Fragmentos urbanos: identi<strong>da</strong>de, moderni<strong>da</strong>de e cosmopolitismo nas metrópoles latino-americanasna América Latina. Embora entre uma e outra atitudes (sentimento deinferiori<strong>da</strong>de ou proclamação de uma superiori<strong>da</strong>de nacionalista) peranteo problema <strong>da</strong> colonização cultural exista o predomínio de uma <strong>da</strong>s duasem distintas épocas, não existe, porém, uma cronologia linear e óbvia quepossa definir tal processo. As três etapas <strong>da</strong> relação cultural entre colonizadose colonizadores descritas por Needell tanto podem se suceder, como sealternar ou mesmo estar em ação simultaneamente.A concepção de culturas “genuinamente” nacionais latino-americanasfaz parte dessa busca de identi<strong>da</strong>de, na qual, em determinados momentos,prevalece a oposição e o combate a tudo o que vem de fora, ao alienígenae ao estranho. Nesses momentos, também pode começar uma oposiçãoentre cosmopolitismo e nacionalismo e, a partir disso, podem aflorar posiçõesconservadoras em relação à cultura popular, à existência de tradições únicas,à originali<strong>da</strong>de de um povo. Pode vir à tona, <strong>da</strong> mesma maneira, a lógicado “arielismo” como concebido pelo uruguaio José Enrique Rodó (RODÓapud MORSE, 1989), em que a América Latina simbolizaria o lado mais“espiritual, cultivado e heróico” do Novo Mundo, enquanto os EstadosUnidos seriam o emblema <strong>da</strong> “vulgari<strong>da</strong>de, do utilitarismo e <strong>da</strong> mediocri<strong>da</strong>de<strong>da</strong> democracia”. Contudo, isso também demonstra que sempre será vaiser praticamente impossível sair dos limites de uma tradição e visão demundo ocidentais (o que pode servir como denúncia <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de einutili<strong>da</strong>de dos nacionalismos isolacionistas e puristas), sempre estarápresente a duali<strong>da</strong>de margens-centro. Como se a América Latina fosse estarsempre condiciona<strong>da</strong> (e “condena<strong>da</strong>”) pela existência dessa arquetípicaanteriori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> metrópole européia.Mas, exatamente por fazer parte (ou ter sido obriga<strong>da</strong> a fazer parte) <strong>da</strong>tradição ocidental, a América Latina é “força<strong>da</strong>” a entrar em contato eparticipar <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, por mais difícil que isso seja para a situaçãoperiférica. A moderni<strong>da</strong>de na América Latina é, de início, apenas um desejo:desejo de tecnologia, de urbani<strong>da</strong>de, de liber<strong>da</strong>de e de transcendência doslocalismos e provincianismos do subcontinente. A moderni<strong>da</strong>de é o grandeprojeto ocidental e, como parte do Ocidente, a América Latina quer alinhar-sea ele. As dificul<strong>da</strong>des provam ser maiores que o desejo e a moderni<strong>da</strong>de naAmérica Latina fica reduzi<strong>da</strong> a uma modernização atrapalha<strong>da</strong>, inconclusae definitivamente desigual. Seja por uma inerente “inabili<strong>da</strong>de” democráticaher<strong>da</strong><strong>da</strong> do estatismo ibérico ou por razões que escapam à lógica historicistae positivista, a moderni<strong>da</strong>de chega para poucos latino-americanos (e nãohavia chegado tampouco para todos os do Centro, vale lembrar), para aquelesque pertencem a uma exclusivíssima elite intelectual e, principalmente,econômica. E esta elite periférica vai, em geral, continuar seguindo ospreceitos <strong>da</strong> imitação <strong>da</strong> metrópole e vai inutilmente correr contra o tempopara compensar o atraso cultural e tecnológico. Ela também tenta ignoraras margens <strong>da</strong>s margens, os ain<strong>da</strong> mais atrasados dentro do “grande atraso”que seria a condição periférica.Os burocratas e a maioria dos ideólogos, economistas e políticoslatino-americanos viam, desejavam e efetivamente trabalhavam para umamoderni<strong>da</strong>de (modernização) calca<strong>da</strong> em modelos europeus — com issotambém trazendo à tona dívi<strong>da</strong>s externas assombrosas, dependênciaeconômica, social e cultural —, ignorando que estes talvez fossem“inaplicáveis” à sua reali<strong>da</strong>de. Alguns intelectuais e artistas e os movimentosque estes criaram, entretanto, souberam equacionar (até por estarem naprivilegia<strong>da</strong> posição de prescindir de resultados políticos) o desejo demoderni<strong>da</strong>de e cosmopolitismo com uma bem fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> dialética <strong>da</strong>colonização, principalmente depois de um primeiro impacto cheio dedeslumbramento e afetação. As vanguar<strong>da</strong>s latino-americanas conseguemsimbolizar para a região (mais do que a sua contraparte representa<strong>da</strong> pelospolíticos) uma sensação bem mais concreta de pertencer à moderni<strong>da</strong>de,de fazer parte de um novo mundo.Entretanto, não é mais possível ignorar a real modernização que ocorrianas ci<strong>da</strong>des latino-americanas a despeito <strong>da</strong>s irregulari<strong>da</strong>des e improprie<strong>da</strong>desdeste processo.No sorprende entonces que moderni<strong>da</strong>d, modernización y ciu<strong>da</strong>d aparezcanentremezclados con nociones descriptivas, como valores, como espacios físicosy procesos materiales e ideológicos. (SARLO in BELLUZZO, 1990, 32)Algumas ci<strong>da</strong>des latino-americanas, as capitais sobretudo: Buenos Aires,Ci<strong>da</strong>de do México, Santiago, São Paulo etc., tiveram um crescimentogigantesco entre o final do século XIX e primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX.Um crescimento que significou a expansão <strong>da</strong>s diversi<strong>da</strong>des cultural etecnológica, cosmopolitização compulsória <strong>da</strong> cultura urbana nessasemergentes novas metrópoles. Então, a moderni<strong>da</strong>de (urbana, econômicae cultural) latino-americana experimenta<strong>da</strong> neste período prepara o terrenopara as vanguar<strong>da</strong>s estéticas. As ci<strong>da</strong>des e a sua evolução em ci<strong>da</strong>des60 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debatemodernas serão a principal referência também para os cosmopolitaslatino-americanos.A efervescência sócio-cultural e tecnológica <strong>da</strong>s metrópoles é um dostemas recorrentes dos primeiros modernismos e vanguar<strong>da</strong>s latino-americanos.To<strong>da</strong>s as novi<strong>da</strong>des que aparecem junto à ci<strong>da</strong>de moderna entram napoética vanguardista: tramways, cinematógrafos, publici<strong>da</strong>de, automóveis,até máquinas de costuras, esportes, <strong>da</strong>nças, figurinos ilustrados... E oscosmopolitas do mundo inteiro, ávidos por essas novi<strong>da</strong>des, dos gadgetse sonhos modernos <strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de dirigirão o seu olhar para um lugar emparticular: Paris. Paris é a Meca dos artistas latino-americanos do início domodernismo, é a matriz de onde se originam todos os discursos cosmopolitas,é a fonte do que pode haver de mais heterogêneo nas culturas ocidentaisna vira<strong>da</strong> do século. Para Jorge Schwartz,Essa dependência cultural dos intelectuais latino-americanos que vêem Paris comomodelo, mito e meta, aparece defini<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte maneira por Horácio Quiroga,em seu Diario de viaje a París: “Para nós, pobres desterrados <strong>da</strong> supremaintelectuali<strong>da</strong>de, a visão de Paris é a nostalgia de um lugar que nunca vimos eque, hoje ou amanhã, nos leva a conhecer Paris (...).” Esse caráter mítico aparececorroborado por Darío, ao descrever sua chega<strong>da</strong> a Paris: “E eu ia conhecer Paris,realizar o maior anseio de minha vi<strong>da</strong>. E quando na estação Saint Lazare piseiterra parisiense julguei encontrar solo sagrado”. (SCHWARTZ, 1983, 14)Esta concepção de um Centro de onde emanam to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e o qual todos têm de seguir para não correr o risco deestagnação, obsolescência e, sobretudo, provincianismo, é uma <strong>da</strong>s principaiscaracterísticas dos primórdios do modernismo na América Latina. Osintelectuais e artistas, tal qual as elites políticas, buscando numa longínqua(e idealiza<strong>da</strong>) metrópole o aval e as garantias para a sua afirmação no mundomoderno. (Não deixa de ser irônico que quanto mais autoconsciência deprovincianos, mais essa vontade de copiar, de não ser provincianos, deestar em Paris.)A partir do instante em que os primeiros modernistas (ou pré-modernistas)latino-americanos começam a se <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> transformação gradual desuas próprias ci<strong>da</strong>des em metrópoles modernas, em “Parises” de dimensõesmenores, mas comparáveis, a fascinação com o Centro continua e aparecemos paralelismos, as transferências e a<strong>da</strong>ptações de mitos urbanos europeus(parisienses em geral) para o cenário local. As ci<strong>da</strong>des latino-americanasvêem surgir os seus flâneurs, que esbarram em dândis e demoiselles muitochics, passeando em recém-inaugurados bulevares ou galerias com o últimomodelo do figurino, esperando a hora do chá para entrar em elegantescafés. A tecnologia começa a estar ao alcance de uma parcela maior <strong>da</strong>população urbana. A vivência dessas conquistas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de alteraprofun<strong>da</strong>mente não só o cotidiano <strong>da</strong>s pessoas (pessoas abasta<strong>da</strong>s, valeressaltar), como também instiga novas maneiras de pensar e intervir sobrea reali<strong>da</strong>de, em termos artísticos, inclusive. As linguagens adquirem umrepertório inédito, renovam-se, rompem com o passado. Nesse primeiromomento, a técnica, a mo<strong>da</strong> e um acentuado esteticismo ocupam o centro<strong>da</strong>s atenções neste renovado repertório. A “descoberta” <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>dena América Latina significa um impulso de otimismo tecnológico e social,a crença absoluta na lógica ocidental do progresso (esse viés otimista dosprimeiros “modernos” latino-americanos vai estar mais evidente em cronistas,nos diários de viagem e nos prosistas mais leves).Porém, a consciência <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e o advento de movimentos devanguar<strong>da</strong> latino-americanos significaram também uma nova maneira deconceber a identi<strong>da</strong>de nacional e resultaram numa revisão dos valoresculturais próprios ao subcontinente. Ou seja, depois desse primeiro estágiode identificação total com a metrópole, as vanguar<strong>da</strong>s latino-americanaspassam a buscar na combinação urbani<strong>da</strong>de moderna, transnacional etecnológica, e nas raízes nacionais e populares a receita de uma moderni<strong>da</strong>dee modernismos estritamente “originais”.La tendencia modernizadora de la racionali<strong>da</strong>d metropolitana usa lo nuevocomo categoría de exportación, para que la red periférica se ponga al día enmateria de nove<strong>da</strong>des y suscriba — dependientemente— su dogma centralistade progresso. Esta red periférica, en su conformación latino-americana, recibelo nuevo como categoría escindi<strong>da</strong> que le habla de sus propios descalces deidenti<strong>da</strong>d entre pasado y presente, entre universalismo y regionalismo, entredependencia y autonomía. (RICHARD in BELLUZZO, 186)É exatamente a tensão entre esses elementos que define uma espéciede novo marco zero — como no título de uma <strong>da</strong>s últimas obras de Oswaldde Andrade — (embora o marco zero latino-americano, ao contrário desua contraparte européia não poderia prescindir do passado — mesmo~ 6.2 | 2007~ 61
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