Arte e literatura como sinais de vi<strong>da</strong><strong>da</strong>s briga<strong>da</strong>s, como a Ramona Parra e a Elmo Catalán, tratavam-se demensagens políticas simples e diretas. Em grandes murais coloridos, pintadossobretudo em regiões periféricas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, fazia-se propagan<strong>da</strong> políticaatravés de mensagens didática que buscavam uma “consciênciarevolucionária”. Artistas que não eram artistas participavam <strong>da</strong> execuçãodos murais anônimos, num movimento coletivo cujo procedimentoconsistia em se reunir algumas horas antes <strong>da</strong> ação para planejar o queseria feito e onde, plano que depois era executado por um grupo de umadezena de “companheiros”.Há algo, sem dúvi<strong>da</strong>, desse caráter maximalista e utópico <strong>da</strong>s briga<strong>da</strong>sno trabalho e no discurso do CADA, combinado com uma estética e umaelaboração teórica mais sofistica<strong>da</strong>s. Tal confluência foi assinala<strong>da</strong> porRichard, que vê na sobrevivência no grupo de uma fusão entre arte e vi<strong>da</strong> umresquício dos ataques vanguardistas às instituições e, entre arte e política,uma retoma<strong>da</strong> ingênua <strong>da</strong> militância revolucionária de esquer<strong>da</strong> 7 . No entanto,quando nos detemos nas ações do grupo, vemos que os ataques àsinstituições se dão num contexto de crítica à atomização dos campospromovi<strong>da</strong> pela ditadura como estratégia de controle e disciplinamento eque o discurso político, por sua vez, emerge sempre acompanhado de umaproposta formal que envolve a noção de arte não como veículo de umadetermina<strong>da</strong> ideologia política, como costuma ser na arte militante, mascomo um tipo de intervenção urbana de dimensões metafóricas muito maisamplas, como no caso dos desdobramentos gerados pelo significante “leite”.Há um caráter emergencial e contingente nas ações do CADA que nãoparecem refletir “uma concepção finalista <strong>da</strong> história toma<strong>da</strong> como percursolinear e marcha evolutiva em direção à plenitude de um resultado” (RICHARD,1994, 44). Elas são, afinal de contas, na contramão de uma leitura vanguardista,“sinais de vi<strong>da</strong>” (THAYER, 2004, 9) 8 .***À margem <strong>da</strong>s ações coletivas do CADA, Eltit realizou, em 1980, apósinfligir cortes e queimaduras no próprio corpo, uma leitura de Lumpéricanum prostíbulo de Santiago. A ação se desdobra com a inserção noromance de uma foto mostrando Eltit com os braços mutilados, junto comuma série de fragmentos sobre o ato <strong>da</strong> mutilação. Em ambos os casos,como veremos, há uma tentativa de criar uma permeabili<strong>da</strong>de entre o escritoe o vivido, através de um material comum que é o corpo. Há um duplomovimento de tirar a escrita do livro e de levar o vivido para o texto. Aleitura, por si só, é uma forma de externalizar o texto, de tirá-lo <strong>da</strong> páginae transformá-lo em voz, gerando uma comunicação física com o leitor,transformado em expectador. Ao mutilar o seu corpo, Eltit força umenvolvimento ain<strong>da</strong> maior, já que sua própria exposição é radicaliza<strong>da</strong>,estando literalmente aberta para o outro. A leitura vai passar necessariamentepor esse corpo, que por sua vez remete a uma condição de sujeição àviolência <strong>da</strong> qual são vítimas todos os que vivem sob ditadura e, demaneira muito mais extrema, os submetidos à tortura. Ao mesmo tempo,o texto lido 9 fala de uma comunicação entre os corpos marginais queprotagonizam o texto, o que nos remete a uma outra ordem possível decorpos, fora <strong>da</strong> violência.No livro, vemos a performance interferir no texto através <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong>imagem fotográfica, assim como de referências ao próprio ato <strong>da</strong> mutilação.Precedidos pela imagem, os diversos fragmentos sobre os cortes equeimaduras estabelecem um jogo temporal em que não se sabe o que éanterior, a escrita ou a mutilação. Será a escrita um ensaio para a ação ou aação um ensaio para a escrita? Seja como for, a imagem não deixa o leitorencarar a mutilação como um ato metafórico que remeteria ao trabalho <strong>da</strong>escrita. A relação entre as marcas na pele e as marcas no papel, entre ocorpo e a página, enfatiza<strong>da</strong> pela repetição de alguns significantes, como“corte”, “sulco”, “marca”, “traçado”, é literal. As marcas de fato se escrevemno corpo. O leitor é necessariamente levado para fora do texto, para uma“cena corporal”, como o próprio texto sugere, em que novamente a autorase expõe para expandir os limites <strong>da</strong> escrita e torná-la uma experimentaçãocom o corpo enquanto lugar de sujeição, mas também de produção <strong>da</strong>subjetivi<strong>da</strong>de. É essa duplici<strong>da</strong>de que torna o corpo um material fun<strong>da</strong>mentalpara Eltit enquanto possibili<strong>da</strong>de de tornar visível a violência e ao mesmotempo resistir a ela.Na introdução de Body art/ performing the subject, Amelia Jones referesea Artaud e seu teatro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de, que elimina a distância entre ator eespectador e extrai o teatro <strong>da</strong> esfera <strong>da</strong> representação, como principalantecedente <strong>da</strong> body art, entendi<strong>da</strong> sobretudo como uma prática dedescentramento do sujeito. Interessantemente, foi a leitura de Artaud, emespecial de O teatro e seu duplo, que possibilitou a construção <strong>da</strong> “cenacorporal” em Lumpérica. Eltit entrou em contato com a obra de Artaud em8~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Experimentações Urbanas1973, ao realizar uma série de seminários com Ronald Kay, que formou comos alunos o Grupo Experimental de Artaud e coordenou uma filmagemexperimental de Les Cenci, em que ca<strong>da</strong> integrante fazia um personagem emfrancês mesmo sem saber, como no caso de Eltit, falar a língua. “Eramexperiências”, conta Eltit, “que procuravam romper os critérios tradicionaisde leitura e as fronteiras disciplinares com o teatro e o cinema” (NEUSTADT,2001, 91). Da mesma forma, Eltit procura fazer de seu primeiro romanceuma experiência que não se circunscreve à escrita, mas se torna, comopropunha Artaud a respeito do teatro, algo ativo, uma espécie de ritual doqual deveriam sair transformados a percepção e o pensamento.Via Artaud, Eltit entra em contato com o teatro, o cinema e a performance,to<strong>da</strong>s linguagens que estarão presentes em Lumpérica, fusiona<strong>da</strong>s para<strong>da</strong>r um sentido político ao trabalho <strong>da</strong> escrita. É no grupo de Kay tambémque conhece Raúl Zurita, que não só participou do CADA, mas realizounessa mesma época seus próprios experimentos com o corpo 10 , inseridosem sua poesia cujo diálogo com o trabalho de Eltit foi intenso. Junto comCarlos Leppe 11 , eles foram responsáveis pelas primeiras manifestações dearte corporal no Chile, surgi<strong>da</strong>s após o golpe. Como assinala Richard, otrabalho dos três se situa numa “zona limítrofe” entre biologia e socie<strong>da</strong>de,entre pulsão e discurso, entre biografia e história, no lugar precisamenteem que essas dicotomias entram em conflito (RICHARD, 1986, 141). Tantoem Leppe como em Eltit e Zurita, encontramos uma ênfase no corporalcomo forma de amálgama entre o subjetivo e o coletivo e de simbolização<strong>da</strong> violência.No caso de Eltit, foi fun<strong>da</strong>mental também o trânsito desse corpo pelaci<strong>da</strong>de. A escolha do prostíbulo como lugar de leitura é o resultado de suasexplorações por lugares marginais de Santiago, um provável prolongamento<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des realiza<strong>da</strong>s junto com o CADA. Como no caso do grupo,trata-se de gerar comuni<strong>da</strong>des fora dos circuitos delimitados pela ditadurae também, como ela assinala, de sair de sua própria história: “Eu queria verse havia uma fantasia em mim ou havia uma capaci<strong>da</strong>de efetivamente deencontro com esses espaços” (MORALES T., 1998, 166). Nessas explorações,foi fun<strong>da</strong>mental a participação de Lotty Rosenfeld, com quem Eltit empreendia“saí<strong>da</strong>s pela ci<strong>da</strong>de sem um programa estruturado, tão só a orientação, afixação em mundos atravessados por energias e sentidos diferenciados deum sistema social e cultural visível” (ELTIT, 2003, 9). Delas surgirá maistarde o livro El Padre Mío, que registra a fala de um vagabundo, em cujodelírio montado com fragmentos <strong>da</strong>s histórias li<strong>da</strong>s nos jornais e ouvi<strong>da</strong>snas ruas, misturado à sua própria história, Eltit detecta “o Chile inteiro edespe<strong>da</strong>çado” 15 . Ela se propõe a ouvi-lo como literatura, transmitindo oefeito comovedor de uma fala “com suas palavras esvazia<strong>da</strong>s de sentido,de qualquer lógica, a não ser a angústia <strong>da</strong> perseguição silábica, o ecoencadeado <strong>da</strong>s rimas, a situação vital do sujeito que fala, a existênciarigorosamente real <strong>da</strong>s margens na ci<strong>da</strong>de e dessa cena marginal” 14-15 .Podemos pensar El Padre Mío como o desdobramento testemunhal dotrabalho iniciado com a escrita de Lumpérica. “Ao começar Lumpérica, eutinha uma imagem conjuntural e contingente: esta ci<strong>da</strong>de hiper-fragmenta<strong>da</strong>e vigia<strong>da</strong>”, conta Eltit, “e uma boa metáfora para ilustrar isso era uma praçailumina<strong>da</strong> para ninguém na noite, por causa do famoso toque de que<strong>da</strong>”(PIÑA: 1991, 235). As dez partes do texto giram em torno <strong>da</strong> praça, que seráocupa<strong>da</strong> pela protagonista e os vagabundos para assim recuperar suacondição de espaço público. Se a praça é um lugar de encontro, onde desdeo surgimento <strong>da</strong>s primeiras ci<strong>da</strong>des na América Hispânica acontecemcomemorações, comícios, festas, feiras, espetáculos etc., ela é também umlugar de protesto e, conseqüentemente, cenário de repressões. Durante asditaduras, as praças, como todos os espaços públicos, se tornaram lugarescontrolados, mas por seu potencial de visibili<strong>da</strong>de foram também lugaresprivilegiados de transgressão, como no caso <strong>da</strong> Plaza de Mayo, cenário <strong>da</strong>persistente ron<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mães e avós dos desaparecidos políticos.A praça de Lumpérica é ilumina<strong>da</strong> por um anúncio que demarca oespaço em que transcorrerá a ação principal: o encontro <strong>da</strong> mulher, L.Ilumina<strong>da</strong>, com os “esfarrapados de Santiago, pálidos e malcheirosos” 9 .Juntos, eles participarão de um ritual que durará a noite inteira. “Porqueeste luminoso que se acende de noite está construindo sua mensagempara eles, que só a essa hora alcançam sua plenitude, quando se deslocamem seus percursos previstos. Como atentados em suas ameaçadoraspresenças” 11 , lemos na abertura do texto. Esse ritual permitirá ver oscorpos de outra maneira, não só porque fará desaparecer hierarquias degênero e classe radicaliza<strong>da</strong>s pela ditadura, mas também porque subverteráo discurso <strong>da</strong> vitimização que permeia os testemunhos ditatoriais ao permitiruma metamorfose de corpo <strong>da</strong> dor em corpo de prazer. “Com sons guturaisenchem o espaço numa alfabetização virgem que altera as normas <strong>da</strong>experiência. E assim de vencidos em vencedores se transformam, ressaltantesem seus tons morenos, adquirindo em suas carnes uma ver<strong>da</strong>deira~ 6.2 | 2007~ 9
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