigação realizada pelos órgãos <strong>de</strong>inquérito habituais ser posta em causa <strong>de</strong>vido a falta<strong>de</strong> competência técnica, falta <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>ou outras razões, nomeadamente a importância docaso, a possível existência <strong>de</strong> um padrão <strong>de</strong> violaçõessistemáticas, queixas da pessoa ou qualqueroutro motivo pon<strong>de</strong>roso.86. O Estado <strong>de</strong>verá ter em conta diversas questõesao <strong>de</strong>cidir estabelecer uma comissão <strong>de</strong>inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Em primeiro lugar, aspessoas sujeitas a investigação <strong>de</strong>verão beneficiar,em todas as fases do processo <strong>de</strong> inquérito, das salvaguardasprocessuais mínimas garantidas pelodireito internacional. Em segundo lugar, os investigadores<strong>de</strong>verão contar com o apoio <strong>de</strong> pessoaltécnico e administrativo competente, e ter acessoa aconselhamento jurídico objectivo e imparcial <strong>de</strong>forma a garantir que os elementos <strong>de</strong> prova recolhidosno <strong>de</strong>correr do inquérito sejam admissíveisem processo penal. Em terceiro lugar, osinvestigadores <strong>de</strong>verão dispor <strong>de</strong> toda a panóplia<strong>de</strong> recursos e competências à disposição doEstado. Por último, os investigadores <strong>de</strong>verão tera possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer à ajuda <strong>de</strong> peritos internacionaisnas áreas do Direito e da medicina.2. RECOLHA DE DEPOIMENTOS DA ALEGADAVÍTIMA E OUTRAS TESTEMUNHAS87. Devido à natureza dos casos <strong>de</strong> tortura e dostraumas que os mesmos provocam e que incluemmuitas vezes um <strong>de</strong>vastador sentimento <strong>de</strong> impotência,é particularmente importante dar mostras<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> perante as alegadas vítimas eoutras testemunhas. O Estado <strong>de</strong>verá proteger asalegadas vítimas <strong>de</strong> tortura, testemunhas e suasfamílias, contra a violência, ameaças <strong>de</strong> violênciae qualquer outra forma <strong>de</strong> intimidação a que taispessoas se encontrem expostas em resultado do26*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


inquérito. Os investigadores <strong>de</strong>verão alertar as testemunhaspara as consequências do seu envolvimentono inquérito e informá-las <strong>de</strong> quaisquer<strong>de</strong>senvolvimentos subsequentes no caso que aspossam afectar.(a) Consentimento esclarecido e outrassalvaguardas da presumível vítima88. Des<strong>de</strong> o início, a alegada vítima <strong>de</strong>verá serinformada, sempre que possível, da natureza do procedimento,das razões pelas quais é solicitado o seu<strong>de</strong>poimento e da utilização que po<strong>de</strong>rá eventualmenteser dada às provas apresentadas. Os investigadores<strong>de</strong>verão explicar à pessoa quais oselementos do inquérito que serão tornados públicose quais permanecerão em sigilo. A vítima temo direito <strong>de</strong> se recusar a cooperar na totalida<strong>de</strong> ouem parte da investigação. Deverão ser feitos todosos esforços para ir ao encontro da sua disponibilida<strong>de</strong>e dos seus <strong>de</strong>sejos. A alegada vítima <strong>de</strong> tortura<strong>de</strong>verá ser regularmente informada acercados progressos da investigação, <strong>de</strong>vendo tambémser notificada das principais audiências que serealizem no âmbito do inquérito ou julgamento docaso. Os investigadores <strong>de</strong>verão informar a alegadavítima da <strong>de</strong>tenção do presumível autor docrime. Às alegadas vítimas <strong>de</strong>verão também serfornecidos os contactos <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> apoio e tratamentoque lhes possam ser úteis. Os investigadores<strong>de</strong>verão colaborar com as associações egrupos envolvidos na luta contra a tortura a nívelnacional e local, a fim <strong>de</strong> assegurar o intercâmbiorecíproco <strong>de</strong> informação e experiência neste domínio.(b) Selecção do investigador89. As autorida<strong>de</strong>s responsáveis pela condução doprocesso <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>verão <strong>de</strong>signar uma pessoacomo principal responsável pelo interrogatórioda presumível vítima. Embora esta últimapossa ter necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir o seu caso comprofissionais das áreas do Direito e da saú<strong>de</strong>, aequipa <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong>verá envidar todos osesforços para evitar que a pessoa se veja obrigadaa repetir <strong>de</strong>snecessariamente a sua história. Aoseleccionar um investigador como principal responsávelpelo interrogatório da alegada vítima <strong>de</strong>tortura, <strong>de</strong>ver-se-á prestar particular atenção àspreferências manifestadas por esta quanto a uminterlocutor do mesmo sexo, com as mesmas origensculturais ou com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicarna sua língua materna. O investigador em causa<strong>de</strong>verá ter formação ou experiência prévia nadocumentação da tortura e no trabalho com vítimas<strong>de</strong> traumas, nomeadamente <strong>de</strong> tortura. Casonão seja possível <strong>de</strong>signar um investigador comformação ou experiência nestas áreas, a pessoaescolhida <strong>de</strong>verá fazer tudo quanto esteja ao seualcance para se informar a respeito da tortura e respectivasconsequências físicas e mentais, antes <strong>de</strong>proce<strong>de</strong>r ao interrogatório da presumível vítima.Para isso, po<strong>de</strong>rá recorrer a inúmeras fontes,nomeadamente o presente manual, diversas obras<strong>de</strong> formação profissional, cursos <strong>de</strong> formação econferências profissionais. O investigador <strong>de</strong>verátambém ter acesso ao aconselhamento e à assistência<strong>de</strong> peritos internacionais, ao longo <strong>de</strong> todoo inquérito.(c)Contexto da investigação90. Os investigadores <strong>de</strong>verão analisar cuidadosamenteo contexto em que se <strong>de</strong>senvolve o seu trabalho,tomar as necessárias precauções e garantiro respeito das salvaguardas que se impõem. Aointerrogar pessoas que se encontram ainda <strong>de</strong>tidasou em situações análogas que as tornam vulneráveisa represálias, o investigador <strong>de</strong>verá ter o cuidado<strong>de</strong> não as colocar em perigo. Nos casos emque o simples facto <strong>de</strong> falar com o investigador sejasusceptível colocar alguém em risco, po<strong>de</strong>rá ser preferíveloptar por uma “entrevista <strong>de</strong> grupo” emvez <strong>de</strong> uma conversa individual. Sempre que aentrevista se realize em privado, o investigador<strong>de</strong>verá escolher um local on<strong>de</strong> a pessoa se sinta àvonta<strong>de</strong> para falar livremente.91. Os inquéritos po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>correr em contextospolíticos muito díspares, o que implica importantesdiferenças na forma como as investigações<strong>de</strong>vem ser conduzidas. As normas jurídicas queenquadram o processo <strong>de</strong> inquérito tambémvariam em função do contexto. Por exemplo, umainvestigação que culmine no julgamento do alegadoInquéritos legais sobre a prática da tortura* 27


autor exige provas muito mais sólidas da práticada tortura do que um relatório <strong>de</strong>stinado a fundamentarum pedido <strong>de</strong> asilo político num país terceiro.As directrizes que a seguir se enunciam<strong>de</strong>verão ser adaptadas pelo investigador em funçãoda situação concreta e dos objectivos do inquérito.Eis alguns exemplos <strong>de</strong> contextos em que a vítimase po<strong>de</strong> encontrar e que são susceptíveis <strong>de</strong> influirno processo <strong>de</strong> investigação:(i) Sob prisão ou <strong>de</strong>tenção no seu próprio país;(ii) Sob prisão ou <strong>de</strong>tenção num outro país;(iii) Em liberda<strong>de</strong> no seu próprio país mas numambiente opressivo e hostil;(iv) Em liberda<strong>de</strong> no seu próprio país num clima<strong>de</strong> paz e segurança;(v) Num país estrangeiro, amigável ou hostil;(vi) Num campo <strong>de</strong> refugiados;(vii) Num tribunal <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> guerra ou comissão<strong>de</strong> apuramento dos factos.92. O contexto político po<strong>de</strong>rá ser hostil à vítimae ao investigador, por exemplo, caso as pessoassejam entrevistadas enquanto se encontram presaspor or<strong>de</strong>m do seu próprio governo ou <strong>de</strong>tidasnum país estrangeiro a fim <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>portadas.Nos países em que os requerentes <strong>de</strong> asilo sãoexaminados para <strong>de</strong>tectar indícios <strong>de</strong> tortura, arelutância em reconhecer a verda<strong>de</strong> das alegações<strong>de</strong> maus tratos e tortura po<strong>de</strong> ter motivações políticas.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agravar a situação do<strong>de</strong>tido é muito real e <strong>de</strong>verá ser tida em conta emtodas as avaliações efectuadas. Mesmo que as alegadasvítimas não se encontrem em situação <strong>de</strong>perigo iminente, os investigadores <strong>de</strong>verão usar <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> cuidado no seu contacto com elas. A línguautilizada pelo investigador e a sua atitu<strong>de</strong> condicionarãoem larga medida a capacida<strong>de</strong> e a vonta<strong>de</strong>da vítima em <strong>de</strong>por. O local escolhido para a entrevista<strong>de</strong>verá ser tão seguro e confortável quanto possível,com acesso a instalações sanitárias, <strong>de</strong>vendotambém ser provi<strong>de</strong>nciadas algumas bebidasrefrescantes. Deverá disponibilizar-se tempo suficientepara a recolha do <strong>de</strong>poimento da presumívelvítima <strong>de</strong> tortura. Os investigadores não <strong>de</strong>vemesperar obter a história completa logo na primeiraentrevista. As perguntas sobre questões do foroíntimo serão traumatizantes para a pessoa.O investigador <strong>de</strong>verá <strong>de</strong>monstrar sensibilida<strong>de</strong>no tom, formulação e sequência das perguntas,dado o efeito traumático que a prestação <strong>de</strong> <strong>de</strong>poimentotem para a vítima <strong>de</strong> tortura. A pessoa<strong>de</strong>verá ser informada do seu direito <strong>de</strong> interrompero interrogatório em qualquer momento, parafazer uma pausa se assim o <strong>de</strong>sejar, ou <strong>de</strong> recusarrespon<strong>de</strong>r a qualquer questão.93. Serviços <strong>de</strong> assistência psicológica ou aconselhamentocom experiência no trabalho com vítimas<strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>verão, se possível, ser postos àdisposição <strong>de</strong>stas pessoas, bem como das testemunhasno processo e dos membros da equipa <strong>de</strong>investigação. O repetido relato dos factos po<strong>de</strong>ráfazer a pessoa reviver a experiência <strong>de</strong> tortura oudar origem a outros sintomas pós-traumáticos (vi<strong>de</strong>capítulo IV, secção H). Escutar os pormenores do caso<strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong> provocar nos investigadores sintomas<strong>de</strong> trauma secundário, <strong>de</strong>vendo estas pessoasser encorajadas a discutir as suas reacções entre si,<strong>de</strong>ntro do respeito das normas <strong>de</strong> sigilo profissional.Sempre que possível, estas discussões <strong>de</strong>vemser feitas com a ajuda <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>rador experiente.Há que ter consciência <strong>de</strong> dois perigos muito concretos:em primeiro lugar, existe o risco <strong>de</strong> que oentrevistador se i<strong>de</strong>ntifique com a presumívelvítima e perca a objectivida<strong>de</strong> na análise do caso; emsegundo lugar, o entrevistador po<strong>de</strong> habituar-se <strong>de</strong>tal forma a ouvir relatos <strong>de</strong> tortura que acabe pormenosprezar a experiência da vítima.(d) Segurança das testemunhas94. O Estado é responsável pela protecção <strong>de</strong>todas as presumíveis vítimas, testemunhas e suasfamílias contra a violência, ameaças <strong>de</strong> violênciae qualquer outra forma <strong>de</strong> intimidação a que essaspessoas possam ser expostas em resultado doinquérito. Os suspeitos <strong>de</strong> implicação em actos<strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>verão ser afastados <strong>de</strong> qualquer posição<strong>de</strong> controlo ou comando, directo ou indirecto,sobre os queixosos, testemunhas e suas famílias,bem como sobre as pessoas que realizam a investigação.Os investigadores <strong>de</strong>verão ter permanentementeem conta as possíveis consequências doinquérito sobre as presumíveis vítimas <strong>de</strong> torturae <strong>de</strong>mais testemunhas.28*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


95. Um dos métodos que se po<strong>de</strong>m utilizar paragarantir alguma segurança às pessoas entrevistadas,incluindo pessoas <strong>de</strong>tidas em países em situação<strong>de</strong> conflito, consiste em registar <strong>de</strong> formasegura as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s das pessoas contactadas, <strong>de</strong>forma a que os investigadores se possam certificarda respectiva segurança em ulteriores visitas. Osinvestigadores <strong>de</strong>vem ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falarcom qualquer pessoa, livremente e em privado, e<strong>de</strong>vem po<strong>de</strong>r voltar a visitar as mesmas pessoas (daía necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registar as respectivas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s)sempre que necessário. Nem todos os Estadosaceitam estas condições e os investigadorespo<strong>de</strong>m encontrar dificulda<strong>de</strong>s para fazer valerestas garantias. Caso pareça provável que a prestação<strong>de</strong> <strong>de</strong>poimento coloque em perigo as testemunhas,o investigador <strong>de</strong>verá tentar obter meios<strong>de</strong> prova alternativos.96. Os reclusos estão potencialmente expostos amaiores perigos do que as pessoas em liberda<strong>de</strong>e a sua reacção po<strong>de</strong> variar segundo as circunstâncias.Nalguns casos, os reclusos po<strong>de</strong>m colocar--se em perigo inadvertidamente, ao falar comexcessiva veemência, pensando que estão protegidospela mera presença <strong>de</strong> um investigador “externo”,o que po<strong>de</strong> não ser o caso. Noutras situações, osinvestigadores po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>parar-se com um “muro<strong>de</strong> silêncio”, uma vez que o recluso está <strong>de</strong>masiadoassustado para confiar em qualquer pessoa,mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhe terem sido dadas garantias<strong>de</strong> confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong>. Neste último caso, po<strong>de</strong> serpreciso começar com “entrevistas <strong>de</strong> grupo”, paraexplicar claramente o âmbito e objectivos da investigação,oferecendo <strong>de</strong>pois a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaconversa em privado com as pessoas que <strong>de</strong>sejemfalar. Se o medo <strong>de</strong> represálias, justificado ou não,for <strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> ser necessário entrevistartodos os reclusos <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado estabelecimento,para não chamar a atenção paranenhum <strong>de</strong>les em particular. Sempre que o inquéritoconduzir à instauração <strong>de</strong> processo criminalou outra forma <strong>de</strong> divulgação pública dos factos,o investigador <strong>de</strong>verá recomendar medidas paragarantir a segurança da presumível vítima, porexemplo suprimindo o seu nome e outros elementos<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação pessoal dos registos públicose dando à pessoa a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>poratravés <strong>de</strong> dispositivos <strong>de</strong> distorção da imagem ouda voz ou em circuito fechado <strong>de</strong> televisão. Estasmedidas <strong>de</strong>verão ser compatíveis com os direitosdo arguido.(e)Utilização <strong>de</strong> intérpretes97. Trabalhar com intérpretes no âmbito <strong>de</strong> processos<strong>de</strong> investigação da tortura não é fácil,mesmo tratando-se <strong>de</strong> profissionais. Nem sempreé possível dispor <strong>de</strong> intérpretes para todas as diferenteslínguas e dialectos, po<strong>de</strong>ndo por vezes sernecessário recorrer à interpretação <strong>de</strong> pessoas damesma família ou grupo cultural da pessoa emcausa. Esta não é a melhor solução, uma vez quea pessoa po<strong>de</strong> não se sentir à-vonta<strong>de</strong> para falaracerca da sua experiência <strong>de</strong> tortura através <strong>de</strong>alguém que conheça. O melhor seria que o intérpretepertencesse sempre à equipa <strong>de</strong> investigaçãoe estivesse familiarizado com as questõesrelativas à tortura (vi<strong>de</strong> capítulos IV, secção I, e VI,secção C.2).(f ) Informação a obter da presumível vítima98. O investigador <strong>de</strong>verá tentar obter, através do<strong>de</strong>poimento da presumível vítima, o máximo <strong>de</strong> elementospossível quanto aos aspectos que a seguirse indicam (vi<strong>de</strong> capítulo IV, secção E):i) Circunstâncias conducentes à tortura,nomeadamente a captura ou o rapto e a <strong>de</strong>tenção;ii) Data e hora aproximada da ocorrência dosactos <strong>de</strong> tortura, incluindo o mais recente. Po<strong>de</strong> nãoser fácil estabelecer com precisão estes elementos,uma vez que a tortura po<strong>de</strong> ter sido perpetrada emdiversos locais e por diferentes pessoas (ou grupos<strong>de</strong> pessoas). Por vezes será necessário recolher<strong>de</strong>poimentos separados sobre cada um dos locais.É natural que as sequências cronológicas sejampouco exactas e por vezes mesmo confusas: sob tortura,dificilmente se conserva a noção do tempo.A recolha <strong>de</strong> <strong>de</strong>poimentos separados relativamentea cada um dos locais po<strong>de</strong> ajudar a obter umaimagem global da situação. Muitas vezes, ossobreviventes <strong>de</strong> tortura não sabem para on<strong>de</strong>foram levados, pois estavam <strong>de</strong> olhos vendadosou semi-inconscientes. Reunindo <strong>de</strong>poimentosInquéritos legais sobre a prática da tortura* 29


convergentes, po<strong>de</strong>r-se-á facilitar a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>locais concretos, métodos <strong>de</strong> tortura ou mesmo dosseus autores;iii) Descrição pormenorizada dos intervenientesna captura, <strong>de</strong>tenção e actos <strong>de</strong> tortura, incluindoo facto <strong>de</strong> serem ou não conhecidos da vítimaantes da ocorrência dos factos, vestuário que usavam,cicatrizes, marcas <strong>de</strong> nascença, tatuagens,altura, peso (po<strong>de</strong> ser mais fácil à pessoa <strong>de</strong>screvero autor do acto por comparação com seu própriotamanho), algo <strong>de</strong> insólito na anatomia dosautores do crime, língua falada e pronúncia, bemcomo quaisquer sinais <strong>de</strong> estarem sob a influência<strong>de</strong> álcool ou drogas;iv) Conteúdo <strong>de</strong> quaisquer conversas mantidascom a pessoa, o que lhe foi dito ou perguntado. Estainformação po<strong>de</strong> conter indícios relevantes para ai<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção secretos ou nãoreconhecidos;v) Descrição da rotina habitual no local <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção e características dos maus tratos infligidos;vi) Descrição dos actos <strong>de</strong> tortura, incluindo osmétodos utilizados. Compreensivelmente, muitasvezes é difícil à vítima falar sobre isto e os investigadoresnão <strong>de</strong>vem esperar obter a história completanuma só entrevista. É importante recolherinformação precisa, mas quaisquer questões relativasa humilhações ou sevícias íntimas serão traumáticas,muitas vezes extremamente traumáticas;vii) Qualquer agressão sexual que a vítima tenhasofrido. A maior parte das pessoas enten<strong>de</strong> poragressão sexual a violação ou sodomia. Os investigadores<strong>de</strong>verão ter consciência <strong>de</strong> que muitasvezes a vítima não consi<strong>de</strong>ra agressão sexual osinsultos verbais, o <strong>de</strong>snudar do corpo, os toques íntimos,os actos obscenos ou humilhantes e porvezes mesmo os choques eléctricos nos órgãosgenitais. Todos estes actos violam a intimida<strong>de</strong> dapessoa e <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados agressõessexuais. É muito frequente que as vítimas <strong>de</strong>abuso sexual nada digam ou neguem mesmoterem sido submetidas a tal tipo <strong>de</strong> agressão. Muitasvezes, apenas começam a revelar a histórianuma segunda ou terceira visita, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> teremestabelecido alguma empatia com o entrevistadore <strong>de</strong> este se ter revelado sensível à cultura ou personalida<strong>de</strong>da vítima;viii) Lesões físicas provocadas pela tortura;ix) Descrição <strong>de</strong> quaisquer armas ou outrosobjectos materiais utilizados;x) A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quaisquer testemunhas dosfactos relativos à tortura. O investigador <strong>de</strong>verátomar precauções para proteger a segurança dastestemunhas, eventualmente anotando as suasi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s em código ou mantendo os seusnomes separados dos registos substantivos daentrevista.(g) Depoimento da presumível vítima99. O investigador <strong>de</strong>verá proce<strong>de</strong>r à gravação do<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong>talhado da vítima e transcrevê-loem seguida. Esse <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong>ver-se-á basearem respostas a perguntas não ten<strong>de</strong>nciosas. Por perguntasnão ten<strong>de</strong>nciosas enten<strong>de</strong>m-se questõesisentas <strong>de</strong> suposições ou conclusões e que permitamà pessoa oferecer o testemunho maiscompleto e objectivo possível. Por exemplo,<strong>de</strong>ver-se-á perguntar “O que lhe aconteceu equando?” e não “Foi torturado na prisão?”. Estaúltima pergunta parte do princípio <strong>de</strong> que a pessoafoi sujeita a tortura e limita o local dos factosa uma prisão. Evite formular perguntas <strong>de</strong>resposta múltipla, uma vez que po<strong>de</strong>m obrigaro indivíduo a dar respostas pouco precisas casoo que lhe tenha acontecido não correspondaexactamente a nenhuma das opções. Permitaque a pessoa lhe conte a sua própria história, masauxilie-a, colocando questões que aju<strong>de</strong>m a tornaro relato mais preciso. A pessoa <strong>de</strong>verá serencorajada a usar todos os sentidos para <strong>de</strong>screvero que lhe aconteceu. Pergunte-lhe o queviu, cheirou, ouviu e sentiu. Isto é importante,por exemplo, caso a pessoa tenha estado <strong>de</strong>olhos vendados ou a agressão tenha tido lugar noescuro.(h) Depoimento do presumível autor do acto<strong>de</strong> tortura100. Os investigadores <strong>de</strong>verão interrogar os alegadosautores da tortura, sempre que possível. Éimportante que lhes sejam garantidas todas as salvaguardasjurídicas consagradas no direito internoe internacional.30*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


3. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVASMATERIAIS101. O investigador <strong>de</strong>verá recolher tantos elementos<strong>de</strong> prova material quantos possível paradocumentar um caso ou padrão sistemático <strong>de</strong>tortura. Um dos aspectos mais importantes <strong>de</strong>uma investigação rigorosa e imparcial é a recolhae análise <strong>de</strong> provas materiais. Os investigadores<strong>de</strong>verão documentar todas as diligências efectuadasna recolha e preservação das provas materiaisa fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem utilizar as mesmas em processosjudiciais subsequentes, nomeadamente <strong>de</strong>índole penal. A maior parte dos casos <strong>de</strong> torturaocorre em locais on<strong>de</strong> as pessoas se encontramsujeitas a qualquer forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. É muitasvezes difícil, senão impossível, ter inicialmenteacesso irrestrito a esses locais e aí proce<strong>de</strong>r à recolha<strong>de</strong> provas. Os investigadores <strong>de</strong>verão ser autorizadospelo Estado a ter livre acesso a quaisquerlocais ou instalações e a observar o local on<strong>de</strong> sesuspeita que a tortura tenha acontecido. Todas aspessoas e autorida<strong>de</strong>s com competência parainvestigar o caso <strong>de</strong>verão coor<strong>de</strong>nar os seus esforçospara realizar uma inspecção cuidadosa do alegadolocal <strong>de</strong> tortura. Os investigadores <strong>de</strong>verão terlivre acesso a todos os presumíveis cenários <strong>de</strong>tortura. Nomeadamente, <strong>de</strong>ver-lhes-á ser garantidoo acesso a todas as áreas abertas ou fechadas,por exemplo edifícios, veículos, gabinetes, celas <strong>de</strong>prisão ou outras instalações on<strong>de</strong> se suspeita quea tortura tenha tido lugar.102. Qualquer área ou edifício sob investigação<strong>de</strong>verá ser encerrado a fim <strong>de</strong> evitar a <strong>de</strong>struiçãoou o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> quaisquer provas materiais.Apenas os investigadores e seus auxiliares<strong>de</strong>verão ter acesso às áreas <strong>de</strong>signadas como locaissob investigação, que <strong>de</strong>verão ser cuidadosamenteexaminadas a fim <strong>de</strong> recolher todas as provasmateriais existentes. Todos os elementos <strong>de</strong> prova<strong>de</strong>verão ser <strong>de</strong>vidamente recolhidos, manuseados,embalados, etiquetados e armazenados em localseguro para evitar qualquer eventual contaminação,alteração ou extravio. Deverão também sercolhidas, etiquetadas e <strong>de</strong>vidamente acondicionadasquaisquer amostras <strong>de</strong> fluidos corporais (porexemplo, sangue ou sémen), cabelos, fibras e fiosque sejam encontrados, caso a alegada situação<strong>de</strong> tortura seja suficientemente recente para quetais elementos <strong>de</strong> prova possam ser relevantes.Quaisquer dispositivos que possam ter sido utilizadospara infligir a tortura, quer especificamenteconcebidos para esse fim quer usados circunstancialmente,<strong>de</strong>verão também ser recolhidos epreservados. Dever-se-ão ainda recolher e preservarquaisquer impressões digitais encontradas nolocal, caso o alegado acto <strong>de</strong> tortura seja suficientementerecente para que as mesmas possam serrelevantes. Deverá ser elaborada uma planta àescala das instalações ou locais on<strong>de</strong> se supõe queos actos <strong>de</strong> tortura tenham ocorrido, na qual<strong>de</strong>vem ser assinalados todos os <strong>de</strong>talhes pertinentes,tais como a localização <strong>de</strong> cada um dosandares do edifício, salas, entradas, janelas, mobíliae terreno circundante. Dever-se-ão tirar fotografiasa cores <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>stes elementos.Deverá ser registada a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as pessoaspresentes no alegado cenário <strong>de</strong> tortura,incluindo os seus nomes completos, moradas,números <strong>de</strong> telefone e outros contactos. Se possívele <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que os factos alegados sejam suficientementerecentes para o justificar, as roupasusadas pela presumível vítima aquando do acto <strong>de</strong>tortura <strong>de</strong>verão ser inventariadas e testadas emlaboratório, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar eventuais vestígios<strong>de</strong> fluidos corporais e outras provas materiais.Dever-se-ão interrogar todas as pessoas presentesnas instalações ou áreas sob investigação, a fim <strong>de</strong><strong>de</strong>terminar se presenciaram ou não os alegadosactos <strong>de</strong> tortura. Quaisquer papéis, registos oudocumentos relevantes <strong>de</strong>verão ser guardadospara utilização como prova e sujeição a análisegrafológica.4. PROVAS MÉDICAS103. O investigador <strong>de</strong>verá provi<strong>de</strong>nciar para quea alegada vítima seja sujeita a exame médico. É <strong>de</strong>particular importância que este exame se realizeatempadamente. O exame médico <strong>de</strong>verá ter semprelugar, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do lapso <strong>de</strong> tempo<strong>de</strong>corrido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o acto <strong>de</strong> tortura mas, se este tiversupostamente ocorrido nas seis semanas anteriores,<strong>de</strong>ver-se-á proce<strong>de</strong>r ao exame com a máximaurgência a fim <strong>de</strong> evitar o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>Inquéritos legais sobre a prática da tortura* 31


eventuais sinais agudos. Este exame <strong>de</strong>verá incluiruma avaliação das eventuais necessida<strong>de</strong>s davítima em matéria <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong> quaisquerferimentos ou doenças, apoio psicológico, aconselhamentoe seguimento (vi<strong>de</strong> capítulo V parauma <strong>de</strong>scrição do exame físico e avaliação médico--legal). A avaliação e exame psicológico da vítimaé indispensável e po<strong>de</strong> ter lugar em simultâneo como exame físico ou, caso não existam sinais físicos,em separado (vi<strong>de</strong> capítulo VI para uma <strong>de</strong>scriçãoda avaliação psicológica).104. Para estabelecer a existência <strong>de</strong> provas físicase psicológicas da prática da tortura, é necessáriocolocar seis importantes questões:a) Os dados apurados na observação física epsicológica corroboram a alegação <strong>de</strong> tortura?b) Que condições físicas contribuem para oquadro clínico?c) As reacções observadas em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> exame psicológicosão normais ou típicas <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> tensãoextrema no contexto cultural ou social dapessoa?d) Dado que os distúrbios psicológicos associadosa situações traumáticas evoluem com o passardo tempo, qual seria a cronologia dos factosrelativos à tortura? Em que ponto do processo <strong>de</strong>recuperação se encontra o indivíduo?e) Que outros factores <strong>de</strong> tensão afectam a pessoa(por exemplo, processo penal em curso, migraçãoforçada, exílio, perda da família e do estatutosocial, etc.)? Que impacto têm estas questõessobre a vítima?f) O quadro clínico sugere uma falsa alegação<strong>de</strong> tortura?5. FOTOGRAFIAS105. Deverão ser tiradas fotografias a cores daslesões apresentadas pela pessoa que alega ter sidotorturada, das instalações on<strong>de</strong> a tortura tenhasupostamente ocorrido (interior e exterior) e <strong>de</strong>quaisquer outras provas materiais aí encontradas.É essencial incluir na fotografia uma fita métricaou qualquer outro dispositivo que indique a escalada imagem. As fotografias <strong>de</strong>vem ser tiradas logoque possível, mesmo utilizando uma máquinafotográfica rudimentar, uma vez que alguns indíciosfísicos se <strong>de</strong>svanecem rapidamente ou po<strong>de</strong>mser corrompidos. Deve ter-se em conta que as fotografias<strong>de</strong> revelação instantânea têm tendência aper<strong>de</strong>r qualida<strong>de</strong> com o passar do tempo. São preferíveisfotografias <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> mais profissional,as quais <strong>de</strong>vem ser tiradas logo que sedisponha do necessário equipamento. Se possível,<strong>de</strong>ve utilizar-se uma máquina <strong>de</strong> 35 mm comdispositivo <strong>de</strong> datação automático. Dever-se-áregistar pormenorizadamente toda a sequência <strong>de</strong>pessoas e entida<strong>de</strong>s com acesso aos rolos, negativose impressões fotográficas.d. Comissões <strong>de</strong> inquérito1. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DO INQUÉRITO106. Qualquer Estado ou organização que estabeleçauma comissão <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>verá <strong>de</strong>terminaro âmbito do inquérito a realizar através da<strong>de</strong>finição precisa do mandato atribuído à comissão.A <strong>de</strong>finição do mandato da comissão po<strong>de</strong> contribuirem muito para o êxito dos trabalhos <strong>de</strong>sta, umavez que confere legitimida<strong>de</strong> ao processo, facilitao consenso entre os membros da comissão quantoao âmbito do inquérito e permite a avaliação do respectivorelatório final. Na <strong>de</strong>finição do mandato dacomissão <strong>de</strong> inquérito, <strong>de</strong>verão ser tidas em contaas seguintes recomendações:a) O mandato <strong>de</strong>verá ser formulado em termosneutros, que não sugiram antecipadamente qualquerresultado. Esta exigência <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong>implica que o mandato não exclua a competênciada comissão para investigar em áreas susceptíveis<strong>de</strong> revelar a responsabilida<strong>de</strong> do Estado pelos actos<strong>de</strong> tortura;b) Deverá indicar com precisão que questões efactos <strong>de</strong>verão ser investigados e abordados norelatório final da comissão;c) Deverá permitir alguma flexibilida<strong>de</strong> noâmbito do inquérito a fim <strong>de</strong> que a comissão possainvestigar os factos com rigor, sem que o seu trabalhoseja entravado por um mandato excessivamenterestritivo ou <strong>de</strong>masiado vago. Estaflexibilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> conseguir-se, por exemplo,mediante a inclusão <strong>de</strong> uma cláusula que permita32*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


à comissão alterar o seu próprio mandato conformenecessário. É, contudo, importante que acomissão mantenha o público informado a respeito<strong>de</strong> quaisquer alterações introduzidas no seumandato.2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO107. Os Princípios sobre a Investigação e DocumentaçãoEficazes da Tortura e Outras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanos ou Degradantesenunciam, em linhas gerais, as competências que<strong>de</strong>vem ser atribuídas às comissões <strong>de</strong> inquérito.Concretamente, estas necessitam <strong>de</strong> dispor <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong> para:a) Obter toda a informação necessária à investigação,incluindo autorida<strong>de</strong> para obter o <strong>de</strong>poimento<strong>de</strong> testemunhas sob cominação legal,or<strong>de</strong>nar a produção <strong>de</strong> prova documental,incluindo dossiers oficiais e registos médicos, e protegertestemunhas, familiares das vítimas e outrasfontes <strong>de</strong> informação;b) Tornar públicas as suas conclusões;c) Realizar todas as visitas necessárias à investigação,incluindo aos locais on<strong>de</strong> se suspeita quea tortura tenha ocorrido;d) Recolher provas apresentadas por testemunhasou organizações que se encontrem fora dopaís.3. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROSDA COMISSÃO108. Os membros da comissão <strong>de</strong>verão ser seleccionadosem função da sua reconhecida imparcialida<strong>de</strong>,competência e in<strong>de</strong>pendência pessoal.Estes critérios <strong>de</strong>finem-se da seguinte forma:a) Imparcialida<strong>de</strong> – os membros da comissãonão <strong>de</strong>vem ter relações próximas com qualquerindivíduo, entida<strong>de</strong> pública, partido político ououtra organização potencialmente implicados naprática da tortura. Não <strong>de</strong>verão também ser <strong>de</strong>masiadopróximos <strong>de</strong> qualquer organização ou grupo<strong>de</strong> que a vítima seja membro, uma vez que istopo<strong>de</strong>rá pôr em causa a credibilida<strong>de</strong> da comissão.Tal não <strong>de</strong>verá, contudo, servir <strong>de</strong> pretexto paraexcluir liminarmente da composição da comissão,por exemplo, membros <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s organizações aque a vítima também pertença ou pessoas associadasa organizações que se <strong>de</strong>dicam ao tratamentoe reabilitação das vítimas <strong>de</strong> tortura;b) Competência – os membros da comissão<strong>de</strong>verão ser capazes <strong>de</strong> avaliar e pon<strong>de</strong>rar os elementos<strong>de</strong> prova e <strong>de</strong> formular juízos fundamentadosa respeito dos mesmos. Se possível, ascomissões <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>verão incluir na suacomposição pessoas com conhecimentos especializadosnos domínios do Direito, medicina e outrasáreas relevantes;c) In<strong>de</strong>pendência – os membros da comissão<strong>de</strong>verão ser reconhecidos no seio da comunida<strong>de</strong>a que pertençam como pessoas honestas e justas.109. A objectivida<strong>de</strong> da investigação e as conclusõesda comissão <strong>de</strong> inquérito po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r,entre outros aspectos, do número <strong>de</strong> membrosque compõem esta última. De forma geral, é preferívelque a comissão seja composta por três oumais membros e não por apenas um ou dois. Porprincípio, um inquérito relativo a um caso <strong>de</strong> torturanão <strong>de</strong>verá ser realizado por um único investigadorisolado, que não estará geralmente emcondições <strong>de</strong> investigar o caso em profundida<strong>de</strong>.Para além disso, ser-lhe-á difícil tomar <strong>de</strong>cisões controversase importantes sem qualquer tipo <strong>de</strong><strong>de</strong>bate e estará particularmente vulnerável a pressõesexteriores, nomeadamente do Estado.4. PESSOAL DA COMISSÃO110. As comissões <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>verão po<strong>de</strong>rcontar com serviços <strong>de</strong> aconselhamento imparciaise especializados. Caso a investigação incidasobre factos que impliquem a responsabilização doEstado, po<strong>de</strong>rá ser aconselhável fazer apelo aassessores in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da estrutura do Ministérioda Justiça. O principal responsável pela assessoriada comissão <strong>de</strong>verá estar à margem <strong>de</strong>qualquer influência política, por ter vínculo sólidoà função pública ou ser um jurista totalmentein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. A investigação requer muitas vezesa assessoria <strong>de</strong> peritos especializados. A comissão<strong>de</strong>verá ter acesso aos serviços <strong>de</strong> peritos em áreascomo a patologia, medicina legal, psiquiatria, psi-Inquéritos legais sobre a prática da tortura* 33


cologia, ginecologia e pediatria. Para que o inquéritoseja verda<strong>de</strong>iramente imparcial e rigoroso,será necessário, na maioria dos casos, que os investigadoresda comissão sigam pistas e busquem elementos<strong>de</strong> prova pelos seus próprios meios. Acredibilida<strong>de</strong> do inquérito <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> em gran<strong>de</strong>medida do facto <strong>de</strong> a comissão se po<strong>de</strong>r basear notrabalho dos seus próprios investigadores.5. PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS111. O Estado <strong>de</strong>verá proteger todos os queixosos,testemunhas, membros da equipa <strong>de</strong> investigaçãoe suas famílias contra a violência, ameaças <strong>de</strong>violência ou qualquer outra forma <strong>de</strong> intimidação(vi<strong>de</strong> secção C.2 d), supra). Se a comissão concluirque existem riscos razoáveis <strong>de</strong> perseguição, assédioou agressão a qualquer testemunha actual oupotencial, po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar necessário ouvir amesma à porta fechada, manter em sigilo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>da testemunha ou informador, utilizar apenaselementos <strong>de</strong> prova que não permitam ai<strong>de</strong>ntificação da pessoa ou tomar outras medidasa<strong>de</strong>quadas.6. PROCEDIMENTO112. Decorre dos princípios gerais <strong>de</strong> processopenal que as audiências sejam públicas, a menosque se torne necessário realizá-las à porta fechadaa fim <strong>de</strong> proteger a segurança das testemunhas. Osprocedimentos realizados à porta fechada <strong>de</strong>verãoser gravados e selados, <strong>de</strong>vendo os respectivosregistos confi<strong>de</strong>nciais ser guardados em localconhecido. Ocasionalmente, po<strong>de</strong> ser necessáriogarantir sigilo absoluto para encorajar a prestação<strong>de</strong> <strong>de</strong>poimento, po<strong>de</strong>ndo a comissão <strong>de</strong>cidirouvir as testemunhas em privado, informalmenteou sem registo das <strong>de</strong>clarações.7. DIVULGAÇÃO DO INQUÉRITO113. Deverá ser dada ampla publicida<strong>de</strong> à criaçãoda comissão e ao objecto do inquérito. Das acções<strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong>verá constar um convite à apresentação<strong>de</strong> informações e <strong>de</strong>clarações escritasrelevantes à comissão, bem como instruções paraas pessoas que <strong>de</strong>sejem testemunhar. A divulgaçãopo<strong>de</strong>rá ser feita através <strong>de</strong> jornais, revistas, rádio,televisão, folhetos e cartazes.8. RECOLHA DE PROVAS114. As comissões <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>verão dispor <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong> para or<strong>de</strong>nar a prestação <strong>de</strong> <strong>de</strong>poimentose a apresentação <strong>de</strong> provas documentais,bem como para or<strong>de</strong>nar a prestação <strong>de</strong> <strong>de</strong>claraçõespor parte dos funcionários alegadamente implicadosna prática da tortura. Em termos práticos, estaautorida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-se-á manifestar através da competênciapara a imposição <strong>de</strong> multas ou outrassanções aos funcionários ou outras pessoas que serecusem a cooperar. A comissão <strong>de</strong> inquérito<strong>de</strong>verá começar por convidar as pessoas a prestar<strong>de</strong>clarações oralmente ou por escrito. Os <strong>de</strong>poimentosescritos po<strong>de</strong>m fornecer importantes elementos<strong>de</strong> prova caso as pessoas em questãotenham medo <strong>de</strong> testemunhar, não possam <strong>de</strong>slocar-seaté ao local on<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre a audição ouestejam indisponíveis por qualquer outro motivo.As comissões <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>vem consi<strong>de</strong>rar ahipótese <strong>de</strong> adoptar outro tipo <strong>de</strong> procedimentossusceptíveis <strong>de</strong> fornecer informações relevantes.9. DIREITOS DAS PARTES115. As alegadas vítimas <strong>de</strong> tortura e seus representanteslegais <strong>de</strong>verão ser informados da realização<strong>de</strong> qualquer audiência e ter acesso a ela,bem como a toda a informação relativa ao inquérito,e ter o direito <strong>de</strong> apresentar provas. Este reconhecimentoà vítima da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> parte noprocesso reflecte a especial importância atribuídaà protecção dos seus interesses na condução doinquérito. Contudo, todas as restantes partes interessadas<strong>de</strong>verão ter também a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>serem ouvidas. O organismo encarregado doinquérito <strong>de</strong>verá dispor <strong>de</strong> competência para obrigaras testemunhas e os funcionários suspeitos<strong>de</strong> participação nos actos <strong>de</strong> tortura a prestar<strong>de</strong>clarações, bem como para or<strong>de</strong>nar a apresentação<strong>de</strong> provas. Todos os <strong>de</strong>poentes <strong>de</strong>verão ter a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> obter patrocínio jurídico caso oinquérito seja susceptível <strong>de</strong> lesar os seus interesses,por exemplo, por po<strong>de</strong>r vir a fazê-los incorrerem responsabilida<strong>de</strong> penal ou civil. As pessoas não34*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


po<strong>de</strong>m ser obrigadas a testemunhar contra si próprias.A comissão <strong>de</strong>verá ter a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>interrogar eficazmente todos os <strong>de</strong>poentes. As partesno inquérito <strong>de</strong>verão estar autorizadas a submeterperguntas escritas à comissão.10. AVALIAÇÃO DAS PROVAS116. A comissão <strong>de</strong>verá apreciar todas as informaçõese elementos <strong>de</strong> prova recebidos a fim <strong>de</strong><strong>de</strong>terminar a sua fiabilida<strong>de</strong> e probida<strong>de</strong>. Na avaliaçãodos testemunhos orais, a comissão <strong>de</strong>verá terem conta a atitu<strong>de</strong> e credibilida<strong>de</strong> geral do<strong>de</strong>poente, <strong>de</strong>vendo ser sensível às questões sociais,culturais e <strong>de</strong> género que afectam o seu comportamento.Um elemento <strong>de</strong> prova corroborado pordiversas fontes terá um valor probatório mais elevadoe dará credibilida<strong>de</strong> a eventuais <strong>de</strong>poimentosindirectos. A comissão <strong>de</strong>verá avaliar cuidadosamentea fiabilida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>poimentos indirectosantes <strong>de</strong> os aceitar como prova. Dever-se-á tambémter cuidado com os testemunhos não sujeitos a contra-interrogatório.Muitas vezes, os <strong>de</strong>poimentosfeitos à porta fechada e preservados em registofechado, ou pura e simplesmente não registados, nãosão sujeitos a contra-interrogatório, po<strong>de</strong>ndo porisso ter um valor probatório mais reduzido.seja unânime nas suas conclusões, os membros emminoria <strong>de</strong>verão fazer constar a sua opinião divergente.O relatório da comissão <strong>de</strong> inquérito <strong>de</strong>veráconter, no mínimo, a seguinte informação:a) Âmbito do inquérito e mandato da comissão;b) Procedimentos e métodos utilizados na apreciaçãodas provas;c) Lista <strong>de</strong> todas as pessoas que prestaram<strong>de</strong>clarações, com indicação da respectiva ida<strong>de</strong> esexo, à excepção daquelas cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nãotenha sido divulgada por razões <strong>de</strong> segurança ouque tenham prestado <strong>de</strong>poimento à porta fechada,e elementos <strong>de</strong> prova recolhidos;d) Momento e lugar <strong>de</strong> cada sessão (estes elementospo<strong>de</strong> constar <strong>de</strong> anexo ao relatório);e) Contexto em que se <strong>de</strong>senrola o inquérito,nomeadamente condições sociais, políticas e económicasrelevantes;f) Factos concretos ocorridos e provas com basenas quais foram apurados;g) Legislação em que se baseia o trabalho dacomissão;h) Conclusões tiradas pela comissão com basenos factos apurados e no direito aplicável;i) Recomendações formuladas com base nasconclusões da comissão.11. RELATÓRIO DA COMISSÃO117. A comissão <strong>de</strong>verá produzir um relatóriopúblico num prazo razoável. Caso a comissão não118. O Estado <strong>de</strong>verá respon<strong>de</strong>r publicamente aorelatório da comissão e, se for caso disso, indicaras medidas que preten<strong>de</strong> tomar na sequência domesmo.Inquéritos legais sobre a prática da tortura* 35


capítulo* 04Consi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas119. Ao entrevistar uma pessoa que alega ter sidovítima <strong>de</strong> tortura, é necessário ter em consi<strong>de</strong>raçãouma série <strong>de</strong> questões e factores práticos. Estas consi<strong>de</strong>raçõessão válidas para todas as pessoas quecontactam com a vítima, sejam advogados, médicos,psicólogos, psiquiatras, <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> direitoshumanos ou quaisquer outros profissionais. A secçãoseguinte passa em revista este “terreno comum”e tenta situá-lo nos diversos contextos que po<strong>de</strong>mser encontrados no âmbito da investigação da torturae entrevista das presumíveis vítimas.a. Objectivos do inquérito, examese documentação120. O objectivo geral do inquérito consiste emapurar os factos relativos ao alegado inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>tortura (vi<strong>de</strong> capítulo III, secção D). Os examesmédicos po<strong>de</strong>m fornecer importantes elementos<strong>de</strong> prova utilizáveis no âmbito <strong>de</strong> processos legais,nomeadamente:a) I<strong>de</strong>ntificação dos responsáveis pelo acto <strong>de</strong> torturae sua apresentação à justiça;b) Fundamentação <strong>de</strong> pedidos <strong>de</strong> asilo político;c) Apuramento das condições sob as quais osfuncionários públicos possam ter obtido falsasconfissões;d) Averiguação <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> tortura regionais.Os exames médicos po<strong>de</strong>m também servir parai<strong>de</strong>ntificar as necessida<strong>de</strong>s terapêuticas dos sobreviventese documentar investigações em matéria<strong>de</strong> direitos humanos.121. O objectivo do <strong>de</strong>poimento escrito ou oral domédico consiste em proporcionar um parecerespecializado sobre até que ponto as conclusõesmédicas corroboram ou não as alegações <strong>de</strong> maustratos do paciente e transmitir eficazmente as conclusõese interpretações do perito médico ao po<strong>de</strong>rjudicial ou outras autorida<strong>de</strong>s competentes. Paraalém disso, o <strong>de</strong>poimento do médico serve muitasvezes para informar as autorida<strong>de</strong>s judiciais,outros funcionários públicos e as comunida<strong>de</strong>slocal e internacional a respeito das sequelas físicase psicológicas da tortura. O médico que proce<strong>de</strong> aoexame <strong>de</strong>verá estar apto a fazer o seguinte:a) Avaliar eventuais lesões e outros sintomas <strong>de</strong>maus tratos, mesmo na ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>núnciasconcretas apresentadas por particulares ou pelasautorida<strong>de</strong>s policiais ou judiciais;b) Documentar os indícios físicos e psicológicosdas lesões e outros sintomas <strong>de</strong> maus tratos;c) Avaliar a possível correlação entre as observaçõesmédicas e os maus tratos <strong>de</strong> que o pacientealega ter sido vítima;d) Avaliar a possível correlação entre as conclusõesdo exame efectuado ao paciente e as informaçõesdisponíveis quanto aos métodos <strong>de</strong> torturaConsi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 37


utilizados na região em causa e suas sequelashabituais;e) Interpretar <strong>de</strong> forma avalizada as conclusõesdos exames médico-legais e dar parecer quanto àspossíveis causas dos maus tratos no âmbito <strong>de</strong>processos penais, civis e <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> asilo;f) Utilizar a informação obtida <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quadaa fim <strong>de</strong> facilitar o apuramento dos factose a recolha <strong>de</strong> provas adicionais relativas ao caso<strong>de</strong> tortura.b. Salvaguardas processuais relativamenteaos <strong>de</strong>tidos122. O exame médico-legal <strong>de</strong> um <strong>de</strong>tido <strong>de</strong>veráser realizado na sequência <strong>de</strong> um pedido escrito oficialdo Ministério Público ou outra autorida<strong>de</strong>competente. Os pedidos <strong>de</strong> exame médico apresentadospor funcionários responsáveis pela aplicaçãoda lei <strong>de</strong>verão ser consi<strong>de</strong>rados inválidos amenos que resultem <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns escritas do MinistérioPúblico. Contudo, os próprios <strong>de</strong>tidos, seuadvogado ou familiares, têm o direito <strong>de</strong> requererexame médico para estabelecer a existência <strong>de</strong> provas<strong>de</strong> tortura e maus tratos. O <strong>de</strong>tido <strong>de</strong>verá serconduzido até ao local on<strong>de</strong> se realizará o examemédico por outros funcionários que não membrosda polícia ou das forças armadas, uma vez quea tortura po<strong>de</strong> ter ocorrido quando o indivíduo seencontrava à guarda <strong>de</strong> qualquer um <strong>de</strong>stes mesmosagentes, pelo que a sua presença constituiriaum factor <strong>de</strong> pressão inaceitável sobre o <strong>de</strong>tidoou sobre o médico para evitar uma documentaçãoeficaz da tortura ou dos maus tratos. Os funcionáriosque supervisionam o transporte do <strong>de</strong>tido<strong>de</strong>verão ser responsáveis perante o MinistérioPúblico e não perante qualquer outra autorida<strong>de</strong>pública. O advogado do <strong>de</strong>tido <strong>de</strong>verá estar presenteaquando da apresentação do pedido <strong>de</strong> examemédico e durante o transporte do <strong>de</strong>tido <strong>de</strong>pois darealização do exame. Os <strong>de</strong>tidos têm o direito <strong>de</strong>ser sujeitos a um segundo exame ou contra-examepor um médico qualificado durante e após operíodo <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção.123. Todos os <strong>de</strong>tidos <strong>de</strong>verão ser examinados emprivado. Nenhum polícia ou outro funcionário responsávelpela aplicação da lei <strong>de</strong>verá estar presentena sala <strong>de</strong> observação. Esta salvaguarda processualapenas po<strong>de</strong>rá ser afastada caso o própriomédico consi<strong>de</strong>re que existem indícios sérios <strong>de</strong>que o <strong>de</strong>tido constitui uma ameaça grave à segurançado pessoal <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Nestas circunstâncias,<strong>de</strong>verá ser o pessoal <strong>de</strong> segurança do estabelecimento<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e não a polícia ou outros funcionáriosresponsáveis pela aplicação da lei, aassegurar a segurança do local, se o médico oenten<strong>de</strong>r necessário. Ainda assim, o pessoal <strong>de</strong>segurança não <strong>de</strong>verá ouvir o diálogo entre médicoe paciente (isto é, <strong>de</strong>ve estar colocado <strong>de</strong> forma aapenas po<strong>de</strong>r estabelecer contacto visual com esteúltimo, sem ouvir o que diz). Os exames médicos<strong>de</strong> <strong>de</strong>tidos <strong>de</strong>verão realizar-se no local que omédico consi<strong>de</strong>re mais apropriado. Em <strong>de</strong>terminadoscasos, po<strong>de</strong>rá ser preferível insistir paraque o exame se realize em estabelecimentos <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> oficiais e não na prisão ou cela <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção.Noutras circunstâncias, os <strong>de</strong>tidos po<strong>de</strong>m preferirser examinados na relativa segurança da sua cela,caso receiem, por exemplo, que as instalaçõesmédicas estejam sob vigilância. A <strong>de</strong>terminação dolocal mais a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversos factores,mas os investigadores <strong>de</strong>vem sempre certificar--se <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>tidos não são obrigados a aceitarum local on<strong>de</strong> não se sentem confortáveis.124. Caso quaisquer agentes policiais, soldados,guardas prisionais ou outros funcionários responsáveispela aplicação da lei estejam presentesna sala <strong>de</strong> exame, seja qual for o motivo, esse facto<strong>de</strong>verá constar do relatório médico oficial. A presença<strong>de</strong> agentes policiais, soldados, guardas prisionaisou outros funcionários responsáveis pelaaplicação da lei durante o exame po<strong>de</strong> ser fundamentopara <strong>de</strong>sacreditar um relatório médiconegativo. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e títulos <strong>de</strong> quaisqueroutras pessoas presentes na sala <strong>de</strong> exame durantea observação médica <strong>de</strong>verá também ser indicadano relatório. Nos exames médico-legais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tidos,<strong>de</strong>ver-se-á utilizar um formulário normalizado<strong>de</strong> relatório médico (vi<strong>de</strong> anexo IV paradirectrizes a utilizar na elaboração <strong>de</strong>stes formulários).125. O relatório original e completo <strong>de</strong>verá sertransmitido directamente à pessoa que o solici-38*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


70 Vi<strong>de</strong> Regras Mínimaspara o Tratamento dosReclusos (capítulo I.B).71 Anónimo, “Health carefor prisoners: implications ofKalk’s refusal” [em português:Cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>dos reclusos: as implicaçõesda recusa <strong>de</strong> Kalk], 1991,337, pp.647 e 648.tou, em geral um agente doMinistério Público. Sempre queo relatório seja solicitado pelo<strong>de</strong>tido ou seu advogado, <strong>de</strong>ver--lhe-á ser fornecido. O médicoque proce<strong>de</strong> ao exame <strong>de</strong>veráguardar cópias <strong>de</strong> todos os relatórios.As associações médicas nacionais oucomissões <strong>de</strong> inquérito po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>cidir inspeccionaros relatórios médicos a fim <strong>de</strong> verificar se osmédicos, em particular aqueles que são funcionáriospúblicos, respeitam as garantias processuaisaplicáveis e normas relativas à recolha <strong>de</strong>prova. Os relatórios <strong>de</strong>vem ser enviados à organizaçãoem causa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que oferecidas as necessáriasgarantias <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e sigilo. Nenhumacópia do relatório <strong>de</strong>verá, em caso algum, serenviada a funcionários responsáveis pela aplicaçãoda lei. É obrigatório que o <strong>de</strong>tido seja sujeito aexame médico no momento da <strong>de</strong>tenção, bemcomo a novo exame e avaliação no momento emque é libertado 70 . Deverá também ter acesso a umadvogado no momento do exame médico. Namaioria das situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção em estabelecimentoprisional, não é admitida qualquer presençaexterior durante o exame. Nestes casos, <strong>de</strong>veficar estabelecido que o médico da prisão respeitarigorosamente a <strong>de</strong>ontologia profissional, <strong>de</strong>vendoser capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar os seus <strong>de</strong>veres profissionaiscom in<strong>de</strong>pendência face a quaisquerinfluências <strong>de</strong> terceiros. Caso o exame médico--legal corrobore a alegação <strong>de</strong> tortura, o <strong>de</strong>tido não<strong>de</strong>verá regressar ao local <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, <strong>de</strong>vendoantes comparecer perante o Ministério Público ouo juiz para <strong>de</strong>terminação da sua situação jurídica 71 .c. Visitas oficiais a centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção126. As visitas aos reclusos não <strong>de</strong>vem efectuar--se <strong>de</strong> ânimo leve. Em <strong>de</strong>terminados casos, po<strong>de</strong>ser muitíssimo difícil realizá-las <strong>de</strong> forma objectivae profissional, particularmente em paíseson<strong>de</strong> ainda se pratica a tortura. Uma única visita,sem seguimento que garanta a ulterior segurançadas pessoas contactadas, po<strong>de</strong> ser perigosa. Porvezes, uma visita não seguida po<strong>de</strong> ser mesmopior do que nenhuma visita. Investigadores bemintencionados po<strong>de</strong>m cair na armadilha <strong>de</strong> visitarum estabelecimento prisional ou esquadra <strong>de</strong> políciasem saberem exactamente o que estão a fazer.Arriscam-se a obter uma imagem falsa ou incompletada realida<strong>de</strong>. Arriscam-se a colocar emperigo reclusos que po<strong>de</strong>m nunca mais vir a visitar.Arriscam-se ainda a fornecer um álibi aosautores <strong>de</strong> tortura, que po<strong>de</strong>m utilizar o argumento<strong>de</strong> que pessoas do exterior visitaram a suaprisão e nada <strong>de</strong>tectaram.127. As visitas <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>ixadas para investigadoresque as possam levar a cabo, e efectuar orespectivo seguimento, <strong>de</strong> forma profissional eque tenham reunido algumas garantias processuaispara o seu trabalho. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que algumasprovas são melhores do que provas nenhumas nãoé válida no trabalho com reclusos que po<strong>de</strong>m sercolocados em risco por prestar <strong>de</strong>poimento. Asvisitas efectuadas a instalações <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção porpessoas bem intencionadas em representação <strong>de</strong>instituições públicas e não governamentais po<strong>de</strong>mser difíceis e, pior ainda, po<strong>de</strong>m ser contraproducentes.Relativamente à questão que nos interessa,há que distinguir entre uma visita realizada <strong>de</strong>boa fé e necessária ao inquérito, que não está emcausa, e uma visita não essencial que vá alémdisso e que, se efectuada por não especialistas,po<strong>de</strong> ter mais <strong>de</strong>svantagens do que vantagensnum país que pratica a tortura. Às comissões in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntesconstituídas por juristas e médicos<strong>de</strong>verá ser garantido acesso periódico às prisões eoutros locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, para que possam efectuarvisitas a tais locais.128. As entrevistas com pessoas que estão ainda<strong>de</strong>tidas, e possivelmente mesmo nas mãos daquelesque as torturaram, são evi<strong>de</strong>ntemente muitodiferentes das entrevistas realizadas na privacida<strong>de</strong>e segurança <strong>de</strong> um estabelecimento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>externo e seguro. Nunca é <strong>de</strong>mais salientar aimportância <strong>de</strong> ganhar a confiança da pessoa emtais situações. Contudo, é ainda mais importantenunca trair essa confiança, mesmo involuntariamente.Devem ser tomadas todas as precauções paraque os <strong>de</strong>tidos se não coloquem a si próprios emperigo. Em particular, <strong>de</strong>ve perguntar-se aos <strong>de</strong>tidosvítimas <strong>de</strong> tortura se a informação obtida po<strong>de</strong>ser utilizada e <strong>de</strong> que maneira. Os <strong>de</strong>tidos po<strong>de</strong>mConsi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 39


ter <strong>de</strong>masiado medo para autorizar a divulgação doseu nome, por exemplo por receio <strong>de</strong> represálias.Os investigadores, pessoal médico e intérpretessão obrigados a respeitar tudo aquilo que tenhamprometido à pessoa em causa.129. Po<strong>de</strong>m surgir claros dilemas, por exemplo,caso seja evi<strong>de</strong>nte que um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong>reclusos foi sujeito a tortura num <strong>de</strong>terminadolocal, mas todos se recusam a autorizar a utilizaçãodas suas histórias por receio <strong>de</strong> represálias.Perante a opção entre trair a confiança dos reclusosna tentativa <strong>de</strong> pôr fim à tortura e guardarsilêncio relativamente à situação <strong>de</strong>tectada, énecessário encontrar uma solução que permitaconciliar as diversas obrigações em presença. Confrontadoscom uma situação em que diversos<strong>de</strong>tidos apresentam sinais evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>, nomeadamente,espancamento, lacerações ou golpes provocadospor objectos cortantes, mas todos serecusam a <strong>de</strong>ixar mencionar o seu caso por medo<strong>de</strong> represálias, po<strong>de</strong> ser conveniente organizaruma “inspecção sanitária” a todo o recinto, nopátio e à vista <strong>de</strong> todos. Desta forma, o peritomédico visitante, ao recorrer as filas <strong>de</strong> reclusos eobservando directamente os sinais <strong>de</strong> torturapatentes nas suas costas, po<strong>de</strong> comunicar as suasobservações sem ter <strong>de</strong> citar quaisquer queixas <strong>de</strong>tortura por parte das pessoas em causa. Este primeiropasso permitir-lhe-á ganhar a confiança dosreclusos para as ulteriores visitas <strong>de</strong> seguimento.130. É evi<strong>de</strong>nte que as formas mais subtis <strong>de</strong> tortura,como por exemplo a tortura psicológica esexual, não po<strong>de</strong>m ser tratadas da mesma forma.Em <strong>de</strong>terminados casos, po<strong>de</strong>rá ser necessárioque os investigadores se abstenham <strong>de</strong> qualquercomentário durante uma ou duas visitas, até queas circunstâncias mu<strong>de</strong>m e permitam ou encorajemos reclusos a autorizar a utilização das suas históriaspessoais. O médico e o intérprete <strong>de</strong>vemi<strong>de</strong>ntificar-se e explicar o seu papel no exame.A documentação <strong>de</strong> provas médicas <strong>de</strong> torturaexige conhecimentos especializados <strong>de</strong> médicoscre<strong>de</strong>nciados. Po<strong>de</strong> obter-se informação relativa àtortura e suas consequências físicas e psicológicasatravés <strong>de</strong> publicações, cursos <strong>de</strong> formação, conferênciasprofissionais e experiência profissional.Para além disso, é necessário conhecer as formas<strong>de</strong> tortura e maus tratos praticados a nível regional,uma vez que esta informação po<strong>de</strong> corroboraros <strong>de</strong>poimentos recolhidos. A experiência na condução<strong>de</strong> entrevistas e realização <strong>de</strong> exames comvista à recolha <strong>de</strong> indícios físicos e psicológicos <strong>de</strong>tortura, bem como na documentação dos resultados<strong>de</strong>stas operações, <strong>de</strong>ve ser adquirida sob asupervisão <strong>de</strong> pessoal médico experiente.131. Por vezes, as pessoas <strong>de</strong>tidas po<strong>de</strong>m manifestaruma confiança excessiva em situações em queo investigador pura e simplesmente não po<strong>de</strong>garantir que não irão haver represálias, por exemploporque uma nova visita não foi negociada e plenamenteaceite pelas autorida<strong>de</strong>s ou porque ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da pessoa não ficou registada <strong>de</strong> formaa permitir o acompanhamento da sua situação.Deverão ser tomadas todas as precauções paraassegurar que os reclusos não se exponham a riscos<strong>de</strong>snecessários, confiando ingenuamente naprotecção <strong>de</strong> uma pessoa do exterior.132. Em termos i<strong>de</strong>ais, nas entrevistas a pessoas<strong>de</strong>tidas os intérpretes <strong>de</strong>verão ser exteriores à comunida<strong>de</strong>local, sobretudo para evitar que eles própriosou as suas famílias sejam sujeitos a eventuaispressões da parte <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sejosas <strong>de</strong> saberque informação foi transmitida aos investigadores.A questão po<strong>de</strong> ser mais complexa quando os reclusospertencem a um grupo étnico diferente do dosseus carcereiros. Deverá o intérprete local pertencerao mesmo grupo étnico do recluso, <strong>de</strong> forma aganhar a confiança <strong>de</strong>ste, mas ser ao mesmo tempoobjecto da <strong>de</strong>sconfiança das autorida<strong>de</strong>s e possivelmente<strong>de</strong> tentativas <strong>de</strong> intimidação? Para alémdisso, o intérprete po<strong>de</strong>rá manifestar relutânciaquanto a trabalhar num ambiente hostil, assim secolocando potencialmente em risco. Ou <strong>de</strong>veráoptar-se por um intérprete originário do mesmogrupo étnico dos captores, assim ganhando a confiança<strong>de</strong>stes últimos mas per<strong>de</strong>ndo a do recluso, econtinuando o intérprete potencialmente vulnerávela tentativas <strong>de</strong> intimidação das autorida<strong>de</strong>s?Obviamente, a solução i<strong>de</strong>al não é nenhuma dasduas. Os intérpretes <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong> fora da região econsi<strong>de</strong>rados por todos como tão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntesquanto os investigadores.40*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


133. Uma pessoa entrevistadaàs oito horas da tar<strong>de</strong> merecetanta atenção como uma pessoa vista às oito horasda manhã. Os investigadores <strong>de</strong>verão assegurar-se<strong>de</strong> que dispõem <strong>de</strong> tempo suficiente e não sesobrecarregam a si próprios com trabalho. Éinjusto que a entrevista à pessoa das oito da noite(que além do mais aguardou durante todo o dia parapo<strong>de</strong>r contar a sua história) seja encurtada pormotivos <strong>de</strong> tempo. Da mesma forma, o décimonono relato <strong>de</strong> falanga N.T.29 merece tanta atençãocomo o primeiro. Os reclusos que raramente contactampessoas do exterior po<strong>de</strong>m nunca ter tidoa oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar a alguém o seu caso.É uma i<strong>de</strong>ia errada pensar que os reclusos falamconstantemente uns com os outros acerca dassuas experiências <strong>de</strong> tortura. Os reclusos que nãofornecem qualquer elemento novo à investigaçãomerecem tanto tempo como os restantes.d. Técnicas <strong>de</strong> interrogatórioN.T.29 Espancamento daplanta dos pés, vi<strong>de</strong> infra.134. Existem algumas regras básicas que <strong>de</strong>verãoser respeitadas (vi<strong>de</strong> capítulo III, secção C.2, g)).A obtenção <strong>de</strong> informação é certamente importante,mas a pessoa entrevistada é-o ainda mais eouvir é mais importante do que fazer perguntas.Se o entrevistador se limita a formular perguntas,apenas obterá respostas. Para o recluso, po<strong>de</strong> sermais importante falar acerca da família do que datortura. Há que ter em conta este aspecto, pelo que<strong>de</strong>verá ser disponibilizado algum tempo para adiscussão <strong>de</strong> questões pessoais. A tortura, particularmente<strong>de</strong> natureza sexual, é um assuntomuito íntimo e po<strong>de</strong>rá não ser abordado antes dasegunda visita ou mesmo mais tar<strong>de</strong>. Os indivíduosnão <strong>de</strong>vem ser forçados a falar sobre qualquerforma <strong>de</strong> tortura se não se sentirem à-vonta<strong>de</strong>para o fazer.e. Documentação dos antece<strong>de</strong>ntes1. PERFIL PSICOSSOCIAL E SITUAÇÃO ANTERIORÀ DETENÇÃO135. Caso a alegada vítima <strong>de</strong> tortura já não seencontre <strong>de</strong>tida, o examinador <strong>de</strong>verá interrogá-laacerca da sua vida quotidiana, relações com amigose familiares, trabalho ou estudos, profissão, interesses,planos futuros e utilização <strong>de</strong> álcool oudrogas. Deverá também ser obtida informação quepermita estabelecer o perfil psicossocial da pessoaposterior à <strong>de</strong>tenção. Caso a pessoa se encontreainda <strong>de</strong>tida, será suficiente fazer um historialmais resumido do seu percurso pessoal, inci<strong>de</strong>ntesobre a profissão e habilitações literárias. Interroguetambém acerca <strong>de</strong> quaisquer medicamentosque o <strong>de</strong>tido tome por receita médica; esta informaçãoé particularmente importante porque o<strong>de</strong>tido po<strong>de</strong> ser privado <strong>de</strong>ssa medicação, comconsequências graves para a sua saú<strong>de</strong>. É importanteobter dados acerca das activida<strong>de</strong>s políticas,convicções e opiniões da pessoa na medida emque essa informação po<strong>de</strong> ajudar a explicar as causasda <strong>de</strong>tenção ou tortura, mas será preferívelformular questões indirectas, perguntando à pessoado que foi acusada ou porque pensa ter sido<strong>de</strong>tida ou torturada.2. RESUMO DA DETENÇÃO E DOS MAUS TRATOS136. Antes <strong>de</strong> entrar nos <strong>de</strong>talhes do caso, oinvestigador <strong>de</strong>verá procurar obter um resumo domesmo, incluindo datas, locais e duração da<strong>de</strong>tenção, frequência e duração das sessões <strong>de</strong>tortura. Este resumo permitirá utilizar o tempoda forma mais eficaz. Em <strong>de</strong>terminados casosem que as vítimas são torturadas em diversasocasiões, po<strong>de</strong>m lembrar-se do que se passoumas não se conseguem recordar do local emomento exacto <strong>de</strong> cada uma das sessões <strong>de</strong> tortura.Nestas circunstâncias, po<strong>de</strong> ser aconselhávelsolicitar uma <strong>de</strong>scrição dos factos pormétodos <strong>de</strong> tortura e não a sequência <strong>de</strong> acontecimentosdurante cada um dos inci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção. Da mesma forma, ao ouvir um relatoconvém muitas vezes <strong>de</strong>terminar, tanto quantopossível, “o que aconteceu on<strong>de</strong>”. Os locais <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção são administrados por diferentes forças<strong>de</strong> segurança, corpos policiais ou forças armadas,e os acontecimentos ocorridos em cada localpo<strong>de</strong>m dar uma i<strong>de</strong>ia global do sistema <strong>de</strong> tortura.A <strong>de</strong>terminação dos locais on<strong>de</strong> a tortura aconteceupo<strong>de</strong> ajudar a reconstruir as histórias <strong>de</strong>várias pessoas diferentes, o que po<strong>de</strong>rá facilitarconsi<strong>de</strong>ravelmente todo o inquérito.Consi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 41


3. CIRCUNSTÂNCIAS DA DETENÇÃO137. Po<strong>de</strong>m colocar-se as seguintes questões: Quehoras eram? On<strong>de</strong> estava? O que estava a fazer?Quem estava no local? Descreva a aparência das pessoasque efectuaram a <strong>de</strong>tenção. Eram militares oucivis, fardados ou à civil? Que tipo <strong>de</strong> armas transportavam?O que foi dito? Houve testemunhas? Foium caso <strong>de</strong> captura oficial, <strong>de</strong>tenção administrativaou <strong>de</strong>saparecimento? Foi usada violência ouproferidas ameaças? Houve alguma interacçãocom membros da família? Tome nota da utilização<strong>de</strong> meios <strong>de</strong> restrição <strong>de</strong> movimentos ou vendas nosolhos, meios <strong>de</strong> transporte, local <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino enomes dos funcionários, se estes elementos foremdo conhecimento da pessoa.4. LOCAL E CONDIÇÕES DE DETENÇÃO138. Inclua aqui o acesso da pessoa e sua <strong>de</strong>scriçãoda comida e bebidas disponíveis, instalaçõessanitárias, iluminação, temperatura e ventilação.Recolha também informação acerca <strong>de</strong> quaisquercontactos com a família, advogados ou profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, condições <strong>de</strong> sobrelotação ou <strong>de</strong>tençãoem regime <strong>de</strong> isolamento, dimensões do local<strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção e quaisquer pessoas que possam confirmara situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Po<strong>de</strong> perguntar-seo seguinte: o que aconteceu em primeiro lugar? Paraon<strong>de</strong> foi levado? Houve algum processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação(registo <strong>de</strong> dados pessoais, recolha <strong>de</strong>impressões digitais, fotografias)? Foi-lhe pedidoque assinasse alguma coisa? Descreva as condiçõesda cela ou quarto (tome nota do respectivo tamanho,presença <strong>de</strong> outras pessoas, iluminação, ventilação,temperatura, presença <strong>de</strong> insectos ouroedores, <strong>de</strong>scrição da cama e acesso a comida, águae casas <strong>de</strong> banho). O que ouviu, viu e cheirou? Tevealgum contacto com pessoas do exterior ou acessoa cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>? Qual era a disposição físicado local on<strong>de</strong> ficou <strong>de</strong>tido?5. MÉTODOS DE TORTURA E MAUS TRATOS139. Ao recolher informação sobre tortura e maustratos, <strong>de</strong>ve ter-se cuidado ao sugerir formas <strong>de</strong>maus tratos a que a pessoa possa ter sido sujeita,uma vez que a pessoa po<strong>de</strong> ser tentada a distorceros factos. A resposta negativa a perguntas sobrediversas formas <strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong>, contudo, ajudara estabelecer a credibilida<strong>de</strong> do testemunho. Asquestões <strong>de</strong>vem ser formuladas <strong>de</strong> forma a obterum relato coerente do sucedido. Eis algumassugestões <strong>de</strong> perguntas a colocar: On<strong>de</strong> ocorreramos maus tratos, quando e durante quanto tempo?Foi vendado? Antes <strong>de</strong> passar à <strong>de</strong>scrição dosmétodos empregues, tome nota das pessoas presentes(com os respectivos nomes e posições).Descreva a sala ou outro local em causa. Queobjectos viu? Se possível, <strong>de</strong>screva em <strong>de</strong>talhecada um dos objectos <strong>de</strong> tortura; no caso <strong>de</strong> torturaeléctrica, indique a voltagem, aparelho,número e forma dos eléctrodos. Inquira acerca dovestuário usado, se alguém se <strong>de</strong>spiu ou mudou<strong>de</strong> roupa. Tome nota <strong>de</strong> tudo quanto tenha sido ditodurante o interrogatório, nomeadamente injúriase insultos à vítima e conversas dos torcionáriosentre si.140. Para cada forma <strong>de</strong> maus tratos, tome notados seguintes pormenores: posição do corpo, imobilização,natureza do contacto, incluindo arespectiva duração, frequência e localização anatómica,bem como a zona do corpo afectada.Houve alguma hemorragia, traumatismo cranianoou perda <strong>de</strong> consciência? Em caso <strong>de</strong> perda <strong>de</strong>consciência, <strong>de</strong>veu-se a traumatismo craniano,asfixia ou dor? Deve-se perguntar também à pessoacomo se sentia no fim da “sessão”. Podiaandar? Foi preciso ajudá-lo ou carregá-lo <strong>de</strong> voltaà cela? Conseguia levantar-se no dia seguinte?Durante quanto tempo ficaram os pés inchados?Este género <strong>de</strong> perguntas permite obter umanoção mais completa do acto <strong>de</strong> tortura do que osimples enunciado <strong>de</strong> métodos <strong>de</strong> tortura eventualmenteutilizados. O testemunho <strong>de</strong>verá darconta da data da tortura posicional, quantas vezese durante quantos dias foi a pessoa sujeita a tortura,duração <strong>de</strong> cada uma das sessões e tipo <strong>de</strong> suspensão(linear-invertida, coberto com uma mantaou pano grosso, ou atado directamente com umacorda, com peso sobre as pernas ou em estiramento)ou posição utilizada. Nos casos <strong>de</strong> torturapor suspensão, há que apurar também o tipo <strong>de</strong>material usado (corda, arame e tecido <strong>de</strong>ixam marcasdiferentes na pele, ou mesmo nenhumas,42*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


<strong>de</strong>pois da suspensão). O examinador <strong>de</strong>verá terpresente que tudo quanto a vítima diga acerca daduração da sessão <strong>de</strong> tortura é subjectivo e po<strong>de</strong> nãoestar correcto, uma vez que a sujeição a tortura fazgeralmente per<strong>de</strong>r a noção do tempo e do espaço.Foi a pessoa sexualmente molestada <strong>de</strong> qualquerforma? Tente saber o que foi dito no <strong>de</strong>correr dasessão <strong>de</strong> tortura. Por exemplo, ao torturar avítima com choques eléctricos nos órgãos genitais,os autores do acto dizem muitas vezes à vítima queela nunca mais vai po<strong>de</strong>r ter relações sexuais normaisou algo semelhante. Para mais pormenoresquanto às avaliações <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> alegada torturasexual, incluindo a violação, vi<strong>de</strong> capítulo V, secçãoD.8.f. Avaliação dos antece<strong>de</strong>ntes141. Os sobreviventes <strong>de</strong> actos <strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong>mter dificulda<strong>de</strong> em contar os <strong>de</strong>talhes específicosdo seu caso por diversos motivos importantes,nomeadamente os seguintes:a) Factores que operaram durante o próprioacto <strong>de</strong> tortura, tais como o facto <strong>de</strong> a vítima ter tidoos olhos vendados, estar drogada ou ter sofrido perdas<strong>de</strong> consciência;b) Receio <strong>de</strong> se colocar a si própria ou a outrosem perigo;c) Falta <strong>de</strong> confiança no clínico que proce<strong>de</strong> aoexame ou no intérprete;d) Impacto psicológico da tortura e trauma – porexemplo, crises <strong>de</strong> hiperemotivida<strong>de</strong> e perdas <strong>de</strong>memória provocadas por perturbações mentaisrelacionadas com o trauma, como a <strong>de</strong>pressão ouperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático;e) Perdas <strong>de</strong> memória <strong>de</strong> origem neuropsiquiátricaprovocadas por pancadas na cabeça, sufocação,situações <strong>de</strong> quase afogamento ou privação<strong>de</strong> alimentos;f) Mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa psicológica, como anegação dos acontecimentos ouo evitar falar <strong>de</strong>les;g) Sanções impostas por tradiçõesculturais que só permitemque as situações traumáticassejam reveladas em ambientes<strong>de</strong> absoluta confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> 72 .72 R.F. Mollica e Y. Caspi--Yavin, “Overview: theassessment and diagnosis oftorture events andsymptoms” [Em português:Visão geral. a avaliação e odiagnóstico <strong>de</strong> inci<strong>de</strong>ntes esintomas <strong>de</strong> tortura], Tortureand Its Consequences,Current TreatmentApproaches, M. Bas|og v lu,Cambridge, Cambridge UniversityPress, 1992, pp. 38 a 55.142. As incongruências no relato da pessoapo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ver-se a qualquer <strong>de</strong>stes factores ou atodos eles. Se possível, o investigador <strong>de</strong>ve pedirnovos esclarecimentos. Se isto não for possível,<strong>de</strong>verá procurar outras provas que confirmem ouinfirmem a história. Um conjunto <strong>de</strong> elementoscoerentes em apoio das alegações da pessoa po<strong>de</strong>corroborar e esclarecer a história. Embora o indivíduopossa não estar em condições <strong>de</strong> fornecertodos os pormenores pretendidos pelo investigador,como a data, hora e frequência dos actos <strong>de</strong>tortura, e a exacta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos seus autores, aolongo do tempo do seu testemunho acabarão poremergir e articular-se os elementos essenciais docaso.g. Análise dos métodos <strong>de</strong> tortura143. Depois <strong>de</strong> ouvido o relato <strong>de</strong>talhado dosacontecimentos, é aconselhável passar em revistaoutros métodos <strong>de</strong> tortura a que a pessoa possa tersido sujeita. É fundamental conhecer os métodos<strong>de</strong> tortura utilizados na região em causa e, emfunção <strong>de</strong>les, adaptar as directivas locais. O interrogatórioa respeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas formas específicas<strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong> ser útil caso:a) Os sintomas psicológicos tol<strong>de</strong>m a memória;b) Exista uma diminuição das capacida<strong>de</strong>s sensoriaisassociada ao trauma;c) Possam ter ocorrido lesões cerebrais orgânicas;d) O testemunho esteja limitado por factoreseducacionais ou culturais.144. A distinção entre tortura física e psicológicaé artificial. Por exemplo, a tortura sexual causageralmente sintomas físicos e psicológicos,mesmo que não tenha havido agressão física. A lista<strong>de</strong> métodos <strong>de</strong> tortura que se segue foi elaboradaa fim <strong>de</strong> exemplificar alguns tipos possíveis <strong>de</strong>maus tratos. Não <strong>de</strong>verá ser utilizada pelos investigadorescomo lista <strong>de</strong> controlo ou formuláriopara a listagem <strong>de</strong> métodos <strong>de</strong> tortura num relatório.O método <strong>de</strong> fazer listas po<strong>de</strong> ser contraproducente,uma vez que o quadro clínico globalresultante da tortura é muito mais complexo do quea mera soma <strong>de</strong> lesões produzidas pelos métodosConsi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 43


constantes <strong>de</strong> uma lista. De facto, a experiência<strong>de</strong>monstra que, quando confrontados com essaforma <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r, os autores <strong>de</strong> actos <strong>de</strong> torturaten<strong>de</strong>m a concentrar-se num dos métodos indicadose a discutir se o mesmo constitui ou não umaforma <strong>de</strong> tortura. Eis apenas alguns dos métodos<strong>de</strong> tortura a ter em conta:a) Traumatismos provocados por contusões,tais como socos, pontapés, bofetadas, golpes, abanõese agressões com arames ou objectos contun<strong>de</strong>ntes,bem como a queda da vítima;b) Tortura posicional, com utilização da suspensão,estiramento dos membros, imobilizaçãoprolongada ou posturas forçadas;c) Queimaduras com cigarros, instrumentosem brasa, líquidos a ferver ou substâncias cáusticas;d) Choques eléctricos;e) Asfixia, com utilização <strong>de</strong> métodos húmidosou secos, tais como o afogamento, sufocação,estrangulamento ou uso <strong>de</strong> substâncias químicas;f) Tortura por pressão, como o esmagamentodos <strong>de</strong>dos ou a utilização <strong>de</strong> rolos pesados paramagoar as coxas ou as costas;g) Lesões perfurantes, como punhaladas, feridas<strong>de</strong> bala ou a introdução <strong>de</strong> arames <strong>de</strong>baixo dasunhas;h) Exposição química ao sal, pimenta e gasolina,entre outras substâncias (em feridas ou cavida<strong>de</strong>scorporais);i) Violência sexual sobre os órgãos genitais,abusos sexuais, introdução <strong>de</strong> objectos, violação;j) Fracturas ou remoção traumática <strong>de</strong> extremida<strong>de</strong>sou membros;k) Amputação cirúrgica <strong>de</strong> extremida<strong>de</strong>s oumembros, remoção cirúrgica <strong>de</strong> órgãos;l) Tortura farmacológica por administração <strong>de</strong>doses tóxicas <strong>de</strong> sedativos, neurolépticos e substânciasparalisantes, entre outras;m) Condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção cruéis ou <strong>de</strong>gradantes,por exemplo celas pequenas ou sobrelotadas,regime <strong>de</strong> isolamento, higiene <strong>de</strong>ficiente, negaçãodo acesso a instalações sanitárias, alimentação ebebidas insuficientes ou contaminadas, exposiçãoa temperaturas extremas, ausência <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>e nu<strong>de</strong>z forçada;n) Privação dos estímulos sensoriais normais,tais como o som, luz, noção do tempo, isolamento,manipulação da iluminação da cela, abuso <strong>de</strong>necessida<strong>de</strong>s fisiológicas, restrições ao sono, alimentos,água, instalações sanitárias, banhos, activida<strong>de</strong>smotoras, cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, contactossociais, isolamento <strong>de</strong>ntro da prisão, perda <strong>de</strong> contactocom o mundo exterior (as vítimas <strong>de</strong> torturasão muitas vezes isoladas para evitar o estabelecimento<strong>de</strong> laços com outras pessoas e a i<strong>de</strong>ntificaçãorecíproca, bem como para fomentar osvínculos traumáticos com os torcionários);o) Humilhações, tais como maus tratos verbaise <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> actos humilhantes;p) Ameaças <strong>de</strong> morte, violência contra a família,novos actos <strong>de</strong> tortura, prisão e simulação <strong>de</strong>execuções;q) Ameaças <strong>de</strong> ataques por animais, tais comocães, gatos, ratos ou escorpiões;r) Técnicas psicológicas que visam <strong>de</strong>struir a personalida<strong>de</strong>do indivíduo, incluindo traições forçadas,consciencialização da sua impotência,exposição a situações ambíguas ou mensagenscontraditórias;s) Violação <strong>de</strong> tabus;t) Coacção comportamental, nomeadamenteatravés da imposição <strong>de</strong> práticas contrárias à religiãoda pessoa (por exemplo, obrigar um muçulmanoa comer carne <strong>de</strong> porco) ou do facto <strong>de</strong>obrigar o indivíduo a infligir tortura ou outrosmaus tratos a terceiros, a <strong>de</strong>struir bens ou a trairalguém, colocando essa pessoa em risco;u) Obrigar a pessoa a assistir a actos <strong>de</strong> torturaou outras atrocida<strong>de</strong>s cometidas contra outro indivíduo.h. Risco <strong>de</strong> re-traumatização das pessoasinterrogadas145. Tendo em consi<strong>de</strong>ração que a natureza e gravida<strong>de</strong>das lesões po<strong>de</strong> variar em função dos métodos<strong>de</strong> tortura utilizados, os dados recolhidos nasequência da <strong>de</strong>finição do historial clínico e observaçãodo indivíduo <strong>de</strong>vem ser avaliados juntamentecom os resultados dos exames laboratoriaise radiológicos a<strong>de</strong>quados. É fundamental informara pessoa e explicar-lhe cada uma das etapasdo exame médico, bem como dar-lhe a conhecerem <strong>de</strong>talhe os métodos laboratoriais utilizados(vi<strong>de</strong> capítulo VI, secção B. a)).44*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


146. A presença <strong>de</strong> sequelas psicológicas nossobreviventes <strong>de</strong> tortura, em particular diversasmanifestações <strong>de</strong> stress pós-traumático, po<strong>de</strong> levara que a vítima receie reviver a sua experiência <strong>de</strong>tortura durante a entrevista, exame médico ou testeslaboratoriais. É importante explicar à pessoaantecipadamente o que se vai fazer e o que esperardo exame. As pessoas que sobrevivem à torturae permanecem no seu país po<strong>de</strong>m ser muito <strong>de</strong>sconfiadase ter gran<strong>de</strong> receio <strong>de</strong> voltar a ser capturadas,sendo muitas vezes forçadas a passar àclan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> para evitar nova <strong>de</strong>tenção. Aquelesque se exilam ou refugiam noutro país po<strong>de</strong>m<strong>de</strong>ixar para trás todas as suas raízes: línguamaterna, cultura, família, amigos, trabalho e tudoo que lhes é familiar.147. As reacções pessoais da vítima ao entrevistador(e ao intérprete, caso seja utilizado) po<strong>de</strong>minfluenciar o interrogatório e, consequentemente,os resultados do inquérito. Da mesma forma, asreacções pessoais do entrevistador perante avítima po<strong>de</strong>m influenciar o interrogatório e osresultados do inquérito. É importante analisar asbarreiras que estas reacções pessoais colocam a umacomunicação eficaz e à compreensão dos factos noâmbito do inquérito. O investigador <strong>de</strong>ve manteros processos <strong>de</strong> entrevista e investigação sob análisepermanente, em consulta e discussão comcolegas possuidores <strong>de</strong> experiência sólida nasáreas da avaliação psicológica e do tratamento <strong>de</strong>vítimas <strong>de</strong> tortura. Este tipo <strong>de</strong> supervisão pelospares po<strong>de</strong> ser eficaz para evitar a interferência <strong>de</strong>preconceitos e barreiras à comunicação nos processos<strong>de</strong> entrevista e investigação, bem comopara garantir a obtenção <strong>de</strong> informação precisa(vi<strong>de</strong> capítulo VI, secção C.2).148. Apesar <strong>de</strong> todas as precauções, os examesfísicos e psicológicos, pela sua própria natureza,po<strong>de</strong>m provocar novos traumas na vítima, causandoou exacerbando sintomas <strong>de</strong> stress pós-traumáticoao evocar sensações e memórias dolorosas(vi<strong>de</strong> capítulo VI, secção B.2). As perguntas relativasa distúrbios psíquicos e, especialmente, questõessexuais, são consi<strong>de</strong>radas tabus na maioria dassocieda<strong>de</strong>s tradicionais, sendo o interrogatóriosobre tais matérias consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>srespeitoso ouinsultuoso. Caso a tortura sexual seja um dos abusossofridos, a vítima po<strong>de</strong> sentir-se irremediavelmenteestigmatizada e manchada na suaintegrida<strong>de</strong> moral, religiosa, social ou psicológica.A manifestação <strong>de</strong> um conhecimento respeitoso<strong>de</strong>stes condicionalismos, bem como o esclarecimentoquanto às garantias <strong>de</strong> confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> eseus limites é, assim, <strong>de</strong> importância fundamentalpara que a entrevista seja bem conduzida.O entrevistador <strong>de</strong>verá avaliar até que ponto seránecessário continuar a insistir no fornecimento <strong>de</strong>mais pormenores sobre o caso para que o relatórioseja eficaz em tribunal, sobretudo quando avítima mostra sinais evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> tensão durantea entrevista.i. Utilização <strong>de</strong> intérpretes149. Em muitos casos, é necessário recorrer a umintérprete para que o entrevistador possa compreen<strong>de</strong>ras <strong>de</strong>clarações da testemunha. Ainda queentrevistador e entrevistado possam enten<strong>de</strong>r-se,com limitações, numa língua comum, a informaçãoprocurada é frequentemente <strong>de</strong>masiadoimportante para que se possa arriscar incorrer noserros inerentes a uma compreensão incompleta doque é dito por qualquer um <strong>de</strong>les. Os intérpretes<strong>de</strong>vem ser alertados <strong>de</strong> que tudo quanto oiçam ea cuja interpretação procedam nas entrevistas éestritamente confi<strong>de</strong>ncial. São os intérpretes queobtêm toda a informação em primeira mão, semqualquer censura. Por isso, <strong>de</strong>vem ser dadasgarantias aos <strong>de</strong>poentes <strong>de</strong> que nem o investigadornem o intérprete utilizarão a informaçãoobtida <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>vida, <strong>de</strong> qualquer forma (vi<strong>de</strong>capítulo VI, secção C.2).150. Quando os intérpretes não são profissionais,existe sempre o risco <strong>de</strong> que o investigador percao controlo do interrogatório. Os indivíduos po<strong>de</strong>membrenhar-se numa conversa com alguém quefala a sua língua, e a entrevista afastar-se do seuobjecto principal. Há também o perigo <strong>de</strong> umintérprete ten<strong>de</strong>ncioso po<strong>de</strong>r influenciar as respostasda pessoa ou distorcer as mesmas. A utilização<strong>de</strong> intérpretes implica inevitavelmente aperda <strong>de</strong> alguma informação, por vezes importante,outras não. Em casos extremos, po<strong>de</strong>Consi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 45


mesmo ser necessário que o investigador se abstenha<strong>de</strong> tomar notas durante a entrevista e dividaa mesma em diversas sessões <strong>de</strong> curta duração, afim <strong>de</strong> ter tempo para transcrever os aspectos maissignificativos do que foi dito no intervalo entresessões.151. Os investigadores <strong>de</strong>vem sempre lembrar--se <strong>de</strong> falar para a pessoa e manter contacto visualcom ela, mesmo se esta tiver uma tendência naturalpara falar para o intérprete. É conveniente utilizara segunda pessoa no enunciado das questões(por exemplo, “o que fez a seguir”) e não a terceira(“pergunte-lhe o que aconteceu a seguir”). Acontececom <strong>de</strong>masiada frequência que os investigadoresaproveitem os momentos em que ointérprete está a traduzir as perguntas ou o entrevistadoa respon<strong>de</strong>r, para tirar notas. Alguns investigadoresnão parecem estar a ouvir, uma vez queo diálogo <strong>de</strong>corre numa língua que não compreen<strong>de</strong>m.Isto <strong>de</strong>ve ser evitado, porque é fundamental,não apenas ouvir o que é dito, mastambém observar a linguagem corporal, expressõesfaciais, tom <strong>de</strong> voz e gestos do entrevistado paraobter uma percepção completa do caso. Os investigadores<strong>de</strong>verão familiarizar-se com o vocabuláriorelativo à tortura na língua da pessoa para<strong>de</strong>monstrar que conhecem o assunto. A credibilida<strong>de</strong>do investigador sairá reforçada se, ao ouvir umtermo relativo a tortura, como submarino ou darmashakra,reagir em vez <strong>de</strong> permanecer impassível.152. Nas visitas a reclusos, é preferível nunca utilizarintérpretes locais se existir a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> que possam suscitar a <strong>de</strong>sconfiança dos entrevistados.Po<strong>de</strong> também ser injusto para os intérpreteslocais, susceptíveis <strong>de</strong> vir a ser interrogadospelas autorida<strong>de</strong>s locais <strong>de</strong>pois da visita ou submetidosa outro tipo <strong>de</strong> pressão, o seu envolvimentocom presos políticos. É sempre preferívelrecorrer a intérpretes in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, claramentevindos <strong>de</strong> fora, sem vínculos à comunida<strong>de</strong> local.A segunda melhor solução, <strong>de</strong>pois do domínio dalíngua local, é trabalhar com um intérprete experientee competente, sensível ao problema da torturae à cultura local. Em regra, não <strong>de</strong>verecorrer-se a outros reclusos para fazer interpretação,a menos que seja óbvio que tenham sido escolhidospelo <strong>de</strong>tido por serem alguém da sua confiança.Nos casos <strong>de</strong> pessoas em liberda<strong>de</strong>, aplicam--se muitas <strong>de</strong>stas regras, mas po<strong>de</strong>rá ser mais fácillevar alguém (uma pessoa local) do exterior, o queraramente é possível em ambientes prisionais.j. Questões <strong>de</strong> género153. Em termos i<strong>de</strong>ais, a equipa <strong>de</strong> investigação<strong>de</strong>verá incluir especialistas <strong>de</strong> ambos os sexos,permitindo que a alegada vítima <strong>de</strong> tortura escolhao sexo do seu entrevistador e, se necessário, dointérprete. Este aspecto é particularmente importantecaso se trate <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>tidas em contextoson<strong>de</strong> se sabe que a violação acontece, mesmo quea mulher em causa não se tenha, até àquelemomento, queixado <strong>de</strong> tal abuso. Mesmo que nãotenha ocorrido qualquer agressão <strong>de</strong> naturezasexual, a maior parte das formas <strong>de</strong> tortura tem umadimensão sexual (vi<strong>de</strong> capítulo V, secção D.8).O trauma sofrido po<strong>de</strong>rá ser reavivado caso a mulherse veja na contingência <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o quese passou a uma pessoa fisicamente semelhante aosseus torcionários, que serão inevitavelmente, na suamaioria ou totalida<strong>de</strong>, homens. Em <strong>de</strong>terminadasculturas, será impensável que um investigador dosexo masculino interrogue uma vítima do sexofeminino, e isto <strong>de</strong>ve ser respeitado. Contudo, namaior parte das culturas, caso exista apenas ummédico do sexo masculino disponível, muitasmulheres acharão preferível falar com ele do quecom uma mulher <strong>de</strong> outra área, a fim <strong>de</strong> obter osconselhos e a informação médica <strong>de</strong> que necessitam.Nestas situações, é indispensável que o intérprete,se necessário, seja uma mulher. Algumaspessoas po<strong>de</strong>m também preferir que o intérpretenão pertença à comunida<strong>de</strong> local, tanto para quea sua presença não venha a relembrar o caso <strong>de</strong> torturacomo por eventuais receios <strong>de</strong> quebra <strong>de</strong>sigilo (vi<strong>de</strong> capítulo IV, secção I). Se não for necessáriorecorrer a um intérprete, um elemento do sexofeminino da equipa <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong>verá estar presente,pelo menos durante o exame físico e, se apaciente assim o <strong>de</strong>sejar, durante toda a entrevista.154. Caso a vítima seja um homem vítima <strong>de</strong>abuso sexual, a situação é mais complexa porque,46*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


também ele, terá sido abusado maioritária ouexclusivamente por homens. Assim, algunshomens preferirão relatar as suas experiências amulheres <strong>de</strong>vido ao temor que têm <strong>de</strong> outroshomens, ao passo que outros não quererão discutirquestões tão pessoais à frente <strong>de</strong> uma mulher.k. Encaminhamento para outros serviços155. Sempre que possível, os exames médico--legais com vista à documentação da tortura <strong>de</strong>verãoser acompanhados pela avaliação <strong>de</strong> outrasnecessida<strong>de</strong>s que a pessoa possa sentir, daí a conveniência<strong>de</strong> a encaminhar para outros serviços,nomeadamente <strong>de</strong> medicina especializada, psicologia,fisioterapia ou aconselhamento e apoiosocial. Os investigadores <strong>de</strong>vem conhecer os serviços<strong>de</strong> reabilitação e apoio existentes a nívellocal. O médico não <strong>de</strong>ve hesitar em insistir na realização<strong>de</strong> qualquer consulta ou exame que consi<strong>de</strong>renecessário no âmbito da avaliação clínica. Narecolha <strong>de</strong> provas médicas <strong>de</strong> tortura e maus tratos,os médicos continuam vinculados às suasobrigações éticas e <strong>de</strong>ontológicas. As pessoas quepareçam necessitadas <strong>de</strong> cuidados médicos ou psicológicosadicionais <strong>de</strong>vem ser encaminhadaspara os serviços competentes.l. Interpretação dos factos e conclusões156. Os sintomas físicos da tortura po<strong>de</strong>m variarem função da intensida<strong>de</strong>, frequência e duração dosmaus tratos, capacida<strong>de</strong> da vítima para se protegera si própria e condições físicas da pessoa antes docaso. Algumas formas <strong>de</strong> tortura não <strong>de</strong>ixam vestígiosfísicos, mas po<strong>de</strong>m dar origem a sintomasassociados a outros processos. Por exemplo, aspancadas na cabeça que provoquem perda <strong>de</strong>conhecimento po<strong>de</strong>m causar epilepsia pós-traumáticaou disfunções cerebrais orgânicas. Condições<strong>de</strong>ficientes <strong>de</strong> alimentação e higiene naprisão po<strong>de</strong>m provocar síndromes <strong>de</strong> carênciavitamínica.157. Certas formas <strong>de</strong> tortura estão fortementeassociadas a <strong>de</strong>terminadas sequelas em particular.Por exemplo, as pancadas na cabeça com perda <strong>de</strong>conhecimento são extremamente importantespara o diagnóstico clínico <strong>de</strong> disfunções cerebraisorgânicas. As sevícias sexuais estão frequentementeassociadas a disfunções sexuais.158. É importante não esquecer que os torcionáriospo<strong>de</strong>m tentar escon<strong>de</strong>r os seus actos. Paraevitar as marcas físicas dos espancamentos, a torturaé muitas vezes praticada com objectos largose contun<strong>de</strong>ntes, sendo as vítimas cobertas comtapetes ou calçadas, no caso da falanga, para distribuira força dos golpes. A tortura por estiramento,pressão ou asfixia tem também porobjectivo causar a máxima dor e sofrimento como mínimo <strong>de</strong> vestígios. Pela mesma razão, porvezes utilizam-se toalhas molhadas na tortura porchoques eléctricos.159. Do relatório <strong>de</strong>verão constar as qualificaçõese a experiência do investigador. Sempre que possível,<strong>de</strong>verá ser indicado o nome da testemunhaou paciente. Se isto implicar um risco significativopara a pessoa em causa, <strong>de</strong>verá ser usado um sistema<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação que permita à equipa <strong>de</strong>investigação, e só a ela, relacionar a pessoa com osfactos enunciados. O relatório <strong>de</strong>verá tambémi<strong>de</strong>ntificar quaisquer pessoas presentes na saladurante toda a entrevista ou parte <strong>de</strong>la. Deverá<strong>de</strong>screver em <strong>de</strong>talhe toda a história, evitando os<strong>de</strong>poimentos indirectos e incluir, se necessário,as conclusões da equipa <strong>de</strong> investigação. O relatório<strong>de</strong>verá impreterivelmente ser assinado e datado,nele <strong>de</strong>vendo também ser incluída qualquer <strong>de</strong>claraçãoexigida pela jurisdição a que é <strong>de</strong>stinado(vi<strong>de</strong> anexo IV).Consi<strong>de</strong>rações gerais para as entrevistas* 47


capítulo* 05Indícios físicos da tortura160. Os <strong>de</strong>poimentos da vítima e <strong>de</strong> testemunhassão elementos essenciais à documentação da tortura.A existirem inícios físicos, estes constituemdados importantes para a confirmação <strong>de</strong> tais<strong>de</strong>poimentos. Contudo, mesmo na ausência <strong>de</strong>indícios físicos, não <strong>de</strong>ve presumir-se que a torturanão ocorreu, uma vez que <strong>de</strong>terminados actos <strong>de</strong>violência contra pessoas muitas vezes não <strong>de</strong>ixamquaisquer marcas ou cicatrizes permanentes.161. Uma avaliação médica para fins legais <strong>de</strong>veráser conduzida com objectivida<strong>de</strong> e imparcialida<strong>de</strong>,com base nos conhecimentos clínicos e experiênciaprofissional do médico em causa. A obrigaçãoética <strong>de</strong> fazer o bem exige que o médico dê provasdo maior rigor e imparcialida<strong>de</strong>, assim promovendoe consolidando a reputação <strong>de</strong> toda a classe.Sempre que possível, o pessoal clínico que examinaos <strong>de</strong>tidos <strong>de</strong>ve receber formação específica nodomínio da documentação legal da tortura eoutras formas <strong>de</strong> maus tratos físicos e psicológicos.Deverão conhecer as condições prisionais e osmétodos <strong>de</strong> tortura utilizados na região on<strong>de</strong> opaciente esteve <strong>de</strong>tido, bem como as sequelashabituais da tortura. O relatório médico <strong>de</strong>ve serfactual e cuidadosamente redigido, <strong>de</strong>vendo evitar--se a gíria médica. Toda a terminologia médica<strong>de</strong>verá ser <strong>de</strong>finida em termos que permitam a suacompreensão por leigos. O médico não <strong>de</strong>verá partirdo princípio <strong>de</strong> que o funcionário que solicitaa realização do exame médico-legal relata todosos factos materiais. Constitui responsabilida<strong>de</strong> domédico <strong>de</strong>tectar e relatar quaisquer indícios materiaisque consi<strong>de</strong>re relevantes, mesmo que taisindícios possam ser consi<strong>de</strong>rados irrelevantes oucontrários aos interesses da parte que requer oexame. Os elementos indicativos da prática da torturaou outras formas <strong>de</strong> maus tratos não <strong>de</strong>vemjamais ser omitidos do relatório médico-legal,sejam quais forem as circunstâncias.a. Estrutura das entrevistas162. Os comentários seguintes aplicam-se sobretudoàs entrevistas a pessoas que já não se encontram<strong>de</strong>tidas. O local escolhido para a entrevista eexame <strong>de</strong>ve ser tão seguro e confortável quanto possível.Deve ser disponibilizado tempo suficiente parauma entrevista e exame aprofundados. Uma consulta<strong>de</strong> duas a quatro horas po<strong>de</strong> ser insuficientepara a avaliação dos indícios físicos e psicológicosda tortura. Para além disso, <strong>de</strong>terminadas variáveisespecíficas da situação, com a dinâmica da entrevista,sensação <strong>de</strong> impotência face à <strong>de</strong>vassa da suaintimida<strong>de</strong>, medo <strong>de</strong> novas perseguições, vergonhapelo sucedido e sentimentos <strong>de</strong> culpa do sobreviventepo<strong>de</strong>m, em qualquer momento da entrevista,simular as circunstâncias da experiência <strong>de</strong> tortura.Este fenómeno po<strong>de</strong> aumentar a ansieda<strong>de</strong> dopaciente e a sua resistência quanto a revelar aIndícios físicos da tortura* 49


informação pertinente. Po<strong>de</strong> ser necessário marcaruma segunda, e mesmo uma terceira, consultapara completar a avaliação.163. A confiança é fundamental para se conseguirobter um relato fi<strong>de</strong>digno <strong>de</strong> uma experiência<strong>de</strong> tortura. Para ganhar a confiança <strong>de</strong> alguémque foi vítima <strong>de</strong> tortura ou outras formas <strong>de</strong>maus tratos, há que saber escutar <strong>de</strong> forma activae <strong>de</strong>monstrar rigor na comunicação e cortesia,bem como uma empatia e honestida<strong>de</strong> genuínas.Os médicos <strong>de</strong>verão ser capazes <strong>de</strong> criar um clima<strong>de</strong> confiança que permita a revelação <strong>de</strong> factoscruciais, se bem que por vezes muito dolorosos ehumilhantes. É importante ter consciência <strong>de</strong> queestes factos constituem por vezes segredos íntimosque a pessoa po<strong>de</strong> estar a revelar naquelemomento pela primeira vez. Para além <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciarpor um ambiente confortável, tempo suficientepara a consulta, bebidas refrescantes eacesso a instalações sanitárias, os médicos <strong>de</strong>vemexplicar aos pacientes aquilo que estes <strong>de</strong>vemesperar da avaliação. O clínico <strong>de</strong>ve ter cuidado como tom, formulação e sequência das questões (as perguntassobre temas sensíveis apenas <strong>de</strong>vem sercolocadas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estabelecido um certo grau <strong>de</strong>confiança) e <strong>de</strong>vem reconhecer ao paciente odireito <strong>de</strong> fazer uma pausa se assim o <strong>de</strong>sejar ou<strong>de</strong> se recusar a respon<strong>de</strong>r a qualquer questão.164. Os médicos e intérpretes têm a obrigação <strong>de</strong>guardar sigilo quanto à informação recolhida e <strong>de</strong>a revelar apenas com o consentimento do paciente(vi<strong>de</strong> capítulo III, secção C). Cada pessoa <strong>de</strong>ve serexaminada individualmente e em privado. Deve serinformada <strong>de</strong> quaisquer limites à confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong>do exame eventualmente impostos pelasautorida<strong>de</strong>s administrativas ou judiciais. O objectivoda entrevista <strong>de</strong>ve ser claramente explicado àpessoa. Os médicos <strong>de</strong>vem assegurar-se <strong>de</strong> que oconsentimento se baseia numa informação correctae na clara compreensão das potenciais consequênciaspositivas e negativas da avaliaçãomédica, e é prestado voluntariamente, sem qualquercoacção <strong>de</strong> terceiros, em particular autorida<strong>de</strong>spoliciais ou judiciais. A pessoa tem o direito<strong>de</strong> recusar a avaliação. Neste caso, o clínico <strong>de</strong>veráapurar o motivo <strong>de</strong> tal recusa. Para além disso, sea pessoa se encontrar <strong>de</strong>tida, o relatório <strong>de</strong>veráser assinado pelo seu advogado e por outro profissional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.165. Os pacientes po<strong>de</strong>m temer que a informaçãorevelada no âmbito <strong>de</strong> um exame médico nãopossa ser mantida fora do alcance das autorida<strong>de</strong>sque os perseguem. A <strong>de</strong>sconfiança e o medopo<strong>de</strong>m ser particularmente agudos nos casos emque médicos ou outros profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>tenham participado nos actos <strong>de</strong> tortura. Em muitascircunstâncias, o médico que proce<strong>de</strong> ao exameserá membro da etnia ou cultura maioritária, aopasso que o paciente, na situação e local da entrevista,pertencerá provavelmente a um grupo oucultura minoritária. Esta dinâmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>po<strong>de</strong> reforçar a sensação, real ou imaginária,<strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e acentuar a eventual sensação<strong>de</strong> medo, <strong>de</strong>sconfiança e submissão forçadado paciente.166. A empatia e o contacto humano po<strong>de</strong>m seraquilo que <strong>de</strong> mais importante o recluso recebe doinvestigador. A investigação em si mesma po<strong>de</strong> nãotrazer qualquer benefício específico para a pessoaentrevistada, uma vez que, na maior parte doscasos, a tortura terá já terminado. A parca consolação<strong>de</strong> saber que a informação po<strong>de</strong> servir paraevitar casos futuros po<strong>de</strong>rá, contudo, ser gran<strong>de</strong>mentereforçada caso o investigador estabeleçauma sincera empatia com a vítima. Embora esteaspecto pareça óbvio, muitas vezes os investigadoresno terreno, ao visitar estabelecimentos prisionais,estão tão preocupados em obter informação que seesquecem <strong>de</strong> estabelecer empatia com as pessoasentrevistadas.b. Historial médico167. Obtenha um historial médico completo,incluindo informação sobre quaisquer problemasmédicos, cirúrgicos e psiquiátricos anteriores.Certifique-se <strong>de</strong> que regista todas as lesões sofridaspela pessoa antes da <strong>de</strong>tenção e suas possíveissequelas. Evite perguntas ten<strong>de</strong>nciosas. Estrutureas perguntas <strong>de</strong> forma a conseguir obter um relatoaberto e cronológico das experiências vividasdurante o período <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção.50*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


168. Para estabelecer uma correlação entre as práticasregionais <strong>de</strong> tortura e as alegações concretas<strong>de</strong> maus tratos, po<strong>de</strong> ser útil obter dados históricosespecíficos. Por exemplo, convém conhecer<strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> tortura, posiçõescorporais, métodos <strong>de</strong> imobilização e lesões ouincapacida<strong>de</strong>s agudas ou crónicas, bem comoqualquer informação susceptível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar osautores dos actos e os locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Emboraseja essencial obter informação precisa acerca dasexperiências vividas pelo sobrevivente <strong>de</strong> tortura,este <strong>de</strong>ve exprimir-se livremente, usando as suaspróprias palavras e evocando os acontecimentos àsua maneira. Uma pessoa que sobreviva a umaexperiência <strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong> ter dificulda<strong>de</strong>s emexprimir por palavras as suas próprias experiênciase sintomas. Em certos casos, po<strong>de</strong> ser convenienterecorrer a listagens ou questionários enunciativos<strong>de</strong> acontecimentos traumáticos e sintomas.Se o investigador consi<strong>de</strong>rar necessário recorrer aestas listagens ou questionários enunciativos <strong>de</strong>acontecimentos traumáticos e sintomas, existemdiversos mo<strong>de</strong>los disponíveis, embora nenhumespecificamente <strong>de</strong>stinado a vítimas <strong>de</strong> tortura.Todas as queixas <strong>de</strong> um sobrevivente <strong>de</strong> tortura sãosignificativas e <strong>de</strong>vem ser incluídas no relatório,mesmo que não revelem qualquer ligação com osindícios físicos observados. As incapacida<strong>de</strong>s esintomas crónicos e agudos associados a formasespecíficas <strong>de</strong> maus tratos, e subsequentes processos<strong>de</strong> cura, <strong>de</strong>vem ser documentados.1. SINTOMAS AGUDOS169. Deve ser pedido ao indivíduo que <strong>de</strong>screvaquaisquer lesões que possam ter resultado dosmétodos específicos utilizados para infligir os alegadosmaus tratos. Por exemplo, hemorragias,escoriações, tumefacções, feridas abertas, lacerações,fracturas, <strong>de</strong>slocações <strong>de</strong> membros, distensõesmusculares, hemoptises, pneumotórax, perfuraçõesdo tímpano, lesões do sistema genito-urinário,queimaduras (cor, bolhas e necroses conforme ograu da queimadura), lesões causadas por choqueseléctricos (tamanho e número <strong>de</strong> lesões, respectivacor e características superficiais), lesões químicas(cor, sinais <strong>de</strong> necrose), dor, entorpecimento, obstipaçãoe vómitos. Deverá tomar-se nota da intensida<strong>de</strong>,frequência e duração <strong>de</strong> cada sintoma.Deverá ser <strong>de</strong>scrito o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> quaisquerlesões cutâneas subsequentes, e indicado o facto <strong>de</strong>terem ou não <strong>de</strong>ixado cicatrizes. Pergunte qual oestado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do paciente no momento da libertação:podia andar ou estava acamado? Se estava acamado,por quanto tempo? Quanto tempo levaramas feridas a cicatrizar? Estavam infectadas? Quetratamento recebeu? Foi receitado por um médicoou curan<strong>de</strong>iro tradicional? Lembre-se <strong>de</strong> que a própriacapacida<strong>de</strong> da pessoa para respon<strong>de</strong>r a estas perguntaspo<strong>de</strong> ter sido comprometida pelo acto <strong>de</strong>tortura ou suas sequelas, <strong>de</strong>vendo registar-se estefacto.2. SINTOMAS CRÓNICOS170. Peça informação sobre eventuais distúrbiosfísicos que o indivíduo acredite estarem associadosà tortura ou aos maus tratos. Tome nota da gravida<strong>de</strong>,frequência e duração <strong>de</strong> cada sintoma e <strong>de</strong>qualquer tipo <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> que lhe possa estarassociada, bem como da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamentomédico ou psicológico. Mesmo que, <strong>de</strong>corridosmeses ou anos, já não se observem sintomas daslesões agudas, po<strong>de</strong>m subsistir algumas sequelasfísicas, como cicatrizes resultantes <strong>de</strong> queimaduraseléctricas ou térmicas, <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>s ósseas, cicatrizaçãoincorrecta <strong>de</strong> fracturas, lesões <strong>de</strong>ntárias,perda <strong>de</strong> cabelo e miofibroses. Entre as queixassomáticas mais frequentes contam-se as dores <strong>de</strong>cabeça, dores nas costas, problemas gastrointestinais,disfunções sexuais e dores musculares. São sintomaspsicológicos comuns, por exemplo, osestados <strong>de</strong>pressivos, ansieda<strong>de</strong>, insónias, pesa<strong>de</strong>los,ataques <strong>de</strong> pânico e dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> memória (vi<strong>de</strong>capítulo VI, secção B.2).3. RESUMO DA ENTREVISTA171. As vítimas <strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong>m apresentarlesões substancialmente diferentes das resultantes<strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> trauma. Embora algumas lesõesagudas possam ser típicas <strong>de</strong> certos tipos <strong>de</strong> tortura,a maioria <strong>de</strong>las cicatriza num período <strong>de</strong> seissemanas após o acto, não <strong>de</strong>ixando quaisquer marcasou, no máximo, <strong>de</strong>ixando marcas atípicas. Istoacontece frequentemente quando são utilizadasIndícios físicos da tortura* 51


técnicas <strong>de</strong>stinadas a evitar ou limitar os sinais<strong>de</strong>tectáveis da tortura. Nestas circunstâncias, oexame físico po<strong>de</strong>rá revelar um quadro clínicoaparentemente normal, mas este facto não nega <strong>de</strong>forma alguma as alegações <strong>de</strong> maus tratos. Umrelato pormenorizado das lesões agudas observadaspelo paciente e subsequente processo <strong>de</strong> cicatrizaçãorepresenta muitas vezes uma importantefonte <strong>de</strong> provas para corroborar alegações concretas<strong>de</strong> tortura ou maus tratos.c. Exame físico172. Depois <strong>de</strong> conhecidos os antece<strong>de</strong>ntes docaso e obtido o consentimento esclarecido dopaciente, <strong>de</strong>verá ser levado a cabo um exame físicocompleto por um médico qualificado. Sempre quepossível, <strong>de</strong>ve ser dada ao paciente a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> escolher o sexo do médico e, se necessário, dointérprete. Caso o médico não seja do mesmo sexoque o paciente, uma pessoa do mesmo sexo <strong>de</strong>ste<strong>de</strong>verá estar presente aquando do exame, a menosque a pessoa se oponha. O paciente <strong>de</strong>verá dar-seconta <strong>de</strong> que controla a situação e <strong>de</strong> que tem odireito <strong>de</strong> limitar a observação ou <strong>de</strong> a interrompera todo o momento (vi<strong>de</strong> capítulo IV, secção J).quer insuficiências <strong>de</strong>verão ser indicadas no relatório.O examinador <strong>de</strong>verá tomar nota <strong>de</strong> todas asobservações positivas e negativas relevantes,utilizando diagramas corporais para registar alocalização e natureza <strong>de</strong> todas as lesões (vi<strong>de</strong>anexo III). Algumas formas <strong>de</strong> tortura, como os choqueseléctricos e as contusões, po<strong>de</strong>rão ser no inícioin<strong>de</strong>tectáveis, mas tornar-se-ão patentes numsegundo exame realizado mais tar<strong>de</strong>. Embora raramenteseja possível fotografar as lesões dos reclusosem po<strong>de</strong>r dos seus torcionários, a fotografia<strong>de</strong>verá fazer parte da rotina <strong>de</strong> qualquer examemédico. Caso exista alguma máquina fotográficadisponível, será sempre preferível tirar fotografias<strong>de</strong> baixa qualida<strong>de</strong> a não tirar nenhumas.Depois, fotografias <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> profissional <strong>de</strong>verãoser realizadas logo que possível (vi<strong>de</strong> capítuloIII, secção C.5).1. PELE175. O exame <strong>de</strong>verá incidirO.V. Rasmussen, “Medical52 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong> aspects of torture” [emsobre a toda a superfície corporal,português: Aspectos médicosa fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar sinais <strong>de</strong> Medical Bulletin, 1990, 37da tortura], DanishSuplemento 1, pp. 1 a 88.patologias cutâneas generalizadas,nomeadamente sintomas minations in the police con-74 R.Bunting, “Clinical exa-<strong>de</strong> carência das vitaminas A, Btext” [em português:Exames clínicos em contexto173. Na presente secção, existem numerosas referênciasao encaminhamento para especialistas e ànecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exames complementares. A menose C, lesões anteriores à torturaou lesões resultantes <strong>de</strong>sta,como abrasões, contusões, lacerações,policial], ClinicalForensic Medicine, W.D.S.McLay, ed., Londres, GreenwichMedical Media, 1996,pp. 59 a 73.que o paciente se encontre <strong>de</strong>tido, é importante queos médicos tenham acesso a serviços <strong>de</strong> tratamentomédico e psicológico, para que todas asnecessida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ntificadas possam ser acompanhadas.Muitas vezes, não estarão disponíveis<strong>de</strong>terminados meios <strong>de</strong> diagnóstico, o que não<strong>de</strong>verá <strong>de</strong> forma alguma invalidar o relatório (vi<strong>de</strong>anexo II para mais <strong>de</strong>talhes quanto a possíveistestes <strong>de</strong> diagnóstico).perfurações, queimaduras <strong>de</strong> cigarros ou ins-trumentos aquecidos, choques eléctricos, alopeciae remoção <strong>de</strong> unhas. As lesões <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>verãoser <strong>de</strong>scritas em função da respectiva localização,simetria, forma, tamanho, cor e superfície (porexemplo, <strong>de</strong>scamativa, ulcerosa ou com crosta),bem como da sua <strong>de</strong>marcação e profundida<strong>de</strong> emrelação à pele circundante. A fotografia é essencial,sempre que possível. Por último, o examinador<strong>de</strong>verá dar o seu parecer quanto à origem das174. Caso o alegado acto <strong>de</strong> tortura seja recente eo paciente esteja ainda a usar as roupas que vestiano momento da prática do acto, essas roupaslesões: infligidas por terceiros ou provocadas pelopróprio, aci<strong>de</strong>ntais ou resultantes <strong>de</strong> um processopatológico 73 74 .<strong>de</strong>verão ser levadas para exame sem serem lavadas,<strong>de</strong>vendo ser provi<strong>de</strong>nciadas roupas limpas para apessoa vestir. Sempre que possível, a sala on<strong>de</strong>2. ROSTO<strong>de</strong>corre o exame <strong>de</strong>verá dispor da iluminação edo equipamento suficientes para o mesmo. Quais-176. Deve proce<strong>de</strong>r-se à palpação dos tecidosfaciais para <strong>de</strong>tectar indícios <strong>de</strong> fractura, crepita-


ção, tumefacção ou dor. Deverão ser examinadasas componentes motora e sensorial, incluindoolfacto e gosto, <strong>de</strong> todos os nervos cranianos. Atomografia computorizada (TC) – e não a simplesradiografia – constitui o melhor meio para diagnosticare caracterizar as fracturas faciais, <strong>de</strong>terminaro alinhamento ósseo e diagnosticar lesõese complicações associadas nos tecidos moles.Lesões intracranianas e da coluna cervical aparecemmuitas vezes associadas aos traumatismosfaciais.(a)Olhos177. Existem muitas formas diferentes <strong>de</strong> traumatismosoculares, incluindo hemorragias damembrana conjuntiva, <strong>de</strong>slocação do cristalino,hemorragias subhialói<strong>de</strong>s, retro-oculares e retinianase perda <strong>de</strong> campo visual. Dadas as gravesconsequências da falta <strong>de</strong> tratamento ou tratamentoina<strong>de</strong>quado, <strong>de</strong>verá provi<strong>de</strong>nciar-se pelarealização <strong>de</strong> uma consulta oftalmológica sempreque existam quaisquer suspeitas <strong>de</strong> traumatismoou doença ocular. A tomografia computorizada éo melhor meio <strong>de</strong> diagnóstico <strong>de</strong> fracturas orbitaise lesões dos tecidos moles com implicações aonível do globo ocular e tecidos retro-oculares. A imagemobtida por ressonância magnética nuclear(RMN) po<strong>de</strong> ser um complemento importantepara i<strong>de</strong>ntificar lesões nos tecidos moles. Os ultrasons<strong>de</strong> alta resolução constituem um métodoalternativo para a avaliação <strong>de</strong> traumatismos doglobo ocular.(b) Ouvidos178. Os traumatismos do aparelho auditivo, emespecial a ruptura da membrana do tímpano, sãoconsequências frequentes <strong>de</strong> golpes violentos. Oscanais auditivos e a membrana do tímpano <strong>de</strong>vemser examinados com um otoscópio, após o que se<strong>de</strong>screverão as lesões <strong>de</strong>tectadas. Uma formacomum <strong>de</strong> tortura, conhecida na América Latinacomo “telefone” consiste em esbofetear com forçauma ou ambas as orelhas, o que provoca umrápido aumento da pressão sobre o canal auditivo,levando a uma ruptura do tambor. É necessário queo exame se faça o mais rapidamente possível afim <strong>de</strong> conseguir <strong>de</strong>tectar rupturas do tímpanocom menos <strong>de</strong> dois milímetros <strong>de</strong> diâmetro, quepo<strong>de</strong>m sarar no prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z dias. Po<strong>de</strong>m eventualmenteobservar-se secreções no ouvido médioou externo. Caso a otorreia seja confirmada por análiseslaboratoriais, o paciente <strong>de</strong>verá ser submetidoa ressonância magnética ou tomografia computorizadaa fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar a localização da fractura.Deverá verificar-se se a pessoa sofre <strong>de</strong> perda <strong>de</strong>audição, utilizando métodos simples <strong>de</strong> avaliação.Se necessário, <strong>de</strong>verão realizar-se testes audiométricossob a direcção <strong>de</strong> um técnico <strong>de</strong> audiometriaqualificado. A melhor forma <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r aoexame radiográfico <strong>de</strong> fracturas do osso temporalou rupturas da ca<strong>de</strong>ia ossicular consiste emsubmeter o paciente, <strong>de</strong> preferência, a uma tomografiacomputorizada, <strong>de</strong>pois a tomografia hipociclóidale, por último, a tomografia linear.(c)Nariz179. No exame do nariz, <strong>de</strong>verá ter-se em atençãoo respectivo alinhamento, crepitação e <strong>de</strong>svio dosepto nasal. No caso <strong>de</strong> fracturas nasais simples,as radiografias nasais normais <strong>de</strong>verão ser suficientes.Para fracturas nasais complexas e sempreque o septo cartilagíneo esteja <strong>de</strong>slocado, <strong>de</strong>verá realizar-seuma tomografia computorizada. Caso opaciente apresente sintomas <strong>de</strong> rinorreia, recomenda-sea realização <strong>de</strong> uma tomografia computorizadaou ressonância magnética.(d) Queixo, orofaringe e pescoço180. Os espancamentos po<strong>de</strong>m dar origem afracturas ou <strong>de</strong>slocações maxilares. A síndromeda articulação temporo-maxilar é uma consequênciafrequente <strong>de</strong> pancadas na parte inferiorda face e no pescoço. Dever-se-ão procurar indícios<strong>de</strong> crepitação do osso hiói<strong>de</strong> ou das cartilagenslaríngeas em resultado <strong>de</strong> pancadas nopescoço. As observações relativas à orofaringe<strong>de</strong>verão ser registadas com todo o pormenor,incluindo a <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> lesões eventualmenteresultantes <strong>de</strong> queimaduras por choques eléctricosou outros traumatismos. A hemorragia gengivale o estado das gengivas <strong>de</strong>verão também serregistados.Indícios físicos da tortura* 53


75 O.V. Rasmussen, “Medical(e) Cavida<strong>de</strong> oral e <strong>de</strong>ntes<strong>de</strong>tenção e é frequente que se <strong>de</strong>senvolvam novosdistúrbios respiratórios.181. Os <strong>de</strong>tidos <strong>de</strong>verão ser periodicamente examinadospor um médico <strong>de</strong>ntista, no âmbito dos 4. SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICOcontrolos sanitários regulares a que <strong>de</strong>vem sersubmetidos. Os exames <strong>de</strong>ntários são muitas 183. As queixas <strong>de</strong> dores músculo-esqueléticas54 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong>Aspects of torture” [emsão muito português: “Aspectos Médi-vezes negligenciados, mas constituem uma parteimportante do exame físico. Os cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><strong>de</strong>ntária po<strong>de</strong>m ser propositadamente negados acomuns nos sobreviventes <strong>de</strong>tortura 75 . Po<strong>de</strong>m ser causadascos da Tortura”], DanishMedical Bulletin, 37 Suplemento1, 1990, pp. 1 a 88(vi<strong>de</strong> nota 73, supra).fim <strong>de</strong> permitir o agravamento <strong>de</strong> cáries, gengivitese abcessos <strong>de</strong>ntários. Deverá ser solicitado o his-suspensão, outras formas <strong>de</strong> effects of torture” [em por-por espancamentos sucessivos,D. Forrest, “Examinationfor the late physical aftertuguês: “Exame para <strong>de</strong>tecçãodas sequelas tardias <strong>de</strong>torial odontológico completo da pessoa e tortura posicional ou resultaremdas condições gerais <strong>de</strong> cal Forensic Medicine, 6,tortura”], Journal of Clini-requerida a apresentação dos registos <strong>de</strong>ntários,caso existam. As pancadas directas ou a tortura à <strong>de</strong>tenção 76 1999, pp. 4 a 13.. Po<strong>de</strong>m também terVi<strong>de</strong> nota 75, supra.base <strong>de</strong> choques eléctricos po<strong>de</strong>m arrancar ou partirorigem psicossomática (vi<strong>de</strong><strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>slocar os produtos <strong>de</strong> obturação <strong>de</strong>n-tária ou partir próteses. Dever-se-á tomar nota dapresença <strong>de</strong> cáries e gengivites. Uma <strong>de</strong>ntição <strong>de</strong>má qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> resultar <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção<strong>de</strong>ficientes ou ser anterior à <strong>de</strong>tenção. A cavida<strong>de</strong>oral <strong>de</strong>verá ser cuidadosamente examinada.Durante uma sessão <strong>de</strong> tortura eléctrica, a vítimapo<strong>de</strong> mor<strong>de</strong>r a língua, gengivas ou lábios. Aslesões po<strong>de</strong>m ter sido causadas pela introdução forçada<strong>de</strong> objectos e materiais na boca, bem como pelaaplicação da corrente eléctrica. Sugere-se a utilização<strong>de</strong> Raios-X e ressonâncias magnéticas para <strong>de</strong>terminara extensão das lesões nos tecidos moles,maxilares e <strong>de</strong>ntes.capítulo VI, secção B.2). Embora constituam sintomasatípicos, <strong>de</strong>verão ser documentadas e emgeral respon<strong>de</strong>m bem à fisioterapia a<strong>de</strong>quada 77 .O exame físico do esqueleto <strong>de</strong>verá incluir testesà mobilida<strong>de</strong> das articulações, coluna vertebral eextremida<strong>de</strong>s. Dever-se-á tomar nota da presença<strong>de</strong> qualquer sensação <strong>de</strong> dor associada ao movimento,contracção e pressão, bem como <strong>de</strong> indícios<strong>de</strong> síndromes localizadas, fracturas com ou sem<strong>de</strong>formação e <strong>de</strong>slocações. As suspeitas <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocações,fracturas e osteomielites <strong>de</strong>verão ser confirmadasmediante o recurso a radiografias. Casose suspeite <strong>de</strong> osteomielite, às radiografias <strong>de</strong>rotina <strong>de</strong>ver-se-á seguir uma cintigrafia óssea em3. PEITO E ABDÓMENtrês fases. Para a avaliação das lesões nos tendões,ligamentos e músculos, o melhor método é a ressonânciamagnética, mas po<strong>de</strong> também efectuar-182. A observação do tronco <strong>de</strong>verá ter por objectivos,para além da verificação da existência <strong>de</strong>lesões na pele, a <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> zonas doridas, sensibilizadasou <strong>de</strong>sconfortáveis que tenham subjacenteslesões nos músculos, costelas ou órgãosabdominais. O examinador <strong>de</strong>verá ter presente apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existirem hematomas intramusculares,retroperitoneais e intra-abdominais, bemcomo <strong>de</strong> laceração ou ruptura <strong>de</strong> qualquer órgãointerno. Deverá recorrer-se à ultra-sonografia,tomografia computorizada e cintigrafia óssea, se-se uma artrografia. Na fase aguda, po<strong>de</strong>r-se-ão<strong>de</strong>tectar eventuais hemorragias e rupturas musculares.Em geral, os músculos saram completamentesem <strong>de</strong>ixar cicatrizes; por isso, quaisquer estudos imagiológicostardios darão resultados negativos. Naressonância magnética e tomografia computorizada,os músculos <strong>de</strong>svitalizados e síndromes localizadascrónicas surgem como fibroses musculares.As lesões ósseas po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>tectadas através <strong>de</strong> ressonânciamagnética ou cintigrafia. Em geral, aslesões ósseas saram sem <strong>de</strong>ixar vestígios.disponíveis na prática, para confirmar este tipo<strong>de</strong> lesões. Devem realizar-se os exames <strong>de</strong> rotina 5. SISTEMA GENITO-URINÁRIOdo sistema cardiovascular, pulmões e abdómen, daforma habitual. As patologias respiratórias préexistentesten<strong>de</strong>m a agravar-se nas situações <strong>de</strong>184. O exame ginecológico <strong>de</strong>verá realizar-se apenascom o consentimento expresso do paciente


para esse fim em concreto e, se necessário, <strong>de</strong>veráser adiado para uma sessão posterior. Caso médicoe paciente pertençam a sexos diferentes, uma pessoado mesmo sexo do último <strong>de</strong>verá estar presente.Para mais informação, vi<strong>de</strong> o capítulo IV, secção J.Vi<strong>de</strong> a secção D.8 para mais informação relativa aoexame das vítimas <strong>de</strong> agressão sexual. Para a<strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> traumatismos genito-urinários, po<strong>de</strong>recorrer-se à ultra-sonografia ou cintigrafia dinâmica.6. SISTEMAS NERVOSOS CENTRAL E PERIFÉRICO185. O exame neurológico <strong>de</strong>verá avaliar osnervos craneanos, órgãos sensoriais e sistema nervosoperiférico, procurando indícios <strong>de</strong> neuropatiasmotoras e sensoriais associadas ao possíveltraumatismo, carências vitamínicas ou doenças.Dever-se-á também avaliar a capacida<strong>de</strong> cognitivae o estado mental da pessoa (vi<strong>de</strong> capítulo VI, secçãoC). No caso <strong>de</strong> pacientes que alegam terem sidosujeitos a tortura por suspensão, há que prestarespecial atenção aos sintomas <strong>de</strong> lesão do plexo braquial(assimetria na força manual, paralisia damão, fraqueza nos braços acompanhada <strong>de</strong> variaçõesnos reflexos sensoriais e tendinosos). Os traumatismosassociados à tortura po<strong>de</strong>m provocarradiculopatias e outras neuropatias, <strong>de</strong>ficiências nosnervos cranianos, hiperalgesia, parestesia, hiperestesiae alterações da postura, sensibilida<strong>de</strong> aocalor, função motora, marcha e coor<strong>de</strong>nação. Ospacientes com sintomas <strong>de</strong> vertigens e vómitos<strong>de</strong>verão ser sujeitos a exame vestibular a fim <strong>de</strong><strong>de</strong>tectar indícios <strong>de</strong> nistagmo. A avaliação radiológica<strong>de</strong>verá incluir a realização <strong>de</strong> ressonânciamagnética ou tomografia computorizada. A ressonânciamagnética é preferível à tomografia computorizadapara fins <strong>de</strong> avaliação radiológica docérebro e fossas posteriores.d. Exame e avaliação subsequentesa formas específicas <strong>de</strong> tortura186. As consi<strong>de</strong>rações que se seguem não preten<strong>de</strong>manalisar exaustivamente todas as formas<strong>de</strong> tortura, <strong>de</strong>stinando-se antes a <strong>de</strong>screver emmais pormenor os aspectos médicos <strong>de</strong> muitasdas formas <strong>de</strong> tortura mais comuns. O médico<strong>de</strong>verá indicar, relativamente a cada lesão e a todoo conjunto <strong>de</strong> lesões, o grau <strong>de</strong> correspondênciaentre a mesma e a causa indicada pelo paciente.Em geral, utiliza-se a seguinte terminologia:a) Não correspon<strong>de</strong>nte: a lesão não po<strong>de</strong> tersido causada pelo traumatismo <strong>de</strong>scrito;b) Correspon<strong>de</strong>nte: a lesão po<strong>de</strong> ter sido causadapelo traumatismo <strong>de</strong>scrito mas, sendo umalesão atípica, existem outras causas possíveis;c) Correspondência altamente provável: a lesãopo<strong>de</strong> ter sido causada pelo traumatismo <strong>de</strong>scritoe existem poucas causas possíveis alternativas;d) Correspondência típica: o sintoma aparecegeralmente associado ao tipo <strong>de</strong> traumatismo <strong>de</strong>scrito,mas existem outras causas possíveis;e) Diagnóstico <strong>de</strong>: o sintoma não po<strong>de</strong> ter sidocausado <strong>de</strong> qualquer outra forma senão a <strong>de</strong>scrita.187. Em última análise, o que importa fazer paraconfirmar a veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um relato <strong>de</strong> tortura éa avaliação geral <strong>de</strong> todas as lesões, e não a correspondência<strong>de</strong> cada lesão com <strong>de</strong>terminadaforma <strong>de</strong> tortura em particular (vi<strong>de</strong> capítulo IV,secção G para uma listagem dos métodos <strong>de</strong> tortura).1. ESPANCAMENTOS E OUTRAS CONTUSÕES(a) Lesões cutâneas188. Lesões agudas são frequentemente característicasda tortura, porque se apresentam sob formasparticulares que as distinguem das lesõesaci<strong>de</strong>ntais, por exemplo <strong>de</strong>vido à sua forma, repetiçãoe distribuição ao longo do corpo. Uma vez quea maioria das lesões sara num período <strong>de</strong> seissemanas, não <strong>de</strong>ixando quaisquer marcas ou <strong>de</strong>ixandoapenas marcas não específicas, um relatotípico <strong>de</strong> lesões agudas e sua evolução até à curatotal po<strong>de</strong>rá ser o único elemento confirmativo <strong>de</strong>uma alegação <strong>de</strong> tortura. As alterações permanentesna pele provocadas por contusões sãopouco frequentes, atípicas e geralmente sem significadopara fins <strong>de</strong> diagnóstico. Uma zona linearque se esten<strong>de</strong> em círculos em torno dos braços oudas pernas, em geral nos pulsos ou tornozelos, égeralmente uma sequela <strong>de</strong> violência contun<strong>de</strong>nteIndícios físicos da tortura* 55


e indica a aplicação prolongada <strong>de</strong> ligaduras apertadas.Esta zona aparece quase <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> pêlos <strong>de</strong>saparece. É, contudo, muito Ihlalleri ve Hekimque finalmente o hematomaS. Gürpinar e S. KorurFincanci, “Insan HaklariSorumlulgu” [Violações <strong>de</strong>ou folículos pilosos e será provavelmente uma difícil estabelecer com exactidão Direitos Humanos eResponsabilida<strong>de</strong> doforma <strong>de</strong> alopecia cicatricial. Não existe qualquer a data da ocorrência das contusões.Em <strong>de</strong>terminados tipos <strong>de</strong> [Manual <strong>de</strong> Medicina LegalMédico], Birinci BasamakIçin Adli Tip El Kitabidiagnóstico alternativo <strong>de</strong> patologia cutânea espontâneae é difícil imaginar que um traumatismo pele, po<strong>de</strong>m dar origem a hiper- Geral], Ankara, Associaçãopara Médicos <strong>de</strong> ClínicaMédica Turca, 1999.<strong>de</strong>sta natureza possa ocorrer na vida quotidiana. -pigmentação, que po<strong>de</strong> durar56 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong> anos. Os hematomas que se formam nos tecidos189. No que concerne às lesões agudas, as abrasõesresultantes <strong>de</strong> lesões provocadas pela raspagemsuperficial da pele po<strong>de</strong>m apresentar-se soba forma <strong>de</strong> arranhões, queimaduras por contactoou escoriações <strong>de</strong> maior dimensão. Por vezes,as abrasões po<strong>de</strong>m apresentar um padrão quereflecte os contornos do objecto ou superfície queprovocou a lesão. As abrasões repetidas ou profundaspo<strong>de</strong>m criar áreas <strong>de</strong> hipo ou hiper-pigmentação,subcutâneos po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>morar dias a manifestar-se,até que o sangue <strong>de</strong>rramado atinja a superfície. Casoa vítima alegue ter sido torturada mas não apresentesinais <strong>de</strong> contusão, <strong>de</strong>ve voltar a ser examinada passadosalguns dias. Dever-se-á ter em consi<strong>de</strong>raçãoque a posição final e o formato dos hematomas nãoguardam necessariamente relação com o traumatismooriginal e que algumas lesões po<strong>de</strong>m ter-se<strong>de</strong>svanecido na altura do novo exame 78 .<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> pele. Istoacontece no interior dos pulsos se as mãos tiveremsido atadas com força.190. As contusões e hematomas revelam hemorragiasnos tecidos internos <strong>de</strong>vido à ruptura dos191. As lacerações, rasgões ouesmagamentos da pele e tecidosmoles subjacentes, pela pressão<strong>de</strong> pancadas violentas, aparecemsobretudo nas partes protuberantes79 O.V. Rasmussen,“Medical Aspects ofTorture” [Em português:“Aspectos Médicos daTortura”], Danish MedicalBulletin, 37 Suplemento 1,1990, pp. 1 a 88 (vi<strong>de</strong>nota 73).vasos sanguíneos resultante <strong>de</strong> um traumatismo.A extensão e gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma contusão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m,não apenas da força aplicada, mas também daestrutura e vascularização do tecido atingido. Ascontusões ocorrem com maior facilida<strong>de</strong> nas áreason<strong>de</strong> a pele é mais fina e recobre um osso ou emzonas <strong>de</strong> tecido gordo. Muitos problemas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, nomeadamente carências vitamínicas edo corpo, uma vez que a pele écomprimida entre o objecto contun<strong>de</strong>nte e asuperfície do osso <strong>de</strong>baixo dos tecidos subcutâneos.Contudo, se for aplicada força suficiente a pelepo<strong>de</strong> arrancar-se em qualquer parte do corpo.Cicatrizes assimétricas ou em locais pouco habituais,assim como uma extensão difusa <strong>de</strong> cicatrizes,indicam lesões <strong>de</strong>liberadas 79 .nutricionais, po<strong>de</strong>m facilitar o aparecimento <strong>de</strong>hematomas ou nódoas negras. As contusões eabrasões indicam que uma violenta pressão foiexercida sobre a área lesionada, mas a sua ausêncianão significa, contudo, que não tenha havido192. As cicatrizes resultantes<strong>de</strong> chicotadas representam laceraçõessaradas. Estas cicatrizessão <strong>de</strong>spigmentadas e muitas80 L. Danielsen, “Skin changesafter torture” [em português:Alterações cutâneassubsequentes à tortura],Torture, Suplemento 1,1992, pp. 27 e 28.violência. As contusões po<strong>de</strong>m apresentar umpadrão <strong>de</strong>finido que reflecte os contornos doobjecto utilizado. Por exemplo, os paus ou bastões<strong>de</strong>ixam em geral uma série <strong>de</strong> marcas <strong>de</strong>forma alongada. A forma do objecto po<strong>de</strong> tambémser inferida a partir do formato da lesão. Àmedida que os hematomas regri<strong>de</strong>m, vão apresentandouma série <strong>de</strong> cambiantes <strong>de</strong> cor. A maiorparte começa por apresentar uma cor azul escura,vezes hipertróficas, ro<strong>de</strong>adas por listas estreitas ehiper-pigmentadas. O único diagnóstico alternativoé a <strong>de</strong>rmatite plantar, mas nela domina a hiper-pigmentaçãoe as cicatrizes são mais curtas. Pelo contrário,as marcas lineares simétricas, atróficas e<strong>de</strong>spigmentadas no abdómen, axilas e pernas, quemuitas vezes se alegam serem sequelas <strong>de</strong> tortura,representam estrias <strong>de</strong> distensão e não estãonormalmente relacionadas com a tortura 80 .púrpura ou carmim. Conforme a hemoglobina<strong>de</strong>saparece, a cor vai mudando gradualmente paravioleta, ver<strong>de</strong>, amarelo escuro ou amarelo claro, até193. As queimaduras são a forma <strong>de</strong> tortura quecom mais frequência <strong>de</strong>ixa marcas permanentes na


pele. Por vezes, tais marcas têm81 Vi<strong>de</strong> nota 80.valor <strong>de</strong> diagnóstico. As queimaduras<strong>de</strong> cigarro <strong>de</strong>ixam muitas vezes cicatrizesmaculares com 5 a 10 milímetros <strong>de</strong> diâmetro,circulares ou ovais, caracterizadas por um centrohiper ou hipo-pigmentado e periferia hiper-pigmentadae relativamente indistinta. Surgem também<strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> tentativas <strong>de</strong> apagar tatuagenscom cigarros em cenários <strong>de</strong> tortura. A formacaracterística da cicatriz daí resultante, bem comoquaisquer vestígios da tatuagem que permaneçam,auxiliarão no diagnóstico 81 . As queimadurascom objectos quentes provocam cicatrizes marcadamenteatróficas que reflectem a forma do instrumentoutilizado e se apresentam claramente<strong>de</strong>marcadas por zonas marginais estreitas hiper--tróficas ou hiper-pigmentadas que correspon<strong>de</strong>ma uma zona <strong>de</strong> inflamação inicial. Estes sintomaspo<strong>de</strong>m, por exemplo, ser observados <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>queimaduras infligidas com uma barra <strong>de</strong> metalelectricamente aquecida ou isqueiro a gás. A presença<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> cicatrizes <strong>de</strong>ste tipoten<strong>de</strong> a confirmar o diagnóstico <strong>de</strong> tortura. Osprocessos inflamatórios espontâneos não apresentama zona marginal característica e raramenteocasionam uma perda significativa <strong>de</strong> tecido. Asqueimaduras po<strong>de</strong>m dar origem a cicatrizes hiper--tróficas ou quelói<strong>de</strong>s, nomeadamente se infligidascom borracha a ferver.194. Quando a matriz da unha é queimada, aunha que <strong>de</strong>pois cresce vem estriada, fina e <strong>de</strong>formada,por vezes partida em segmentos longitudinais.Caso a unha tenha sido arrancada, po<strong>de</strong>acontecer um crescimento excessivo dos tecidos emredor que dá origem à formação <strong>de</strong> um pterígio.As alterações da unha causadas por lichen planusconstituem o único diagnóstico alternativo, mas surgemgeralmente acompanhadas <strong>de</strong> lesões cutâneasgeneralizadas. Por outro lado, as infecções porfungos caracterizam-se por unhas mais grossas,amareladas e quebradiças, diferentes das alteraçõesacima referidas.195. As lesões traumáticas penetrantes acontecemquando a pele é cortada com um objectoafiado, por exemplo uma faca, baioneta ou vidropartido, e incluem lesões resultantes <strong>de</strong> punhaladas,incisões ou cortes, bemcomo lesões perfurantes. Emgeral, a sua aparência no estadoagudo distingue-se facilmentedo aspecto rasgado e irregular <strong>de</strong>lacerações e cicatrizes encontradasmais tar<strong>de</strong> e que po<strong>de</strong>m ser distintas. Casosurjam padrões regulares <strong>de</strong> pequenas cicatrizes<strong>de</strong> incisão, estas po<strong>de</strong>m ter sido provocadas porcuran<strong>de</strong>iros tradicionais 82 . Se, em feridas abertas,forem aplicadas substâncias nocivas, como apimenta, as cicatrizes po<strong>de</strong>m tornar-se hiper-tróficas.Um conjunto <strong>de</strong> cicatrizes assimétricas e <strong>de</strong>diferentes tamanhos constitui um indício provável<strong>de</strong> tortura.(b) Fracturas196. As fracturas provocam uma perda da integrida<strong>de</strong>óssea <strong>de</strong>vido à acção <strong>de</strong> força mecânica contun<strong>de</strong>ntesobre diversos planos vectoriais. Asfracturas directas produzem-se no local doimpacto ou no local on<strong>de</strong> a força é aplicada. Alocalização, contorno e outras características dafractura reflectem a natureza e direcção da forçaaplicada. Por vezes, é possível distinguir a fracturaaci<strong>de</strong>ntal da provocada pela sua imagem radiológica.Para <strong>de</strong>terminar a antiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma fracturarelativamente recente, <strong>de</strong>ver-se-á recorrer a umradiologista especializado em traumatologia.Deverão evitar-se os juízos especulativos na avaliaçãoda natureza e antiguida<strong>de</strong> das lesões traumáticas,uma vez que estas po<strong>de</strong>m variar emfunção da ida<strong>de</strong>, sexo, características dos tecidos,situação e estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da pessoa, bem comoda gravida<strong>de</strong> do traumatismo. Por exemplo, aspessoas jovens, bem constituídas e <strong>de</strong> musculaturarobusta são mais resistentes aos golpes do que osindivíduos mais velhos e frágeis.(c)Traumatismos cranianos82 D. Forrest, “Examinationfor the late physical aftereffects of torture” [Em português:“Exame para <strong>de</strong>tecçãodas sequelas físicastardias da tortura”], Journalof Clinical Forensic Medicine,6, 1999, pp. 4 a 13(vi<strong>de</strong> nota 76).197. Os traumatismos cranianos constituem umadas mais comuns formas <strong>de</strong> tortura. Em caso <strong>de</strong>traumatismos cranianos recorrentes, mesmo quenem todos sejam <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, é <strong>de</strong>esperar que se produza atrofia cortical e lesõesaxonais difusas. Nos casos <strong>de</strong> traumatismos pro-Indícios físicos da tortura* 57


vocados por quedas, po<strong>de</strong>m por vezes observar-selesões por contra-golpe (localizadas na zona opostaà do choque). Pelo contrário, nos traumatismosdirectos as lesões verificam-se directamente<strong>de</strong>baixo da zona atingida. Os hematomas no courocabeludo são frequentemente invisíveis a olho nua menos que haja formação <strong>de</strong> e<strong>de</strong>ma. Os hematomaspo<strong>de</strong>m ser difíceis <strong>de</strong> observar em pessoas<strong>de</strong> pele escura, mas serão sensíveis à palpação.198. As pessoas expostas a pancadas na cabeçapo<strong>de</strong>m queixar-se <strong>de</strong> cefaleias constantes. Estassão frequentemente somáticas mas po<strong>de</strong>m tambémter uma origem cervical (vi<strong>de</strong> secção C, supra).A vítima po<strong>de</strong> queixar-se <strong>de</strong> dores quando tocadanessa área, po<strong>de</strong>ndo também <strong>de</strong>tectar-se uminchaço difuso ou localizado, ou um aumento <strong>de</strong>rigi<strong>de</strong>z, através da palpação do couro cabeludo.As cicatrizes estarão presentes caso tenham ocorridolacerações no couro cabeludo. As cefaleiaspo<strong>de</strong>rão ser um sintoma inicial <strong>de</strong> hematoma subduralem expansão. Po<strong>de</strong>rão estar associadas àalteração súbita do estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental,<strong>de</strong>vendo por isso submeter-se o paciente a tomografiacomputorizada com a máxima urgência.Em geral, os e<strong>de</strong>mas e hemorragias nos tecidosmoles são <strong>de</strong>tectáveis através <strong>de</strong> tomografia computorizadaou ressonância magnética. Po<strong>de</strong> tambémser conveniente provi<strong>de</strong>nciar pela realização<strong>de</strong> uma avaliação psicológica ou neuro-psíquica(vi<strong>de</strong> capítulo VI, secção C.4).199. Os abanões fortes utilizados como forma <strong>de</strong>tortura po<strong>de</strong>m provocar danos cerebrais sem <strong>de</strong>ixarquaisquer marcas externas, embora se possaregistar a presença <strong>de</strong> escoriações na parte superiordo tórax ou nos ombros, nos locais on<strong>de</strong> avítima ou o seu vestuário tenha sido agarrado. Noscasos mais extremos, os abanões po<strong>de</strong>m produzirlesões semelhantes às observadas na “síndrome dobebé sacudido”: e<strong>de</strong>mas cerebrais, hematomassubdurais e hemorragias retinianas. Nos casosmais comuns, as vítimas queixam-se <strong>de</strong> cefaleiascontínuas, <strong>de</strong>sorientação ou alterações mentais.As sessões <strong>de</strong> tortura por abanão são em geralbreves, durando apenas alguns minutos ou menosque isso, mas po<strong>de</strong>m repetir-se muitas vezes aolongo <strong>de</strong> dias ou semanas.(d) Traumatismos torácicos e abdominais200. As fracturas <strong>de</strong> costelas são uma consequênciafrequente das pancadas no peito. A <strong>de</strong>slocaçãodas costelas po<strong>de</strong> provocar a laceração dospulmões e eventual pneumotórax. A fractura dospedículos vertebrais po<strong>de</strong> resultar da aplicaçãodirecta dos golpes.201. Nos casos <strong>de</strong> traumatismo abdominal agudo,o exame físico <strong>de</strong>verá procurar indícios <strong>de</strong> lesõesnos órgãos abdominais e sistema urinário. Contudo,os resultados são em geral negativos. Uma hematúriaabundante constitui o sintoma mais significativo<strong>de</strong> contusão renal. Uma lavagem peritonealpo<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar hemorragias abdominais ocultas.Os <strong>de</strong>rrames abdominais <strong>de</strong>tectados por tomografiacomputorizada após a lavagem peritonealpo<strong>de</strong>m resultar da própria lavagem ou <strong>de</strong> hemorragia,o que invalida o diagnóstico. Na tomografiacomputorizada, a hemorragia abdominal aguda égeralmente iso-intensa ou apresenta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>aquosa, ao contrário da hemorragia do sistemanervoso central, que é hiper-intensa. As lesõesorgânicas po<strong>de</strong>m manifestar-se através da presença<strong>de</strong> ar, fluído extra-luminar ou zonas <strong>de</strong> baixaatenuação, que representam e<strong>de</strong>mas, contusões,hemorragias ou lacerações. O e<strong>de</strong>ma peripancreáticoé um dos sintomas <strong>de</strong> pancreatite aguda<strong>de</strong> origem traumática e não traumática. Os ultrasonssão particularmente indicados para a <strong>de</strong>tecção<strong>de</strong> hematomas sub capsulares do baço. Osespancamentos graves po<strong>de</strong>m provocar insuficiênciarenal aguda em consequência da síndrome<strong>de</strong> esmagamento. A hipertensão renal po<strong>de</strong> seruma complicação tardia das lesões renais.2. ESPANCAMENTO DOS PÉS202. “Falanga” é o termo mais utilizado para<strong>de</strong>signar o espancamento repetido dos pés (ou,mais raramente, das mãos ou ancas), em geralaplicado com um bastão, pedaço <strong>de</strong> cano ou armasemelhante. A mais grave complicação da falangaé a síndrome compartimental, que po<strong>de</strong> causarnecrose muscular, obstrução vascular ou gangrenada porção distal do pé ou <strong>de</strong>dos dos pés. As <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>spermanentes dos pés são raras mas acon-58*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


tecem, assim como as fracturasdo tarso, metatarso e falanges.Uma vez que, em geral, aslesões atingem apenas os tecidosmoles, a tomografia computorizadaou ressonância magnéticasão as melhores técnicas <strong>de</strong>exame radiológico, mas <strong>de</strong>vesalientar-se que, durante a faseaguda da doença, o exame físico<strong>de</strong>verá permitir um diagnósticoclaro. A falanga po<strong>de</strong> originarincapacida<strong>de</strong> crónica. Po<strong>de</strong> tornara marcha dolorosa e difícil.Os ossos do tarso po<strong>de</strong>m ficarfixos (espásticos) ou exageradamentemóveis. A pressão sobrea planta (sola) do pé e a flexãodorsal do <strong>de</strong>do gran<strong>de</strong> do pépo<strong>de</strong>m causar dor. À palpação, a83 G. Sklyv, “Physical sequelaeof torture” [em português:Sequelas físicas datortura], Torture and itsconsequences, currenttreatment approaches, M.Ba_o_lu, ed., Cambridge,Cambridge University Press,1992, pp. 38 a 55.84 D. Forrest, “Examinationfor the late physical aftereffects of torture” [Em português:“Exame para <strong>de</strong>tecçãodas sequelas físicastardias da tortura”], Journalof Clinical Forensic Medicine,6, 1999, pp. 4 a 13(vi<strong>de</strong> nota 76).85 K. Prip, L. Tived, N. Holten,Physiotherapy for TortureSurvivors: A BasicIntroduction [em português:“Fisioterapia paraSobreviventes <strong>de</strong> Tortura:Introdução Básica”], Copenhaga,IRCT, 1995.86 F. Bojsen-Moller e K.E.Flagstad, “Plantar aponeurosisand plantar architectureof the ball of the foot”[em português: Aponevroseplantar e arquitectura plantarda bola do pé], Journalof Anatomy, 121, 1996,pp. 599 a 611.aponevrose plantar po<strong>de</strong> revelar-se anormalmentemole e haver ruptura dos ligamentos distais daaponevrose, parcialmente na base das falangesproximais e parcialmente na pele. Nesta situação,a aponevrose per<strong>de</strong> a sua flexibilida<strong>de</strong> normal, tornandoo andar difícil e po<strong>de</strong>ndo originar fadigamuscular. A extensão passiva do <strong>de</strong>do gran<strong>de</strong> dopé po<strong>de</strong> revelar se houve ou não ruptura da aponevrose.Se estiver intacta, sentir-se-á o início datensão na aponevrose mediante palpação com o<strong>de</strong>do gran<strong>de</strong> em flexão dorsal a 20 graus; amáxima extensão normal é <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 70 graus.Valores mais altos sugerem lesões nos ligamentosda aponevrose 83 84 85 86 . Por outro lado, flexão dorsallimitada e dor na hiper-extensão do <strong>de</strong>dogran<strong>de</strong> são sintomas <strong>de</strong> hallux rigidus, que resulta<strong>de</strong> osteófito dorsal numa ou em ambas as primeirascabeças do primeiro metatarso ou na baseda falange proximal.203. Po<strong>de</strong>m ocorrer numerosas complicações esíndromes:a) Síndrome compartimental: é a complicaçãomais grave. Um e<strong>de</strong>ma num compartimentofechado provoca obstrução vascular e necrosemuscular, o que po<strong>de</strong> dar origem a fibroses, contracçãoou gangrena na parte distal do pé ou nos<strong>de</strong>dos. É geralmente diagnosticado através damedição das pressões no compartimento;b) Esmagamento do calcanhar e almofadasanteriores: as almofadas elásticas sob o calcâneoe falanges proximais são esmagadas durante afalanga, quer directamente quer em resultado <strong>de</strong>e<strong>de</strong>ma associado ao traumatismo. Para alémdisso, dá-se uma ruptura das faixas <strong>de</strong> tecido conjuntivoque se esten<strong>de</strong>m pelo tecido adiposo eligam o osso à pele. O tecido adiposo vê-se privado<strong>de</strong> irrigação sanguínea e atrofia. Per<strong>de</strong>-se o efeito<strong>de</strong> almofada e os pés <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> conseguir absorveros choques provocados pela marcha;c) Cicatrizes rígidas e irregulares na pele e tecidossubcutâneos do pé <strong>de</strong>pois da aplicação dafalanga: num pé normal, os tecidos dérmicos esubdérmicos encontram-se ligados à aponevroseplantar através <strong>de</strong> bandas apertadas <strong>de</strong> tecido conjuntivo.Estas bandas po<strong>de</strong>m, contudo, ser parcialou completamente <strong>de</strong>struídas <strong>de</strong>vido a e<strong>de</strong>ma queas rompe após exposição à falanga;d) Ruptura da aponevrose plantar e tendões dopé: um e<strong>de</strong>ma que se produza no período posteriorà falanga po<strong>de</strong> provocar rupturas nestas estruturas.Quando <strong>de</strong>saparece a função <strong>de</strong> suportenecessária à manutenção do arco do pé, o andartorna-se muito difícil e os músculos do pé, emespecial o quadratus plantaris longus, são excessivamenteforçados;87V. Lök, M. Tunca, K.Kumanlioglu e outros,“Bone scintigraphy as clueto previous torture” [emportuguês: Cintigrafiaóssea como indício <strong>de</strong> torturaanterior], Lancet, 337(8745), 1991, pp. 846 e 847.Vi<strong>de</strong> também M. Tunca e V.Lök, “Bone scintigraphy inscreening of torture survivors”[em português: Cintigrafiaóssea no exame <strong>de</strong>sobreviventes <strong>de</strong> tortura],Lancet, 352 (9143), 1998,p. 1859.e) Fasciite plantar: po<strong>de</strong>ocorrer como complicação adicional<strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> lesões. Noscasos <strong>de</strong> falanga, dá-se muitasvezes a irritação <strong>de</strong> toda a aponevrose,originando uma inflamaçãocrónica. Em estudossobre esta matéria, pu<strong>de</strong>ram serobservadas zonas <strong>de</strong> hiper-activida<strong>de</strong>no calcâneo ou metatarso <strong>de</strong> prisioneiroslibertados há mais <strong>de</strong> 15 anos que alegavam teremsido submetidos a falanga no momento da suacaptura 87 .204. Métodos radiológicos como a ressonânciamagnética, tomografia computorizada e ultra-sonsconseguem muitas vezes confirmar a existência <strong>de</strong>traumatismos resultantes da aplicação da falanga.Mas as observações radiológicas positivas po<strong>de</strong>mIndícios físicos da tortura* 59


também <strong>de</strong>ver-se a outros tipos<strong>de</strong> doenças ou traumatismos.Recomenda-se a realização <strong>de</strong>radiografias <strong>de</strong> rotina no exameinicial. A ressonância magnéticaé o melhor meio para <strong>de</strong>tectarlesões nos tecidos moles. A ressonânciamagnética ou a cintigrafia po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>tectar lesõesósseas traumáticas que passem eventualmente<strong>de</strong>spercebidas nas radiografias <strong>de</strong> rotina ou natomografia computorizada 88 .3. SUSPENSÃO88 Vi<strong>de</strong> notas 76 e 83, suprae V. Lök e outros, “Bonescintigraphy as an evi<strong>de</strong>nceof previous torture” [emportuguês: Cintigrafiaóssea como prova <strong>de</strong> torturaanterior], Treatmentand Rehabilitation CenterReport of HRFT, Ancara,1994, pp. 91 a 96.205. A suspensão é uma forma comum <strong>de</strong> torturaque po<strong>de</strong> causar dor extrema, mas <strong>de</strong>ixa poucas,ou nenhumas, marcas <strong>de</strong> lesões. Uma pessoa quese encontre ainda <strong>de</strong>tida po<strong>de</strong> resistir a admitir queestá a ser torturada, mas a observação <strong>de</strong> déficesneurológicos periféricos indicativos <strong>de</strong> um diagnóstico<strong>de</strong> plexopatia braquial constitui um indíciomuito provável <strong>de</strong> tortura por suspensão.A suspensão po<strong>de</strong> ser aplicada <strong>de</strong> diferentes formas:a) Suspensão em cruz: aplica-se esticando os braçose atando-os a uma barra horizontal;b) Suspensão <strong>de</strong> carniceiro: aplica-se fixandoas mãos para cima, juntas ou separadamente;c) Suspensão <strong>de</strong> carniceiro invertida: aplica-sefixando os pés para cima e a cabeça para baixo;d) Suspensão “palestiniana”: aplica-se suspen<strong>de</strong>ndoa vítima com os antebraços atados juntosatrás das costas, cotovelos flectidos a 90 graus eantebraços atados a uma barra horizontal. Emalternativa, a vítima po<strong>de</strong> ser suspensa <strong>de</strong> umaligadura atada à volta dos cotovelos ou pulsos comos braços atrás das costas;e) Suspensão em cabi<strong>de</strong>: aplica-se suspen<strong>de</strong>ndoa vitima com os joelhos flectidos atados auma barra que passa abaixo da região poplítea,em geral com os pulsos atados aos tornozelos.206. A suspensão po<strong>de</strong> durar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 15 a 20 minutosaté várias horas. A suspensão “palestiniana”po<strong>de</strong> causar lesões permanentes do plexo braquialnum curto período <strong>de</strong> tempo. A suspensão emcabi<strong>de</strong> po<strong>de</strong> provocar rupturas dos ligamentos cruzadosdos joelhos. As vítimas são frequentementeespancadas ou sujeitas a outros maus tratosdurante a suspensão. Na fase crónica, é habitualque persistam as dores e a sensibilização em tornodas articulações dos ombros, uma vez que oexcesso <strong>de</strong> peso e a rotação, especialmente interna,irão causar fortes dores muitos anos <strong>de</strong>pois. Ascomplicações do período agudo subsequente àsuspensão incluem a perda <strong>de</strong> força nos braços oumãos, dores e parestesias, entorpecimento, insensibilida<strong>de</strong>ao toque, dores superficiais e perda dosreflexos tendinosos. As dores intensas e profundaspo<strong>de</strong>m indiciar adinamia susceptível <strong>de</strong> persistirna fase crónica e evoluir para atrofiamuscular. Regista-se entorpecimento e, commaior frequência, parestesia. Erguer os braços oulevantar pesos po<strong>de</strong> provocar dores, entorpecimentoou adinamia. Para além <strong>de</strong> lesões neurológicas,po<strong>de</strong>m dar-se rupturas dos ligamentosdas articulações dos ombros, luxação do ombro elesões musculares na região escapular. A observaçãovisual das costas permitirá <strong>de</strong>tectar uma“omoplata em asa” (com bordo vertebral proeminente)com lesão do nervo torácico longo ou <strong>de</strong>slocaçãoda escápula.207. As lesões neurológicas são geralmente assimétricasnos braços. As lesões do plexo braquialmanifestam-se através <strong>de</strong> disfunções motoras,sensoriais e dos reflexos.a) Exame motor: o sintoma mais comum é a fraquezamuscular assimétrica, mais acentuada naregião distal. As dores agudas po<strong>de</strong>m dificultar ainterpretação dos testes <strong>de</strong> força muscular. Se a lesãofor grave, na fase crónica po<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar-se uma atrofiamuscular;b) Exame sensorial: é comum registar-se umaperda total <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> ou parestesia ao longodo percurso dos nervos sensitivos. Dever-se-á testara percepção postural, discriminação <strong>de</strong> doispontos, reacção à sensação <strong>de</strong> picada e percepçãodo calor e do frio. Se, pelo menos três semanas<strong>de</strong>pois da data dos maus tratos, se constatar insuficiência,perda ou diminuição dos reflexos, <strong>de</strong>verse-áprovi<strong>de</strong>nciar pela realização dos exameselectrofisiológicos a<strong>de</strong>quados por um neurologistacom experiência na utilização e interpretação <strong>de</strong>stastécnicas <strong>de</strong> diagnóstico;60*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


c) Exame dos reflexos: a tortura por suspensãopo<strong>de</strong> provocar a perda, diminuição ou assimetriados reflexos. Na suspensão “palestiniana”, emboraambos os plexos braquiais sofram traumatismos,po<strong>de</strong> gerar-se uma plexopatia assimétrica <strong>de</strong>vidoà forma como a vítima é suspensa, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo dobraço que é colocado numa posição superior ou dométodo utilizado para atar a pessoa. Embora as pesquisasefectuadas sugiram que as plexopatias braquiaissão geralmente unilaterais, a nossaexperiência indica serem comuns as lesões bilaterais.208. De todos os tecidos da região escapular, oplexo braquial é a estrutura mais sensível às lesõespor tracção. A suspensão “palestiniana” dá origema lesões do plexo braquial <strong>de</strong>vido à extensãoposterior forçada dos braços. Na suspensão “palestiniana”clássica, quando o corpo é suspenso comos braços em hiper-extensão posterior, são tipicamenteas fibras do plexo inferior as primeiras asofrerem lesão, seguidas das fibras dos plexosmédio e superior, respectivamente, se a força aplicadasobre os plexos for suficientemente gran<strong>de</strong>.Se a vítima for suspensa em cruz, mas sem hiper--extensão, serão provavelmente as fibras do plexomédio as primeiras a sofrerem lesão <strong>de</strong>vido àhiper-abdução. As lesões do plexo braquial po<strong>de</strong>mser classificadas da seguinte forma:a) Lesões do plexo inferior: as <strong>de</strong>ficiências localizam-seno antebraço e músculos da mão. Po<strong>de</strong>mobservar-se <strong>de</strong>ficiências sensoriais ao nível doantebraço e do quarto e quinto <strong>de</strong>dos da zonamédia da mão na distribuição do nervo cubital;b) Lesões do plexo médio: são afectados o antebraço,cotovelo e músculos extensores dos <strong>de</strong>dos.A pronação do antebraço e a flexão radial da mãopo<strong>de</strong>rão estar diminuídas. Constatam-se <strong>de</strong>ficiênciassensoriais no antebraço e nas zonas dorsaisdo primeiro, segundo e terceiro <strong>de</strong>dos da mãona distribuição do nervo cubital. Os reflexos triciptaispo<strong>de</strong>m ter sido perdidos;c) Lesões do plexo superior: os músculos escapularesestão especialmente afectados. A abduçãodo ombro, rotação axial e pronação-supinação doantebraço po<strong>de</strong>m estar comprometidas. Observam-se<strong>de</strong>ficiências sensoriais na região <strong>de</strong>ltói<strong>de</strong>,que se po<strong>de</strong>m esten<strong>de</strong>r ao braço e zonas exterioresdo antebraço.4. OUTRAS FORMAS DE TORTURA POSICIONAL209. Existem muitas outras formas <strong>de</strong> torturaposicional, todas elas atando ou imobilizando avítima em contorção, hiper-extensão ou outrasposições pouco naturais, que causam gran<strong>de</strong> sofrimentoe po<strong>de</strong>m provocar lesões nos ligamentos,tendões, nervos e vasos sanguíneos. Caracteristicamente,estas formas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>ixam poucas,ou nenhumas, marcas visíveis a olho nu ou <strong>de</strong>tectáveisatravés <strong>de</strong> processos radiológicos, apesar <strong>de</strong>conduzirem muitas vezes a incapacida<strong>de</strong>s crónicasgraves.210. Todas as formas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong> posição visamdirectamente os tendões, articulações ou músculos.Existem vários métodos: “suspensão <strong>de</strong> papagaio”,“posição <strong>de</strong> banana” ou o clássico “laçobanana” sobre uma ca<strong>de</strong>ira ou simplesmente nochão, posição <strong>de</strong> bicicleta, manutenção da pessoa<strong>de</strong> pé durante longo tempo, apoiada num ou nosdois pés ou com os braços e mãos esticados paracima contra uma pare<strong>de</strong>, manutenção da pessoa <strong>de</strong>cócoras durante longo tempo e imobilização forçadanuma pequena jaula. Consoante as características<strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas posições, as vítimasqueixar-se-ão <strong>de</strong> dores em <strong>de</strong>terminadas regiões docorpo, limitação da mobilida<strong>de</strong> articular, dores nascostas, dores nas mãos ou nas zonas cervicais docorpo e inchaço da parte inferior das pernas. A estasformas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong> posição aplicam-se os mesmosprincípios <strong>de</strong> exame neurológico e muscoesqueléticoindicados relativamente à tortura porsuspensão. A ressonância magnética é o métodoradiológico mais recomendado para o diagnósticodas lesões associadas a todas as formas <strong>de</strong> tortura<strong>de</strong> posição.5. TORTURA POR CHOQUES ELÉCTRICOS211. A corrente eléctrica é transmitida através <strong>de</strong>eléctrodos colocados em qualquer parte do corpo.As áreas mais habituais são as mãos, pés, <strong>de</strong>dos dasmãos e dos pés, orelhas, mamilos, boca, lábios ezona genital. A fonte <strong>de</strong> energia po<strong>de</strong> ser umIndícios físicos da tortura* 61


dínamo manual ou gerador <strong>de</strong> combustão, tomadaeléctrica, arma atordoante, agulha eléctrica parapunção <strong>de</strong> animais ou outro aparelho eléctrico.A corrente eléctrica segue o caminho mais curtoentre dois eléctrodos, o que se reflecte nos sintomasobservados. Por exemplo, se os eléctrodosforem colocados num <strong>de</strong>do do pé direito e naregião genital, haverá dor, contracção muscular ecãibras nos músculos da coxa e gémeos do ladodireito. Sentir-se-ão dores lancinantes na regiãogenital. Uma vez que todos músculos ao longo dazona por on<strong>de</strong> passa a corrente eléctrica são tetanicamentecontraídos, uma <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>média po<strong>de</strong>rá provocar <strong>de</strong>slocações do ombro eradiculopatias lombares e cervicais. Contudo, apartir do exame físico da vítima não é possível<strong>de</strong>terminar com precisão o tipo, tempo <strong>de</strong> aplicação,corrente e voltagem da energia utilizada. Ostorcionários utilizam muitas vezes água ou gelpara aumentar a intensida<strong>de</strong> da tortura, expandiro ponto <strong>de</strong> entrada no corpo da corrente eléctricae evitar o aparecimento <strong>de</strong> marcas visíveis doschoques. As queimaduras eléctricas provocam emgeral lesões circulares <strong>de</strong> um castanho avermelhadocom 1 a 3 milímetros <strong>de</strong> diâmetro, em regrasem inflamação, que po<strong>de</strong>m provocar uma cicatrizhiper-pigmentada. A superfície cutânea <strong>de</strong>verá sercuidadosamente examinada, uma vez que aslesões são muitas vezes difíceis <strong>de</strong> distinguir.O recurso à biopsia para <strong>de</strong>terminar a origem <strong>de</strong>lesões recentes é muito controverso. As queimaduraseléctricas po<strong>de</strong>m produzir alterações histológicasespecíficas, mas estas nem sempre estãopresentes, o que <strong>de</strong> forma alguma afasta a hipótese<strong>de</strong> queimadura eléctrica. A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>ve sertomada caso a caso, pon<strong>de</strong>rando se a dor e o <strong>de</strong>sconfortoassociados a uma biopsia cutânea se justificamou não pelos eventuais resultados daintervenção (vi<strong>de</strong> anexo II, secção II).6. TORTURA DENTÁRIA212. A tortura <strong>de</strong>ntária po<strong>de</strong> consistir na fracturaou extracção <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes, ou na aplicação <strong>de</strong> correnteeléctrica aos mesmos. Po<strong>de</strong> resultar na perdaou quebra dos <strong>de</strong>ntes, tumefacção das gengivas,hemorragias, dores, gengivites, estomatites, fracturasmandibulares ou perda <strong>de</strong> massa <strong>de</strong>ntária.A síndrome da articulação temporo-maxilar provocarádores na articulação temporomandibular,limitação dos movimentos da mandíbula e, emcertos casos, uma sub-luxação da articulação em virtu<strong>de</strong>dos espasmos musculares que ocorrem emresultado da corrente eléctrica ou pancadas naface.7. ASFIXIA213. A quase asfixia por sufocação é um método<strong>de</strong> tortura cada vez mais comum. Em geral não<strong>de</strong>ixa quaisquer vestígios e a recuperação é rápida.Este método <strong>de</strong> tortura foi tão utilizado na AméricaLatina que a sua <strong>de</strong>signação em espanhol,submarino, se tornou parte do vocabulário dosdireitos humanos. A respiração normal po<strong>de</strong> serimpedida, por exemplo, cobrindo a cabeça comum saco <strong>de</strong> plástico, obstruindo a boca e o nariz,comprimindo ou ligando a zona em redor do pescoçoou obrigando a vítima a aspirar pó, cimento,pimenta ou substâncias análogas. Estas modalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> tortura são também conhecidas como“submarino a seco”. Po<strong>de</strong>m causar diversascomplicações, como as petéquias na pele, hemorragiasnasais, hemorragias dos ouvidos, congestionamentoda face, infecções na boca e problemasrespiratórios agudos ou crónicos. A imersão forçadada cabeça em água, muitas vezes contaminadacom urina, fezes, vómitos ou outras impurezas,po<strong>de</strong> dar origem a um quase afogamento ou afogamento.A entrada <strong>de</strong> água nos pulmões po<strong>de</strong> provocarpneumonia. Esta forma <strong>de</strong> tortura éconhecida como “submarino molhado”. No enforcamentoou outras formas <strong>de</strong> asfixia através <strong>de</strong>ligaduras, po<strong>de</strong>m frequentemente observar-seabrasões ou contusões no pescoço. O osso hiói<strong>de</strong>e as cartilagens laríngeas po<strong>de</strong>m sofrer fracturasem resultado <strong>de</strong> um estrangulamento parcial oupancadas no pescoço.8. TORTURA SEXUAL, INCLUINDO A VIOLAÇÃO214. A tortura sexual começa com a nu<strong>de</strong>z forçada,que em muitos países é um factor constante emsituações <strong>de</strong> tortura. Ninguém fica tão vulnerávelcomo quando está <strong>de</strong>spido e impotente. A nu<strong>de</strong>zexacerba o terror provocado por todas as formas <strong>de</strong>62*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


tortura, <strong>de</strong>ixando pairar a ameaça <strong>de</strong> abusossexuais, violação ou sodomia. Para além disso, asameaças, agressões verbais e piadas com conotaçõessexuais constituem também formas <strong>de</strong> torturasexual, uma vez que acentuam a humilhação aque a pessoa é sujeita e os aspectos <strong>de</strong>gradantes docaso, fazendo parte do mesmo processo. Tratando--se <strong>de</strong> mulheres, os toques no seu corpo são sempretraumatizantes e consi<strong>de</strong>ram-se uma forma <strong>de</strong>tortura.215. Existem algumas diferençasentre a tortura sexual <strong>de</strong>homens e a tortura sexual <strong>de</strong>mulheres, mas <strong>de</strong>terminadasconsi<strong>de</strong>rações aplicam-se aambos os sexos. A violação estásempre associada ao risco <strong>de</strong>contrair doenças sexualmente89 D. Lun<strong>de</strong> e J. Ortmann,“Sexual torture and thetreatment of its consequences”[em português: “A torturasexual e o tratamentodas suas consequências”],Torture and the treatmentof its consequences,Current TreatmentApproaches, M. Bas|og v lu,ed., Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1992,pp. 310 a 331.transmissíveis, particularmente o vírus da imuno<strong>de</strong>ficiênciahumana (HIV) 89 . Actualmente, aúnica profilaxia eficaz contra o HIV <strong>de</strong>verá seradministrada até poucas horas <strong>de</strong>pois do inci<strong>de</strong>nte,mas não está geralmente disponível nospaíses on<strong>de</strong> a tortura acontece habitualmente. Namaior parte dos casos, haverá um componente <strong>de</strong>perversão sexual, noutros visam-se directamenteos órgãos genitais. Pancadas e choques eléctricossão em geral aplicados nos órgãos genitais masculinos,com ou sem tortura anal adicional.O traumatismo físico daí resultante é reforçadopor agressões verbais. Existem muitas vezes ameaças<strong>de</strong> perda <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong> e consequenteperda do respeito da socieda<strong>de</strong>, no caso doshomens. Os reclusos po<strong>de</strong>m ser mantidos nus emcelas juntamente com membros da sua família,amigos ou completos <strong>de</strong>sconhecidos, violandotabus culturais. Este aspecto po<strong>de</strong> ser agravadopela falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> na utilização <strong>de</strong> instalaçõessanitárias. Para além disso, os reclusospo<strong>de</strong>m ser obrigados a abusar sexualmente <strong>de</strong>outros reclusos, o que po<strong>de</strong> ser particularmente difícil<strong>de</strong> enfrentar em termos emocionais. Nasmulheres, o receio <strong>de</strong> serem violadas, dado o profundoestigma social associado à violação, po<strong>de</strong> agravaro trauma. Também não <strong>de</strong>ve ser ignorado otrauma resultante da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma eventual gravi<strong>de</strong>z,que os homens obviamente não experimentam,medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a virginda<strong>de</strong> e medo <strong>de</strong>não po<strong>de</strong>r ter filhos (mesmo se a violação pu<strong>de</strong>rser ocultada a um eventual marido e ao resto dasocieda<strong>de</strong>).216. Se, nas situações <strong>de</strong> abuso sexual, a vítima não<strong>de</strong>sejar que o facto se torne conhecido, <strong>de</strong>vido apressões sócio-culturais ou motivos pessoais, omédico que efectua o exame clínico, as agências <strong>de</strong>investigação e os tribunais têm a obrigação <strong>de</strong> cooperara fim preservar o anonimato da pessoa. Oscontactos com sobreviventes <strong>de</strong> tortura quetenham sido recentemente vítimas <strong>de</strong> agressãosexual exigem formação especializada na área dapsicologia e um apoio psicológico a<strong>de</strong>quado.Dever-se-ão evitar quaisquer tratamentos que possamagravar o trauma psicológico da vítima. Antes<strong>de</strong> iniciar o exame, <strong>de</strong>ver-se-á pedir a autorizaçãoda pessoa para qualquer tipo <strong>de</strong> intervenção,<strong>de</strong>vendo essa autorização ser confirmada pelavítima antes das partes mais íntimas do exame. Apessoa <strong>de</strong>verá ser informada, <strong>de</strong> forma clara ecompreensível, acerca da importância do exame eseus possíveis resultados.(a)Inventário dos sintomas217. Dever-se-á registar em <strong>de</strong>talhe toda a históriada alegada agressão, conforme explicado mais acimano presente manual (vi<strong>de</strong> secção B, supra). Existem,contudo, algumas questões específicas que só são relevantesem caso <strong>de</strong> alegação <strong>de</strong> abuso sexual. Visam<strong>de</strong>terminar a existência <strong>de</strong> sintomas resultantes <strong>de</strong>uma agressão recente, por exemplo hemorragias,corrimentos vaginais ou anais e localização <strong>de</strong> quaisquerdores, feridas ou hematomas. No caso <strong>de</strong> agressõessexuais mais antigas, as perguntas <strong>de</strong>verãoincidir sobre os sintomas crónicos resultantes daagressão, como a frequência das micções, incontinênciaurinária ou disuria, irregularida<strong>de</strong>s menstruais,história ulterior <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, aborto ouhemorragia vaginal, problemas relacionados com aactivida<strong>de</strong> sexual, incluindo dores e hemorragiasanais e registadas durante o acto sexual, outrashemorragias, obstipação e incontinência.218. Em termos i<strong>de</strong>ais, <strong>de</strong>veriam existir instalaçõesapropriadas, a nível logístico e técnico, para oIndícios físicos da tortura* 63


exame a<strong>de</strong>quado das vítimas <strong>de</strong> violação por umaequipa <strong>de</strong> psiquiatras, psicólogos, ginecologistas eenfermeiros experientes e com formação específicano domínio do tratamento <strong>de</strong> vítimas <strong>de</strong> tortura.Um dos objectivos da consulta subsequente a umaagressão sexual consiste em oferecer apoio e aconselhamentoe, se for caso disso, tranquilizar avítima. Devem abordar-se aspectos como as doençassexualmente transmissíveis, infecção peloHIV, gravi<strong>de</strong>z – se a vítima for mulher – e lesõesfísicas permanentes. Isto porque, muitas vezes,os torcionários dizem às suas vítimas que elas nãovoltarão jamais a ter uma vida sexual normal, o quepo<strong>de</strong> tornar-se verda<strong>de</strong> por auto-sugestão.(b) Exame subsequente a uma agressão recente219. É raro que a vítima <strong>de</strong> violaçãodurante uma sessão <strong>de</strong>tortura seja libertada enquantoé ainda possível i<strong>de</strong>ntificarsinais agudos da agressão. Nestescasos, há que ter presentesdiversas questões que po<strong>de</strong>m90 Vi<strong>de</strong> J. Howitt eD. Rogers, “Adult SexualOffences and RelatedMatters” [em português:“Crimes Sexuais sobreAdultos e Matérias Conexas”],Clinical ForensicMedicine, W.D.S. McLayed., Londres, GreenwichMedical Media, 1996,pp. 193 a 218.dificultar o diagnóstico. As vítimas recentes <strong>de</strong>agressão sexual po<strong>de</strong>m estar perturbadas ou confusas,resistindo a procurar ajuda médica ou apoiojurídico <strong>de</strong>vido aos seus terrores, preocupaçõessócio-culturais ou natureza <strong>de</strong>strutiva das sevíciasa que foram sujeitas. Nestes casos, o médico<strong>de</strong>verá explicar à vítima todas as possíveis opçõesexistentes no plano médico e jurídico e actuar <strong>de</strong>acordo com a vonta<strong>de</strong> da pessoa. Os <strong>de</strong>veres domédico incluem a obtenção <strong>de</strong> consentimentovoluntário e esclarecido para a realização doexame, registo <strong>de</strong> todos os indícios <strong>de</strong> maus tratos<strong>de</strong>tectados e a recolha <strong>de</strong> amostras para exameslaboratoriais. Sempre que possível, o exame<strong>de</strong>verá ser conduzido por um perito na documentação<strong>de</strong> agressões sexuais. Se assim não for, omédico que efectua o exame <strong>de</strong>verá aconselhar-sejunto <strong>de</strong> um perito ou consultar a bibliografiaessencial em matéria <strong>de</strong> medicina legal 90 . Semédico e vítima pertencerem a sexos diferentes,a esta <strong>de</strong>verá ser dada a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter umacompanhante do seu sexo presente na saladurante o exame. Se for necessário recorrer a umintérprete, este po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>sempenhar o papel <strong>de</strong>acompanhante. Contudo, dada a natureza sensíveldas investigações <strong>de</strong> agressão sexual, um familiarda vítima é geralmente a pessoa i<strong>de</strong>al para <strong>de</strong>sempenharo papel <strong>de</strong> acompanhante. O paciente<strong>de</strong>verá sentir-se confortável e <strong>de</strong>scontraídodurante o exame. Dever-se-á proce<strong>de</strong>r a um examefísico rigoroso e registar cuidadosamente todosos indícios <strong>de</strong>tectados, com indicação do respectivotamanho, localização e cor. Sempre que possível,estes indícios <strong>de</strong>verão ser fotografados, <strong>de</strong>vendotambém ser recolhidas amostras para fins <strong>de</strong>prova e exame laboratorial.220. O exame físico não <strong>de</strong>verá começar por se centrarna zona genital. Dever-se-á tomar nota <strong>de</strong>todas as <strong>de</strong>formações observadas. Deverá ser dadaparticular atenção ao exame cuidadoso da pele,procurando <strong>de</strong>tectar quaisquer lesões cutâneasque possam ter resultado <strong>de</strong> agressão, nomeadamentehematomas, lacerações, equimoses e petéquiasoriginadas por sucções ou mor<strong>de</strong>duras. Estafase inicial po<strong>de</strong> ajudar a <strong>de</strong>scontrair o paciente parao resto do exame. Por outro lado, caso as lesões genitaissejam mínimas, as lesões localizadas emoutras partes do corpo po<strong>de</strong>m constituir os indíciosmais significativos da agressão. Mesmo queo exame dos órgãos genitais femininos tenhalugar imediatamente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma violação, só são<strong>de</strong>tectadas lesões em menos <strong>de</strong> 50% dos casos.O exame do ânus <strong>de</strong> homens e mulheres <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>uma violação anal permite <strong>de</strong>tectar lesões emmenos <strong>de</strong> 30% dos casos. Evi<strong>de</strong>ntemente, seforem utilizados objectos relativamente gran<strong>de</strong>spara penetrar a vagina ou o ânus, a probabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> observar lesões é muito maior.221. Caso exista a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer a umlaboratório <strong>de</strong> medicina legal, os seus técnicos<strong>de</strong>vem ser contactados antes do exame, para discutirque tipos <strong>de</strong> espécimes po<strong>de</strong>m ser testadose, consequentemente, que amostras <strong>de</strong>vem serrecolhidas e como. Muitos laboratórios fornecemkits para facilitar a recolha <strong>de</strong> todas as amostrasnecessárias em caso <strong>de</strong> alegada agressão sexual.Caso não exista qualquer laboratório disponível,<strong>de</strong>ver-se-ão, mesmo assim, recolher amostrashúmidas e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ixá-las secar ao ar, para maistar<strong>de</strong> efectuar testes <strong>de</strong> DNA. O esperma é i<strong>de</strong>n-64*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


tificável até cinco dias <strong>de</strong>pois do acto, a partir <strong>de</strong>amostras recolhidas através <strong>de</strong> espectroscopiavaginal profunda, e até três dias com sonda rectal.Devem ser tomadas todas as precauções para evitarqualquer hipótese <strong>de</strong> contaminação cruzadacaso tenham sido recolhidas amostras <strong>de</strong> diversasvítimas, particularmente se também forem recolhidasamostras dos presumíveis autores. Todas asamostras <strong>de</strong>vem ser plenamente protegidas,<strong>de</strong>vendo ainda ficar registada a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>todos quantos lhes tenham tido acesso.(c) Exame efectuado mais <strong>de</strong> uma semana<strong>de</strong>pois da agressão222. Caso a alegada agressão tenha ocorrido hámais <strong>de</strong> uma semana e não existam sinais <strong>de</strong>hematomas ou lacerações, o exame pélvico émenos urgente. Há tempo para tentar encontrar oprofissional mais qualificado para efectuar oexame e reunir as melhores condições para entrevistara pessoa. É, contudo, aconselhável fotografarquaisquer lesões residuais, se isto ainda forpossível.223. O médico <strong>de</strong>verá tomarnota dos antece<strong>de</strong>ntes do casoconforme atrás <strong>de</strong>scrito, e <strong>de</strong>poisdas observações e constataçõesdo exame. Nas mulheres que tenham sido mãesantes da violação, e particularmente naquelas queo tenham sido <strong>de</strong>pois, não é provável que se observemsinais patognomónicos, embora uma médicaexperiente possa aperceber-se <strong>de</strong> muita coisa apartir da forma como a mulher relata a sua história91 . Po<strong>de</strong> levar algum tempo até que a pessoa sedisponha a falar sobre os aspectos da tortura queconsi<strong>de</strong>ra mais embaraçosos. De forma semelhante,o paciente po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar <strong>de</strong>ixar as partes maisíntimas do exame para uma consulta posterior, seo tempo e as circunstâncias o permitirem.(d) Seguimento91 G. Hinshelwood, Gen<strong>de</strong>r--based persecution [emportuguês: “Perseguiçãobaseada no sexo”], Toronto,United Nations ExpertGroup Meeting on Gen<strong>de</strong>r--based Persecution, 1997.224. As sevícias sexuais po<strong>de</strong>m permitir a transmissão<strong>de</strong> inúmeras doenças infecciosas, nomeadamentedoenças sexualmente transmissíveiscomo a gonorreia, infecção a clamídia, sífilis, HIV,hepatite B e C, herpes simples e condyloma acuminatum(verrugas venéreas), vulvovaginites associadasà agressão, como a infecção por trichomonas, moniliasisvaginitis, gar<strong>de</strong>narella vaginitis e enterobiusvermicularis (lombrigas), bem como infecções dotrato urinário.225. Devem ser prescritos os exames laboratoriaise o tratamento a<strong>de</strong>quados em todos os casos<strong>de</strong> abuso sexual. No caso <strong>de</strong> gonorreia e infecçãoa clamídia, <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>infecção concomitante do ânus e orofaringe, pelomenos para fins <strong>de</strong> exame. Nos casos <strong>de</strong> agressãosexual, <strong>de</strong>vem recolher-se culturas iniciais e efectuar-setestes serológicos, iniciando-se a terapêuticacorrespon<strong>de</strong>nte. As disfunções sexuais sãocomuns nos sobreviventes <strong>de</strong> tortura, em particular,mas não exclusivamente, entre as vítimas <strong>de</strong> torturasexual e violação. Entre os sintomas, quepo<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> origem física ou psicológica, ou umacombinação <strong>de</strong> ambas, <strong>de</strong>stacam-se:i) Aversão às pessoas do sexo oposto ou diminuiçãodo interesse na activida<strong>de</strong> sexual;ii) Receio da activida<strong>de</strong> sexual porque o parceiropo<strong>de</strong>rá aperceber-se <strong>de</strong> que a pessoa foivítima <strong>de</strong> abuso sexual ou por medo <strong>de</strong> ter sofridolesões funcionais. Os torcionários po<strong>de</strong>m ter feitoesta ameaça e instilado o medo <strong>de</strong> homossexualida<strong>de</strong>nos homens vítimas <strong>de</strong> sodomia. Acontece porvezes que homens heterossexuais têm erecções, echegam mesmo a ejacular, durante relações anaisnão consentidas. Há que tranquilizá-los, esclarecendotratar-se apenas <strong>de</strong> uma reacção psicológica;iii) Incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> confiar num parceiro sexual;iv) Dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> estimulação sexual e disfunçãoeréctil;v) Dispareunia (relações sexuais dolorosas paraa mulher) ou infertilida<strong>de</strong> resultante <strong>de</strong> doençasexualmente transmissível, traumatismo directo dosórgãos reprodutores ou abortos mal feitos nasequência <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z resultante da violação.(e)Exame genital das mulheres226. Em muitas culturas, é completamente inaceitávelpenetrar a vagina <strong>de</strong> uma mulher virgemIndícios físicos da tortura* 65


com qualquer objecto, incluindo um espéculo,<strong>de</strong>do ou tampão absorvente. Caso a mulher evi<strong>de</strong>ncieclaros sinais <strong>de</strong> violação na observaçãoexterna, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>snecessário proce<strong>de</strong>r ao examepélvico interno. Entre os sintomas <strong>de</strong>tectados noexame genital, po<strong>de</strong>m contar-se:i) Pequenas lacerações ou rasgões na vulva.Po<strong>de</strong>m ser agudos e resultam do estiramentoexcessivo dos tecidos. Em geral, saram completamentemas, se repetidos, po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar cicatrizes;ii) Abrasões dos órgãos genitais femininos.Po<strong>de</strong>m ser provocadas pelo contacto <strong>de</strong> objectosásperos, por exemplo unhas ou anéis;iii) Lacerações vaginais. São raras mas, se existirem,po<strong>de</strong>m estar associadas a uma atrofia dostecidos ou cirurgia anterior. Não se distinguemdas incisões causadas pela inserção <strong>de</strong> objectoscortantes.227. Raramente se encontram provas físicas nosexames dos genitais femininos efectuados mais <strong>de</strong>uma semana <strong>de</strong>pois da alegada agressão. Maistar<strong>de</strong>, caso a mulher tenha prosseguido a sua activida<strong>de</strong>sexual, consentida ou não, ou dado à luz,po<strong>de</strong> ser praticamente impossível associar qualquerlesão observada a um inci<strong>de</strong>nte específico <strong>de</strong> alegadosmaus tratos. Nestes casos, a componentemais significativa <strong>de</strong> um exame clínico po<strong>de</strong> ser aavaliação que o médico faz dos antece<strong>de</strong>ntes do caso(por exemplo, a correlação entre os factos alegadose as lesões agudas que a pessoa afirma ter sofrido)bem como o comportamento da mulher, tendoem conta o contexto cultural em que se insere.(f ) Exame genital do homem228. Os homens sujeitos a tortura na zona genital,nomeadamente esmagamento, torção ou esticõesdo escroto ou traumatismos directos nessaregião, queixam-se geralmente <strong>de</strong> dores e sensibilizaçãodurante o período agudo. Os sintomasmais frequentes são a hiperemia, tumefacçõespronunciadas e equimoses. A urina po<strong>de</strong> conter umnúmero elevado <strong>de</strong> eritrócitos e leucócitos. Se for<strong>de</strong>tectada uma massa, convém apurar se se trata<strong>de</strong> um hidrocelo, hematocelo ou hérnia inguinal.Nos dois primeiros casos, a palpação permite normalmentesentir o cordão espermático sobrepostoà massa, o que não acontece nas situações <strong>de</strong> hérniainguinal. O hidrocelo resulta da excessiva acumulação<strong>de</strong> líquido na túnica vaginal <strong>de</strong>vido àinflamação dos testículos e seus anexos ou à diminuiçãoda drenagem em resultado <strong>de</strong> obstruçãolinfática ou venosa no cordão ou espaço retroperitoneal.O hematocelo consiste na acumulação<strong>de</strong> sangue na túnica vaginal, em resultado do traumatismo.Ao contrário do hidrocelo, não apresentatransiluminação.229. Os traumatismos do escroto po<strong>de</strong>m tambémcausar torção testicular. Com esta lesão, os testículosretorcem-se na base, obstruindo o fluxo sanguíneono seu interior, o que provoca fortes dores egran<strong>de</strong> inflamação e constitui uma emergênciacirúrgica. Se a torção não for imediatamente reduzida,conduz a enfarte testicular. Em situações <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção, quando os cuidados médicos são porvezes negados, po<strong>de</strong>m observar-se sequelas tardias<strong>de</strong>sta lesão.230. Os indivíduos que tenham sido sujeitos atortura escrotal sofrem por vezes <strong>de</strong> infecções crónicasdo aparelho urinário, disfunção eréctil ouatrofia dos testículos. Os sintomas <strong>de</strong> stress pós--traumático são relativamente frequentes. Na fasecrónica, po<strong>de</strong> ser impossível distinguir as patologiasescrotais resultantes da tortura das provocadaspor outros processos patológicos. Caso oexame urológico completo não revele quaisqueranormalida<strong>de</strong>s fisiológicas, quaisquer sintomasao nível do trato urinário, impotência ou outros problemassexuais serão provavelmente <strong>de</strong> origempsicológica. As cicatrizes na pele do escroto epénis po<strong>de</strong>m ser muito difíceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar. Por estarazão, a ausência <strong>de</strong> cicatrizes nestas áreas específicasnão infirma as alegações <strong>de</strong> tortura. Poroutro lado, a presença <strong>de</strong> cicatrizes visíveis indicaem geral que a vítima sofreu um traumatismoimportante.(g) Exame da região anal231. Depois <strong>de</strong> violação anal ou introdução <strong>de</strong>objectos no ânus, a vítima <strong>de</strong> qualquer dos sexospo<strong>de</strong> sofrer dores e hemorragias durante dias ou66*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


semanas. Isto dá muitas vezes origem a obstipação,frequentemente agravada pela dieta <strong>de</strong>ficiente <strong>de</strong>muitos locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Po<strong>de</strong>m também registar-sesintomas ao nível dos aparelhos gastrointestinale urinário. Na fase aguda, qualquer examepara além da observação visual po<strong>de</strong> requerer anestesialocal ou geral e <strong>de</strong>ve ser efectuado por um especialista.Na fase crónica, po<strong>de</strong>m persistir diversossintomas, que <strong>de</strong>verão ser investigados. A presença<strong>de</strong> cicatrizes anais <strong>de</strong> tamanho ou posicionamentofora do comum <strong>de</strong>verá ser documentada. As fissurasanais po<strong>de</strong>m persistir durante muitos anos, mas égeralmente impossível distinguir as que resultamda tortura das provocadas por outros factores. Aoexaminar o ânus, <strong>de</strong>ver-se-á prestar atenção e documentaros seguintes sintomas:i) Fissuras: as fissuras ten<strong>de</strong>m a constituir sintomasatípicos uma vez que po<strong>de</strong>m produzir-se emdiversas situações “normais” (obstipação, higiene<strong>de</strong>ficiente). Contudo, se observadas numa faseaguda (isto é, nas 72 horas seguintes) constituemum sintoma mais específico e po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radasindício <strong>de</strong> penetração;ii) Rasgões rectais, com ou sem hemorragia;iii) Ruptura da superfície rugosa: po<strong>de</strong> manifestar-sesob a forma <strong>de</strong> cicatriz suave em forma<strong>de</strong> leque. A presença <strong>de</strong> cicatrizes <strong>de</strong>ste tipo forada linha mediana (isto é, fora dos pontos correspon<strong>de</strong>ntesàs 12 ou 6 horas) po<strong>de</strong> indiciar traumatismopor penetração;iv) Marcas na pele, que po<strong>de</strong>m resultar <strong>de</strong> traumatismosem cicatrização;v) Corrimento purulento do ânus. Em todos oscasos <strong>de</strong> alegada penetração anal <strong>de</strong>ver-se-ão recolheramostras para cultura em laboratório <strong>de</strong>gonorreia e clamídia, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do facto<strong>de</strong> se verificar ou não corrimento.e. Testes <strong>de</strong> diagnóstico especializados232. Os testes <strong>de</strong> diagnóstico não constituemparte essencial da avaliação clínica <strong>de</strong> uma alegadavítima <strong>de</strong> tortura. Em muitos casos, o historialmédico e exame físico são suficientes. Em<strong>de</strong>terminadas situações, contudo, tais testes constituemum importante elemento probatório. Porexemplo, em caso <strong>de</strong> procedimento judicial instauradocontra as autorida<strong>de</strong>s em causa ou pedido<strong>de</strong> in<strong>de</strong>mnização. Nestas situações, um teste positivopo<strong>de</strong> fazer toda a diferença. Para além disso,se forem realizados testes <strong>de</strong> diagnóstico por motivosterapêuticos, os respectivos resultados <strong>de</strong>verãoser incluídos no relatório clínico. Saliente-se quea ausência <strong>de</strong> um resultado positivo nos testes <strong>de</strong>diagnóstico, como no exame físico, não <strong>de</strong>ve serusada para sugerir que o acto <strong>de</strong> tortura não ocorreu.Muitas vezes, razões técnicas impe<strong>de</strong>m a realização<strong>de</strong> testes <strong>de</strong> diagnóstico, o que não <strong>de</strong>vejamais invalidar um relatório convenientemente elaboradonos restantes aspectos. Sempre que ascapacida<strong>de</strong>s dos serviços <strong>de</strong> diagnóstico sejamlimitadas, as necessida<strong>de</strong>s clínicas <strong>de</strong>vem ter semprepriorida<strong>de</strong> sobre as utilizações com fins estritamentejurídicos (para mais pormenores, vi<strong>de</strong>anexo II).Indícios físicos da tortura* 67


capítulo* 06Indícios psicológicos da torturaa. Consi<strong>de</strong>rações gerais1. O PAPEL FUNDAMENTAL DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA233. A tortura é geralmente reconhecida comouma experiência limite, susceptível <strong>de</strong> causar inúmerostipos <strong>de</strong> sofrimentos físicos e mentais.A maioria dos médicos e investigadores concordamque a natureza extrema da experiência <strong>de</strong> torturaé suficientemente forte para gerar, por si só, consequênciasmentais e emocionais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda condição psíquica anterior da vítima.Contudo, as consequências psicológicas da tortura<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m também do significado que avítima atribui ao sucedido, do <strong>de</strong>senvolvimento dasua personalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> factores sociais, políticose culturais. Por esta razão, não <strong>de</strong>ve partir-se doprincípio <strong>de</strong> que todas as formas <strong>de</strong> torturatêm as mesmas consequências. Por exemplo, oimpacto psicológico <strong>de</strong> um simulacro <strong>de</strong> execuçãonão é igual ao <strong>de</strong> uma agressão sexual, ao passoque o isolamento e a <strong>de</strong>tenção solitária não têmo mesmo efeito da tortura física. Da mesmaforma, as consequências da <strong>de</strong>tenção e torturaserão provavelmente diferentes consoante avítima seja um adulto ou uma criança. De qualquerforma, existem conjuntos <strong>de</strong> sintomas ereacções psicológicas que se observam e documentamcom alguma regularida<strong>de</strong> nos sobreviventes<strong>de</strong> tortura.234. Os autores <strong>de</strong> tortura tentammuitas vezes justificar osseus actos com a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> obter informação. Estasi<strong>de</strong>ias escon<strong>de</strong>m os verda<strong>de</strong>irosobjectivos da tortura e efeitos92 G. Fischer e N. F. Gurris,“Grenzverletzungen: Folterund sexuelle Traumatisierung”,Praxis <strong>de</strong>r Psychotherapie-EinintegrativesLehrbuch für Psychoanalyseund Verhaltenstherapie,W. Senf W. Brodaed., Estugarda, Thieme,1996.visados. Um dos principais objectivos da torturaconsiste em reduzir a vítima a uma condição <strong>de</strong>absoluta impotência e angústia que po<strong>de</strong> levar à<strong>de</strong>terioração das funções cognitivas, emocionais ecomportamentais 92 . Assim, a tortura constitui umataque aos mecanismos fundamentais <strong>de</strong> funcionamentopsicológico e social da pessoa. Nestascircunstâncias, o torcionário tenta, não apenasincapacitar a vítima em termos psicológicos, mastambém <strong>de</strong>sintegrar a personalida<strong>de</strong> da pessoaem causa. O torcionário procura <strong>de</strong>struir os vínculosque a vítima mantém com a família e com a socieda<strong>de</strong>,enquanto ser humano com sonhos, esperançase aspirações para o futuro. Ao <strong>de</strong>sumanizaro indivíduo e fazer ce<strong>de</strong>r a sua vonta<strong>de</strong>, os autores<strong>de</strong> tortura comprometem gravemente as relaçõesa estabelecer no futuro entre a vítima e aspessoas que a ro<strong>de</strong>iam. Desta forma, a torturapo<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir ou comprometer a vonta<strong>de</strong> e coesão<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s inteiras. Para além disso, a torturapo<strong>de</strong> provocar danos irreparáveis no relacionamentoíntimo entre cônjuges, pais, filhos e outrosmembros da família e na relação das vítimas comas suas comunida<strong>de</strong>s.Indícios psicológicos da tortura* 69


235. É importante reconhecerque nem todas as vítimas <strong>de</strong>tortura <strong>de</strong>senvolvem doençasmentais diagnosticáveis. Muitasvítimas experimentam, contudo,profundas reacções emocionaise sintomas psicológicos. Osprincipais distúrbios psicológicosassociados à tortura são osíndrome <strong>de</strong> stress pós-traumáticoe a <strong>de</strong>pressão major.Embora estas perturbações estejampresentes na população emgeral, a sua incidência é muitomaior nas populações traumatizadas.As particulares repercussõesculturais, sociais e políticasque a tortura tem sobre cada93 A. Kleimann, “Antropologyand psychiatry: the roleof culture in cross-culturalresearch on illness and care”[em português: “Antropologiae psiquiatria: o papel dacultura na pesquisa inter--cultural sobre doença e tratamento”],estudoapresentado no simpósioregional sobre psiquiatria edisciplinas conexas daAssociação Mundial<strong>de</strong> Psiquiatria, 1986.94 H. T. Engelhardt, “Theconcepts of health anddisease” [em português:“Os conceitos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> edoença”], Evaluation andExplanation in the BiomedicalSciences, H. T. Engelhardte S. F. Spicker, eds.,Dordrecht: D. Rei<strong>de</strong>l PublishingCo., 1975, pp. 125 a141.95 J. Westermeyer, “Psychiatricdiagnosis across culturalboundaries” [em português:“O diagnóstico psiquiátricoatravés das fronteiras culturais”],American Journal ofPsychiatry, 142 (7), 1985,pp. 798 a 805.indivíduo influenciam a sua capacida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>screvera experiência e falar sobre a mesma. Estessão factores importantes que contribuem para oimpacto psicológico e social da tortura e que<strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados na avaliação <strong>de</strong> pessoas pertencentesa culturas diferentes. A pesquisa interculturalrevela que os métodos fenomenológicos ou<strong>de</strong>scritivos constituem as abordagens mais racionaispara tentar avaliar distúrbios psicológicos oupsiquiátricos. Aquilo que se consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>mcomportamental ou doença numa dada culturapo<strong>de</strong> não ser visto como patologia numa outra93 9495. Des<strong>de</strong> a II Guerra Mundial, foram feitos progressosna compreensão das consequências psicológicasda violência, nomeadamente graças àobservação e documentação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados sintomase conjuntos <strong>de</strong> sintomas psicológicos entreos sobreviventes <strong>de</strong> tortura e <strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> violência.236. Nos últimos anos, o diagnóstico <strong>de</strong> síndrome<strong>de</strong> stress pós-traumático tem vindo a seraplicado a uma diversida<strong>de</strong> cada vez maior <strong>de</strong>indivíduos que sofrem as consequências <strong>de</strong> tiposmuito diferentes <strong>de</strong> violência. Contudo, a utilida<strong>de</strong><strong>de</strong>ste diagnóstico nas culturas não oci<strong>de</strong>ntais nãofoi ainda estabelecida. Os indícios sugerem, <strong>de</strong>qualquer forma, uma alta incidência <strong>de</strong> stresspós-traumático e sintomas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão empopulações refugiadas traumatizadas com origensétnicas e culturais muitodiversas 96 97 98 . O estudo interculturalda Organização Mundial<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> sobre a <strong>de</strong>pressãofornece dados úteis 99 . Emboraalguns sintomas possam estarpresentes em todas as culturas,não são necessariamente essesos que mais afligem o indivíduo.2. CONTEXTO DA AVALIAÇÃOPSICOLÓGICA237. As avaliações têm lugar emcontextos políticos muito diversos,<strong>de</strong> on<strong>de</strong> resultam importantesdiferenças na forma como oprocesso <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong>ve serconduzido. O médico ou psicólogo<strong>de</strong>ve adaptar as directrizesque a seguir se enunciam àsituação concreta e finalida<strong>de</strong>específica da avaliação que realiza(vi<strong>de</strong> capítulo III, secçãoC.2).96 R. F. Mollica, K. Donelan,S. Tor e outros, “Theeffect of trauma and confinementon the functionalhealth and mental healthstatus of Cambodians livingin Thailand-Cambodia bor<strong>de</strong>rcamps” [em português:“Consequências do traumae isolamento sobre a saú<strong>de</strong>funcional e estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental dos cambojanosresi<strong>de</strong>ntes em campos juntoà fronteira entre a Tailândiae o Camboja”], Journal ofthe American MedicalAssociation (JAMA), 270,1993, pp. 581 a 586.97 J. D. Kinzie e outros,“The prevalence of posttraumaticstress disor<strong>de</strong>rand its clinical significanceamong Southeast Asianrefugees” [em português: “Aprevalência da perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumático eseu significado clínico entreos refugiados do su<strong>de</strong>steasiático”], American Journalof Psychiatry, 147 (7),1990, pp. 913 a 917.98 K. All<strong>de</strong>n e outros, “Burmesepolitical dissi<strong>de</strong>nts inThailand: trauma and survivalamong young adults inexile” [em português: “Dissi<strong>de</strong>ntespolíticos birmanesesna Tailândia: trauma esobrevivência entre jovensadultos no exílio”], AmericanJournal of PublicHealth, 86, 1996, pp. 1561a 1569.99 N. Sartirius, “Cross-culturalresearch on <strong>de</strong>pression”[em português:Pesquisa inter-cultural sobrea <strong>de</strong>pressão”] , Psychopathology,19 (2), 1987, pp. 6a 11.238. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar ou não <strong>de</strong>terminadasquestões em segurança varia bastante e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>das condições <strong>de</strong> sigilo e segurança que seja possívelgarantir. Por exemplo, um exame efectuadonuma prisão por um médico do exterior, limitadoà duração máxima <strong>de</strong> 15 minutos, não po<strong>de</strong> ser realizadoda mesma forma que um exame médico-legalefectuado num consultório privado, que po<strong>de</strong><strong>de</strong>morar várias horas. Problemas acrescidos secolocam ao tentar avaliar a natureza patológica ouadaptativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados sintomas psicológicosou comportamentos. Caso a pessoa examinadase encontre <strong>de</strong>tida ou viva num ambiente consi<strong>de</strong>ravelmenteameaçador ou opressivo, <strong>de</strong>terminadossintomas po<strong>de</strong>m ser adaptativos. Porexemplo, a diminuição do interesse por diversasactivida<strong>de</strong>s e sintomas <strong>de</strong> alheamento e indiferençasão compreensíveis numa pessoa <strong>de</strong>tida emregime <strong>de</strong> isolamento. Da mesma maneira, comportamentos<strong>de</strong> hiper-vigilância e negação po<strong>de</strong>mtornar-se necessários para pessoas que vivam em70*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


socieda<strong>de</strong>s repressivas 100 . Aslimitações com que o médico sepo<strong>de</strong> <strong>de</strong>parar para a realizaçãoda entrevista não <strong>de</strong>vem, contudo,impedir que se procuremaplicar as directrizes enunciadasno presente manual. Em circunstânciasdifíceis, é particularmenteimportante que ogoverno e as autorida<strong>de</strong>s envolvidas respeitemestas normas na máxima medida possível.b. Consequências psicológicas da tortura1. ADVERTÊNCIAS239. Antes <strong>de</strong> entrar na <strong>de</strong>scriçãotécnica dos sintomas e classificaçõespsiquiátricas, <strong>de</strong>vereferir-se que as classificaçõespsiquiátricas são geralmenteconsi<strong>de</strong>radas conceitos médicosoci<strong>de</strong>ntais e que a sua aplicaçãoa populações não oci<strong>de</strong>ntais100 M. A. Simpson, “Whatwent wrong?: diagnosticand ethical problems in<strong>de</strong>aling with the effects oftorture and repression inSouth Africa” [em português:“O que correu mal?:diagnóstico e problemas éticosao lidar com os efeitosda tortura e repressão naÁfrica do Sul”], BeyondTrauma-Cultural and SocietalDynamics, R. J. Kleber,C. R. Figley, B. P. R. Gersons,eds., Nova Iorque,Plenum Press, 1995, pp. 188a 210.101M. Friedman e J. Jaranson,“The applicability ofthe post-traumatic conceptto refugees” [em português:“A aplicabilida<strong>de</strong> do conceitopós-traumático aosrefugiados”], Amidst Periland Pain: The MentalHealth and Well-being ofthe World’s Refugees,T. Marsella e outros, ed.,Washington, D. C., AmericanPsychological associationPress, 1994, pp. 207 a227.coloca, implícita ou explicitamente, certas dificulda<strong>de</strong>s.Po<strong>de</strong> argumentar-se que as culturas oci<strong>de</strong>ntaissofrem <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>vida medicalizaçãodos processos psicológicos. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o sofrimentomental representa um distúrbio para a pessoae é i<strong>de</strong>ntificável a partir <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong>sintomas característicos po<strong>de</strong> ser inaceitável paramuitos membros <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s não oci<strong>de</strong>ntais. Dequalquer forma, existem indícios consi<strong>de</strong>ráveis <strong>de</strong>alterações biológicas associadas a situações <strong>de</strong> stresspós-traumático pelo que, <strong>de</strong>sta perspectiva, a perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumático constitui umadoença diagnosticável e susceptível <strong>de</strong> tratamento biológicoe psicológico 101 . Tanto quanto possível, omédico ou psicólogo responsável pela avaliação<strong>de</strong>verá tentar situar o sofrimento mental no contextodas convicções da pessoa e normas culturais queregem o seu comportamento, o que implica respeitaro contexto político, bem como as crenças culturaise religiosas em causa. Dada a gravida<strong>de</strong> datortura e suas consequências, ao efectuar uma avaliaçãopsicológica o médico <strong>de</strong>ve adoptar uma atitu<strong>de</strong>aberta, dialogando com o paciente e ouvindo o queeste tem para dizer, e não se precipitando no estabelecimento<strong>de</strong> diagnósticos e classificações. Emtermos i<strong>de</strong>ais, esta atitu<strong>de</strong> permitirá transmitir àvítima a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as suas queixas e a sua dor sãoreconhecidas como reais e normais, dadas as circunstâncias.Assim, uma atitu<strong>de</strong> empática e sensívelpo<strong>de</strong> atenuar o sentimento <strong>de</strong> alienação muitasvezes experimentado pelas vítimas <strong>de</strong> tortura.2. REACÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS(a)Revivência do trauma240. A vítima po<strong>de</strong> sofrer visões ou recordaçõesintrusivas que a fazem reviver a experiência traumatizante,mesmo quando acordada e consciente, bemcomo pesa<strong>de</strong>los recorrentes, que incluem elementosdo acontecimento traumático na sua forma originalou simbólica. O sentimento <strong>de</strong> angústia perante tudoquanto possa simbolizar ou assemelhar-se ao traumamanifesta-se frequentemente através <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> confiançae medo <strong>de</strong> todos quantos estejam numa posição<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, incluindo médicos e psicólogos.Nos países ou situações em que as autorida<strong>de</strong>s estejamimplicadas em violações <strong>de</strong> direitos humanos, afalta <strong>de</strong> confiança e receio das figuras <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada patológica.(b) Negação e alheamento emocionali) Evitação <strong>de</strong> qualquer pensamento, conversa,activida<strong>de</strong>, local ou pessoa que <strong>de</strong>sperte recordaçõesdo trauma;ii) Profundo retraimento emocional;iii) Profundo <strong>de</strong>sinteresse pessoal e alheamentosocial;iv) Incapacida<strong>de</strong> para recordar um aspectoimportante do trauma.(c)Sobreexcitaçãoi) Dificulda<strong>de</strong> em dormir ou adormecer;ii) Irritabilida<strong>de</strong> ou acessos <strong>de</strong> cólera;iii) Dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> concentração;iv) Hiper-vigilância, reacção exagerada <strong>de</strong> sobressalto;v) Ansieda<strong>de</strong> generalizada;vi) Falta <strong>de</strong> ar, suores, boca seca ou enjoos e distúrbiosgastrointestinais.Indícios psicológicos da tortura* 71


(d) Sintomas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão241. Po<strong>de</strong>m estar presentes os seguintes sintomas<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão: falta <strong>de</strong> ânimo, anedonia (acentuadadiminuição do interesse ou prazer em actosque normalmente o proporcionam), distúrbios <strong>de</strong>apetite ou perda <strong>de</strong> peso, insónia ou hipersónia, agitaçãoou lentidão psicomotora, fadiga e perda <strong>de</strong>energia, sentimentos <strong>de</strong> inutilida<strong>de</strong> e culpa excessiva,dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> concentração ou memória,pensamentos <strong>de</strong> morte, i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> suicídio ou tentativas<strong>de</strong> suicídio.(e) Perda <strong>de</strong> auto-estima e falta <strong>de</strong> perspectivasfuturas242. A vítima tem um sentimentosubjectivo <strong>de</strong> ter sofridoum dano irreparável e uma alteração<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> irreversível102 . A pessoa sente que assuas perspectivas futuras estãoirremediavelmente comprometidas,não tendo expectativas em termos <strong>de</strong> carreira,casamento, filhos ou uma vida normal.(f ) Dissociação, <strong>de</strong>spersonalização e comportamentoatípico243. A dissociação consiste numa ruptura ao nívelda integração da consciência, auto-percepção,memória e acções. A pessoa po<strong>de</strong> não ter consciência<strong>de</strong> certas acções que pratica ou sentir-sedividida em dois, como se se observasse a simesma à distância. A <strong>de</strong>spersonalização consisteem sentir-se separado <strong>de</strong> si próprio ou do seucorpo. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar certos impulsosorigina comportamentos que a vítima consi<strong>de</strong>raaltamente atípicos relativamente à sua personalida<strong>de</strong>antes do trauma. Um indivíduo anteriormentecauteloso po<strong>de</strong> envolver-se emcomportamentos <strong>de</strong> alto risco.(g) Queixas somáticas102N. R. Holtan, “Howmedical assessment of victimsof torture relates topsychiatric care” [em português:“Como a avaliaçãomédica das vítimas <strong>de</strong> torturase relaciona com o tratamentopsiquiátrico”],Caring for Victims of Torture,J. M. Jaranson e M. K.Popkin, eds., Washington D.C., American PsychiatricPress, 1998, pp. 107 a 113.244. Os sintomas somáticos, como as dores, cefaleiasou outras queixas físicas, com ou sem causasobjectivas confirmadas no exame físico, são problemascomuns entre as vítimas <strong>de</strong> tortura. A doré por vezes a única queixa da pessoa, po<strong>de</strong>ndovariar na sua localização e intensida<strong>de</strong>. Os sintomassomáticos po<strong>de</strong>m resultar directamente dassequelas físicas da tortura ou terem origem psicológica.Por exemplo, qualquer tipo <strong>de</strong> dor po<strong>de</strong>ser uma consequência física directa da tortura outer origem psicológica. Entre as queixas somáticasmais comuns, incluem-se as dores nas costas,dores nos músculos e ossos e dores <strong>de</strong> cabeça, frequentementeresultantes <strong>de</strong> traumatismos cranianos.As dores <strong>de</strong> cabeça são muito comunsentre os sobreviventes <strong>de</strong> tortura e tornam-se muitasvezes crónicas, po<strong>de</strong>ndo ser causadas ou agravadaspela tensão e pelo stress.(h) Disfunção sexual245. A disfunção sexual é comum nos sobreviventes<strong>de</strong> tortura, particularmente entre aquelesque são vítimas <strong>de</strong> tortura sexual ou violação, masnão apenas entre eles (vi<strong>de</strong> capítulo V, secçãoD.8).(i)Psicoses246. As diferenças culturais e linguísticas po<strong>de</strong>mser confundidas com sintomas <strong>de</strong> psicose. Antes<strong>de</strong> rotular alguém <strong>de</strong> psicótico, há que avaliar ossintomas tendo em conta o contexto cultural própriodo indivíduo. As reacções psicóticas po<strong>de</strong>m serbreves ou prolongadas, e os sintomas po<strong>de</strong>mmanifestar-se durante o período <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção e tortura,ou mais tar<strong>de</strong>. Eis alguns dos sintomas maishabituais:i) Delírios;ii) Alucinações auditivas, visuais, tácteis e olfactivas;iii) I<strong>de</strong>ias e comportamentos bizarros;iv) Ilusões ou distorções perceptivas que po<strong>de</strong>massumir a forma <strong>de</strong> pseudo-alucinações e estadosaproximados <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira psicose. As falsas percepçõese alucinações que ocorrem ao adormecerou ao acordar são comuns na população em gerale não traduzem um estado psicótico. É relativamentehabitual que as vítimas <strong>de</strong> tortura se quei-72*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


xem ocasionalmente <strong>de</strong> ouvir gritos, <strong>de</strong> ouvir chamaro seu nome ou <strong>de</strong> ver sombras, sem manifestarsinais ou sintomas <strong>de</strong> psicose <strong>de</strong>clarada;v) Paranóia e <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong> perseguição;vi) Nos indivíduos com antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> doençamental, po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver-se distúrbios psicóticosrecorrentes ou alterações <strong>de</strong> humor com característicaspsicóticas. As pessoas com antece<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> distúrbios bipolares, <strong>de</strong>pressão major comcaracterísticas psicóticas, esquizofrenia ou distúrbiosesquizo-afectivos po<strong>de</strong>m manifestar estesmesmos transtornos.(j)Abuso <strong>de</strong> substâncias tóxicas247. Acontece frequentemente que os sobreviventes<strong>de</strong> tortura comecem a utilizar abusivamente oálcool ou drogas como forma <strong>de</strong> obnubilar as suasmemórias traumáticas, reequilibrar os seus afectose lidar com a ansieda<strong>de</strong>.(k)Incapacida<strong>de</strong>s neuropsicológicas248. A tortura po<strong>de</strong> provocar traumatismos físicosque conduzem a diversos tipos <strong>de</strong> lesões cerebrais.Golpes na cabeça, asfixia e malnutrição prolongadapo<strong>de</strong>m ter consequências neurológicas eneuropsicológicas <strong>de</strong> longo prazo difíceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectarno <strong>de</strong>curso do exame médico. Caso as lesõescerebrais não possam ser <strong>de</strong>tectadas através <strong>de</strong>imagiologia cerebral ou outros procedimentosmédicos, a avaliação e testes neuropsicológicospo<strong>de</strong>m ser a única forma fi<strong>de</strong>digna <strong>de</strong> documentaras respectivas sequelas. Muitas vezes, os sintomasque essas avaliações e testes visam <strong>de</strong>tectarcoinci<strong>de</strong>m em gran<strong>de</strong> medida com a sintomatologiada perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático e da<strong>de</strong>pressão major. As flutuações ou défices ao nívelda consciência, orientação, atenção, concentração,memória ou funcionamento executivo po<strong>de</strong>mresultar <strong>de</strong> perturbações funcionais, bem como<strong>de</strong> causas orgânicas. Assim, para fazer tais distinçõessão necessários conhecimentos especializadosno domínio da avaliação neuropsicológica,e há que ter consciência das dimensões culturaisque influem na validação dos instrumentos <strong>de</strong>avaliação neuropsicológica (vi<strong>de</strong> secção C.4 do presentecapítulo).3. CLASSIFICAÇÕES DE DIAGNÓSTICO249. Embora as principais queixase as observações mais importantesregistadas entre as vítimas<strong>de</strong> tortura sejam muito diversificadase <strong>de</strong>pendam em largamedida da experiência <strong>de</strong> vida<strong>de</strong> cada pessoa e do contexto cultural,social e político em que seinsere, convém que as pessoasque realizam as avaliações sefamiliarizem com os distúrbiosmais frequentemente diagnosticados a essas pessoas.Para além disso, é relativamente frequente que asvítimas sofram cumulativamente <strong>de</strong> dois ou maisdistúrbios mentais, que po<strong>de</strong>m interagir entre si.Manifestações diversas <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pressãosão os sintomas mais comuns entre as vítimas <strong>de</strong>tortura. Com relativa frequência, a sintomatologia[supra] <strong>de</strong>scrita é enquadrada nas categorias <strong>de</strong>ansieda<strong>de</strong> e alterações <strong>de</strong> humor. Os dois sistemas<strong>de</strong> classificação mais importantes são a ClassificaçãoInternacional <strong>de</strong> Doenças (CID-10), classificação dosdistúrbios mentais e comportamentais, e oManual <strong>de</strong> Diagnóstico e Estatística das DoençasMentais da Associação Psiquiátrica Americana[Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor<strong>de</strong>rs:DSM-IV] 103 104 . Para uma <strong>de</strong>scrição completadas categorias <strong>de</strong> diagnóstico, o leitor <strong>de</strong>verá consultara CID-10 e o DSM-IV. Limitar-nos-emos aabordar os diagnósticos mais habitualmente associadosa situações traumáticas: perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático, <strong>de</strong>pressão major e alteraçõesduradouras da personalida<strong>de</strong>.(a)Distúrbios <strong>de</strong>pressivos103 Organização Mundial <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>, The ICD-10 Classificationof Mental andBehavioural Disor<strong>de</strong>rs andDiagnostic Gui<strong>de</strong>lines [emportuguês: “A ClassificaçãoCID-10 dos Distúrbios Mentaise Comportamentais eDirectrizes para o Diagnóstico],Genebra, 1994.104 American PsychiatricAssociation, Diagnosticand Statistical Manual ofMental Disor<strong>de</strong>rs [em português:“Manual <strong>de</strong> Diagnósticoe Estatística dasDoenças Mentais”], 4. a edição,WashingtonD. C., 1994.250. Os estados <strong>de</strong>pressivos são comuns a praticamentetodos os sobreviventes <strong>de</strong> tortura. Na avaliaçãodas consequências da tortura, não se <strong>de</strong>vepartir do princípio <strong>de</strong> que a perturbação <strong>de</strong> stresspós-traumático e a <strong>de</strong>pressão major são duas patologiasautónomas com características etiológicasclaramente distintas. Os distúrbios <strong>de</strong>pressivosenglobam a <strong>de</strong>pressão major, <strong>de</strong> episódio único ourecorrente (mais do que um episódio). Po<strong>de</strong>m seracompanhados ou não <strong>de</strong> sintomas psicóticos,Indícios psicológicos da tortura* 73


catatónicos, melancólicos ou atípicos. De acordocom o DSM-IV, para que possa ser diagnosticadoum episódio <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão major, é necessário quecinco ou mais dos seguintes sintomas estejampresentes em simultâneo durante um período <strong>de</strong>duas semanas e representem uma alteração doestado anterior do paciente (pelo menos um dossintomas <strong>de</strong>ve ser um ânimo <strong>de</strong>pressivo ou perda<strong>de</strong> interesse ou prazer): (1) ânimo <strong>de</strong>pressivo; (2)diminuição acentuada do interesse ou do prazer emtodas ou quase todas as activida<strong>de</strong>s; (3) perda <strong>de</strong>peso ou alterações <strong>de</strong> apetite; (4) insónia ou hipersónia;(5) agitação ou atraso psicomotor; (6) fadigaou perda <strong>de</strong> energia; (7) sentimentos <strong>de</strong> inutilida<strong>de</strong>ou culpabilida<strong>de</strong> excessiva ou ina<strong>de</strong>quada; (8)redução da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão ou concentração;(9) pensamentos recorrentes <strong>de</strong> morte ou suicídio.Para um diagnóstico <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, é necessário queos sintomas causem angústia significativa ou disfunçãosocial ou ocupacional, não tenham origemnuma perturbação psicológica e não sejam explicáveispor outro diagnóstico <strong>de</strong> acordo com a classificaçãoDSM-IV.(b) Perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático251. O diagnóstico mais habitualmente associadocom as consequências psicológicas da tortura é aperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático (post-traumaticstress disor<strong>de</strong>r – PTSD). A associação entrea tortura e este diagnóstico está hoje em dia muitopresente no espírito dos profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> imigração e público informado, oque cria a impressão errada e simplista <strong>de</strong> que aPTSD é a principal consequência psicológica da tortura.252. A <strong>de</strong>finição da PTSD segundo o DSM-IVbaseia-se em gran<strong>de</strong> medida na presença <strong>de</strong> distúrbios<strong>de</strong> memória relacionados com o trauma, taiscomo recordações intrusivas, pesa<strong>de</strong>los e incapacida<strong>de</strong>para recordar aspectos importantes doacontecimento traumatizante. A pessoa po<strong>de</strong> nãoconseguir recordar-se <strong>de</strong> forma precisa <strong>de</strong> pormenoresespecíficos do caso <strong>de</strong> tortura, mas lembrar-se-ádos aspectos mais marcantes daexperiência. Por exemplo, a vítima po<strong>de</strong> lembrar--se <strong>de</strong> ter sido violada em diversas ocasiões, mas nãoconseguir recordar as datas e locais exactos em quetal aconteceu, nem fornecer pormenores quanto aosautores do acto. Nestas circunstâncias, a incapacida<strong>de</strong>para recordar <strong>de</strong>talhes concretos confirmaa credibilida<strong>de</strong> da história da vítima, ao invés <strong>de</strong>a <strong>de</strong>smentir. As linhas gerais do relato da pessoamantêm-se nas entrevistas subsequentes. O diagnósticoda PTSD segundo a CID-10 é muitosemelhante ao do DSM-IV. De acordo com a classificaçãodo DSM-IV, a perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático po<strong>de</strong> ser aguda, crónica ou diferida. Ossintomas <strong>de</strong>vem estar presentes durante mais <strong>de</strong>um mês e o distúrbio <strong>de</strong>ve causar significativaangústia ou disfunção funcional. Para um diagnóstico<strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático, énecessário que a pessoa tenha estado exposta aum acontecimento traumatizante que haja ameaçadoa sua vida ou a <strong>de</strong> terceiros e provocadomedo, impotência ou horror intenso. A vítima<strong>de</strong>ve reviver recorrentemente o acontecimento, <strong>de</strong>uma das seguintes formas: surgem-lhe recordaçõesintrusivas e angustiantes do sucedido; tem sonhosangustiantes recorrentes que evocam o acontecimento;sente que tudo está a acontecer <strong>de</strong> novo ouage como se o estivesse, nomeadamente através <strong>de</strong>alucinações, flashbacks e ilusões; experimentaintensa tensão psicológica perante algo que lherecor<strong>de</strong> o evento e reacções psicológicas quandoexposto a algo que evoque ou simbolize qualqueraspecto do mesmo.253. A pessoa <strong>de</strong>ve evitar persistentemente osestímulos associados ao acontecimento traumáticoou <strong>de</strong>monstrar alheamento geral, apresentandopelo menos três dos seguintes sintomas:(1) tentativa <strong>de</strong> evitar pensamentos, sentimentos ouconversas relacionadas com o acontecimento;(2) tentativa <strong>de</strong> evitar activida<strong>de</strong>s, locais ou pessoasque lhe lembrem o acontecimento; (3) incapacida<strong>de</strong>para recordar um aspecto importante do sucedido;(4) diminuição do interesse por activida<strong>de</strong>s importantes;(5) alheamento ou afastamento dos outros;(6) repressão dos afectos; (7) falta <strong>de</strong> perspectivasfuturas. Segundo a classificação DSM-IV, umoutro factor que permite o diagnóstico da perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumático consiste na persistência<strong>de</strong> sintomas <strong>de</strong> sobreexcitação que nãoestavam presentes antes do trauma, o que é con-74*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


firmado por pelo menos dois dos seguintes indícios:dificulda<strong>de</strong> em dormir ou adormecer, irritabilida<strong>de</strong>ou acessos <strong>de</strong> cólera, dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>concentração, hiper-vigilância e reacções <strong>de</strong>sobressalto exagerado.254. Os sintomas da perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático po<strong>de</strong>m ser crónicos ou variar aolongo <strong>de</strong> períodos <strong>de</strong> tempo prolongados. Em<strong>de</strong>terminadas fases, o quadro clínico é dominadopor sintomas <strong>de</strong> sobreexcitação e irritabilida<strong>de</strong>.Nestas alturas, a vítima costuma também queixa--se <strong>de</strong> um acréscimo das memórias intrusivas,pesa<strong>de</strong>los e flashbacks. Noutras fases, a vítimapo<strong>de</strong> parecer relativamente assintomática ouapresentar retraimento e alheamento emocional.Dever-se-á ter presente que o facto <strong>de</strong> a vítima nãopreencher os requisitos para o diagnóstico daperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático não significaque a tortura não tenha acontecido. Deacordo com a CID-10, uma <strong>de</strong>terminada percentagemdos casos <strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático po<strong>de</strong>m evoluir para um cenáriocrónico durante muitos anos, com eventual transiçãopara uma alteração duradoura da personalida<strong>de</strong>.(c)Alteração duradoura da personalida<strong>de</strong>255. Depois <strong>de</strong> catástrofes ou situações <strong>de</strong>stress extremo prolongado, as pessoas adultaspo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver distúrbios <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>,mesmo não tendo qualquer antece<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ste tipo<strong>de</strong> perturbação. Entre os tipos <strong>de</strong> stress extremosusceptíveis <strong>de</strong> originar alterações <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>,contam-se o internamento em campos<strong>de</strong> concentração, <strong>de</strong>sastres, <strong>de</strong>tenção prolongadacom a possibilida<strong>de</strong> iminente <strong>de</strong> morte, exposiçãoa situações que ameaçam a vida, como o terrorismo,e a tortura. De acordo com a CID-10, aalteração duradoura da personalida<strong>de</strong> só <strong>de</strong>veser diagnosticada quando existam indícios <strong>de</strong>uma mudança <strong>de</strong>finitiva, significativa e persistentenos mecanismos <strong>de</strong> percepção, relacionamentoe pensamento do indivíduo relativamenteao seu meio e a si próprio, associada a comportamentosinflexíveis e dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> adaptaçãoque não se verificavam antes da experiênciatraumatizante. O diagnóstico exclui alteraçõesque traduzam outra perturbação mental ou qualquersintoma <strong>de</strong> distúrbio mental anterior, bemcomo alterações da personalida<strong>de</strong> e do comportamentoresultantes <strong>de</strong> doença, disfunção oulesão cerebral.256. Segundo a CID-10, para o diagnóstico <strong>de</strong>alteração duradoura da personalida<strong>de</strong> nasequência <strong>de</strong> uma experiência catastrófica, énecessário que as mudanças <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>estejam presentes durante pelo menos dois anos<strong>de</strong>pois da exposição à situação traumatizante. ACID-10 especifica que o stress <strong>de</strong>verá ser tãoextremo que “não seja necessário ter em contaa vulnerabilida<strong>de</strong> pessoal para explicar o seuprofundo efeito sobre a personalida<strong>de</strong>”. Estaalteração da personalida<strong>de</strong> caracteriza-se poruma atitu<strong>de</strong> hostil ou <strong>de</strong>sconfiada em relação aomundo, alheamento social, sentimentos <strong>de</strong>vazio ou perda <strong>de</strong> esperança, sentimento crónico<strong>de</strong> “estar no limite”, como se sob umaameaça constante, e distanciamento.(d) Abuso <strong>de</strong> substâncias tóxicas257. Os médicos constataram que as vítimas <strong>de</strong> torturatornam-se muitas vezes <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes doálcool ou <strong>de</strong> drogas, como forma <strong>de</strong> afastar recordaçõestraumáticas, reequilibrar afectos e lidarcom a ansieda<strong>de</strong>. Embora seja comum a presençasimultânea da perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumáticoe outras patologias, o fenómeno da toxico<strong>de</strong>pendênciados sobreviventes <strong>de</strong> tortura tem sido,até agora, pouco estudado. As obras sobre populaçõesafectadas pela perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático <strong>de</strong>bruçam-se por vezes sobre aproblemática dos sobreviventes <strong>de</strong> tortura, comorefugiados, prisioneiros <strong>de</strong> guerra e veteranos <strong>de</strong>conflitos armados, e po<strong>de</strong>m fornecer alguns dadosimportantes. Os estudos sobre estes grupos revelamque a incidência do abuso <strong>de</strong> substâncias tóxicasvaria em função do grupo étnico ou cultural.Os antigos prisioneiros <strong>de</strong> guerra com perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumático estão mais expostos aorisco da toxico<strong>de</strong>pendência e os veteranos <strong>de</strong>guerra apresentam altas taxas <strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático associada ao abuso <strong>de</strong> subs-Indícios psicológicos da tortura* 75


105 106 107 108 109 110tâncias tóxicas111 112. Em resumo, o estudo <strong>de</strong>outras populações em risco <strong>de</strong>perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático<strong>de</strong>monstra a existência<strong>de</strong> indícios consi<strong>de</strong>ráveis <strong>de</strong>que o abuso <strong>de</strong> substânciastóxicas po<strong>de</strong> estar presente nossobreviventes <strong>de</strong> tortura, emsimultâneo com outros distúrbios.(e)Outros diagnósticos258. Como resulta claramentedo catálogo <strong>de</strong> sintomas <strong>de</strong>scritosna presente secção, existemoutros diagnósticos a consi<strong>de</strong>rarpara além da perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático, como a<strong>de</strong>pressão grave e a alteraçãoduradoura da personalida<strong>de</strong>.Outros diagnósticos possíveissão ainda, e <strong>de</strong>signadamente, osseguintes:i) Ansieda<strong>de</strong> generalizada,que se caracteriza por umaansieda<strong>de</strong> e preocupação excessivasperante diversos acontecimentose activida<strong>de</strong>s, tensãomotora e acréscimo da activida<strong>de</strong>neurovegetativa;ii) Síndrome <strong>de</strong> pânico, quese manifesta através <strong>de</strong> ataquesinesperados e recorrentes <strong>de</strong>medo ou <strong>de</strong>sconforto intenso,incluindo sintomas como ossuores, asfixia, tremores, aceleraçãodo ritmo cardíaco, vertigens,náuseas, arrepios <strong>de</strong> frio eacessos <strong>de</strong> calor;iii) Perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático aguda, que apresentaessencialmente os mesmos sintomasda PTSD mas é diagnosticadano mês seguinte aoacontecimento traumático;105 P. J. Farias, “Emotionaldistress and its sócio-politicalcorrelates in Salvadoranrefugees: analysis of a clinicalsample” [em português:“Tensão emocional e suascorrelações sócio-políticasnos refugiados salvadorenhos:análise <strong>de</strong> uma amostraclínica”], Culture,Medicine and Psychiatry,15, 1991, pp. 167 a 192.106 A. Dadfar, “The Afghans:bearing the scars of aforgotten war” [em português:Os afegãos: portadoresdas cicatrizes <strong>de</strong> umaguerra esquecida], Amidstperil and pain, A. Marsellae outros, Washington D. C.,American PsychologicalAssociation, 1994.107 G. W. Beebe, “Follow-upstudies of World War II andKorean war prisoners, II:morbidity, disability andmaladjustments” [em português:“Estudos <strong>de</strong> acompanhamentodosprisioneiros <strong>de</strong> guerra daSegunda Guerra Mundial eGuerra da Coreia: morbosida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>ficiência e <strong>de</strong>sajustamentos”],AmericanJournal of Epi<strong>de</strong>miology,101, 1975, pp. 400 a 422.108 B E. Engdahl e outros,“The comorbidity andcourse of psychiatric disor<strong>de</strong>rsin a community sampleof former prisoners of war”[em português: “A co-morbosida<strong>de</strong>e evolução dos distúrbiospsiquiátricos numacomunida<strong>de</strong> representativa<strong>de</strong> antigos prisioneiros <strong>de</strong>guerra”], em revisão.109 T. M. Keane e J. Wolfe,“Comorbidity in post-traumaticstress disor<strong>de</strong>r: ananalysis of community andclinical studies” [em português.“Co-morbosida<strong>de</strong> naperturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático: uma análise <strong>de</strong>estudos clínicos <strong>de</strong> âmbitolocal”], Journal of AppliedSocial Psychology, 20 (21,1), 1990, pp. 1776 a 1788.110 R. A. Kulka e outros,Trauma in the VietnamWar Generation: Report ofFindings from the NationalVietnam Veterans ReadjustmentStudy [em português:“Trauma na Geraçãoda Guerra do Vietname:Relatório das Conclusões doEstudo Nacional sobre oReajustamento dos Veteranosdo Vietname”], NovaIorque, Brunner/Mazel,1990.111 K. Jordan e outros, “Lifetimeand current prevalenceof specific psychiatric disor<strong>de</strong>rsamong Vietnam veteransand controls” [emportuguês: “Duração e incidênciaactual <strong>de</strong> distúrbiospsiquiátricos específicosentre veteranos do Vietnamee controlos”], Archivesof General Psychiatry,48 (3), 1991, pp. 207 a 215.112 A. Y. Shalev, A. Bleich,R. J. Ursano, “Post-traumaticstress disor<strong>de</strong>r: somaticcoomorbidity and efforttolerance” [em português:iv) Distúrbios <strong>de</strong> natureza somática,com sintomas físicos“Perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático: co-morbosida<strong>de</strong>somática e tolerância aoesforço”], Psychosomatics,31 (2), 1990, pp. 197 a 203.que não se explicam por nenhumapatologia clínica;v) Distúrbios bipolares, caracterizados por episódiosmaníacos ou hipomaníacos acompanhados<strong>de</strong> humor exaltado, expansivo ou irritável, i<strong>de</strong>ias<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, diminuição da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dormir,fuga <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, agitação psicomotora e fenómenospsicóticos associados;vi) Distúrbios resultantes <strong>de</strong> patologia clínicageral, muitas vezes sob a forma <strong>de</strong> disfunção cerebrale consequentes flutuações ou défices ao nívelda consciência, orientação, atenção, concentração,memória e funcionamento executivo;vii) Fobias, nomeadamente fobia social e agorafobia.c. Avaliação psicológica/psiquiátrica1. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E CLÍNICAS259. As avaliações psicológicas po<strong>de</strong>m fornecerprovas fundamentais dos abusos cometidos contraas vítimas <strong>de</strong> tortura, por diversas razões: atortura provoca por vezes problemas psicológicos<strong>de</strong>vastadores, os métodos <strong>de</strong> tortura são frequentementeconcebidos <strong>de</strong> forma a não provocarquaisquer lesões físicas e a tortura física po<strong>de</strong> originarsintomas físicos que <strong>de</strong>saparecem ou não sãosuficientemente característicos.260. As avaliações psicológicas permitem obterelementos <strong>de</strong> prova importantes para os examesmédico-legais, instrução <strong>de</strong> pedidos <strong>de</strong> asilo político,apuramento das condições sob as quaispo<strong>de</strong>m ter sido obtidas falsas confissões, compreensãodos métodos <strong>de</strong> tortura utilizados a nívelregional, i<strong>de</strong>ntificação das necessida<strong>de</strong>s terapêuticasdas vítimas e instrução dos inquéritos emmatéria <strong>de</strong> direitos humanos. O objectivo geral daavaliação psicológica consiste em <strong>de</strong>terminar ograu <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> entre o testemunho da alegadavítima <strong>de</strong> tortura e os factos observados no<strong>de</strong>correr da avaliação. Para este fim, a avaliação<strong>de</strong>verá proporcionar uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada da históriapessoal da vítima, exame do respectivo estadomental, avaliação do respectivo funcionamento76*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


social e formulação <strong>de</strong> juízos clínicos (vi<strong>de</strong> capítulosIII, secção C e IV, secção E). Se necessário, <strong>de</strong>veráproce<strong>de</strong>r-se a um diagnóstico psiquiátrico. Dada aalta incidência <strong>de</strong> distúrbios psicológicos entre asvítimas <strong>de</strong> tortura, é altamente aconselhável quequalquer investigação <strong>de</strong> tortura inclua a avaliaçãopsicológica <strong>de</strong>ssas pessoas.261. Na avaliação do estado psicológico da pessoae formulação do respectivo diagnóstico clínico,<strong>de</strong>ver-se-á ter sempre em conta o contextocultural em que a mesma está inserida. O conhecimentodas síndromes específicas da cultura dopaciente e das expressões idiomáticas <strong>de</strong> angústiaque, na sua língua materna, permitem exprimir ossintomas, é absolutamente fundamental para acondução da entrevista e formulação dos juízos clínicose respectivas conclusões. Caso o entrevistadortenha pouco ou nenhum conhecimento dacultura da vítima, a assistência <strong>de</strong> um intérpreteé imprescindível. Em princípio, um intérprete dopaís da vítima <strong>de</strong>verá conhecer a língua, costumes,tradições religiosas e outras crenças a ter emconta no <strong>de</strong>curso do inquérito. A entrevista po<strong>de</strong>suscitar reacções <strong>de</strong> medo e <strong>de</strong>sconfiança porparte da vítima e, eventualmente, recordar-lhe osanteriores interrogatórios. Para reduzir os riscos<strong>de</strong> re-traumatização, o médico <strong>de</strong>verá transmitir àpessoa a sensação <strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong> a sua experiênciae o seu ambiente cultural. Nestes casos, nãose <strong>de</strong>ve adoptar uma postura <strong>de</strong> estrita “neutralida<strong>de</strong>clínica”, utilizada em outras formas <strong>de</strong> psicoterapia,<strong>de</strong> acordo com a qual o médicopermanece inactivo e diz muito pouco. O médico<strong>de</strong>verá dar ao paciente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que é seu aliado,apoiando-o e abstendo-se <strong>de</strong> quaisquer juízos <strong>de</strong>valor.fazer pausas, suspen<strong>de</strong>r a entrevista em qualquermomento e interrompê-la se o stress se tornarinsuportável, com a opção <strong>de</strong> regressar mais tar<strong>de</strong>para nova consulta. Os médicos <strong>de</strong>vem dar mostras<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> e empatia nas perguntas quecolocam, mantendo a objectivida<strong>de</strong> da avaliação clínica.Ao mesmo tempo, o entrevistador <strong>de</strong>ve terconsciência das suas próprias reacções pessoaisperante a vítima e o relato <strong>de</strong> tortura, as quaispo<strong>de</strong>m influenciar a sua percepção e o seu juízo.263. O processo <strong>de</strong> entrevista po<strong>de</strong>rá fazer lembrarao paciente os interrogatórios a que foi sujeitodurante a tortura. Po<strong>de</strong>m, assim, <strong>de</strong>senvolver-sesentimentos negativos muito fortes em relação aomédico, por exemplo <strong>de</strong> medo, raiva, revolta,impotência, confusão, pânico ou ódio. O médico<strong>de</strong>verá permitir que o paciente manifeste e expliqueesses sentimentos, e <strong>de</strong>monstrar compreensãopela difícil situação em que a pessoa seencontra. Para além disso, <strong>de</strong>verá ter-se em contaa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a vítima venha a sofrernovas perseguições ou outras formas <strong>de</strong> opressão.Sempre que necessário, <strong>de</strong>vem evitar-se perguntassobre activida<strong>de</strong>s proibidas. É importante consi<strong>de</strong>raras razões que <strong>de</strong>terminaram a realização da avaliaçãopsicológica, uma vez que irão condicionar ograu <strong>de</strong> sigilo a que o perito está vinculado. Se aavaliação da credibilida<strong>de</strong> do relato <strong>de</strong> tortura érequerida no âmbito <strong>de</strong> um processo judicial poruma autorida<strong>de</strong> pública, a pessoa objecto <strong>de</strong> avaliação<strong>de</strong>verá ser informada <strong>de</strong> que isto implica olevantamento do sigilo sobre toda a informaçãoincluída no relatório. Contudo, se for a própriavítima <strong>de</strong> tortura a solicitar a realização da avaliaçãopsicológica, o perito <strong>de</strong>verá respeitar o sigilomédico.2. PROCESSO DE ENTREVISTA262. O médico <strong>de</strong>verá começar por apresentar oprocesso <strong>de</strong> entrevista <strong>de</strong> forma a explicar em<strong>de</strong>talhe os procedimentos a seguir (perguntassobre os antece<strong>de</strong>ntes psicossociais, incluindo orelato da experiência <strong>de</strong> tortura e estado psicológicoactual) e preparar o indivíduo para as difíceisreacções emocionais que as perguntas po<strong>de</strong>m provocar.O paciente <strong>de</strong>verá ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>264. Os médicos que realizam avaliações físicas oupsicológicas <strong>de</strong>vem ter consciência das reacçõesemocionais que as avaliações <strong>de</strong> traumatismosgraves po<strong>de</strong>m provocar neles próprios e nopaciente. Estas reacções emocionais são <strong>de</strong>nominadas<strong>de</strong> fenómenos <strong>de</strong> transferência e contratransferência.Desconfiança, medo, vergonha,raiva e culpa são algumas das reacções típicas dossobreviventes <strong>de</strong> tortura, em particular quandolhes é pedido que relatem a sua história <strong>de</strong> torturaIndícios psicológicos da tortura* 77


ou recor<strong>de</strong>m pormenores da mesma. A transferênciadiz respeito aos sentimentos do paciente paracom o médico, que se relacionam com experiênciaspassadas mas são erradamente entendidoscomo dirigidos contra a pessoa do médico. Paraalém disso, a reacção emocional do médicoperante a vítima <strong>de</strong> tortura, <strong>de</strong>signada por contratransferência,po<strong>de</strong> influenciar o juízo clínico.A transferência e contra-transferência são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntese interagem entre si.265. O potencial impacto das reacções <strong>de</strong> transferênciasobre o processo <strong>de</strong> avaliação torna-seevi<strong>de</strong>nte quando se consi<strong>de</strong>ra que uma entrevistaou avaliação que suponha o relato ou a recordação<strong>de</strong> pormenores <strong>de</strong> uma experiência traumatizantese tornará angustiante e evocará memórias, pensamentose sentimentos in<strong>de</strong>sejados. Assim,embora a vítima <strong>de</strong> tortura possa consentir na avaliaçãocom a esperança <strong>de</strong> daí tirar benefícios, aexposição a que é sujeita po<strong>de</strong>rá fazê-la reviver aprópria experiência traumatizante. Po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar-seos fenómenos que a seguir se <strong>de</strong>screvem.266. As perguntas do avaliador po<strong>de</strong>m ser sentidascomo uma exposição forçada equivalente aum interrogatório. O paciente po<strong>de</strong> suspeitar queo médico tem motivações voyeuristas ou sádicas ecolocar a si próprio as seguintes questões: “Porquetem ele <strong>de</strong> me fazer revelar os mais ínfimos pormenores<strong>de</strong> todas as coisas terríveis que me aconteceram?Porque é que uma pessoa normalescolheu ganhar a vida a ouvir histórias como aminha? O avaliador <strong>de</strong>ve ter qualquer tipo <strong>de</strong>motivação estranha”. A vítima po<strong>de</strong> também ter preconceitosface ao avaliador <strong>de</strong>vido ao facto <strong>de</strong> estenão ter sido preso nem torturado, acabando por concluirque o médico se encontra do lado do inimigo.267. O avaliador é visto como alguém que estánuma posição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, o que é muitas vezesverda<strong>de</strong>, e por esta razão a vítima po<strong>de</strong> ocultar-lhealguns aspectos da sua história. Noutros casos, avítima po<strong>de</strong> revelar-se <strong>de</strong>masiado confiante emsituações em que o entrevistador não está em condições<strong>de</strong> garantir que não irão haver represálias,como acontece muitas vezes nos casos em que asvítimas se encontram <strong>de</strong>tidas. Devem ser tomadastodas as precauções para garantir que os reclusosnão se expõem a riscos <strong>de</strong>snecessários, confiandoingenuamente em alguém do exterior para os proteger.As vítimas <strong>de</strong> tortura po<strong>de</strong>m recear que nãose consiga impedir o acesso dos agentes dogoverno que as persegue à informação revelada noâmbito da avaliação. O medo e a <strong>de</strong>sconfiançapo<strong>de</strong>m ser particularmente agudos nos casos emque médicos ou outros profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>tenham participado nos actos <strong>de</strong> tortura.268. Em muitas circunstâncias, o avaliador serámembro da etnia ou grupo cultural dominante, aopasso que a pessoa objecto <strong>de</strong> avaliação, na situaçãoe local da entrevista, pertencerá à etnia ougrupo cultural minoritário. Esta dinâmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>po<strong>de</strong> reforçar a sensação, real ou imaginária,<strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e acentuar oseventuais sentimentos <strong>de</strong> medo, <strong>de</strong>sconfiança esubmissão forçada do paciente. Em <strong>de</strong>terminadassituações, particularmente nos casos que envolvemreclusos, este antagonismo sócio-cultural temmais a ver com o intérprete do que com o avaliador.Por isso, convém que o intérprete venha doexterior e não seja recrutado na comunida<strong>de</strong> local,para que seja consi<strong>de</strong>rado por todos como tãoin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte quanto o investigador. Como é evi<strong>de</strong>nte,um membro da família sobre quem as autorida<strong>de</strong>spossam vir a exercer pressão para<strong>de</strong>scobrir o que foi dito no <strong>de</strong>correr do exame não<strong>de</strong>verá ser utilizado como intérprete.269. Se o avaliador for do mesmo sexo que o autordo acto <strong>de</strong> tortura, a entrevista po<strong>de</strong> ser mais facilmenteassimilada a uma situação semelhante àtortura do que se pertencerem a sexos diferentes.Por exemplo, uma mulher que tenha sido violadaou torturada na prisão por um guarda do sexomasculino sentirá provavelmente uma maiorangústia, <strong>de</strong>sconfiança e medo perante um avaliadordo sexo masculino do que perante uma mulher.O inverso é também verda<strong>de</strong> no caso dos homensvítimas <strong>de</strong> agressão sexual, que po<strong>de</strong>m ter vergonha<strong>de</strong> contar os pormenores da sua história <strong>de</strong> torturaa uma avaliadora do sexo feminino. Nos casos<strong>de</strong> violação, a experiência <strong>de</strong>monstra contudoque, sobretudo quando estão em causa vítimas78*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


que permanecem sob <strong>de</strong>tenção, mais do que ofacto <strong>de</strong> o entrevistador ser do mesmo sexo davítima, importa que se trate <strong>de</strong> um médico habilitadoa respon<strong>de</strong>r às perguntas concretas que a pessoa<strong>de</strong>seje colocar (excepto nas socieda<strong>de</strong>stradicionais mais fundamentalistas em que éimpensável que um homem entreviste umamulher, muito menos que a examine). Acontece porvezes que as vítimas <strong>de</strong> violação nada dizem auma investigadora sem formação clínica, maspe<strong>de</strong>m para falar com um médico, mesmo quedo sexo masculino, a fim <strong>de</strong> lhe po<strong>de</strong>rem colocar<strong>de</strong>terminadas questões médicas concretas. As perguntastípicas versam sobre possíveis sequelas,como a gravi<strong>de</strong>z, problemas <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> ou relaçõessexuais futuras entre esposos. No âmbito dasinvestigações realizadas para fins legais, a necessáriaatenção aos pormenores do caso e a precisãodas perguntas relativas à história são facilmente vistascomo sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança ou dúvida daparte do examinador.270. Devido às pressões psicológicas anteriormentemencionadas, as vítimas po<strong>de</strong>m ser re-traumatizadase ficar arrasadas pelas recordações e, emresultado disto, erguer ou mobilizar fortes barreiras<strong>de</strong>fensivas que se traduzem num profundoalheamento e retracção afectiva durante o exameou entrevista. Para a documentação do caso, oscomportamentos <strong>de</strong> alheamento e retracçãocolocam dificulda<strong>de</strong>s especiais, uma vez queimpe<strong>de</strong>m as vítimas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong> comunicar eficazmentea sua história e o sofrimento por que passam,embora lhes fosse mais benéfico fazê-lo.271. As reacções <strong>de</strong> contra-transferência são muitasvezes inconscientes e, se o avaliador não se aperceber<strong>de</strong>las, tornam-se um problema. É naturalsentir emoções ao ouvir a pessoa relatar a suaexperiência <strong>de</strong> tortura e, embora tais emoções possaminterferir na eficácia do médico, quando compreendidaspo<strong>de</strong>m orientar o seu trabalho. Osmédicos e psicólogos que trabalham na área da avaliaçãoe tratamento das vítimas <strong>de</strong> tortura estão <strong>de</strong>acordo em que é fundamental ter consciência ecompreen<strong>de</strong>r as reacções típicas da contra-transferência,uma vez que este fenómeno po<strong>de</strong> limitara capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliação e documentação dasconsequências físicas e psicológicas da tortura.Uma documentação eficaz da tortura e outras formas<strong>de</strong> maus tratos exige que sejam claramentecompreendidas as motivações pessoais que levamos profissionais a optar por esta área <strong>de</strong> trabalho.É consensual a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que os profissionais querealizam continuamente este tipo <strong>de</strong> exames<strong>de</strong>vem ser supervisionados e apoiados pelos seuspares com experiência na mesma área. Entre asreacções comuns <strong>de</strong> contra-transferência, contam-se:i) Sentimentos <strong>de</strong> evitamento, alheamento eindiferença <strong>de</strong>fensiva face à exposição a informaçõesperturbadoras. Isto po<strong>de</strong> levar a que a pessoaesqueça alguns pormenores do caso e subestimea gravida<strong>de</strong> das consequências físicas ou psicológicas;ii) Desilusão, impotência, <strong>de</strong>sespero e sobrei<strong>de</strong>ntificaçãoque po<strong>de</strong>m provocar sintomas <strong>de</strong><strong>de</strong>pressão ou trauma indirecto, como pesa<strong>de</strong>los,ansieda<strong>de</strong> e medo;iii) Sentimentos <strong>de</strong> grandiosida<strong>de</strong> e omnipotência,julgando-se o salvador da pessoa, o gran<strong>de</strong>perito no trauma ou a última esperança para arecuperação e bem-estar da vítima;iv) Sentimentos <strong>de</strong> insegurança quanto às suascompetências profissionais quando confrontadocom a gravida<strong>de</strong> da história ou sofrimento relatado.Po<strong>de</strong>m manifestar-se através <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> confiançana sua capacida<strong>de</strong> para respon<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>sda vítima e preocupação irrealista com normasmédicas i<strong>de</strong>alizadas;v) Sentimentos <strong>de</strong> culpa por não partilhar aexperiência e a dor da vítima <strong>de</strong> tortura ou por terconsciência do que não foi feito a nível político –po<strong>de</strong>m conduzir a uma abordagem excessivamentesentimental ou i<strong>de</strong>alizada do paciente;vi) Cólera e raiva perante os torcionários e perseguidores– são normais, mas po<strong>de</strong>m comprometera objectivida<strong>de</strong> profissional se orientadas porexperiências pessoais não admitidas, tornando-seassim crónicas ou excessivas;vii) Raiva ou repugnância pela vítima po<strong>de</strong>mresultar do facto <strong>de</strong> a pessoa se sentir exposta aníveis <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> a que não está habituada.Po<strong>de</strong>m também surgir pelo facto <strong>de</strong> o avaliador sesentir usado pela vítima caso as experiências clí-Indícios psicológicos da tortura* 79


nicas permitam duvidar da veracida<strong>de</strong> do relato <strong>de</strong>tortura e a vítima tente obter uma avaliação que confirmeas consequências do alegado inci<strong>de</strong>nte;viii) Diferenças significativas entre os sistemas<strong>de</strong> valores culturais do médico e da presumívelvítima – po<strong>de</strong>m englobar a crença em mitos relativosa <strong>de</strong>terminados grupos étnicos, atitu<strong>de</strong>s con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntese subestimação do estado <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento do paciente ou da sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> análise. Ao invés, os médicos pertencentesao mesmo grupo étnico da vítima po<strong>de</strong>mestabelecer com ela elos não verbalizados, susceptíveis<strong>de</strong> comprometer também a objectivida<strong>de</strong>da avaliação.272. A maioria dos médicos concorda que muitasreacções <strong>de</strong> contra-transferência não constituemmeros exemplos <strong>de</strong> distorção, sendo antes importantesfontes <strong>de</strong> informação quanto ao estado psicológicoda vítima <strong>de</strong> tortura. A eficácia do médicopo<strong>de</strong> ficar comprometida quando, ao invés <strong>de</strong>reflectir sobre as sensações <strong>de</strong> contra-transferência,reage às mesmas. Aconselha-se ao pessoal clínicoque trabalha na área da avaliação e tratamento dasvítimas <strong>de</strong> tortura que analise os fenómenos <strong>de</strong>contra-transferência e, se possível, que procure asupervisão e o aconselhamento dos colegas.273. As circunstâncias po<strong>de</strong>m exigir que a entrevistaseja conduzida por um médico pertencentea um grupo cultural ou linguístico diferente do davítima. Nestes casos, po<strong>de</strong>m adoptar-se duas abordagensdiferentes, cada uma <strong>de</strong>las com vantagense <strong>de</strong>svantagens. O entrevistador po<strong>de</strong> recorrer à traduçãoliteral e textual <strong>de</strong> um intérprete (vi<strong>de</strong> capítuloIV, secção I). Em alternativa, po<strong>de</strong> optar-se poruma abordagem bicultural. Esta abordagem consistena utilização <strong>de</strong> uma equipa <strong>de</strong> entrevistadorescomposta pelo médico e por um intérprete, aquem cabe fazer a interpretação linguística e facilitara compreensão dos significados culturaisatribuídos aos acontecimentos, experiências, sintomase idiomas. Uma vez que o médico muitasvezes não reconhece os factores culturais, religiosose sociais relevantes, um intérprete competente<strong>de</strong>verá ser capaz <strong>de</strong> chamar a atenção do médicopara os mesmos e explicar-lhe as questões emcausa. Se o entrevistador se basear estritamentenuma interpretação literal e textual das palavras dopaciente, não terá acesso a este tipo <strong>de</strong> interpretaçãoaprofundada da informação. Por outro lado, se aosintérpretes for pedido que chamem a atenção domédico para os factores culturais, religiosos esociais relevantes, é fundamental que não tenteminfluenciar <strong>de</strong> qualquer forma as respostas davítima às perguntas que lhe são colocadas. Caso nãoseja utilizada a tradução literal, o médico <strong>de</strong>ver-se-áassegurar <strong>de</strong> que as respostas do paciente, conformetraduzidas pelo intérprete, representam unicamenteaquilo que a pessoa disse sem quaisqueradições ou supressões feitas pelo intérprete. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda abordagem escolhida, na selecçãodo intérprete <strong>de</strong>ver-se-á ter em conta arespectiva i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, origem étnica e cultural efiliação politica. A vítima <strong>de</strong> tortura tem <strong>de</strong> confiarque o intérprete compreen<strong>de</strong> o que diz e o comunicacorrectamente ao médico investigador.O intérprete não <strong>de</strong>verá, em circunstância alguma,ser um funcionário responsável pela aplicação dalei ou agente do Estado. Também não <strong>de</strong>ve recorrer-sea membros da família da vítima para proce<strong>de</strong>rà interpretação, por questões <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>.A equipa <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong>verá escolher umintérprete in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.3. COMPONENTES DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA//PSIQUIÁTRICA274. A introdução <strong>de</strong>verá indicar a fonte <strong>de</strong> referênciaprincipal, um resumo das fontes colaterais(tais como ficheiros clínicos, psiquiátricos e legais)e uma <strong>de</strong>scrição dos métodos <strong>de</strong> avaliação utilizados(entrevistas, inventários <strong>de</strong> sintomas, listas<strong>de</strong> verificação e testes neuropsicológicos).(a)Relato da tortura e maus tratos275. Deverão ser feitos todos os esforços paradocumentar todo o relato <strong>de</strong> tortura, perseguiçãoe outras experiências traumáticas relevantes(vi<strong>de</strong> capítulo IV, secção E). Esta parte da avaliaçãoé muitas vezes extenuante para a pessoa avaliada.Por isso, po<strong>de</strong> ser necessário levá-la a caboem diversas sessões. A entrevista <strong>de</strong>verá começarcom um resumo geral dos acontecimentos, antes<strong>de</strong> entrar nos <strong>de</strong>talhes da experiência <strong>de</strong> tortura.80*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


O entrevistador necessita <strong>de</strong> conhecer as questõesjurídicas em causa, uma vez que as mesmas irão<strong>de</strong>terminar a natureza e quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informaçãonecessária para a a<strong>de</strong>quada documentaçãodos factos.(b) Queixas psicológicas actuais276. A avaliação do estado psicológicoactual da pessoa constituia parte fundamental daavaliação. Uma vez que os prisioneiros<strong>de</strong> guerra severamentemaltratados e as vítimas<strong>de</strong> violação manifestam umaincidência <strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático permanenteem cerca <strong>de</strong> 80 a 90 porcento dos casos, há que formularperguntas especificamenteinci<strong>de</strong>ntes sobre as trêscategorias <strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumáticosegundo a classificação do DSM-IV (revivero acontecimento traumatizante, evitar ou reprimiras reacções, nomeadamente através daamnésia, e sobreexcitação) 113 114 . Os sintomasafectivos, cognitivos e comportamentais <strong>de</strong>vem ser<strong>de</strong>scritos em <strong>de</strong>talhe, assim como a frequência dospesa<strong>de</strong>los, alucinações e reacções <strong>de</strong> sobressalto,se possível com exemplos concretos. A ausência<strong>de</strong> sintomas po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ver-se à natureza episódicae muitas vezes diferida da perturbação <strong>de</strong> stresspós-traumático ou à negação dos sintomas porvergonha.(c)Situação subsequente à tortura113 B. O. Rothbaum eoutros, “A prospective examinationof post-traumaticstress disor<strong>de</strong>r rape victims”[em português: “Uma análiseprospectiva da perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumáticonas vítimas <strong>de</strong> violação”],Journal of Traumatic Stress,5, 1992, pp. 455 a 475.114 P. B. Sutker, D. K. Winstead,Z. H. Galina, “Cognitive<strong>de</strong>ficits andpsycho-pathology amongformer prisoners of war andcombat veterans of theKorean conflict” [em português:“Défices cognitivos epsico-patologias entre osprisioneiros <strong>de</strong> guerra eveteranos <strong>de</strong> combate doconflito da Coreia”] AmericanJournal of Psychiatry,148, 1991, pp. 62 a 72.277. Esta componente da avaliação psicológicavisa obter informação sobre as actuais circunstâncias<strong>de</strong> vida da pessoa. É importante inquirira respeito <strong>de</strong> actuais causas <strong>de</strong> stress, comoa separação ou perda <strong>de</strong> entes queridos, abandonodo país <strong>de</strong> origem e vida no exílio. O entrevistador<strong>de</strong>verá também tentar <strong>de</strong>terminar a capacida<strong>de</strong>da pessoa para levar uma vida produtiva,garantir a sua subsistência e cuidar da sua família,bem como os mecanismos <strong>de</strong> apoio social aoseu dispor.(d) Situação anterior à tortura278. Se relevante, <strong>de</strong>screva a infância, adolescênciae entrada na vida adulta da vítima, antece<strong>de</strong>ntese composição familiar e doenças <strong>de</strong> família.Deverá também ser <strong>de</strong>scrito o percurso escolar eprofissional da pessoa, bem como quaisquer antece<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> trauma, por exemplo maus tratosdurante a infância, traumas <strong>de</strong> guerra ou violênciadoméstica, e ainda o contexto cultural e religiosoem que a vítima se insere.279. A <strong>de</strong>scrição da situação anterior à tortura éimportante para avaliar o estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mentale nível <strong>de</strong> funcionamento psicossocial da pessoaantes dos acontecimentos traumatizantes. Destaforma, o entrevistador po<strong>de</strong> comparar o estado <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> mental da vítima antes e <strong>de</strong>pois da tortura.Na avaliação dos antece<strong>de</strong>ntes do caso, o entrevistador<strong>de</strong>ve ter em conta que a duração e gravida<strong>de</strong>das reacções ao trauma são influenciadas pormúltiplos factores, nomeadamente os seguintes: circunstânciasda tortura; percepção e interpretaçãodo sucedido pela vítima; contexto social antes,durante e <strong>de</strong>pois da tortura; apoio da comunida<strong>de</strong>e dos colegas; valores e atitu<strong>de</strong>s perante as experiênciastraumatizantes; factores políticos e culturais;gravida<strong>de</strong> e duração dos acontecimentostraumatizantes; vulnerabilida<strong>de</strong>s genéticas e biológicas;maturida<strong>de</strong> e ida<strong>de</strong> da vítima; traumasanteriores e personalida<strong>de</strong> da pessoa. Muitasvezes, <strong>de</strong>vido a limitações <strong>de</strong> tempo e outros problemas,po<strong>de</strong> ser difícil obter toda esta informação.É, contudo, importante obter dados suficientessobre o anterior estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental da pessoae funcionamento psicossocial, a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r avaliaraté que ponto a tortura contribuiu para os problemaspsicológicos actuais.(e)Historial clínico280. O historial clínico resume as condições <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> da pessoa anteriores ao trauma, condições<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> actuais, dores no corpo, queixas somáticas,utilização <strong>de</strong> medicamentos e seus efeitoscolaterais, antece<strong>de</strong>ntes sexuais relevantes, intervençõescirúrgicas a que foi submetida e outrosdados médicos (vi<strong>de</strong> capítulo V, secção B).Indícios psicológicos da tortura* 81


(f ) Historial psiquiátrico281. Devem tentar apurar-se quaisquer antece<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> distúrbios mentais ou psicológicos,natureza dos problemas e tratamento seguido ounecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> internamento em hospital psiquiátrico.O inquérito <strong>de</strong>verá também abranger aanterior utilização terapêutica <strong>de</strong> substâncias psicotrópicas.(g) Uso e abuso <strong>de</strong> substâncias tóxicas282. O médico <strong>de</strong>verá interrogar o paciente sobreo uso <strong>de</strong> substâncias tóxicas antes e <strong>de</strong>pois da tortura,alterações no padrão <strong>de</strong> consumo e motivosque as justificam (por exemplo, para combater ainsónia ou problemas psicológicos/psiquiátricos).Consi<strong>de</strong>ram-se substâncias tóxicas, não apenas oálcool, cannabis e ópio, mas também substâncias<strong>de</strong> utilização regional, como a noz <strong>de</strong> bétele e muitasoutras.(h)Exame do estado mental283. O exame do estado mental inicia-se nomomento em que o médico entra em contactocom o sujeito. O entrevistador <strong>de</strong>verá tomar notada aparência da pessoa, nomeadamente <strong>de</strong> quaisquersinais <strong>de</strong> má nutrição, falta <strong>de</strong> limpeza, alteraçõesda activida<strong>de</strong> motora durante a entrevista,utilização da linguagem, contacto visual, capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> estabelecer relação com o entrevistador e meiosutilizados pela pessoa para comunicar. No relatórioda avaliação psicológica <strong>de</strong>ver-se-ão incluirtodos os aspectos do exame do estado mental,abrangendo os seguintes componentes: aparênciageral, activida<strong>de</strong> motora, discurso, humor eafectivida<strong>de</strong>, conteúdo e processo <strong>de</strong> raciocínio,i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> suicídio e homicídio e exame cognitivo(orientação e memória <strong>de</strong> longo, médio e curtoprazo).(i)Avaliação do funcionamento social284. A tortura e outras experiências traumatizantespo<strong>de</strong>m afectar directa e indirectamente a capacida<strong>de</strong>funcional da pessoa. Indirectamente, atortura po<strong>de</strong> também comprometer o funcionamentoe provocar incapacida<strong>de</strong>s, caso as consequênciaspsicológicas da experiência limitem ascapacida<strong>de</strong>s da pessoa para tomar conta <strong>de</strong> simesma, ganhar o seu sustento, manter uma famíliaou prosseguir os estudos. O médico <strong>de</strong>verá avaliaro actual nível <strong>de</strong> funcionamento da pessoa,inquirindo-a a respeito das suas activida<strong>de</strong>s quotidianas,papel social (como dona <strong>de</strong> casa, estudante,trabalhador), activida<strong>de</strong>s sociais e recreativas e percepçãodo respectivo estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. O entrevistador<strong>de</strong>verá pedir ao paciente que avalie o seupróprio estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, indique a presença ouausência <strong>de</strong> sensações <strong>de</strong> fadiga crónica e assinalequaisquer alterações <strong>de</strong> que se tenha eventualmenteapercebido no seu funcionamento geral.(j) Testes psicológicos e utilização <strong>de</strong> listas<strong>de</strong> controlo e questionários285. Pouco está publicado a respeito da utilização<strong>de</strong> testes psicológicos (testes <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> projectivose objectivos) na avaliação dos sobreviventes<strong>de</strong> tortura. Para além disso, os testespsicológicos <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> não têm valida<strong>de</strong>inter-cultural. A combinação <strong>de</strong>stes factores limitaem gran<strong>de</strong> medida a utilida<strong>de</strong> dos testes psicológicosna avaliação das vítimas <strong>de</strong> tortura. Os testesneuropsicológicos po<strong>de</strong>m, contudo, revestir-se<strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> na avaliação dos casos <strong>de</strong> lesão cerebralresultante <strong>de</strong> tortura (vi<strong>de</strong> secção C.4, infra).Um sobrevivente <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong> torturapo<strong>de</strong>rá ter dificulda<strong>de</strong> em exprimir por palavras assuas próprias experiências e sintomas. Em <strong>de</strong>terminadoscasos, po<strong>de</strong> ser conveniente utilizar listas<strong>de</strong> controlo ou questionários sobre experiênciastraumatizantes e sintomas. Existem inúmerosmo<strong>de</strong>los disponíveis, embora nenhum específicopara vítimas <strong>de</strong> tortura.(k)Impressão clínica286. Na formulação <strong>de</strong> uma impressão clínicapara a documentação <strong>de</strong> indícios psicológicos <strong>de</strong>tortura, <strong>de</strong>ver-se-ão colocar as seguintes questõesimportantes:i) As constatações do exame psicológico sãoconformes aos factos <strong>de</strong> tortura alegados?82*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


ii) As constatações do exame psicológico constituemreacções habituais ou típicas <strong>de</strong> situações<strong>de</strong> stress intenso <strong>de</strong>ntro do contexto cultural esocial da pessoa?iii) Dada a natureza evolutiva dos distúrbiosmentais <strong>de</strong> origem traumática, a que momentoremonta a tortura? Em que ponto do processo <strong>de</strong>recuperação se encontra o indivíduo?iv) Que factores <strong>de</strong> stress concomitantes actuamsimultaneamente sobre o indivíduo (por exemplo,situação <strong>de</strong> perseguição em curso, migração forçada,exílio, perda da família e do papel social)? Queimpacto têm estes factores sobre a pessoa?v) Que problemas físicos intervêm no quadro clínico?Preste especial atenção a lesões cranianassofridas durante a sessão <strong>de</strong> tortura ou período <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção;vi) O quadro clínico sugere uma falsa alegação<strong>de</strong> tortura?287. Os médicos <strong>de</strong>verão pronunciar-se sobre acoerência das observações psicológicas e sua relaçãocom os alegados maus tratos. Dever-se-ão<strong>de</strong>screver os seguintes parâmetros: estado emocionale expressão da pessoa durante a entrevista;seus sintomas; relato da situação <strong>de</strong><strong>de</strong>tenção e tortura; história pessoal do indivíduoantes da tortura. Também <strong>de</strong>verão ser registadosfactores como o surgimento <strong>de</strong> sintomas específicosrelacionados com o traumatismo, especificida<strong>de</strong><strong>de</strong> quaisquer observações psicológicas emconcreto e padrões <strong>de</strong> funcionamento psicológico.Entre os factores adicionais a ter em conta,incluem-se a migração forçada, reinstalação, dificulda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> aculturação, problemas linguísticos,<strong>de</strong>semprego, perda do lar, família e estatutosocial. Dever-se-á avaliar e <strong>de</strong>screver a relação ecoerência entre os acontecimentos e os sintomas.Os problemas físicos, tais como traumatismoscranianos ou lesões cerebrais, po<strong>de</strong>m exigiruma avaliação mais aprofundada. Po<strong>de</strong> recomendar-sea realização <strong>de</strong> exames neurológicosou neuropsicológicos.288. Caso o sobrevivente <strong>de</strong> tortura apresentesintomas que se enquadrem num dos diagnósticospsiquiátricos das classificações DSM-IV ouCID-10, o diagnóstico em causa <strong>de</strong>verá ser mencionado.Po<strong>de</strong> ser aplicável mais do que um diagnóstico.Deverá salientar-se <strong>de</strong> novo que, emboraum diagnóstico <strong>de</strong> perturbação mental <strong>de</strong> origemtraumática corrobore a alegação <strong>de</strong> tortura, o facto<strong>de</strong> a pessoa não satisfazer os critérios <strong>de</strong> diagnósticopsiquiátrico não permite concluir pelafalsida<strong>de</strong> das alegações. A vítima po<strong>de</strong> não apresentarsintomas que correspondam exactamentea uma das categorias mencionadas nas classificaçõesDSM-IV ou CID-10. Nestes casos, como emtodos os outros, os sintomas apresentados pela pessoae os maus tratos alegados <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radoscomo um todo. O grau <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong>entre o relato <strong>de</strong> tortura e os sintomas <strong>de</strong> que avítima se queixa <strong>de</strong>verão ser avaliados e <strong>de</strong>scritosno relatório.289. É importante reconhecer que algumas pessoasapresentam falsas alegações <strong>de</strong> tortura por diversosmotivos diferentes e que outras po<strong>de</strong>m exagerara gravida<strong>de</strong> do inci<strong>de</strong>nte por razões pessoais ou políticas.O investigador <strong>de</strong>ve ter sempre presenteestas possibilida<strong>de</strong>s e tentar i<strong>de</strong>ntificar eventuaismotivos que possam levar o sujeito a inventar ouexagerar a história. O médico <strong>de</strong>verá também terem conta, contudo, que tal invenção dos factosexige um conhecimento aprofundado dos sintomas<strong>de</strong> origem traumática que um leigo raramentepossui. As incoerências do relato po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ver-sea uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> razões válidas, como problemas<strong>de</strong> memória <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> lesão cerebral,confusão, dissociação, diferenças culturais na percepçãodo tempo ou fragmentação e repressão dasmemórias traumatizantes. A documentação eficazdos indícios psicológicos da tortura exige queo médico tenha a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliar as coerênciase incoerências do testemunho da vítima. Se oentrevistador suspeitar <strong>de</strong> que a história foi fabricada,<strong>de</strong>verá marcar novas entrevistas para esclareceros pontos que lhe suscitam dúvidas. Osfamiliares e amigos po<strong>de</strong>m também confirmar<strong>de</strong>terminados factos. Se, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todas estas diligências,as dúvidas quanto à veracida<strong>de</strong> da históriapersistirem, o médico <strong>de</strong>verá tomar a iniciativa<strong>de</strong> encaminhar o paciente para outro médico epedir a opinião do colega. A suspeita <strong>de</strong> falsas alegações<strong>de</strong>verá ser documentada com o parecer <strong>de</strong>dois médicos.Indícios psicológicos da tortura* 83


(l)Recomendações290. As recomendações resultantes da avaliaçãopsicológica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da questão colocadaaquando do pedido <strong>de</strong> realização do exame. Asquestões em causa po<strong>de</strong>m ter a ver com questõesjurídicas e judiciais, pedidos <strong>de</strong> asilo, reinstalaçãoou necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento. Po<strong>de</strong> recomendar--se a realização <strong>de</strong> avaliações mais aprofundadas,como testes neuropsicológicos, sujeição a tratamentomédico ou psiquiátrico, ou a concessão <strong>de</strong>asilo ou medidas <strong>de</strong> segurança.4. AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA115 A. R. Luria e L. V.291. A neuropsicologia clínica é uma ciênciaaplicada que se ocupa das expressões comportamentaisdas disfunções cerebrais. A avaliação neuropsicológica,em particular, ocupa-se da medição 294. A avaliação neuropsicológica,84 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong> tal como tem sido <strong>de</strong>senchesused in American andMajovski, “Basic approa-e classificação dos distúrbios comportamentaisSoviet clinical neuropsychology”[em português: “Abor-associados às lesões orgânicas do cérebro. Esta volvida e praticada nos paísesdagens básicas utilizadas nadisciplina é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito consi<strong>de</strong>rada útil para oci<strong>de</strong>ntais, baseia-se sobretudo neuropsicologia clínica americanae soviética”], AmericanPsychologist, 32 (11),fazer a distinção entre os problemas neurológicos numa metodologia actuarial.1977, pp. 959 a 968.e psicológicos e orientar o tratamento e a reabilitaçãodos pacientes que sofrem as consequênciasR. J. Ivnik, “Overstate-Trata-se essencialmente <strong>de</strong>comparar os resultados <strong>de</strong> uma ment of differences” [emportuguês: “Sobrevalorizaçãodas diferenças”], Ameri-<strong>de</strong> diversos tipos <strong>de</strong> lesões cerebrais. As avaliaçõessérie <strong>de</strong> testes estandardizadosneuropsicológicas das vítimas <strong>de</strong> tortura não com as normas vigentes numa 1978, pp. 766 a 767.can Psychologist, 33 (8),são frequentes e, até à data, não existem quaisquer <strong>de</strong>terminada população-tipo.estudos neuropsicológicos publicados sobre estegrupo <strong>de</strong> pessoas em concreto. As observaçõesque se seguem limitam-se, assim, a invocar osprincípios gerais nos quais os profissionais <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>m apoiar para compreen<strong>de</strong>r a utilida<strong>de</strong>e as indicações <strong>de</strong> avaliação neuropsicológica<strong>de</strong> uma presumível vítima <strong>de</strong> tortura. Antes<strong>de</strong> entrar na discussão da utilida<strong>de</strong> e indicações daavaliação neuropsicológica, é fundamental reconheceras limitações do processo nesta população.Embora as interpretações da avaliação neuropsicológicarealizadas com base em normas possamser completadas com uma análise qualitativa dosresultados, em particular quando a situação clínicao exige, a abordagem actuarial continua a ser predominante. Para além disso, o trabalho combase em resultados <strong>de</strong> testes faz-se sobretudo noscasos <strong>de</strong> lesões cerebrais ligeiras a mo<strong>de</strong>radas, enão nas situações <strong>de</strong> lesão grave, ou quando se julgaque os défices neuropsicológicos são consequência<strong>de</strong> distúrbios psiquiátricos.(a) Limitações da avaliação neuropsicológica295. As diferenças culturais e linguísticas po<strong>de</strong>m292. Existem diversos factores que dificultam <strong>de</strong>forma geral a avaliação das vítimas <strong>de</strong> tortura e quesão referidos noutras partes do presente manual.Estes factores aplicam-se à avaliação neuropsicológicada mesma forma que aos exames médicosou psicológicos. As avaliações neuropsicológicaspo<strong>de</strong>m ser condicionadas por vários factores adi-limitar significativamente a utilida<strong>de</strong> e aplicabilida<strong>de</strong>da avaliação neuropsicológica às presumíveisvítimas <strong>de</strong> tortura. As avaliações neuropsicológicastêm uma valida<strong>de</strong> muito questionável quando nãoexistem traduções normalizadas dos testes e omédico examinador não domina a língua dopaciente. Se estes dois requisitos não estiveremcionais, incluindo a falta <strong>de</strong> estudos específicossobre as vítimas <strong>de</strong> tortura, a utilização <strong>de</strong> normas<strong>de</strong> referência elaboradas para <strong>de</strong>terminados gruposem particular, as diferenças culturais e linguísticase o risco <strong>de</strong> re-traumatização das vítimas.293. Conforme supra referido, encontram-semuito poucas referências específicas à avaliaçãoneuropsicológica das vítimas <strong>de</strong> tortura na literaturaexistente. Os únicos documentos pertinentesna matéria versam sobre os diversos tipos <strong>de</strong> traumatismoscranianos e a avaliação neuropsicológicada perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático emgeral. Por isso, as consi<strong>de</strong>rações seguintes e suainterpretação baseiam-se necessariamente na aplicação<strong>de</strong> princípios gerais utilizados com outros grupos<strong>de</strong> pacientes.


preenchidos, não será <strong>de</strong> todo possível realizartestes orais nem interpretá-los <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada.Isto significa que apenas se po<strong>de</strong>rá recorrer a testesnão verbais, o que impe<strong>de</strong> a comparação entreas faculda<strong>de</strong>s verbais e não verbais. Para alémdisso, a análise da lateralização (ou localização)dos défices torna-se mais difícil. E esta análise émuitas vezes importante <strong>de</strong>vido à organizaçãoassimétrica do cérebro, em que o hemisférioesquerdo domina tipicamente a função da fala. Senão existirem normas <strong>de</strong> referência específicas dogrupo cultural e linguístico do sujeito, a valida<strong>de</strong>da avaliação neuropsicológica é também questionável.A estimativa do QI é um dos principais critériosque permitem aos examinadores colocar osresultados dos testes na perspectiva correcta.Assim, por exemplo, na população dos EstadosUnidos estas estimativas calculam-se em geral a partir<strong>de</strong> subgrupos <strong>de</strong> testes verbais que utilizam asescalas <strong>de</strong> Wechsler, em particular a sub-escala <strong>de</strong>informação, porque, na presença <strong>de</strong> lesão cerebralorgânica, os conhecimentos factuais adquiridossão menos susceptíveis <strong>de</strong> sofrer <strong>de</strong>terioraçãodo que as restantes funções e mais representativosda anterior capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizagem do queoutros padrões <strong>de</strong> medida. As medições po<strong>de</strong>m tambémbasear-se nos antece<strong>de</strong>ntes escolares e profissionais,e nos dados <strong>de</strong>mográficos. Obviamente,nenhuma <strong>de</strong>stas consi<strong>de</strong>rações é aplicável às pessoaspertencentes a grupos relativamente aosquais não tenham sido <strong>de</strong>terminadas normas <strong>de</strong>referência. Por isso, nestes casos só po<strong>de</strong>m serfeitas estimativas muito grosseiras do funcionamentointelectual anterior ao trauma. Consequentemente,as incapacida<strong>de</strong>s neuropsicológicasque não cheguem a ser graves ou mo<strong>de</strong>radaspo<strong>de</strong>m ser difíceis <strong>de</strong> interpretar.296. As avaliações neuropsicológicas po<strong>de</strong>m provocarnovos traumas às vítimas <strong>de</strong> tortura. Devemser tomadas todas as precauções com os procedimentos<strong>de</strong> diagnóstico empregues para minimizareste risco (vi<strong>de</strong> capítulo IV, secção H). Para dar apenasum exemplo óbvio e específico da avaliaçãoneuropsicológica, seria potencialmente muito prejudicialsubmeter a pessoa ao processo normal dabateria Halstead-Reitan, e em particular ao Teste<strong>de</strong> Desempenho Táctil (Tactual Performance Test– TPT), vendando os olhos do paciente como é habitual.Para a maior parte das vítimas <strong>de</strong> tortura quetenham sido vendadas durante o período <strong>de</strong> <strong>de</strong>tençãoe tortura, e mesmo para as que o não tenhamsido, seria muitíssimo traumatizante experimentara sensação <strong>de</strong> impotência inerente a este procedimento.Na verda<strong>de</strong>, qualquer tipo <strong>de</strong> testeneuropsicológico po<strong>de</strong> ser problemático em simesmo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do instrumento utilizado.O facto <strong>de</strong> a pessoa se sentir observada, vero seu tempo cronometrado e ser instada a colocaro máximo <strong>de</strong> esforço no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> umatarefa que não lhe é familiar, em vez <strong>de</strong> dialogar,po<strong>de</strong> tornar-se <strong>de</strong>masiado angustiante ou evocar aexperiência <strong>de</strong> tortura.(b) Indicações para a avaliação neuropsicológica297. Na avaliação dos problemas comportamentaisdas presumíveis vítimas <strong>de</strong> tortura, a avaliaçãoneuropsicológica está indicada sobretudo em duassituações: lesões cerebrais e perturbação <strong>de</strong> stresspós-traumático e lesões afins. Embora ambos osproblemas tenham aspectos em comum, e muitasvezes coinci<strong>de</strong>ntes, apenas o primeiro constituiuma aplicação típica e tradicional da neuropsicologiaclínica, ao passo que o segundo é uma árearelativamente nova, pouco estudada e bastanteproblemática.298. As lesões do cérebro e danos cerebrais daíresultantes po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> diversos tipos <strong>de</strong>traumatismos cranianos e distúrbios metabólicosinfligidos durante os períodos <strong>de</strong> perseguição,<strong>de</strong>tenção e tortura. Aqui se incluem feridas <strong>de</strong>bala, sequelas <strong>de</strong> envenenamento, malnutriçãoresultante <strong>de</strong> privação <strong>de</strong> alimentos ou ingestão forçada<strong>de</strong> substâncias nocivas, sequelas <strong>de</strong> hipoxiaou anoxia resultantes <strong>de</strong> asfixia ou quase afogamentoe, mais frequentemente, <strong>de</strong> pancadas nacabeça aplicadas durante sessões <strong>de</strong> espancamento.As pancadas na cabeça são uma práticacorrente em situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção e tortura. Porexemplo, um estudo realizado junto <strong>de</strong> uma amostra<strong>de</strong> vítimas <strong>de</strong> tortura revelou que as pancadasna cabeça eram indicadas como a segunda formamais frequente <strong>de</strong> violência física (45 por cento),logo <strong>de</strong>pois das pancadas no corpo (58 porIndícios psicológicos da tortura* 85


cento) 117 . A incidência <strong>de</strong> lesõescerebrais é elevada entre as vítimas<strong>de</strong> tortura.117 H. C. Traue, G. Schwarz--Langer, N. F. Gurris,“Extremtraumatisierungdurch Folter. Die psychotherapeutischeArbeit <strong>de</strong>rBehandlungszentren für Folteropfer”,VerhaltenstherapieundVerhaltensmedizin, 1,1997, pp. 41 a 62.299. As lesões cerebrais internascausadoras <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong>spermanentes ligeiras a mo<strong>de</strong>radas sãoporventura a causa mais frequentemente observada<strong>de</strong> distúrbios neuropsicológicos. Embora os ferimentospossam <strong>de</strong>ixar cicatrizes na cabeça, emgeral as lesões cerebrais não são <strong>de</strong>tectáveis atravésdas técnicas <strong>de</strong> imagiologia cerebral. As lesõescerebrais <strong>de</strong> grau ligeiro a mo<strong>de</strong>rado po<strong>de</strong>m passar<strong>de</strong>spercebidas ou ser subestimadas pelos profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental <strong>de</strong>vido ao facto <strong>de</strong> ossintomas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão ou perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático dominarem o quadro clínico, o queleva a que seja prestada menos atenção às eventuaisconsequências <strong>de</strong> um traumatismo craniano. Asvítimas <strong>de</strong> tortura queixam-se frequentemente <strong>de</strong>dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atenção, concentração e memóriaa curto prazo, que tanto po<strong>de</strong>m resultar <strong>de</strong> lesõescerebrais como <strong>de</strong> perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático.O facto <strong>de</strong> estas serem queixas comunsentre as vítimas afectadas pela perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático po<strong>de</strong> levar a que o clínico nemchegue a colocar a hipótese <strong>de</strong> lesão cerebral.300. Na fase inicial do exame, o diagnóstico<strong>de</strong>verá basear-se no relato que a pessoa faz dostraumatismos sofridos e evolução da sintomatologia.Como acontece geralmente com as pessoas quesofrem <strong>de</strong> lesões cerebrais, a informação prestadapor terceiras partes, em particular familiares, po<strong>de</strong>revelar-se importante. Deve recordar-se que aspessoas afectadas por lesões cerebrais têm muitasvezes gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s em verbalizar oumesmo constatar as suas limitações uma vez queestão, por assim dizer, “<strong>de</strong>ntro” do problema.A <strong>de</strong>terminação do carácter crónico dos sintomaspo<strong>de</strong> ser um ponto <strong>de</strong> partida útil para tentar estabelecerse os mesmos resultam <strong>de</strong> lesões orgânicasdo cérebro ou <strong>de</strong> uma perturbação <strong>de</strong> stresspós-traumático. Se os problemas <strong>de</strong> atenção, concentraçãoe memória flutuam ao longo do tempoem função dos níveis <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pressão, provavelmenteestar-se-á em presença <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong>perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático. Pelo contrário,se os distúrbios parecem ser crónicos, nãoapresentam flutuações e são confirmados pormembros da família, <strong>de</strong>ve colocar-se a hipótese <strong>de</strong>disfunção orgânica, mesmo que, num primeiromomento, não haja alegação clara <strong>de</strong> traumatismocraniano.301. Havendo suspeita <strong>de</strong> lesão orgânica do cérebro,o profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental <strong>de</strong>verá, emprimeiro lugar, consi<strong>de</strong>rar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encaminhara pessoa para um médico a fim <strong>de</strong> que esteproceda a um exame neurológico mais <strong>de</strong>talhado.Em função das suas observações iniciais, o médicopo<strong>de</strong>rá então consultar um neurologista ou prescrevera realização <strong>de</strong> testes <strong>de</strong> diagnóstico. Entreas opções a consi<strong>de</strong>rar, incluem-se a realização <strong>de</strong>check-up médico completo, consulta neurológicaespecífica e avaliação neuropsicológica. O recursoaos métodos <strong>de</strong> avaliação neuropsicológica é geralmenteindicado caso não existam indícios <strong>de</strong> perturbaçãoneurológica grave, se os sintomasobservados forem <strong>de</strong> natureza predominantementecognitiva ou se houver necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecerum diagnóstico diferencial entre lesãocerebral e perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático.302. A selecção dos testes e procedimentos neuropsicológicosestá sujeita às limitações acimaindicadas e não po<strong>de</strong>, por isso, utilizar-se umabateria <strong>de</strong> testes normalizada, <strong>de</strong>vendo antesoptar-se por uma abordagem individualizada eadaptada às características do paciente. A flexibilida<strong>de</strong>necessária na selecção <strong>de</strong> testes e procedimentosexige consi<strong>de</strong>rável experiência,conhecimentos e cuidado por parte do examinador.Tal como acima referido, o conjunto <strong>de</strong> instrumentosa utilizar ver-se-á frequentemente limitadoa provas não orais, sendo provável que ascaracterísticas psicométricas <strong>de</strong> quaisquer testesnormalizados sejam afectadas caso não existamnormas <strong>de</strong> referência aplicáveis à pessoa emcausa. A ausência <strong>de</strong> avaliação oral constitui umsério obstáculo. Muitas áreas do funcionamentocognitivo são mediadas através da linguagem erecorre-se tipicamente à comparação sistemáticaentre os diversos parâmetros verbais e não verbaispara chegar a conclusões quanto à natureza dosdéfices.86*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


303. A questão complica-seainda mais pelo facto <strong>de</strong> seregistarem diferenças significativasnos resultados dos testesnão verbais aplicados a grupospertencentes a culturas relativamentepróximas. Por exemplo,foram comparados os resultados<strong>de</strong> uma pequena bateria <strong>de</strong>testes neuropsicológicos aplicadaa duas amostras populacionais<strong>de</strong> 118 idosos cada, sendo um dos gruposcomposto por pessoas <strong>de</strong> língua inglesa e outro porpessoas <strong>de</strong> língua espanhola 118 . As amostras foramseleccionadas ao acaso entre populações <strong>de</strong>mograficamentesimilares. E, no entanto, embora osresultados dos testes verbais tenham sido análogos,as pessoas <strong>de</strong> língua espanhola obtiveram resultadossignificativamente mais baixos em quase todos ostestes não verbais. Estes resultados sugerem anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar as maiores precauções na aplicação<strong>de</strong> testes verbais e não verbais elaborados porsujeitos anglófonos a pessoas não anglófonas.304. A escolha dos instrumentose procedimentos <strong>de</strong> avaliaçãoneuropsicológica das alegadasvítimas <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>ixadoao critério do médico, que118 D. M. Jacobs e outros,”Cross-cultural neuropsychologicalassessment: acomparison of randomlyselected, <strong>de</strong>mographicallymatched cohorts of Englishand Spanish-speaking ol<strong>de</strong>radults” [em português:“Avaliação neuropsicológicainter-cultural: uma comparação<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> idosos<strong>de</strong> língua inglesa e línguaespanhola escolhidos aoacaso entre populações<strong>de</strong>mograficamente similares”],Journal of Clinicaland Experimental Neuropsychology,19 (3), 1997,pp. 331 a 339.119 O. Spreen e E. Strauss,A Compendium of NeuropsychologicalTests [emportuguês: Compêndio <strong>de</strong>Testes Neuropsicológicos],Nova Iorque, OxfordUniversity Press.fará a sua opção em função das exigências e condicionalismosda situação. A utilização eficaz <strong>de</strong>testes neuropsicológicos exige experiência econhecimentos aprofundados das relações entreo cérebro e o comportamento. Po<strong>de</strong>m encontrar--se listas completas dos procedimentos e testes <strong>de</strong>avaliação neuropsicológica e formas <strong>de</strong> os utilizarcorrectamente na bibliografia <strong>de</strong> referência119 .referência aplicáveis à populaçãoa que pertencem as vítimasem causa, colocam-se gran<strong>de</strong>sdificulda<strong>de</strong>s. A perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático constituium distúrbio psiquiátrico que120 J. A. Knight, “Neuropsychologicalassessment inpost-traumatic stress disor<strong>de</strong>r”[em português: “Avaliaçãoneuropsicológica naperturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático”], AssessingPsychological Trauma andPTSD, J. P. Wilson e T. M.Keane, eds., Nova Iorque,Guilford, 1997.não é tradicionalmente objecto <strong>de</strong> avaliação neuropsicológica.Para além disso, a perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático não se presta à aplicação domo<strong>de</strong>lo clássico <strong>de</strong> análise das lesões cerebraisi<strong>de</strong>ntificáveis e susceptíveis <strong>de</strong> confirmação através<strong>de</strong> técnicas médicas. Recentemente, os paradigmasneuropsicológicos têm vindo a serinvocados com mais frequência do que no passado,<strong>de</strong>vido ao interesse acrescido pelos mecanismosbiológicos associados aos distúrbiospsiquiátricos em geral, e progressos alcançadosna compreensão dos mesmos. Contudo, como jáfoi dito: “[...] até à data, pouco se escreveu sobre aperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático sob umaperspectiva neuropsicológica” 120 .306. As amostras utilizadas no estudo das mediçõesneuropsicológicas da perturbação <strong>de</strong> stresspós-traumático variam bastante, o que po<strong>de</strong> contribuirpara a variação dos problemas cognitivosi<strong>de</strong>ntificados por tais estudos. Alguns autores consi<strong>de</strong>raramque “as observações clínicas sugerem queos sintomas da perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumáticocoinci<strong>de</strong>m na sua maioria com os domíniosneurocognitivos da atenção, memória e funcionamentoexecutivo”. Isto está <strong>de</strong> acordo com asqueixas frequentemente manifestadas pelos sobreviventes<strong>de</strong> tortura. Estas pessoas queixam-se <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> concentração e <strong>de</strong> se sentiremincapazes <strong>de</strong> reter informação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolveremactivida<strong>de</strong>s planeadas e orientadas para objectivosconcretos.(c)Perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático305. Das consi<strong>de</strong>rações acima expostas, resultaclaramente que <strong>de</strong>verão ser tomadas as maiores precauçõesna avaliação <strong>de</strong> disfunções cerebrais dasalegadas vítimas <strong>de</strong> tortura. Estas precauções sãoainda mais necessárias no diagnóstico da perturbação<strong>de</strong> stress pós-traumático através da avaliaçãoneuropsicológica. Mesmo que existam normas <strong>de</strong>307. Os métodos <strong>de</strong> avaliação neuropsicológicapermitem, em princípio, <strong>de</strong>tectar défices neurocognitivosassociados à perturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático, embora a especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes déficesseja mais difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar. Alguns estudosconfirmaram a presença <strong>de</strong> tais défices em pessoasafectadas pela perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático,por comparação com os exames gerais, mas asobservações não pu<strong>de</strong>ram ser confirmadas porIndícios psicológicos da tortura* 87


exames psiquiátricos equiparados121 122 . Por outras palavras, éprovável que os testes neuropsicológicos<strong>de</strong>tectem os déficesneurocognitivos associados aostress pós-traumático, mas sejaminsuficientes para diagnosticar aperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumáticoem si mesma. Comoacontece com muitos outrostipos <strong>de</strong> avaliação, a interpretaçãodos resultados dos testes<strong>de</strong>verá ter em conta as informações recolhidas nasentrevistas e eventuais testes <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>.Neste sentido, os métodos específicos <strong>de</strong> avaliaçãoneuropsicológica po<strong>de</strong>m contribuir para o diagnósticoda perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático damesma forma que o fazem no caso <strong>de</strong> outros distúrbiospsiquiátricos associados a défices neurocognitivosconhecidos.308. Apesar das suas significativas limitações, aavaliação neuropsicológica po<strong>de</strong>rá ser útil paraavaliar os indivíduos que se suspeite pa<strong>de</strong>cerem <strong>de</strong>lesões cerebrais e para distinguir as lesões cerebraisda perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático. Po<strong>de</strong>rátambém recorrer-se à avaliação neuropsicológicapara avaliar sintomas específicos, tais como problemas<strong>de</strong> memória resultantes da perturbação <strong>de</strong>stress pós-traumático e distúrbios associados.5. CRIANÇAS E TORTURA121 J. E. Dalton, S. L. Pe<strong>de</strong>rson,J. J. Ryan, “Effects ofpost-traumatic stress disor<strong>de</strong>ron neuropsychologicaltest performance” [em português:“Consequências daperturbação <strong>de</strong> stress pós--traumático no <strong>de</strong>sempenhoem testes neuropsicológicos”],International Journalof Clinical Neuropsychology,11 (3), 1989, pp. 121 a124.122 T. Gil e outros, “Cognitivefunctioning in post--traumatic stress disor<strong>de</strong>r”[em português: “Funcionamentocognitivo na perturbação<strong>de</strong> stresspós-traumático”], Journalof Traumatic Stress, 3 (1),1990, pp. 29 a 45.309. A tortura po<strong>de</strong> afectar as crianças directa ouindirectamente. O impacto po<strong>de</strong> fazer-se sentir<strong>de</strong>vido ao facto <strong>de</strong> a própria criança ter sido torturadaou <strong>de</strong>tida, ter testemunhado actos <strong>de</strong> torturaou violência ou <strong>de</strong> os seus pais ou familiares próximosterem sido vítimas <strong>de</strong> tortura. Quando as pessoasem torno da criança são torturadas, este factorepercute-se sobre a criança, pelo menos indirectamente,uma vez que a tortura afecta toda a famíliae comunida<strong>de</strong> em que as vítimas se inserem.O estudo aprofundado do impacto da tortura sobreas crianças e orientações completas para a avaliação<strong>de</strong> crianças sujeitas a tortura está para além doâmbito do presente manual. No entanto, po<strong>de</strong>mresumir-se alguns pontos essenciais.310. Em primeiro lugar, aoexaminar uma criança quese suspeita tenha sido vítimaou testemunha <strong>de</strong> tortura, omédico <strong>de</strong>ver-se-á assegurar <strong>de</strong>que a criança recebe o apoio a<strong>de</strong>quado e se sentesegura durante o exame. Isto po<strong>de</strong> exigir a presença<strong>de</strong> um dos progenitores ou pessoa <strong>de</strong> confiançadurante a avaliação. Em segundo lugar, o médico<strong>de</strong>verá ter presente que as crianças muitas vezesnão exprimem verbalmente as suas emoções epensamentos relacionados com o trauma,fazendo-o antes através do respectivo comportamento123 . O grau <strong>de</strong> verbalização dos pensamentose sentimentos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da ida<strong>de</strong> da criança, doseu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong> outros factores,tais como a dinâmica familiar, características <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>e normas culturais.311. Caso a criança tenha sido vítima <strong>de</strong> abusosexual ou agressão física, é importante que, sempreque possível, seja observada por um especialistaem maus tratos infantis. O exame genital <strong>de</strong>crianças, susceptível <strong>de</strong> provocar traumas, <strong>de</strong>veráser realizado por médicos com experiência nainterpretação dos resultados da observação. Porvezes convém gravar em ví<strong>de</strong>o o exame, a fim <strong>de</strong>que outros peritos possam dar o seu parecer sobreos indícios físicos <strong>de</strong>tectados sem que a criançatenha <strong>de</strong> ser submetida a novo exame. Se fornecessário levar a cabo um exame genital ou analcompleto, po<strong>de</strong> ser preferível submeter a criançaa anestesia geral. Para além disto, o examinador<strong>de</strong>ve ter presente que o próprio exame po<strong>de</strong> evocarreminiscências da agressão e é possível que acriança passe por um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scompensaçãopsicológica ou tenha reacções violentas no<strong>de</strong>correr do mesmo.(a) Consi<strong>de</strong>rações relativas ao nível<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento123 C. Schlar, “Evaluationand documentation ofpsychological evi<strong>de</strong>nce oftorture” [em português:“Avaliação e documentaçãodos indícios psicológicos datortura”], documento nãopublicado, 1999.312. A reacção da criança perante a tortura<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da respectiva ida<strong>de</strong>, estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentoe capacida<strong>de</strong>s cognitivas. Quanto maisjovem for a criança, mais a sua experiência e compreensãodos factos será influenciada pelas reacçõese atitu<strong>de</strong>s imediatas das pessoas que <strong>de</strong>la se88*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


ocupam <strong>de</strong>pois dos acontecimentos124 . No caso <strong>de</strong> criançascom ida<strong>de</strong> inferior a três anosque tenham experimentado ousido testemunhas <strong>de</strong> tortura, aspessoas em seu redor <strong>de</strong>sempenhamum papel fundamental<strong>de</strong> protecção e tranquilização 125 .As reacções das crianças muitojovens às experiências traumatizantespassam frequentementepela sobreexcitação, manifestadaatravés <strong>de</strong> agitação, perturbaçõesdo sono, irritabilida<strong>de</strong> ereacções <strong>de</strong> hipervigilância eevitamento. As crianças comida<strong>de</strong> superior a três anos ten<strong>de</strong>mfrequentemente a alhear-see recusar-se a falar directamentesobre as experiências traumatizantes.A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão verbal aumenta emfunção do grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Uma evoluçãoacentuada regista-se quando a criança atingea fase operativa concreta (por volta dos 8-9 anos <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>), altura em que <strong>de</strong>senvolve a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>fornecer uma cronologia fi<strong>de</strong>digna dos acontecimentos.Durante esta fase, <strong>de</strong>senvolvem-se ascapacida<strong>de</strong>s operativas concretas, temporais eespaciais 126 . Estas novas competências são aindafrágeis e, em geral, as crianças só <strong>de</strong>senvolvem acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir constantemente uma narrativacoerente por volta dos 12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, aoatingir a fase operativa formal. A adolescênciarepresenta um período <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento turbulento,durante o qual as consequências da torturapo<strong>de</strong>m variar consi<strong>de</strong>ravelmente <strong>de</strong> pessoa parapessoa. Em <strong>de</strong>terminados casos, as experiências <strong>de</strong>tortura po<strong>de</strong>m causar profundas alterações <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>nos adolescentes, que se traduzem emcomportamentos anti-sociais 127 . Noutros, oimpacto po<strong>de</strong>rá ser similar ao observado em criançasmais jovens.(b) Consi<strong>de</strong>rações clínicas124 Ottino S. von Overbeck,“Familles victimes <strong>de</strong> violencescollectives et en exil:quelle urgence, quel modèle<strong>de</strong> soins? Le point <strong>de</strong> vued’une pédopsychiatre” [emportuguês: “Famílias vítimas<strong>de</strong> violências colectivase em exílio: que urgência,que mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tratamento?O ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> umapedopsiquiatra”], La RevueFrançaise <strong>de</strong> Psychiatrie et<strong>de</strong> Psychologie Médicale,14, 1998, pp. 35 a 39.125 M. Grappe, “La guerreen ex-Yougoslavie: un regardsur les enfants réfugiés” [emportuguês: “A guerra na ex--Jugoslávia: um olhar sobreas crianças refugiadas”],Psychiatrie humanitaire enex-Yougoslavie et enArménie. Face au traumatisme,M. R. Moro e S.Lebovici eds., Paris, PUF,1995.126 J. Piaget, La naissance<strong>de</strong> l’intelligence chez l’enfant[em português: O Nascimentoda inteligência nacriança], Neuchâtel, Delachauxe Niestlé, 1977.127 Vi<strong>de</strong> nota 125.313. As crianças po<strong>de</strong>m apresentar sintomas daperturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático, similaresaos observados nos adultos. Porém, o médico<strong>de</strong>ver-se-á basear mais na observaçãodo comportamento dacriança do que na sua expressãoverbal 128 129 130 131 . Por exemplo,a criança po<strong>de</strong> revelar sintomas<strong>de</strong> estar a reviver o trauma, oque se manifesta através <strong>de</strong>brinca<strong>de</strong>iras monótonas e repetitivasque representam aspectosdo acontecimento traumático,memórias visuais dos factosdurante ou fora das brinca<strong>de</strong>iras,perguntas ou <strong>de</strong>claraçõesrepetitivas sobre o acontecimentotraumatizante e pesa<strong>de</strong>los.A criança po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverenurese nocturna, perda <strong>de</strong> controlo das funçõesintestinais, alheamento social e afectivo, mudanças<strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> perante ela própria e perante osoutros e sentimentos <strong>de</strong> que não existe qualquerfuturo. Po<strong>de</strong> também ser afectada por sobreexcitaçãoe terrores nocturnos, problemas em ir paraa cama, perturbações do sono, hiper-vigilância,irritabilida<strong>de</strong> e transtornos significativos <strong>de</strong> atençãoe concentração. Temores e comportamentosagressivos que não se verificavam antes do acontecimentotraumatizante po<strong>de</strong>m manifestar-se soba forma <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> para com as outras crianças,adultos ou animais, medo do escuro, medo <strong>de</strong>ir à casa <strong>de</strong> banho e fobias. A criança po<strong>de</strong> revelarum comportamento sexual pouco a<strong>de</strong>quado à suaida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolver reacções somáticas. Po<strong>de</strong>mtambém surgir sintomas <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>, como ummedo exagerado <strong>de</strong> estranhos ou <strong>de</strong> ser separado<strong>de</strong> familiares próximos, pânico, agitação, acessos<strong>de</strong> cólera e choro incontrolável, bem como distúrbios<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m alimentar.(c)Papel da família128 L. C. Terr, “Childhoodtraumas: an outline andoverview” [em português:“Traumas <strong>de</strong> infância:resumo e panorâmicageral”], American Journalof Psychiatry, 148, 1991,pp. 10 a 20.129 National Center forInfants, Toddlers and Families,Zero to Three, 1994.130 F. Sironi, “On torture unenfant, ou les avatars <strong>de</strong>l’ethnocentrisme psychologique”[em português: Tortura<strong>de</strong> crianças, ou as doençasdo etnocentrismo psicológico],Enfances, 4, 1995,pp. 205 a 215.131 L. Bailly, “Les catastropheset leurs conséquencespsychotraumatiques cezl’enfant” [em português:As catástrofes e suas consequênciaspsicotraumáticasna criança], Paris, ESF,1996.314. A família <strong>de</strong>sempenha um importante papeldinamizador na persistência da sintomatologianas crianças. Para preservar a coesão familiar,po<strong>de</strong>m surgir comportamentos disfuncionais efenómenos <strong>de</strong> <strong>de</strong>legação <strong>de</strong> papéis. A <strong>de</strong>terminadosmembros da família, frequentemente crianças,po<strong>de</strong> ser atribuído o papel <strong>de</strong> paciente com o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> perturbações graves. PorIndícios psicológicos da tortura* 89


vezes, po<strong>de</strong> haver tendência a super proteger acriança ou a ocultar-lhe factos importantes relativosao trauma. Noutros casos, po<strong>de</strong> atribuir-seà criança um papel parental ou esperar-se que elacui<strong>de</strong> dos pais. Caso a criança não seja vítimadirecta da tortura, mas se veja apenas indirectamenteafectada, os adultos ten<strong>de</strong>m muitas vezesa subestimar as consequências sobre a psique eo <strong>de</strong>senvolvimento da criança. Uma criança cujosentes queridos sejam perseguidos, violados, torturados,ou que testemunhe actos <strong>de</strong> tortura ououtros acontecimentos altamente traumatizantes,po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver i<strong>de</strong>ias disfuncionais, comoa convicção <strong>de</strong> que é responsável pelo sucedidoou <strong>de</strong> que tem <strong>de</strong> suportar o fardo dos seus pais.Este tipo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias po<strong>de</strong> originar problemas duradouroscomo sentimentos <strong>de</strong> culpa, conflitos <strong>de</strong>lealda<strong>de</strong> e problemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>amadurecimento até à ida<strong>de</strong> adulta in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.90*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


Anexo IPrincípios sobre a Investigaçãoe Documentação Eficazes da Torturae Outras penas ou Tratamentos Cruéis,Desumanos ou Degradantes 1321. Entre os objectivos <strong>de</strong> umainvestigação e documentaçãoeficazes da tortura e outraspenas ou tratamentos cruéis,<strong>de</strong>sumanos ou <strong>de</strong>gradantes (<strong>de</strong>ora em diante <strong>de</strong>signados portortura ou outros maus tratos),contam-se os seguintes:132 A Comissão dos Direitosdo Homem, na suaresolução 2000/43, e aAssembleia Geral, na suaresolução 55/89, chamarama atenção dos Governospara os Princípios eencorajaram fortemente osGovernos a reflectirem sobreos mesmos enquantoinstrumento útil nosesforços para combater atortura.a) esclarecimento dos factos e estabelecimentoe reconhecimento da responsabilida<strong>de</strong> individuale estadual perante as vítimas e suas famílias;b) i<strong>de</strong>ntificação das medidas necessárias paraprevenir que os factos se repitam;c) facilitação do exercício da acção penal ou,sendo caso disso, da aplicação <strong>de</strong> sanções disciplinares,contra as pessoas cuja responsabilida<strong>de</strong>se tenha apurado na sequência do inquérito; e<strong>de</strong>monstrar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> plena reparação eressarcimento por parte do Estado, incluindo anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atribuir uma in<strong>de</strong>mnização justae a<strong>de</strong>quada e <strong>de</strong> disponibilizar os meios necessáriosao tratamento médico e à reabilitação.2. Os Estados <strong>de</strong>verão garantir que todas asqueixas e <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> tortura ou maus tratossejam pronta e eficazmente investigadas. Mesmona ausência <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>núncia expressa, <strong>de</strong>verá serinstaurado um inquérito caso existam outros indícios<strong>de</strong> que possam ter ocorrido actos <strong>de</strong> tortura oumaus tratos. Os investigadores, que <strong>de</strong>verão serin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos suspeitos e dos organismos aque estes pertencem, <strong>de</strong>vem ser competentes eimparciais. Deverão ter acesso a perícias efectuadaspor médicos ou outros peritos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,ou dispor da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar a realização<strong>de</strong> tais perícias. Os métodos utilizados para levara cabo o inquérito <strong>de</strong>verão respeitar as mais exigentesnormas profissionais e os resultados obtidos<strong>de</strong>verão ser tornados públicos.133 Em <strong>de</strong>terminadascircunstâncias, a <strong>de</strong>ontologiaprofissional po<strong>de</strong>ráobrigar a que a informaçãose mantenha confi<strong>de</strong>ncial,o que <strong>de</strong>ve ser respeitado.3. a) A autorida<strong>de</strong> responsávelpelo inquérito <strong>de</strong>verá dispor<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res para obter toda ainformação necessária à investigaçãoe estar obrigada a procurá-la 133 . As pessoasque conduzem a investigação <strong>de</strong>verão ter ao seu disportodos os recursos financeiros e técnicos necessáriosa uma investigação eficaz. Deverão disportambém <strong>de</strong> competência para obrigar todos osfuncionários presumivelmente implicados na prática<strong>de</strong> tortura ou maus tratos a comparecer nosinterrogatórios. O mesmo se aplicara relativamentea quaisquer testemunhas. Para este fim, aautorida<strong>de</strong> responsável pelo inquérito <strong>de</strong>verá estarhabilitada a intimar as testemunhas, incluindoquaisquer funcionários alegadamente envolvidos,e a exigir a apresentação <strong>de</strong> provas.b) As alegadas vítimas <strong>de</strong> tortura ou maus tratos,testemunhas, investigadores e suas famílias<strong>de</strong>verão ser protegidos contra a violência, ameaçasPrincípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes* 91


<strong>de</strong> violência ou qualquer outra forma <strong>de</strong> intimidaçãoa que possam estar expostos em resultado doinquérito. Os suspeitos <strong>de</strong> implicação em actos<strong>de</strong> tortura ou maus tratos <strong>de</strong>verão ser afastados <strong>de</strong>qualquer posição <strong>de</strong> controlo ou comando, directoou indirecto, sobre os queixosos, testemunhas esuas famílias, bem como sobre as pessoas querealizam a investigação.4. As alegadas vítimas <strong>de</strong> tortura ou maus tratose seus representantes legais <strong>de</strong>verão ser informadosda realização <strong>de</strong> qualquer audiência e teracesso a ela, bem como a toda a informação relativaao inquérito, e dispor do direito <strong>de</strong> apresentaroutras provas.5. a) Nos casos em que os134 Vi<strong>de</strong> nota <strong>de</strong> rodapésupra.procedimentos <strong>de</strong> inquérito serevelem ina<strong>de</strong>quados por falta <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> técnica,possível falta <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>, indícios daexistência <strong>de</strong> abusos sistemáticos ou outros motivosrelevantes, os Estados <strong>de</strong>verão garantir que asinvestigações sejam levadas a cabo por umacomissão <strong>de</strong> inquérito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte ou mecanismoanálogo. Os membros <strong>de</strong>sta comissão<strong>de</strong>verão ser seleccionados com base na sua reconhecidaimparcialida<strong>de</strong>, competência e in<strong>de</strong>pendênciapessoal. Deverão, em particular, serin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> quaisquer suspeitos e das instituiçõesou agências a que estes pertençam.A comissão <strong>de</strong>verá ser dotada <strong>de</strong> competência paraobter toda a informação necessária e <strong>de</strong>verá conduziro inquérito em conformida<strong>de</strong> com os presentesPrincípios 134 .b) Num prazo razoável, <strong>de</strong>verá ser elaboradoum relatório escrito do qual conste o âmbito doinquérito instaurado, os procedimentos e métodosutilizados na apreciação das provas, bem como asconclusões e recomendações elaboradas com basenos factos apurados e no direito aplicável. Esterelatório <strong>de</strong>verá ser tornado público logo que seencontre concluído. O relatório <strong>de</strong>verá também<strong>de</strong>screver em <strong>de</strong>talhe os factos concretos que se provouterem acontecido e as provas com base nasquais foram apurados, bem como indicar osnomes das testemunhas que prestaram <strong>de</strong>clarações,à excepção daquelas cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não tenhasido divulgada para sua própria protecção.O Estado <strong>de</strong>verá dar resposta ao relatório numprazo razoável e, se necessário, indicar as medidasa adoptar na sequência do mesmo.6. a) Os peritos médicos envolvidos na investigaçãoda tortura ou dos maus tratos <strong>de</strong>verãopautar a sua conduta, em todos os momentos, <strong>de</strong>acordo com os princípios éticos mais rigorosos,<strong>de</strong>vendo, em particular, obter o consentimentoesclarecido da pessoa em causa antes da realização<strong>de</strong> qualquer exame. Os exames <strong>de</strong>verão serefectuados em conformida<strong>de</strong> com as regras estabelecidas<strong>de</strong> prática médica. Em particular, osexames <strong>de</strong>verão ser efectuados em privado, sobo controlo do perito médico e nunca na presença<strong>de</strong> agentes <strong>de</strong> segurança ou outros funcionáriosgovernamentais.b) O perito médico <strong>de</strong>verá elaborar imediatamenteum relatório escrito rigoroso. Este relatório<strong>de</strong>verá incluir, no mínimo, os seguintes elementos:i) Circunstâncias da entrevista: nome da pessoaexaminada e nome e função <strong>de</strong> todos quantos estejampresentes no exame; hora e data exactas doexame; localização, natureza e morada (incluindo,se necessário, a sala) da instituição on<strong>de</strong> se realizao exame (por exemplo, estabelecimento prisional,clínica, casa particular); condições em que seencontra a pessoa no momento do exame (porexemplo, natureza <strong>de</strong> quaisquer restrições que lhetenham sido impostas aquando da chegada aolocal do exame ou no <strong>de</strong>curso do mesmo, presença<strong>de</strong> forças <strong>de</strong> segurança durante o exame,comportamento das pessoas que acompanham o<strong>de</strong>tido, ameaças proferidas contra a pessoa queefectua o exame) e quaisquer outros factores relevantes;ii) Antece<strong>de</strong>ntes: registo <strong>de</strong>talhado dos factosrelatados pela pessoa em causa no <strong>de</strong>curso doexame, incluindo os alegados métodos <strong>de</strong> torturaou maus tratos, momento em que se alega terocorrido a tortura ou os maus tratos e todos os sintomasfísicos ou psicológicos que a pessoa afirmesofrer;iii) Exame físico e psicológico: registo <strong>de</strong> todosos resultados obtidos na sequência do exame, a nível92*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


físico e psicológico, incluindo os testes <strong>de</strong> diagnósticoapropriados e, sempre que possível, fotografiasa cores <strong>de</strong> todas as lesões;iv) Parecer: interpretação quanto à relaçãoprovável entre os resultados do exame físico e psicológicoe a eventual ocorrência <strong>de</strong> tortura oumaus tratos. Deverá ser formulada uma recomendaçãoquanto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer tratamentomédico ou psicológico ou exameulterior;v) Autoria: o relatório <strong>de</strong>verá i<strong>de</strong>ntificar claramenteas pessoas que proce<strong>de</strong>ram ao exame e<strong>de</strong>verá ser assinado.c) Este relatório <strong>de</strong>verá ser confi<strong>de</strong>ncial e comunicadoà pessoa examinada ou seu representantenomeado. A opinião da pessoa examinada ou seurepresentante quanto ao processo <strong>de</strong> exame <strong>de</strong>veráser recolhida e incluída no relatório. O relatórioescrito <strong>de</strong>verá também ser enviado, se for caso disso,à autorida<strong>de</strong> responsável pela investigação dos alegadosactos <strong>de</strong> tortura ou maus tratos. Cabe aoEstado assegurar que o relatório seja enviado emsegurança aos seus <strong>de</strong>stinatários. O relatório não<strong>de</strong>verá ser divulgado a nenhuma outra pessoa, salvocom o consentimento do interessado ou autorizaçãodo tribunal competente para or<strong>de</strong>nar tal divulgação.Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes* 93


Anexo IITestes <strong>de</strong> diagnósticoOs testes <strong>de</strong> diagnóstico evoluem e são constantementeobjecto <strong>de</strong> avaliação. Os testes <strong>de</strong> diagnósticoa seguir enunciados foram consi<strong>de</strong>radosválidos no momento da elaboração do presentemanual. Contudo, caso se torne necessário encontrarelementos <strong>de</strong> prova suplementares, os investigadores<strong>de</strong>vem procurar fontes <strong>de</strong> informaçãoactualizada, por exemplo contactando um dos centrosespecializados na área da documentação da tortura(vi<strong>de</strong> capítulo V, secção E).1. IMAGIOLOGIA RADIOLÓGICANa fase aguda das lesões, diversos métodos <strong>de</strong>imagiologia po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> narecolha <strong>de</strong> informação adicional sobre as lesões doesqueleto e tecidos moles. Contudo, uma vez saradasas feridas físicas resultantes da tortura, as respectivassequelas residuais não são, em geral,<strong>de</strong>tectáveis através dos mesmos métodos imagiológicos.Isto acontece muitas vezes, mesmo noscasos em que a vítima continua a sentir dores significativasou incapacida<strong>de</strong>s resultantes das lesõessofridas. Já foi feita referência a diversos estudosradiológicos aquando da discussão das questõesrelativas ao exame dos pacientes ou a propósito da<strong>de</strong>scrição das diversas formas <strong>de</strong> tortura. As consi<strong>de</strong>raçõesque se seguem são um resumo da aplicação<strong>de</strong> tais métodos. Contudo, os recursostecnológicos mais sofisticados e dispendiosos nemsempre estão disponíveis, sobretudo no caso <strong>de</strong> pessoas<strong>de</strong>tidas.Os exames <strong>de</strong> diagnóstico radiológicos e imagiológicoscompreen<strong>de</strong>m as radiografias convencionais(raios-x), cintigrafia rádio-isotópica,tomografia computorizada (TC), ressonância magnéticanuclear (RMN) e ultrassonografia (US). Cadaum <strong>de</strong>stes métodos apresenta vantagens e <strong>de</strong>svantagens.Os raios-x, a cintigrafia e a tomografia computorizadautilizam radiação ionizante, que po<strong>de</strong>ser contra-indicada no caso <strong>de</strong> mulheres grávidas ecrianças. A ressonância magnética utiliza um campomagnético, com potenciais efeitos biológicos,embora se pense que mínimos, sobre fetos e crianças.A ultrassonografia utiliza ondas sonoras, não apresentandoquaisquer riscos biológicos conhecidos.Os raios-x estão amplamente difundidos. À excepçãodo crânio, todas as áreas lesionadas <strong>de</strong>verão sersubmetidas a radiografias <strong>de</strong> rotina no exame inicial.Enquanto que as radiografias convencionaisrevelam as fracturas faciais, a tomografia computorizadaconstitui uma técnica <strong>de</strong> diagnósticosuperior, pois permite <strong>de</strong>tectar outras fracturas, <strong>de</strong>slocaçõesdos fragmentos ósseos, bem como lesõese complicações nos tecidos moles associadas às fracturas.Quando se suspeite da existência <strong>de</strong> lesõesdo periósteo ou fracturas mínimas, <strong>de</strong>ve recorrer-Testes <strong>de</strong> diagnóstico* 95


-se à cintigrafia óssea como complemento dos no segundo sugerem que a pessoafoi sujeita à falanga poucos os textos <strong>de</strong> referência nas135 Vi<strong>de</strong> notas 82 a 84; paramais informações, consulteraios-x. Uma <strong>de</strong>terminada percentagem dos raiosáreasda radiologia e medicinanuclear.-x apresentará resultados negativos mesmo na presençadias antes do primeiro exame.96 <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH] *<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> fracturas agudas ou osteomielite inicial.As fracturas po<strong>de</strong>m sarar sem <strong>de</strong>ixar quaisquerindícios <strong>de</strong>tectáveis através dos métodos radiológicos,o que acontece sobretudo no caso <strong>de</strong> crianças.As radiografias <strong>de</strong> rotina não são o melhormétodo para o exame dos tecidos moles.Nas situações agudas, dois resultados negativosobtidos com uma semana <strong>de</strong> intervalo não significamnecessariamente que a falanga não tenhaocorrido, mas antes que a gravida<strong>de</strong> das lesõesestá abaixo do nível <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> da cintigrafia.Se for seguido o processo trifásico, umaumento inicial da resposta nas fases arterial eA cintigrafia constitui um método <strong>de</strong> exame <strong>de</strong> altasensibilida<strong>de</strong>, mas baixa especificida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong>um meio pouco dispendioso e eficaz no exame <strong>de</strong>todo o esqueleto para <strong>de</strong>tectar eventuais processospatológicos, como osteomielites ou traumatismos.venosa, mas não na fase óssea, sugerem umahiperemia compatível com lesão dos tecidosmoles. Os traumatismos nos ossos e tecidos molesdos pés po<strong>de</strong>m também ser <strong>de</strong>tectados através <strong>de</strong>ressonância magnética 135 .Po<strong>de</strong> também avaliar a torção testicular, embora aultrassonografia seja mais a<strong>de</strong>quada nestes casos. (b) Ultra-sonsA cintigrafia não permite observar as lesões nos tecidosmoles. Po<strong>de</strong> permitir a <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> fracturasagudas nas primeiras 24 horas, mas é geralmentenecessário aguardar dois ou três dias, ou mesmomais <strong>de</strong> uma semana, em especial no caso daspessoas idosas. A imagem volta habitualmente aonormal <strong>de</strong>corridos dois anos, embora possa permanecerpositiva durante anos no caso <strong>de</strong> fracturasou <strong>de</strong> osteomielites saradas. A utilização dacintigrafia óssea para <strong>de</strong>tectar fracturas da epífiseou metadiáfise (extremida<strong>de</strong>s dos ossos longos) nascrianças é muito difícil <strong>de</strong>vido à normal absorçãodos radiofármacos na epífise. A cintigrafia é muitasvezes capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar fracturas das costelasque passam <strong>de</strong>spercebidas nas radiografias convencionais.Os ultra-sons são pouco dispendiosos e não apresentamcontra-indicações biológicas. A qualida<strong>de</strong>do exame <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da competência do técnico.Sempre que não exista a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrerà tomografia computorizada, os ultra-sons são utilizadospara avaliar traumatismos abdominaisagudos. Os ultra-sons permitem também diagnosticaras tendinopatias e são o método <strong>de</strong> eleiçãono caso <strong>de</strong> anomalias testiculares. Po<strong>de</strong>mtambém servir para o exame da zona escapularnas fases aguda e crónica após um caso <strong>de</strong> torturapor suspensão. Na fase aguda, os ultra-sons permitem<strong>de</strong>tectar e<strong>de</strong>mas e concentrações <strong>de</strong> fluidono interior e em torno das articulações escapulares,bem como lacerações e hematomas nas bainhas(a) Aplicação da cintigrafia ósseados rotatores. O <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>stes sintomasem nova ultrassonografia posteriormente realizadano diagnóstico da falangaten<strong>de</strong> a confirmar o diagnóstico. Neste caso,o paciente <strong>de</strong>ve ser submetido conjuntamente a ressonânciaA cintigrafia po<strong>de</strong> ser efectuada <strong>de</strong> duas formas:com imagens diferidas em cerca <strong>de</strong> três horas ouatravés <strong>de</strong> um processo trifásico. Compreen<strong>de</strong> astrês fases seguintes: angiograma por radionúclido(fase arterial), imagens <strong>de</strong> amostras sanguíneas(fase venosa, dos tecidos moles) e fase retardadamagnética, cintigrafia e outros examesradiológicos, comparando-se os resultados obtidosem todos estes exames. Ainda que os <strong>de</strong>maisexames não apresentem resultados positivos, osultra-sons, por si mesmos, são suficientes paraprovar a tortura por suspensão.(fase óssea). No caso <strong>de</strong> pacientes examinadospouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem sido submetidos à (c) Tomografia compu torizadafalanga, <strong>de</strong>ver-se-ão realizar duas cintigrafias comuma semana <strong>de</strong> intervalo entre si. Um resultadonegativo no primeiro exame retardado e positivoA tomografia computorizada constitui um excelentemétodo <strong>de</strong> observação dos tecidos moles e da


estrutura óssea. A ressonância magnética é maisa<strong>de</strong>quada para os tecidos moles do que para osossos. A ressonância magnética po<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar fracturasocultas antes que as mesmas se tornemvisíveis nas radiografias convencionais ou cintigrafias.A utilização <strong>de</strong> scanners abertos e a sedaçãodo paciente po<strong>de</strong>m ajudar a aliviar a ansieda<strong>de</strong>e a claustrofobia, habituais nos sobreviventes <strong>de</strong> tortura.A tomografia computorizada é também excelentepara o diagnóstico e avaliação <strong>de</strong> fracturas,em especial dos ossos temporais e faciais. Apresentatambém vantagens na <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> anomalias no alinhamentoe <strong>de</strong>slocações <strong>de</strong> fragmentos ósseos,sobretudo no caso <strong>de</strong> fracturas espinais, pélvicas,escapulares e acetabulares. Não permite i<strong>de</strong>ntificarcontusões ósseas. A tomografia computorizadacom ou sem introdução <strong>de</strong> contraste <strong>de</strong>veráser o primeiro meio <strong>de</strong> diagnóstico utilizado no caso<strong>de</strong> quaisquer lesões agudas, sub-agudas ou crónicasdo sistema nervoso central (SNC). Caso osresultados obtidos sejam negativos, equívocos ounão expliquem as queixas ou sintomas do pacienterelativas ao SNC, <strong>de</strong>verá recorrer-se à ressonânciamagnética. A tomografia computorizada comjanela óssea e exame pré e pós contraste <strong>de</strong>verá sero primeiro meio <strong>de</strong> diagnóstico utilizado no caso<strong>de</strong> fracturas dos ossos temporais. A janela ósseapo<strong>de</strong> revelar fracturas e rupturas ossiculares.O exame pré contraste po<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar a presença <strong>de</strong>fluidos e colesteatomas. O contraste é recomendado<strong>de</strong>vido às anomalias vasculares que são comunsnesta área. No caso <strong>de</strong> otorráquia, a injecção <strong>de</strong> umagente <strong>de</strong> contraste no canal medular po<strong>de</strong>rá diagnosticaruma fractura do osso temporal. A ressonânciamagnética po<strong>de</strong>rá também <strong>de</strong>tectar aruptura responsável pelo <strong>de</strong>rrame <strong>de</strong> fluido. Casose suspeite <strong>de</strong> rinorráquia, <strong>de</strong>verá realizar-se umatomografia computorizada da face com janela paraos tecidos moles e ossos. Dever-se-á então proce<strong>de</strong>ra nova tomografia computorizada <strong>de</strong>pois dainjecção <strong>de</strong> um agente <strong>de</strong> contraste no canalmedular.(d) Ressonância magnéticaA ressonância magnética é mais sensível do quea tomografia computorizada na <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> anomaliasno sistema nervoso central. A evolução cronológicadas hemorragias no sistema nervoso centralcompreen<strong>de</strong> as fases imediata, hiper-aguda,aguda, sub-aguda e crónica, cada uma <strong>de</strong>las apresentandocaracterísticas específicas <strong>de</strong>tectáveis noexame. Assim, os resultados obtidos po<strong>de</strong>m permitircalcular o momento em que ocorreu a lesãoe sua correlação com os factos alegados. Ashemorragias do sistema nervoso central po<strong>de</strong>msarar completamente ou originar <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong>hemossi<strong>de</strong>rina em quantida<strong>de</strong> suficiente para permitira obtenção <strong>de</strong> resultados positivos em tomografiacomputorizada realizada anos <strong>de</strong>pois daocorrência dos factos. As hemorragias nos tecidosmoles, sobretudo músculos, em geral saramcompletamente, não <strong>de</strong>ixando vestígios mas, emcasos raros, po<strong>de</strong>m ossificar. Este fenómeno<strong>de</strong>signa-se por ossificação heterotrópica ou myositisossificans e é <strong>de</strong>tectável através <strong>de</strong> tomografiacomputorizada.2. BIOPSIA DAS LESÕES POR CHOQUE ELÉCTRICOAs lesões resultantes <strong>de</strong> choques eléctricospo<strong>de</strong>m, embora tal nem sempre aconteça, apresentaralterações microscópicas específicas da aplicaçãoda corrente eléctrica, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor para fins<strong>de</strong> diagnóstico. A ausência <strong>de</strong>stas alterações específicasnuma amostra <strong>de</strong> biopsia não exclui o diagnóstico<strong>de</strong> tortura por choques eléctricos e não<strong>de</strong>ve permitir-se que as autorida<strong>de</strong>s judiciais tiremsemelhante conclusão. Infelizmente, quando o tribunalexige que uma presumível vítima <strong>de</strong> torturapor choque eléctrico se submeta a umabiopsia para confirmação dos factos alegados, arecusa em submeter-se à intervenção ou um resultadonegativo são susceptíveis <strong>de</strong> ter uma influêncianegativa sobre o tribunal. Para além disso,dispõe-se ainda <strong>de</strong> escassa experiência clínica nautilização <strong>de</strong> biopsias para o diagnóstico das lesõeseléctricas relacionadas com a tortura, po<strong>de</strong>ndogeralmente fazer-se tal diagnóstico com bastantesegurança com base unicamente no relato e examefísico do paciente.Esta intervenção <strong>de</strong>verá, assim, ser <strong>de</strong>cidida noâmbito do exame clínico e não promovidaenquanto meio habitual <strong>de</strong> diagnóstico. Para quea pessoa possa prestar o seu consentimento escla-Testes <strong>de</strong> diagnóstico* 97


ecido para a realização da biopsia, <strong>de</strong>ve ser informadapreviamente da incerteza dos resultados a fim<strong>de</strong> que possa pon<strong>de</strong>rar os eventuaisbenefícios da intervençãopor confronto com os riscos queimplica para o seu estado mentaljá perturbado.(a) Explicação dosresultados da biopsiaTêm sido realizados importantesestudos laboratoriais para avaliaros efeitos dos choques eléctricosna pele <strong>de</strong> suínos anestesiados136 137 138 139 140 141 . Estetrabalho <strong>de</strong>monstra que existemalterações histológicasespecíficas das lesões eléctricasque po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>tectadas atravésda observação microscópica<strong>de</strong> biopsias por punção da árealesionada. Contudo, uma análisemais aprofundada <strong>de</strong>stesestudos, que po<strong>de</strong>m ter aplicaçõesclínicas importantes, estáfora do âmbito da presentepublicação. O leitor <strong>de</strong>verá consultaras referências bibliográficassupra citadas para maisinformação.Poucos casos <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong> sereshumanos por choques eléctricosforam objecto <strong>de</strong> estudoshistológicos 142 143 144 145 . Apenasnuma das situações, em que seproce<strong>de</strong>u a uma excisão daslesões provavelmente sete dias<strong>de</strong>pois do traumatismo, foram asalterações observadas na peleimputadas directamente aoschoques eléctricos (<strong>de</strong>pósito <strong>de</strong>sais <strong>de</strong> cálcio nas fibras dérmicasem tecidos viáveis localizadosem torno do tecidonecrótico). Nos restantes casos,as lesões extraídas poucos dias136 Thomsen e outros,“Early epi<strong>de</strong>rmal changes inheat and electrically injuredpig skin: a light microscopicstudy” [em português: “Alteraçõesepidérmicas iniciaisem pele <strong>de</strong> suíno aquecida ecom lesões eléctricas: umestudo com microscópioluminoso”], ForensicScience International, 17,1981, pp. 133 a 143.137 Thomsen e outros, “Theeffect of direct current,sodium hydroxi<strong>de</strong>, andhydrochloric acid on pig epi<strong>de</strong>rmis:a light microscopicand electron microscopicstudy” [em português: “Oefeito da corrente directa,hidróxido <strong>de</strong> sódio e ácidoclorídrico sobre a epi<strong>de</strong>rmedos suínos: um estudo commicroscópio luminoso emicroscópio electrónico”],Acta path microbial.Immunol. Scand, sect.A 91, 1983, p. 307 a 316.138 H. K. Thomsen, “Electricallyinduced epi<strong>de</strong>rmalchanges: a morphologicalstudy of porcine skin aftertransfer of low-mo<strong>de</strong>rateamounts of electricalenergy” [em português:“Alterações epidérmicaselectricamente induzidas:estudo morfológico da pele<strong>de</strong> suínos <strong>de</strong>pois da transferência<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>s baixasa mo<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> energiaeléctrica”], dissertação, Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Copenhaga,F.A.D.L., 1984, pp. 1 a 78.139 T. Karlsmark e outros,“Tracing the use of torture:electrically induced calcificationof collagen in pig skin”[em português: “Detectandoa utilização da tortura:calcificação <strong>de</strong> colagénioelectricamente induzida napele <strong>de</strong> suínos”], Nature,301, 1983, pp. 75 a 78.140 T. Karlsmark e outros,“Electrically-induced collagencalcification in pig skin.A histopathologic andhistochemical study” [emportuguês: “Calcificação <strong>de</strong>colagénio electricamenteinduzida na pele <strong>de</strong> suínos.Um estudo histopatológicoe histoquímico”], ForensicScience International, 39,1988, pp. 163 a 174.141 T. Karlsmark, “Electricallyinduced <strong>de</strong>rmal changes:a morphological studyof porcine skin after transferof low to mo<strong>de</strong>rateamounts of electricalenergy” [em português:Alterações dérmicas electricamenteinduzidas: estudomorfológico da pele <strong>de</strong> suínos<strong>de</strong>pois da transferência<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>s baixas amo<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> energia eléctrica”],dissertação, Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Copenhaga,Danish Medical Bulletin,37, 1990, pp. 507 a 520.<strong>de</strong>pois do alegado inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>tortura por choque eléctrico revelaramalterações segmentares e<strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> sais <strong>de</strong> cálcio nasestruturas celulares, altamentecompatíveis com a aplicação <strong>de</strong>corrente eléctrica, embora semvalor <strong>de</strong> diagnóstico, uma vezque não foram observados <strong>de</strong>pósitos<strong>de</strong> sais <strong>de</strong> cálcio nas fibrasdérmicas. Uma biopsia efectuadaum mês após o alegadoinci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tortura eléctricarevelou uma cicatriz cónica, <strong>de</strong>cerca <strong>de</strong> 1 a 2 milímetros <strong>de</strong> diâmetro,com aumento do número<strong>de</strong> fibroblastos e fibras <strong>de</strong> colagénioestreitamente aglutinadase finas, dispostas em paralelo àsuperfície, compatíveis com aslesões eléctricas mas sem valor <strong>de</strong> diagnóstico.(b) MétodoUma vez obtido o consentimentoesclarecido do paciente, eantes da biopsia, a lesão <strong>de</strong>veráser fotografada em conformida<strong>de</strong>com os métodos estabelecidos<strong>de</strong> medicina legal. Sobanestesia local, obtém-se umabiopsia por punção que se conserva em solução <strong>de</strong>formol vedada ou fixador análogo. A biopsia cutânea<strong>de</strong>verá ser realizada o mais <strong>de</strong>pressa possível<strong>de</strong>pois da lesão. Uma vez que os traumatismosresultantes <strong>de</strong> choques eléctricos se confinam geralmenteà epi<strong>de</strong>rme e camadas superficiais da <strong>de</strong>rme,as lesões po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>saparecer rapidamente. Po<strong>de</strong>mser recolhidas amostras <strong>de</strong> mais do que uma lesão,embora se <strong>de</strong>va ter em conta a potencial angústia quetal po<strong>de</strong>rá causar ao paciente 146 . As amostras <strong>de</strong>verãoser examinadas por um patologista com experiênciana área da <strong>de</strong>rmatopatologia.(c)142 L. Danielsen e outros,“Diagnosis of electrical skininjuries: a review and a <strong>de</strong>scriptionof a case” [em português:“Diagnóstico <strong>de</strong>lesões eléctricas da pele:análise e <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> umcaso”], American Journalof Forensic Medical Pathology,12, 1991, pp. 222 a226.143 F. Öztop e outros, “Signsof electrical torture on theskin” [em português: “Sinais<strong>de</strong> tortura eléctrica napele”], Treatment andRehabilitation CentersReport 1994, Fundação <strong>de</strong>Direitos Humanos da Turquia,Publicação HRFT, 11,1994, pp. 97 a 104.144 L. Danielsen, T. Karlsmark,H. K. Thomsen,“Diagnosis of skin lesionsfollowing electrical torture”[em português: “Diagnóstico<strong>de</strong> lesões cutâneas subsequentesà torturaeléctrica”], Rom J. Leg.Med, 5, 1997, pp. 15 a 20.145 H. Jacobsen, “Electricallyinduced <strong>de</strong>position of metalon the human skin” [emportuguês: “Depósito <strong>de</strong>metal electricamente induzidona pele humana”],Forensic Science International,90, 1997, pp. 85 a92.146 S. Gürpinar e S. KorurFincanci, “Insan HaklariIhlalleri ve HekimSorumlulgu” [Violações <strong>de</strong>Direitos Humanos eResponsabilida<strong>de</strong> doMédico], Birinci BasamakIçin Adli Tip El Kitabi[Manual <strong>de</strong> Medicina Legalpara Médicos <strong>de</strong> ClínicaGeral], Ankara, AssociaçãoMédica Turca, 1999.Sinais diagnósticos dos choques eléctricosEntre os sinais diagnósticos das lesões por choqueseléctricos, incluem-se os seguintes: núcleos vesi-98*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


culares na epi<strong>de</strong>rme, glândulas147 Danielsen e outros, 1991.sudoríparas e pare<strong>de</strong>s vasculares(existe apenas um diagnóstico diferencial: lesõesprovocadas por substâncias alcalinas) e <strong>de</strong>pósitos<strong>de</strong> sais <strong>de</strong> cálcio claramente localizados nas fibrascolagénicas e elásticas (o diagnóstico diferencial,calcinosis cutis, é uma doença rara, observada apenas75 vezes em 220 000 biopsias consecutivas àpele humana, sendo os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> cálcio emgeral maciços e sem localização clara nas fibras colagénicase elásticas) 147 .São típicos sinais <strong>de</strong> choque eléctrico, embora nãotenham valor <strong>de</strong> diagnóstico, as lesões que se apresentamem segmentos cónicos, frequentementecom 1 a 2 milímetros <strong>de</strong> diâmetro, os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong>ferro ou cobre na epi<strong>de</strong>rme (provenientes do eléctrodo)e o citoplasma homogéneo na epi<strong>de</strong>rme,glândulas sudoríparas e pare<strong>de</strong>s vasculares.Po<strong>de</strong>m também existir <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> sais <strong>de</strong> cálcionas estruturas celulares das lesões segmentares ounão se observarem quaisquer anomalias histológicas.Testes <strong>de</strong> diagnóstico* 99


Anexo IIIEsquemas anatómicospara a documentação da torturae dos maus tratosCORPO INTEIRO, MULHER – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR CORPO INTEIRO, MULHER – PLANO LATERALBRAÇOESQUERDOBRAÇODIREITONome Caso n. o Nome Caso n. oData DataEsquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus tratos* 101


TÓRAX E ABDÓMEN, MULHER – PLANOS ANTERIOR E POSTERIORPERÍNEO – MULHERNome Caso n. o Nome Caso n. oData Data102*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR(VENTRAL E DORSAL)CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANO LATERALBRAÇOESQUERDOBRAÇODIREITOEsquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus tratos* 103Nome Caso n. o Nome Caso n. oDataData


TÓRAX E ABDÓMEN, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR PÉS – SUPERFÍCIES PLANTARES ESQUERDA E DIREITANome Caso n. o Nome Caso n. oData Data104*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


MÃO DIREITA – PLANOS PALMAR E DORSAL MÃO ESQUERDA – PLANOS PALMAR E DORSALNome Caso n. o Nome Caso n. oData DataEsquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus tratos* 105


CABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO SUPERIOR – PLANOINFERIOR DO PESCOÇOCABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO LATERALNome Caso n. o Nome Caso n. oDataData<strong>Protocolo</strong> <strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]106*


ESQUELETO – PLANOS ANTERIOR E POSTERIORNomeCaso n. oDataEsquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus tratos* 107


ASSINALE NESTE QUADRO TODOS OS DENTES RESTAURADOS E EM FALTAEstimativaIda<strong>de</strong>SexoRaçaAssinale com um círculo as opçõespretendidasPróteses presentesMaxilarsuperiorDentição completaDentição parcialPonte fixaDIREITA1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 1632 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17ESQUERDAMaxilarinferiorDentição completaDentição parcialPonte fixaDescreva em <strong>de</strong>talhe todos os aparelhos <strong>de</strong> prótese ou pontes fixasManchas nos <strong>de</strong>ntesLigeirasMo<strong>de</strong>radasPronunciadasASSINALE NESTE QUADRO TODAS AS CÁRIESAssinale todas as cáries e marque com “X” todos os <strong>de</strong>ntes em faltaAssinale com umcírculo as opçõespretendidasAlinhamentoNormalSaliente em cimaSaliente em baixoCondição peri<strong>de</strong>ntalExcelenteMédiaDeficienteDIREITA1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 1632 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17ESQUERDADepósitos calcáriosLigeirosMo<strong>de</strong>radosImportantes108*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


Anexo IVDirectrizes para a avaliação médicada tortura e dos maus tratosAs directrizes seguintes baseiam-se no <strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong>: Manual para a Investigação eDocumentação Eficazes da Tortura e Outras Penasou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.Não se <strong>de</strong>stinam a servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lorígido, <strong>de</strong>vendo antes ser aplicadas tendo emconta os objectivos da avaliação e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>radosos recursos disponíveis. A avaliação dosindícios físicos e psicológicos da tortura e dosmaus tratos po<strong>de</strong> ser efectuada por um ou maismédicos, consoante as respectivas qualificações.I. INFORMAÇÃO RELATIVA AO CASOData do exame: ___________________________ Exame solicitado por (nome/posição): _______________________________Processo ou relatório n. o : ______________________ Duração da avaliação: _____________ horas, _____________ minutosNome próprio da pessoa: ___________________ Data <strong>de</strong> nascimento: _____________ Local <strong>de</strong> nascimento: _______________Apelido da pessoa: _________________________________________________________________ Sexo: masculino/femininoMotivos do exame: __________________________________ N. o do documento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação da pessoa: _______________Nome do médico: _________________________________ Intérprete (sim/não), nome: ________________________________Consentimento esclarecido: sim/nãoSe não houve consentimento esclarecido, porquê?: ________________________Pessoa acompanhada por (nome/posição): _____________________________________________________________________Pessoas presente durante o exame (nome/posição): ______________________________________________________________A pessoa foi sujeita a restrições durante o exame: sim/nãoSe “sim”, como/porquê?: ____________________________Relatório médico transmitido a (nome/posição/documento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação n. o ): ____________________________________Data da transmissão: ________________________________ Hora da transmissão: _______________________________Avaliação/investigação médica realizada sem restrições (no caso <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong>tidas): sim/nãoEspecifique quaisquer restrições: ________________________________________________________________________Directrizes para a avaliação médica da tortura e dos maus tratos* 109


II. QUALIFICAÇÕES DO MÉDICO(para testemunho em juízo)Estudos médicos e formação clínicaFormação em psicologia/psiquiatriaExperiência na documentação da tortura e dosmaus tratosExperiência na área dos direitos humanos a nívelregional com relevância para a investigaçãoPublicações, apresentações e cursos <strong>de</strong> formaçãorelevantesCurriculum VitaeIII. DECLARAÇÃO RELATIVA À VERACIDADE DOTESTEMUNHO (para testemunho em juízo)Por exemplo: “Tenho conhecimento pessoal dos factosabaixo <strong>de</strong>scritos, à excepção dos que se indicaserem baseados em informações fornecidas por terceirosou em convicções, e que acredito serem verda<strong>de</strong>iros.Estou disposto a testemunhar sobre osfactos acima referidos com base no meu conhecimentoe convicções pessoais.”IV. ANTECEDENTES DA PESSOAInformação geral (ida<strong>de</strong>, profissão, educação, agregadofamiliar, etc.)Antece<strong>de</strong>ntes médicosDescrição <strong>de</strong> anteriores avaliações médicas <strong>de</strong> torturae maus tratosPerfil psicossocial anterior à <strong>de</strong>tençãoV. ALEGAÇÕES DE TORTURA E MAUS TRATOS1. Resumo da situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção e maus tratos2. Circunstâncias da captura e <strong>de</strong>tenção3. Local <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção inicial e locais subsequentes(cronologia, transportes e condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção)4. Relato dos maus tratos ou tortura (em cadalocal <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção)5. Descrição dos métodos <strong>de</strong> torturaVI. SINTOMAS E INCAPACIDADES FÍSICASDescreva a evolução <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong>s ou sintomasagudos ou crónicos e posteriores processos <strong>de</strong>recuperação1. Incapacida<strong>de</strong>s e sintomas agudos2. Incapacida<strong>de</strong>s e sintomas crónicosVII. EXAME FÍSICO1. Aspecto geral2. Pele3. Face e cabeça4. Olhos, ouvidos, nariz e garganta5. Cavida<strong>de</strong> oral e <strong>de</strong>ntes6. Tórax e abdómen (incluindo sinais vitais)7. Sistema genital e urinário8. Sistema muscular e ósseo9. Sistema nervoso central e periféricoVIII. PERFIL E EXAME PSICOLÓGICO1. Métodos <strong>de</strong> avaliação2. Queixas psicológicas actuais3. Perfil posterior à tortura4. Perfil anterior à tortura5. Antece<strong>de</strong>ntes psicológicos e psiquiátricos6. Antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> uso e abuso <strong>de</strong> substânciastóxicas7. Exame do estado mental8. Avaliação do funcionamento social9. Testes psicológicos (vi<strong>de</strong> capítulo VI, secçãoC.1 quanto às indicações e limitações)10. Testes neuropsicológicos (vi<strong>de</strong> capítulo VI,secção C.4 quanto às indicações e limitações)IX. FOTOGRAFIASX. RESULTADOS DOS TESTES DE DIAGNÓSTICO(vi<strong>de</strong> anexo II quanto às indicações e limitações)XI. CONSULTASXII. INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS1. Indícios físicosa) Estabeleça o grau <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> entre asincapacida<strong>de</strong>s e os sintomas físicos agudos e crónicosrelatados e os maus tratos alegadosb) Estabeleça o grau <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> entre osresultados do exame físico e os maus tratos alegados(Nota: a ausência <strong>de</strong> sintomas físicos não exclui a110*<strong>Protocolo</strong><strong>de</strong> <strong>Istambul</strong> • Série <strong>de</strong> Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a pessoa ter sido vítima <strong>de</strong> torturaou maus tratos)c) Estabeleça o grau <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> entre osresultados do exame individual e o conhecimentodos métodos <strong>de</strong> tortura utilizados na região emcausa e suas sequelas habituais2. Indícios psicológicosa) Estabeleça o grau <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> entre osresultados do exame psicológico e o relato do alegadocaso <strong>de</strong> torturab) Dê o seu parecer quanto ao facto <strong>de</strong> as observaçõesdo exame psicológico constituírem ou nãoreacções naturais ou típicas <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> stressintenso no contexto cultural e social da pessoac) Indique o estado da pessoa no percurso evolutivotemporal dos distúrbios mentais associadosao traumatismo, isto é, a situação no tempo em relaçãoaos factos e em que ponto do processo <strong>de</strong> recuperaçãose encontra a pessoad) I<strong>de</strong>ntifique quaisquer factores <strong>de</strong> stress concomitantesque actuem sobre o sujeito (por exemplo,perseguições <strong>de</strong> que é vítima, migraçãoforçada, exílio, perda da família e do papel social,etc.) e seu potencial impacto sobre a pessoae) Mencione quaisquer problemas que possamcontribuir para o quadro clínico, especialmenteno que diz respeito a eventuais indícios <strong>de</strong> lesõescerebrais infligidas durante a tortura ou <strong>de</strong>tenção2. Recor<strong>de</strong> os sintomas e incapacida<strong>de</strong>s quecontinuam a afectar o paciente em resultado dosmaus tratos alegados3. Formule recomendações quanto à necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> exames e tratamentos complementaresXIV. DECLARAÇÃO DE BOA FÉ (para testemunhoem juízo)Por exemplo: “Declaro, sob pena <strong>de</strong> perjúrio, em conformida<strong>de</strong>com a legislação <strong>de</strong> _____________ (país),que os factos acima <strong>de</strong>scritos são verda<strong>de</strong>irose correctos. Feito a ____________________ (data) em_________________ (localida<strong>de</strong>), ________________(estado ou distrito)”.XV. DECLARAÇÃO SOBRE AS RESTRIÇÕESIMPOSTAS À AVALIAÇÃO/INVESTIGAÇÃOMÉDICA (no caso <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong>tidas)Por exemplo: “Os médicos abaixo assinados certificampessoalmente que pu<strong>de</strong>ram trabalhar <strong>de</strong>forma livre e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e lhes foi permitidofalar com a pessoa e examiná-la em privado, semqualquer restrição ou reserva e sem que qualquerforma <strong>de</strong> coacção tenha sido utilizada pelas autorida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção”; ou “O(s) médico(s) abaixoassinado(s) viu(ram)-se obrigado(s) a conduzir asua avaliação com as seguintes restrições:_____________________________________________”.XIII. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕESXVI. ASSINATURA DO MÉDICO, DATA E LOCAL1. Formule um parecer sobre a concordância <strong>de</strong>todas as fontes <strong>de</strong> informação supra citadas (resultadosdos exames físicos e psicológicos, antece<strong>de</strong>ntesdo caso, fotografias, resultados dos testes<strong>de</strong> diagnóstico, conhecimento das práticas <strong>de</strong> torturaa nível regional, relatórios <strong>de</strong> consultas, etc.)com as alegações <strong>de</strong> tortura e maus tratosXVII. ANEXOS RELEVANTESUm exemplar do curriculum vitae do médico,esquemas anatómicos para i<strong>de</strong>ntificação da torturae dos maus tratos, fotografias, relatórios <strong>de</strong> consultase resultados dos testes <strong>de</strong> diagnóstico, entreoutros.Directrizes para a avaliação médica da tortura e dos maus tratos* 111


Como obter as publicações das Nações UnidasAs publicações das Nações Unidas estãoà venda em livrarias e agências distribuidorasem todo o mundo.Consulte o seu livreiro ou dirija-se à Secção <strong>de</strong> Vendas das Nações Unidas,em Nova Iorque ou Genebra.Para mais informação relativa ao sistema internacional <strong>de</strong> protecção dosdireitos humanos e instrumentos jurídicos aplicáveis, consulte a web pagedo Gabinete <strong>de</strong> Documentação e Direito Comparado, www.gddc.ptRelativamente à presente edição em língua portuguesa, os interessados po<strong>de</strong>rãocontactar o Gabinete <strong>de</strong> Documentação e Direito Comparado, Rua doVale <strong>de</strong> Pereiro, 2, 1269-113 Lisboa.EDIÇÃO ORIGINAL IMPRESSA NAS NAÇÕES UNIDASGENEBRAGE.01-41146Junho <strong>de</strong> 2001-8 150


EditorComissão Nacional para as Comemorações do 50. o Aniversário da DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem e Década das Nações Unidaspara a Educação em matéria <strong>de</strong> Direitos HumanosGabinete <strong>de</strong> Documentação e Direito ComparadoProcuradoria-Geral da RepúblicaRua do Vale <strong>de</strong> Pereiro, 2, 1269-113 Lisboawww.gddc.ptTraduçãoRaquel TavaresGabinete <strong>de</strong> Documentação e Direito ComparadoProcuradoria-Geral da RepúblicaRevisão técnica da traduçãoCarlDra. Natália MadureiraEspecialista em Medicina InternaHospital Curry CabralRevisãoManuel DiasGabinete <strong>de</strong> Documentação e Direito ComparadoProcuradoria-Geral da RepúblicaTítulo originalThe Istanbul Protocol: Manual on the Effective Investigation and Documentation of Torture and Other Cruel,Inhuman or Degrading Treatment or Puninshment. Professional Training Series n. o 8 – United NationsDesign gráficoJosé Brandão | Paulo Falardo[Atelier B2]ImpressãoTextypeTiragem1500 exemplaresisbn972-8707-20-7Depósito legal224 793/05Primeira ediçãoAgosto <strong>de</strong> 2002


Procuradoria-Geral da RepúblicaGabinete <strong>de</strong> Documentaçãoe Direito Comparado

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