Arte e literatura como sinais de vi<strong>da</strong>Paloma Vi<strong>da</strong>lEm 1979, formou-se em Santiago d0 Chile o grupo CADA (Colectivo Accionesde Arte). Integravam o grupo os artistas plásticos Juan Castillo e LottyRosenfeld, o poeta Raúl Zurita, o sociólogo Fernando Balcells e a escritoraDiamela Eltit. Um pouco antes, Eltit começara a escrever seu primeiroromance, Lumpérica, publicado em 1983. Gostaria de examinar nas próximaspáginas em que medi<strong>da</strong> e de que maneira ocorrem cruzamentos entre essesdois trabalhos: o <strong>da</strong> escrita, com seus desdobramentos performáticos, e ocoletivo, ambos intervenções políticas que partiram de ocupações diferentes<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.Para Eltit, assim como para os demais integrantes do CADA, a discussãosobre a função <strong>da</strong> arte sob ditadura não podia ser desvincula<strong>da</strong> de umadiscussão sobre os meios de intervenção artística. Sua posição se definiu,como observou Nelly Richard 1 , por uma radicalização <strong>da</strong> experimentaçãocomo estratégia de interferência no poder ditatorial, no lugar <strong>da</strong>s formasmais transparentes de contestação. Intuía-se que interferência não deveriavisar um choque direto com o regime, como foi o caso de alguns gruposartísticos que tiveram que passar para a clandestini<strong>da</strong>de, mas, estrategicamente,fazer uso <strong>da</strong> região cinzenta entre o proibido e o autorizado, procurando,por um lado, não cair na armadilha <strong>da</strong> autocensura que essa indefiniçãotendia a promover e, por outro, não ser apropriado por uma oficiali<strong>da</strong>deque buscava criar uma zona de consenso que incluísse o máximo de obrase artistas, para assim “neutralizar seu coeficiente crítico” (RICHARD,1986: 125). Nesse sentido, procurou-se sair dos moldes estéticos quepudessem ser facilmente enquadrados pelo regime, o que gerou “obras” decaráter híbrido, que faziam uma fusão entre poesia, performance, literatura,instalação, vídeo etc.Para além, no entanto, <strong>da</strong>s questões de censura e autocensura, a opçãopor essas formas híbri<strong>da</strong>s derivava também de uma determina<strong>da</strong> compreensãodo que estava em jogo na situação vivi<strong>da</strong> no Chile, compreensão que aposteriori poderíamos chamar de biopolítica. Muito mais do que uma guerraideológica entre duas partes, um conflito que uma arte engaja<strong>da</strong> poderiaaju<strong>da</strong>r a vencer, tratava-se de uma indistinção radical entre política e vi<strong>da</strong>,que possibilitava ao regime ditatorial decidir, sem punição alguma, quaisvi<strong>da</strong>s mereciam ser vivi<strong>da</strong>s e quais podiam ser extermina<strong>da</strong>s. Diante disso,a arte deveria ser uma “experiência coletiva de apropriação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” 2 aoinvés de uma defesa desta ou <strong>da</strong>quela ideologia. A palavra “vi<strong>da</strong>” atravessatodos os textos do CADA, sempre lado a lado com a idéia de uma arteque não se limite às fronteiras que tradicionalmente lhe foram impostas,confrontando-se com a necessi<strong>da</strong>de presente de sair para a rua e recuperarterritórios de convivência interditados pela ditadura. Por sua vez, o trabalhoindividual de Eltit se produz em torno de um corpo que, sendo ao mesmotempo espaço subjetivo e social, se torna um material estratégico naconstituição de uma política <strong>da</strong> escrita volta<strong>da</strong> para os excedentes do poder.Em ambos, o objetivo é levar a arte e a literatura para a rua, extraindo-ade seus lugares tradicionais, o museu e o livro, para fazê-la intervir naorganização social imposta, através do controle <strong>da</strong> circulação urbana e<strong>da</strong> individualização <strong>da</strong>s práticas cotidianas, pela ditadura.***O CADA se formou em torno do que o grupo chamou de “ações dearte”. Sua primeira ação, intitula<strong>da</strong> “Para no morir de hambre en el arte” 3 ,foi realiza<strong>da</strong> em várias etapas em outubro de 1979: a ação se iniciou com aentrega de cem sacos de meio litro de leite aos habitantes de uma comuni<strong>da</strong>decarente de Santiago; em segui<strong>da</strong>, esses mesmos sacos foram distribuídos aartistas para que os usassem como suporte para obras que posteriormenteseriam exibi<strong>da</strong>s numa galeria; no mesmo dia <strong>da</strong> distribuição, foi publicado,numa página <strong>da</strong> revista Hoy, de circulação massiva, um breve texto sobrea ação, e um outro, intitulado “No es una aldea”, foi transmitido por altofalantesnos cinco idiomas oficiais <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s em frente ao prédio6~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Experimentações Urbanas<strong>da</strong> CEPAL (Comisión Económica para América Latina y el Caribe), emSantiago; também nesse dia, sessenta bolsas de leite cheias foramcoloca<strong>da</strong>s numa caixa de acrílico junto com uma cópia <strong>da</strong> fita com agravação do texto emitido na frente do prédio <strong>da</strong> CEPAL e com um textoque dizia “para permanecer até que nosso povo ace<strong>da</strong> a seus consumosbásicos de alimentos/ para permanecer como o negativo de um corpocarente, invertido e plural”, ação realiza<strong>da</strong> simultaneamente em Santiago,Toronto e Bogotá; os sacos de leite sobre os quais diversos artistastrabalharam foram posteriormente expostos no Centro Imagen, onde foirealizado um debate sobre a ação.A ação se desdobra em torno do leite, elemento vital e também referentehistórico, já que remete a uma campanha <strong>da</strong> época do governo de SalvadorAllende chama<strong>da</strong> “1/2 litro de leite”, cujo objetivo era que ca<strong>da</strong> criançachilena tivesse acesso a essa o leite passa a alimento simbólico, remetendoaos diferentes níveis de opressão e carência do presente e simultaneamenteresgatando a memória de um tempo passado que pretende ser apagado.Levado a regiões marginaliza<strong>da</strong>s, ele não só reproduz o gesto inclusivo dogoverno de Allende, reabrindo circuitos obturados pela ditadura, mas também,dentro do novo contexto, resignifica a função <strong>da</strong> arte, sugerindo a possibili<strong>da</strong>dede que ela seja uma produção coletiva de formas de vi<strong>da</strong> exteriores aopoder ditatorial.“Foi a combinação do artístico e do social que gerou muitas possibili<strong>da</strong>des”(NEUSTADT, 2001, 66), conta Juan Castillo. Nos depoimentos sobre o grupo,os integrantes enfatizam sempre essa duplici<strong>da</strong>de. “O que uniu de imediato”,ressalta Lotty Rosenfeld, “foi a idéia de conectar arte e política através <strong>da</strong>exploração de novas linguagens, expandir a idéia de suporte artístico” (49).Interrogar e revisar questões estéticas do processo criativo para assimelaborar uma intervenção política. Realizar uma crítica dos meios e instituiçõestradicionais <strong>da</strong> arte, incorporando essas críticas de forma a <strong>da</strong>r-lhes umsentido político. Nessa duplici<strong>da</strong>de, entre experimentação e intervençãopolítica, definia-se a ação de arte como procedimento de ocupação do espaçopúblico com os meios precários disponíveis. Numa tensão entre os discursosneovanguardistas internacionais, que declara<strong>da</strong>mente influenciaram ogrupo, e a marginali<strong>da</strong>de e a escassez de sua condição local, surge umalinguagem que mistura formalização e contingência.As ações eram planeja<strong>da</strong>s detalha<strong>da</strong>mente 4 , como costumava acontecernos primeiros happenings e performances surgidos no final dos anos 50 5 .A influência desses movimentos no CADA é evidente na concepção <strong>da</strong>obra não mais como objeto a ser integrado ao museu, mas como açãofragmenta<strong>da</strong> em várias etapas, mobilizando várias pessoas, artistas e nãoartistas,descentralizando a figura do produtor, que agora é apenas maisum integrante do coletivo, e combinando várias linguagens, <strong>da</strong> poesia aovídeo, passando pela música, a pintura, a fotografia. O uso do vídeo,especificamente, é atribuído à influência de Wolf Vostell, que incorporoutelevisões ao seu trabalho no início dos anos 60. No trabalho do CADA, ovídeo será utilizado para registrar as ações que, como tais, não são repetíveis,sendo que o material filmado é em si uma obra que pode ser recicla<strong>da</strong> ese tornar um fragmento de uma nova obra, servindo como memória deuma ação que não acontecerá mais e, ao mesmo tempo, como materialque poderá ser reutilizado em outra obra, numa espécie de reciclagem queganha importância fun<strong>da</strong>mental quando se está “fora de possibili<strong>da</strong>des depermanente ‘renovação de estoques’ ou retirados de to<strong>da</strong> noção de‘esbanjamento’, algo assim como a metáfora <strong>da</strong>s vestimentas <strong>da</strong> gente pobredo nosso país que passam por uma sucessão de pessoas até sua destruição” 6 .Se o grupo dialoga com o happening e a performance, ele também devedeclara<strong>da</strong>mente ao tipo de trabalho de intervenção urbana realizado pelasbriga<strong>da</strong>s muralistas <strong>da</strong> época de Allende. Para além do gesto político dedeclarar sua ligação com esses grupos, a utilização do espaço público comoprincipal suporte sem dúvi<strong>da</strong> foi inspirado por uma experiência que tevemuita importância antes e durante o governo <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>d Popular. No caso~ 6.2 | 2007~ 7
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