Um passeio pela ci<strong>da</strong>de invisívelinformais tentando ganhar a vi<strong>da</strong> coletando e vendendo todo tipo de produtosem carrinhos, ou nos slides de Sleepers (1997-2002), que mostram pessoassem-teto deita<strong>da</strong>s na rua junto com imagens de cachorros dormindo. Aexposição dessa zona limite de miséria na paisagem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de é umarecor<strong>da</strong>ção obscena do colapso de um dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de moderna,a distinção entre público e privado, como ele enfatiza: “para o sem-teto, arua é a sala de estar”. É também, ao mesmo tempo, um tributo honesto àfascinação do artista com o centro <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do México, onde as distinçõeshistórica, social, econômica e cultural se dissolvem em um tipo de hibridismoorgânico em que centro e periferia, passado e presente, rico e pobre seencontram na disputa política <strong>da</strong> aparência estética. Pode-se dizer que Alÿsestá <strong>da</strong>ndo priori<strong>da</strong>de ao retrato <strong>da</strong> deterioração, mas, como o escritormexicano Carlos Monsivias aponta, “(no) para extraer de allí una ‘estéticade la pobreza’, de la belleza oculta en los territorios de la dejadez, sino algomás asible: la representación de un estado de cosas, una reelaboración delCentro de la ciu<strong>da</strong>d de energías siempre inespera<strong>da</strong>s, y, más exactamente,del viaje artístico que absorbe urbanismo, sociología y experiencia devecino en la obtención de imágenes únicas” (2006: 109).A vizinhança em torno <strong>da</strong> Praça El Zócalo, no coração <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de doMéxico, tem sido o cenário de uma longa série de intervenções de Alÿs, comoregistra a exposição retrospectiva recente: Walking distance from the Studio.Em geral, sua atenção está foca<strong>da</strong> no centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, num alcance dedez quadras <strong>da</strong> Praça Principal, El Zócalo, o sítio histórico mais importantedo México. El Zócalo era o centro de Tenochtitlán, a ci<strong>da</strong>de pré-hispânicados Astecas, e tem sido um local importante para a manifestação do poderpúblico, tanto nos edifícios representativos, como em protestos contra opoder. Ali se encontram os restos arqueológicos de um passado nativomagnífico no Templo Mayor, no Palácio de Moctezuma II, no Templo doSol e no Muro <strong>da</strong> Serpente. A praça é cerca<strong>da</strong> pela Catedral Metropolitanade um lado e do outro pelo Palácio Nacional. No meio, ela é presidi<strong>da</strong> poruma bandeira gigante, chama<strong>da</strong> Madre Patria, e essas características fazemdela o palco perfeito para todo tipo de propagan<strong>da</strong> e espetáculo. Hoje,esse é o ponto focal vital na alastra<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do México – um vasto espaçopúblico usado para todos os aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana: orientação, encontro,compras, ven<strong>da</strong>, intercâmbio, diversão, protesto. Ela é, a um só tempo,local e global, uma mistura microcósmica <strong>da</strong> existência humana. Em seusPatriotic Tales, de 1997, Alÿs levou um rebanho de ovelhas para a praça eas fez contornar a bandeira em um círculo perfeito, seguindo cegamente olíder. O significado crítico do vídeo, claramente melhorado pela manipulaçãodigital, é bastante evidente. Em um vídeo posterior, Zócalo, May 22, de1999, Alÿs realiza um filme de doze horas sobre a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> praça, ondeacompanhamos, de uma certa altura, o ir e vir dos encontros sociais diários.No centro, a sombra do mastro <strong>da</strong> bandeira gira como um gigantescorelógio de sol. Sem consciência <strong>da</strong> presença de Alÿs e de sua câmera, aspessoas vêm e vão, mas há sempre uma multidão considerável que segueo abrigo à sombra <strong>da</strong> bandeira. Lentamente, as pessoas se movem emcírculo com o sol, de modo a permanecer na sombra; elas buscam espaçona linha fina de sombra seguindo seu ritmo e criando, assim, uma espéciede relógio humano no centro de um inóspito local de encontro.Em algumas instalações, o engajamento político <strong>da</strong> arte de Alÿs é maisexplícito, como, por exemplo, no projeto de 1994, Vivien<strong>da</strong> para Todos, emque ele construiu uma casa no meio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com de anúncios, posterse outros materiais de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong>s eleições gerais, em uma declaraçãoirônica sobre as promessas dos partidos políticos. Além disso, seus passeiosmuitas vezes são marcados por um claro limite político, como em Reenactments,vídeo de 2000, em que seu alter ego de “turista” fez sua últimaaparição. Neste vídeo, vemos Alÿs, o estrangeiro preocupado, comprandouma pistola Berretta 9-mm, que ele depois segura na mão ao caminharpelas ruas. Ele não tenta esconder a arma, e os passantes olham chocados,fazendo com que a tensão aumente. Começamos a nos perguntar ondeterminará a jorna<strong>da</strong> de Alÿs e o que acontecerá em conseqüência <strong>da</strong>“performance”. Após doze minutos, ele é finalmente preso e levado emum carro <strong>da</strong> polícia, e nós, como espectadores, nos sentimos aliviados enos divertimos com essa corajosa, porém tola provocação. Do ponto devista latino-americano, essa parece uma ação muito estúpi<strong>da</strong> e, se ocorresseno Brasil, ele seguramente teria corrido sério perigo de vi<strong>da</strong>. Mas a provocaçãoevidentemente aponta para a presença do crime e <strong>da</strong> violência e para osproblemas urgentes de segurança nas ruas, embora de uma maneira queparece desproporcional à gravi<strong>da</strong>de real dos problemas.Podemos nos perguntar se esse tipo de intervenção artística é adequa<strong>da</strong>para capturar a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de urbana de hoje. Podemosargumentar que o centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de não representa a reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> pelagrande maioria <strong>da</strong> população, seja devido à urbanização moderna <strong>da</strong>classe média ou às favelas <strong>da</strong> periferia. De todo modo, a opção artística26 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Experimentações Urbanaspelo centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de como local <strong>da</strong> intervenção é uma forma de ler oilegível, de reduzir os 1500 km2 de mancha urbana, uma área sem limites,a um princípio fun<strong>da</strong>mental de diversi<strong>da</strong>de que pode ser mapeado pelaoperação pré-cartográfica do passeio por rotas projeta<strong>da</strong>s, itinerárioshumanos, em lugar de plantas científicas. Talvez não haja nenhum modode recuperar o controle mental do espaço urbano, nenhum modo demapear a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de nessa dinâmica caótica. Mas, enfocando ocentro, Alÿs vai contra as correntes <strong>da</strong> história que reduziram o centro <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de a um centro “histórico”, um lugar de melancolia dramática, umterritório de negligência pública que foi abandonado pelos planejadores<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de por meio século. Ao contrário <strong>da</strong> tendência histórica <strong>da</strong> maioria<strong>da</strong>s megaci<strong>da</strong>des ocidentais, a gentrificação do centro por meio de reformase valorizações bem planeja<strong>da</strong>s dos imóveis nas partes antigas do tecidourbano nunca foi realmente bem sucedi<strong>da</strong>. Mesmo que tenha havidoalgumas tentativas de usar uma estratégia similar na América Latina, elasnão mu<strong>da</strong>ram a reali<strong>da</strong>de presente. No México, os marcos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de deouro do centro – La Merced, a Área dos Estu<strong>da</strong>ntes, as Vizcaínas, Meavee Santa Cruz, Plaza Garibaldi e Alame<strong>da</strong> Central – são, agora, ruínasmelancólicas de uma história irrecuperável. No passado, o México era, noque se refere à imagem, um país com um centro único, a Ci<strong>da</strong>de do México,uma ci<strong>da</strong>de sustenta<strong>da</strong> durante séculos por suas funções cerimoniais,religiosas e políticas, um lugar onde o símbolo e a reali<strong>da</strong>de eram inseparáveis.O processo histórico de abandono e decadência do centro é longo ecomplexo, porém, como indica Carlos Monsivais, dois fatores principaispodem ser definidos. A transferência <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de nacional, nos anos60, dos prédios históricos originais para o novo e moderno campus emestilo norte-americano <strong>da</strong> UNAM, construído durante o governo do presidenteMiguel de Alemán, interrompeu a importância cultural do centro, e a aberturado sistema de metrô nos anos 70 apenas ajudou a aumentar ain<strong>da</strong> mais amultidão nas ruas do bairro central, sem oferecer realmente uma reformaou inovação. Assim, qual é o centro do México hoje? O que resta dele? Oque foi feito de sua grandeza passa<strong>da</strong>? Deixemos falar novamente Monsivias,o mais proeminente escritor e comentador <strong>da</strong> cultura mexicana contemporânea:Multiplici<strong>da</strong>d de comercios, museos extraordinarios, pequeñas fábricas, librerías,vecin<strong>da</strong>des, museos, oficinas públicas, bufetes, consultorios médicos, fon<strong>da</strong>s,restaurantes, cantinas, refresquerías, escuelas, teatros de burlesque, la plazamariachera, cerrajerías, pastelerías, templos remodelados, almacenes de ropa,hoteles de primera y de tercera, albergues, salones de baile, la Alame<strong>da</strong>... Yantros para casi todos los gustos (entre las excepciones, los dedicados a viu<strong>da</strong>snonagenarias y gángsteres honrados a carta cabal), antros para jóvenes pasantesy profesionistas, gays, obreros, desempleados, subempleados, estudiantesganosos de averiguar como se divertían antes los de entonces, grupos deamigos no muy convencidos del riesgo que es el sinónimo de las madruga<strong>da</strong>salegres. (2006: 111-112)Examinar a ci<strong>da</strong>de por meio do espelho fragmentado do centro é umaforma de restaurar seu valor simbólico e mostrar como o desenvolvimentona América Latina é, muitas vezes, sinônimo de negligência e abandono<strong>da</strong> história, <strong>da</strong> herança e <strong>da</strong> tradição. É aqui que o artista encontra materialpara a crítica, mas também para uma fabulação imaginária e uma profecia<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de futura; é aqui que ele dá forma às relações humanas e àsestruturas invisíveis que nenhum mapa pode captar. Vagar nos bairroslocais próximos a seu estúdio é, ao mesmo tempo, uma forma de reinventara viagem de descobrimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, onde viajar se tornou um desafiodiário de resistência para milhões de pessoas. Um dos principais problemas<strong>da</strong>s megaci<strong>da</strong>des latino-americanas é a distância entre a casa e o trabalho,e, na Ci<strong>da</strong>de do México, estima-se que cerca de 30 milhões de pessoasviajam todos os dias por veículos públicos ou privados. A ca<strong>da</strong> dia, 5milhões de pessoas usam o metrô e mais de 3 milhões de carros percorremas ruas. Essas estatísticas mostram um enorme problema de infra-estrutura,mas também indicam em que lugar <strong>da</strong>s ruas a maioria dos encontrosmulticulturais realmente ocorrem e onde o medo e o desejo estão catalisandoo contorno imaginário <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. A caminha<strong>da</strong> pelas ruas não é mais umaencenação <strong>da</strong> autonomia moderna e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de pessoal, mas o últimorecurso de movimento e transporte que resta para uma populaçãodesprivilegia<strong>da</strong>, e a aventura <strong>da</strong> descoberta em muitas <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des<strong>da</strong> América Latina termina por ser um exercício diário de resistênciae sobrevivência.O trabalho performático de Alÿs eluci<strong>da</strong> uma outra relação mais profun<strong>da</strong>entre os níveis <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de não captura<strong>da</strong> pelas divisões de naturezasociológica de Canclini. Podemos ver que Alÿs trabalha simultaneamenteem vários dos níveis pauta<strong>da</strong>s por Canclini, entretanto, mostra, pelo privilégiooferecido ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que o nível simbólico, no sentido semiótico~ 6.2 | 2007~ 27
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