Resenhas: O samba e o tango articulandoo moderno, o primitivo e o nacionalMarildo José NercoliniGARRAMUÑO, Florência. Moderni<strong>da</strong>des primitivas: tango, samba y nación.Buenos Aires: Fondo de <strong>Cultura</strong> Econômica, 2007.É importante destacar inicialmente o extenso e qualificado trabalhode pesquisa que a autora vem desenvolvendo nos últimos anos,estabelecendo pontes acadêmicas entre Brasil e Argentina no campo<strong>da</strong> pesquisa em torno <strong>da</strong> crítica cultural. Florência Garramuño, em seusestudos, não se atém apenas aos limites <strong>da</strong> análise literária de poetas,ficcionistas e críticos brasileiros e argentinos, mas abarca manifestaçõesliga<strong>da</strong>s às artes plásticas, ao cinema e, especialmente, à música. A autoraestabelece conexões entre essas diversas manifestações, preocupa<strong>da</strong> empensar de forma mais ampla e comparativa as culturas brasileira eargentina e suas diferentes conexões, sejam elas internas a ca<strong>da</strong> umadessas culturas (com seus distintos agentes artístico-culturais), ouexternas, estabeleci<strong>da</strong>s entre Brasil e Argentina, ou entre a cultura dessespaíses e aquelas dos “países centrais”, o que possibilita um olharrenovado sobre a cultura latino-americana.Em Moderni<strong>da</strong>des Primitivas a autora dá especial atenção a duas <strong>da</strong>sprincipais manifestações musicais brasileiras e argentinas: o tango e osamba, buscando pensar o processo pelo qual essas manifestações, nasdéca<strong>da</strong>s de 1920 e 1930, foram transforma<strong>da</strong>s em expressõesfun<strong>da</strong>mentais do “ser argentino” e do “ser brasileiro”. Um dos aspectosmais atrativos de seu trabalho é a tentativa, bem sucedi<strong>da</strong> a meu ver, deanalisar as redes culturais que foram sendo construí<strong>da</strong>s pelos diversosagentes culturais para <strong>da</strong>r conta do processo de modernização, então emvoga, e <strong>da</strong> difícil e instigante tarefa de articular, na América Latina, esseprocesso com o pensar sobre a nação e a identi<strong>da</strong>de nacional.O entrelaçamento aqui entre o moderno e o primitivo na construção<strong>da</strong> nação não é mostrado como contraditório e muito menos como umaforma “exótica” e “mágica”, própria de nossos países periféricos, de sefazer uma cópia “mal-feita” <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de européia dos anos 1920. Pelocontrário, supera-se esse lugar-comum presente em muitos estudosrealizados em nossas academias, carregados de um sentimento deinferiori<strong>da</strong>de cultural em relação aos países centrais, colocados comoparâmetros de excelência, com sua pretensa moderni<strong>da</strong>de “única eoriginal”, como bem pontua a autora. Ao questionar esse sentido unívocoe unidirecional, mostra-se como aqui a construção <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de se fezconectando-se com a moderni<strong>da</strong>de européia, mas a seu tempo e a seumodo, sem esquecer o específico <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de local, com seus embates ereali<strong>da</strong>des específicas.Portanto, nem como exotismo esdrúxulo, nem como cópia mal-feita,mas como processo diferencial. Aqui, a moderni<strong>da</strong>de foi gera<strong>da</strong> a partir<strong>da</strong> criação de redes culturais. Elementos provindos <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>seuropéias, sobretudo francesas, trazidos pelo contato e pela vivência quepoetas, artistas plásticas, ensaístas, sambistas e tangueiros tiveram emsolo europeu, sobretudo parisiense, foram antropofagicamentearticulados com os elementos e o contexto locais, com seus embatesinternos e necessi<strong>da</strong>des específicos, gerando o que a autora chama de“moderni<strong>da</strong>des primitivas”, para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> maneira própria como naAmérica Latina e como, no caso específico do Brasil e <strong>da</strong> Argentina, essamoderni<strong>da</strong>de, assim como os embates que lhes são constitutivos, foiconstruí<strong>da</strong>. Evita, desse modo, pensar em termos dicotômicos ereducionistas, destacando que o primitivismo deve ser pensado nesseperíodo como intimamente ligado à moderni<strong>da</strong>de e, mais do que isso,como a própria moderni<strong>da</strong>de historicamente acabou por gerar (oumelhor, recriar) o conceito de primitivismo, de acordo com seuspropósitos. Se na Europa ele foi buscado nas expressões “naïfs” africanas,aqui foi buscado no resgate de expressões de uma cultura popular, quepassa por um processo de reapropriação e recriação, tendo em vista odesejo de se criar uma nacionali<strong>da</strong>de em outras bases. Esse processo é116 ~ ~ 6.2 | 2007
Resenhasfacilmente perceptível nas criações do modernismo brasileiro, seja nasartes plásticas, com Tarsila do Amaral, na literatura e nas políticaspúblicas, com Mário de Andrade, na música, com Villa Lobos, e na bemsucedi<strong>da</strong> tentativa de elevar o samba como música-símbolo nacional; omesmo pode ser percebido, com as devi<strong>da</strong>s diferenças, na moderni<strong>da</strong>deargentina, como o grupo Martín Fierro, Güiraldes, Girondo e Borges, e natransformação do tango em música-símbolo nacional.Algumas questões são persegui<strong>da</strong>s durante o processo de escrita dolivro: como se converte uma forma cultural, no caso específico do sambae do tango, em “nacional” e quais operações permitiram que essasformas culturais, antes desqualifica<strong>da</strong>s, fossem pensa<strong>da</strong>s como símbolosde uma identi<strong>da</strong>de nacional? Ao tratar delas, a autora demonstra nãoestar preocupa<strong>da</strong> com a busca de uma essência <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>desnacionais, mas sim com o processo pelo qual essas identi<strong>da</strong>des sãoconstruí<strong>da</strong>s e imagina<strong>da</strong>s (resgatando aqui a reflexão seminal sobre otema feita por Benedict Anderson) e, mais especificamente, atém-se aanalisar as redes culturais cria<strong>da</strong>s, tanto no Brasil quanto na Argentina,que possibilitaram alçar o samba e o tango a músicas-símbolo nacionais,elementos constitutivos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de brasileira e argentina,respectivamente. Para <strong>da</strong>r conta disso, ela não se fixa unicamente nosestudos <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> expressão musical em si, com seusrepresentantes ilustres e suas histórias e façanhas, algumas anedóticas,outras heróicas e desbravadoras, até porque esse discurso musicalconstitui-se e transformou-se a partir do contato e do embate com outrosdiscursos sociais existentes à época. Ao invés de se ater às fronteiras deuma disciplina, seu estudo deman<strong>da</strong> “um constante e irreverentecruzamento de fronteiras disciplinares” (p. 24), assumindo os riscos ecolhendo os acertos dessa escolha. Garramuño prefere percorrer umcaminho menos óbvio e bem mais complexo: analisar o entrecruzamento<strong>da</strong>s muitas vere<strong>da</strong>s presentes no processo de se pensar e construir o “sernacional” argentino e brasileiro, durante o processo de modernização nosanos 20 e 30. Ela traz à baila e analisa idéias e práticas agencia<strong>da</strong>s porpoetas, ficcionistas, artistas plásticos, cineastas, críticos de arte eliteratura, além de sambistas e tangueiros, e a maneira como tais agentesforam articulam redes culturais locais – conecta<strong>da</strong>s com o pensamento ea prática <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s européias –, as distintas estratégias por elescria<strong>da</strong>s e que desembocaram na constituição de um discurso sobre abrasili<strong>da</strong>de e a argentini<strong>da</strong>de que se tornaram hegemônicos no período ecujos traços são ain<strong>da</strong> facilmente perceptíveis hoje. Ao percorrer eanalisar essas vere<strong>da</strong>s entrecruza<strong>da</strong>s tanto no Brasil, quanto na Argentina,argutamente Garramuño põe em relevo o quão conecta<strong>da</strong>s estão essasduas culturas. Mesmo quando as estratégias de agenciamento culturaiseram distintas, o dispositivo levado a cabo era muito semelhante. Nodizer <strong>da</strong> autora, são “manifestações em formas diferencia<strong>da</strong>s de umasérie de histórias e operações formais comuns”(p. 31). Tango e samba, apartir dos anos 1920, são mostrados como produtos anfíbios, ao mesmotempo construídos como nacionais e modernos, e cujo contingente efuncional caráter “primitivo”, associado a um passado nacional, éestrategicamente transformado em marca mais saliente de suamoderni<strong>da</strong>de.Ao incorporar o Brasil em seus estudos e fazê-lo comparativamentecom a Argentina tenta romper com uma prática muito comum até hápouco tempo – e que ain<strong>da</strong> tem fortes resquícios na academia tantobrasileira quanto dos demais países latino-americanos – de considerar acultura brasileira como afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s demais culturas latino-americanaspor ter um processo independente e radicalmente distinto, o queimpediria estudos comparativos. Nos estudos comparativos, não se trata,portanto, de se fixar unicamente às semelhanças, mas pôr em relevo asdiferenças culturais e os distintos processos – histórico, político e cultural– que as geraram. E, ao fazer essa escolha, concebe “uma cultura latino-~ 6.2 | 2007~ 117
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