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O historiador e os morcegos - IFCS

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O <strong>historiador</strong> e <strong>os</strong> morceg<strong>os</strong>.J<strong>os</strong>é Murilo de Carvalho.A ambição de todo <strong>historiador</strong> é produzir conhecimento novo, dizer coisasdiferentes das que foram ditas por n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> predecessores. Há vári<strong>os</strong> caminh<strong>os</strong> de inovaçãoem história. Desde o estabelecimento das bases modernas da disciplina no século XIX, oconhecimento histórico sustenta-se em um tripé: o sujeito conhecedor (o <strong>historiador</strong>), oobjeto do conhecimento (a realidade histórica) e o mediador do conhecimento (odocumento). Para <strong>os</strong> pais da historiografia oitocentista, o documento era transparente e n<strong>os</strong>dava acesso direto à realidade histórica, produzindo a verdade. Bastava encontrá-lo n<strong>os</strong>arquiv<strong>os</strong>, estabelecer sua autenticidade, e se tinha novo conhecimento verdadeiro dopassado. Eram temp<strong>os</strong> da hegemonia do objeto. Inovar, então, se resumia a desencavarnov<strong>os</strong> document<strong>os</strong> n<strong>os</strong> arquiv<strong>os</strong>.Hoje, as coisas complicaram-se. Houve uma revolução copernicana naepistemologia historiográfica. O <strong>historiador</strong> perdeu a inocência. O documento deixou de sertransparente, meio seguro de acesso à realidade, tornou-se opaco, esfinge a ser decifrada. Aprópria idéia de verdade histórica desapareceu. O objeto histórico não é mais dado, tem queser construído pelo sujeito com a ajuda de conceit<strong>os</strong>, teorias, enred<strong>os</strong>, meta-histórias. Ahegemonia do objeto foi substituída pela ditadura do sujeito conhecedor. A inovaçãopassou a depender das ferramentas de análise e interpretação do documento e de teoriasorganizadoras do objeto.A hegemonia do sujeito conhecedor tem produzido resultad<strong>os</strong> p<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong>, tem geradonovas maneiras de organizar o objeto além da simples cronologia, e novas interpretaçõesde velh<strong>os</strong> document<strong>os</strong>. Mas tem provocado também o encarceramento do objeto em gaiolasteóricas. Certas correntes historiográficas pregam abertamente o estupro do objeto,verdadeiro caso de polícia epistemológica. O paradigma do conhecimento históricoaproximou-se com freqüência do das ciências sociais, perdendo sua especificidade.Sem descartar <strong>os</strong> avanç<strong>os</strong> em relação à ingenuidade do século XIX, creio que sedeve conferir à relação sujeito-objeto um caráter mais dialético. O objeto fala pelodocumento, às vezes grita. Cabe ao <strong>historiador</strong> saber ouvi-lo, não se deixando, a exemplode Ulisses, enganar por seus cant<strong>os</strong> de sereia, mas também não lhe impondo sua própriavoz. Ele deve aumentar sua capacidade de captar o que o documento está dizendo. Precisa


esticar as antenas, libertar a imaginação, desdobrar seu leque de referências, aproximand<strong>os</strong>ede outras modalidades de conhecimento, sobretudo as mais intuitivas, como a literatura eas artes. Quanto mais neurôni<strong>os</strong> de informação em funcionamento, maior a probabilidadede se formarem sinapses mentais inovadoras. Permitam-me alguns exempl<strong>os</strong> pessoais. Foilendo João do Rio que desenvolvi a idéia central de Os Bestializad<strong>os</strong>. Foi juntandoGuimarães R<strong>os</strong>a com Pimenta Bueno que pude expandir o conceito de cidadania no séculoXIX. Foi uma frase de Vergueiro que me sugeriu interpretar a história da cidadania noBrasil como uma inversão do esquema de Marshall.Ah, <strong>os</strong> morceg<strong>os</strong>. Eles entraram no título porque, dois meses atrás, quando falavasobre o tema deste artigo em São João del Rei, alguns desses quirópter<strong>os</strong> se puseram aexecutar vô<strong>os</strong> rasantes e preocupantes sobre a platéia e sobre o conferencista. A aversãoque votam<strong>os</strong> a esses animais não me permitiu entender na hora o sentido da operação. Sómais tarde, revivendo a emoção em tranqüilidade, como aconselhava Wordsworth a<strong>os</strong>poetas, conselho extensível a<strong>os</strong> <strong>historiador</strong>es, é que me dei conta de que se tratava degentileza da cidade colonial. Os morceg<strong>os</strong> queriam ilustrar minha palestra. O <strong>historiador</strong>tem que p<strong>os</strong>suir a agilidade, a leveza e a sensibilidade ultra-sônica d<strong>os</strong> morceg<strong>os</strong> paradetectar, configurar e decifrar seu objeto.(Publicado em N<strong>os</strong>sa História, 1, 10 (ag<strong>os</strong>to 2004), 98.)

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