Questões <strong>da</strong> ficção brasileira no século XXIBeatriz ResendeInvestigar a ficção brasileira que está sendo produzi<strong>da</strong> neste início de século,especialmente realiza<strong>da</strong> por jovens escritores, nos leva, inevitavelmente, aidentificar questões recorrentes. A primeira dominante que quero apontaré a presentificação, a manifestação explícita, sob formas diversas, de umpresente dominante no momento de descrença nas utopias que remetiamao futuro, tão ao gosto modernista, e de um certo sentido intangível dedistância em relação ao passado. Em artigo recente, no qual analisa asformações culturais manifestas em Buenos Aires no ano de 2000, JosefinaLudmer destaca, em relação à Argentina, que “o caminho até a literaturaera o desejo de poder ver, em ficção, as temporali<strong>da</strong>des do presente vivi<strong>da</strong>spor algumas subjetivi<strong>da</strong>des”, em manifestações em que “as formaçõesculturais do presente se superpõem, coexistem e se interpretam mutuamente”. 1Embora sob alguns aspectos a literatura brasileira contemporânea se afaste<strong>da</strong> produção argentina (ain<strong>da</strong> que em outros, evidentemente, também seaproxime), entre nós o sentido de presente aparece também com força ede múltiplas formas. Há, na maioria dos textos, a manifestação de umaurgência, de uma presentificação radical, preocupação obsessiva com opresente que contrasta com um momento anterior, de valorização <strong>da</strong>história e do passado, quer pela força com que vigeu o romance histórico,quer por manifestações de ufanismo em relação a momentos de construção<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nacional. Não é só na literatura que isto acontece, mas tambémnas artes cênicas – com as performances –, nas artes plásticas, queeliminaram o suporte, preferindo arriscar na efemeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s instalações,e na videoarte.Na literatura, o sentido de urgência, de presentificação, se evidencia poratitudes, como a decisão de intervenção imediata de novos atores presentesno universo <strong>da</strong> produção literária, escritores moradores <strong>da</strong> periferia ou ossegregados <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, como os presos, que eliminaram mediadores naconstrução de narrativas, com novas subjetivi<strong>da</strong>des, fazendo-se definitivamentedonas de suas próprias vozes. Na recusa dos mediadores tradicionais,essas novas vozes utilizam não apenas recursos de estilo, como o dosnarradores pessoalizados, mas buscam também o imediato em ações dentrodo circuito editorial, com a substituição, em alguns casos, dos editores,com a criação de novas editoras nas quais tenham mais participação. Oque interessa é, sobretudo, o tempo e o espaço presentes, apresentadoscom a urgência que acompanha a convivência com o intolerável.Diante <strong>da</strong>s novas organizações do espaço geopolítico e de diferentesconfigurações do tempo, premido pela simultanei<strong>da</strong>de, as formações culturaiscontemporâneas parecem não conseguir imaginar o futuro ou reavaliar opassado antes de <strong>da</strong>rem conta, minimamente, <strong>da</strong> compreensão destepresente que surge impositivo, carregado ao mesmo tempo de seduçõese ameaças, to<strong>da</strong>s imediatas.A presentificação me parece também se revelar por aspectos formais, oque tem tudo a ver com a importância que vem adquirindo o conto curtoou curtíssimo em novos escritores, como Fernando Bonassi e RodrigoNaves, ou nas pequenas edições para serem li<strong>da</strong>s de um só fôlego. Exemplo<strong>da</strong> força e do gosto pelos textos curtos pode ser encontrado no interessantevolume Os cem menores contos brasileiros do século, organizado por MarcelinoFreire, onde Ítalo Moriconi, em microprefácio, apresenta o gênero: “É nolance do estalo que a cena to<strong>da</strong> se cria” 2 .Neste efeito ou atitude que é a presentificação, seria até redun<strong>da</strong>ntevoltar a falar <strong>da</strong> partilha do espaço de criação entre o livro impresso e aspossibili<strong>da</strong>des do virtual, de tão evidente que é esse aspecto.Passo agora para uma segun<strong>da</strong> constante que venho identificando emnarrativas diversas que pouco parecem ter em comum: o retorno do trágico.A presença do trágico nas socie<strong>da</strong>des deste momento pós-globalizaçãonão é exclusivi<strong>da</strong>de do literário. Está presente no cotidiano, expõe-se nasmídias, incorpora-se ao vocabulário mais corriqueiro. Nas artes, tem-semanifestado fortemente no teatro – entre nós, no Brasil, com uma retoma<strong>da</strong>mesmo <strong>da</strong> tragédia como forma que freqüenta os palcos. Recentemente,110 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debatevimos um documentário como o Ônibus 174, de José Padillha, assumir aforma de uma tragédia clássica, construí<strong>da</strong> com uni<strong>da</strong>de de assunto, tempoe espaço. A arte híbri<strong>da</strong> e tão atual <strong>da</strong> performance incorporou-se à próprialinguagem na visuali<strong>da</strong>de, na linguagem, na relação com o público. Amanifestação de forte sentimento trágico que aparece na prosa pode se reunirao sentido de presente de que já falei, já que, nas narrativas fortementemarca<strong>da</strong>s por um pathos trágico, a força recai sobre o momento imediato,presente, em textos que tomam o lugar de formas narrativas que se tornarampouco freqüentes, como as narrativas históricas, as épicas ou as que sedesenvolvem em um tempo mítico/fantástico de temporali<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong>.Cabe lembrar que, de todos os gêneros <strong>da</strong> poética clássica, o que se realizasempre em um presente é o trágico.É evidente que são características do momento que a cultura vive hoje,em termos de organização do mundo, que fazem com que elementos comoo sentido de urgência, com predomínio do olhar sobre o presente, e afamiliarização com o trágico cotidiano atravessem múltiplas obras. O trágicoestabelece um efeito peculiar com o indivíduo, supera-o e traça uma relaçãodireta com o destino. Trágico e tragédia são termos que se incorporaram aoscomentários sobre nossa vi<strong>da</strong> cotidiana, especialmente quando falamos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>nas grandes ci<strong>da</strong>des. Vamos, então, perceber que é a inevitabili<strong>da</strong>de do trágicoque aparece em dois dos mais importantes autores <strong>da</strong> prosa contemporânea,Luiz Ruffato e Bernardo Carvalho. É também a inexorabili<strong>da</strong>de do trágico,invadindo dolorosamente as relações pessoais, tornando a vi<strong>da</strong> somentesuportável pelo consolo <strong>da</strong> arte, que dá uma força inédita aos contos de doisexcelentes livros de Sérgio Sant’Anna, O monstro e O vôo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>. Otrágico retorna à ci<strong>da</strong>de na anomia angustiante, nas relações pessoais e navi<strong>da</strong> pública, pelos escritos em prosa de Luiz Ruffato. E vai mais longe ain<strong>da</strong>,transformando-se no trágico radical que se tornou matéria de Bernardo Carvalho.Nos dois, é o sentimento trágico <strong>da</strong> existência de que temos dificul<strong>da</strong>de emfalar e como tal sentimento conforma as identi<strong>da</strong>des que dominam a narrativa.Em Luiz Ruffato – e falo aqui de seu festejado romance Eles erammuitos cavalos, publicado em 2001 –, a narrativa ocupa-se <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que éa grande São Paulo, mas poderia ser qualquer ci<strong>da</strong>de – que o narradorpercebe fragmenta<strong>da</strong>, desconexa, incongruente, quase irreal, sem quefalte a esses escritos o impacto ou força dos escritores que optam pelorealismo mais direto <strong>da</strong> linguagem. É a tragici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na metrópolehostil que se entranha nos universos privados, circula <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sruas, cruza<strong>da</strong>s com rapidez, até o espaço sem privaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>doméstica, em que a violência urbana se multiplica ou redobra.Seja qual for o tom adotado na construção dos fragmentos, unidospelo fio constituído pela vi<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de global, o trágico os atravessa.Mesmo quando a prosa se organiza de forma próxima ao poético, o tomsempre é do destino trágico. Pode ser a listagem de livros numa estante,um cardápio, uma mensagem na internet ou o texto de um diploma deevangelização. E pode, também, assemelhar-se a um microconto, como oantológico “Noite” ou em “Aquela mulher”, dolorosamente fragmentário eabsolutamente trágico. No cenário, a ci<strong>da</strong>de, o paradoxo trágico, seconstrói entre a busca por alguma forma de esperança e a inexorabili<strong>da</strong>detrágica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana que segue em convívio tão próximo com a morte.Mas cabe ressaltar que é o fragmentário <strong>da</strong> narrativa, acompanhadopor certo humor e ironias sutis, que impede que a obra se transformepuramente no relato do mundo cão. A narrativa entrecorta<strong>da</strong> evita acatarse como conseqüência, propondo em seu lugar a crítica, numaespécie de distanciamento brechtiano (lembra a ci<strong>da</strong>de construí<strong>da</strong> nofilme Dogville), que comove, mas não ilude.Em Nove noites e Mongólia, romances recentes de Bernardo Carvalho,o trágico radical é o elemento que inicia, impulsiona e conclui as narrativas.Como em to<strong>da</strong> a obra do autor, há enigmas e não há explicações senão opróprio reconhecimento <strong>da</strong> tragici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> condição humana, ambígua,inexplicável, incontrolável. Em Nove noites, de 2002, o narrador deixa seu~ 6.2 | 2007~ 111
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