Territórios pensados e territórios vividos: apropriação do espaço e práticas de renovação urbana na área central de Belémpara fins urbanos, localiza<strong>da</strong> às margens do rio Guamá e que sofreuintervenção para tornar-se um parque à beira do rio, voltado para ativi<strong>da</strong>desde lazer, entretenimento e de incentivo ao turismo. São incluídos comoparte do projeto: espaço de exposição e ven<strong>da</strong> de artesanatos, produtosculturais e plantas regionais, a<strong>da</strong>ptado de antigo galpão de ferro remontado;um museu temático <strong>da</strong> navegação, em estrutura de madeira; um sofisticadorestaurante, com apelos à arquitetura regional, cercado de varan<strong>da</strong>s quepermitem a contemplação do parque, e especializado em comi<strong>da</strong> regionale internacional; uma torre-farol, com estrutura em aço com mais dequarenta metros de altura e dois níveis de mirantes, de onde se contemplao rio Guamá e o bairro <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Velha; viveiros de plantas e de animais,com destaque para o de borboletas e beija-flores; passeio térreo e outrosuspenso, com passarela que atravessa o parque e que permite uma visãogeral do mesmo e <strong>da</strong> reserva que o cerca, culminando com um mirantesuspenso à beira do rio; além de quiosques destinados à ven<strong>da</strong> de café elanches situados no interior do parque.Em todos os projetos, a intenção de revitalização de espaços decadentese de pouco dinamismo urbano tende a não reconhecer os territóriosvividos do entorno; assumindo, pelo contrário, o caráter de vitrines eenclaves, não obstante o dinamismo <strong>da</strong>s experiências <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidianaliga<strong>da</strong>s ao comércio popular, às feiras e aos portos, que são expressivasna área central, conforme já demonstrado.Em lugar dessas práticas, é concedido destaque a um cenário para oacontecer <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna, volta<strong>da</strong> sobretudo para uma determina<strong>da</strong> fraçãode habitantes que acompanha mais de perto o novo ritmo moderno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>deou para mostrá-la para os turistas que a visitam. As intervenções seguemtendências de requalificação que fazem apelo a uma sensibili<strong>da</strong>de(internacional-identitária-estética) portadora de valores específicos (RIVIÈRED’ARC, 2004b), não incorporando programas sociais e de aderência à reali<strong>da</strong>delocal. Nesse sentido, projetos como o “Mangal <strong>da</strong> Garças” e o “São JoséLiberto” não levaram em conta as populações que residem no entorno,algumas delas residentes em moradias do ripo palafitas. No caso do “FelizLusitânia”, ain<strong>da</strong> que a intenção de requalificar espaços para usoresidencial popular tenha sido considera<strong>da</strong>, essa não foi leva<strong>da</strong> a termo,principalmente pela inviabili<strong>da</strong>de econômica (LIMA et alii, 2002) dosmesmos do ponto de vista <strong>da</strong>s aspirações do projeto 3 . As práticaseconômicas populares pré-existentes às intervenções não foram articula<strong>da</strong>saos projetos; ao contrário, as ativi<strong>da</strong>des estimula<strong>da</strong>s tendem mesmo ànegação <strong>da</strong>quelas, tal o caráter empresarial e o predomínio de serviçossofisticados, ligados a um circuito superior <strong>da</strong> economia urbana (SANTOS,1979), conforme sugeriu o secretário de cultura em entrevista a um programade televisão local após a inauguração do projeto:(...) os espaços de uma ci<strong>da</strong>de como um todo têm que ser organizados, têmque ter norma, têm que ter disciplina, para que a própria população tire proveitodisso. Nós não queremos transformar esse espaço no que tá hoje a Praça <strong>da</strong>República. Não é esse o nosso objetivo. Eu penso numa ci<strong>da</strong>de urbaniza<strong>da</strong>,numa ci<strong>da</strong>de urbana, no sentido de que as pessoas possam conviver em pazcom quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>. O ambulante tem o lugar dele, não é qualquer lugarque ele poderá ficar (FERNANDES apud AMARAL, 2000).O mesmo aconteceu com determina<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des com forte tradiçãocultural pré-existentes, a exemplo <strong>da</strong>quelas desenvolvi<strong>da</strong>s no Ver-o-Peso ena Feira do Açaí. O caráter sofisticado e modernizador dos projetos distancioua renovação urbana dessas reali<strong>da</strong>des, que apresentam dinâmicas maisespontâneas e enraiza<strong>da</strong>s na vi<strong>da</strong> cotidiana <strong>da</strong> área central, mas poucosintoniza<strong>da</strong>s às estratégias de viabili<strong>da</strong>de econômica pensa<strong>da</strong>s para asintervenções.No que diz respeito à estruturação dos transportes, inclusive <strong>da</strong>quelesque têm o rio como principal referência, em nenhum dos projetos analisadosforam observa<strong>da</strong>s ações que potencializassem e/ou melhorassem ascondições de circulação já existentes. Dos quatro projetos mencionados,três deles fazem apelo à importância do rio como elemento <strong>da</strong> paisagemrenova<strong>da</strong>, mas que aparece, entretanto, simplesmente como elemento decontemplação, sendo, em alguns casos, nega<strong>da</strong> a sua condição de interaçãoe de inserção na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles que vivenciam cotidianamente o centro.No projeto “Estação <strong>da</strong>s Docas”, em local onde existia um terminalde transporte <strong>da</strong> população regional, que servia como ponto de embarquee desembarque para passageiros de locali<strong>da</strong>des ribeirinhas próximas, houvemesmo a transferência dessa ativi<strong>da</strong>de para outro local e sua substituição poroutro tipo de terminal, mais moderno, funcional e confortável, mas destinado,to<strong>da</strong>via, aos turistas e ao lazer de cama<strong>da</strong>s sociais de melhor poder aquisitivo.Nos demais projetos à beira-rio, os equipamentos criados prestam-se apenasà contemplação do rio, desconsiderando-se as vivências aí presentes.72 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê DebateA renovação se coloca não só no plano <strong>da</strong>s formas, mas também noplano dos conteúdos e <strong>da</strong>s representações do espaço. A renomeação doslugares, por exemplo, parece mesmo querer apagar o estigma antesreservados aos espaços ditos deteriorados; razão pela qual ca<strong>da</strong> vez maistorna-se menos recorrente se referir ao centro com sendo a Ci<strong>da</strong>de Velha,o comércio ou “lá em baixo”, como era comum no passado. Quando sevai ao centro, vai-se, sobretudo, à “Estação”, ao “Feliz Lusitânia”, ao “SãoJosé Liberto”, ao “Pólo Joalheiro” e ao “Mangal”. Da mesma forma que a“beira”, a “praia”, é redenomina<strong>da</strong> orla, e os trapiches que integram osespaços revitalizados passam a ser chamados de “píer”. Na ver<strong>da</strong>de, nãose visita o centro, mas apenas seus fragmentos renovados e enclavados,que definem também novos territórios.Considerações finaisNo embate entre vivências cotidianas e lazer moderno, há uma clarasugestão em considerar certos setores <strong>da</strong> área central como sendo deusos pouco desejáveis. Com isso induz-se à formação de novos espaços,por meio <strong>da</strong> renovação, que implica em subtração do espaço público,negação do direito à ci<strong>da</strong>de e recuo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia (GOMES, 2002). Taiselementos reforçam identi<strong>da</strong>des territoriais, concebi<strong>da</strong>s por meio <strong>da</strong>snovas formas espaciais pensa<strong>da</strong>s nos projetos de reabilitação.Subjacente aos projetos de renovação, considera-se a área centralcomo espaço vazio, tanto de conteúdos como de representações e que,por isso, deve-se prestar à “revitalização”. A despeito <strong>da</strong>s territoriali<strong>da</strong>desvivi<strong>da</strong>s torna-se um novo espaço, pensado para novos usos, novasfunções e para a formação de novos territórios a partir de uma estratégiasutil de apropriação de espaços coletivos, pretensamente consideradoscomo públicos.Ain<strong>da</strong> que pouco explícito, trata-se de um processo intencional presentenessas políticas que está diretamente associado à lógica primeira de substituiçãode relações cotidianas e de seus territórios. Estes, por sua vez, nem sempresão considerados estética e funcionalmente desejáveis e aptos à competiçãode mercado; <strong>da</strong>í serem defini<strong>da</strong>s outras territoriali<strong>da</strong>des, concebi<strong>da</strong>s e pensa<strong>da</strong>scomo atrativas para o turismo, para os investimentos econômicos.É nesse sentido que podemos considerar tais projetos como ver<strong>da</strong>deirosindutores de novas territoriali<strong>da</strong>des na área central de Belém. Conformemostra Roncayolo (1990), o sentido <strong>da</strong> territoriali<strong>da</strong>de é essencialmentecoletivo e tendem a expressar certa coerência, estatuto e expectativa deindivíduos ou grupos, definindo-se em função do outro. Por isso, aterritoriali<strong>da</strong>de não deixa de ser um fenômeno associado à organizaçãodo espaço em esferas de influência niti<strong>da</strong>mente delimita<strong>da</strong>s, que assumemcaracterísticas distintas e podem ser considerados como sendo exclusivasde quem os ocupa e de quem os define (SOJA apud RONCAYOLO, 1986).É o que acontece na área central de Belém. A reafirmação de identi<strong>da</strong>desterritoriais, que faz desses projetos espaços seletivos do ponto de vista doconsumo, dá-se pelo público-alvo para o qual as intervenções são pensa<strong>da</strong>s.A sofisticação dos projetos e os tipos de serviços oferecidos buscamatender precipuamente aos turistas e a uma população que se caracterizapela solvabili<strong>da</strong>de, mostrando-se em condições de pagar pelos bens eserviços colocados à disposição; situação esta que, evidentemente, redun<strong>da</strong>numa forma de “emuralhamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social” (GOMES, 2002), comprejuízo dos sujeitos que vivem a experiência de uso cotidiano <strong>da</strong> área central.NOTAS:1Desterritorialização tem o sentido de per<strong>da</strong> de território apropriado e vivido emdecorrência de diferentes processos originados de contradições capazes dedesfazerem territórios; ao passo que reterritorialização refere-se à criação de novosterritórios, seja por meio <strong>da</strong> reconstrução parcial, in situ, de velhos territórios, sejaatravés <strong>da</strong> recriação parcial, em outro lugar, de um novo território, que contémcaracterísticas do antigo (CORRÊA, 1994).2Dados do final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990, conforme levantamentos oficiais (BELÉM, 1998).3Os prédios previstos para restauração, em geral, eram sobrados, com área médiade 250 m2. A proposta levava em conta a instalação de lojas no térreo, a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>scom banheiros, e uma média de cinco habitações do tipo apartamento nos an<strong>da</strong>ressuperiores Os estudos de viabili<strong>da</strong>de constataram, entretanto, a ausência deprogramas junto à Caixa Econômica Federal, financiadora de habitações populares,que contemplassem a requalificação de imóveis antigos na área central. Além disso,o limite máximo de financiamento para os imóveis mostraram-se, em alguns casos,inferiores aos valores necessários à requalificação. Indicaram, ain<strong>da</strong>, uma tendênciade manter esses imóveis fechados ou alugados, como uma estratégia deespeculação imobiliária, posto que a ausência de planos e programas integradoscom vistas ao desenvolvimento <strong>da</strong> área central, gerava dúvi<strong>da</strong>s - para a populaçãomoradora, para a deman<strong>da</strong> a ser atendi<strong>da</strong> e para os proprietários – sobre aviabili<strong>da</strong>de do projeto. Por fim, os altos custos <strong>da</strong> requalificação colocavam em~ 6.2 | 2007~ 73
- Page 3 and 4:
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTES
- Page 5 and 6:
Buenos Aires - Rio de JaneiroStaffE
- Page 7 and 8:
DOSSIÊ EXPERIMENTAÇÕESURBANASO d
- Page 9 and 10:
Dossiê Experimentações Urbanasda
- Page 11:
Dossiê Experimentações Urbanas19
- Page 14 and 15:
Branco sobre Branco - uma poéticad
- Page 16 and 17:
Branco sobre Branco - uma poética
- Page 18 and 19:
Branco sobre Branco - uma poética
- Page 20 and 21:
El pensamiento urbano en lascrónic
- Page 22 and 23:
El pensamiento urbano en las cróni
- Page 24 and 25: El pensamiento urbano en las cróni
- Page 26 and 27: Um passeio pela cidade invisívelKa
- Page 28 and 29: Um passeio pela cidade invisívelin
- Page 30 and 31: Um passeio pela cidade invisívelde
- Page 32 and 33: Literatura visual urbanaClaudia Koz
- Page 35 and 36: Dossiê Experimentações Urbanasre
- Page 37 and 38: ~ 6.2 | 2007~ 35
- Page 39: Experimentaciones Urbanas/ Lux marc
- Page 42 and 43: Multiplicidad de culturas, tiempos
- Page 44 and 45: ¿Cómo se realiza una calle?Dibuja
- Page 47 and 48: Santiago PorterCasa de la MonedaFot
- Page 49 and 50: Santiago Porter, Ministerio I, 2007
- Page 51: Santiago Porter, Hospital, 2007, 12
- Page 54 and 55: 52 ~ ~ 6.2 | 2007
- Page 56 and 57: Turismo Local. Still de video 20075
- Page 58 and 59: DOSSIÊ DEBATE:Identidade, espaço
- Page 60 and 61: Fragmentos urbanos: identidade, mod
- Page 62 and 63: Fragmentos urbanos: identidade, mod
- Page 64 and 65: Fragmentos urbanos: identidade, mod
- Page 66 and 67: Fragmentos urbanos: identidade, mod
- Page 68 and 69: Territórios pensados e território
- Page 70 and 71: Territórios pensados e território
- Page 72 and 73: Territórios pensados e território
- Page 76 and 77: Territórios pensados e território
- Page 78 and 79: Dentro e fora da Nova Ordem Mundial
- Page 80 and 81: Dentro e fora da Nova Ordem Mundial
- Page 82 and 83: Dentro e fora da Nova Ordem Mundial
- Page 84 and 85: A itinerância dos artistas: a cons
- Page 86 and 87: A itinerância dos artistas: a cons
- Page 88 and 89: A itinerância dos artistas: a cons
- Page 90 and 91: A itinerância dos artistas: a cons
- Page 92 and 93: A itinerância dos artistas: a cons
- Page 94 and 95: Espantalhos e afinsCarlos Eduardo S
- Page 96 and 97: Espantalhos e afinsele vai repartin
- Page 98 and 99: Espantalhos e afinsfalta de razão
- Page 100 and 101: Espantalhos e afinsdemorada e digna
- Page 102 and 103: Espantalhos e afinse fantasmas é q
- Page 104 and 105: La tersura áspera de lo real.Poes
- Page 106 and 107: La tersura áspera de lo real. Poes
- Page 108 and 109: La tersura áspera de lo real. Poes
- Page 110 and 111: La tersura áspera de lo real. Poes
- Page 112 and 113: Questões da ficção brasileira no
- Page 114 and 115: Questões da ficção brasileira no
- Page 116 and 117: Questões da ficção brasileira no
- Page 118 and 119: Resenhas: O samba e o tango articul
- Page 120 and 121: O samba e o tango articulando o mod
- Page 122 and 123: El gran vidrioIsabel QuintanaBELLAT
- Page 124 and 125:
Un viaje por la realidadDiana I. Kl
- Page 126 and 127:
Un viaje por la realidadinstigantes
- Page 128 and 129:
Carlos CapelaDoutor em Literatura p
- Page 130:
Número 1 - Março 2003 Número 2 -