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Encarte Especial - Adusp

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ENCARTE ESPECIAL<strong>Adusp</strong>RevistaAssociação dos Docentes da USPSeção Sindical da Andes-SN - Junho de 1997 - Nº 10QUE FILME É ESSE?QUE HISTÓRIA É ESSA?ENTREVISTASCláudio TorresBruno BarretoARTIGOSRenato TapajósIzaías Almada


ApresentaçãoNo dia 4 de setembro de 1969, o embaixadoramericano no Brasil, Charles Burk Elbrick,foi capturado no Rio de Janeiro por militantesda luta armada que enfrentavam o regime militar.Quatro dias depois, Elbrick foi posto em liberdadeem troca de 15 presos políticos que seguiramviagem para o México. Passados 28 anos daqueleque seria, até então, o primeiro seqüestro nomundo contemporâneo de um diplomata pormotivos políticos, a ação da ALN e MR-8 voltaà cena do debate nacional. Desta vez por contado filme O Que É Isso, Companheiro?, do cineastaBruno Barreto. Lançado em maio último, o filmetem causado intenso debate por mesclar ficção erealidade, por abrandar, no entender de parte daesquerda brasileira, a realidade das atrocidadespraticadas pelos militares. Baseado na obrahomônima de Fernando Gabeira, O Que É Isso,Companheiro?, segundo Bruno Barreto, não éum documentário, mas uma interpretaçãoficcional da realidade. Em função da importânciaque este debate vem ganhando em todo o país,a Revista <strong>Adusp</strong> optou por produzir um encarteespecial e entrevistar Cláudio Torres, comandantepolítico do MR-8 no seqüestro, e Bruno Barreto.Além disso, convidou o cineasta RenatoTapajós e o dramaturgo e escritor IzaíasAlmada para analisar o filme.


entrevista: Cláudio Torres da Silva“O FILME CONFUNDE INTENCIpor Hamilton Octavio de SouzaDirigente do MR-8 em 1969, o gaúchoCláudio Torres da Silva teveparticipação direta no seqüestro do embaixadornorte-americano Charles Elbrick, realizado emconjunto com a ALN no dia 4 de setembro daqueleano, durante a ditadura militar. Dois dias depois daliberação do embaixador –trocado por 15 prisioneirospolíticos–, ele foi preso pelos órgãos de segurança doregime e passou sete anos na cadeia. Atualmente,com 52 anos de idade, Cláudio Torres é sociólogo,mora em São Paulo e trabalha na área de meioambiente. Depois de assistir ao filme “O Que É Isso,Companheiro?”, de Bruno Barreto, baseado no livrode Fernando Gabeira, o ex-dirigente do MR-8 disseter ficado “indignado” com a versão apresentada natela. Nesta entrevista, ele discute os aspectosdocumentais e ficcionais, o tratamento dado aospersonagens tirados da realidade e confronta com oseu testemunho vários momentos relatados no filme.A obra de Bruno Barreto, segundo Cláudio Torres,tem méritos estéticos e técnicos, mas faz uma“distorção deliberada dos fatos e do comportamentodas pessoas envolvidas no episódio”.2


ONALMENTE A REALIDADE”O QUE VOCÊ ACHOU DO FILME?Cláudio - O filme tem inegáveis qualidades.Aliás, se o filme fosse ruim eu não estariapreocupado em estar aqui discutindo. Ofilme tecnicamente é muito bem feito, temuma fotografia muito boa, tem qualidadeinterpretativa de vários atores e conta umahistória que consegue manter interessado oespectador durante todo o tempo. Do pontode vista narrativo, é um bom filme. Mas, doponto de vista de fidelidade aos processosque ocorreram na época, ao significado doseqüestro, ao significado da ditadura militar,ele deixa muito a desejar. Essa questãoprecisa ser separada. Uma outra questãoimportante é que o pecado original do filmeé o fato de se basear no livro de FernandoGabeira, que saiu com esse mesmo título,“O Que É Isso, Companheiro”, publicadoem 1979. Na época reconheci qualidades esaudei o livro como uma abertura paraamenizar a figura do guerrilheiro urbano ecortar um pouco aquele véu que a ditaduratinha conseguido impor a nós todos queestávamos ligados àquele processo. Então,eu só acho o seguinte: se o filme do BrunoBarreto tivesse sido feito em 79, talvezfosse realmente um avanço, mas hoje,depois de um filme como “Lamarca”, comPaulo Betti, eu acho que é um atraso. É umfilme que, exatamente por ser tecnicamentebom, ele é ruim, porque com uma boa técnicae uma boa qualidade interpretativados atores, ele conta uma história de umamaneira ruim.NO COMEÇO DO FILME, O DIRETOR EXPLICA QUE,EMBORA BASEADO NUM FATO REAL, ELE COMPÔSVÁRIOS PERSONAGENS. O GRUPO QUE APARECE NOFILME NÃO CORRESPONDE TOTALMENTE AO GRUPOQUE PARTICIPOU DO SEQÜESTRO. OU SEJA, ELEUSOU ELEMENTOS DE FICÇÃO NA MONTAGEM DOFILME. ISTO NÃO RETIRA O CARÁTER DOCUMENTALE A OBRIGAÇÃO DE FIDELIDADE AO EPISÓDIO?Cláudio - Acho que aí houve uma manobrade marketing da produção do filme. Se ofilme fosse uma história sobre um seqüestroocorrido no final dos anos 60, e feitopela esquerda armada, eu acho que eleteria uma liberdade bem maior de interpretaros fatos, não total, evidentemente, masteria um grau de liberdade superior. Aconteceque o filme usa, inclusive, nomes própriosde pessoas que participaram daquelaação. Então, é como se você estivessefazendo um filme sobre a RevoluçãoFrancesa, em que você reproduz cenas daRevolução Francesa. Tem um personagem3


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997chamado Danton, que é um dos líderes,outro personagem chamado Robespierre,que é outro dos líderes, e o roteiro é baseadonuma novela, digamos do Desmoulins.Então, por mais que você diga que aquilo éficção, não pode ser visto como ficção, porquena verdade você utilizou caracteresformados pela própria realidade; ou seja,você confundiu intencionalmente a realidadevivida com os personagens. Os personagens,portanto, não são criados, eles sãoreproduzidos por papel-carbono de máqualidade de personagens reais. Portanto,eu acho que o filme tem caráter documental,sim, e quem optou por isso, pela reprodução,poderia ter optado por uma outraversão, uma outra caracterização maisanódina, mais distante daqueles fatos.QUAIS OS ASPECTOS DO FILME QUE APRESENTAMMAIORES CONTRADIÇÕES OU QUE MAIS DISTOR-CEM O QUE DE FATO OCORREU?Cláudio - Eu acho que o seqüestro nãoestá solto no espaço e no tempo, o seqüestropertence a um conjunto de ações políticas,militares, sociais, ideológicas, culturais,que contemplam toda uma décadaextremamente rica, diga-se de passagemnão só de Brasil. A pobreza maior do filmeé exatamente não permitir ao espectadorintegrar esses diferentes momentos dosanos 60. Ou seja, o seqüestro do embaixadoré uma operação realizada em grandeparte por estudantes que, num determinadomomento muito anterior ao do filme, játinham sentido a obstaculização e arepressão cada vez mais violenta, crescentementeviolenta do regime, inclusivemuito antes do Ato 5. Dizer que o regimese tornou violento e repressor com o Ato 5é uma fantasia. Na verdade, em 64 os sindicatosforam fechados, líderes ruraisforam assassinados, Gregório Bezerra, porexemplo, que era um quadro do PartidoComunista Brasileiro, foi preso e não sópreso, mas arrastado com uma cordaamarrada no pescoço; os partidos foramextintos, o Congresso, fechado, enfim, aintervenção sobre as instituições democráticasno Brasil foi violenta. O termo é esse,foi violenta. Então a violência não começouconosco, ela começou exatamente comaqueles que detinham o poder. Ora, nomomento do seqüestro, quem governava oBrasil era exatamente uma junta militarque tinha dado uma espécie de golpe brancono ditador de plantão, o Costa e Silva, efez-se exatamente porque havia interesse,já naquela época, de radicalizar aindamais o processo. Havia uma aliança perversaentre a violência contra a subversãoe a corrupção; e a partir dali, então, osgovernos militares vão se caracterizarbasicamente por isso: são governos extremamentecorruptos e extremamente violentos.O filme não mostra nada disso.O FILME NÃO SITUA CORRETAMENTE A OPERAÇÃODO SEQÜESTRO?Cláudio - O filme, de alguma forma, quandotenta se reportar à conjuntura externa,ao contexto, digamos assim, ele usa defotografias e afirmações em letreiros empreto e branco. Ou seja, é evidente que sevocê tem um história contada com a vivacidadenarrativa que o filme realmente tem, épreciso ser reconhecido, e põe antes e nofinal letreiros em preto e branco. É óbvioque o diretor está dando uma importânciamuito maior à história da ação em si doque ao seu contexto. Pois bem, o contextonão precisa ser visto apenas exteriormente4


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997à ação, mas a própria narrativa do seqüestropermite algumas ilações a respeito docontexto em que o filme pretensamente sebaseia. E essas ilações vão ser observadasno tratamento que é dado a algumas questõesbásicas da época. Uma delas, porexemplo, é o tratamento dado à repressão,ao aparelho repressor. Eu pessoalmenteacho que o tratamento que o filme dá temdois aspectos a considerar: primeiro, elenão faz distinções entre o aparelho repressorusado pela ditadura militar e o conjuntodos militares brasileiros, muitos dosquais não concordavam com aquilo, apesarde se sentirem incapazes de mudar as coisas.A outra questão, que é mais graveainda, é o fato de que os torturadoresforam apresentados de uma maneira queexalta os seus eventuais problemas psíquicosou problemas existenciais. É evidente,eu não vou aqui dizer que um torturadornão tenha problemas existenciais, deve atéter, e muito, mas eles conseguiam colocaresses problemas existenciais para fora,controlá-los de alguma forma, ou passarpor cima deles, e continuavam diuturnamentefazendo ações extremamente cruéis,extremamente violentas contra presos,matando e seviciando meninas e crianças,e uma série de coisas atrozes.NA ÉPOCA DO SEQÜESTRO JÁ TINHA MUITAGENTE PRESA ?Cláudio - Não, não tinha muita gentepresa. Na verdade à medida em que o processode luta armada aumentou de intensidade,a violência –a única coisa que a ditaduramilitar democratizou foi a violência–passou então a ser exercida contra todo opovo; faziam-se batidas na rua, prendiamgente que nem sabia do que se tratava,faziam coisas terríveis, exatamente paratentar com isso amedrontar a populaçãopara que essa população não apoiasse, nãodesse guarida, de alguma forma ficasseintimidada e procurasse colaborar com apolícia. Então, mudou a qualidade darepressão, mas a repressão já existia antes.Inclusive a repressão institucional é anteriorao Ato 5, ela vem desde abril de 64.E COM RELAÇÃO AOS PERSONAGENS, COMO SÃODESCRITOS NO FILME. O JONAS, POR EXEMPLO, ÉTRATADO COMO UM CARA DURO, AMEAÇADOR,INCLUSIVE CONTRA OS PRÓPRIOS COMPANHEIROS.NA REALIDADE FOI ISSO QUE ACONTECEU?Cláudio - Não, isso é deformado. A caracterizaçãodo Jonas está bastante deformada,exatamente porque a direção do filme eo roteiro tentam fazer um contrapontoentre o Jonas e o Gabeira, como se os doisestivessem representando ali posiçõesantagônicas. Isto não é verdade, factualmente.Apesar de o livro do Gabeira, “OQue É Isso, Companheiro?”, permitir umainterpretação que, se exagerada, leva exatamentea esse tipo de visão; exatamenteporque ele não se preocupa em hierarquizaras questões, de certa forma, confundeo personagem da história com o personagemdo livro e do filme. Em relação aoJonas, ele evidentemente era um cara duro,você não pode ser um bom comandante deação armada se for uma pessoa extremamentegentil, cara que para cada decisãoreúne o grupo para saber qual o melhorcaminho a tomar, isso não faz parte doethos da ação armada, isso não faz partedas exigências organizacionais de umgrupo que se propõe a hostilizar e a combatera ditadura militar através de açõesarmadas. A ação armada precisa ter carac-5


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997terísticas militares, e as característicasmilitares por definição não podem coexistircom excesso de democracia. Duro, portanto,ele era, e por isso era um bomcomandante, e por isso nós o escolhemospara ser o comandante da operação.Agora, de forma alguma, em nenhum momentona realidade da ação ele diz coisasque o filme lhe atribui, como por exemploaquela entrevista com o embaixador, quede fato aconteceu, mas que não tem nenhumarelação com aquilo. E muito menosaquela ação desonesta que ele faz paratentar envolver o Gabeira, enfim, tentartestar o Gabeira numa situação em que oGabeira teria de assassinar o embaixadorcaso a ação não tivesse êxito.ISSO NÃO ACONTECEU?Cláudio - Não aconteceu de forma alguma,e se alguém tivesse que fazer isso certamentenão seria o Gabeira, porque oGabeira sequer pertencia ao grupo de fogoda organização.O GABEIRA FICOU NA CASA O TEMPO TODO?Cláudio - Não o período todo, mas umaboa parte do tempo.VOCÊ DISSE QUE O JONAS NÃO TEVE AQUELEDIÁLOGO COM O EMBAIXADOR. QUEM PARTICI-POU DA CONVERSA COM O EMBAIXADOR? FOIUMA INTIMIDAÇÃO?Cláudio - Não, não foi de forma algumauma intimidação. Primeiro há que se esclarecero seguinte: essa ação do seqüestrotinha um comandante militar que era oJonas, cujo nome real era Virgílio Gomes daSilva, e que foi assassinado pela repressãodurante a tortura algumas semanas depoisdo seqüestro. Politicamente tinha dois responsáveis:um era o Toledo, o “Velho”, querepresentava a ALN, e o outro, naquelemomento da operação, era eu, que representavaa Dissidência da Guanabara ou MR-8.A DISSIDÊNCIA ESTAVA SE ASSUMINDO COMOMR-8?Cláudio - Não, o MR-8, na verdade, originalmente,é uma outra organização queera dissidência do Estado do Rio, uma dissidênciauniversitária, estudantil, do PartidoComunista Brasileiro do Estado doRio, de Niterói. E esse grupo tentou a guerrilharural lá no Paraná e foi dizimado, foipreso e alguns foram mortos. A grandeimprensa começou a publicar que a guerrilhano Brasil tinha acabado e nós, parafazer uma espécie de contra-propaganda,ou seja utilizando essa afirmação paraexatamente mostrar que não era verdadeiro,que a guerrilha continuava, nós passamosa assinar as nossas operações com onome de MR-8. Foi assim que terminamosadotando e terminamos sendo conhecidoscomo MR-8. Diga-se de passagem, também,esse MR-8 que até alguns anos atrásainda existia, tem muito pouco a ver ounada a ver com o antigo MR-8. Esse atual,se é que ainda existe, eu não sei, usa essenome porque dois ou três dos quadrosantigos fundaram ou praticamente refundaramuma outra organização que temoutros objetivos, com outra visão demundo, que não tem absolutamente nadaa ver com o antigo. Quanto à operação doseqüestro, algumas questões precisam serresgatadas, e volto a dizer, eu só me proponhoa fazer isso exatamente porque ofilme confunde intencionalmente, misturae deforma, e não o faz de forma inocente,como nós vamos ver logo a seguir.6


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997COMO FOI A CONVERSA COM O EMBAIXADOR?Cláudio - Primeiro, o Jonas era o comandantemilitar. As perguntas ao embaixadornão foram feitas por ele, e sim pelo Toledo epor mim. A primeira coisa que eu disse naabertura dessa entrevista com o embaixadorfoi exatamente o seguinte: “o senhornão precisa se preocupar com intimidaçõesporque nós não costumamos agir como apolícia brasileira, que tortura e mata osseus prisioneiros para arrancar informações”.Isso foi a primeira coisa que foi dita,e isso eu inclusive informei à produção dofilme anos atrás e não sei por que não foiutilizado. Aliás, a produção tem todas asinformações disponíveis, ela tem umaentrevista de três horas e meia que eu deiao Daniel Filho e à Marta Alencar, no Rio deJaneiro, que poderia ter sido utilizada nofilme. O roteirista preferiu pegar o livro doGabeira, que era evidentemente o centromaior de inspiração do roteiro, e inclusive,na minha opinião, pegou algumas característicasdo livro do Gabeira que já eram discutíveise exacerbou-as. Ou seja, o roteiristanão teve nenhuma preocupação de corrigirdados factuais, porque ele tinha as informaçõesnecessárias para isso, e não o fez. Emrelação, portanto, a essa entrevista, ficabem claro o seguinte: nós não usamos denenhuma violência com o embaixador, quenós avisamos, no início, a primeira observação,como eu já disse, foi no sentido dedeixá-lo à vontade. Se ele quisesse responder,responderia, se não quisesse, não responderia,ou seja, se realmente fosse parafazer um contraponto do nosso comportamentocom o da repressão, bastava colocaressa cena, que por si só ela seria suficiente.Acontece que o filme está interessado, naminha opinião, em fazer uma espécie deamenização dos extremos, sobretudo doextremo representado pela violência policialda ditadura. De certa forma, ao fazer issoele vai contra a realidade, mas não se podeestuprar a realidade, ainda que se tenhatodos os mecanismos de publicidade, demídia, para isso. Existem testemunhas,7


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997existem pessoas que estavam lá, existem,enfim, condições de desfazer.O FILME COLOCA DUAS MULHERES NA CASA. TI-NHA DUAS MULHERES OU UMA SÓ NA OPERAÇÃO?Cláudio - Tinha uma mulher só, que erauma moça simpatizante da nossa organização,não me lembro se era quadro ou não, ese não me engano era namorada do Gabeira.É preciso esclarecer o papel do Gabeirana operação. O Gabeira era da nossa organização,era quadro da Dissidência, do MR-8, mas não pertencia ao grupo de fogo, elejamais fez uma operação armada, pelomenos enquanto esteve na organização,pelo menos até o seqüestro do americano.Portanto, ele era um quadro da organização,que compartilhava das posições daorganização, isso é importante que se diga,porque às vezes certas coisas aparecemcomo se já naquela época o Gabeira tivesseuma visão crítica daquilo que ele estavafazendo. Isso não é verdade, nem ele nemninguém tinha. Nós fizemos aquilo plenamenteconvencidos de que era uma táticacorreta. Hoje eu tenho uma visão diferente,o próprio Gabeira tem uma visão diferente,mas naquela época não tínhamos. É bomque isso fique claro, o problema da contemporaneidadedos eventos, isso é muitoimportante. O Gabeira era um quadro daorganização perfeitamente identificado coma tática e a estratégia da organização, apenasnão atuava no grupo de fogo. Ele atuavana área de camadas da classe média, naárea de jornalistas, artistas, etc.E QUAL FOI O PAPEL DELE NO SEQÜESTRO?Cláudio - O Gabeira foi quem alugou aquelacasa, que originalmente era para servir deaparelho da imprensa da organização.Inclusive houve um erro na locação da casa,porque o proprietário, no ato de negociação,olhou para o Gabeira e perguntou: “Escuta,vocês não são terroristas não, né?” E mesmoassim a casa foi alugada. Ou seja, umacasa com este tipo de problema não poderiaser alugada para ser aparelho de imprensada organização. Aliás, não poderia ser alugadapara nada, o negócio deveria ter sidodesfeito no ato. Pois bem, isso foi evidentementeuma falha, porque essa informaçãofoi dada, o Gabeira passou essa informaçãopara a direção da organização, mas a avaliaçãoque a direção fez, eu participei dessadiscussão, foi no sentido de que isso nãoseria um problema, e a casa foi utilizada emfunção de suas qualidades locacionais paraa operação. Então, dentro da casa, o papeldo Gabeira era simplesmente do dono dacasa, aquele que tinha alugado a casa, efora da casa, ele cumpriu algumas funções,junto comigo, de dar telefonemas e colocaros recados para a imprensa. Aquele telefonemaque ele supostamente dá para a redaçãodo Jornal do Brasil é um detalhe, mas éum detalhe absurdo, pois o Gabeira pertenciaà redação do Jornal do Brasil; então,quem na verdade deu o telefonema fui eu,justamente por essa razão, para que a vozdo Gabeira não fosse identificada.E O COMUNICADO FOI MESMO COLOCADO NUMAIGREJA?Cláudio - Foi colocado. Eu me lembro dedois locais. Um é a igreja, se não me enganodo Largo do Machado, na caixa deesmolas, e outra comunicação foi colocadaem frente à sede da Manchete, ali na praiado Rocio, no Rio de Janeiro. Bom, então afunção do Gabeira era essa, não era outra.O filme mudou completamente. O pecado8


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997original do filme, como eu estava dizendo,se expressa exatamente nisso: se o roteirose inspirasse numa obra de ficção, ounuma obra documental, porém o personagemnão fosse ao mesmo tempo o escritore aquele que participou da ação, talvez ofilme pudesse ser mais distante e nãocaracterizar personalidades reais de umaforma tão imediata como fez. Ou seja, aoJonas foi atribuído fazer o contrapontocom o Gabeira, que aparece como umaespécie de anti-herói... Por quê anti-herói?Porque era um cara que não sabia atirar,mas estava numa ação armada, era contraaquelas ações, aquelas coisas, mas pertenciaa uma organização que defendia aestratégia de luta armada. Então ele aparececomo alguém que sempre está, dealguma forma, tensionando o processo doqual ele está participando. E isso não éverdade. Eu acho que as pessoas podematé fazer gestos no sentido de parecerdiferentes, mas a história não registradessa forma o seu gesto.A POLÍCIA TINHA LOCALIZADO A CASA, COMOAPARECE NO FILME?Cláudio - Tinha, a polícia tinha identificado,estava cercando e apenas não penetrouna casa porque recebeu ordens da JuntaMilitar, que governava o país, de não pôrem risco a vida do embaixador. Por contadisso, inclusive, eu fui preso dois diasdepois de terminar a ação do seqüestro. Eufui o primeiro, digamos, a ser preso, e eutive uma discussão surrealista no meio dointerrogatório, portanto numa situaçãoextremamente difícil, em que o agente doCenimar tentava me provar que eles poderiampenetrar na casa usando de atiradoresde elite, que eles sabiam o quarto ondeestava o embaixador, que eles tinhamidentificado pela planta, que eles penetrariamna casa, resgatariam o embaixador ematariam a todos nós. E eu defendendo atese que eles entrariam na casa, matariama todos nós, mas o embaixador morreriaantes disso. Esta foi uma das discussõesque eu tive que manter em situação extremamenteprecária.VOCÊ FOI PRESO DOIS DIAS DEPOIS?Cláudio - Sim, exato.E JÁ IDENTIFICADO COMO PARTICIPANTE DA OPE-RAÇÃO?Cláudio - Sim, claro, já identificado. Aoperação teve algumas falhas organizativas,e a principal foi justamente esta, acasa utilizada não era adequada porqueera uma casa já sob suspeita. Na minhaopinião, e isso eu digo sem nenhum outrointuito que não seja relatar o caso, eu achoque o próprio proprietário da casa já tinhainformado a polícia. É a explicação maisplausível, mas não foi comprovada. Dequalquer forma, a casa, já no dia seguinteà operação, ou talvez até na noite domesmo dia, ela já estava identificada e foicercada sutilmente, passou a ser vigiadanão ostensivamente pelos órgãos de segurança.Eu pessoalmente fui seguido, inclusive,uma hora que eu fui deixar o Gabeirapróximo à casa teve um carro da repressãoque me seguiu, eu tive que sair rapidamentedas ruas de Santa Teresa para me libertar,me livrar do carro dos órgãos de segurançaque estava me seguindo. O motoristados órgãos de segurança, inclusive, meencontrou depois também no interrogatórioe se identificou como o motorista docarro que me seguia.9


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997COMO FOI A SUA PRISÃO?Cláudio - Eu fui preso dois dias depois doseqüestro, e fui preso em primeiro lugarporque cometi um erro. Nós estávamos comsuspeita de que os nossos aparelhos e nossasresidências não estavam seguras, emfunção exatamente do fato de a repressãoter localizado tão rapidamente a casa. Nósficamos preocupados porque não sabíamoscomo eles tinham descoberto. Então, porconta disso, eu não fui dormir onde normalmenteeu dormia e morava. Eu procureicasa de amigos. Mas numa situação daquelas,de extrema tensão, os amigos que euprocurei me pediram para não ficar lá,sabiam que de alguma forma eu estavaligado àquele problema, ainda que eles nãosoubessem detalhes, e eu fui dormir na casade uns tios meus, cujo endereço supostamentea repressão não conhecia. Aconteceque houve um detalhe de que eu não meapercebi imediatamente, que foi o seguinte:quando participei da operação, fui eu quemdirigiu o Cadillac da embaixada, quem rendeue substituiu o motorista da embaixada.E para dirigir o carro, exatamente para meparecer como um motorista de embaixada,eu fui com um terno azul marinho e gravata,para que não chamasse atenção. Edepois, quando eu saí da casa, eu tinhatarefas a fazer fora da casa, eu não fiqueitodo o tempo lá, eu deixei o paletó e a gravatadentro da casa, e fui em mangas decamisa fazer o que eu tinha que fazer narua. Por isso, eu pedi duas vezes ao próprioGabeira que tirasse de lá esse paletó, porqueeu sabia que ele poderia mais cedo oumais tarde ser um instrumento para levar àminha identificação. Acontece que ele nãofez isso, as duas vezes que eu pedi ele nãoretirou o paletó de lá e eu fui preso exatamentepor conta desse paletó. O paletótinha sido feito em alfaiate, e a polícia foiao alfaiate e me identificou, soube do meuendereço e apareceu lá. Aliás, foi no endereçodos meus pais, e depois na casa de meustios, que era mais ou menos próxima, eficaram me esperando lá, à noite.ENTÃO VOCÊ FOI PRESO POR CAUSA DO PALETÓ?Cláudio - Exatamente, o paletó esquecidopelo Gabeira, porque eu não esqueci, eu deixeilá intencionalmente. Eu pedi ao Gabeiraque o retirasse, e ele se esqueceu de fazer. Éesta a história da minha prisão. Não estouquerendo cobrar nada do Gabeira, mas euacho apenas lamentável que no livro eletenha escrito que eu fui preso porque eunão teria tirado o paletó da casa.O GABEIRA FOI O AUTOR DO MANIFESTO, COMOAPARECE NO FILME?Cláudio - Quanto ao manifesto, que foilido nas rádios e na televisão, era umabase, vamos dizer, para as nossas exigências,para a troca dos companheiros presosque foram enviados ao México. Esse manifestofoi escrito por um companheiro,Franklin Martins, que atualmente é jornalistaem Brasília. O Franklin escreveu omanifesto e apresentou-o à direção daorganização, à qual eu pertencia na época.A direção aprovou o manifesto. Não sei seo Gabeira leu o manifesto antes, ele tambémescrevia muito bem, poderia ter dado,talvez, algumas sugestões, mas seguramentea autoria é do Franklin. Eu tambémnão sei por que razão o filme distorce issoe coloca o Gabeira como o autor do manifesto.Não sei também por que razão oGabeira não fez algo para impedir esta distorção,na medida em que ele tinha acesso10


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997ao roteiro e ao filme, antes mesmo que ofilme estivesse concluído. O fato é que istotambém é uma distorção.A CENA DA LIBERTAÇÃO DO EMBAIXADOR COR-RESPONDE AO QUE ACONTECEU?Cláudio - É outra distorção que o filme faz,e não faz inocentemente. O embaixador foilibertado na medida em que o seqüestrotinha sido vitorioso, nosso objetivo tinhasido cumprido, os companheiros nossos jáestavam chegando ao México, então oembaixador foi libertado depois de ter sidobem tratado, tratado com respeito, e em circunstânciasevidentemente adversas. Oembaixador inclusive demonstrou um certoreconhecimento à forma como tinha sidotratado. Isso é perfeitamente verificávelpelas declarações que deu após o seqüestro.Pois bem, o embaixador foi libertado, foiconduzido dentro de um Volkswagen dirigidopor mim, com o Jonas atrás e ele ao meulado. Nós descemos a Rua Barão dePetrópolis, onde ficava o aparelho, atrás denós vinha o carro de segurança nossa, masnesse momento uma caminhonete do Cenimar,uma Rural Willys, entrou e começou aseguir o cortejo. Só que não se deu conta deque havia um segundo carro de segurançanosso atrás dela. Então, quando chegamospróximo ao sinal da Tijuca, o Jonas me avisou:“nós estamos sendo seguidos, procurese desvencilhar”. Consegui passar no sinaljá vermelho e com isso impedi que os carrosatrás me seguissem, inclusive o própriocarro de segurança nosso não conseguiupassar. Então ficaram parados no sinal, oprimeiro carro de segurança, a Rural Willysda repressão e o segundo carro de segurançanosso. Foi nesse momento que um doscompanheiros de um desses carros pegou ametralhadora, engatilhou e mandou oscaras irem embora. Ameaçou a repressão eela, que estava totalmente inferiorizada,resolveu ir embora. Isso no filme aparececomo se fosse uma ação, um gesto docomandante militar. Nós realmente nãometralhamos a repressão, sabendo que eraum carro da repressão, porque não tínhamosnenhum objetivo com isso. Ameaçamos,apenas, porque o nosso objetivo eraespantá-los, e conseguimos espantá-los. Ofilme poderia inclusive ter omitido isto. Émais um exemplo de distorção,porque se você contauma história e omitealgumfato,vocêpodeaté nãoser cobradopor isso,agora sevocê contaesse fato invertido,euacho que acoisa aí mostrauma intenção.E o filmeteve uma intençãoreal de adocicaro papel da repressãodos órgãosde segurança daépoca. E isso aí euacho que é visível,eu acho que isso éuma coisa querealmente depõecontra o filme.11


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997POR QUE O SEQÜESTRO DO EMBAIXADOR NORTE-AMERICANO É CONSIDERADO UM MARCO IMPOR-TANTE NA LUTA CONTRA A DITADURA?Cláudio - O seqüestro é importante doponto de vista operacional e tático porqueele foi a primeira ação desse gênero vitoriosa,que colocou durante três dias oembaixador –e não era um embaixadorqualquer, era o embaixador dos EstadosUnidos– detido. Com a operação se consegueromper a censura da imprensa, queimpedia qualquer notícia sobre a luta dasforças populares, revolucionárias e democráticas.O nosso manifesto de algumamaneira rompe com isso de uma formavergonhosa para o regime. Ou seja, o contextoimediato em que o seqüestro ocorre éplenamente vitorioso. Eu vi muitas manifestações,desde motoristas de taxi, o própriofilme demonstra isso, como de váriasoutras pessoas. Eu tive muito pouco tempopara aquilatar, avaliar isso, mas houveapoio da população. Na verdade eram ospoderosos que tinham sido vencidos. OBrasil estava governado pela Junta Militar,violentando totalmente as instituições e avontade do povo brasileiro, e aqueleseqüestro fez com que a junta baixasse acabeça e fosse obrigada a soltar 15 companheiros,presos políticos, libertá-los eenviá-los ao México. Então, foi uma desmoralizaçãopara a Junta Militar. Do pontode vista até de ineditismo, ele foi umaação muito importante. Outra importânciadele, discutível, e eu vou discutir logo aseguir, é que a partir do seqüestro qualqueresperança que se pudesse ter de umaluta pacífica pela redemocratização em termosimediatos estava eliminada, ou seja, apartir dali o regime militar se muniu detodas as defesas possíveis e passou a fazerum governo quase fascista, utilizandoinclusive uma propaganda baseada nasvitórias no futebol, e coisas do tipo, paraconseguir essa legitimidade que não tinhaatravés do voto e através da vontade explícitado povo brasileiro. Agora, o seqüestro,portanto, foi um ponto de não-retorno daluta pela restauração da democracia noBrasil. Pessoalmente, hoje, mas nãonaquela época, acho que o seqüestro foiuma operação vitoriosa dentro de umatática equivocada.QUAL FOI A SUA REAÇÃO AO VER O FILME? OQUE VOCÊ SENTIU?Cláudio - Olha, o filme me fez... em primeirolugar foi uma catarse pessoal. Ofilme, para mim, produziu diferentes reações.A primeira reação foi de indignação,exatamente pela deformação dos fatos. Eaté, a meu favor, quero dizer que não foinem pelo fato de que eu não tivesse aparecidocomo personagem do filme, pois naverdade a minha pessoa foi apagada e asminhas funções na operação foram redistribuídaspor outros personagens.12


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997ERAM DOZE PESSOAS QUE ESTAVAM NA OPERAÇÃO?Cláudio - Eu não sei exatamente o número,mas era em torno de dez, onze pessoas.NO FILME APARECEM SETE OU OITO.Cláudio - É, mas essa questão não é nem ofato, eu tive uma participação extremamenteimportante na operação e isso foi apagado.Mas a questão central não foi nem essa,a questão central foi a caracterização, essacaracterização do Jonas, esse contrapontoforçado que foi feito com a figura doGabeira, que era uma figura extremamenteapagada para um tipo de ação como aquele,que ele deveria sequer estar participando,só o fez por conta do que eu já disse, porconta de ser quem alugou a casa. Então ofilme me causou uma certa indignação porqueme deu inclusive a sensação de umaprofunda... É como se fosse uma segundaderrota nossa. A primeira foi aquela, dosanos 60, 70, que a ditadura conseguiu desbarataras nossas organizações. Muitoscompanheiros morreram, outros foram exilados,enfim, e a segunda derrota é o fatode nós não termos conseguido contar a história,ou seja, nós não conseguimos produzir...a esquerda armada no Brasil não conseguiuproduzir, nem antes, nem durante enem depois, uma interpretação pelo menosrazoável desse processo histórico do qualfui protagonista. Então o filme tem algumacoisa de bom, nesse sentido de que ele provoca,e eu só lamento que o debate que eleprovoca se dê em questões periféricas, porquena verdade, eu acho que do ponto devista da luta armada é secundário saber seeu participei da operação, se eu fiz isso oudeixei de fazer aquilo, ou se o Jonas fezaquilo ou não fez, são questões episódicas.O fundamental seria poder discutir o contextoem que aquilo aconteceu, o caráter,inclusive os erros da esquerda armada, ocaráter real da ditadura militar. E isso ofilme não permite que seja discutido, comoeu já tentei mostrar brevemente aqui.EU TINHA PERGUNTADO SOBRE A SUA REAÇÃO...Cláudio - O filme foi um bom motivo paraeu poder fazer esse trabalho interno, comoeu disse, essa catarse dos fantasmas queainda estavam guardados no sótão. Isso foimuito bom para mim pessoalmente, porquea minha primeira resposta foi de indignação,foi emocional, eu fui destilando isso e hojeeu consigo, evidentemente que não existeneutralidade total num caso que foi tãoimportante, de alguma forma conversarsobre isso de uma maneira bastante tranqüila.Acho inclusive fundamental o seguinte:esses episódios, esses processos todos dahistória do Brasil, eles precisam ser resgatadosnão simplesmente por contar uma história,mas porque eles são importantes para agente entender e para a gente reestruturaras nossas vidas e os rumos do nosso país nomomento atual. Nós precisamos ter bastanteentendimento disso, inclusive para o pessoalmais jovem saber que não era só meia dúziade pessoas que estava fazendo aquilo, mashavia centenas e milhares de pessoas noBrasil inteiro envolvidas direta ou indiretamentecom a luta democrática, com a lutaarmada, enfim, com formas de tentar derrubare neutralizar a ditadura militar. Eu queria,de alguma forma, dizer que eu tenhoorgulho de tudo o que eu fiz, não renego omeu passado, mas hoje não repetiria damesma forma. Hoje eu procuraria realmentevisualizar e respeitar certos ritmos da sociedade,que sem os quais nada acontece, nadade profundo acontece.13


entrevista: Bruno Barreto“NÃO FIZ UM FILME DE MOCIOQue É Isso, Companheiro? é filmesobre pessoas e suas motivações emum determinado momento da história do país, dizo cineasta Bruno Barreto nesta entrevistaencaminhada por sua assessoria à Revista <strong>Adusp</strong>.Ele afirma que não fez um filme político ou sobreidéias, mas sobre medos, vontades e as tensõesenvolvidas em um episódio específico. “O filmenão é um documentário, mas uma interpretaçãoficcional da realidade”. Ainda segundo ele, O QueÉ Isso, Companheiro? não é maniqueísta, masuma reflexão dramatúrgica sobre fatos reais.


NHO E BANDIDO”O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? ABORDA UM FATOPOLÍTICO IMPORTANTE DA VIDA POLÍTICA BRASILEI-RA. ATÉ QUE PONTO O FILME É FIEL AOS FATOS?B. Barreto - O Que É Isso, Companheiro? éum filme de ficção como todos que fiz,alguns mais realistas do que outros.Embora seja inspirado na realidade, ofilme não é um documentário, mas umainterpretação ficcional da realidade. O própriolivro do Fernando Gabeira estavalonge de ser um documentário. Por ter sidoescrito dez anos depois dos fatos, na Suécia,já era uma memória distante e tinhaum caráter reflexivo. O filme é uma reflexãoem cima da reflexão do Gabeira, masuma reflexão através da ficção. O livro doGabeira era uma reflexão intelectual sobreos fatos. O meu filme é uma reflexão dramatúrgicasobre o que aconteceu, a partirda reflexão do Gabeira, e é importantedizer que ele me deu carta branca e nemleu o roteiro. Trabalhei com liberdadetotal. O filme é baseado em fatos reais,mas a realidade não é dramaturgia. O cinemanarrativo utiliza elementos dramatúrgicoscomo o desenvolvimento, conflito einteração entre os personagens. E foramesses os instrumentos que utilizei paracontar uma história.COMO DIRETOR DE FILMES DE FICÇÃO, VOCÊ SEM-PRE EXERCEU UMA LIBERDADE MUITO GRANDE AOCONTAR UMA HISTÓRIA. DESTA VEZ, VOCÊ MEXECOM A HISTÓRIA RECENTE DO PAÍS E COM MUI-TOS PERSONAGENS QUE AINDA ESTÃO VIVOS.VOCÊ FEZ ESSE FILME COM MENOS LIBERDADE,COM MEDO DE FERIR SUSCETIBILIDADES, PREOCU-PADO COM ERROS E ACERTOS HISTÓRICOS?B. Barreto - Tinha consciência de que estavacaminhando sobre uma linha muitotênue entre a liberdade como ficcionista e aresponsabilidade de abordar um fato tãomarcante na história do Brasil. Porém, demaneira nenhuma me aproximei desta realidadede forma irresponsável. Acho que ofilme cria muita polêmica e levanta muitasperguntas, o que acho extremamente saudávelnesta fase em que o Brasil está desenterrandoos ossos do período da ditadura. OBrasil tem uma coisa muito parecida com osEstados Unidos, no sentido de cultivarpouco a memória do país, de "seguir emfrente", e essa não é sempre a melhormaneira de se lidar com as coisas. É importanteolhar para trás e não repetir os erros.Em uma entrevista à revista Veja, o exguerrilheiroCarlos Eugênio Paz falava deuma "guerra suja de ambos os lados", o quecorrobora muita coisa do meu filme, sobre-


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997tudo em relação ao personagem mais polêmicoque é do torturador. A certo momento,ele diz: “se eles chegarem ao poder, não vaiser tortura, vai ser fuzilamento sumário".VOCÊ SE IMPÔS ALGUM TIPO DE PATRULHAMENTOPARA LIDAR COM ESTA HISTÓRIA QUE PODE TERTANTOS DONOS, NO SENTIDO DE QUE VÁRIOSPARTICIPANTES ESTÃO VIVOS E PODEM RECLAMARQUE A HISTÓRIA NÃO FOI BEM ASSIM? QUE CUI-DADOS VOCÊ QUIS TOMAR?B. Barreto - O que mais me preocupou foia clareza da história. O Que É Isso, Companheiro?é um filme sobre personagens enão sobre humanóides. Cada personagemtem a sua própria identidade, a sua diferençado outro. Além da preocupação denão ser irresponsável, não me patrulheinem um pouco. Eu nem moro mais aqui,mas aqui é o meu país, é a minha cultura,vou voltar a filmar aqui. Não saberia fazerum filme me patrulhando. Se você sepatrulha, perde a liberdade. E tomei liberdades,por exemplo, como a seqüência dotiro ao alvo na praia. A maior parte dessestreinamentos era realizada em sítios fechados,mas eu queria colocar no filme umlugar bonito, paradisíaco. Foi uma licençapoética para quebrar a claustrofobia e nãoacho que seja tão grave. Quanto a ser donoda História, eu não sou, de maneiranenhuma. Como já disse, o filme é umareflexão dramática sobre um momento,através de alguns personagens. E a maiorparte dos personagens do filme é umacombinação de vários personagens da históriareal, alguns foram fundidos em umsó. Mantive os nomes de Toledo, Jonas eFernando, ou o codinome de Marcão.Alguns nomes são verdadeiros, mas não amaioria dos personagens.A HISTÓRIA DE O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?TEM UMA DIVISÃO MUITO CLARA: ESQUERDA XDIREITA, GUERRILHEIROS URBANOS X REGIMEMILITAR. O FILME TOMA PARTIDOS?B. Barreto - Minha maior preocupação foia de não cair na armadilha dos que sempretendem a dividir o mundo entre bons emaus, vítimas e carrasco. O filme não temum personagem principal e minha preocupaçãobásica foi encontrar a motivação daspessoas envolvidas, do torturador aosseqüestradores. Entre esses, estavam Fernando,que abre mão da casa e do nomepara entrar na luta armada; René, que nãoera amada pelo pai e entra para a clandestinidade;Júlio, um rapazinho que querpegar na metralhadora como personagemde história em quadrinhos; Cézar, que éex-seminarista. Os conflitos se acirramquando chegam de São Paulo os militantesmais experientes: Toledo, que lutou naGuerra Civil espanhola, e Jonas, um recalcadosocial, que abomina aqueles "meninos'de classe média. Aquele grupo, com achegada do Embaixador ao cativeiro, tambémestavam ligados pela síndrome deEstocolmo, dramaturgicamente muito rica,e que é a relação que se estabelece entreseqüestrado e seqüestradores.A QUE GÊNERO CINEMATOGRÁFICO SE FILIA OQUE É ISSO, COMPANHEIRO?B. Barreto - Não fiz um filme sobre política,mas sobre as pessoas, sobre seres humanos.Não fiz um filme sobre idéias, massobre medos, vontades e as tensões envolvidasem um episódio específico. Até porqueninguém agüentaria um filme que reproduzisseas falas das pessoas como era naépoca. Seria insuportável. E acho que estahumanização dos personagens é a maior16


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997vitória do Leopoldo Serran (roteirista) e dosatores que existem como pessoas. É provávelque muita gente espere um thriller político,como os filmes de Costa Gavras, e quetendem a um confronto de good guys e badguys. Não fiz um filme de mocinho e bandido.Até o torturador é um personagem conflituado,e embora seja um personagem terrível,o discurso dele faz sentido, ele é decarne e osso, não é um arquétipo. Eu me a-proximei de um fato público com uma liberdadede ficcionista e também com a liberdadede quem não é e nem foi engajado politicamente.O filme, enfatizo, é uma reflexão apartir de personagens sem maniqueísmos.HOUVE OUTRAS FONTES DE INSPIRAÇÃO INDIRE-TAS, ALÉM DO PRÓPRIO LIVRO O QUE É ISSO,COMPANHEIRO?B. Barreto - Na época da elaboração doroteiro li um livro muito interessante sobrea questão da sexualidade no terrorismo,chamado The Demon Lovers, que inclui ocaso de Patty Hearst, que acaba se casandocom o segurança. Esta relação torturado/torturadoré mencionada no filme,quando o torturador Henrique comentaque uma presa política acabou casandocom um torturador chamado Peçanha.Esses pontos foram importantes na interrelaçãoentre os personagens. Depois,fomos para Washington abrir o baú e ver oque tinha dentro. Conversamos com a filhade Charles Elbrick, Valery, e com ex-funcionáriosda Embaixada dos Estados Unidosna época do seqüestro.QUAL A MAIOR CONTRIBUIÇÃO DESSAS CONVERSAS?B. Barreto - Valery nos deu um exemplar deO Que É Isso, Companheiro? com anotaçõesfeitas pelo pai. Ele anotara, por exemplo,que o livro que recebera no cativeiro era deMao Tse Tung e não de Ho Chi Min. Elareforçou as posições políticas do pai, comoa de ser contra apoiar governos que nãoeram legitimamente escolhidos. A políciaachou um tape das conversas do Elbrickcom os seqüestradores, no qual ele expunhasuas idéias, digamos, liberais. Valery confirmouque ele era um liberal e que ficou umapersona non grata nos meios diplomáticosdepois do seqüestro. Sem dúvida, aqueleseqüestro foi um divisor de águas na carreirae na vida de Elbrick, que teve um final devida muito infeliz. As conversas com Valeryforam úteis menos na questão da trama emais na elaboração do personagem. Elacontou, por exemplo, do ciúme que sentiudos seqüestradores, que teriam o pai sópara eles. E também, de uma sensação deagradecimento, pois depois da liberação dopai, eles se abraçaram pela primeira vez emmuitos anos. Ele era extremamente obsessivo,e voltou mais humanizado.O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, PELA PRÓPRIAHISTÓRIA, TEM UM PERSONAGEM AMERICANO ESEQÜÊNCIAS FALADAS EM INGLÊS, QUE TEM SIDOUMA MARCA DE VÁRIOS FILMES BRASILEIROS DAFASE DA RETOMADA. VOCÊ FEZ O FILME PENSAN-DO NO MERCADO EXTERNO?B. Barreto - Acho que a história de O QueÉ Isso, Companheiro? interessa tanto oBrasil quanto o mundo inteiro, mas não fizo filme com uma preocupação específica deagradar lá fora. Até porque, eu acho que omercado externo espera outro tipo de filmebrasileiro, como a carga social de Pixote, orealismo mágico de Dona Flor e Tieta.Realmente espero que o filme viaje, atéporque esta é uma característica naturaldo cinema, que cada vez circula mais.17


O?“modernas” de tortura entre seus comandados.No entanto, no escalão do torturador,daquele sujeito que põe a mão namassa, a tortura significa infligir dor,humilhação e talvez a morte a outro serhumano. Ela acontece em meio a gritos,sangue, cheiro de sangue e de suor, ofedor insuportável do medo, freqüentementeurina e fezes –porque o medo e a dorsoltam bexigas e intestinos. Esse sujeitometido numa sala abafada e malcheirosa(ninguém tortura com as janelas abertas,por onde possa entrar o ar da manhã e sairo grito de dor do torturado) em cima docorpo maltratado e sangrento do torturadoestá tomado: a adrenalina do predadorcorre solta, o prazer primitivo de dominare humilhar o outro gera o ódio pelo prisioneiroindefeso, o cheiro do medo e do sanguedesperta o animal que dorme em todoser humano, freqüentemente desviossexuais vem à tona, impulsionados pelofato de ele ter em suas mãos um corpogeralmente nu, indefeso e sobre o qual eledetém todo o poder. Quebrar a resistênciado prisioneiro envolve humilhá-lo:nenhum torturador vai pedir educadamenteque o outro fale, ele berra, no mínimo,um “fala, filho da puta!!’’.Vamos parar com a brincadeira: acharque a tortura possa ser conduzida racionalmenteé uma piada –exatamente porque elaé a regressão do homem ao não-humano, aabdicação pelo homem daquilo que o fazhumano (e a racionalidade faz parte disso).A tortura é a negação do humano –e essa éa chave da sua eficácia. A prática da torturacontamina o torturador, destrói seuequilíbrio. É uma experiência-limite, comomuitas outras, que deixa sua marca indelévelem quem se envolve com ela. Sobretudoquando a prática da tortura deixa de sereventual, resultante de um momento crítico,e passa a ser a norma, o cotidiano darepressão. O torturador está, todos os dias,regredindo, negando sua humanidade,exercitando aquilo que de pior existe nele.Com o tempo ele cristaliza a regressão,reforça sua não-humanidade, entronizacomo valor o seu lado mais podre. E setransforma em sua própria caricatura, umaespécie de monstro bidimensional. Não émais possível pensar na figura de um burocrataque encerra o expediente e volta paracasa para encontrar sua mulher e seusfilhos, levando a vida normal de classemédia. Depois de certo tempo, o torturadoré torturador o tempo todo.19


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997A idéia, portanto, de condenar a tortura,tentando compreender o torturador, é absurda.Mesmo porque, da maneira como o filmea apresenta, fica-se longe de uma condenaçãoda tortura. Ela é amenizada pelo tratamentoque lhe confere racionalidade: dá atéa impressão de não ser tão cruel assim. Poroutro lado, na medida em que se evita acondenação do torturador, dá-se razão àditadura que aproveitou a anistia para impedirque se fizesse justiça em relação a eles. Ofilme compreende tanto as razões do torturadorque fica difícil percebê-lo como aquiloque na verdade é: um criminoso. Praticantedaquilo que hoje é considerado crimehediondo e, portanto, inafiançável. Não épossível deixar de lembrar a frase de JorgeSemprum em A Viagem, referindo-se aos torturadoresde então: “Não é necessário compreenderos SS. É necessário exterminá-los”.No quadro brasileiro, “exterminar” soa umpouco excessivo. Mas levar os torturadores àJustiça teria sido, no mínimo, saudável paranossa democracia, importante para evitarque fatos como aqueles se repitam. A atitudeleniente do filme em relação ao torturadore à tortura não contribui nem um poucopara isso.Mas voltemos ao filme: como emnenhum momento se faz referência aosescalões superiores (Comandos das ForçasArmadas e outros), tem-se a impressão deque a decisão de torturar foi tomada pelomesmo escalão que pratica a tortura. Essaé uma bela distorção, que absolve a ditaduraao condenar seus agentes menores. Omesmo tipo de problema surge em outrosmomentos do filme: numa determinadaseqüência, os agentes da repressão discutemse vão ou não ceder ao pedido de resgatedos seqüestradores. Pelo mesmo20mecanismo de omissão, tem-se a impressãode que são eles, ali, que vão decidir sobreisso –quando é sabido que essa era umadecisão da presidência da República. Essemecanismo –voluntariamente ou não–acaba por passar a idéia de que a repressãodurante a ditadura “era independente” ou“fugia ao controle” do governo central.Essa interpretação dos fatos é extremamenteinteressante para todos aqueles que fizeramparte dos altos escalões da ditadura eque estão aí, como democratas em nossademocracia. Afinal, podem argumentar,agora com o aval do filme, eles não sabiamdo que se passava nos porões.Agora, o outro lado. O dirigente da açãodo seqüestro, apresentado no filme com onome de guerra de Jonas, nos é mostradocomo um sujeito rude e autoritário, que nãohesita em ameaçar de morte os companheirosque porventura desobedecerem à disciplinaimposta por ele. Também ameaça oembaixador seqüestrado de tortura e demorte, além de manipular desonestamente aescala de plantões para colocar um determinadopersonagem na situação de ter queexecutar o embaixador, caso as negociaçõesfracassem. O retrato que se pinta, portanto,é o de um mau-caráter, stalinista nos métodose com uma prática interna de chefe degang. Inicialmente não vou me deter naquestão da identificação desse Jonas com oJonas real, ou seja, com Virgílio Gomes daSilva. Isso fica para depois. A contestaçãoinicial é outra: para quem militou nas organizaçõesclandestinas do final dos anos 60,é inimaginável pensar num dirigente comessas características. Dirigentes autoritários,houve. Stalinistas, é evidente que sim. Maso clima reinante nas organizações provenientesdas lutas internas e rachas do perío-


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997do era de tal ordem (bem ao estilo libertárioe antiautoritário da época) que qualquerdirigente que tentasse manter a disciplinacom ameaças de morte seria imediatamenteapeado do seu posto, acusado de autoritário,obreirista, stalinista, contrário ao espírito domarxismo-leninismo e do centralismo democrático.Organizações inteiras racharam pormuito menos: a disciplina dos militantes“pequeno-burgueses provenientes do movimentoestudantil” era garantida através delonguíssimas discussões eivadas de citaçõesdos clássicos, sessões de crítica e autocrítica,ácidas comparações com a disciplina“natural” dos quadros operários ou camponeses–jamais através de ameaças diretas ecruas. Essa disciplina obtida pela ameaça étípica dos bandos de gangsters –da máfiaaos nossos traficantes locais. Transportaresse tipo de atitude para dentro de um grupoguerrilheiro da esquerda armada no Brasildos anos 60 é não ter informação sobre apolítica interna dessas organizações ou simplesmente,má fé.E aqui se coloca a questão do Jonas. Navida real, a ação de seqüestro do embaixadoramericano pela ALN e pelo MR-8 em1969 foi comandada por Virgílio Gomes daSilva, codinome Jonas. No filme, a ação deseqüestro do embaixador americano pelaALN e pelo MR-8 em 1969 é comandada porum militante de codinome Jonas. É impossívelnão identificar os dois. Dizer que não sãoa mesma personagem é querer contar, aocontrário, a piada do sujeito que não se chamavaJoaquim e não morava em Niterói. Namedida em que todos os depoimentos demilitantes que conheceram o verdadeiroJonas contradizem frontalmente o personagemdo filme, só restou ao diretordo filme, Bruno Barreto, e ao próprioGabeira, argumentar que o filme é “ficção” eque não se pode cobrar dele fidelidade aoreal. Evidentemente, este mesmo argumentovai servir para justificar todas as “diferenças”entre a versão do filme e a realidade, aíincluídas a caracterização do torturador e asrelações internas à organização guerrilheira.O que nos leva a uma outra discussão: quaissão as responsabilidades que um filme ditode ficção tem ao recriar uma época real epersonagens reais? É evidente que a ficçãotem enorme liberdade, senão ela limitaria oimaginário dos criadores ao espaço do documentário.O autor de ficção cria –ou elimina–personagens, altera fatos, inventaoutros. Tudo no sentido de tornar sua narrativamais fluente e de deixar mais clarosseus pontos de vista. Ele pode se dar ao luxode inventar um personagem fictício em meioàs figuras reais da Revolução Francesa,fazer com que figuras famosas que nunca secruzaram se encontrem e convivam. Podeaté criar cenários imaginários a partir dehipóteses fantásticas como: o que aconteceriase os nazistas tivessem ganho a guerra etomado os EUA? Nesse sentido a ficção nãotem limites.Mas,ao aplicaressaimensaliberda-21


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997de, a ficção tem responsabilidades. Porexemplo: se alguém escrever uma históriaonde um certo Adolph é o benévolo dirigentedemocrático de uma feliz Alemanha e setorna vítima de judeus desalmados queinventam um troço chamado holocausto?Ou, também, se alguém resolver fazer umfilme onde uma flor de pessoa conhecidacomo Stalin premia seus colaboradores comestadas maravilhosas nos hotéis cinco estrelasda região paradisíaca (e por que não tropical?)da Sibéria? A pergunta é: qual o efeitodessa liberdade ficcional? A resposta ésimples: deixam de ser “apenas” obras deficção e se transformam em instrumentosde propaganda ideológica. Porque não estãoapenas criando ficcionalmente no interiordos fatos históricos. Estão distorcendoesses fatos e colocando uma versão mentirosano lugar do que já é historicamentecomprovado. Um filme como O Judeu Suss,obra fundamental da propaganda nazistade pré-guerra realizava exatamente essetipo de manobra. Uma das mais bem-sucedidase prolongadas distorções históricas érepresentada pelo tratamento que o westerndeu, por mais de 30 anos, aos índios americanos.Várias gerações, através do cinemaamericano, foram convencidas de que osíndios daquele país eram cruéis, sanguináriose um estorvo à expansão da civilização.É só no final dos anos 50 que começa ummovimento de revisão da verdadeira históriada expansão para o oeste nos EUA, tentandocompreender o que de fato aconteceuno final do século passado. E é só aí que sevão contar as histórias dos massacrescometidos pelos brancos contra as populaçõesindígenas, é só aí que personagenscomo o General Custer assumem sua verdadeiradimensão histórica.A pergunta, portanto é: a quem servemessas distorções? A ficção não é inocente:na medida em que a liberdade de criaçãonão busca uma certa fidelidade ao que sesabe da história, ela passa a servir comodifusora de um ponto de vista ideológico,interessado em distorcer a história paracriar opinião. E a desculpa de que o ficcionistanão tem a obrigação de conhecer ahistória não tem fundamento. Ele tem,sim, a obrigação de saber o que de fatoocorreu no período que retrata para, daí,criar com liberdade.O que nos leva de volta ao filme –umapequena, e incompleta, lista das distorçõese desinformações nele contida pode serelaborada:• O filme omite o background políticoculturalda época, fazendo com que osespectadores tenham a impressão de que adecisão pela luta armada foi uma opçãoquase gratuita dos jovens estudantes. Namedida em que nada é dito das organizaçõespolíticas então existentes, das lutasinternas que se travavam, das teorias emodelos que se discutiam, a idéia da lutaarmada parece surgir do nada, do inconformismode rebeldes sem causa.• Da mesma forma, a repressão parecese reduzir a um grupo de militares decididosa acabar com aquela baderna juvenil.Em nenhum momento ela é percebidacomo uma política de Estado que ia muitoalém do combate aos grupos guerrilheirose que, na verdade, se utilizava desse combatepara imobilizar e massacrar toda oposiçãoao regime.• Não há, no filme, resposta à interpretaçãodo torturador de que os guerrilheiros“eram um grupo de jovens ingênuos22


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997iludidos por uma canalha de dirigentesdesonestos e mal intencionados”. Os únicosdirigentes que aparecem no filme sãoJonas e Toledo. Jonas, como se viu, éretratado como pouco mais que um bandidocomum. Toledo, no filme, não diz a queveio: apenas se deixa estar no aparelhosem fazer nada de significativo. A versãodo torturador acaba predominando.• O filme passa a impressão de que otorturador, aquele torturador, fez tudosozinho na repressão ao seqüestro. Nofilme ele tortura os presos, investiga oseqüestro, localiza a casa onde o embaixadorestá sendo mantido, monta a campana,segue os seqüestradores quandovão libertar o seqüestrado. Só não prendetodos os militantes e resolve sozinho oseqüestro porque seu comandante oimpede para não colocar em risco a vidado embaixador. Nenhum outro grupo darepressão é apresentado, nenhuma relaçãofora daquela unidade se estabelece.Sabe-se, no entanto, que durante oseqüestro real, um imenso aparatorepressivo foi montado. Dezenas, talvezcentenas de casas foram vigiadas. A localizaçãoda casa foi resultado de umamobilização repressiva sem precedentes.De novo temos aqui a tal liberdade dotratamento ficcional. Que resulta, comosempre, numa distorção: o filme minimizao aparelho repressivo (de novo o“grupo fora de controle”) e com issominimiza e banaliza o seqüestro doembaixador Elbrick.Além disso tudo, há um outro aspecto,que diz mais diretamente respeito à linguagemcinematográfica utilizada. BrunoBarreto domina a narrativa clássica docinema. Mas a opção que faz, num filmeque se pretende de ação, em desdramatizarcinematograficamente as seqüências maistensas resulta, ainda uma vez, num retratofalso. O filme não é capaz de sugerir, nemde longe, a tensão e a adrenalina quebanhavam a vida clandestina nas organizaçõesarmadas. Parece tudo muito burocrático,muito banal. Até mesmo as açõesarmadas (assalto ao banco, seqüestro doembaixador), a tortura e a vida no aparelhosão apresentadas sem muitos sobressaltos.Há um certo clima blasé, umaponta de tédio, uma banalidade suburbanaem tudo o que acontece. Isso é geradopelas escolhas formais de direção: enquadramentos,cortes, ritmo, tom da interpretação.Não nos parece deficiência no domínioda linguagem cinematográfica: quandoo diretor quer criar uma cena tensa e profundamenteemocional, a cena do aeroporto,quando a guerrilheira chega na cadeirade rodas), ele consegue, com admiráveleconomia de recursos. É uma escolha. Enão podia deixar de ser: tudo o que se discutiuneste texto é o resultado das escolhasfeitas na roteirização e na direção dofilme. Escolhas, em última instância, ideológicas.O filme é o que é não pelo fato deser ficção ou entretenimento; ele é o produtode escolhas ideológicas que lhe dãoum perfil conservador, ainda que moderno.Neoliberal, na verdade.Renato Tapajós é jornalista, escritor ecineasta. Foi preso em 1969 como militanteda Ala Vermelha. Sobre o período, escreveuos livros Em Câmara Lenta e Carapintada, efilmou Em Nome da Segurança Nacional eNada Será Como Antes. Nada?23


HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADpor Izaías Almada“O CINEMA TORNOU-SE DE TAL MANEIRA PARTE DE NOSSAS VIDAS QUE, POR VEZES, ESQUECEMOSDE COMO ELE PODE INFLUENCIAR NOSSO COMPORTAMENTO, OU NOSSA MANEIRA DE PENSAR”.SYD FIELD, roteirista e teórico americano, na introdução do seulivro FOUR SCREENPLAYS, Studies in the American Screenplay.Apior e mais contundentecrítica que se pode fazerao filme O Que É Isso, Companheiro? é ade que se trata de um filme bem feito.Explico o aparente paradoxo.Um cinema feito com competência, bemalicerçado em alguns de seus principaisfundamentos (como o roteiro, a direção decena e a montagem), o último trabalho docineasta carioca Bruno Barreto coriscoucomo um raio os céus de um Brasil queainda tem memória, chamuscando demaneira indelével a nossa História contemporâneae mexendo em feridas aindanão de todo cicatrizadas. E, como é umtrabalho bem feito na sua carpintaria técnica,o filme agrada, emociona e... ilude.Livre para escolher o tema que quiser,para manifestar o seu pensamento e parasensibilizar as pessoas para a sua obra, qualquerartista assume um compromisso ético,estético e ideológico com a sociedade em quevive. Seja para afirmá-la, seja para criticá-la,ou mesmo negá-la, ainda que o seu nível deconsciência a respeito desse compromissonão lhe convença disso. Em outras palavras:como artista, posso produzir uma obra paratocar meu semelhante, para fazer vibrar assuas cordas da razão e da emoção. Queroque ele compartilhe (ou não) do meu pontode vista, seja um ponto de vista engajadonalguma causa social ou descompromissado,alienado. Ideológico ou “sem ideologia”.Hipócrita ou sincero. Uma vez acabada ecomunicada, essa obra deixa de me pertencer(como reflexão ou mero entretenimento,dependendo do ponto de vista) e passa apertencer ao tecido social no qual me incluo.Como a qualquer brasileiro –e não só–que viveu nas entranhas dos anos de chum-24


E E HIPOCRISIAbo, a polêmica criada em torno do filme OQue É Isso, Companheiro? me atingiu.Antes de ver o filme já havia mergulhado naleitura de artigos, críticas, entrevistasenvolvendo atores e personagens, reais oufictícios. Nessa altura, duas questões mechamaram mais a atenção, ambas postasem entrevistas à imprensa e tv pelo própriodiretor Bruno Barreto. Na primeira delas,cito, Barreto afirma: “fiz um filme para osjovens, para as pessoas que não conheceramaquele período da História do Brasil(os anos 60)...” afirmação que encerra umcontra-ataque aos que, vivendo e combatendoa ditadura militar, ou participandodo seqüestro do embaixador americano, criticaramo filme pelos erros históricos e pelainterpretação enganosa de alguns dos fatosnarrados. A segunda questão, dada ementrevista ao programa de Jô Soares, ocineasta –acompanhado do pai e produtor–sentenciou: “fiz um filme para o mercadoamericano, para contar aos americanosuma história sobre um seu embaixadorseqüestrado no Brasil no final dos anos 60,história que os próprios americanos desconheciam...”Com essas duas chaves de leitura,indicadas pelo próprio realizador, fuiver O Que É Isso, Companheiro?A mistura da ficção com a realidade, noinício em preto e branco do filme, remeteume,entre outros, ao JFK de Oliver Stone,mas é um recurso efêmero e que acaba pordecepcionar. Enquanto no filme de Stone atécnica documentarista informa, sustentae avança dramaticamente a narrativa dainvestigação, aqui ela é redutora das própriaspossibilidades que contém e nãopassa de um simples recurso de introduçãopara situar o tempo do filme. Aplicado ocarimbo “Anos 60”, com direito a Jobim,Vinícius, Garota de Ipanema, Leila Diniz,Garrincha, Pelé e Maracanã, somos apresentadosaos personagens que vão fazercaminhar a ação dramática: os guerrilheirosurbanos do MR-8.Syd Field, roteirista e um dos principaisteóricos norte-americanos sobre dramaturgiapara cinema, no seu livro The Foundationsof Screenwriting, sustenta no capítulo3, página 22 (O personagem), que é precisoconhecer muito bem o personagem parapoder revelar visualmente os seus conflitos.E conhecer bem um personagem é sabersobre o seu passado, construir-lhe uma sólidabiografia. Segundo o próprio Field, avida interior de um personagem vai do seunascimento até o filme começar. A vida25


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997exterior do personagem é a que nós vemosna tela, aquela que vai do início ao fim dahistória do filme. Os personagens de Brunonão têm passado. Ou melhor, alguns têm láqualquer coisa próxima disto, aqueles aquem o realizador e seu roteirista resolveramprivilegiar: o embaixador, o policialmilitartorturador e o protagonista da história,um ex-jornalista. Os outros não: sabemosapenas que são jovens que resolveramcombater a ditadura, assim, vindos donada. Seriam estudantes que se conheceramno movimento estudantil. Unem-se,três deles, a uma gostosinha, que maistarde intuimos (por um telefonema) ter seintegrado à luta armada porque não sedava com o pai ou com a família. E todosjuntos, comandados por um comediante daRede Globo de Televisão (Luís FernandoGuimarães) e uma caricatura de militanteda esquerda revolucionária (Fernanda Torres)iniciam a primeira parte da sua açãoguerrilheira, recrutados como se fossemintegrantes de uma pequena quadrilha demafiosos, rebatizados com seus ‘nomes deguerra’ e exercitando tiros nas praias azuise desertas do litoral carioca. Comecei a desconfiarque alguma peça andava fora dolugar, apesar de tudo muito bem filmadinho.Chega-se à primeira ação do grupo eao ‘plot-point’, como dizem os americanos,isto é, àquele momento de virada na históriafeito para ganhar maior densidade dramática:o assalto a banco seguido peloseqüestro do embaixador. E para completara construção da história, em seu primeiroato, como manda o figurino, a apresentaçãode um jovem bem barbeado ao lado de umagata de baby-doll, em cuja seqüência, umdos planos revela com estudada precauçãouma peça de farda militar dependurada noguarda-roupa do casal. Costa-Gavras emEstado de Sítio foi menos sutil com os militaresbrasileiros, quando mostrou um prisioneirosendo torturado à frente dehomens fardados, tendo a bandeira brasileirana parede por trás do torturado. RememberDan Mitrione....Até esse momento do filme, quando seinicia o segundo ato, a bandeira americanajá havia aparecido na cena da chegadado homem à lua, no bolo oferecido aoembaixador em comemoração a essemesmo fato e numa conversa de trabalhodentro da própria embaixada, sutilezas eregrinhas a que o cineasta –atualmentevivendo e trabalhando nos Estados Unidos–vai se acostumando, e das quaisconhece muito bem o significado para aindústria cinematográfica de Hollywood.Nesse ponto, devo fazer uma profissãode fé para evitar equívocos: sou grandeadmirador do cinema americano e, mesmosabendo das suas regrinhas em defesa doamerican way of life e das maravilhas doparaíso capitalista, consigo distinguir eapreciar na sua imensa produção muitosdaqueles que deverão ficar como os melhoresfilmes de sempre. Inigualáveis nosgêneros do western e dos musicais, paracitar apenas dois exemplos, a produçãoamericana de filmes ajudou a elevar ocinema à categoria de arte desde os seusprimórdios com Edwin S. Porter, D.W.Griffth e Chaplin, entre outros. E constituisehoje num dos maiores entretenimentosdo mundo contemporâneo. Não comungo,pois, com aqueles que vêm o demônio nocinema americano, longe disso...Pois bem: Bruno Barreto –sem que eleprecisasse dizer– fez um filme americano.26


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997Até aí, nada a censurar. É um direito seucomo artista que trabalha naquele mercado.No caso, me atrevo a dizer, creio queescolheu a história errada. Ou, já que olivro também não é dos mais sérios emmatéria de crítica e autocrítica ao pensamentorevolucionário brasileiro dos anossessenta, adaptou o livro errado. Contarpara o público americano que o seqüestrodo seu embaixador Elbrick, em 1969 noBrasil, foi fruto da ação juvenil inconseqüentede um grupo chamado MovimentoRevolucionário 8 de Outubro (MR-8),grupo esse comandado por dois mafiososde uma tal Aliança Libertadora Nacional,pode ser palatável àquele mercado. Mas,ainda assim, é ingênuo do ponto de vistapolítico e desrespeitoso à própria memóriado embaixador, homem suficientementecorajoso para criticar, na época, a ditaduramilitar brasileira com maior veemência doque aquela que o filme sugere. Aliás, osamericanos ficariam talvez mais orgulhososhoje, se vissem o seu embaixador criticarcom mais dureza um governo ditatorialao sul do Equador, política posta em práticaa partir do governo de Jimmy Carter. Doponto de vista dramatúrgico e de marketing,essa opção poderiaser até mais útil àsintenções dos produtoresem tentar conquistaro Oscar de melhor filmeestrangeiro em 98.Maior desrespeito, noentanto, fica por contado tal filme feito para osque não conheceram ouviveram a história políticados anos 60 aqui noBrasil e que, após assistirem ao filme, afirmo,continuarão sem saber... Os defensoresde O Que É Isso, Companheiro? alegam quese trata de uma adaptação livre de ummomento, de um fato, da História contemporâneabrasileira. Ficção, embora muitoem cima da realidade, mas ainda assim,ficção... E aqui chegamos, quanto a mim,ao miolo da questão: a hipocrisia. A hipocrisiavem se constituindo em marca e apanágiocultural da sociedade brasileira apósa ditadura militar. Engatinhando no governoSarney, com a Nova República, adensou-seessa prática de sobrevivência com anefanda experiência do “caçador de marajás”e agora desfila com plumas e paetêspelo governo pífio de Fernando HenriqueCardoso. Para alegria da nossa elite endinheirada,sempre perversa, e da emergenteclasse média sacoleira.Que bom ver um filme sobre o meupaís, falado parcialmente em inglês, comalguns atores americanos, onde um grupode meninos da classe média carioca(alguns deles também sabem falar inglês)brinca de revolucionário sob o comando dedois mafiosos/terroristas paulistas (quenão sabem falar inglês) e seqüestram umcândido e inocente embaixador americano.27


ENCARTE ESPECIAL DA REVISTA ADUSP Nº 10 • JUNHO DE 1997Atenção, que o falar inglês aqui assume acaracterística do mais primário preconceitocultural, tão típico dos dias atuais. A talponto, que os dois comandantes da operação/seqüestro,os caipiras vindos de SãoPaulo, os maus da fita, são os únicos quemorrem, como diz no final a companheiraMaria. Coincidência sutil, subliminar...Que bom também saber que havia umaditadura militar no país entre os anos de1964 e 1979, mas que os seus principaisprepostos –policiais e militares– eramhomens com escrúpulos em exercer a violênciae a barbárie da tortura, divididosentre o dever (conferir as falas do personagemquando explica o que faz à mulher debaby-doll) e o humanismo cristão (o crucifixopendurado na parede do quarto), aocontrário dos guerrilheiros de esquerda,impiedosos, crédulos, amorais, pérfidos.Como é que aqueles garotos ingênuos sedeixaram manobrar pela “experiência” dosmais velhos? Chegam a ser ridículas ascenas em que o militante mais novo acendeo cigarro do comandante da ação, o Jonas,e a do personagem Toledo ouvindo a Internacionalnuma vitrola, enquanto o mundodesaba lá fora. Ou o pôster soviético displicentementelargado junto à mesinha dotelefone. Se esses dois últimos íconesdevem informar que os personagens sãocomunistas mesmo, gente capaz de fuzilarqualquer um, por quê os uniformes militaresda repressão são escamoteados? Sobrea ditadura, a “ficção”; sobre a esquerdarevolucionária, a “realidade”. Ingenuidade?Má fé? Pesquisa histórica superficial?Liberdade de criação? Oportunismo paracativar o mercado americano e branquear oarbítrio para os que financiaram aqui arepressão? Penso que qualquer destasalternativas não responde a questão defundo. Ou não lhe dão a devida sustentaçãoideológica. O filme é mais que isso: éuma visão hipócrita dos nossos anos 60. Etambém maniqueísta, malgré lui. Nãoestou afirmando que Bruno Barreto sejahipócrita. Apenas criou uma peça artísticafirmemente convicto de que podia lançarum olhar isento sobre o Brasil da ditaduramilitar. Só que o Brasil preso, torturado,calado, humilhado, exilado, ficou sem voz,ausente da história oficial e do filme. Porconseqüência, sujeito à visão arrogante ehipócrita dos vencedores, os mesmos queeducaram a geração de Barreto, ainda bemjovem quando os fatos se deram.Num país onde se compram votos paraaprovar reeleição em causa própria, tambémse fazem filmes como O Que É IssoCompanheiro?. Uma coisa tem exatamentea ver com a outra... No entanto, companheiroBruno Barreto, ao contrário daquiloque o filme insinua, não pretendo fuzilálo.Defendo o seu direito de fazer o filmeque quiser, o seu direito de expressar e trabalharcom liberdade. Apenas, não sedeixe também enganar pelos mais velhos,não se deixe manipular por pontos de vistaque não correspondem à realidade histórica.Como você vê, a ficção e a realidadepodem e devem valer para todos.Izaías Almada é escritor, dramaturgo e roteirista.Foi preso em 1969 como militante daVanguarda Popular Revolucionária e, sobre operíodo, escreveu os romances A MetadeArrancada de Mim e Florão da América,ambos da Editora Estação Liberdade.28

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