A itinerância dos artistas: a constituição do campo <strong>da</strong>s artes nas ci<strong>da</strong>des-capitais do Brasil<strong>da</strong> Rocha, português de origem, – sediado no Rio e, posteriormente em Minas,de onde sai para Salvador para formar a Escola baiana que tem em José Teófilode Jesus, Franco Velasco e Veríssimo de Freitas, seus pintores mais conhecidos.A transmissão de conhecimentos por meio <strong>da</strong>s ordens religiosas não énegligenciável, assim como a circulação mais ampla e generaliza<strong>da</strong> degravuras, missais, livros de orações, alguns amplamente ilustrados comas alegorias que remontavam à I<strong>da</strong>de Média, santos com suas palmas elírios, convenções do imaginário cristão. Sabe-se que as gravuras de Durer(1471–1528) tiveram ampla circulação e se impuseram como modelo naiconografia cristã em to<strong>da</strong> a Europa e em suas colônias; sabe-se tambémque Antonio Francisco Lisboa (1738 –1814) possuiu uma coleção delas.O fato é que, antes mesmo que o evento <strong>da</strong> transferência <strong>da</strong> capitalse efetivasse, já havia sido transferido o Tribunal <strong>da</strong> Relação para o Rio deJaneiro, que passa a dividir com Salvador o território jurídico brasileiro.2. Rio de Janeiro – 1763-1960Ao longo do século XVIII, o Rio de Janeiro já angariara prestígio e autonomiae se tornara uma ci<strong>da</strong>de importante e bela. O aqueduto <strong>da</strong> Lapa, erguido entre1719 e 1724, na administraçao de Aires Sal<strong>da</strong>nha, levava as águas do rio Cariocaaté um chafariz onde desaguava em dezessete bicas. 6 Ain<strong>da</strong> no mesmoséculo XVIII, d. Luis de Vasconcelos, considerado um vice-rei esteta, foi oresponsável pelas encomen<strong>da</strong>s de obras públicas que trouxeram grandeembelezamento à ci<strong>da</strong>de, como o chafariz do Paço, o projeto paisagístico eas esculturas que ornam o Passeio Público, obras de Mestre Valentim. Quando,na segun<strong>da</strong> metade do século XVIII, o Rio se torna a capital do Brasil, aconfiguração sócio-histórica já havia se alterado na metrópole que entrava emsua fase mais iluminista, mais laica, mais imponente e mais autoritária.A transferência <strong>da</strong> sede do Governo-Geral de Salvador para o Rio deJaneiro, em 1763, encontra numerosas explicações, dentre as quais a denatureza géo-política: a situação geográfica mais central em relação àtotali<strong>da</strong>de do território do que a ci<strong>da</strong>de baiana, o que permitiria ter maiorcontrole, evitando o desmembramento, como indicavam os conflitos naszonas de fronteira com as terras sob o domínio espanhol. Tambémexaustivamente citado é o argumento, de ordem econômica, <strong>da</strong> importânciacrescente que foi ganhando o porto do Rio como portal para o escoamentodo ouro de Minas Gerais, do açúcar e de outras matérias-primas para aEuropa. A atração paisagística parece também ter sido uma forte razãopara a transferência <strong>da</strong> capital: uma topografia irregular e surpreendente,morros e pântanos, florestas e fontes, altas pedreiras emergindo do mar.O Rio torna-se capital em um momento de rupturas políticas e estéticasimportantes ocorri<strong>da</strong>s em Portugal na passagem do reinado de d. João V(1697–1750) para d. José I (1750–1777). Nesse momento, o poderoso ministro,o marquês de Pombal, promoveu mu<strong>da</strong>nças institucionais importantes,principalmente reformas urbanas em Lisboa, atingi<strong>da</strong> por um forte terremotoem 1755. Definiu-se um novo gosto artístico, mais classicizante, que serefletiu também sobre a capital <strong>da</strong> colônia, promovendo a passagem doRio barroco para a ci<strong>da</strong>de pombalina do século XVIII, uma ci<strong>da</strong>de maisiluminista e menos católica, mais laica e mais austera. O centro <strong>da</strong> produçãoartística deixa de ser a igreja e os mosteiros e passa a concentrar-se noPaço. Sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, e a chega<strong>da</strong> aopoder de d. Luis de Vasconcelos que, como já foi dito, foi o responsávelpelas transformações urbanísticas e pelo embelezamento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Desdeesse momento que antecede à chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> corte portuguesa, nota-se umapreocupação em dotar a ci<strong>da</strong>de de equipamentos urbanos, espaços públicos,que suscitam a criação de novos hábitos civilizados, como o de passearnos jardins, espaços adequados e agradáveis para a população maisabasta<strong>da</strong> que começa, então, a freqüentar as ruas.A configuração colonial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se rompe com a vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> CorteReal portuguesa, em 1808 e, mais precisamente, com a elevação doBrasil ao estatuto de Reino-Unido em 1815.A chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> família real trouxe consequências incontesta<strong>da</strong>s do pontode vista civilizacional para a ci<strong>da</strong>de. Com a comitiva de d. João VI, vieramartistas, arquitetos, cientistas, naturalistas, músicos e uma imensa biblioteca,que orgulha até hoje a ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro. Assiste-se, então, à criaçãode várias instituições – embora não de universi<strong>da</strong>des – exigindo intelectuais,naturalistas, artistas. Das instituições cria<strong>da</strong>s então, merecem destaque oHorto Real (atual Jardim Botânico) e a Escola Naval, em 1808, a AcademiaReal Militar, em 1811, a Escola médico-cirúrgica, em 1813, a Imprensa Régiae a Escola de Ciências, Artes e Ofícios (1815). 7A partir <strong>da</strong>í, foi instituí<strong>da</strong> definitivamente como a capital do século XIXbrasileiro, sede <strong>da</strong> Corte, com to<strong>da</strong>s as implicações materiais e simbólicasjá explora<strong>da</strong>s, em relação à Europa, por Norbert Elias (1993), de modelode civilização e locus do poder. Se para o campo político a <strong>da</strong>ta de 1815 émarcante para a elevação <strong>da</strong> auto-estima dos brasileiros, por ser o momentoem que o Brasil se torna Reino-Unido, para o campo <strong>da</strong>s artes, a vin<strong>da</strong> <strong>da</strong>Missão Francesa, em 1816, foi marco fun<strong>da</strong>mental. Não há consenso entre86 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debateos historiadores sobre o estatuto <strong>da</strong> “Missão Francesa”. Se ela ocorreu apartir de uma iniciativa dos próprios artistas ou se foi um convite do conde<strong>da</strong> Barca e do marquês de Aguiar. O fato é que, em 26 de março de 1816,trazidos a bordo do veleiro americano Calpe, desembarcam no Rio de Janeiro– ci<strong>da</strong>de escolhi<strong>da</strong> por ser sede <strong>da</strong> corte – artistas de muitas especiali<strong>da</strong>des,sob o comando de Joachin Lebreton. Grandjean de Montigny, Debret, Taunay,Pradier são alguns dos que participaram dessa expedição e que marcarama cultura brasileira, deixando um acervo de documentos visuais preciosospara a compreensão do período, do olhar estrangeiro sobre o Brasil.Outro fato é que aqueles artistas foram acolhidos por d. João VI e seusministros. A Missão traz uma redefinição completa <strong>da</strong>s regras e dos códigosestéticos – ain<strong>da</strong> lusitanos, herança colonial – e consegue, não semenfrentar resistências, impor a arte acadêmica como hegemônica. Háuma enorme literatura sobre a mutação brusca dos hábitos e práticassociais acarreta<strong>da</strong> pela presença <strong>da</strong> Família Real na ci<strong>da</strong>de, torna<strong>da</strong> modeloe parâmetro para as classes burguesas e abasta<strong>da</strong>s.A partir <strong>da</strong> independência, em 1822, mesmo que tenham sido doisimperadores portugueses a ocuparem o trono, os governantes empenharam-seem organizar a nação em outras bases, chamando os intelectuais paraessa tarefa. Nosso Romantismo não foi nenhum vento de revolta, masum momento de construção de narrativas oficiais sobre a jovem naçãolivre. Era ain<strong>da</strong> muito recente a mu<strong>da</strong>nça do estatuto colonial. Lê-se, emtudo, um espírito contemporizador, um conservadorismo e um aulicismoque impregnaram to<strong>da</strong> a literatura, historiografia e pintura que se desenvolviamem torno <strong>da</strong> Corte, marca<strong>da</strong> também pela presença constante de viajantes,artistas e naturalistas estrangeiros que visitavam o Brasil. Modelos estéticose gêneros acadêmicos foram trazidos pelos artistas que freqüentavam osateliers dos mestres <strong>da</strong> Academia em Paris.A independência não poderia deixar de ser um marco político comprofun<strong>da</strong>s implicações no campo do ordenamento jurídico e no planoestético. Era necessário implementar instituições que permitissem estabeleceruma nova ordem jurídica e criar uma elite capaz de assumir postosadministrativos e políticos. 8 Uma instituição responsável pela pesquisa epela escrita <strong>da</strong> história nacional foi cria<strong>da</strong> em 1836, o Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro (IHGB), que se espalhou sob forma de sucursais nascapitais <strong>da</strong>s províncias e manteve correspondentes com academias científicasde várias partes do mundo, levantando, analisando e repatriando para oBrasil documentos importantes para a escrita <strong>da</strong> história nacional.Já para o final do mesmo século XIX, no plano <strong>da</strong>s idéias, os interessesvoltaram-se para ideologias liberais e progressistas, e todo o período colonialficou esquecido, sinônimo de atraso e desleixo. Essa desvalorização <strong>da</strong> tradiçãolusitana segue paralela à valorização <strong>da</strong> civilização francesa, o que atingeseu ápice na transição do (1900), a urbanização embelezadora, a mu<strong>da</strong>nçanos costumes que se seguiu, que se tornou conheci<strong>da</strong> como a belle époquecarioca. 9 São demolidos os imensos casarões coloniais e imperiais docentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, ocupado pela população pobre, para <strong>da</strong>r lugar a novaspraças e aveni<strong>da</strong>s, palácios de mármore e cristal, pontilhados de estátuasimporta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Europa. Segundo os jornais <strong>da</strong> época, eram as “picaretasregeneradoras” que deixavam para trás a imun<strong>da</strong> e retrógra<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>decolonial (Sevcenko, 1985:30). Esse momento é tematizado na literaturanão como uma abstração, mas trazendo uma percepção viva, encarna<strong>da</strong>dos contemporâneos que assistiam às enormes transformações que seprocessavam na ci<strong>da</strong>de, tanto no campo social como na visuali<strong>da</strong>de, naarquitetura 10, quando dominou o ecletismo; o art nouveau e, posteriormente oart-déco se implantaram, sinônimos de bom gosto e moderni<strong>da</strong>de.(Sevcenko, 1985). A elite tornou-se mais intolerante em relação às práticaspopulares e às tradições africanas e defendia, de modo incondicional, amodernização, a julgar pelas crônicas <strong>da</strong> época. A velha ci<strong>da</strong>de tinha seusdias contados, as casacas e cartolas negras do Império cediam lugar aopaletó de casemira claro e chapéu de palha <strong>da</strong> Primeira República.No Rio de Janeiro do século XIX, dificilmente se pode falar de campona medi<strong>da</strong> em que to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> cultural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se <strong>da</strong>va de forma muitovincula<strong>da</strong> ao poder político. Ain<strong>da</strong> bastante incipiente era a produçãoartística nesse momento de formação de uma intelligentisia e de um novoimpulso no esforço para a implantação de um processo civilizador – emodernizador – na ci<strong>da</strong>de. O Rio de Janeiro, sede <strong>da</strong> Corte, palco <strong>da</strong>stransformações urbanas visíveis, tornou-se o principal modelo dos novoshábitos, dos novos costumes, difundindo-os por to<strong>da</strong>s as capitais <strong>da</strong>s provínciasdo Brasil que passaram a compartilhar o ideal de modernização.Com o advento de práticas mais modernas e instituições laicas deensino, pode-se observar, ao longo do século XX, a paulatina e tími<strong>da</strong>autonomização do campo <strong>da</strong> arte, até uma institucionalização mais sóli<strong>da</strong>através <strong>da</strong> criação de museus, <strong>da</strong>s bienais, <strong>da</strong>s associações de críticos dearte, nos anos 1950, dos departamentos de artes nas Universi<strong>da</strong>des, a partirdos anos 1960. A arquitetura brasileira adquire grande prestígio e proeminênciagraças a uma conjuntura política e à existência de um grupo bem consoli<strong>da</strong>do~ 6.2 | 2007~ 87
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