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LUGARES DOS MORTOSNA CIDADE DOS VIVOS


PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIROLuiz Paulo Fer<strong>na</strong>ndez CondeSECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURAHele<strong>na</strong> SeveroDEPARTAMENTO GERAL DE DOCUMENTAÇÁOE INFORMAÇÃO CULTURALVera MangasDIVISÃO DE EDITORAÇÃODiva GraciosaCONSELHO EDITORIALVera Mangas (presidente) Alexander Nicolaeff, AlexandreNazareth, An<strong>na</strong> Maria de Andrade Rodrigues, Diva Graciosa, HeloisaFrossard, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Marilia RothierCar<strong>dos</strong>o, Re<strong>na</strong>to Cordeiro Gomes, Vera Beatriz SiqueiraCOMISSÃO JULGADORADO PREMIO CARIOCA DE MONOGRAFIA 1995Diva Graciosa (presidente), Re<strong>na</strong>to Cordeiro Gomes,Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Heloisa Frossard eAlexander Nicolaeff


PRÊMIOCARIOCA DE MONOGRAFIA199520 PRÊMIOLUGARES DOS MORTOSNA CIDADE DOS VIVOStradições e transformações fúne<strong>br</strong>esno Rio de JaneiroCId udia Rodr~gu esPrefeitura da Cidade do Rio de JaneiroSecretaria Municipal de CulturaDepartamento Geral de Documentação e Informação CulturalDivisão de Editoração


Coleção BIBLIOTECA CARIOCAVolume 43Série Publicação CientíficaO I996 by Cláudia RodriguesDireitos desta edição reserva<strong>dos</strong> ao Departamento Geral de Documentação eInformação Cultural da Secretaria Municipal de Cultura (C/DGDI)Proibida a reprodução sem autorização expressaPrintedin Brazilflmpresso no BrasilISBN 85-85815-03-5PRÊMIOCARIOCA DE MONOGRAFIA 1995, 2' prêmioEdição de texto, revisão e diagramaçãoDivisão de Editoração C/DGDI: Célia Almeida Cotrim, Diva Maria DiasGraciosa, Rosemary de Siqueira RamosEstagiá<strong>rio</strong>: Roni de Almeida MarquesProjeto gráfico da capa:Eduardo TavaresPagi<strong>na</strong>ção:Valentim de CarvalhoEditoração eletrõnica:Augusto DuarteReprodução fotográfica:Marco BelandiCatalogação: Divisão de Processamento Técnico/DIB/DGDIRodrigues, Cláudia. 1969 -<strong>Lugares</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>: tradições e transformaçõesfúne<strong>br</strong>es no Rio de Janeiro / Cláudia Rodrigues. - Rio de Janeiro:Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentaçãoe Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997.276 p.: il. - (Coleçao Biblioteca ca<strong>rio</strong>ca; v.43.Série publicaçãocientífica)Inclui bibliografia.Prêmio Ca<strong>rio</strong>ca de Monografia 1995 - 2O prêmio.1. Rio de Janeiro (RJ) - História .2. Rio de JAneiro(RJ) - Vida social ecostumes - séc. XIX .3. Rio de Janeiro (RJ) - Cemité<strong>rio</strong>s - História .4.Fe<strong>br</strong>e amarela - Rio de Janeiro (RJ) - séc. XIX .5. Medici<strong>na</strong> - História -Rio de Janeiro (RJ) - séc. XIX .I. Título. I1 . Série.CDD 981.53Divisão de Editoração C/DGDIRua Amoroso Lima, 15 - sala 106 - Cidade Nova2021 1-120 - Rio de Janeiro - RJTel.: (021) 273-3141 Fax: (021) 273-4582


AGRADECIMENTOS, 9PREFACIO, i iLUGARES DOS MORTOS NA CIDADE DOS VIVOS, 19INTRODUÇÃO, 2 iPARTE I: A CIDADE E A EPIDEMIA DA MORTE, 27A FEBRE AMARELA DE 1849- 1850,29O MEDO DA CONTAMINAÇÃO PELOS MORTOS E OFIM DOS SEPULTAMENTOS NAS IGREJAS, 53O Estado imperial e a medicalização da sociedade, 54O discurso médico e a normaIização <strong>dos</strong> costumes fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong>Corte, 59Transformações das sensibilidades com relação aos <strong>mortos</strong>, 66O fim <strong>dos</strong> sepuItamentos <strong>na</strong>s igrejas, 89A CRIAÇÃO DOS CEMITÉRIOS PÚBLICOS NA CORTE, 1 15Os debates no Legislativo, 1 15A lei do cemité<strong>rio</strong> público, 124As reações do clero, 129As reações <strong>dos</strong> leigos, 133PARTE 11: A CIDADE E SEUSMORPS, 147VISÃO DE MORTE E DO ALEM-TUMULO, 149A morte e o Além cristão, 150A morte e o Além africano, 155Familiaridade entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> Corte, 164DA MORTE AO MORTO: COSTUMES FÚNEBRES NA CORTE, 1 73A "passagem", 1 74Os sacramentos do morto, 176O vestuá<strong>rio</strong> fúne<strong>br</strong>e, 195Os ofícios fúne<strong>br</strong>es, 2 14O sepuItamento, 2 17CONCLUSÃO, 255REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 259ANEXO, 269LISTA DE TABELAS, 27 1


AGRADECIMENTOSEste livro é uma versão revisada de minha dissertação de mestrado,defendida em agosto de 1995, junto a Universidade FederalFluminense.No processo de elaboração da dissertação e no preparo desta edição,várias pessoas e instituições contribuíram de maneiras diversas - asquais demonstro agora minha gratidão, pedindo desculpas por algumesquecimento.Agradeço a meus pais, pela educação a mim propiciada. Ao Leozinho,pela alegria e confusão divertida, próprias da infância.Ao professor Francisco José Silva Gomes que, com paciênciabenediti<strong>na</strong>, orientou este trabalho. Da relação entre nós estabelecidafica o grande carinho que por ele tenho.A Sheila de Castro Faria, a mestra-mor, com quem desenvolvi apaixão pelos arquivos, pelo contato com as fontes, pela pesquisa emhistória. A professora Vânia Leite Fróes, ~o~mpetentíssima coorde<strong>na</strong>dorada pós-graduação em História <strong>na</strong> UFF. As professoras BereniceCavalcante, pelo estímulo, e Hebe de Castro, cujos cursos e discussõesa respeito da escravidão e da liberdade mostraram-se essenciais.A Anderson, companheiro de trabalho e de vida, uma presençafundamental.A Silvia Brugger, leitora crítica de meus textos, com sua perspicáciahabitual. A Isaura, Marcio, Eline, Andréa, Josemir, Sérgio, RobertoCarlos - a quem agradeço pelos incentivos e pela presença em momentosdecisivos de minha vida.Ao professor João José Reis, pela atenta e meticulosa leitura. Suascríticas e sugestões, sempre muito apropriadas, foram fundamentaispara a elimi<strong>na</strong>ção de equívocos e para revisão fi<strong>na</strong>l do conteúdo dapesquisa.Cláudia Rodrigues9


O século XIX foi um tempo de grandes transformações no Brasil.Em 1808, o Brasil recebeu a Corte portuguesa, tor<strong>na</strong>ndo-se praticamentea sede de um impé<strong>rio</strong> europeu, do qual se desligaria 15 anos depois., Cercado de repúblicas, se transformou numa mo<strong>na</strong>rquia até o golperevublicano de 1889. Durante o Imvé<strong>rio</strong> ocorreram sé<strong>rio</strong>s conflitosregio<strong>na</strong>is em várias de suas provirkias, ameaçando a integridadeterritorial do vais. Conheceu ainda um conflito externo de grandesproporções, a-~uerra do Paraguai. Foi também durante o séFulo XIXque, através de sucessivas leis, foram aboli<strong>dos</strong> o tráfico de escravos e aprópria escravidão, dando fim a um regime de trabalho forçado quedominou a maior parte de nossa história. Com o declinio e a aboliçãofi<strong>na</strong>l da escravidão, tomou impulso a imigração européia para o Sul dopaís, redesenhando o perfil étnico de sua população. O Brasil seurbanizou com grande velo<strong>cidade</strong>, alcançando várias de suas <strong>cidade</strong>smais de cem mil habitantes no fi<strong>na</strong>l do século. Seu espaço econômicofoi redistribuído, se transferindo do Nordeste para o Centro-Sul o eixodinâmico da economia. E possível argumentar que aqueles cem anosrepresentaram os anos de maiores mudanças <strong>na</strong> história do país.Mas esse conjunto de fatos políticos, sociais, demográficos,econômicos não dá conta de todas as transformações ocorridas duranteaquele século. Mudanças menos perceptíveis também tiveram lugarno âmbito <strong>dos</strong> comportamentos, das sensibilidades, fenômenos queagitaram regiões mais profundas da alma <strong>dos</strong> que viveram <strong>na</strong>queleBrasil. E so<strong>br</strong>e uma dessas regiões que trata este livm.Cláudia Rodrigues discute as atitudes diante <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> e damorte no Rio de Janeiro oitocentista. Este é um tema que tem sidopouco estudado por nossa histo<strong>rio</strong>grafia e, no entanto, ele diz respeitoa uma das preocupações maiores <strong>dos</strong> homens e mulheres daquele tempo,a preocupação com uma boa morte. A maneira como a morte eraesperada, o momento ideal de sua chegada, os ritos que a precediam esucediam, o local da sepultura, o destino da alma, a relação entre <strong>vivos</strong>e <strong>mortos</strong> - eram todas questões so<strong>br</strong>e as quais muito se pensava, falava,escrevia. Aqui a autora lança mão de uma variedade de fontes impressase manuscritas, de crónicas, relatos de viagens, romances de época,


correspondências eclesiástica e administrativa, registros paroquiaise outros documentos para reconstruir como essas questões eramenfrentadas pelos ca<strong>rio</strong>cas.Ao longo da primeira metade do século XIX, aindapredomi<strong>na</strong>va no Brasil urbano um modelo de morte que se podedenomi<strong>na</strong>r de barroco, rico em detalhes simbólicos, rituais e míticos,característicos da cultura barroca. As pessoas se preparavam paramorrer, com alguma antecedência, escrevendo testamentos queinstruíam so<strong>br</strong>e a mortalha que devia co<strong>br</strong>ir seus cadáveres, ospadres, po<strong>br</strong>es e irmandades que deveriam acompanhar seusfunerais, o local de sepultura, o número'e tipo de missas a seremrezadas e outras providências que acreditavam ser necessárias asalvação de suas almas. Mesmo os indivíduos mais po<strong>br</strong>es, e atéescravos, se não tinham como fazer seus testamentos por escrito,recomendavam oralmente como queriam enfrentar a derradeiraviagem, protegi<strong>dos</strong> com os recursos rituais e simbólicos que seusrecursos materiais permitissem. O importante era não ser tomadode surpresa por este Último ato entre os <strong>vivos</strong>. Daí porque a morteacidental, prematura, sem os ritos devi<strong>dos</strong>; era vista como grandedesventura, que fazia sofrer a alma de quem partia e a consciênciade quem ficava.iA morte ideal, acima de tudo, não devia ser uma mortesolitária. Durante a sua agonia, o moribundo carecia de gente a suavolta, animando-o a partir com segurança e protegido por rezas eoutros meios de bem morrer. concluída a agonia, o ideal era quemuita gente cercasse o morto de cuida<strong>dos</strong>,\que o velasse eacompanhasse até a sepultura, de preferência no inte<strong>rio</strong>r de umaigreja. Era uma morte solidária. E espetacular. Marcavam osmelhores funerais o barulho de rezas, cânticos, sinos, orquestras,tambores, palmas, fogos de artifício; a profusão de cores, emblemas,formas que ador<strong>na</strong>vam opas, caixões e essas. As pessoasacompanhavam a pé o amigo, parente, conterrâneo, o irmãoespiritual ou ape<strong>na</strong>s se juntavam de bom grado ao cortejo de ummorto desconhecido, pelo dever de solidariedade e investimento <strong>na</strong>própria salvação. Os funerais antigos eram manifestaçõesemocio<strong>na</strong>ntes da vida social.Mas assim se passava precisamente porque a morte era vistacomo o fim do corpo ape<strong>na</strong>s, pois o morto seguiria em espírito rumo aum outro mundo, a uma outra vida. Nessa passagem espiritual, noentanto, figuravam como de grande importância os ritos que sedesenvolviam em torno do cadáver. O destino deste servia de modelopara o destino da alma.Essa atitude básica,generalizada entre os que viviam e morriamno Brasil antigo, se distribuya de maneira diversa entre os vá<strong>rio</strong>s gruposda população. Cláudia Rodrigues apreende muito bem essas diferenças,


enriquecendo seu trabalho com a reconstituiçáo de uma realidadecomplexa e multifacetada em termos <strong>dos</strong> rituais, significa<strong>dos</strong> e visõesem torno da morte. Esta ganhava contornos diferentes segundo aclasse social, a afiliaçáo religiosa, a origem étnica. Minoriaprivilegiada, os ricos <strong>br</strong>ancos, senhores de escravos, morriamacompanha<strong>dos</strong> pelo tanger de muitos sinos, mas sem a percussão detambores e os fogos de artifício que acompanhavam a morte <strong>dos</strong>líderes das comunidades africa<strong>na</strong>s <strong>na</strong> Corte.Brancos, par<strong>dos</strong>, pretos, livres, libertos, escravos, negros<strong>na</strong>sci<strong>dos</strong> no Brasil e vin<strong>dos</strong> da Africa, católicos e protestantes, criançase adultos, homens e mulheres seguiam para o Além vesti<strong>dos</strong> commortalhas diferentes e eram sepulta<strong>dos</strong> em igrejas e cemité<strong>rio</strong>s. distintos, ou em locais distintos das mesmas igrejas e cemité<strong>rio</strong>s. Apesarde se observar que a morte nivelava muitos indivíduos em muitas dessasatitudes, e de acordo com complexas combi<strong>na</strong>ções, predomi<strong>na</strong>vamtendências separatistas quanto aos meios de morrer e destino <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>.A autora, por exemplo, sugere enfaticamente que, para muitosafricanos, aqueles mais fiéis a suas raizes culturais, a morte os levaria,amortalha<strong>dos</strong> de pano <strong>br</strong>anco, ao encontro de seus ancestrais, emregiões celestiais africa<strong>na</strong>s que não se confundiam com o Paraíso, oPurgató<strong>rio</strong> ou o Inferno da escatologia católica.Essa morte espetacular, essa morte barrocamente africa<strong>na</strong> ouafrica<strong>na</strong>mente barroca, sofrerá o impacto profundo, para muitos terrível,das epidemias de fe<strong>br</strong>e amarela e so<strong>br</strong>etudo de cólera que assolaram oRio de Janeiro e diversas outras regiões do Brasil, em mea<strong>dos</strong> do séculopassado. Cláudia <strong>na</strong>rra com cores vivas o trabalho avassalador dapeste diante da precariedade sanitária da Corte, a impotência dasautoridades, a confusáo <strong>dos</strong> médicos, a resig<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> religiosos, odesespero da população e principalmente o medo de to<strong>dos</strong>. Os <strong>mortos</strong>,conta<strong>dos</strong> aos milhares e espalha<strong>dos</strong> entre todas as categorias sociais, jánão podiam receber os cuida<strong>dos</strong> que até então os so<strong>br</strong>eviventes lhesdedicavam, para que desfrutassem uma boa morte. Aquela convivênciapacífica e solidária entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong> ruiu face a desordem pestífera.Já não se gastava tempo com os <strong>mortos</strong>, porque eles passaram a sertemi<strong>dos</strong> instrumentos dessa desordem. Em primeiro lugar ficava agoraa saude física <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, não a saude espiritual <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. Entre asprimeiras providências figurava o destino destes, que não deveriamocupar mais a <strong>cidade</strong> <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, as igrejas e cemité<strong>rio</strong>s intramuros. Efoi assim que os <strong>vivos</strong> expulsaram os <strong>mortos</strong> de seu meio, expulsaramnosda <strong>cidade</strong> que até então pertencera a ambos.Essa nova atitude subverteu comportamentos profundamentearraiga<strong>dos</strong>, que durante séculos haviam regulado a cultura funerária<strong>dos</strong> <strong>br</strong>asileiros. Segundo esta, o local ideal de enterro era a igreja,porque se acreditava que ela representasse a ante-sala terrestre doParaíso celestial. Era um comportamento há muito conde<strong>na</strong>do pelas


leis de Roma, mas amplamente difundido no mundo católico. Aolongo do século XVIII, <strong>na</strong> maioria <strong>dos</strong> países católicos da Europa, edurante o século seguinte em suas ex-colonias america<strong>na</strong>s,autoridades civis e eclesiásticas, assessoradas ideologicamente pelosmédicos, foram pouco a pouco impondo mudanças nessas e noutraspráticas funerárias. Isso não se processou sem resistências. Na Bahia,por exemplo, a proibição <strong>dos</strong> enterros <strong>na</strong>s igrejas em 1836 provocoua Cemiterada, um movimento popular que resultou <strong>na</strong> destruiçãode um cemité<strong>rio</strong> construido fora de Salvador. Talvez por causa daCemiterada baia<strong>na</strong>, as autoridades urba<strong>na</strong>s em todo o país houvessemdesacelerado as reformas cemiteriais reclamadas pelos higienistas econsig<strong>na</strong>das em várias leis municipais, provinciais e imperiais.Aí veio a peste, que representou o argumento definitivo emfavor <strong>dos</strong> reformistas. Diante dela, a tradição foi o<strong>br</strong>igada a se render.Mas o que mudou não foi ape<strong>na</strong>s o lugar de sepultura. Estarepresentava peça tão decisiva do xadrez da morte que as mudançasai operadas se refletiram so<strong>br</strong>e diversos outros aspectos <strong>dos</strong> funeraisde outrora. Aquele modelo de morte se baseava fundamentalmente<strong>na</strong> maneira como os perso<strong>na</strong>gens do drama fúne<strong>br</strong>e se distribuíamatravés do espaço e o papel que representavam a partir de seuslugares - daí a importância de se atentar para o lado cênico daquelesfunerais. Havia uma integração entre o teatro da vida e o teatro damorte: a casa estava perto da igreja, ambas faziam parte de umaparóquia, que fazia parte de uma <strong>cidade</strong>. Vivos e <strong>mortos</strong> se faziamcompanhia nos veló<strong>rio</strong>s em casa, em seguida atravessavam juntosruas familiares, os <strong>vivos</strong> enterravam os <strong>mortos</strong> em templos onde esteshaviam sido batiza<strong>dos</strong>, tinham se casado, confessado, assistido missase cometido ações menos devotas - e onde continuariam a encontrarseus <strong>vivos</strong> cada vez que estes viessem a fazer essas mesmas coisas,até o encontro fi<strong>na</strong>l sob aquele chão e no além-tumulo. Tudo issoagora acabara. No cemité<strong>rio</strong> longe de casa e da paróquia, as visitasseriam de hora marcada, como se <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong> tivessem de repentese tor<strong>na</strong>do estranhos. A partir daquela mudança radical de ce<strong>na</strong>,instaurou-se um estranhamento entre o mundo <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> e o mundo<strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, acompanhado de um esfriamento <strong>na</strong>s reIações das pessoascom o sagrado.Segundo Cláudia Rodrigues, houve um empo<strong>br</strong>ecimento e umesvaziamento <strong>dos</strong> cortejos fúne<strong>br</strong>es a partir <strong>dos</strong> surtos epidêmicos e daconseqüente proibição <strong>dos</strong> enterros <strong>na</strong>s igrejas e cemité<strong>rio</strong>s paroquiais.Mostra ela ainda, a partir da análise do uso da roupa fúne<strong>br</strong>e, queocorreu no mesmo período um declínio vertiginoso <strong>dos</strong> enterros commortaIhas de santos. Um si<strong>na</strong>l, aliás, de que teria havido transformaçõesimportantes <strong>na</strong> devoção. Visto pelo ângulo <strong>dos</strong> funerais, os santoscertamente perderam o prestígio como protetores <strong>dos</strong> viajantes para oAlém. E possível que outras formas de ser devoto tenham se


desenvolvido, tanto quanto se desenvolveram outros tipos de devoção,como a pouco interessante devoção ao Sagrado Coração, tão cara ahierarquia eclesiástica <strong>na</strong>quele período. De fato, é sabido que omovimento de romanização da Igreja, que ganhou vulto durante asegunda metade do século XIX, desestimulou as devoçõestradicio<strong>na</strong>is, as devoções populares a<strong>br</strong>igadas <strong>na</strong>s irmandadesreligiosas, carros-chefes do catolicismo barroco, instituiçõesdemasiadamente independentes <strong>na</strong> visão <strong>dos</strong> bispos reformistas. Eas irmandades eram perso<strong>na</strong>gens centrais do funeral barroco, comotambém aponta a autora, pois tinham por compromisso dar a seusmem<strong>br</strong>os uma morte cerimoniosa, dig<strong>na</strong>, além de a<strong>br</strong>igar os irmãos<strong>mortos</strong> nos túmulos de seus temvlos. O declínio daauela maneiraantiga, bonita, de morte, sentenciou categoricamente o declínio dasirmandades, não obstante ritmos e estilos diferentes de decli<strong>na</strong>r.Por outro lado, as mudanças no estilo de morrer refletiram eimplicaram em mudanças no modo de pensar e sentir que já vinham seprocessando antes das epidemias e da vitória <strong>dos</strong> higienistas. Estavaem curso um movimento de secularização da mentalidade da época,que se expressou em novas formas, não religiosas, de cultivo do espírito- hábitos de leitura, méto<strong>dos</strong> de ensino, teatro etc. - e <strong>na</strong> difusão denovas formas de associação - grêmios literá<strong>rio</strong>s, associações de classeetc. -que ocupariam parte do terreno antes quase inteiramente ocupadopelas rezas, igrejas e irmandades. O surto epidêmico de mea<strong>dos</strong> <strong>dos</strong>éculo XIX serviu como catalisador das mudanças que já vinhamlentamente trabalhando a mentalidade do século, inclusive no que dizrespeito ao modo de morrer.Este livro então vem documentar, interpretar e esclarecer ummomento decisivo de nossa história cultural. Ele amplia o nossohorizonte so<strong>br</strong>e as transformações que experimentou o Brasil ao longodo século XIX, identificando mudanças em sentimentos profun<strong>dos</strong>guarda<strong>dos</strong> <strong>na</strong> alma das pessoas daquele tempo. Nos leva também arefletir se a morte hospitalar - fria, solitária e mesquinha -que saiuvencedora daquele embate oitocentista e hoje predomi<strong>na</strong>, nãoempo<strong>br</strong>eceu a alma das pessoas de nosso tempo, e por isso devamosbuscar uma melhor qualidade de morte tanto quanto exigimos umamelhor qualidade de vida.JoáoJosé ReisDepartamento de História/Universidade Federal da Bahia


Ao Anderson e aSilvia, companheiros que são, e peloaprendizado que têm meproporcio<strong>na</strong>do


LUGARES DOS MORTOSNA CIDADE DOS VIVOS


Este estudo trata <strong>dos</strong> "lugares" <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> no Rio deJaneiro, no século XIX, partindo da perspectiva de que aos"lugares de moradia" <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> correspondia uma dadarelação <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> para com eles, de modo que ocupavamuma determi<strong>na</strong>da posição <strong>na</strong>s representações culturais efunerárias da época. Para isso, identifiquei alguns <strong>dos</strong>costumes fúne<strong>br</strong>es adota<strong>dos</strong> por grande parte <strong>dos</strong> habitantesda <strong>cidade</strong>. A idéia de tal estudo partiu da constatação deque, <strong>na</strong> Corte, como ocorreu em outras <strong>cidade</strong>s <strong>br</strong>asileiras,a relação entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> foi marcada por umprocesso de transformações que, partindo da proibição <strong>dos</strong>sepultamentos no inte<strong>rio</strong>r das igrejas, culminou <strong>na</strong> criação<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos, processo semelhante ao queocorreu em outros lugares, em épocas distintas.As práticas de sepultamento eclesiástico foramtrazidas e instituídas <strong>na</strong>s terras <strong>br</strong>asileiras pelo colonizador,sendo adotadas pela maioria da população até mea<strong>dos</strong> <strong>dos</strong>éculo XIX. Estiveram vinculadas a prática, cristã eocidental, cuja base era a familiaridade existente entre os<strong>vivos</strong> e seus <strong>mortos</strong>, expressa <strong>na</strong> inumação no inte<strong>rio</strong>r dacomunidade, mais propriamente dentro do espaço dasigrejas'. Esta familiaridade assentava-se numa relação devizinhança cotidia<strong>na</strong> entre os habitantes e as sepulturas. Aofrequentarem as igrejas, pisavam, caminhavam, sentavame oravam so<strong>br</strong>e seus <strong>mortos</strong>, a todo o tempo sentindo seusodores, expressando uma determi<strong>na</strong>da sensibilidade olfativaresultante da fé existente <strong>na</strong> sacralidade <strong>dos</strong> sepultamentoseclesiásticos.Por volta das primeiras décadas do século XIX,


entretanto, assistiu-se ao desenvolvimento e a difusão <strong>dos</strong>aber médico que, preconizando a prevenção de doenças,procurou voltar-se para uma política de higienização <strong>dos</strong>espaços urbanos, direcio<strong>na</strong>ndo seu olhar e olfato para ossepultamentos eclesiásticos, dentre outras práticas, tidascomo prejudiciais à salu<strong>br</strong>idade pública. As práticas deinumação até então vigentes foram consideradas pelosmédicos como passíveis de serem extintas, uma vez que asema<strong>na</strong>ções cadavéricas poluiriam o ar, o que era agravadopelo fato de serem muitas as igrejas localizadas no perímetrourbano, todas repletas de sepulturas que, quando abertas <strong>na</strong>presença <strong>dos</strong> fiéis, provocavam odores mefíticos,causadores de doenças e alimentadores das epidemias.Após décadas de debates, os médicos conseguiram queas autoridades <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais legislassem a respeito dacriação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos, para onde seriam leva<strong>dos</strong>to<strong>dos</strong> os cadáveres. Até o estabelecimento daquelescemité<strong>rio</strong>s, longo tempó passaria e as decisões foram quasesempre proteladas. Até que o advento da fe<strong>br</strong>e amarela em184911 850, com seus drásticos efeitos, empurrariadefinitivamente os <strong>mortos</strong> para fora das igrejas e da <strong>cidade</strong>.Neste sentido, as práticas de sepultamento foram oponto central das transformações funerárias, a partir de1850, <strong>na</strong> Corte. Estudar os sepultamentos ao longo do séculoXIX é, a meu ver, um meio de se observar em que medidaas modificações nos "lugares" <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> implicaram emalterações no ritual fúne<strong>br</strong>e e, por conseguinte, so<strong>br</strong>e asrelações entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> nos costumes fúne<strong>br</strong>esdo Rio antigo. Deste modo, o século XIX, de modo geral, ea década de 1850, em particular, aparecem como balizascronológicas deste trabalho.A<strong>na</strong>lisar em que medida a transformação do "lugarde moradia" <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> implicou <strong>na</strong> configuração de umnovo "lugar" para eles, <strong>na</strong> cultura funerária <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, é ocaminho de análise proposto. Caminho que tem comoreferência os recentes estu<strong>dos</strong> so<strong>br</strong>e a morte, empreendi<strong>dos</strong>pela História Social e das Mentalidades, cujo centro porexcelência é a produção francesa a respeito das atitudes e


sensibilidades coletivas diante da morte, realizada porPhilippe Ariès, Michel Vovelle, Pierre Chaunu, FrançoisLe<strong>br</strong>un, Jacqueline Thibault-Payen, dentre outros2, e, noBrasil, empreendida por João José Reis3, em seus estu<strong>dos</strong>so<strong>br</strong>e os rituais fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong> Bahia do século XIX.A exposição do trabalho foi feita em duas partes.Na parte I, A <strong>cidade</strong> e a epidemia da morte, com trêscapítulos, procuro a<strong>na</strong>lisar a conjuntura que levou aoprocesso de transformação <strong>na</strong>s formas de sepultamento <strong>na</strong>Corte. No primeiro, intitulado A epidemia de fe<strong>br</strong>e amarelade 1849-1850, voltei as atenções para o estudo do impactoda fe<strong>br</strong>e amarela epidêmica so<strong>br</strong>e a <strong>cidade</strong> e suasimplicações, entre fins de 1849 e os meses iniciais de 1850.O segundo, com o titulo O medo da contami<strong>na</strong>ção pelos<strong>mortos</strong> e oJim do sepultamento <strong>na</strong>s igrejas, pretende, numprimeiro momento, mostrar o desenvolvimento e a difusãodo saber médico <strong>na</strong> Corte, <strong>na</strong>s primeiras décadas do séculoXIX, e a execução por médicos e pelo <strong>gov</strong>erno imperial damedicalização da sociedade, que teve como uma de suasmetas a normalização <strong>dos</strong> costumes fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>; nummomento poste<strong>rio</strong>r, a<strong>na</strong>liso os efeitos que o discurso médicoexerceu so<strong>br</strong>e a sensibilidade olfativa em relação aos<strong>mortos</strong>, por parte <strong>dos</strong> moradores de algumas localidades daCorte. No último capitulo desta parte, denomi<strong>na</strong>do Acriação do cemité<strong>rio</strong> público <strong>na</strong> Corte, a<strong>na</strong>liso o processode criação do cemité<strong>rio</strong> público e a efetivação da proibição<strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas, bem como as respostas dadaspelos leigos e pelo clero a essas medidas.Na parte 11, A <strong>cidade</strong> e seus <strong>mortos</strong>, com doiscapitulos, pretendo, com base no estudo <strong>dos</strong> costumesfúne<strong>br</strong>es adota<strong>dos</strong> por cristãos e africanos a<strong>na</strong>lisar os"lugares" <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> Corte, no sentido físico e simbólico.No capitulo Visões de morte e do Além-túmulo, busqueiidentificar as concepções que o cristianismo e as religiõesafrica<strong>na</strong>s tinham a respeito da morte, do Além e do postmortem.Por fim, no capitulo intitulado Da morte ao morto:costumes fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong> Corte, passei da análise so<strong>br</strong>e aconcepção da morte ao estudo de dois momentos por que


passavam os <strong>mortos</strong> a caminho do "outro" lado da vida - a"passagem" e o sepultamento -, a fim de verificar, atravésdeles, a relação que os <strong>vivos</strong> mantiveram com seus <strong>mortos</strong>,ao longo do século XIX, tentando perceber neste períodoas tradições e as transformações nos costumes fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong><strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro.Para realizar este estudo, fiz uso de fontes médicas;relatos de memorialistas, de viajantes e de cronistas so<strong>br</strong>ea <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro; romances da literatura <strong>br</strong>asileira;a<strong>na</strong>is do Parlamento <strong>br</strong>asileiro (Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> edo Se<strong>na</strong>do); resoluções do poder Executivo no nível damunicipalidade e no nível do Impé<strong>rio</strong>; documentação elegislação eclesiástica; representações e abaixo-assi<strong>na</strong><strong>dos</strong>de moradores, irmandades, ordens terceiras e conventos da<strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro aos poderes Executivo eLegislativo; atas e ofícios da Santa Casa da Misericórdiado Rio de Janeiro; testamentos e registros paroquiais deóbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento ( num totalde 5848 assentos coleta<strong>dos</strong> por amostragem, para o séculoXIX). A forma de tratamento dado a estas fontes obedeceua crité<strong>rio</strong>s quantitativos, em alguns casos, e de uma análisequalitativa, em outros: os registros paroquiais de óbitosforam coleta<strong>dos</strong> por amostragem, organiza<strong>dos</strong> em séries esuas informações foram contabilizadas e processadas; asdemais fontes foram abordadas enquanto discurso.


NOTASI Uma prática que se opunha a separação que a civilização da Antiguidadeestabelecia com seus <strong>mortos</strong>, através da localização das sepulturas fora<strong>dos</strong> limites das <strong>cidade</strong>s, ao longo das estradas. Cf. ARIÈS, Philippe. Ohomem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p.37.Cf. ARIÈS, P. Essais sur I'histoire de Ia mort en occident. Paris, Le Seuil,1975, e L 'homme devant Ia mort. Paris: Le Seuil, 1977; CHAUNU, P. La morta Paris. Paris: Fayard, 1977; FAVRE, R. La mort ay siècle des lumières.Lyon: PUL, 1978; LEBRUN, F. Les hommes et Ia mort en Anjou aux 17e et18e siècles. Paris: Mouton, 1971; MORIN, E. L'homme et Ia mort dunsI 'histoire. Paris: Le Seuil, 1968; THIBAUT-PAYEN, J. Les morts, I 'église etI'état. Recherches d'histoire administrative sur la sépulture et lescimetières duns le ressort du parlement de Paris auXVIIe etXVIIIe siècles.Paris: Éditions Femand Lanore, 1977; VOVELLE, M., e VOVELLE, G. Visionde Ia mort et de I'au-dela en Provence d'après les autels des âmes dupurgatoire, Me-Me siècles. Paris: A. Colin, 1970; VOVELLE, M. Mourirautrefois. Attitudes collectives devant lu mort aux XVIIe et XVIIIe siècle.Paris: Gallimard, 1974; Piété baroque et déchristianisation en Provence auXVIIIe siècle. Paris: Gallimard, 1978, e La mort et I'occident de 1300 anos jours, Paris: Gallir<strong>na</strong>rd, 1982.REIS, João José. A morte é uma festa: ritosfune<strong>br</strong>es e revoltapopular noBrasil do século XH. São Paulo: Companhia das Letras, 199 1.


PARTE IA <strong>cidade</strong> e a epidemia da morte


A FEBRE AMARELA DE 1849-1 850EpitáfioAQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENO DE BRITOMORTAAOS DEZENOVE ANOS DE IDADEORA1 POR ELA!(...IO epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhe <strong>na</strong>rrasse a moltstiade Nhã-Loló, a morte, o desespero da família, o enterro. Ficamsabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião daprimeira entrada da fe<strong>br</strong>e amarela. Não digo mais <strong>na</strong>da, a nãoser que a acompanhei ate o último jazigo, e me despedi triste,mas sem lágrimas. Conclui que talvez não a amasse deveras.Vejam agora a que excessos pode levar uma i<strong>na</strong>dvertência; doeumeum pouco a cegueira da epidemia que, matando à direita e àesquerda, levou tambtm uma jovem dama, que tinha de serminha mulher; não cheguei a entender a necessidade daepidemia, menos ainda daquela morte. Creio que att esta mepareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes. QuincasBorba, portm, explicou-me que epidemias eram úteis à esptcie,embora desastrosas para uma certa porção de indivíduos; fezmenotar que, por mais horrendo que fosse o espetáculo, haviauma vantagem de muito peso: a so<strong>br</strong>evivência do maior número.Chegou a perguntar-me se, no meio do luto geral, não sentia eualgum secreto encanto em ter escapado às garras da peste; masesta pergunta era tão insensata, que ficou sem resposta' .Esta foi a forma como aperso<strong>na</strong>gem de Machado deAssis,' Brás Cubas, referiu-se a perda de sua pretendente - aesposa, vítima do ataque inesperado da fe<strong>br</strong>e amarela a <strong>cidade</strong>


do Rio de Janeiro: no início da década de 1850. No romance,o flagelo, ao se alastrar, matava inesperadamente uma jovem;fora da ficção, a sensação de dor, diante das numerosas perdas,e de inconformação, diante da facilidade e rapidez com que osurto se desenvolvia, foi vista como se a <strong>cidade</strong> se tivesseconstituído em parte de uma peça teatral, onde os habitantesda Corte destacavam-se como atores, confundindo ficção erealidade. Para José Pereira Rego, barão do Lavradio2, o quadrofoi "horrível e tene<strong>br</strong>oso", sendo mais "lutuoso o teatro emque se representou este drama de morte, no qual to<strong>dos</strong> maisou menos fizeram o seu papel de dor".Ao descrever a epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela, José PereiraRego procurou traçar o quadro do surto, com o objetivo deregistrar "<strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s da história médica <strong>br</strong>asileira os fatos eobservações" que poderiam interessar a ciência. Publicada emjaneiro de 185 1, a intenção de sua o<strong>br</strong>a era de que oconhecimento da epidemia servisse de alerta e ensi<strong>na</strong>mentopara que outras fossem evitadas, e para que medidas desalu<strong>br</strong>idade pública fossem tomadas previamente aosurgimento de um surto. Pereira Rego criticava o fato de que,até então, quando uma epidemia grassava, não eraacompanhada por medidas eficazes no seu combate, da mesmaforma que não se buscava prevenir o seu aparecimento commedidas de salu<strong>br</strong>idade.Quando se fala da epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela no Rio deJaneiro, a referência a que se instalou entre fins de 1849 emea<strong>dos</strong> de 1850 é a de ter sido a primeira das muitas outrasque ocorreriam <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, desde então. A de 1850 foiconsiderada uma das mais terríveis que assolou a <strong>cidade</strong> noséculo x1x3.Antes de a<strong>na</strong>lisamos o desenvolvimento da epidemia<strong>na</strong> Corte, vejamos rapidamente o panorama espacial da <strong>cidade</strong>do Rio de Janeiro nesse período.Até o século XIX, o Rio de Janeiro era uma <strong>cidade</strong>apertada e limitada pelos monos do Castelo, de São Bento, deSanto Antônio e da Conceição, cuja ocupação se dava a partirda dre<strong>na</strong>gem de <strong>br</strong>ejos e mangues. Sua população era formadaem sua maioria por escravos, sendo poucos os trabalhadores


li-s e reduzida a elite administrativa, militar e mercantil. A faltade meios de transporte coletivo fez com que os locais de moradiaficassem relativamente próximos uns <strong>dos</strong> outros, não havendo umafastamento da elite local, que distinguia-se do restante dapopulação mais pela forma e aparência de suas residências doque pela sua localização4 .Ao longo do século XIX, principalmente após a vindada familia real, a partir de 1808, a <strong>cidade</strong> assistiu a modificaçõessubstanciais em termos de aparência fisica e social:A vinda da família real impõe ao Rio uma classe social até entãoinexistente. Impõe também novas necessidades materiais queatendiam não só aos anseios dessa classe, como facilitam odesempenho das atividades econômicas, políticas e ideológicasque a <strong>cidade</strong> passa a exercer. A independência política e o iníciodo rei<strong>na</strong>do do café geram, por sua vez, ur<strong>na</strong> nova fxe de expansãoeconômica resultando daí a atração - no decorrer do século - degrande número de trabalhadores livres, <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is eAinda <strong>na</strong>s décadas de 1820 e 1830, a área propriamenteurba<strong>na</strong> do Rio de Janeiro restringia-se às fieguesias do SantíssimoSacramento, da Candelária, de São José, de Santa Rita e deSanta<strong>na</strong>, que correspondiam, grosso modo, a atual área do Centroe portuária; sendo as demais fkguesias predomi<strong>na</strong>ntemente rurais6 ,conforme se percebe no mapa <strong>na</strong> pági<strong>na</strong> seguinte.Neste período, uma tênue diferença social já se podia notarentre estas cinco fieguesias urba<strong>na</strong>s. Candelária e São José - ondese localizavam o Paço Real e as repartições mais importantes doReino e também onde se desenvolviam em grande parte asatividades ligadas ao comércio importador e exportador -transformaram-se gradativamente em local de residênciapreferencial das elites dirigentes, que ocupavam so<strong>br</strong>a<strong>dos</strong>. Afreguesia do Santissimo Sacramento, formada por MS tortuosase estreitas, fazia limites entre a Candelária e tinha as mesmascaracterísticas comerciais daquelas. As fi-eguesias de Santa Rita eSanta<strong>na</strong> eram as mais adensadas, atraindo os segmentos com poderaquisitivo mais baixo.


No fi<strong>na</strong>l da primeira metade do século XIX, o Rio deJaneiro passou a apresentar ur<strong>na</strong> nova forma de ocupação, <strong>na</strong>qual os segmentos sociais de rendas mais altas foram sedeslocando do antigo e congestio<strong>na</strong>do centro urbano em direçãoa Lapa, Catete, Glória, Botafogo e São Cristóvão - regiõesque se beneficiavam da ação do poder público que a<strong>br</strong>ia econservava estradas e caminhos. A partir da década de 1850,a <strong>cidade</strong> passou por um período de expansão, marcado tantopela incorporação de novos sítios a área urba<strong>na</strong> - com a criaçãoda Cidade Nova e da freguesia de Santo Antônio, por exemplo- como pela intensificação da ocupação das freguesiasperiféricas, como a Lagoa. As freguesias centrais passaram asofrer inúmeras transformações para o que contribuiu tanto oEstado como o capital estrangeiro que, aos poucos, obtinhaconcessões do <strong>gov</strong>erno imperial para a provisão de serviçospúblicos Desse modo, muitas ruas do Centro, principalmenteda Candelária, foram calçadas com paalelepípe<strong>dos</strong>, e serviçoscomo a ilumi<strong>na</strong>ção a gás e <strong>dos</strong> esgotos sanitá<strong>rio</strong>s forami<strong>na</strong>ugura<strong>dos</strong>, de modo que o Centro passou a ser a sede dasmodemidades urbanísticas da época, nos moldes das demaiscapitais européias. Entretanto, contraditoriamente, ele tambémmantinha a sua condição de local de residência das populaçõesmais miseráveis da <strong>cidade</strong>, como os livres po<strong>br</strong>es e os escravos,que se concentravam nos cortiços das freguesias de Santa<strong>na</strong>,Santo Antônio e Santa ~ ita~.Nos trabalhos de história da medici<strong>na</strong> no Brasil quemencio<strong>na</strong>m as condições higiênicas do Rio de Janeiro no séculoXIX, bem como em estu<strong>dos</strong> existentes so<strong>br</strong>e a <strong>cidade</strong>, um pontoem comum é a referência as condições de salu<strong>br</strong>idade urba<strong>na</strong>,sempre de forma negativa, reproduzindo, de certa forma, asopiniões <strong>dos</strong> médicos da época. Os trabalhos que enfocamhistoricamente a <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro apontam o contrasteentre as modificações introduzidas pelas autoridades<strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais, a partir da vinda da família real, e as condiçõesurbanísticas da Corte, que apresentariam ainda traços de uma<strong>cidade</strong> colonial. Segundo Jaime L. Benchimol, desde o tempo<strong>dos</strong> vice-reis, e principalmente <strong>na</strong> primeira metade do séculoXIX, o Rio de Janeiro foi uma <strong>cidade</strong> "insalu<strong>br</strong>e", assolada


Reprodução de Karosch. Mory.Slave life in Rio de Juneiro. 1965. p. 323


por constantes epidemias. Quase to<strong>dos</strong> os anos, quarteirões doCentro eram ataca<strong>dos</strong> por epidemias mortíferas, que vitimavamum grande número de pessoass .A ocupação desorde<strong>na</strong>da e a falta de uma políticametódica de limpeza pública, aliadas as característicasclimáticas e topográficas, tor<strong>na</strong>riam constante a presença deepidemias <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>. Durante a sessão de 25 de junho de1 8509 , <strong>na</strong> qual se discutia o projeto de criação de cemité<strong>rio</strong>spúblicos <strong>na</strong> Corte, o parlamentar por Mi<strong>na</strong>s Gerais, Limpo deA<strong>br</strong>eu, a<strong>br</strong>iu sua fala com impressões so<strong>br</strong>e o seu exame <strong>dos</strong>relató<strong>rio</strong>s apresenta<strong>dos</strong> ao corpo legislativo a respeito dasdiferentes epidemias que haviam, até então, acometido a Cortee a província do Rio de Janeiro:Tomei muito h pressa alguns apontamentos tira<strong>dos</strong> desses relató<strong>rio</strong>s, epeço licença ao Se<strong>na</strong>do para lê-los:"Em 1833 grassaram no município do Rio de Janeiro,principalmente em Iraja, Pilares e lugares circunvizinhos, fe<strong>br</strong>esintermitentes que fizeram muitos estragos <strong>na</strong> populaçáo. Estasmesmas fe<strong>br</strong>es continuaram nos anos de 1834 e 1835, e emtodas essas épocas o <strong>gov</strong>erno viu-se <strong>na</strong> necessidade de decretarsocorros, e fazer despesas com extraordiná<strong>rio</strong>s sacrifícios. Noano de 1836 grassou no município da Corte a epidemia dasbexigas. Em 1843 grassaram fe<strong>br</strong>es de caráter gravementemaligno nesta <strong>cidade</strong>. Em 1844 fe<strong>br</strong>es mortíferas invadiram apopulação desta <strong>cidade</strong>, e além disso, houve a epidemia dasbexigas. Em 1846 houve uma epidemia mortífera <strong>na</strong> freguesiado Campo Grande, município da Corte, e o contágio das bexigastambém <strong>na</strong> Corte. A última epidemia que houve, e a que de -certo causou maior susto <strong>na</strong> Corte e município do Rio de Janeiro:e que afetou muito major número de pessoas, foi a epidemia de 1850".Apesar de a fe<strong>br</strong>e amarela ter feito suas primeiras vítimaspor volta de dezem<strong>br</strong>o de 1849, o reconhecimento de suaexistência por parte das autoridades demoraria um pouco paraser feito. Em 1 O de janeiro, em uma sessão extraordinária, o dr.Lallemant, médico da enfermaria de estrangeiros da Santa Casada Misericórdia, comunicou a Academia Imperial de Medici<strong>na</strong> arespeito do desenvolvimento de uma "fe<strong>br</strong>e grave" que havia


atacado marinheiros provenientes da Bahia e a sua transmissãoa outros indivíduos que com eles conviviam. Oito casos foramrelata<strong>dos</strong>, sendo dois relativos a marinheiros da barcaamerica<strong>na</strong> Navarre, "os quais foram recolhi<strong>dos</strong> a Santa Casano dia 27 do mesmo mês [dezem<strong>br</strong>o], quatro indivíduos quecom eles moravam <strong>na</strong> taber<strong>na</strong> de Frank <strong>na</strong> rua da Misericórdia,<strong>na</strong> qual adoeceram também a mulher do mesmo, e o caixeiroalemão Lenschau". Além destes, foram relata<strong>dos</strong> outros casos.O dr. Sigaud mencionou a ocorrência, <strong>na</strong> casa de saúde ondeera médico, do falecimento de um moço francês, EugeneAnceaux, chegado da Bahia havia dez dias. O dr. Feita1mencionou o caso de outro marinheiro, vindo do vaporD.Pedro, também proveniente da Bahia, que havia falecido nohospital da MarinhalO.Já antes da descoberta destes casos <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, sabia-seque <strong>na</strong> Bahia ocorria uma "doença" que atacava especialmentehomens do mar, com vítimas fatais e cuja origem estaria relacio<strong>na</strong>daa entrada de um <strong>na</strong>vio proveniente de Nova Orleans, com doentesa bordo. Como veio a ocorrer <strong>na</strong> Corte, as autoridades médicasbaia<strong>na</strong>s demoraram para admitir que se tratava de fe<strong>br</strong>e amarela;tinha-se dito, inclusive, no caso da província do Norte, que o caráterda fe<strong>br</strong>e era benigno. Segundo José Pereira Rego, este foi o motivopelo qual, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, não foram tomadas medidassanitárias para se evitar a importação da moléstia através da entradade <strong>na</strong>vios procedentes <strong>dos</strong> portos do Norte" .Ao a<strong>na</strong>lisar as epidemias <strong>na</strong> Europa, Jean Delurneau afirmaque a demora em se admitir a existência da doença teria suasjustificativas. Significava cautela, ao se emitir um diagnóstico, paranão assustar a população e, principalmente, para não interromperas relações econômicas com o exte<strong>rio</strong>r. Também representava odesejo de que fosse retardada, pois, "enquanto a epidemia sócausava um número limitado de óbitos ainda se podia esperar queregredisse por si mesma antes de ter devastado toda"a <strong>cidade</strong>".Por outro lado, segundo o autor, "mais profundas que essas razõesconfessadas ou confessáveis, existiam certamente motivações maisinconsciente^'^: o medo da epidemia, que levaria a que fosseretardado pelo maior tempo possível o momento em que seriafi<strong>na</strong>lmente encarada. Com efeito, médicos e "autoridades


procuravam então enga<strong>na</strong>r a si mesmos", de forma que,"tranquilizando as populações, tranquilizavam-se por sua vez"12 .No caso da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, tais justificativaspodem, de certa forma, ser aventadas como explicação para ademora em se admitir a existência da fe<strong>br</strong>e amarela,principalmente se for levado em consideração que ela já seapresentava em algumas províncias do Norte, o que aumentavaas chances de identificação. Ainda segundo Jean Delumeau,diante da ameaça do contágio, <strong>na</strong> iminência de uma epidemia,as autoridades <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais, muitas vezes, mandavamexami<strong>na</strong>r por médicos os casos suspeitos; sendo que umdiagnóstico tranquilizador era como uma confirmação de seusdesejos. Quando as conclusões eram pessimistas, outrosmédicos eram consulta<strong>dos</strong>. Tal fato ocorreu em Paris13, quandoda epidemia de cólera de 1832, e o mesmo se produziu <strong>na</strong> Corte.No mesmo momento em que a academia se reunia paraouvir a comunicação do dr. Lallemant, teria que deliberar so<strong>br</strong>e oaviso do Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong> que, tendo sido informado arespeito, em 28 de dezem<strong>br</strong>o, pela administração da Santa Casada Misericórdia, consultava a instituiçãomédica a fim de "averigdYas informações recebidas. Caso fosse constatada a existência daepidemia, o <strong>gov</strong>erno orde<strong>na</strong>ria que a academia formulasse regrashigiênicas preventivas para se evitar a propagação da doença.Tendo a Academia de Medici<strong>na</strong> chegado a conclusão de que onúmero de ocorrências não era suficiente para que se afirmasse"segura e acertadamente" tratar-se de uma epidemia de fe<strong>br</strong>eamarela, aconselhou ao <strong>gov</strong>erno que pusesse em prática as medidasque em to<strong>dos</strong> os países eram tomadas para evitar a importação ouo progresso de qualquer surto epidêmico, em especial o uso dasquarente<strong>na</strong>s e da remoção <strong>dos</strong> acometi<strong>dos</strong> pela fe<strong>br</strong>e do meio dapopulação para lugar retirado, de onde o foco da infecção nãopudesse prejudicar os habitantes da <strong>cidade</strong>. Diante disto, o <strong>gov</strong>ernoordenou o estabelecimento das quarente<strong>na</strong>s para os <strong>na</strong>viosprocedentes <strong>dos</strong> portos das provincias do Norte e encarregou aadministração da Santa Casa de criar um lazareto - edificio paraquarente<strong>na</strong> <strong>dos</strong> indivíduo's suspeitos de contágio - <strong>na</strong> ilha do BomJesus. Mas, tendo-se ele tor<strong>na</strong>do, dentro de pouco tempo,insuficiente para receber os vá<strong>rio</strong>s doentes que para lá eram


encaminha<strong>dos</strong>, a administração da Misericórdia c<strong>rio</strong>uenfermarias provisórias em diversos pontos da <strong>cidade</strong>, em razãode a epidemia já tê-la invadidoI4. Em fevereiro, a academia,novamente reunida, confirmou que a moléstia era a fe<strong>br</strong>eamarela, opinião também já aceita pelos médicos da Bahia. Apartir deste momento, o <strong>gov</strong>erno imperial deixaria de consultara instituição médica so<strong>br</strong>e os acontecimentos, para nomear umacomissão, formada por oito mem<strong>br</strong>os da academia, pelo lenteda faculdade de Medici<strong>na</strong> e pelo presidente da Câmaramunicipal, a quem foi dada a presidência da comissão. Suafunção seria a de sustentar a deliberação so<strong>br</strong>e medidas comrelação a higiene pública e servir de órgão de consulta do<strong>gov</strong>erno em todas as questões relacio<strong>na</strong>das a doença.Criada em 5 de fevereiro, uma das primeiras medidastomadas pela comissão central foi acalmar os ânimos dapopulação, assustada diante da forma como a doença progredia,indicando-lhe os primeiros cuida<strong>dos</strong> no caso do acometimentoda fe<strong>br</strong>e. Para isso, tornou públicos, nos principais jor<strong>na</strong>is da<strong>cidade</strong>, os conselhos as famílias so<strong>br</strong>e o comportamento quedeveria ser observado durante a epidemia. Neles, eramindicadas as regras de higiene, bem como os meios curativos aque se deveria proceder, antes de consultar qualquer médico. Nodia 14 de fevereiro, uma portaria do Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong> foiremetida a Câmara municipal, contendo as instruções no sentidode prevenir e sustar a epidemia, algumas das quais foramtransformadas em posturas municipais. Delas constavam medidasa serem tomadas em relação aos <strong>na</strong>vios infecta<strong>dos</strong> e aos demaisque estivessem ancora<strong>dos</strong> no porto, assim como a atitude que osmédicos deveriam tomar no socorro às "classes indigentes" so<strong>br</strong>ea criação de hospitais e enfermarias. Estabeleciam-se, entre outrasmedidas, comissões médicas em cada freguesia, os cuida<strong>dos</strong> quese deveriam ter com os doentes em casa, tratando também <strong>dos</strong><strong>mortos</strong> e funerais. Em 4 de março, foi baixado o regulamentosanitá<strong>rio</strong>, que se constituiu em uni plano detalhado de combate aepidemia, através do estabelecimento de medidas rígidas decontrole so<strong>br</strong>e os indivíduos e a vida <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, "armando, pelaprimeira vez, todo um dispositivo de esquadrinhamento e discipli<strong>na</strong>do espaço ~rbiino"'~.


Estas e outras medidas, implementadas pelas autoridades,evidenciaram como o surto epidêmico tomou-se o momentodurante o qual os médicos tentaram demonstrar a eficácia dasnormas pelas quais lutava a medici<strong>na</strong> social. No seu conjunto,essas normas, que constituíam uma política médica, foramefetivadas em seus pontos principais, elenca<strong>dos</strong> por RobertoMachado1? a) existência de um órgão dirigente da saúdepública, encarregado de coorde<strong>na</strong>r o combate a epidemia; b)esquadrinhamento urbano: divisão da <strong>cidade</strong> em paróquias edestas, em distritos; criação das comissões paroquiais de SaúdePública, compostas de subdelegado, fiscal e três médicos; c)assistencialismo: serviço de assistência gratuita aos po<strong>br</strong>es,com médicos, remédios, dietas e recolhimento <strong>dos</strong> mendigos;d) inspeção sanitária: as comissões visitariam pe<strong>rio</strong>dicamenteos <strong>na</strong>vios, merca<strong>dos</strong>, prisões, hospitais, conventos, colégios,ofici<strong>na</strong>s, quartéis, teatros, estalagens, matadouros, cavalariças,cocheiras, cemité<strong>rio</strong>s, igrejas, passíveis de transmitir a doença- tais locais públicos, assim como as casas particulares, aspraças, as ruas, as valas e os esgotos deveriam ser conserva<strong>dos</strong>no maior asseio, devendo ser caia<strong>dos</strong>, lava<strong>dos</strong> e fumiga<strong>dos</strong>; e)fiscalização do exercício da medici<strong>na</strong>, cirurgia e farmácia; f)registro médico: acúmulo de informações que iam da base acúpula; relató<strong>rio</strong>s <strong>dos</strong> médicos e <strong>dos</strong> hospitais, dandoinformações as comissões paroquiais so<strong>br</strong>e a marcha daepidemia e o tratamento dado. Por sua vez, os médicoselaborariam a estatística mortuária e Úm relató<strong>rio</strong> sema<strong>na</strong>l paraa comissão central, de forma que a ação médica produzisseum melhor conhecimento do fenômeno, onde o saber empíricopossibilitaria a medici<strong>na</strong> planejar melhor seu combate a doença.Tendo começado <strong>na</strong> rua da Misericórdia, a epidemiapropagou-se17 :A princípio caminhava muito devagar, pordm caminhava compasso certo, quase de uma casa para outra, de uma travessa paraoutra, e <strong>na</strong>s casas e <strong>na</strong>s taver<strong>na</strong>s atacando uma pessoa apósoutra. De repente a sua marcha toma-se mais rápida. Semcerimônia ataca tudo, prostra tudo so<strong>br</strong>e o leito <strong>dos</strong>sofrimentos; há casos em que nenhum indivíduo fica intato;


nenhuma idade, nenhum estado, nenhum sexo, dá um privilkgio,uma isenção (...) Como um raio so<strong>br</strong>e o céu azul, caía em gerala fe<strong>br</strong>e amarela so<strong>br</strong>e o povo. Quando os marinheiros estavamcarregando seus <strong>na</strong>vios, quando os negociantes iam ZI praça doComCrcio, quando os oficiais seguiam seu trabalho e os pretospuxavam suas carroças e levavam o cafC, pelas ruas, nesteinstante mesmo, de repente, aparecia uma horripilação, maisou menos forte, um f<strong>rio</strong> e a fe<strong>br</strong>e se manifestava"( ...)"exercendo assim o socialismo mais genuino"( ...) "suacompanheira formidável, a morte, C muito mais ecldtica, muitomais caprichosa".Nas observações do dr. Lallemant, um elementoimportante foi ressaltado: a universalidade do ataqueepidêmico. Diferentemente das epidemias ante<strong>rio</strong>res que, emsua esmagadora maioria, vitimavam os segmentos sociais maispo<strong>br</strong>es, a fe<strong>br</strong>e amarela também fazia vítimas fatais entre aelite residente <strong>na</strong>s áreas centrais, não dando nenhum privilégio,nenhuma isenção a quem quer que fosse. Certamente este fatocontribuiu para a rapidez <strong>na</strong> tomada de decisões, no sentido deextinguir sua presença - pelo menos <strong>na</strong>s áreas centrais da Corte.Os marinheiros e estrangeiros recém-chega<strong>dos</strong> ou poucoaclimata<strong>dos</strong> foram os mais fortemente ataca<strong>dos</strong> por ela.Até princípios de fevereiro, manteve-se próxima aolitoral, aparecendo excepcio<strong>na</strong>lmente em outros pontos dacapital. Dentro de pouco tempo, invadiu com força toda a urbe,de forma que, em fins de março, o surto já se havia instaladoem todas as áreas da <strong>cidade</strong>. O mês de março foi, aliás, o quemais ceifou vítimas, de forma que a mordidade crescia diariamente,a ponto de, em 15 de março, exceder a cifra de novente <strong>mortos</strong>.Desse dia em diante houve um declínio do surto, sendo queaté a metade de a<strong>br</strong>il ainda se fazia notar.Após esta fase, a tendência foi sempre o declínio, a pontode ser considerada extinta <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> em fins de julho, nãoacontecendo, porém, o mesmo nos subúrbios, provavelmente pelofato de as medidas controladoras do surto, desenvolvidas pelasautoridades públicas e pelos médicos, terem privilegiado as áreascentrais do Rio de Janeiro. Segundo as estimativas de Pereira Rego,


<strong>dos</strong> 166.000 habitantes, a doença atingiu 90.658, causando4.160 <strong>mortos</strong>. Quando a epidemia foi considerada extinta, emsetem<strong>br</strong>o de 1850, foi criada uma comissão de engenheiros,para se ocupar <strong>dos</strong> melhoramentos urbanos e promover osaneamento da <strong>cidade</strong>, da mesma forma que uma junta deHigiene Pública deveria propor e executar medidas necessáriasà preservação da saúde pública <strong>na</strong> Corte e <strong>na</strong>s provincia~'~.Após esta descrição da epidemia, é importante notar aforma por que os contemporâneos explicaram o fenômeno.Segundo Jean Delumeau, por mais chocada que uma populaçãoatingida pela peste ficasse, ela procurava explicar o ataque deque era vítima. Encontrar "as causas de um mal é recriar umquadro tranquilizador, reconstituir uma coerência da qual sairálogicamente a indicação <strong>dos</strong> remédios". Dentre os tipos deexplicações formuladas no passado para dar conta das pestes,aponta<strong>dos</strong> por Jean Delumeau, ressaltam-se as <strong>dos</strong> eruditos eas que seriam ao mesmo tempo dadas pela população em gerale pela Igreja. As primeiras atribuiriam à epidemia a umacorrupção do ar, provocada fosse por fenômenos celestes(aparição de cometas, conjunção de planetas, etc.), fosse pordiferentes ema<strong>na</strong>ções pútridas, ou fosse ainda por ambos. Asoutras asseguravam que Deus, irritado com os peca<strong>dos</strong> de umapopulação inteira, decidira castigá-la, sendo convenienteapaziguá-lo através de penitência19. Ambos os argumentosforam usa<strong>dos</strong> <strong>na</strong> Corte, durante a ocorrência da fe<strong>br</strong>e amarela,de forma que é possível falar de uma justificativa científica ede uma outra religiosa.As explicações científicas, formuladas pela medici<strong>na</strong>, estavamem consonância com as teorias européias da época. Ao longo <strong>dos</strong>éculo XIX, um debate em tomo das causas das doenças eepidemias confrontava os defensores do contágio e os do nãocontágio.Até o fim do século, os não-contagionistas domi<strong>na</strong>ram ocená<strong>rio</strong> científico com sua teoria <strong>dos</strong> miasmas. Para eles, os surtosepidêmicos de doenças infecciosas seriam causa<strong>dos</strong> pelo estadoda atmosfera; condições sanitárias ruins criavam um estadoatmosférico local causador de doenças. Segundo esta teoria, asdoenças comunicáveis se origi<strong>na</strong>riam de eflúvios produzi<strong>dos</strong> pormatéria orgânica em decomposição, sendo que as epidemias se


desenvolviam quando essas ema<strong>na</strong>ções se produziam sob certascondições meteoro lógica^^^.Na Corte, os médicos, a exemplo <strong>dos</strong> europeus,também debateram a respeito das causas da epidemia. Aquestão teórica era desco<strong>br</strong>ir se a fe<strong>br</strong>e amarela teria sidofruto do contágio ou da infecção. Os defensores docontágio acreditavam que a doença poderia sertransmitida de pessoa a pessoa, através do contato físicodireto ou indireto. Os que defendiam a infecção diziamser a epidemia origi<strong>na</strong>da de causas locais, através daema<strong>na</strong>ção de eflúvios pútri<strong>dos</strong>, provenientes de matériasanimais e vegetais em decomposição. Esta posiçãodominou em relação a outra, de modo que os miasmaseram ti<strong>dos</strong> como causadores das doençascontagiosas2'.Segundo Sidney Chalhoub, foi contra esse pano defundo que os médicos e oficiais de saúde pública do Rio deJaneiro tiveram que lidar com os desafios da fe<strong>br</strong>e amarela,sendo possível perceber, inclusive, algumas tendênciasprincipais entre os que formaram a comissão central de SaúdePública. Como exemplo, tem-se o caso do dr. José PereiraRego, que buscou um meio-termo, afirmando que não erapossível diferenciar a infecção do contágio. Segundo ele,tor<strong>na</strong>va-se quase impossível fixar os limites que separavamum do outro, já que as condições preexistentes <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>não teriam por si próprias produzido a epidemia sem quealgum foco de infecção entrasse <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>22.Em que pese ao combate teórico, medidas profiláticas forampropostas para elimi<strong>na</strong>r os efeitos da epidemia. Os contagionistaspregavam como solução as medidas de quarente<strong>na</strong> para os recémchega<strong>dos</strong>e o isolamento <strong>dos</strong> doentes, através do estabelecimentode hospitais fora <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>. Os infeccionistas nãoacreditavam <strong>na</strong> eficiência dessas medidas, defendendo a limpezado espaço, com o objetivo de impedir as ema<strong>na</strong>ções rniasmáticas.Desta última tendência origi<strong>na</strong>ram-se as medidas de reforma urba<strong>na</strong>levadas a cabo em momentos subsequente^^^.As explicações religiosas coexistiram com as científicas.Segundo Anderson Oliveira, em seu estudo so<strong>br</strong>e a


eligiosidade no Rio de Janeiro, o recurso as explicaçõesso<strong>br</strong>e<strong>na</strong>turais era o que atendia aos anseios da população emgeral. Era um <strong>dos</strong> discursos com o qual ela sabia trabalhar,apesar do avanço de um discurso secularizado, aindarestrito24. Realizando profundas im<strong>br</strong>icações entre osagrado e o profano, sua religiosidade oferecia apossibilidade deresolver o conflito entre sua aspiração a existir e aso<strong>br</strong>eviver num mundo e os riscos liga<strong>dos</strong> a esse mundoem que deve realizar a sua aspiração, mediante o recursoa um nível de potência mítica ou ritual, que lhe garante,de vez em quando, a superação do conflito e, portanto, asegurança exi~tencial~~.Este tipo de explicação assegurava que Deus, irritadocom os peca<strong>dos</strong> da população, decidira puni-la. Neste caso, acausa do mal estaria <strong>na</strong> ação de um Deus encolerizado. SegundoJean Delurneau, muitas visões religiosas estabeleceram, destaforma, uma relação entre uma calamidade terrestre e a cóleradivi<strong>na</strong>. Foi assim que o editorial do periódico católico AReligião26 buscou mostrar aos fluminenses a origem daepidemia:C preciso compreender este quadro como cristão, com os olhosda fC: sabeis fluminense, o que C a fe<strong>br</strong>e amarela? E o Anjo daMorte que Deus enviou a esta <strong>cidade</strong>, C o enviado da Justiça deDeus, que pairando há dois meses so<strong>br</strong>e esta população, abaixao dedo e aponta so<strong>br</strong>e estas casas, amanhã so<strong>br</strong>e aquelas, e osseus moradores caem <strong>mortos</strong> ou feri<strong>dos</strong>.Segundo o peribdico, a cólera divi<strong>na</strong>, que podia atingirtanto pecadores como inocentes, tinha sua origem no fato de apopulação da <strong>cidade</strong> ter "desafiado a ira de Deus", ter"cometido crimes tão enormes que impediram a SantíssimaVirgem de sustar o <strong>br</strong>aço de Deus que ia ferir". To<strong>dos</strong> eram


puni<strong>dos</strong> como uma advertência de Deus a respeito de sua "mãopoderosa que é preciso temer". Os desafios cometi<strong>dos</strong> contra .a divindade seriam o egoísmo, o orgulho, a avareza e afero<strong>cidade</strong> que pareciamdomi<strong>na</strong>r cada dia, de maneira que já nem se estranham todasestas cousas que os nossos olhos estão acostuma<strong>dos</strong> a verquotidia<strong>na</strong>mente, de maneira que já se vê arrasta<strong>dos</strong> pelatorrente geral, homens at6 agora esc~pulosos e respeitadoresda justiça, irem tamb6m se deixando levar, e tomando a suaparte <strong>na</strong> violação das leis santas, divi<strong>na</strong>s e huma<strong>na</strong>s, fazendouma coisa proibida pela religião e pelas leis pátrias,desculpando-se que to<strong>dos</strong> fazem o mesmoz7.Se estes foram os fundamentos de uma explicaçãoeclesiástica, um outro tipo de justificativa religiosa, dada pelosleigos, se fez presente. Esta última também continha em si oselementos que associavam o flagelo a uma ofensano plano sagrado.Neste caso, o ofendido teria sido são Benedito que, em represália,causara a epidemia. A origem da ofensa estaria em um epi7bdioocorrido em 1849, quando o andor de são Benedito deixara defigurar <strong>na</strong> procissão das cinzas que, anualmente, percoma a<strong>cidade</strong>. Durante dois séculos o santo devoto <strong>dos</strong> negros tivera seulugar <strong>na</strong> procissão, após o de santa Isabel de Hungria. Naqueleano, no entanto, segundo o memorialista Vivaldo C~aracy*~,"alguns terceiros, mais suscetíveis às distinções de pigmentocismaram que '<strong>br</strong>anco não carrega negro <strong>na</strong>s costas, mesmo queseja santo"', e são Benedito não encontrou quem lhe levasse oandor, ficando "depositado" <strong>na</strong> sacristia. "Não tardaram,<strong>na</strong>turalmente, logo as beatas a propalar <strong>na</strong>s massas crédulas aafirmativa de que tão tremendo castigo .era indubitável efeito dacólera vingativa do santo ofendido"29.A representação deste fato <strong>na</strong>s mentes de alguns habitantesda <strong>cidade</strong> poderia ter sido reforçada diante da constatação deque, ao contrá<strong>rio</strong> das outras epidemias, os escravos'-principalmente de origem &ca<strong>na</strong> - quando atingi<strong>dos</strong> pela fe<strong>br</strong>eamarela, demonstravam maior resistência do que os livres"<strong>br</strong>ancos" <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e estrangeiros. Exemplo disso foi o fato


de que, em 1850, do total de <strong>mortos</strong> registra<strong>dos</strong> no livro deóbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento e que tiverammencio<strong>na</strong>da sua condição social, 71.3% eram livres, 8.1%forros e 20.6% escravos. Ou seja, a maioria <strong>dos</strong> que morreram<strong>na</strong>quele ano, vitima<strong>dos</strong> por fe<strong>br</strong>e amarela, era formada porhomens livres, sendo os escravos em percentagem bem menorem relação a eles.Em seu estudo so<strong>br</strong>e a vida escrava no Rio de Janeiro <strong>na</strong>primeira metade do século XIX, Mary Karasch apresentou umaestatística so<strong>br</strong>e a paróquia do Engenho Velho, <strong>na</strong> qual a fe<strong>br</strong>eamarela teve um impacto diferente entre livres e escravos. Dosindivíduos trata<strong>dos</strong> <strong>na</strong> hguesia, 448 eram de condição livre, contra293 escravos. Damaioria <strong>dos</strong> infecta<strong>dos</strong> de condição livre, 70.5%era composta por estrangeiros e, dentre os escravos, os c<strong>rio</strong>ulosforam muito mais afeta<strong>dos</strong> (44.2%) que os africanos (22.2%). Naconclusão da historiadora foi a de que os livres estrangeirostinham mais probabilidade de contágio em virtude de muitosserem provenientes de países europeus em que a fe<strong>br</strong>e amarelanão teria sido epidêmica. Ao passo que o baixo índice deafricanos poderia ser explicado pelo fato de a maioria <strong>dos</strong>cativos serem provenientes de áreas <strong>na</strong> Africa <strong>na</strong>s quais a fe<strong>br</strong>eamarela era epidêmica, tor<strong>na</strong>ndo-os, possivelmente, imunesao surto30.A maior resistência que os negros demonstravam ter quandoataca<strong>dos</strong> pela fe<strong>br</strong>e amarela foi, com efeito, bastante comentadaentre os médicos. Na sua Descrição da jè<strong>br</strong>e amarela3', acomissão central de Saúde Pública, em 28 de março, afirmavaque nos "pretos e homens de cor tem a fe<strong>br</strong>e em geral sido muitomais benig<strong>na</strong>, que não nos <strong>br</strong>ancos <strong>na</strong>sci<strong>dos</strong> no país, e noscaboclos, em que ela se apresenta quase sempre grave". Teria istosido, talvez, encarado pela população como mais um fator acomprovar que a epidemia fora uma resposta a ofensa sofridapelo santo negro?Diante de uma ofensa a divindade, pregava-se oarrependimento, ao qual boa parte da população cristã, atingidapela epidemia, esforçou-se por demonstrar3* . Desta formapronunciou-se o bispo d. Manuel do Monte33, numa circularde 12 de fevereiro:


O povo reconhece que as provas que passa nesta vida são avisosda Providência, são lições de um pai que se não esquece <strong>dos</strong>seus filhos e que para afastá-los do abismo, a que os arrastampaixões desorde<strong>na</strong>das, e fazê-los tomar ao caminho do dever eda virtude, é que os fere com algum rigor. As aflições e ossofrimentos aperfeiçoam o cristão, e comunicam-lhe virtudesque a prosperidade e a grandeza lhe não dão (...)O arrependimento passava pelo reconhecimento de que apunição enviada por Deus era pedagógica, necessária epropiciadora do aperfeiçoamento cristão. Segundo o editorialde A Religião, tal arrependimento era preciso, "para aplacar a irade Deus" e para que a epidemia cessasse de vez. Ele deveriamanifestar-se numa "reforma cristã no inte<strong>rio</strong>r de cada família,no coração do homem". Já com relação aos que acreditaramser a epidemia causada pelo agravo a imagem de são Benedito,a retratação foi buscada mediante a reintegração do santo aprocissão de cinzas em 1850, "de manto novo de veludo, comresplendor dourado" e com o andor pintado e fartamente floridode palmas e rosas. Pelos jor<strong>na</strong>is da <strong>cidade</strong>, anunciava-se,também, a venda de preces a são Benedito, o "Santo Preto,excluído da procissão de Cinzas, ao qual se atribui a peste dovomito preto que hoje nos flagela"34. Em um país onde ocatolicismo era a religião oficial do Estado,as autoridades eram o<strong>br</strong>igadas igualmente, em período deconthgio, a organizar manifestações públicas segundo o estilopróp<strong>rio</strong> da confissão roma<strong>na</strong>: todas iniciativas coletivas pelasquais uma comunidade tranquilizava-se a si mesma estendendoos <strong>br</strong>aços para o Todo-Poderoso"35.Foi com este sentido que d. Manuel do Monte, <strong>na</strong> circularmencio<strong>na</strong>da, comunicou aos párocos que sua voz., unida às das"queridas ovelhas desta Corte" deram início, no dia ante<strong>rio</strong>r, <strong>na</strong>catedd e capela imperial, às preces do ritual romano temporepestis


et mortalitatis. Convidava os párocos para que fizessem em suasigrejas, por três dias, as mesmas preces, recomendando, também, quedeveriam acrescentar às missas, "guardadas as ru<strong>br</strong>icas a respeito",a oração que começava com "Deus qui non mortem'" , da missaRecordare Domine, provitande mortalitate"", até que fossemavisa<strong>dos</strong> do contrá~io~~.Segundo Jean Delumea~~~, as procissões eram umasúplica em que "clérigos e leigos, magistra<strong>dos</strong> e simplescidadãos, religiosos e confrades de to<strong>dos</strong> os hábitos e de to<strong>dos</strong>os guiões, massa anônima <strong>dos</strong> habitantes - participam daliturgia, oram, suplicam, cantam, arrependem-se e gemem".Para chamar a atenção do Deus encolerizado, para que elevisse e ouvisse as lamentações <strong>dos</strong> suplicantes, fazia-senecessá<strong>rio</strong> o máximo de cí<strong>rio</strong>s e luzes, de lamentos <strong>dos</strong>flagelantes e de preces ininterruptas.De acordo com esta concepção de castigo divino, a retrahqãoWia também por meio da penitência e das procissões, que eramformas de demonstrar o arrependimento. Flagelantes apareciam <strong>na</strong>sprocissões propiciatórias, realizadas para implorar a clemênciadivi<strong>na</strong>3s. José Pereira Rego39 se referiu a corrida em massa dapopulação aos templos, para dirigir a Deus suas preces pelo fim doflagelo, prática que era acompanhada das procissões reali2adas aolongo das ruas da <strong>cidade</strong>.Tais procissões eram anunciadas, <strong>na</strong> Corte, pelos jor<strong>na</strong>isda época40. Em a<strong>br</strong>il, realizou-se a procissão da penitência,feita pela Irmandade do Senhor <strong>dos</strong> Passos, da qual até oimperador participou, acompanhado pelos ministros da Guerra,da Fazenda e da Justiça e <strong>dos</strong> habitantes da Corte. Dias depois,a "venerável episcopal ordem terceira de Nossa Senhora doTerço" convocou a população para "sair em procissãopenitencial, a fim de impetrar da Misericórdia Divi<strong>na</strong> acessação das fe<strong>br</strong>es" que estaria flagelando a população doimpé<strong>rio</strong> e, em particular, a da sua capital. Preces e oraçõeseram um outro recurso propiciató<strong>rio</strong>. "Jaculatórias contra a"Deus, que não [desejas] a morte". m. da A.]** "Recorda, Senhor, prevenindo a mortalidade". V. da A.]46


fe<strong>br</strong>e rei<strong>na</strong>nte", "ladainha de to<strong>dos</strong> os santos" e uma oração aoSenhor <strong>dos</strong> Passos eram vendidas pela <strong>cidade</strong>. Num anúnciode 8 de março, no Jor<strong>na</strong>l do Commercio4', dizia-se que, emPortugal, se notara que o contágio não havia entrado <strong>na</strong>s casasem cujas portas houvessem sido postas e não contami<strong>na</strong>ra aspessoas que as haviam levado consigo.To<strong>dos</strong> estes atos eram vistos como caminhos para seelimi<strong>na</strong>r o mal epidêmico. Neles, a idéia do desagravopredomi<strong>na</strong>va. Segundo Anderson Oliveira, o "ato do desagravorecolocava a majestade divi<strong>na</strong> no seu devido lugar e, da mesmaforma, recompunha a humildade huma<strong>na</strong> diante destamaje~tade"~~. O que estava implícito nessas explicaçõesreligiosas da epidemia era a que<strong>br</strong>a de um pacto entre os homense a divindade; as atitudes deveriam portanto ser tomadas nosentido de restabelecer este pacto.As representações e as atitudes diante da epidemia defe<strong>br</strong>e amarela de 1849-1850 apontam para uma situação emque, neste momento do século XIX, ainda era possível aconvivência entre as duas explicações, a religiosa e a científica.Ao mesmo tempo que a população buscava, com o recurso aosagrado, fazer frente as ameaças da epidemia - no que até oimperador, numa atitude simbólica, tomava parte - adotavatambém os procedimentos médicos. Em que pese às explicaçõespara o que ocorria, o fato é que a epidemia causou medo epropiciou a efetivação de medidas de salu<strong>br</strong>idade, reclamadashá muito tempo pelas autoridades médicas. A influênciadaquelas medidas so<strong>br</strong>e algumas práticas e costumes adota<strong>dos</strong><strong>na</strong> Corte foi inegável. Foi o que aconteceu, em particular, comas práticas de sepultamento.


NOTAS' ASSIS, Machado de. Memóriaspóstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro:Ediouro, sld. (Coleção Prestígio) pp. 1 17- 1 18.REGO, Jose Pereira. História e descrição da fe<strong>br</strong>e amarela epidémicaque grassou no Rio de Janeiro em 1850. Rio de Janeiro: Typ. Franciscode Paula Brito, 185 1. p.11. O dr. Jose Pereira Rego (1 8 16-1 892), comomedico, teve importante atuação política no ImpC<strong>rio</strong>. Alem de ter sidopresidente da Academia Imperial de Medici<strong>na</strong> e da Junta Central deHigiene míblica, foi conselheiro do imperador, mem<strong>br</strong>o do ConselhoFiscal do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura e medico daCâmara Imperial. A penetração junto ao aparelho <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mental e oacesso que teve aos documentos oficiais o fizeram escrever so<strong>br</strong>e odesenvolvimento das epidemias, tanto no Rio de Janeiro como em outrasprovíncias <strong>br</strong>asileiras, apresentando sempre as fontes utilizadas. Porisso, suas o<strong>br</strong>as possuem grande valor para quem se dedica ao estudodas epidemias no Rio de Janeiro, no sCculo XIX.' REGO, José Pereira. op.cit., e, do mesmo autor, Esboço históricodas epidemias que tém grassado <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro desde1830 a 1870. Rio de Janeiro: Typ. Nacio<strong>na</strong>l, 1872; BENCHIMOL,Jaime Lany. Pereira Passos: um Haussmanm tropical. A renovaçãourba<strong>na</strong> da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro no início do século XY. Rio deJaneiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p.113; ARAUJO, dr.Carlos da Silva. Fatos e perso<strong>na</strong>gens da história da medici<strong>na</strong> e dafarmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Revista Continente Editorial Ltda,1979; MACHADO, Roberto (et al.) Da<strong>na</strong>ção da norma: a medici<strong>na</strong>social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal,1978; dentre outros.4ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urba<strong>na</strong> do Rio de Janeiro. Rio deJaneiro, IPLANRIO/ZAHAR, 1987. p.35.Idem, p.37 e BENCHIMOL, Jaime Lany. op.cit., p.25.i ABREU, Maurício de Almeida. A evolução, pp.37-42.Idem; BENCHIMOL, Jaime Lany. op.cit, p. 1 13.A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 25/6/1850, discurso de Limpo de A<strong>br</strong>eu.vol. 4, p.365.


'O REGO, José Pereira. História e descrição ... pp.6-7.'I Idem. p.5l2 DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente, 13001850. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 1 17-1 18.l3 Idem. p. 1 18.l4REGO, José Pereira. História e descrição ... pp.7-10 e Esboçohistórico.. . p.55.l5 REGO, José Pereira. História e descrição ... p.12; BENCHIMOL,Jayme Lany. op.cit., p.114.AGCRJ - Portaria do ministro do impé<strong>rio</strong>, visconde de Monte Alegre,remetendo à Câmara as instruçõesparaprevenir e atalhar oprogressoda fe<strong>br</strong>e amarela. Rio de Janeiro: 141211 850.l6MACHADO, Roberto. op.cit, pp.244-245.I' LALLEMANT, Roberto. Observações acerca da epidemia de fè<strong>br</strong>eamarela no ano de 1850 no Rio de Janeiro: colhidas nos hospitaise <strong>na</strong> policlínica. Rio de Janeiro: Typ. de J. Villeneuve & Comp., 185 1Apud ARAUJO, Dr. Carlos da Silva. op.cit, p.258.l8 REGO, José Pereira. Esboço histórico ... pp.58-59.l9 DELUMEAU, Jean. op.cit, p. 138.20 ROSEN, George. uma história da saúde pública. São Paulo/Rio deJaneiro: Hucitec: Associação Brasileira de Pós-Graduação em SaúdeColetiva, 1994. pp.215-220; DELUMEAU, Jean. op.cit, p. 139; WOLF,Philippe. Outono da Idade Média ou primavera <strong>dos</strong> tempos modernos?São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 19.2' CHALHOUB, Sidney. Thepolitics of desease control: yellow fever andrace in nineteenth-century. Rio de Janeiro: Brazil. UNICAMP, mimeo,1992. pp.3-4.22 Idem. p.5 e REGO, José Pereira. História e descrição ... pp.50-69.23 CHALHOUB, Sidney. op.cit, p.4; ROSEN, George. op.cit, 1.1.215.24 OLIVEIRA, Anderson J. Machado de. A devoção do senhordesagravado.' Irmandades e devoções tradicio<strong>na</strong>is no Rio de Janeiro-séculoXLY. Niterói, mimeo, 1993. p.20


*' DI NOLA, Alfonso. SagradoIProfano in: EINAUDI (Mythos/Logos -Sagrado/Profano). Lisboa, ImprensaNacio<strong>na</strong>l, 1987. vo1.2. p.148.26 DELUMEAU, Jean. op.cit., pp.138 e 140-144;BN -A fe<strong>br</strong>eAmarela in: A Religião, n0.2 1 e 22,15/4/1850. v01 11. p.16 1.Este e o próximo artigo deste periódico católico - cuja circulação, <strong>na</strong>Corte, se deu entre junho de 1848 e novem<strong>br</strong>o de 1850 - me foramcedi<strong>dos</strong> por Anderson J. Machado de Oliveira, a quem agradeço agentileza.27 BN -A fe<strong>br</strong>e amarela. op.cit., pp. 161 e 165.28 COARACY, Vivaldo. Memórias da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro. Rio deJaneiro:Jose Olympio, 1965. p.323.29 Idem, p.323.KARASCH, Mary. Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton:Princeton University Press, 1987. pp. 158-1 59." BN - Descrição da fe<strong>br</strong>e amarela que no ano de 1850 reinouepidemicamente <strong>na</strong> capital do Impé<strong>rio</strong>, pela Comissão Central de SaúdePública, 281511 850.l2 DELUMEAU, Jean. op.cit., p.146.BN - Circular de S. Ex. R ~ V o sr. . bispo ~ ~ conde de Irajá, aos párocos in:A Religião, no 19,1/3/1850. vol. I1 p.115.l4 Idem; RENAULT, Delso. Indústria, escravidão, sociedade: umapesquisahisto<strong>rio</strong>gráfica do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro/Civilização Brasileira; Brasilim, 1976. p. 139." DELUMEAU, Jean. op.cit., p. 147.l6 BN - Circular de S. Ex. Rev. ma o sr. bispo conde de Irajá, aos párocospp. 1 15-1 16. No ritual romano, aparecem preces para as mais variadassituações e necessidades <strong>dos</strong> homens. Em "tempo de peste emortalidade" (tempore pestis et mortalitatis), eram prescritas oraçõesespecificas do ritual. Na sua circular, d. Manuel do Monte orde<strong>na</strong>vaessas preces por três dias consecutivos, o que nos faz lem<strong>br</strong>ar os trêsdias das Rogações que, surgidas por ocasião de uma calamidade, nosCculo V, em Vienne, <strong>na</strong> França, passaram, poste<strong>rio</strong>rmente, a incluir ocalendá<strong>rio</strong> romano: neste, as Rogações antecedem a solenidade daAscensão. AlCm disso, o bispo prescreviaque se acrescentasse umaoração às missas diárias, tirada da Recordare Domini, missa votiva


prescrita no missal romano para tempo de peste e mortalidade. Entendesepor missa votiva determi<strong>na</strong>da missa com texto pr6p<strong>rio</strong> para ocasii3esou intençaes particulares. No caso em questão, a missa votiva C citadapelas primeiras palavras do seu Intr6ito ("Recordai-vos, Senhor, deVossa Aliança e dizei ao Anjo extermi<strong>na</strong>dor: pára com teu <strong>br</strong>aço; não sedesole a terra, e não extermines a vida"). Nessa missa a oração escolhidacomeçava com Deus qui non moriem ('Deus, V6s que não desejais amorte, mas a penitência <strong>dos</strong> pecadores, olhai benigno o povo que paraV6s se volta; e já que sempre Vos foi fiel afastai dele os flagelos daVossa ira"). Cf. LEFEBVRE, don Gaspar. Missal quotidiano,e vesperal.Bruges: DesclCe de Brouwer, 1960. pp. 17 16- 17 17." DELUMEAU, Jean. op.cit, pp. 145- 146.3B COARACY, Vivaldo. op.cit., p.332.39 REGO, Jose Pereira. Esboço hisr0rico.. p.54.40 RENAULT, Delso. O Rio de Janeiro: a vida da <strong>cidade</strong> rejletida nosjor<strong>na</strong>is: 1850-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;Brasília:iNL, 1978. p.54.41 Idem.42 OLIVEIRA, Anderson J. Machado de. op.cit., p. 15.


O MEDO DA CONTAMINAÇÃOPELOS MORTOS E O FIMDOS SEPULTAMENTOS NAS IGREJASO impacto que a epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela teve so<strong>br</strong>eos indivíduos foi grande. Pode ser constatado <strong>na</strong> passagemcitada do romance machadiano, <strong>na</strong> alusão feita pelo médicoPereira Rego so<strong>br</strong>e a <strong>cidade</strong> ter-se transformado em um cená<strong>rio</strong>de dor e sofrimento e <strong>na</strong>s cerimônias religiosas realizadas pelapopulação em prol da extinção do flagelo. Este impacto, queprovocou o medo entre os <strong>vivos</strong>, projetou-se no temor destesem relação aos seus <strong>mortos</strong>, <strong>na</strong> medida em que difundiu aconcepção de que as sepulturas e seus cadáveres eram focosde contami<strong>na</strong>ção. Ora, há séculos, os sepultamentos eramrealiza<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s igrejas ou ao seu redor, sem que a maioria <strong>dos</strong>indivíduos se incomodasse com esta prática, que era adotadapor grande parte da população da Corte, no século XIX. Aepidemia trouxe modificações neste quadro. O medo docontágio e da morte faria com que a familiaridade entre <strong>vivos</strong>e <strong>mortos</strong> fosse questio<strong>na</strong>da, abalada, pelas concepções médicasque então se impunham. Segundo Jean Delumeaul, o pânicocoletivo que uma epidemia causava <strong>na</strong> população levava-a arepudiar os cadáveres, considera<strong>dos</strong> contami<strong>na</strong>dores.A epidemia não foi a única protagonista dodesenvolvimento do medo aos <strong>mortos</strong>. Seu aparecimento, em1850, ape<strong>na</strong>s serviu como elemento catalisador de um processomais amplo, que vinha sendo gestado <strong>na</strong> primeira metade <strong>dos</strong>éculo XIX, <strong>na</strong> Corte, e que pode ser identificado através <strong>dos</strong>


seguintes fatores: a) o desenvolvimento, a partir da década de1830, de um saber médico que, empenhado <strong>na</strong> prevenção dedoenças, recomendava a implantação de medidas higiênicasrigorosas para os mais varia<strong>dos</strong> espaços da <strong>cidade</strong>, apontando,dentre elas, a necessidade de transferir as sepulturas para longe<strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>; b) a presença de uma imprensa,inexistente até 1808, mas cada vez mais atuante <strong>na</strong>dissemi<strong>na</strong>ção de informações, antes i<strong>na</strong>cessíveis ao grandepúblico, viabilizando a formação de opiniões maishomogêneas, como as referentes as discussões médicas so<strong>br</strong>eos efeitos <strong>dos</strong> enterramentos intra-muros; c) a emergência dopoder público, empenhado <strong>na</strong> adoção de medidas desalu<strong>br</strong>idade, com fins de empreender seu projeto deurbanização. Tais fatores caminharam paralelamente eestiveram interliga<strong>dos</strong>. As epidemias sempre existiram <strong>na</strong><strong>cidade</strong>, fazendo suas vítimas; entretanto, a fe<strong>br</strong>e amarela - atéentão desconhecida - <strong>na</strong>s proporções que atingiu a Corte, comseu alto índice de mortalidade, foi, ao mesmo tempo, causa eestímulo para a implementação das concepções mCdicas que,até então, no que se referia a separação entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>,não haviam sido efetivamente postas em prática. Vejamos, emsuas linhas básicas, o desenvolvimento destes elementos.O Estado imperial e a medicalização da sociedadeSegundo Ilmar de Mattos, o momento da Maioridade ded.Pedro I1 possibilitou a recunhagem da moeda colonial2. Nolado da "cara", o Reino cedeu lugar as <strong>na</strong>ções consideradascivilizadas, particularmente as que foram o cená<strong>rio</strong> dasrevoluções burguesas, como França e Inglaterra; <strong>na</strong> outra face,a Coroa se impôs3. A partir do momento em que a direção"saq~arema"~ consolidou suas posições no "mundo do<strong>gov</strong>erno", em mea<strong>dos</strong> do século XIX, uma série de medidasforam postas em prática como parte de um programa, cujos


objetivos eram difundir, no universo <strong>dos</strong> homens livres, osideais de "civilização".Nesta fase, o tema da civilização foi privilegiado,ocorrendo, com isso, um certo esvaziamento da pasta daJustiça, em proveito das pastas do Impé<strong>rio</strong> e da Agricultura.Segundo Ilmar de Mattoss :Caracterizando o novo equilíb<strong>rio</strong> de forças, h Secretaria deEstado <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> competia conhecer a populaçãodo Impé<strong>rio</strong>, por meio da organização do registro civil, darealização de recenseamentos e da regulamentação <strong>dos</strong> direitoscivis e políticos <strong>dos</strong> estrangeiros; cuidar <strong>dos</strong> assuntos referentesh saúde pública e ao controle sanitá<strong>rio</strong>; organizar o ensinoprimA<strong>rio</strong> <strong>na</strong> Corte e o supe<strong>rio</strong>r.em todo o Impé<strong>rio</strong>, além do ensinode cunho profissio<strong>na</strong>l; estabelecer regulamentos para asdiferentes profissões, com exceção da magistratura; administraros hospitais e regulamentar as habitações urba<strong>na</strong>s (cortiços);supervisio<strong>na</strong>r os templos de culto não catblicos; regulamentaras eleiçaes e supervisio<strong>na</strong>r os presidentes de províncias - entreinúmeras outras atribuições.A Coroa exercia, assim, as atribuições de olhar pelosinteresses da sociedade, um olhar que era entendido como oexercício de uma vigilância, que pressupunha centralização,domi<strong>na</strong>ção e direção6. A cada passo o elemento particular e o<strong>gov</strong>erno foram postos em contato através da construção deprédios públicos, realização de melhoramentos materiais,levantamento de da<strong>dos</strong> e confecção de mapas, do exercício devigilância e controle; contato que marcou a etapa deconstituição da administração pública como agente daqentralização que, segundo Ilmar de Mattos, se tomou peçaimportante no jogo de construção do Estado imperial e da classesenhbyiai. Não ape<strong>na</strong>s os "emprega<strong>dos</strong> públicos" tomaram-seos agenles da administração pública, mas, também, um vastosegmento que compreendia:presidentes de provincias e chefes da legião da GuardaNacio<strong>na</strong>l; bispos e juizes municipais, de paz e de órfaos;


mem<strong>br</strong>os das Relaç6es e redatores de jor<strong>na</strong>is locais;emprega<strong>dos</strong> das faculdades de Medici<strong>na</strong>, <strong>dos</strong> cursos jurídicose academias e juízes de Direito; comandantes supe<strong>rio</strong>res daGuarda Nacio<strong>na</strong>l, párocos e mtdicos; chefes de polícia eprofessores - to<strong>dos</strong> esses e alguns mais, em graus varia<strong>dos</strong> eem direções diversas, nos níveis local, municipal, provincialOU geral7.Nesta perspectiva, um conjunto de leis, decretos,regulamentos, avisos, regimentos marcaram a ampliação <strong>dos</strong>poderes do Estado, construindo o primeiro pilar que tomoupossíveis as futuras transformações, <strong>na</strong> Corte, das práticas desepultamento. Medidas de policia médica e sanitária foramtomadas, de forma a viabilizar aqueles objetivos. Dentre elas,o decreto no 583, de 5 de setem<strong>br</strong>o de 1850, que mandouexecutar a resolução legislativa, autorizando o <strong>gov</strong>erno adetermi<strong>na</strong>r o número e localidades <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicosque convinha estabelecer nos subúrbios do Rio de Janeiro e odecreto no 598, de 14 de setem<strong>br</strong>o de 1850, concedendo aoministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong> um crédito extraordiná<strong>rio</strong> de200:000$000 para empreender trabalhos de melhoramentossanitá<strong>rio</strong>s da capital e de outras povoações do Impé<strong>rio</strong>8.O século XIX também marcou, para o Brasil, o início deuma transformação no âmbito da medici<strong>na</strong>. Por um lado, elapenetrou <strong>na</strong> sociedade, incorporando o urbano como alvo dereflexão da prática médica. Por outro, passou a ser encaradacomo apoio científico indispensável ao exercício do poder doEstado. O objeto da medici<strong>na</strong> deslocou-se da doença para asaúde. O novo projeto médico procurou impedir oaparecimento da doença, lutando no nível de suas causas. N5ose aceitava mais a ação direta so<strong>br</strong>e a doença, ape<strong>na</strong>s, buscavaseatuar so<strong>br</strong>e os componentes <strong>na</strong>turais, urbanísticos einstitucio<strong>na</strong>is, de modo preventivo. O médico tomava-se assim,um cientista social que,integrando à sua l6gica a estatística, a geografia, a demografia, atopografia, a hist<strong>br</strong>ia, toma-se planejador urbano: as grandestransformações da <strong>cidade</strong> estiveram, a partir de então, ligadas à


questlo da saúde; toma-se, enfim, a<strong>na</strong>lista de instituiçõesgEsta medici<strong>na</strong>, que se impôs durante a primeira metadedo século XIX, penetrou no aparelho estatal com um novo tipode racio<strong>na</strong>lidade que era assumida pela nova configuração deEstado que emergialo :Quando o Estado se propõe a assumir a organizaçlo positiva<strong>dos</strong> habitantes produzindo suas condições de vida, quandoestabelece as possibilidades de um controle politico individualou coletivo que se exerça de forma contínua, a medici<strong>na</strong> neleesta presente como condição de possibilidade de umanormalizaçlo da sociedade no que diz respeito à saúde, quenão C uma questão isolada, um aspecto restrito, mas implicaem uma consideraçlo global do social.A saúde pública e a defesa'da ciência médica foram osdois objetivos estabeleci<strong>dos</strong> pela Sociedade de Medici<strong>na</strong>l1,como parte de seu projeto de realização de uma medici<strong>na</strong> social.No que tange a higiene pública, a luta por uma medici<strong>na</strong> socialsignificou, entre outras coisas, uma luta pela criação oureformulação <strong>dos</strong> regulamentos sanitá<strong>rio</strong>s, pelo controle desua aplicação por médicos, por mudança nos costumes, pelaintervenção nos hospitais, prisões e outros lugares públicos,pelo estudo de epidemias, endemias e doenças contagiosas.Em 1830, a Sociédade de Medici<strong>na</strong>, através da suacomissão de Salu<strong>br</strong>idade Geral, apresentou um relató<strong>rio</strong>,focalizando o problema da higiene e medici<strong>na</strong> legal e queabordou, inclusive, a conde<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> sepultamentos dentrodas igrejas. Este documento funcionou como um programa dehigiene pública, que obteve a participação do corpo médico12e que objetivava a criação de uma legislação que expressasseseu projeto de medici<strong>na</strong> social.Sob influência desta associação médica, a Câmaramunicipal do Rio de Janeiro redigiu nesse mesmo ano umcódigo de posturas, promulgado somente em 1832, queestabelecia uma legislação sanitária municipal, englobando em seu


aio de ação, como focos de "desordem" do espaço urbano aserem transforma<strong>dos</strong>, dentre outros, os cemité<strong>rio</strong>s e os enterros13 .O espaço urbano passou a ser esquadrinhado, a medici<strong>na</strong> passoua projetar e a executar a construção de espaços específicos quetinham por fmalidade um caráter social. Instituições como hospitais,cemité<strong>rio</strong>s, prisões e hospícios, vistos como htos do crescimentodas <strong>cidade</strong>s e, portanto, indispensáveis ao seu funcio<strong>na</strong>mento,serviam, segundo os médicos, de focos de doenças, representandoum perigo para o todo urbano. Não podiam e nem deviam serabolidas, devendo, porém, ser expulsas do centro da <strong>cidade</strong>, jáque suas localizações não obedeciam aos crité<strong>rio</strong>s de salu<strong>br</strong>idade.Eram infectadas ao contato com os locais onde estavam instaladas,e as exalações e miasmas que geravam em seus espaços fecha<strong>dos</strong>,por sua vez, as infectavam, assim como a toda a <strong>cidade</strong>,constituindo-se em focos de epidemia e contágiosI4 .Segundo as teorias da medici<strong>na</strong> social, difundidas <strong>na</strong>época, a "desordem urba<strong>na</strong>" era a responsável pela degeneraçãoda saúde "moral" e fisica da população. Duas foram as causaselencadas para-a degeneração da saúde: uma, <strong>na</strong>tural, ligadaàs peculiaridades ge~gr~casdo Rio de Janeiro; a outra, quenos interessa, social, relacio<strong>na</strong>da ao funcio<strong>na</strong>mento geral da<strong>cidade</strong> e de suas instituições. Em seus trabalhos, os aspectosurbanísticos, como as habitações coletivas, a "imundície" dasruas, a falta de higiene nos matadouros, açougues, armazéns,hospitais, fá<strong>br</strong>icas, prisões, igrejas e cemité<strong>rio</strong>s eram alvo dassuas críticas. Os cemité<strong>rio</strong>s eram, para eles, malcuida<strong>dos</strong>, comsuas valas rasas, que pouco escondiam da vora<strong>cidade</strong> de animaisos corpos putrefatos. As igrejas, localizadas no Centro da <strong>cidade</strong>,serviam de a<strong>br</strong>igo aos <strong>mortos</strong>, em suas covas inter<strong>na</strong>s, impreg<strong>na</strong>ndoo ambiente mal ilumi<strong>na</strong>do e sem ventilação <strong>dos</strong> odores mortíferos<strong>dos</strong> cadáveresI5.Propostas de remodelação da <strong>cidade</strong> foram aventadas.Segundo Ben~himol~~, deveria ser submetidaa um plano geral de funcio<strong>na</strong>mento e evolução: expansão urba<strong>na</strong>por bairros considera<strong>dos</strong> mais salu<strong>br</strong>es para desafogar o Centro;imposição de normas para a construção de casas higiênicas;alargamento e abertura de ruas e praças; arborização; instalaçãode uma rede de esgotos e água; manutençao do asseio em


merca<strong>dos</strong> e matadouros; criaç8o de lugares próp<strong>rio</strong>s paradespejos.Nele também seria prevista a proibição de enterros dentrodas igrejas e a criação de cemité<strong>rio</strong>s longe <strong>dos</strong> centros.O discurso médico e a normalização <strong>dos</strong> costumes fúne<strong>br</strong>es<strong>na</strong> CorteOs cadáveres, os sepultamentos e os cemité<strong>rio</strong>sforam alguns <strong>dos</strong> alvos da medici<strong>na</strong> social. Os cemité<strong>rio</strong>sexistentes, encara<strong>dos</strong> como insalu<strong>br</strong>es, sofreram a criticamédica, que propunha um projeto de cemité<strong>rio</strong>"orde<strong>na</strong>do" e "moralizante", visando a neutralização <strong>dos</strong>efeitos mórbi<strong>dos</strong> causa<strong>dos</strong> pelos cadáveres. Buscou-seuma nova localização e organiza'ção inter<strong>na</strong>. Pedia-sè ofim <strong>dos</strong> enterros em seus locais tradicio<strong>na</strong>is e a criaçãode cemité<strong>rio</strong>s afasta<strong>dos</strong> da <strong>cidade</strong>. Além de situá-losextramuros, procurar-se-ia um local onde determi<strong>na</strong>dasexigências deveriam ser respondidas, como, por exemplo,a altitude do terreno, a composição de seu solo e suavegetação. Acreditava-se que, mal conserva<strong>dos</strong> e malsepulta<strong>dos</strong>, os cadáveres em putrefação produziameflúvios miasmáticos, responsáveis pela poluição do are do meio em que estivessem implanta<strong>dos</strong>. Os miasmas,segundo estas concepções, favoreciam e estimulavam oaparecimento de doenças e epidemias. Várias tesesmédicas foram escritas so<strong>br</strong>e o tema. Já antes da epidemiade fe<strong>br</strong>e amarela, os médicos aludiam ao perigo dassepulturas no inte<strong>rio</strong>r das igrejas e dentro <strong>dos</strong> limites da<strong>cidade</strong>. A epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela tornou mais exigente econtundente este discurso".Em 14 de fevereiro de 1850, o dr. José Maria de NoronhaFeital, mem<strong>br</strong>o da Academia de Medici<strong>na</strong>, escreveu um artigo a


espeito das medidas para prevenção contra a fe<strong>br</strong>e amarela.Publicado inicialmente em um periódico médico, foi divulgadopara um público mais vasto, através de uma memória1*.Certamente foi deste escrito que o Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong>retirou as determi<strong>na</strong>ções que, coincidentemente, no mesmodia 14 de fevereiro, enviou a Câmara municipal paraserem tomadas. Lendo os dois textos, a portaria imperiale o artigo do médico, percebe-se, inclusive, redaçãosemelhante até <strong>na</strong> ordem em que aparecem mencio<strong>na</strong>dasdetermi<strong>na</strong>das medidas.Deter-me-ei aqui <strong>na</strong>quelas a respeito da prevençãocontra o perigo das sepulturas dentro das igrejas,juntamente com as que se referiam a outros costumestradicio<strong>na</strong>is com relação aos <strong>mortos</strong>. Segundo o dr. Feital,os do<strong>br</strong>es <strong>dos</strong> sinos, o aparato processio<strong>na</strong>l do viático eos enterros com grande pompa eram causas que induziamo doente a pensar <strong>na</strong> moléstia e <strong>na</strong> morte, não devendo,por isso, ser permiti<strong>dos</strong>. Quanto aos sepultamentospropriamente ditos, afirmou que não se deviatolerar que os enterros se façam nos corpos das igrejas; e quantoantes se estabelecerão lugares sagra<strong>dos</strong> para as sepulturas[grfo meu] necessárias à quantidade de corpos que recebem.Os cadáveres serão encomenda<strong>dos</strong> em casa, cobertos de umacamada de cal, e encerra<strong>dos</strong> em caix6es inteiros de madeiraperfeitamente uni<strong>dos</strong> e fecha<strong>dos</strong>. S6 assim se evitar8 respirarsemiasmas que sempre prejudicam, e que aumentem arepugnância que se tem aos <strong>mortos</strong>.As armações dentro e fora das casas poderiam dar origema graves males, pois elas se impreg<strong>na</strong>vam das exalaçõescadavéricas, podendo ser transportadas de uma para outra casa.Por isso, deveriam ser proibidas e para sempre banidas, bemcomo os caixões de grades, cobertos de veludo ou pano, quedeixavam transpirar as exalações <strong>dos</strong> cadáveres. Igualmentecriticado era o hábito de se fecharem as janelas e as portas dascasas em que se encontrava um cadáver, algumas vezes em


adiantado estado de putrefação. Tais costumes eram, para ele, umsacrificio para os <strong>vivos</strong> e uma "mísera" prática em <strong>na</strong>da útil aomorto, si<strong>na</strong>l de "barbaridade".O texto, em síntese, referiu-se a uma série decomportamentos, considera<strong>dos</strong> i<strong>na</strong>dequa<strong>dos</strong> diante <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>.Comportamentos que, face a epidemia, poderiam agravar oestado do doente, induzindo-o a pensar <strong>na</strong> morte, como obarulho provocado pelos excessivos do<strong>br</strong>es <strong>dos</strong> sinos, pelasprocissões que levavam os últimos sacramentos ao moribundoe pelo cortejo do fimeral. A vigilância auditiva, segundo JoãoJosé Reistg, tomara-se lema da campanha médica no combateao que eles chamavam de maus costumes, presentes <strong>na</strong>mentalidade fimerária da população. Em Salvador, os médicostambém se insurgiram contra os fimerais rui<strong>dos</strong>os, provoca<strong>dos</strong>,principalmente, pelo do<strong>br</strong>e <strong>dos</strong> sinos que, segundo eles,amedrontavam e deprimiam tanto o são como o doente. Amedici<strong>na</strong> de outrora considerava que o abatimento moral e omedo predispunham o indivíduo a receber o contágio. Ape<strong>na</strong>so ar corrompido não provocaria, por si só, o contágio, que sedaria se a ele fosse combi<strong>na</strong>do o "fermento do pavorf120.Em 1843, <strong>na</strong> sessão da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, que discutiaso<strong>br</strong>e o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro: odeputado e padre He~que de Resende, fez alusão aos prejuízos <strong>dos</strong>do<strong>br</strong>es <strong>dos</strong> sinos, diante da epidemia de escarlati<strong>na</strong>:O terror que pesa hoje so<strong>br</strong>e o Rio de Janeiro (diz o orador) nãopode ser oculto a ninguCm, e esse terror C muito bem fundado:alguma exageração tem havido da parte da população, mas estaexageração mesmo tem seu fundamento. Ontem foi enterrado odr. Amaral; ouvi alguns facultativos dizerem que o seu mal nãoera desesperado, que os sintomas da moldstia não anunciavam amorte; mas que concorreu para isto a indiscrição de um amigoque ihe foi dizer - a escarlati<strong>na</strong> está matando muita gente, vocêolhe para si. - Os sinos tambCm fazem bem mal; seus sonsmelancólicos vão levar ti cabeceira do doente a noticia aterradorade que estão morrendo muitas pessoas de escarlati<strong>na</strong> e da fe<strong>br</strong>eperniciosa. Seria muito para desejar que policialmente semandassem arrancar os badalos destes sinos (Apoia<strong>dos</strong>)".Além da vigilância auditiva, a medici<strong>na</strong> também preconizavauma nova sensibilidade olfativa. O dr. Feita1 recomendava a


necessidade de se fecharem perfeitamente os caixões, de se evitara permanência do cadáver tanto em casa como <strong>na</strong> igreja e de semanter a casa bem arejada, tendo em vista ocultar <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> ocheiro <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. O mesmo procedimento era prescrito emSalvador. Segundo João José ReisZZ, os médicos "ensi<strong>na</strong>vam avigiar o cheiro da morte, a temê-lo e inclusive a não disfarçá-lo,por exemplo, com aromas de incensos". Eles insistiam <strong>na</strong>"adjetivação negativa do cheiro cadavérico", que deveria serconsiderado "insuportável, desagradável, pernicioso, insultante,repug<strong>na</strong>nte, ingrato, atormentador, mau". Por trás desta vigilânciaestava a convicção de que o cheiro cadavérico denunciava aimpureza do ar. Mais adiante, veremos a forma como algunsmoradores da Corte lidaram com esta questão.Se, a primeira vista, se percebe no texto do dr. Feita1 apresença de uma concepção médica que pretendia transformaras atitudes costumeiras diante da morte, em uma determi<strong>na</strong>dapassagem aflora a idéia da sacralidade das sepulturas,evidenciando que, apesar de seu discurso secularizante, quantoa alguns <strong>dos</strong> costumes füne<strong>br</strong>es, fica patente a manutenção deuma referência cristã: os lugares <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, ainda que deven<strong>dos</strong>er removi<strong>dos</strong> da vizinhança <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, deveriam manter-secomo sagra<strong>dos</strong>. Por mais que um novo discurso su<strong>rj</strong>a, aspessoas não se desfazem, de uma hora para outra, das antigasidéias.'Neste caso era possível conciliar o higiênico com oreligioso,Esta contradição pode também ser percebida no discursode um outro médico. Em suas Observações acerca da epidemiade fe<strong>br</strong>e amarelaZ3, o dr. Roberto Lallemant, que haviadescoberto os primeiros casos da doença <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, fornecendoa sua impressão so<strong>br</strong>e a propagação da epidemia, em umdetermi<strong>na</strong>do momento diz que as "casas em que havia ummorto já não se co<strong>br</strong>iam de luto; os fúne<strong>br</strong>es sinos já nãoacompanhavam o enterramento do cristão7'( ...)"tudo se proibia,só a morte não era proibida" .Neste trecho, podem ser identificadas algumascontradições. A primeira, uma insatisfação diante das modificaçksnos costumes funerá<strong>rio</strong>s: a imposição do silêncio <strong>dos</strong> sinos e aproibição das manifestações de luto, em função das próprias idéias


médicas que ele defendia. A segunda, associada a primeira,manifestava-se <strong>na</strong> insatisfação de o médico estar vivendo em umtempo de interdições, em que "tudo se proibia". Ora, todas estasproibições decorriam <strong>dos</strong> procedimentos prescritos pelo mesmogrupo médico a que pertencia Lallemant.Desta forma, certas contradições verificadas nos argumentos<strong>dos</strong> médicos Lallemant e Feita1 representam o conflito vivido porhomens que, se por um lado demonstravam pertencer ao mundodas idéias científicas, por outro apresentavam, no nível pessoal,uma certa relutância em privar-se de seus costumes religiosos/tradicio<strong>na</strong>is que, apesar de todas as inovações mentais, tinhamgrande representatividade, até mesmo junto aos que defendiam asnovas idéias de higiene e de medici<strong>na</strong>. Tais contradições fizeramparte daquele momento em que o velho convivia com o novo, emque concepções novas a respeito <strong>dos</strong> funerais e, por que não, damorte, emergiam ao mesmo tempo que as antigas permaneciam.Em suas análi'ses so<strong>br</strong>e os perío<strong>dos</strong> de peste <strong>na</strong> Europa,Jean Delumea~~~ mencio<strong>na</strong> o constrangimento <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> porse verem priva<strong>dos</strong> de determi<strong>na</strong><strong>dos</strong> ritos que coincidiam emalguns pontos com as impressões <strong>dos</strong> médicos do Rio de Janeiroe, provavelmente, de grande parte da população da Corte:Para os <strong>vivos</strong>, t u'ma tragtdia o abandono <strong>dos</strong> ritos apaziguadoresque em tempo non<strong>na</strong>l acompanham a partida deste mundo. Quandoa morte t a esse ponto desmascarada, "indecente", descarrilada,a esse ponto coletiva, anônima e repulsiva, uma população inteiracorre o risco do desespero ou da loucura, sendo subitamenteprivada das liturgias seculares que att ali lhe conferiam <strong>na</strong>sprovaçbes dignidade, segurança e identidade. Dai a alegria <strong>dos</strong>marselheses quando, no fi<strong>na</strong>l da epidemia de 1720, viramnovamente carros fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong>s ruas. Era o si<strong>na</strong>l seguro de que ocontágio deixava a <strong>cidade</strong> e de que se retomavam os hábitos e ascerimônias tranqtiilizadoras <strong>dos</strong> tempos comuns.Medidas proibitivas faziam parte da policia médica levada acabo com a epidemia, como já foi visto. O regulamento sanitá<strong>rio</strong> de 4de março representou uma invasão pública nos costumes da população,intervindo, também, <strong>na</strong>s práticas relacio<strong>na</strong>das aos rituais fúne<strong>br</strong>es.~rescrevendo a proibição das encomendações e <strong>dos</strong> sepultamentos<strong>dos</strong> cadáveres no inte<strong>rio</strong>r das igrejas, a proibição <strong>dos</strong> do<strong>br</strong>es <strong>dos</strong>


sinos e das armações das casas e das igrejas para os veló<strong>rio</strong>srepresentou o amálgama das idéias médicas e da portaria imperial de14 de fevereiro. Até os que viviam em fùnção damorte foram atingi<strong>dos</strong>pela som<strong>br</strong>a normaiizadora do poder público. Diante do "espírito delucro" <strong>dos</strong> armadores e proprietá<strong>rio</strong>s de caixões, carros e demaisobjetos funhos que, durante o período epidêmico, inflacio<strong>na</strong>ram o'medo funerá<strong>rio</strong>, uma medida policial, decidiu fixar as taxas destesserviços. A situação havia chegado ao ponto de um certo carrofune&io ter sido apreendido pela polícia, por ter custado 248$000réis a uma família enlutada2s .Diante da proibição <strong>dos</strong> sepultamentos no inte<strong>rio</strong>r dasigrejas, com o regulamento sanitá<strong>rio</strong>, em 4 de março de 1850um oficio do chefe de policia da Corte, Antônio Simões daSilva, foi dirigido a Ordem Terceira de São Francisco de Paula,pedindo que fosse dado jazigo, <strong>na</strong>quele mesmo dia, se possívelfosse, a to<strong>dos</strong> os cadáveres remeti<strong>dos</strong> para o seu cemité<strong>rio</strong> emcon~trução~~. Provavelmente pelo fato de a ordem terceira tercriado dificuldades para a execução do ofício, foi necessáriaa intervenção do ministro <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong>, viscondede Mont'Alegre, no dia 8, mandando que se desse jazigo aoscorpos para lá envia<strong>dos</strong>, suspendendo e dispensando quaisquerformalidades compromissais, caso pudessem retardar ocumprimento da disposição2' .Em virtude da epidemia rei<strong>na</strong>nte e antes de seu término, nomesmo mês de março, foram apresenta<strong>dos</strong> a Câmara <strong>dos</strong>Deputa<strong>dos</strong> projetos so<strong>br</strong>e o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s <strong>na</strong>Corte e a conseqüente extinção <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas,que passaram a ser discuti<strong>dos</strong> em junho e julho no Se<strong>na</strong>do. Nesteínterim, foi tomada uma medida mais radical. O visconde deMont' Alegre expediu oficio a todas as irmandades, ordens terceirase conventos, mandando que os que não tivessem estabelecido seuscemité<strong>rio</strong>s extramuros procedessem ao enterro de seus fiéis ou noCemité<strong>rio</strong> do Campo Santo (administrado pela Santa Casa daMisericórdia) ou no de .Catumbi(pertencente à Ordem Terceirade São Francisco de Paula), sob pe<strong>na</strong> de punição aos que nãocumprissem o determi<strong>na</strong>do. Em 16 de março, a Ordem Terceirado Carrno recebeu o seguinte :


Urgindo mais que nunca as circunstâncias da atualidade, que seextingam prontamente to<strong>dos</strong> os focos de infecção que tendama agravar o estado da epidemia rei<strong>na</strong>nte; e sendo como taisconsidera<strong>dos</strong> os cemité<strong>rio</strong>s dentro da <strong>cidade</strong>: orde<strong>na</strong> SuaMajestade o imperador, que nenhum cadáver seja de ora emdiante, dado à sepultura dentro das igrejas e conventos desta<strong>cidade</strong>, ou no seu recinto; devendo todas as ordens religiosas,confrarias e irmandades, enquanto não estabelecerem os seuscemité<strong>rio</strong>s extrarnuros, proceder ao enterro <strong>dos</strong> fiéis, a quemtenham de dar sepultura, ou no cemité<strong>rio</strong> do Campo Santo daPonta do Caju, ou no da Venerável Ordem Terceira de S.Francisco de Paula, sito em Catumbi; havendo em cada um <strong>dos</strong>ditos cemité<strong>rio</strong>s espaço suficiente para dar jazigo desde já, ato<strong>dos</strong> os corpos que foram para ali envia<strong>dos</strong>.O que por esta Secretaria de Estado <strong>dos</strong> Neg6cios do Impé<strong>rio</strong>se comunica à Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhorado Carmo, para seu conhecimento, e pontual execução; ficando<strong>na</strong> inteligência de que serão processa<strong>dos</strong> e puni<strong>dos</strong>, comodesobedientes, to<strong>dos</strong> aqueles que de qualquer modocontravierem ao fiel cumprimento do que ora se orde<strong>na</strong>.Em virtude da proibição das encomendações de corpos<strong>na</strong>s igrejas, em 30 de maio, o chefe de polícia expediu ofício aOrdem Terceira de São Francisco de Paula, mandando quefosse construída, "com decência e muito ligeiramente", umacapela provisória no cemité<strong>rio</strong> do Catumbi, para que no prazode seis dias fossem feitas ali as encomenda~ões~~. Tal medidafoi possivelmente tomada em função da desobediência devárias irmandades em cumprir a medida do regulamentosanitár,io que continha a mesma proibição.E possível que a desobediência, além de estarfundamentada <strong>na</strong> recusa das irmandades e ordens terceiras emdeixar de encomendar os seus defuntos em seus templos, fosseuma conseqüência do fato de não haver capelas específicas paraeste h nos cemité<strong>rio</strong>s existentes, fora <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>, aliás,o que é plausível, <strong>na</strong>s circunstâncias da época. Se antes da epidemiae da proibição imperial a maior parte das encomendações eramrealizadas <strong>na</strong>s igrejas, não havia por que os cemité<strong>rio</strong>s possuíremcapelas desti<strong>na</strong>das às encomendações. Estas medidas eram todas


preventivas e garantiriam ao <strong>gov</strong>erno imperial uma margem detempo até que a legislação definitiva entrasse em vigor. Por issomesmo, o Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong> ordenou que a Câmara municipalnão concedesse licenças para fundação e estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>. Ainda em maio, o chefe de policia,pressio<strong>na</strong>do pelo ministro visconde de Mont' Alegre, preveniainsistentemente a Câmara municipal para que negasse quaisqueroutras licenças para construção de cemité<strong>rio</strong>s, pois que a mesmahavia concedido licença a Irmandade de Nossa Senhora daConceição para tal e de estar em vias de conceder outras30.A implantação destas normas em rel- aos sepultamentos edemais ritos fúne<strong>br</strong>es representou, portanto, o ponto culmi<strong>na</strong>nte doprocesso de difùsão da medici<strong>na</strong> social que vinha sendo gestado aolongo da primeira metade do século XIX.Como podemos perceber a forma como este discursofoi lido pela população? Um caminho para se responder a estaquestão pode ser a análise da reação de alguns moradores dianteda vizinhança de cemité<strong>rio</strong>s com suas casas. Numa primeiraobservação so<strong>br</strong>e a questão, percebe-se que, em certa medida,alguns moradores da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro não estiveramalheios aos "odores" cadavéricos, o que nos leva a inferir, noque diz respeito aos cemité<strong>rio</strong>s, o exercício daquela vigilânciaolfativa sugerida pelos médicos.Transformações das sensibilidades com relação aos <strong>mortos</strong>No que diz respeito a concepção de alguns moradoresda Corte com relação as idéias de salu<strong>br</strong>idade pública, podeseestabelecer uma diferença no que diz respeito aos moradoresde Salvador. João José Reis afirma que, no que se referia ahigienização urba<strong>na</strong>, os médicos e os legisladores de lá não foramprotagonistas solitá<strong>rio</strong>s, no que tangia a limpeza pública. No entanto,eles continuavam isola<strong>dos</strong> <strong>na</strong> denúncia <strong>dos</strong> maleficios <strong>dos</strong>enterros <strong>na</strong>s igrejas. Apesar da presteza com que demonstravam


em atacar outros miasmas, os baianos pareciam alheios oumesmo cúmplices <strong>dos</strong> miasmas cadavkricos que ocupavam asigrejas. Ningutm se queixava do fedor <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, excetodaqueles enterra<strong>dos</strong> no campo da Pólvora".Isto nos permite pensar que sentir ou não o odor <strong>dos</strong>cadáveres estava diretamente relacio<strong>na</strong>do a vigilância olfativadesenvolvida pelo saber médico, que conferia valor negativo aoodor produzido pelos <strong>mortos</strong> e que, a partir de então, começavasea sentir. Os indivíduos que não partilhassem dessas noções nãosentiam os odores, nem se incomodavam com eles, mesmoporque, para eles, os odores simplesmente não existiam, sem quepassasse por sua cabeça o caráter valorativo do odor; tratava-sede um cheiro ao qual se acostumara e com o qual convivia. Já umoutro indivíduo que tivesse o olfato voltado para a procura deodor nos cadáveres, certamente o encontraria, como o encontroue o achou insuportável. O que diferenciava as duas versões,ou melhor, os dois olfatos, portanto, era a perspectiva, científicaou não, a respeito do cheiro produzido pelo cadáverJ2. Ao fazerreferência a reação do "Padre Perereca", Luís Gonçalves <strong>dos</strong>Santos, a um artigo de jor<strong>na</strong>l de 1825, apoiando o fim <strong>dos</strong>sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas, João José Reis33 descreve os argumentosde uma réplica do padre a favor da sepultura nos templos:O correspondente se quelxara do cheiro <strong>dos</strong> caaliveres. Pererecacontrapunha h sensibilidade olfativa <strong>dos</strong> "melindrososmodernosw aquela <strong>dos</strong> católicos pie<strong>dos</strong>os. "Apesar de que portão dilatada skrie de anos não tivesse havido tantas caixas detabaco, tantos vidrinhos de esplritos cheirosos, tanto'sfrasquinhos de água de colônia, etc., os <strong>na</strong>rizes <strong>dos</strong> nossosavoengos não 'sentiam, não se incomodavam." E por que não?Porque, entre outras razóes, o "incômodo passageiro do maucheüo <strong>dos</strong> defuntos" era um ato de fk e porque a dor da perdaamai<strong>na</strong>va <strong>na</strong> certeza de que os entes queri<strong>dos</strong> jaziam em terraabençoada, esperando-os para "participar com eles <strong>dos</strong> mesmosjazigos, e das mesmas honras".Para o "Padre Perereca", os católicos pie<strong>dos</strong>os que


frequentavam as igrejas toleravam o odor <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> comoexpressão de fé, sem se sentirem incomoda<strong>dos</strong> com o "cheiro <strong>dos</strong>defuntos". Até o desenvolvimento da noção de poluição causadapelos odores ema<strong>na</strong><strong>dos</strong> do cadáver, era no inte<strong>rio</strong>r das igrejas,em meio as sepulturas, que os fiéis oravam, conversavam,tran~itavam~~. A análise de alguns documentos permiteverificar, entretanto, o desenvolvimento, no Rio de Janeiro, dasensação de estranheza com relação a esse hábito, para o qualmuito contribuiu a difusão da concepção médica so<strong>br</strong>e apoluição provocada pelos miasmas cadavéricos. A intensidadeda campanha desti<strong>na</strong>da a afastar o cadáver e seu cheiro,começou a fazer efeito entre alguns habitantes da <strong>cidade</strong>.Requerimentos e abaixo-assi<strong>na</strong><strong>dos</strong> de moradores dealgumas freguesias urba<strong>na</strong>s da Corte as autoridades municipaise imperiais foram feitos no sentido de solicitar a interdição dealguns cemité<strong>rio</strong>s considera<strong>dos</strong> insalu<strong>br</strong>es, o embargo das o<strong>br</strong>asde construção de outros e o impedimento da edificação decemité<strong>rio</strong>s próximos às moradias. Nestes documentos, aparecemsedimenta<strong>dos</strong> alguns pontos das teses médicas. Em to<strong>dos</strong> oscasos, alegava-se o prejuízo que a proximidade com osreferi<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s causaria a salu<strong>br</strong>idade das casas.Tais ações, por parte <strong>dos</strong> moradores, deram-se emperío<strong>dos</strong> diversos, entre 1820 e 1850. Pode-se verificar,também, um crescimento populacio<strong>na</strong>l e a conseqüenteexpansão do número de residências em direção a algumas áreasonde se situavam cemité<strong>rio</strong>s. Ainda que fossem ações movidas,com certeza, pelos indivíduos mais familiariza<strong>dos</strong> com taldiscurso, tiveram, a seu modo, que convencer os demais a uniremsepela defesa da qualidade do ar de sua vizinhança. Acompanharestes casos é importante para verificar como, <strong>na</strong> Corte,diferentemente de Salvador, houve uma diminuição do limitede tolerância olfativa, por parte da população, em relação aosseus <strong>mortos</strong>. Como Alain Corbin, "aquilo que já existia,e que não mudara, havia de repente passado a serins~portável"~~.Cronologicamente, a primeira queixa que encontrei referesea um cemité<strong>rio</strong> de escravos, o cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "pretos novos"36.Durante o século XVII, enquanto a população da <strong>cidade</strong>


era reduzida e o tráfico de escravos não havia tomado grandeincremento, os escravos africanos e seus descendentes, bemcomo os justiça<strong>dos</strong>, os indigentes, os faleci<strong>dos</strong> no hospital da SantaCasa da Misericórdia e os escravos indíge<strong>na</strong>s eram sepulta<strong>dos</strong> noantigo e pequeno campo santo existente junto ao morro do Castelo,por trás do hospital da Santa Casa37. Por volta de 1722, estecemité<strong>rio</strong> já não se apresentava suficiente para o sepultamento<strong>dos</strong> escravos, em virtude do incremento do tráfico africano38,o que se percebe pela determi<strong>na</strong>ção do <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>dor da época:mandar que fosse instituído um cemité<strong>rio</strong> exclusivamente paraEstabelecido no largo de Santa Rita, 9 referido cemité<strong>rio</strong> sedesti<strong>na</strong>va aos negros recém-chega<strong>dos</strong> da Africa que morressemnos depósitos em que ficavam aguardando os compradores. Aprincípio, ele funcionou regularmente, até que o mercado deescravos fosse transferido da rua Direita (atual Primeiro de Março)para o Valongo40, por ordem do marquês do Lavradio, por voltade 1 769. A transferência do mercado de escravos para o Valongofoi um elemento decisivo para a di<strong>na</strong>mização das atividadescomerciais e portuárias do Rio de Janeiro e significou um marcono processo de especialização espacial da <strong>cidade</strong>, ao confiar aoValongo o exercício do comércio negreiroda <strong>cidade</strong>4' . Váriasruas foram abertas e novos trapiches foram instala<strong>dos</strong> no Valongo,sendo, por fim, para lá transferido definitivamente o cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong>"pretos novos", para que a proximidade com o mercado facilitasseo transposte <strong>dos</strong> corpos <strong>dos</strong> que lá morriam. Já no fi<strong>na</strong>l do séculoXVIII, dois pontos desta região -morro da ConceiçãoPrainha emorro do Livrarnento/morro da SaúdeNalongo - apresentavamserelativamente densos, para os padrões da época, em virtude daconcentração das atividades comerciais, portuárias e do mercadode escravos42.No século XiX, a vinda do família real para o Brasil (1 808)e a abertura <strong>dos</strong> portos (1 81 5) levaram respectivamente aocrescimento populacio<strong>na</strong>l e ao boom das atividades ligadas aocomércio, o que gerou uma grande expansão da área urba<strong>na</strong> da<strong>cidade</strong>. Neste último caso, a intensificação do movimento comercialprovocou o deslocamento definitivo das atividades portuárias paraa área do Valongo e da Gamboa, onde atualmente se situa a área


do cais do porto. Profundamente relacio<strong>na</strong>do a essedesenvolvimento econômico, processou-se o adensamentopopuiacio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> região da Saúde, do Valongo e da Gamboa, ondemorros, encostas e enseadas foram ocupa<strong>dos</strong> com residências,fin<strong>na</strong>s comerciais e trapi~hes~~ . O crescimento populacio<strong>na</strong>l podeser identificado pela observação do índice do aumento popuiacio<strong>na</strong>lda <strong>cidade</strong> no início do século XIX, onde, em 1808, de umapopuia@o estimada em sessenta mil habitantes, saltou-se, em 1821,para 112.695 e, em 1838, para 137.078. Ou seja, de 1808 a1821, a taxa de crescimento da população foi de 88%44.Tal incremento levou a que a área em que se situava ocemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> escravos fosse ocupada por residências. E nestemomento que o referido cemité<strong>rio</strong> passou a ser o centro dasatenções e das reclamações <strong>dos</strong> moradores vizinhos. G.W.Freireyss, um viajante que esteve no Brasil em 1814-18 15 -citado por Mary Karasch -, esteve no cemité<strong>rio</strong> do Valongo eo descreveu como tendo, <strong>na</strong> entrada, um homem velho emvestimentas de padre, que lia orações para as almas <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>,enquanto alguns negros próximos a ele tapavam "seuscompat<strong>rio</strong>tas" com um pouco de terra. No meio do cemité<strong>rio</strong>estava uma "montanha" de terra e de corpos despi<strong>dos</strong> emdecomposição, parcialmente descobertos pela chuva. Segundoo viajante, o "mau cheiro" era insuportável, o que o fez suporque os <strong>mortos</strong> eram enterra<strong>dos</strong> somente uma vez <strong>na</strong> sema<strong>na</strong>, eque de tempos em tempos a "montanha" de cadáveres emdecomposição era queimada. Os negros <strong>vivos</strong>, segundo ele,ficavam localiza<strong>dos</strong> tão perto do cemité<strong>rio</strong> de seuscompanheiros que eles também deveriam ter visto os corposde seus compat<strong>rio</strong>ta^^^.Os moradores das proximidades do mercado e docemité<strong>rio</strong> dovalongo ficaram muito inquietos com as conseqüênciasque os sepultamentos de muitos escravos <strong>mortos</strong> no mercadopoderiam ter para eles, o que os levou a requerer a remoção docemité<strong>rio</strong> para fora do Valongo. Se alguém tinha que sair dali, quefossem os <strong>mortos</strong>. Os <strong>vivos</strong> queixavam-se do volume <strong>dos</strong> enterrosque os estariam infectando com doenças, muitas das quaisprejudiciais, além do mau cheiro46 .Em outu<strong>br</strong>o de 1821, dois requerimentos <strong>dos</strong> moradores


LEGENDA1 -Mosteiro de SãoBento2 -IgrejadaCandel&ia3-IgrejadaSantaCm<strong>dos</strong>~4-IgrejadeNSPdaLap<strong>dos</strong>Mdow5 - IgrejadaOrdemTmira N" SP doCarmo6 -Capela Real7 -1grejade São Jod8.- Colég~o e Igreja <strong>dos</strong> Jãuítas9-IgreadeSBoSeb~h(%VeUia)10-IgrejadeW SPdoBonsucew(antiga da Miseric<strong>br</strong>dia)I 1 -1grejadeSantaLwja12-lgrejadeSbF&&Prainha13-CapeladeN"SPdaComiç3014 - Igrejade SantaRita.15 -1grejado Senhor Bom Jesuskb1gejadeSãoPedm17-lgrejadeN"SPMk<strong>dos</strong>Homenr>18-ImiadeN"SPdaConcei~doHospicio24 -Gado senhor <strong>dos</strong> Paws25 -Igreja de São Jorge26 -1gqa daLampa<strong>dos</strong>a27- Igreja de N" SPdo Rosí<strong>rio</strong>28-IgrejadaOrdemTerceiradeSão Francisco de Paula-29-IgrejadaOrdemTerceiradeSão Francisco da Penitência30-Igre'aeConventodeSanto Antônio31-R~ernOd0~&obo~3~32-EmúdadaAjuda33-CaiventodaAjiLda34 -Seminá<strong>rio</strong> e Capelade N" SP daLapado Desterro35-1grejadeN"SPdaSaUde36 -Igreja de N" SP do LMamento37-IgPzJadehm38-IgrejadeSãoGm~do~39-CqdadoMenlliodeku40-EmiidadoDesterro41 - Igrejade WSVaGlóriaA- Comentodo CarmoB-HospitaldaSantaCasadaMisb5ihC -&nité<strong>rio</strong>daMisaic6rdiaD-&nité<strong>rio</strong><strong>dos</strong>PretosNovosWJW')E-Caniiáiodamboa(hlnglesã)F -TrinckimdoMonoda~G-Ard&-H-FoitedeSaoSebastiao1-AIEindeãdJ - Paço RealBARREIRO, Eduardo Ca<strong>na</strong><strong>br</strong>ava. Atlas da evolução urba<strong>na</strong> da <strong>cidade</strong>do Rio de Janeiro (1565-1965). Rio de Janeiro, 1965.7 2


do bairro foram envia<strong>dos</strong> ao príncipe regente, os quais pediama transferência do cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> pretos novos para outro lugar"mais remoto", "em razão <strong>dos</strong> grandes males" que estariaproduzindo so<strong>br</strong>e o local. Aludiu-se ao "prejuízo" que ocemité<strong>rio</strong> estaria causando aos moradores. No primeiro, semdata, os moradores diziam que, em conseqüência daproximidade do cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "pretos novos", estavam"padecendo" grandes males, produzi<strong>dos</strong> por causa <strong>dos</strong>cadáveres que estariam mal sepulta<strong>dos</strong>. Por conseguinte,"sofriam" enfermidades a ponto de chamarem médicos paraserem trata<strong>dos</strong>4'. O conteúdo do segundo48 não diferiu doprimeiro. Dizia:já não podem sofrer mais danos <strong>na</strong>s suas saúdes, por causa docemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> pretos novos, que se acha sito entre eles, em razãode nunca serem bem sepulta<strong>dos</strong> os cadáveres; como tambémpor ser muito impróp<strong>rio</strong> em semeihante lugar haver o referidocemité<strong>rio</strong>, por ser hoje uma das grandes povoações (...)Ambos os requerimentos pediam a transferência docemité<strong>rio</strong> para outro lugar. Mandado investigar o caso pelaSecretaria de Estado <strong>dos</strong> Negócios do Reino, o intendente depolícia, João Inácio da Cunha solicitou ao juiz do Crime dobairro de Santa Rita que averiguasse os motivos e os malesalega<strong>dos</strong> pelos requerente^^^. O juiz do Crime, José de SousaVasconcelos, tendo-se dirigido ao local para fazer asaveriguações, achou pequeno o cemité<strong>rio</strong>, em razão do grandenúmero de negros que morriam e eram nele sepulta<strong>dos</strong>. Alémdisso, segundo seu parecer, estava "quase todo" rodeado decasas, o que, por si só, já seria razão suficiente para se saberque aquele lugar era "impróp<strong>rio</strong> para semelhante fim". O que foiconfirmado pelas testemunhas inquiridas e que corroboraram o"sofiimento" <strong>dos</strong> habitantes daquela localidade em relação avizinhança do cemité<strong>rio</strong>. Tais referências so<strong>br</strong>e o fato de a regiãopróxima a área do cemité<strong>rio</strong> estar rodeada de casas, ao contrá<strong>rio</strong>da época em que fora estabelecido, apontam para uma realidadevivida pelos moradores das redondezas da freguesia de Santa Rita


que, <strong>na</strong>quele momento, assistia a um grande e rápidoadensamento populacio<strong>na</strong>l.Todas as testemunhas inquiridas pelo juiz do Crime eramportuguesas, "<strong>br</strong>ancas" e, com exceção de um tenente-coronel- cavaleiro da ordem de Avis -, os demais eram negociantes,com idade entre quarenta e cinquenta anos, isto é, representantes<strong>dos</strong> segmentos comerciais em expansão, que tinham suasresidências <strong>na</strong>quela região, cuja proximidade com um cemité<strong>rio</strong>representava uma ameaça a sua saúde e, provavelmente, aosseus bolsos, em virtude de terem seus prédios desvaloriza<strong>dos</strong>.Após jurarem so<strong>br</strong>e os santos evangelhos, diante do escrivão,prometendo dizer a verdade, foi-lhes perguntado so<strong>br</strong>e oconteúdo da petição <strong>dos</strong> moradores do bairro do Valongo.To<strong>dos</strong> disseram saber do que se tratava, por constatarem o"mau cheiro" exalado do terreno, a ponto de manterem suasjanelas e portas continuamente fechadas. Segundo uma dastestemunhas, o tenente-coronel Joaquim Antônio, os moradores"encerravam suas famílias dia e noite com medo de serempestea<strong>dos</strong>". José Francisco Moreira, tinha <strong>na</strong>quele lugar umacasa para "ir espairecer", o que lhe era vedado "pelo grandefedido que aquele cemité<strong>rio</strong> exala tanto por ser o terreno muitopequeno para tantos corpos como por serem mal enterra<strong>dos</strong>",tomando o local i<strong>na</strong>bitável.O fato de as testemunhas serem todas originárias dametrópole nos impede de ter uma visão mais geral acerca daopinião <strong>dos</strong> demais moradores, <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e de outras condiçõessociais, pois seus testemunhos remetem ape<strong>na</strong>s para indivíduosde determi<strong>na</strong>da condição social que tinham, talvez, mais acessoàs informações médicas. No entanto, apesar disso, o fato mostraa insatisfação em se viver próximo a um cemité<strong>rio</strong> malconservado e que, além disso, era de escravos.No ano seguinte, em 12 de março, o intendente de políciadirigiu-se a Secretaria de Estado, dando as devidas informaçõese propondo soluções50. Segundo ele, após as informações dojuiz de Crime, foi pessoalmente ver o cemité<strong>rio</strong> e lá chegou aconclusão de que os motivos das representações <strong>dos</strong> moradoresprocediam.


O espaço que constitui o cemité<strong>rio</strong> é muito pequeno para nelese enterrarem tantos corpos de pretos novos; como os queordi<strong>na</strong>riamente para ali são manda<strong>dos</strong> além disso são malenterra<strong>dos</strong>. E que este trabalho está confiado a um ou doisescravos, que não se cansam em fazerem covas fundas; porémso<strong>br</strong>etudo me admirou a nenhuma decência do lugar. Pelo tudode fundo está aberto, dividido pelo quintal de uma propriedadevizinha e uma cerca de esteiras, e pelos outros dois la<strong>dos</strong> commui baixo muro de tijolos, e no meio uma peque<strong>na</strong> cruz depaus toscos mui velhos, e a terra do campo revolvida, e juncadade ossos mal queima<strong>dos</strong> (...).Segundo o intendente, em relação à época em que foiconstruído, o local encontrava-se rodeado de casas, deixandode ser desabitado. Afi<strong>na</strong>l, a área da freguesia de Santa Fütafora uma das que, em virtude do crescimento urbano, seapresentava extensamente povoada - a ponto de, em 1 8 14,surgirem requerimentos solicitando seu desmem<strong>br</strong>amento emoutra freguesia -, além do que, por outro lado, em virtude doincremento do tráfico negreiro, se ampliara a população de<strong>mortos</strong> sepulta<strong>dos</strong> no referido cemité<strong>rio</strong>. Entretanto, para ointendente, não seria fácil achar terreno que servisse decemité<strong>rio</strong> e que fosse próximo dali, pois um local distantedificultaria a condução <strong>dos</strong> cadáveres. Além disso, não seriaconveniente que o local fosse fora da freguesia, para que osrendimentos do vigá<strong>rio</strong> com os sepultamentos não fossemprejudica<strong>dos</strong>. Assim sendo, o intendente propôs que o vigá<strong>rio</strong>"contratasse" um terreno contíguo ao cemité<strong>rio</strong> para aumentá-10, que o mesmo fosse todo cercado de muro alto pelos quatrola<strong>dos</strong>, que pusesse pessoal capaz de enterrar convenientementeos corpos e, fi<strong>na</strong>lmente, que olhasse "pela decência e decorodo cemité<strong>rio</strong> como deve e é de esperar do seu caráter,conhecimento e probidade".Pelo dòcumento que segue ao ante<strong>rio</strong>r, parece que ointendente foi autorizado pela Secretaria de Estado a orde<strong>na</strong>rao vigá<strong>rio</strong> de Santa Füta que realizasse as mudanças que haviaproposto, pois o mesmo continha uma referência de que fossemandado participar ao pároco das decisões tomadas. Porém,parece que as medidas tomadas serviram ape<strong>na</strong>s como um


paliativo para o problema, pois, em 1829, o novo intendentede polícia fazia referência a vá<strong>rio</strong>s requerimentos <strong>dos</strong>moradores próximo ao Valongo solicitando a transferência docemité<strong>rio</strong>5'. Em suma, o fato é que, em 1829, os moradoresjá formulavam novamente suas queixas às autoridades,reclamando do estado de conservação do cemité<strong>rio</strong> e <strong>dos</strong>prejuízos que, segundo eles, lhe estariam causando52.Desta vez, o intendente de polícia dirigiu oficio à Câmaramunicipal, em 14 de fevaeim, alegando ser o assunto da competênciada municipalidade, devido a um decreto imperial de 1828 quelhe dava a incumbência para o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>sfora <strong>dos</strong> templos, bem como tudo o que fosse relativo à saúdepública. Segundo a sua exposição, o cemité<strong>rio</strong> não seencontrava em situação muito diferente da existente em 1822.Era constituído deum pequeno terreno que aliás está colocado no meio de muitascasas habitadas, e hoje com amamento seguido cheio todo emroda de esteiras que de ordiná<strong>rio</strong> sempre recebem alguma coisade corrupção <strong>dos</strong> corpos nelas envolvi<strong>dos</strong>; covas abertas tantoà superficie do terreno, que ape<strong>na</strong>s um palmo resta paraco<strong>br</strong>irem-se os corpos, que nelas se lançam aos pares.Na resposta dada pela Câmara, foi dito não ser da suacompetência tomar as providências quanto ao assunto, pois a leide outu<strong>br</strong>o de 1828 ape<strong>na</strong>s regulava so<strong>br</strong>e o estabelecimento denovos cemité<strong>rio</strong>s. O intendente de polícia não concordou com aresposta da Câmaras3, dizendo ser da sua atribuição não só aquestão <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s antigos, mas igualmente a inspeção da saúdepública. E, no estado em que ele o havia encontrado, entendiaque, se havia algo que mais se opunha a saúde pública, era oreferido cemité<strong>rio</strong>. Reclamava, pois, a sua remoção daquelelocal e a construção de um outro. Fi<strong>na</strong>lmente, lavou suas mãos,dizendo deixar a cargo da municipalidade a tomada de umaposição. Usando de um tom melancólico, manifestou o receio deque aqueles habitantes não se achassem "infelizes", pois que"andavam em requerimentos e pretensões desde alguns anos",dizendo eles que por fruto só colhiam a remessa do seu caso deuma para outra autoridade, ou, quando muito, alguma vistoria.


Pelo exposto, percebe-se que já <strong>na</strong> década de 1820apareciam queixas contra a presença de um cemité<strong>rio</strong>,considerado mal conservado e capaz, segundo os queixosos,de afetar a qualidade do ar respirado, pela exalação proveniente<strong>dos</strong> cadáveres em putrefação. Em relação as demais queixas,apresentam a particularidade de se tratar do questio<strong>na</strong>mento acemité<strong>rio</strong>s de escravos. As sepulturas das igrejas não eram,até então, questio<strong>na</strong>das. Acredito que, neste momento, emboraos moradores temessem a poluição do ar, sua atitude devera-semuito mais ao fato de se tratar de cemité<strong>rio</strong>s de negros.Na década de 1830 em diante, contudo, as queixasa<strong>br</strong>angeriam todo e qualquer cemité<strong>rio</strong>, mesmo os eclesiásticos.Em 1832, reclamava-se do estado das catacumbas da igreja desanto Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es, <strong>na</strong> freguesia de Santa<strong>na</strong>. No dia 2de outu<strong>br</strong>o de 1832, um abaixo-assi<strong>na</strong>do <strong>dos</strong> moradores darua do Se<strong>na</strong>do foi enviado ao fiscal da freguesia. Nodocumento, queixavam-se de estarem sendo "bastantementeinfecta<strong>dos</strong>" por um "mau cheiro de putrefação, que exalou dascatacurnbas da dita igreja", de maneira que algumas pessoasjá tinham adoecido. Acreditavam que as causas <strong>dos</strong> seusproblemas estaria no fato de que as catacumbas seencontravam, há bastante tempo, muito "arrui<strong>na</strong>das", por seremmal construídas, com tijolos, em vez de pedra e cal; de forma quenão se achavam em estado de dar sepultura a pessoa alguma.Para agravar a situação, alguns dias antes teria sido enterrado umcorpo em uma delas. Segundo os representantes, deveriam sertomadas providências para "atalhary', "a bem da saúde pública", omal causado tanto aos que transitavam pela rua, como aosmoradores e aos proprietá<strong>rio</strong>s das casas vizinhas, que se sentiamprejudica<strong>dos</strong> pelas "contínuas mudanças" <strong>dos</strong> inquilinos,"afugenta<strong>dos</strong> de semelhante peste"54.Ao receber o abaixo-assi<strong>na</strong>do, o fiscal da freguesia, JoséMaria Cavag<strong>na</strong> Quaresma, após verificar o estado das catacumbas,enviou uma representação à Câmara municipal, reclamando nãohaver uma postura que coibisse os "maus enterros emcatacumbas, quando estas, por mal construidas", deixavam"exalar a corrupção <strong>dos</strong> cadáveres exte<strong>rio</strong>rmente" que,infeccio<strong>na</strong>ndo o ar infeccio<strong>na</strong>ria os humanos que o respirassem,


como, segundo eles, a experiência tinha mostrado55. O fiscaljustificou que cabia a Câmara providenciar so<strong>br</strong>e a saúdepública, "principal objeto de um povo civilizado". Percebeseassim, a associação entre civilização e salu<strong>br</strong>idade pública:o encontro entre os ideais do Estado e <strong>dos</strong> médicos. SegundoJosé Maria Quaresma, o mal resultava das catacumbas quedavam para a rua, cujas paredes eram de "frontal singelo, jádescoberto por falta de reboco", de forma que solicitava que oProcurador da Câmara, por intermédio do juiz de pazrespectivo, embargasse os enterros <strong>na</strong>quelas catacumbas,principalmente das que ficavam voltadas para a rua.A resposta da Câmara, no dia seguinte, não veio acontento. Segundo ela, <strong>na</strong>da podia providenciar senão por meiode suas posturas. Concluiu que não havia motivo para oembargo, que este seria ineficaz, pelo fato de o juiz de paz nãoter jurisdição para tal, e somente para proceder a execuçãodas posturas da Câmara. Nesta época, a Câmara já haviapromulgado seus novos preceitos municipais, quedetermi<strong>na</strong>vam ser da sua competência o estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s, bem como a responsabilidade pelo zelo da saúdepública. Entretanto, como faria outras vezes, protelou tal ação,o que contribuía para que surgissem contínuas queixas contracemité<strong>rio</strong>s antigos mal conserva<strong>dos</strong>.A resposta malcriada dp fiscal veio em seguida, por meiode outro oficio à Câmara. Neste, dizia não ser tão inerte como aCâmara havia, segundo ele, dado a entender, quando mandou queele verificasse as posturas. Afirmando conhecê-las, pelo fato deandar ' Modiay' com seu "folheto" <strong>na</strong>s mãos, para dar cumprimentoao seu dever, disse não haver nenhuma que desse providência aoseu caso, mas sim outras diferentes, de forma que ele, enquantojuiz de freguesia, tendo que executar "fiel e literalmente" asposturas, não poderia dar solução ao caso, pois nenhuma delastratava de embargo de enterros pela má construção de catacumbas,mas ape<strong>na</strong>s em caso de, por estarem fora de prumo, ameaçaremcair so<strong>br</strong>e as pessoas. Não encontrei documento que revelasse odesfecho do caso, ape<strong>na</strong>s que o despacho da Câmara, a esteúltimo oficio, foi para que fosse enviado ao advogado quanto antes,para que informasse o modo pelo qual ela deveria dar pronta


providência a tal respeito. Da mesma forma que agiu nodesfecho do caso ante<strong>rio</strong>r, a municipalidade mostrou-se inerteem tomar medidas práticas no sentido de atender as queixas<strong>dos</strong> moradores.A terceira reivindicação encontrada provém de umarepre~entação~~, de a<strong>br</strong>il de 1834, do vigá<strong>rio</strong> da freguesia deSão João Batista da Lagoa a Câmara municipal, <strong>na</strong> qualreclamava do estado em que se encontrava o local desti<strong>na</strong>dopara cemité<strong>rio</strong>, situado próximo a igreja matriz. Diferentemente<strong>dos</strong> ante<strong>rio</strong>res, o reclamante não mencionou os prejuízos asaúde pública, não utilizou o discurso médico para justificar acrítica ao estado de um cemité<strong>rio</strong>. O que fez uso foi do discursoreligioso quanto a decência e a s ac r a1 i d ad e do local dassepulturas.(...) condoído até o fundo da alma por o abandono a que <strong>na</strong>quelaparóquia serem os cadáveres <strong>dos</strong> fiéis defuntos1 cujas cinzassão credoras de respeito1 expostas a escavaçaes e porconsequência a pasto de animais carnívoros, por a indecência,e nenhuma segurança do cemité<strong>rio</strong>, que ora hes serve de jazigo,sendo este um poderoso motivo, para que alguns paroquianoszelosos da [ilegível] de seus <strong>mortos</strong> se desvelem emtransportá-los para as freguesias da Corte, apesar deinconvenientes procurando-lhes sepultamento no recinto <strong>dos</strong>templos (...).O pároco da freguesia da Lagoa provavelmente partilhava daopinião do "Padre Paereca" quanto ao necessá<strong>rio</strong> respeito cristãoaos "odores" provenientes <strong>dos</strong> cadáveres; tanto que optou pelajustificativa do zelo para com as sagradas moradas <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, <strong>na</strong>sua contenda com a Câmara municipal, e não pelo "mau cheiro" dolocal. Ainda assim, não se mostrou radicalmente contra os cemité<strong>rio</strong>sfora das igrejas, como o fez "Perereca". Mesmo fazendo uso dodiscurso religioso, pacebe-se em sua fala uma preocupação emhigienizar a morte. O objetivo do vigá<strong>rio</strong> era que a Câmaraconsiderasse "com o maior melindre aos olhos da santareligião, e verdadeira humanidade" o assunto, e concluísse ocemité<strong>rio</strong>.O fiscal da freguesia, a mando da Câmara, verificou as


informações dadas pelo pároco e confirmou serem verdadeiras;o cemité<strong>rio</strong> não oferecia nenhuma "segurança", nem"decência", já que os cadáveres se achavam expostos ao tempoe aos animais, pelo fato de o cemité<strong>rio</strong> não ser cercado. Emvista disto a municipalidade pronunciou-se, em 29 de a<strong>br</strong>il,afirmando não ser da sua competência o estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s particulares, de paróquia ou de irmandades e tãosomenteos públicos; não podendo, por isso, satisfazer asolicitação do vigá<strong>rio</strong>, que retomou a Câmara com um segundooficio mal-humorado. Primeiramente, disse não ser um interessepecuniá<strong>rio</strong> que o movera a tal ação, já que os párocos nãorecebiam pelas sepulturas, e sim as fá<strong>br</strong>icas das matrizes; oque é uma meia verdade, já que os párocos recebiam não pelassepulturas, mas pelos sepultamentos. Em segundo lugar, queos fregueses conheciam as posturas municipais e sabiam quenão era o<strong>br</strong>igação da Câmara ape<strong>na</strong>s o estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s novos, mas o zelo pelos antigos. Diante disto, fezum pedido e uma ameaça. Se a Câmara não consideravaatribuição sua o cuidado com os cemité<strong>rio</strong>s particulares, pediaque ela tomasse providências para construir os cemité<strong>rio</strong>spúblicos, manda<strong>dos</strong> pela lei e que ela ainda não estabelecera.A ameaça foi a de fazer uso <strong>dos</strong> jor<strong>na</strong>is da Corte para reproduzirseus dois oficios, bem como a resposta da Câmara, "a fim defazer constar a seus fregueses seu zelo so<strong>br</strong>e este objetom5'.Nesse ponto, percebe-se a importância da imprensa comoveículo do debate.Após discutir o assunto, em sessão, a Câmara decidiuescolhero vereador Francisco Alves de Brito para dar seuvoto. A esta altura já se estava em agosto do ano seguinte. Ovoto, desfavorável ao vigá<strong>rio</strong>, veio em maio de 1836. Nele, overeador afirmava haver "ainda" o "cemité<strong>rio</strong> público" daSanta Casa da Misericórdia, que deveria ser utilizado até oestabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos pela Câmara.No fi<strong>na</strong>l da década de 1830, uma outra contenda surgiu,desta vez entre os moradores da praia de São Cristóvão e daponta do Caju, e a Santa Casa da Misericórdia. Em junho de1839, eles pediram as autoridades que a referida instituiçãofosse impedida de estabelecer seu cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong> ponta do


Calafate, próximo as suas casas. Assi<strong>na</strong>do por 113 pessoas,sendo 68 proprietá<strong>rio</strong>s e 45 moradores, o abaixo-assi<strong>na</strong>doparece ter sido redigido por um profundo conhecedor das teoriasmédicas da época. Segundo ele, o cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa nãopoderia ser construido <strong>na</strong>quele lugar, apresentando para issotrês argumentos: o fato de, segundo os moradores, a Câmaranão ter sido ouvida, a impropriedade do terreno e o prejuízoque causaria aos passeios do imperador e suas "augustas"irmãss8. O abaixo-assi<strong>na</strong>do afirmava que, de acordo com asposturas, cabia a Câmara desig<strong>na</strong>r o local, "fora da <strong>cidade</strong>",para o estabelecimento do prédio mortuá<strong>rio</strong>. Sem ter consultadoa Câmara, a Santa Casa, segundo os queixosos, teria escolhidoo terreno, bem como efetuado a sua compra. Terreno que, doponto de vista deles, estaria dentro <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>, assimcomo toda a ponta do Caju. O local, além disso, seria impróp<strong>rio</strong>por estar no caminho por onde a família imperial passeava,por afluírem para lá muitos habitantes do Rio de Janeiro: a fimde reestabelecerem suas saúdes e gozarem de "ares mais livres"e uma "vista mais vasta e variada".O estabelecimento do cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong>quele local afugentaria oshabitantes, devido ao "espetáculo da morte, com o triste espetáculoda destruição (...) da espécie humq<strong>na</strong>" e os privaria da comodidadeque a ponta do Caju lhes oferecia. E interessante notar como a mortee os funerais, da mesma fon<strong>na</strong> que os odores, poderiam, de acordocom os interesses das pessoas, representar, <strong>na</strong>quele momento, algo aser evitado. Para os queixosos,ia qualidade do terreno escolhido pela Santa Casa constitui sópor si a sua impropriedade para o fim projetado. Porquantogrande parte senão a maior desse terreno é úmido e pantanoso,em razão das más marés vivas ser inundado pelo mar. E é bemsabido, e a to<strong>dos</strong> óbvio, que um <strong>dos</strong> primeiros requisitos, porventura o principal, que constitui a bondade de um terreno paraCemité<strong>rio</strong>, é o ser ele muito e muito seco, pois que a umidadeem vez de destruir conserva e até por espaço de muitos anosinteiros os cadáveres! Sendo que este fato se acha canonizadopela experiência apoiado em inúmeros exemplosSg .


A localização do cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong>queles arrabaldes poderia,ainda, contami<strong>na</strong>r a água do poço da chácara contígua aoterreno, da qual os moradores de doze casas da praia de SãoCristóvão faziam uso para cozinhar e beber, o que ocasio<strong>na</strong>riaconsumirem "uma água pestilenta, filtrada por cadáveres". Oabaixo-assi<strong>na</strong>do reafirmava o perigo para a saúde pública, em razãode as "continuas exalações <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s" serem "prejudiciais eperigosas, e produtivas de intensas moléstias", que "não poucasvezes provocam e determi<strong>na</strong>m o contágio das enfermidades".Continuava, dizendo que "sendo plano e baixo o terreno emquestão, constituindo ele propriamente uma várzea, uma vez neleestabelecido o cemité<strong>rio</strong>, todas as pestilentas exalações, que deleema<strong>na</strong>rem, serão a arbít<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> ventos lança<strong>dos</strong> dentro das própriascasas <strong>dos</strong> povos circunvizinhos".Na verdade, esta região do bairro de São Cristóvão tinhapassado por um notável crescimento demográfico, no períodode 1 82 1 - 1 83 8, em virtude da expansão da área urba<strong>na</strong> da <strong>cidade</strong>do Rio de Janeiro. Pouco a pouco, as áreas mais próximas askguesias urba<strong>na</strong>s foram se transformando em locais de residênciapermanente, o que levou, inclusive, a criação de novasfreguesias60. Foi assim que, "favorecido pelo privilégio dea<strong>br</strong>igar a família real, o velho arraial de São Cristóvão passoutambém a ser procurado pelos que tinham poder demobilidade"; após alguns aterramentos, o bairro viu multiplicarrapidamente as moradias ricas até a ponta do Caju, de tal modoque, em 1838, circulavam por ali os primeiros ônibus de traçãoanimal da <strong>cidade</strong>6'. As queixas contra a instalação do cemité<strong>rio</strong>da Santa Casa da Misericórdia no Caju refletiam, portanto, demodo semelhante ao ocorrido no Valongo - se bem que esteainda possuía o agravante de se tratar de um cemité<strong>rio</strong> exclusivode escravos - o incômodo que a proximidade de cemité<strong>rio</strong>sestava representando para as regiões que passavam por umprocesso de adensamento populacio<strong>na</strong>l.Os queixosos não foram atendi<strong>dos</strong>, como constou dodespacho de 6 de junho de 1839. Dois meses antes, o provedorda Santa Casa da Misericórdia, José Clemente Pereira,mandando informar o ocorrido a Secretaria de Estado, interpôsseu parecer so<strong>br</strong>e o requerimento <strong>dos</strong> moradores. Obviamente,


o provedor garantia serem infundadas as alegações <strong>dos</strong>moradores, afirmando ter obtido concessão da Câmaramunicipal, após esta ter recebido a aprovação do terreno,escolhido por uma comissão de engenheiros e de sete mem<strong>br</strong>osda Academia Imperial de Medici<strong>na</strong>. Quanto a alegação de ocemité<strong>rio</strong> prejudicar os passeios da família imperial, José ClementePereira disse que o terreno ficava distante da praia e da estrada,de modo que não oferecia visão aos passantes; além disso,tivera previamente uma conversa com o tutor do imperador, deforma a se tomarem as devidas precauções.O cemité<strong>rio</strong> foi construído e i<strong>na</strong>ugurado em 2 de julhodo mesmo ano. Os moradores e proprietá<strong>rio</strong>s não obtiveramresultado favorável <strong>na</strong> sua contenda. Afi<strong>na</strong>l, neste caso, viramsediante de um adversá<strong>rio</strong> poderoso, o provedor da SantaCasa da Misericórdia que, além de ter a seu favor o peso dainstituição que representava e o apoio político <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mental,era por si-só um exímio político, capaz de reverter situaçõesadversas em favoráveis.Por último, um outro fato, ocorrido <strong>na</strong> década de 1840.Tendo-se estabelecido a criação da freguesia de Santa<strong>na</strong>,desmem<strong>br</strong>ada da de Santa Rita, a igreja escolhida para sua matrizfora a da Irmandade de Santa<strong>na</strong>, formada por negros. Em 1840,apresentava-se peque<strong>na</strong>, com uma só torre e cinco altares, tendoas catacumbas no corpo da igreja e ao lado um cemité<strong>rio</strong>. Tal fatopode ter contribuído em muito para a decisão de transferir a matrizpara outro lugar. O terreno necessá<strong>rio</strong> foi obtido do <strong>gov</strong>ernoregencial, situado no local ante<strong>rio</strong>rmente desti<strong>na</strong>do a cadeia nova,<strong>na</strong> rua das Flores, atual rua de Santa<strong>na</strong>. A mudança para estelocal, no entanto, levou muito tempo. Só em 1874 foi iniciada aconstrução do templo definitivo, e em 1 878, aberto ao culto público.Em 1844, a Irmandade do Santíssimo Sacramento dareferida freguesia tinha projetos de estabelecer um cemité<strong>rio</strong>,para facilitar o enterramento <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> que afluíam .para aigreja matriz. O local escolhido foi o terreno desti<strong>na</strong>do aconstrução da nova matriz. Tal projeto, no entanto, encontrou,segundo o-fiscal da freguesia, "poderoso obstáculo no terror erepugnância <strong>dos</strong> proprietá<strong>rio</strong>s e moradores vizinhos ecircunvizinhos da. cadeia nova, que se horrorizam e revoltam


com a realização de semelhante projetom6*. Os moradores dasruas de São Leopoldo, Alcântara, Santa Rosa e parte da ruadas Flores, enviaram a Câmara municipal, no dia 23 de a<strong>br</strong>il,um abaixo-assi<strong>na</strong>do, contendo "quase duzentas" assi<strong>na</strong>turas.Solicitavam que fosse sustada a o<strong>br</strong>a do cemité<strong>rio</strong> idealizadopela Irmandade do Santíssimo Sacramento, por ele representar"manifesta ofensa as leis da saúde pública". Afirmavam saberque um cruzeiro para o dito cemité<strong>rio</strong>, "feito debaixo desegredo", seria colocado no terreno; de forma que solicitavamao fiscal da freguesia o impedimento da colocação do cruzeirono local, <strong>na</strong>quele mesmo dia, se possível.Mandado pela Câmara para averiguações, o fiscal JoséAntônio de Meneses Brasil informou que a Irmandade doSacramento fundava-se, para a realização da o<strong>br</strong>a, no artigodas posturas que lhe proibia o enterramento dentro das igrejas;além disso, o número de suas catacumbas era limitado. Osmoradores, por outro lado, se apoiavam no mesmo artigo, quetambém atribuía a Câmara a desig<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> terrenos paraconstrução de cemité<strong>rio</strong>s: o terreno da cadeia nova, além denão ter sido desig<strong>na</strong>do pela municipalidade para este fim, tinhao agravante de ser dentro da <strong>cidade</strong>. Em vista das alegaçõesde ambos os la<strong>dos</strong>, o fiscal propôs uma conciliação. Se osmoradores se queixavam pelo fato de "repug<strong>na</strong>rem" umcemité<strong>rio</strong> debaixo de suas janelas, em lugar dele poderia serlevantado um telhado fechado, estabelecendo-se catacumbas,cuja existência não excluiria a possibilidade da construção danova igreja matriz, pois que esta poderia ser ao ladodaquelas63 .Após exami<strong>na</strong>r a informação do fiscal e a representação<strong>dos</strong> moradores, o intendente de polícia da Corte, JustinianoJosé Tavares, determinou que José Antônio Meneses Brasilprocedesse contra a irmandade, <strong>na</strong> forma das posturas, ,dandoparte a Câmara de tudo o que ocorresse a respeito, bem comodetermi<strong>na</strong>sse ao procurador da municipalidade o embargo dao<strong>br</strong>a. Na opinião do intendente de polícia, os mótivos daoposição <strong>dos</strong> moradores eram justos,


porquanto sendo proibido pelo título 1 O 4 1 O das posturas daCâmara enterrarem-se corpos dentro das igrejas, claustros, ouconventos, e em qualquer [sic] outros lugares no recinto dasmesmas, não se tendo feito ainda efetiva esta proibição pelafalta de cemité<strong>rio</strong>, que a mesma postura determi<strong>na</strong> sejamestabeleci<strong>dos</strong> fora da <strong>cidade</strong>, e nos lugares marca<strong>dos</strong> pelaCâmara, parece-me abusivo o procedimento da Irmandade doSantissimo Sacramento, quando se julga com o direito a fazerum cemité<strong>rio</strong> no lugar desti<strong>na</strong>do para a matriz, e sem quesemelhante localidade tenha sido desig<strong>na</strong>da pela Câmara, alémde que quando se pudesse duvidar do grande mal que resulta hsaúde pública pelo estabelecimento do cemité<strong>rio</strong> dentro da<strong>cidade</strong> em virtude <strong>dos</strong> miasmas, que exalam os corpos emputrificação [sic] e que por isso se toma conveniente, que taisestabelecimentos sejam feitos em lugares apropria<strong>dos</strong>, e.distante das povoaçi3es para que a morada pestífera <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>não prejudique a saúde <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, nenhum lugar me parecemenos próp<strong>rio</strong> para um cemité<strong>rio</strong>, do que o pretendido, quesendo um lugar úmido e baixo, pouco exposto aos ventos, e <strong>na</strong>proximidade do mangue da Cidade Nova, não pode prestar-seao fim desig<strong>na</strong>do sem grave prejuizo da saúde pública (...)64A petição <strong>dos</strong> moradores chegou a Secretaria de Estado<strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> que, no dia 10 de maio, enviouportaria a Câmara municipal, solicitando que ela fornecesseinformações so<strong>br</strong>e o ocorrido. Esta, em sua resposta, informouter sido aprovado, em sessão, o embargo das o<strong>br</strong>as dairmandade, além de sua punição, em conformidade com asposturas. Em 20 de junho, uma nova representação foi enviadaao Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong>. Nela, os queixosos insistiam noimpedimento das o<strong>br</strong>as do cemité<strong>rio</strong>, alegando que elas iamcontra as determi<strong>na</strong>ções imperiais e as leis a tal respeito. Nesteponto, eles se referiam ao decreto imperial de outu<strong>br</strong>o de 1828,que incumbia a Câmara municipal construir cemité<strong>rio</strong>spúblicos, fora <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>, proibindo ossepultamentos no inte<strong>rio</strong>r das igrejas. Em seu despacho, aCâmara disse já ter tomado as pr~vidências~~ .No ano seguinte, no mês de junho, a questão veio novamente ato<strong>na</strong>, com uma nova representação, a Câmara municipal, <strong>dos</strong>moradores das mesmas ruas citadas, com 72 assi<strong>na</strong>turas. Nela


elern<strong>br</strong>avam os fatos ocorri<strong>dos</strong> no ano que passara e as providênciasquanto ao embargo das o<strong>br</strong>as e contra a Irmandade do Sacramento.Os moradores afhamm que se sentiram descansa<strong>dos</strong>, até que, nodia 19 de maio, "ao pino do meio dia e com maior escândalo, edentro de uma grande corporação vieram sepultar [ilegivel] corposque Wiham apinha<strong>dos</strong> uns so<strong>br</strong>e os outros e até entre eles um oficialde farda até com espada". Custaram a dtarque a Câmara tivessevoltado atrás em sua decisão. Ao que solicitaram a mesma - fazendouso do já sabido discm a respeito do prejuízo <strong>dos</strong> miasmas a saúde<strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> - que atendesse ao seu pedido e tomasse providênciascontra aquele procedimento que, segundo eles, em fhto da "ganânciade meia dúzia de indivíduos" que, não morando no lugar, não seimportavam com o bem - estar <strong>dos</strong> OU~~OS~~.José Antônio Meneses Brasil, incumbido pela Câmarade exercer toda a inquirição a respeito, afirmou, em 25 deoutu<strong>br</strong>o, que a Irmandade do Santissimo Sacramento tinhanecessidade de sepultar os ossos de seus irmãos faleci<strong>dos</strong> "emlugar sagrado" e, para esse fim, pediu a Câmara o consentimentopara sepultá-los m terreno cacado e bento da CadeiaNova. Segundoo fiscal, a sepultura <strong>dos</strong> ossos, ainda que resseca<strong>dos</strong> e sem exalações,não excluía a idéia de cemité<strong>rio</strong> - contra o qual os moradores vizinhoshaviam representado a Câmara. Apesar da oposição, fora concedida,em 30 de .outu<strong>br</strong>o, licença a irmandade para que ela enterrasse osossos "inteimmente descama<strong>dos</strong>" no local67. Em 13 de dezem<strong>br</strong>o, ochefe de polícia da Corte enviou oficio a Câmara municipal,recomendando que ela revogasse a licença concedida a In<strong>na</strong>ndade,solicitando que dali em diante os irmãos do Santissimo Sacramentonão fossem autoriza<strong>dos</strong> a fazer enterramento algum <strong>na</strong>quele lugar.Justificou a atitude no fato de a irmandade ter "abusado" da licençaconcedida, ente<strong>na</strong>ndo cadáveres cujos sexos se distinguiam não sópelo rosto, como pelas vestes, tendo-se visto, inclusive, um com fardade capitão, o que conímiava a idéia de ossos descama<strong>dos</strong>6*.Novamente chamado pela Câmara a dar informações, ofiscal da freguesia decidiu "informar circunstanciadamente ecom imparcialidade" as acu áções de sepultamento de ossos7encar<strong>na</strong><strong>dos</strong> no local. No dia 23 de dezem<strong>br</strong>o, chamou o procuradore o tesoureiro da Irmandade do Sacramento e alguns <strong>dos</strong> queixosode, estando no terreno desti<strong>na</strong>do a construção da matriz,


inesperadamente exigiu, "para melhor desco<strong>br</strong>ir a verdadealegada", que os ossos fossem desenterra<strong>dos</strong>. E,assim procedendo, foram saindo ao princípio ossosdesencar<strong>na</strong><strong>dos</strong>, e mais adiante um pequeno travesseiro, pequenospedaços de vestimentas, uma cabeça com parte <strong>dos</strong> cabelos,uma pequenissima porção de cal, e cavando-se mais abaixo, ejá <strong>na</strong> água, saiu também um osso de per<strong>na</strong> com alguma carne àcuja vista os queixosos declararam não ser preciso desenterrarsemais, e retiraram-se, deixando eu ficar <strong>na</strong> superfície da terraos. ossos desenterra<strong>dos</strong> e secos, para que possam ser vistos se aIlustríssir<strong>na</strong> Câmara resolver que algum de seus mem<strong>br</strong>os examineo que acima deixo relata<strong>dos</strong>9:Em vista do descoberto, José Antônio Meneses Brasilinformou a Câmara que os moradores estavam com a razão e queno caso tratava-se de um abuso. Afirmou que a licença concedidatinha vigência até o fim daquele ano e que a repetição <strong>dos</strong>enterrarnentos <strong>dos</strong> ossos só poderia ser feita passa<strong>dos</strong> dois outrês anos, ficando a Irmandade proibida de fazê-lo sem nova licençada Câmara. Entretanto, ele mesmo, mais tarde, em 1849, viabilizariaum novo pedido de licença para sepultar os restos mortais retira<strong>dos</strong>das catacumbas e sepulturas da matriz, com a condição de que atransferência <strong>dos</strong> ossos fosse feita em caixões decentes, efecha<strong>dos</strong>70.To<strong>dos</strong> estes casos mencio<strong>na</strong><strong>dos</strong> apontam para umasensibilidade olfativa em mutação, por parte de alguns moradoresda <strong>cidade</strong> que, diante da expansão urba<strong>na</strong> e do adensamentopopulacio<strong>na</strong>l, voltavam os olhos e os <strong>na</strong>rizes para o espaço<strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, em busca da redefinição <strong>dos</strong> lugares a elesdesti<strong>na</strong><strong>dos</strong>. Sensibilidade esta que fora preconizada pelamedici<strong>na</strong> social e que seria responsável pelo desenvolvimentodas concepções acerca do perigo que a localização dassepulturas no inte<strong>rio</strong>r das igrejas e das <strong>cidade</strong>s representavapara os <strong>vivos</strong>. Ainda que não seja possível generalizar a adgçãodeste novo tipo de sensibilidade para a grande parte da população,que ainda possuía uma visão religiosaso<strong>br</strong>e o odor cadavérico, eque, provavelmente, não estava, ainda, sendo prejudicada pela


proximidade <strong>dos</strong> locais de sepultamento, pode-se dizer que,pelo menos, entre algumas pessoas mais receptivas a estediscurso e que viam suas residências avançarem para as áreasproximas de cemité<strong>rio</strong>s, se acreditava no perigo que os <strong>mortos</strong>poderiam representar para os <strong>vivos</strong>.Além disso, é perceptível, <strong>na</strong>s ações descritas, uma certalentidão da Câmara municipal em obstar tanto os seigrejas, como a dar cumprimento a legislação que lhe aíribuía aconstrução de cemitk<strong>rio</strong>s fora das <strong>cidade</strong>s. Desde que não fosse ela acustear tal empreendimento, as iniciativas para tal seriamparabenizadas, como fez com a Santa Casa da Misericórdia, em 1839.Tal lentidão se paçebe <strong>na</strong> sua in-idade de irnplementar as medidaslegais a respeito do cemité<strong>rio</strong> exúamms.Ofim <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejasDesde o século XVIII, preconizava-se a necessidade datransferência <strong>dos</strong> sepultamentos para fora das zo<strong>na</strong>s urba<strong>na</strong>s e,apesar do reforço que esta idéia sofreu <strong>na</strong> primeira metade <strong>dos</strong>éculo XIX e das ações isoladas de alguns moradores, no geral,não se pôs, definitivamente, em prática esta transferência, que foiignorada pelos órgãos oficiais, o que se percebe pela suarecorrência.Já em 1798, uma sugestão do conde de Resende propôsque a Câmara municipal organizasse uma consulta aos médicos,considera<strong>dos</strong> mais notáveis, so<strong>br</strong>e as causas da insalu<strong>br</strong>idade doRio de Janeiro. As questões foram formuladas pela Câmara,com os pareceres de quatro médicos. Uma série de aspectosforam elenca<strong>dos</strong> como passíveis de intervenção frente a"degeneração" do ar; dentre eles, um dizia respeito aurbanização, que ganhou um projeto, cujo objetivo era elimi<strong>na</strong>rOS elementos de "desordem" que acarretavam o maufuncio<strong>na</strong>mento do todo. Exami<strong>na</strong>ram-se as características tanto<strong>na</strong>turais quanto as que eram resultado da ação do homem, o queincluía, obviamente, a presença <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s.Em 1801, uma carta régia proibiu o enterro <strong>na</strong>s igrejas,


orde<strong>na</strong>ndo a comção de um cemiíé<strong>rio</strong>, como resposta ao dano queo entemmento <strong>na</strong>s igrejas estaria causando a saúde pública7' .Numa portaria de 1825, o imperador, alegandoinsalu<strong>br</strong>idade das formas de sepultamento que eram de uso noRio, ordenou ao provedor-mor de Saúde o estabelecimento deum cemité<strong>rio</strong>, com a ajuda das autoridades eclesiásticas. Emoutu<strong>br</strong>o de 1828, um decreto imperial regulamentou a respeitodo estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s fora do recinto <strong>dos</strong> templos,conferindo as Câmaras municipais a competência <strong>na</strong> matéria.Somente em 1832, a Câmara do Rio de Janeiro deliberoua respeito. O novo código de posturas fornecia indicações so<strong>br</strong>ecemité<strong>rio</strong>s e enterros, orde<strong>na</strong>ndo que houvesse atestado de óbitodado por um médico; normalizando a profundidade das covas e otempo que deviam ficar fechadas e proibindo enterros <strong>na</strong>s igrejase conventos, quando fosse construído um cemité<strong>rio</strong> ou estabelecidoum local para enterros72. No que se refere as medidas desalu<strong>br</strong>idade, o código de posturas de 1 832 retomou as formulaçõesdo parecer de 1798. A' Sociedade de Medici<strong>na</strong>, através de suacomissão de Salu<strong>br</strong>idade, esteve <strong>na</strong> origem de sua elaboração,consolidando, assim, a posição <strong>dos</strong> médicos no apoio asautoridades públicas para o estabelecimento das medidas deurbanização73.No que tange a construção de cemité<strong>rio</strong>s, o cumprimentodas posturas de 1832 não se deu <strong>na</strong> exata proporção do esperado,como foi possível perceber pelo encaminhamento que ela deu aosrequerimentos <strong>dos</strong> moradores de várias freguesias, vistosante<strong>rio</strong>rmente. Em 1833, a Regência, em nome do imperador,recomendava "novamente" a Câmara municipal que cumprisse suasposturas no que se referia a extinção das sepulturas nos templos,devido ao fato de ter chegado ao seu conhecimento que, <strong>na</strong>fkguesia do Pilar, as "fe<strong>br</strong>es continuavam a afligir os habitantes" eque a causa do flagelo eram "as contínuas exalações rniasmáticasproduzidas pelas sepulturas dentro do recinto <strong>dos</strong> templos"74 .Em 22 de maio de 1835, o presidente da Câmam municipal,em vista de um requerimento para que fosse dado andaníento aconstrução <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, determinou o exame de alguÍis pontosda questão, como a indicação de um local, fora da <strong>cidade</strong> e queoferecesse espaço suficiente para a construção de um ou mais


cemité<strong>rio</strong>s. Deveria ser levado em consideração o aumento dapopulação, a fim de que em poucos anos o mesmo não ficasseno Centro da <strong>cidade</strong>; da mesma forma, dever-se-ia verificar seo terreno poderia ser comprado, o montante da despesa, o meiode se transportar os cadáveres <strong>dos</strong> diversos pontos da <strong>cidade</strong>para os ditos cemité<strong>rio</strong>s públicos e tudo o mais relativo a suacon~~ção~~.O projeto não foi levado adiante, pois, novamente emfevereiro de 1841, foi proposto a Câmara que ela se ocupasseo "quanto antes da instituição de cemité<strong>rio</strong>s, para de uma vezcessarem os enterros dentro das igrejas". Para isso serianomeada uma comissão de dois médicos e um engenheiro, aquem seria dada a tarefa de apresentar um programa decemité<strong>rio</strong> público. Em dezem<strong>br</strong>o, a comissão reclamava de ademora de seu parecer dever-se ao fato de não ter recebidouma relação completa <strong>dos</strong> óbitos e <strong>na</strong>scimentos das freguesiasda <strong>cidade</strong>, para os anos de 1830 a 1840. Segundo ela, nãoseria possível fazer cálculos so<strong>br</strong>e o movimento de um períodoinfe<strong>rio</strong>r a dez anos. Um novo parecer da comissão foi enviadoa Câmara municipal, em 4 de dezem<strong>br</strong>o. Nele, afirmava-seestar quase chegando à conclusão <strong>dos</strong> trabalhos. Solicitava-sea Câmara a autorização para a<strong>br</strong>ir um concurso e conferirprêmios aos concorrentes; para o que se requeria a quantia de400$000 a ser gasta com a cunhagem de medalhas, impressãode programas, publicação nos jor<strong>na</strong>is. No entender da comissão,sua função não deveria limitar-se a apresentar um parecer, deixandotodas as dificuldades das aplicações práticas a municipalidade;deveria sim, por outro lado, escolher o local, elaborar a legislaçãoque deveria reger o dito estabelecimento, levantar a planta paraedificação de um cemité<strong>rio</strong> "digno da capital <strong>br</strong>asileira", oque seria realizado a partir,de um concurso, no qual seriamavaliadas e premiadas as melhores proposta^^^.A recorrência das mesmas normas indica que elas nãoeram cumpridas. A protelação da Câmara da <strong>cidade</strong> do Rio deJaneiro em tor<strong>na</strong>r efetivas as posturas de 1832 foi idêntica aque se deu em Salvador. Segundo João José Reis, em Salvador,em que pese as determi<strong>na</strong>ções das posturas de 1829, não foramconstruí<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos até 1 835. Lá também a Câmara


não teria tomado medidas práticas para o estabelecimento <strong>dos</strong>mesmos; até que surgiu uma proposta de empresá<strong>rio</strong>s para aconstrução e administração <strong>dos</strong> prédios mort~á<strong>rio</strong>s~~.Em situação idêntica, surgiu, no Rio de Janeiro, em 1843,uma proposta privada para a construção <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>spúblicos da Corte. Dois empresá<strong>rio</strong>s, João Tomás Tarrand eJoão Pereira da Costa Mota, enviaram ao poder Legislativouma representação, <strong>na</strong> qual manifestavam sua pretensão deestabelecerem cemité<strong>rio</strong>s extramuros. Para tal, solicitaram aodr. Pereira Rego que intercedesse a seu favor junto ao corpolegislativo. Para o médico, tratava-se de uma propostaaceitável, tanto que enviou a Câmara um ofício, no qual eleapresentava a viabilidade e a necessidade da proposta <strong>dos</strong>empresá<strong>rio</strong>s. . ,(...) tão justo como necessá<strong>rio</strong>, não s6 em atenção à[magnitude?] do objeto, às dificuldades sem número com quetem de [lutar?] os ditos empresá<strong>rio</strong>s, e ainda em cumprimento<strong>dos</strong> nossos deveres como primeiros encarrega<strong>dos</strong> dasalu<strong>br</strong>idade pública (...) Tenho a honra de oferecer a seguinterepresentação ao Poder Legislativo, a fim de que merecendo avossa aprovação proceda ou acompanhe o projeto da Empresa<strong>dos</strong> peticioná<strong>rio</strong>^'^ .Fazendo-se porta-voz <strong>dos</strong> empresá<strong>rio</strong>s, o médicoacreditava estar dando encaminhamento a um dever seu comozelador pela salu<strong>br</strong>idade pública. Infelizmente, muito do textoda representação <strong>dos</strong> empresá<strong>rio</strong>s não pôde ser recuperadopelo mau estado de conservação do documento. Do que sepode ler, eles operaram com o discurso médico a respeito danecessidade de se afastar <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> o "espetáculo de terror,causador de mortalidade e responsável por moléstias graves".Aludiram a que só o corpo legislativo poderia elimi<strong>na</strong>r algumasdificuldades para a execução <strong>dos</strong> ditos cemité<strong>rio</strong>s. Primeiramente,era preciso capital a ser empatado e que, infelizmente, os que tinham 1condições-para tal não se sentiam atraí<strong>dos</strong> pela empresa. O segundoobstáculo "encontra-se <strong>na</strong> ganância que os interessa<strong>dos</strong> nosenterrarnentos dentro <strong>dos</strong> templos ou em catacurnbas fizeram [sic]em detrimento do culto divino, e do bem-estar do humano"79 .Suas atitudes eram semelhantes às <strong>dos</strong> empresá<strong>rio</strong>s que,UII


em Salvador, se ofereceram; em 1835, para estabelecer oscemité<strong>rio</strong>s públicos. Lá também defendiam a necessidade daseparação entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>, como também entre o cultodivino e o culto <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>s0. Por fim, acreditavam que teriamo agradecimento da população: "A população do Rio de Janeiroreceberá tão assi<strong>na</strong>lado benefício da criação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>sextramuros que em lem<strong>br</strong>ança de um tal bem será umtestemunho eterno de gratidão para com aqueles que ohouverem [promovid~?]"~~.No ano de 1843, a <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro vivia umaepidemia de escarlati<strong>na</strong>. Devido ao seu agravamento, em agosto,uma portaria do Ministé<strong>rio</strong> do Impé<strong>rio</strong> foi enviada a Câmaraso<strong>br</strong>e a necessidade de se evitar a abertura antecipada dascatacumbas das igrejas. Ao contrá<strong>rio</strong> do estabelecido, elasestariam sendo abertas para dar lugar a novos sepultamentos, nointervalo de quatro a cinco meses, e não no prazo de 18 meses, deforma que se pedia a municipalidade que promovesse o "exato"cumprimento de suas posturas "a fim de pôr termo a tãoescandaloso abuso"82.Ainda nesse ano, a Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, em 12 deagosto, a<strong>br</strong>iu as discussões so<strong>br</strong>e a "urgência para estabelecimentode cemité<strong>rio</strong>s extramuros". Acompanhar os debates que seseguiram nesta sessão e <strong>na</strong> do dia 19 é interessante, pois descrevemas impressões, não ape<strong>na</strong>s <strong>dos</strong> legisladores, mas de homens queviveram aquelas situações e traziam em suas falas os pensamentosdaquela sociedade, de modo a nos fornecer, pela contramão, asimpressões do restante da sociedade. Nos debates fica claro quea epidemia era a responsável pelo inicio das discussões so<strong>br</strong>e oscemité<strong>rio</strong>s, e que só em função de sua presença se tomava possívela decisão de extinguir os sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas.Segundo o deputado visconde de Baependi, a Câmaradeveria levar este assunto em consideração para tranquilizar apopulação da capital, atemorizada pela epidemia que se desenvolviacom mais força <strong>na</strong>queles dias; aproveitou, também, para criticar ofato de ser ape<strong>na</strong>s diante de uma epidemia contagiosa que sebuscava o remédio para a suspensão <strong>dos</strong> enterramentos nostemplosg3. Segundo o deputado Luis Carlos, era necessá<strong>rio</strong>aproveitar a ocasião para se adotarem as referidas medidas, pois,


uma vez cessada a necessidade do momento, sua execuçãoficaria entregue a um "total esquecimentomg4 . Em praticamentetodas as falas, os deputa<strong>dos</strong> afirmavam que a escarlati<strong>na</strong> eradecorrente <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas, aos quais se seguiaa ema<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> miasmas pútri<strong>dos</strong>, prejudiciais a saúde.To<strong>dos</strong> demonstravam em suas críticas uma familiaridadecom os discursos médicos so<strong>br</strong>e a questão. Se, por um lado,defendiam a urgência no estabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, poroutro, divergiam quanto a forma de execução de tais medidas.Dois grupos se formaram. Um, minoritá<strong>rio</strong>, defendendo aautorização para que os empresá<strong>rio</strong>s Tarrand e Mota tomassemo encargo do estabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s. O outro defendiaa entrega de tal encargo às associações religiosas. Justificavam,para isso, a necessidade de não se tomar uma medida contráriaàs expectativas da população. Temia-se que, atribuindo aosempresá<strong>rio</strong>s o referido empreendimento, poderia haver umarevolta da população, a exemplo da que ocorrera em Salvador,em 1836, quando irmandades e população, discordando da leiprovincial que cometia o estabelecimento e administração docemité<strong>rio</strong> público a empresá<strong>rio</strong>s, revoltaram-se, destruindo ocemité<strong>rio</strong> recém-fundado85.Entre os que defendiam abertamente a ação <strong>dos</strong>empresá<strong>rio</strong>s estavam o deputado Carneiro da .Cunha e omédico Paula Cândido. Em suas intervenções fica claro oobjetivo de Carneiro da Cunha de implementar o projetoprivatista. Defendia-se, afirmando que era seu dever apresentaro projeto, ainda que rejeitado, pois se fosse esperar pelamunicipalidade, o "mal nunca seria remediado". Se ascorporações religiosas quisessem enterrar, deveriam unir-seaos empresá<strong>rio</strong>s. Acreditava, inclusive, que eles as admitiriam,pois elas tinham capitais, e esta seria uma forma de resolver oproblema rapidamente, pois o tesouro público não poderiaestabelecer os cemité<strong>rio</strong>s e nem sabia se a Câmaramunicipal teria rendimentos para tomar uma medida maisrápida a este respeito8'j. Já o dr. Paula Cândido defendiamedidas rápidas, a tempo de inutilizar as causasconcomitantes da epidemia para que os sintomas daescarlati<strong>na</strong> não fossem agrava<strong>dos</strong>:


Sr. presidente, eu vim hoje um pouco mais tarde, porque estiveocupado em fazer as honras de hospedagem a nossa hóspede, aescarlati<strong>na</strong>. Quando entrei porém <strong>na</strong> casa e ouvi discutir-se aurgência deste projeto, disse comigo - aproveita enquanto Brásé tesoureiro. - Vote a Câmara imediatamente por este projeto,dê dinheiro a esses homens para que façam os cemité<strong>rio</strong>s comoquiserem, enquanto rei<strong>na</strong> a e~idemia!~'.Seus argumentos foram semelhantes aos do dr. PereiraRego, quando este apresentou a Câmara municipal arepresentação <strong>dos</strong> empresá<strong>rio</strong>s. Suas preocupações, comomédicos, eram com a saúde pública, independente de quemconcorresse para a sua execução. Em vista disto, foiapresentado, pela comissão de câmaras municipais, o artigo1 O do projeto para ser votado88:A Assembléia Geral Legislativa resolve:Art. 1 > são concedi<strong>dos</strong> por empréstimo a JOÃO TARRANDTOMAS e JOAO PEREIRA DA COSTA MOTA. ou B com~anhiaque eles organizarem, nove loterias de 120:00Ó$000 cada umapara o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s fora da <strong>cidade</strong>, debaixodas seguintes condições:$ I O - Os empresá<strong>rio</strong>s são o<strong>br</strong>iga<strong>dos</strong> pelo contrato feitocom o <strong>gov</strong>erno a construir dois cemité<strong>rio</strong>s nos lugaresdesig<strong>na</strong><strong>dos</strong> pelo mesmo <strong>gov</strong>erno, de acordo com os empresá<strong>rio</strong>s,depois de ouvir a Câmqra municipal: os terrenos necessá<strong>rio</strong>spara esse fim serão compra<strong>dos</strong> pelos empresá<strong>rio</strong>s, que nelesfarão construir as ca~elas necessárias. e a satisfazer tudo maisque respeita ao serviç'o econômico, como capelães, emprega<strong>dos</strong>,embelezamento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, etc.$ 2" - Estes cemité<strong>rio</strong>s serão semelhantes, quando forpossível, ao do padre Lachaise em Paris, contendo em ambosespaço suficiente para to<strong>dos</strong> os enterros que anualmente tiveremlugar, conterão lugares para túmulos, monumentos e sepulturasparticulares reservadas para familias.$ 3" - O preço <strong>dos</strong> jazigos não excederá vinte por centomenos do que os preços atuais <strong>na</strong>s ordens terceiras do Carmoe São Francisco de Paula.$ 4" - AS ordens terceiras hoje existentes serãoconcedi<strong>dos</strong> até o número de cinquenta jazigos a cada uma pormetade <strong>dos</strong> preços atuais para sepultura <strong>dos</strong> irmãos.


5 5" - Os empresá<strong>rio</strong>s se o<strong>br</strong>igarão a principiar a o<strong>br</strong>adentro de seis meses da data do contrato, e ultimar a construçãode ambos os cemitt<strong>rio</strong>s dentro de três anos depois, debaixodas pe<strong>na</strong>s que o <strong>gov</strong>erno desig<strong>na</strong>r.O visconde de BaependiS9 foi um crítico feroz doprojeto apresentado. Opunha-se ao mesmo, alegando nãoconcordar com sua redação. Julgava urgente oestabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s extramuros, mas nãoachavaconveniente que fossem construí<strong>dos</strong> por pessoasparticulares, a quem se concederia um privilégio para só elas"poderem vender sepulturas com detrimento das irmandadese corporações religiosas que tinham feito despesas com aconstrução de catacumbas e sepulturas".Continuava o deputado:e estou bem convencido que a população não receberá muitobem o estabelecimento desses cemitt<strong>rio</strong>s por uma associaçãoque não seja religiosa, como aconteceu <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> da Bahia,onde att se chegaram a cometeros maiores excessos, o quenão aconteceria decerto se as corporações religiosas fossemas encarregadas do estabelecimento do cemitt<strong>rio</strong>. (Apoia<strong>dos</strong>).O receio da reação popular é evidente. Esta era uma matéria, -com a qual se devia ter muita prudência, pois tocava nos interesses _--das ordens terceiras, confrarias e irmandades, "compostas-demilhares de pessoas". Em vista disto, achou melhor que fossedetermi<strong>na</strong>do que todas as irmandades e corporações religiosas,que estivessem dando sepultura no recinto de seus templos e quedesejassem continuar a fazê-lo, fossem o<strong>br</strong>igadas a estabelecercemité<strong>rio</strong>s extramuros no lugar em que o <strong>gov</strong>erno desig<strong>na</strong>sse ecom pe<strong>na</strong>s para as que enterrassem corpos dentro da <strong>cidade</strong>,findo o prazo para a constnição do cemité<strong>rio</strong>. Segundo o visconde,<strong>na</strong> Corte, havia corporações religiosas ricas, que poderiam fazer adespesa que fosse preciso. Assim, apresentou uma emenda aoreferido artigo do projeto, contendo a proposta de encarregar asirmandades e demais corporações religiosas de construíremcemité<strong>rio</strong>s fora da <strong>cidade</strong>g0.O deputado pelo Espírito Santo, Freitas de Magalhã?,


padre, foi um defensor da manutenção das normas eclesiásticasa respeito das sepulturas. Insistiu <strong>na</strong> necessidade de os projetos- serem envia<strong>dos</strong> a uma comissão eclesiástica, para que estaapresentasse um outro projeto, que preenchesse os finsdeseja<strong>dos</strong> com rdação a saúde pública, sem que as instituiçõesreligiosas fossem "ofendidas". Segundo ele, o conteúdo do projetonão poderia ofender as leis canônicas, ainda que atendesse asnecessidades públicas. Para isso, propunha o adiamento dasdiscussões, a fim de que a dita comissão eclesiástica fizesse oseu exame9' . Tendo sido rejeitado o adiamento proposto porFreitas de Magalhães, deu-se continuidade as discussões,incluindo-se ur<strong>na</strong> emenda do deputado Carneiro da Cunha,autorizando o <strong>gov</strong>erno a contratar com os empresá<strong>rio</strong>s.Nesse ínterim, o dr. Paula Cândido interveio,dizendo ser a matéria mais complicada do que parecia,pois não se podiam estabelecer cemité<strong>rio</strong>s extramurossem que fossem acompanha<strong>dos</strong> de outras medidas que,nem de som<strong>br</strong>a, existiam no projeto. Estas se referiam aexclusão <strong>dos</strong> focos de miasmas permanentes no inte<strong>rio</strong>rda <strong>cidade</strong>, para o que preconizava medidas policiais. Omédico voltou então atrás <strong>na</strong> opinião de se fornecer ocontrato a particulares; acreditando ser necessá<strong>rio</strong> quetal incumbência fosse dada a autoridade pública, de formaa garantir que os cemité<strong>rio</strong>s fossem um estabelecimentopúblico:Esta matdria é muito delicada; Deus me livre que, comolegislador, eu a entregue a uma associação privada. Os remorsosme perseguiriam se eu o fizesse. Quando me dirigisse aocemité<strong>rio</strong>, e o.contemplasse cheio <strong>dos</strong> corpos enterra<strong>dos</strong> edissesse: - para isso concorri com meu voto, e Deus sabequantos do inte<strong>rio</strong>r dessas sepulturas estão clamando contramim!- A população ter8 melhor garantia quando a autoridadepública for imediata inspetora, porque o no<strong>br</strong>e deputado bem vêque 6 mais fácil a um homem que queira enterrar uma pessoa foradas regras ordinárias corromper ou iludir uma asssociaçãoparticular do que a autoridade pública, se a ela preside umhomem de toda integridade9'.


Paula Cândido se recusava a dar seu voto ao projetoque, a seu ver, era incompleto. Principalmente no que diziarespeito a parte religiosa. Segundo ele, era necessá<strong>rio</strong> respeitaro pensamento do povo, ainda que nele se achassem"preconceitos":Todas as vezes que eu posso estabelecer uma lei, e de algumamaneira conformh-la com o pensamento público, embora estepensamento público aos olhos da rigorosa filosofia não tenhagrande merecimento, contudo, senhores, como legislador paraque ir debalde e sem fiuto nenhum romper com os preconceitosque não fazem mal a ninguém? Por isto eu votaria por esta leise visse que permitia todo esse aparato que por hhbito, ou comoquer que lhe chamem, se concede à tristeza das famílias quandovai a enterrar uma pessoa sua; mas não vejo medida nenhumarelativa a oficios divinos, e a outras cerimônias religiosas quecostumam acompanhar os corpos até o último jazigo. Sequeremos estabelecer uma lei destas, porque não declaramosque por terem os corpos de ser sepulta<strong>dos</strong> fora das <strong>cidade</strong>s,não ficam por isso priva<strong>dos</strong> de ir receber <strong>na</strong>s igrejas todas ascerimônias religiosas do ~ostume?~'.A exemplo <strong>dos</strong> seus colegas, Paula Cândido defendia amanutenção das cerimônias religiosas tradicio<strong>na</strong>is relativasaos funerais, demonstrando a inexistência de contradição entreuma visão secularizada da morte e as concepções religiosas arespeito <strong>dos</strong> rituais fúne<strong>br</strong>es. O médico acreditava que osoficios ao,s <strong>mortos</strong>, desde os antigos, sempre foram vistos comoprincípio de moralidade. Tal principio não era ape<strong>na</strong>s umaparato, e deveria ser promovido com o objetivo de despertar"o edificio da moralidade" de que tanta necessidade se tinha.Segundo o deputado, o público <strong>br</strong>asileiro já estava convencidoda necessidade de cemité<strong>rio</strong>s extramuros e, certamente, o mesmopúblico não ficaria chocado, se soubesse que a lei não impediriaque os <strong>mortos</strong> recebessem "to<strong>dos</strong> os sufrágios e cerimôniasreligiosas até a última morada". Aludindo indiretamente aofato baiano, disse que talvez estas medidas não teriam recebidoobjeções do povo em alguns lugares, se contivessem esta"peremptória" declara@^^^.


O discurso do médico encerrou esta sessão, quecontinuaria no dia 19, para se discutir o artigo primeiro daresolução so<strong>br</strong>e o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s extramuros<strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, com as emendas recebidas <strong>na</strong> sessão ante<strong>rio</strong>r Adiscussão nesta sessão já foi outra. O deputado Ramiro,alegando a grande importância da matéria, pelo fato de aludira saúde pública, acreditava ser necessá<strong>rio</strong> observar a existênciade "preconceitos populares" que deveriam ser respeita<strong>dos</strong>, nãopara que fossem confirma<strong>dos</strong> ou reforça<strong>dos</strong>, mas para que seprocurasse "lentamente desvanecer", de modo que solicitou oadiamento a fim de que to<strong>dos</strong> os projetos e todas asrepresentações remetidas a Câmara legislativa fossema<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong>. As representações referidas eram a segunda <strong>dos</strong>empresá<strong>rio</strong>s e uma da Ordem Terceira de São Francisco dePaula, que requeria erigir um cemité<strong>rio</strong> e pedia, para isso,algumas concessões95 .Oposições surgiram, principalmente por parte deCarneiro da Cunha, que atribuiu a proposta de adiamento aofato de a epidemia ter diminuído um pouco. Segundo o deputado,isto não elimi<strong>na</strong>va o fato de os enterramentos <strong>na</strong>s igrejascontinuarem a ser um "foco de miasmas". O deputado Resendetambém se opunha ao adiamento, alegando que este só serviriapara dar mais-tempo as irmandades e confrarias que tinham"todo interesse" em que o "negócio" <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s fosseadiado96. Em que pese aos discursos contra o adiamento, estefoi aprovado, após o discurso de Freitas Magalhães,defendendo o tratamento da matéria com prudência, justiça ereligiosidade.Esta augusta Câmara, sr. presidente, C felizmente composta decatólicos, e cada um de seus mem<strong>br</strong>os deve-se mostrar muitozeloso e mui respeitador da atual doutri<strong>na</strong> eclesihstica e dasinstituições religiosas (Apoia<strong>dos</strong>.) Façamos, façamos o bem quenos for possível à humanidade, ocopamos [sic] quanto antes aesta calamidade que pe<strong>rio</strong>dicamente ataca a população desta<strong>cidade</strong>, masrem <strong>na</strong>da toquemos, <strong>na</strong>da tiremos da autoridadeeclesiástica. E necessá<strong>rio</strong> marchar com muito tento neste negbcio,de maneira que nem de leve machuquemos a credulidade <strong>dos</strong>povos9'.


Neste momento foram vito<strong>rio</strong>sos os que defendiam orespeito aos interesses religiosos da população e dasirmandades. No caso destas últimas, pode ser acrescentado ointeresse fi<strong>na</strong>nceiro em manter as sepulturas <strong>na</strong>s suas igrejas,pois, estas representavam a garantia para a adesão de novosirmãos, que buscavam <strong>na</strong> filiação a tais instituições a segurançade serem sepulta<strong>dos</strong> com todo o aparato cerimonial garantidonos compromissos. Além disso, as que haviam construídorecentemente suas catacumbas não perderiam o investimentofeito.Ainda neste ano, o projeto so<strong>br</strong>e estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s foi remetido para o Se<strong>na</strong>do, a fim de ser discutido eaprovado. Caso a câmara vitalícia alterasse seu conteúdo ouoferecesse emendas, o texto voltaria a Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>para nova discussão e, se aprovado, transformado em decreto,sendo enviado ao imperador para ser sancio<strong>na</strong>do. Entretanto,chegado ao Se<strong>na</strong>do ainda em 1843, o projeto só entrou emdiscussão em 1844. Seu conteúdo foi o seguinte98 :Art. 1 " As ordens religiosas e irmandades desta cortepodem estabelecer cemitk<strong>rio</strong>s fora da <strong>cidade</strong>, havendo prkvialicença do <strong>gov</strong>erno.Ficam suspensas as leis de amortização para queas so<strong>br</strong>editas corporações possam adquirir por qualquer títuloos terrenos que forem precisos para os seus cemitk<strong>rio</strong>s, e essaaquisição será isenta do pagamento da sisa.Art. 2" O <strong>gov</strong>erno fica autorizado a contratar comqualquer empresá<strong>rio</strong> ou companhia o estabelecimento de doisou mais cemitk<strong>rio</strong>s, concedendo, por vinte anos ou mais, osprivilkgios exclusivos <strong>dos</strong> carros de aluguel para condução <strong>dos</strong>cadáveres: estipulará o prazo em que devem ser construí<strong>dos</strong>os cemitk<strong>rio</strong>s, e as demais condições que forem convenientes,impondo multas pela infração do contrato.Art. 3" Dois anos depois da promulgação desta resolução,se antes não estiverem prontos os cemité<strong>rio</strong>s de que trata o artigoantecedente, ficam proibi<strong>dos</strong> os enterramentos dentro das<strong>cidade</strong>s e seus arrabaldes, sob a multa de duzentos a seiscentosmil rkis, que pagarão as ordens e irmandades em cujas igrejasse fizerem.Art. 4" Os cemitk<strong>rio</strong>s ficam sob a inspeção do chefe de


polícia e da Câmara municipal no que diz respeito a polícia esaúde p/úúolica, e do bispo quanto as regras que ele prescreverpara os funerais, encomendações, e cerimônias religiosas <strong>dos</strong>enterramentos.Art. 5" Serão puni<strong>dos</strong> com a pe<strong>na</strong> de um a quatro anosde prisão simples aqueles que violarem as sepulturas pararoubarem os cadáveres, ou despojá-los <strong>dos</strong> or<strong>na</strong>tos ouquaisquer objetos com que forem enterra<strong>dos</strong>.Este crime será considerado policial, e comotal processado.Art. 6" A utilidade pública, no caso de ser necessária adesapropriação de terrenos particulares, será verificada edeclarada pelo <strong>gov</strong>erno, por meio do processo administrativoestabelecido no capítulo 3" do regimento do Conselho de Estado.Art. 7" O <strong>gov</strong>erno por meio de um regimento determi<strong>na</strong>rá:1" Os lugares onde pela distância da <strong>cidade</strong> einfluência <strong>dos</strong> ventos podem ser construi<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, o planoque se observará <strong>na</strong> edificação, qual a altura <strong>dos</strong> muros,profundidade das sepulturas, o espaço que deve ter o recinto<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s em atenção ao número provável <strong>dos</strong>enterramentos de cada ano, e o prazo [sic] que deve mediar entreum e outro <strong>na</strong> mesma sepultura.2" Quais e quantos cadáveres deverá cadacemité<strong>rio</strong> receber gratuitamente, o tempo que deve mediar entrea morte e o enterramento, e as medidas policiais que serãoobservadas antes do das pessoas que falecerem de repente.3" Os emolumentos que os párocos continuaram'a perceber das licenças para os enterrarnentos de seus fregueses.4" Todas e quaisquer medidas policiais e desaúde pública que se devem observar <strong>na</strong> condução eenterramento <strong>dos</strong> seus fregueses.O <strong>gov</strong>erno poderá impor neste regimento a multa de 20$a 100$000 pelas infrações.Art. 8" Ficam revogadas quaisquer disposiçbes emcontrá<strong>rio</strong>.No Se<strong>na</strong>do, após a primeira discussão, passou-se asegunda, que foi adiada, tendo o projeto sido enviado, com váriasemendas, as comissões de Fazenda e Eclesiástica para serexami<strong>na</strong>do e dado o parecer, a fim de retomar a discussão. Em1845, as comissões deram seu parecer, após o que sua discussãofoi adiada e esquecida. Com o adiamento das discussões, umamatéria semelhante só retomaria a Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> em1 85099.


No nível da municipalidade, ainda em 1850, foienviada a Câmara uma proposta de criação de umcemité<strong>rio</strong> municipal. O vereador Duque Estrada enviouuma proposta relativa a funerais e cemité<strong>rio</strong>s, divididaem duas partes. A primeira pretendia que se pedisse ao<strong>gov</strong>erno imperial uma lei so<strong>br</strong>e enterros, com o privilégioexclusivo para a Câmara municipal de fornecer os carrosde condução <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> por preços fixa<strong>dos</strong> em tabelas.A segunda propunha que houvesse <strong>na</strong> Corte um cemité<strong>rio</strong>municipal, feito a custa da Câmara, onde fosse dada sepulturagratuita aos po<strong>br</strong>es e, mediante pagamento, àqueles que pudessemfazê-lo. O parecer da Câmara foi contrá<strong>rio</strong> aproposta do vereador.A comissão incumbida de elaborar o parecer justificou que,com relação a primeira proposta, já havia sido discutida no Se<strong>na</strong>doproposta semelhante, sendo estabelecido que o <strong>gov</strong>erno escolheriaa quem daria o privilégio. O que o vereador poderia fazer seriaenviar uma representação ao Se<strong>na</strong>do, propondo que o privilégioficasse com a municipalidade. Quanto a segunda parte, a Câmaravia algumas dificuldades. Em primeiro lugar, já havia concedidolicenças para a construção de cemité<strong>rio</strong>s; em segundo, a o<strong>br</strong>igaçãode dar sepultura aos po<strong>br</strong>es era da Santa Casa da Misericórdiaque, por compensação, fora autorizada a dá-la aos ricos; e, porúitimo, a Câmara alegava que o estabelecimento de um cemité<strong>rio</strong>dependia de grandes capitais, que não possuía, por estarem seuscofies "exaustos" e "so<strong>br</strong>ec.arrega<strong>dos</strong> com grande dívida".Esta última justificativa explica o fato de a Câmara terprotelado, até aquele momento, a ~onstmção do cemité<strong>rio</strong>, comopreviam suas posturas de 1832. E o que se percebe, ao a<strong>na</strong>lisaras várias propostas so<strong>br</strong>e o estabelecimento de novos locaisde sepultura, sempre abando<strong>na</strong>das, após algum tempo. Nosdebates da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, isto ficou claro, quando seafirmou repetidamente, a "ineficácia" da municipalidade em fazercumprir suas posturas1"''.Mas eu deploro que, havendo a lei de 1828 cometido As câmarasmunicipais a o<strong>br</strong>igação de fazer cemité<strong>rio</strong>s, as municipalidadesnão o tenham feito até o presente (apoia<strong>dos</strong>); me parece mesmoque a capital do impé<strong>rio</strong> é-que devia ter dado o exemplo(apoia<strong>dos</strong>), visto que esta refofma de algum m-odo ia entender


com prejuízos espalha<strong>dos</strong> pela' populaçilo, que 6 melindrosotocar de frente, arrostar; portanto me parece que amunicipalidade do Rio de Janeiro 6 alguma coisa censurávelpor n2io ter cumprido com este dever (muitos apoia<strong>dos</strong>).Na Corte, durante a primeira metade do século XIX,consolidava-se, portanto, entre as autoridades médicas epolíticas e entre alguns elementos da população, o medo dacontami<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> pelos cadáveres sepulta<strong>dos</strong> no inte<strong>rio</strong>rdas igrejas ou em cemité<strong>rio</strong>s próximos as residências. Apesarde tudo, as medidas legais, que agiam no sentido de extirpareste medo justificável, a partir da criação de cemité<strong>rio</strong>spúblicos, não foram levadas a cabo. Só com o aparecimentoda epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela, em 1850, com seus drásticosefeitos, é que tais cemidé<strong>rio</strong>s seriam realmente estabeleci<strong>dos</strong> eos enterramentos deixariam de ser feitos <strong>na</strong>s igrejas.Por um lado, tais da<strong>dos</strong> apontam para adifusão, entre algunssetores da população, das noções médicas a respeito do perigodas sepulturas próximas às residências, no que foram reforçadaspelo crescimento urbano das áreas centrais da <strong>cidade</strong>. Fosseatravés da imprensa ou do contato direto com o discurso médico,o fato é que, diferentemente da <strong>cidade</strong> de Salvador, <strong>na</strong> década de1830, os habitantes da Corte mostraram ter contato com aquelediscurso, a ponto de apresentarem uma nova sensibilidade olfativa,que não mais toleravam a ~i~zinhança de suas moradias comcemité<strong>rio</strong>s mal conserva<strong>dos</strong>. Raralelamente, o parlamento jádiscutia a necessidade de legislar a respeito da questão. Por outrolado, entretanto, apesar do reconh'ecimento de alguns so<strong>br</strong>e anecessidade de criar cemité<strong>rio</strong>s públicos, estes, efetivamente,não foram estabeleci<strong>dos</strong>. Até 1850, as medidas que previam oestabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s extramuros não saíram do papel.A conjuntura que implicou, <strong>na</strong> Corte, no fim <strong>dos</strong>sepultamentos eclesiásticos, não foi um fato isolado.Situações idênticas ocorreram em outras regiões do Brasil,neste mesmo período do século XIX, como, por exemplo,<strong>na</strong> freguesia de Campos <strong>dos</strong> Goitacases, <strong>na</strong>s <strong>cidade</strong>s de SãoPaulo, Salvador e Recife. Em to<strong>dos</strong> estes lugares foirecorrente, primeiro a demor,a das autoridades municipais


em legislar a respeito do estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>sextramuros, como determinou o decreto imperial de 1828;poste<strong>rio</strong>rmente, sancio<strong>na</strong>da a lei, surgia o problema de seucumprimento, demoravam-se anos até a efetivação das o<strong>br</strong>as<strong>dos</strong> prédios mortuá<strong>rio</strong>s, bem como de seu funcio<strong>na</strong>mento.Somente diante do recrudecimento de algum surtoepidêmico é que os <strong>mortos</strong> deixavam de ser leva<strong>dos</strong> paraas igrejas ou seus cemité<strong>rio</strong>s contíguos.IVa província do Rio de Janeiro, <strong>na</strong> freguesia de SãoSalvador <strong>dos</strong> Campos <strong>dos</strong> Goitacases, o cemité<strong>rio</strong> públicodemorou a entrar em funcio<strong>na</strong>mento. Desde 1835 a Câmarainstituíra uma lei, aprovando a escolha do terreno para a devidaconstrução; entretanto, ape<strong>na</strong>s em 1850 é que se cogitouconstruí-10, apesar de os enterramentos continuarem a ser feitos<strong>na</strong>s igrejas, não fosse o cólera-morbo ter batido a porta <strong>dos</strong>campistas, em 1855. Em outu<strong>br</strong>o deste ano, diante dasnumerosas vítimas, foram fi<strong>na</strong>lmente apresentadas a planta e oorçamento para as o<strong>br</strong>as'0' .Em São Paulo, ainda em 1850, os sepultamentos nointe<strong>rio</strong>r das igrejas eram tolera<strong>dos</strong> e pratica<strong>dos</strong>. Por volta de1856, diante do cólera-morbo é que, efetivamente, o cemité<strong>rio</strong>começou a ser erguido, tendo sido benzido e i<strong>na</strong>ugurado,ape<strong>na</strong>s em 1858, em decorrência da resistência por parte dapopulação e das associações religiosas em dirigir para lá oscadáveres. O caráter aparentemente menos drástico da epidemiado cólera nesta região, em relação as demais, provavelmenteimpediu que as providências de transferência <strong>dos</strong> sepultamentosfossem tomadas imediatamenteIo2Em Salvador, como já se mencionou, o conturbadoprocesso de estabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos - queculminou <strong>na</strong> destruição do prédio recém-i<strong>na</strong>ugurado em 1836,movimento controlado após a garantia da manutenção das antigaspráticas de sepultamento - só teve seu desfecho com o adventoda epidemia de cólera, em 1 855'03.Em Recife, ape<strong>na</strong>s em 1841 a Câmara municipal deucumprimento ao decreto imperial de 1828, regulando a respeitodo cemité<strong>rio</strong> público, mas somente em 1850, com a fe<strong>br</strong>e .amarela, ele foi i<strong>na</strong>uguradolo4..


Tais da<strong>dos</strong> apontam para a evidente relação entre acriação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos e.a ocorrência de epidemias.Apesar de o discurso médico ter feito seus adeptos e asautoridades terem legislado a respeito do estabelecimento <strong>dos</strong>prédios mortuá<strong>rio</strong>s, seria ape<strong>na</strong>s com o advento de um surtoepidêmico, com um alto índice de mortalidade, é que os <strong>mortos</strong>seriam definitivamente transferi<strong>dos</strong> para longe <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, paraos cemité<strong>rio</strong>s públicos. E o processo de sua criação, <strong>na</strong> Corte,que será a<strong>na</strong>lisado no próximo capítulo.


NOTAS' DELUMEAU, Jean. op.cit., p.107.Expressão usada para sugerir duas faces da colonização. Cada face foirepresentada por um lado de uma moeda, de forma que, no pe<strong>rio</strong>docolonial, a "cara7' foi associada à Metrbpole, e a "coroa", à Colônia. Cf.MATTOS, Ilr<strong>na</strong>r Rohloff de. O tempo saquarema. São Pau1o:HUCITECBrasilia:INL, 1987. 'Idem. p30.Termo utilizado por Ilmar R. de Mattos, para definir aqueles que, pormeio de uma ação estatal, exerceram uma direção intelectual e moral(de acordo com o pressuposto gramsciano de intelectual orgânico),<strong>na</strong> sociedade imperial <strong>br</strong>asileira, após o pe<strong>rio</strong>do regencial. Destegrupo, fizeram parte tanto a alta burocracia imperial - se<strong>na</strong>dores,magistra<strong>dos</strong>, ministros e conselheiros de Estado, bispos, dentreoutros - quanto os propriet6<strong>rio</strong>s rurais, localiza<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s mais diferentesregibes e nos mais diferentes pontos do Impé<strong>rio</strong>, mas que, no entanto,orientaram suas aç6es pelos parâmetros fixa<strong>dos</strong> pelos dirigentesimperiais, além de professores, médicos, jor<strong>na</strong>listas, literatos edemais agentes "não públicos", constituindo um conjunto unificadotanto pela adesão aos principios da Ordem e Civilização, quanto pelasações que visavam a sua difusão. Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de.op.cit., p.3-4.Idem. p.201.Idem.Idem. p.212.Idem. p.176.MACHADO, Roberto. op.cit., pp. 155-1 56.'O Idem. pp.157-158.I'Por decreto de 15/1/1830, os estatutos da Sociedade de Medici<strong>na</strong> doRio de Janeiro especificaram seu funcio<strong>na</strong>mento. Deveria ser umaespécie de consultoria do <strong>gov</strong>erno para assuntos relacio<strong>na</strong><strong>dos</strong> à saúdepública. Em 1835, transformada <strong>na</strong> Academia Imperial de Medici<strong>na</strong>do Rio de Janeiro: seus novos estatutos, aprova<strong>dos</strong> por decreto de 81


511835, definiram-<strong>na</strong> como especialmente instituída para responderAs perguntas do <strong>gov</strong>erno principalmente com relação A saúde pública(privilegiando as epidemias), de forma que, ao lado da faculdade deMedici<strong>na</strong>, a Academia caracterizou-se, oficialmente, como instânciaespecializada <strong>na</strong> produção de um saber com vistas a viabilizar aperspectiva política da higienização do espaco urbano. Cf. ENGEL,Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Riode Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989. p.40.l2 Os médicos estavam inseri<strong>dos</strong> <strong>na</strong> categoria <strong>dos</strong> profissio<strong>na</strong>is liberaisestabeleci<strong>dos</strong> <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, que tendeu a se tomar, aolongo do século XIX, cada vez mais expressiva numericamente.Apresentavam-se "como um <strong>dos</strong> segmentos da intelectualidade quese empenhavam <strong>na</strong> tarefa de orde<strong>na</strong>r aquilo que era visto comodesordem, transformando a <strong>cidade</strong> num espaço civilizado". Foram osdissemi<strong>na</strong>dores de um projeto de normalização do espaço socialurbano sob inspiração <strong>dos</strong> padr6es. burgueses de modernização eprogresso. Cf. ENGEL, Magali. op.cit., pp.38-39.l3 MACHADO, Roberto. op.cit., pp. 186- 189.l4 Idem. pp.278-280." Idem. p.116.l6l7l9BENCHIMOL, Jaime Lany. op.cit., p.117.A respeito da literatura médica so<strong>br</strong>e os enterros, Cf. REIS, João José.op.cit., pp.254-262; ARAUJO, dr. Carlos da Silva. op.cit., pp.248-255 eMACHADO, Roberto. op.cit., pp.288-293.FEITAL, José Maria de Noronha. Memória so<strong>br</strong>e as medidasconducentes a prevenir e atalhar o progresso da fe<strong>br</strong>e amarela. Riode Janeiro: Typ. do Brasil, 1850. p. 17.REIS, João José. op.cit., pp.262-265.2o DELUMEAU, Jean. op.cit., p. 125.21 A<strong>na</strong>is da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 121811 843, discurso deHenrique de Resende. Tomo 2, p.72 1.22 REIS, João José. op.cit., p.264.l3 LALLEMANT, Roberto. op.cit., 1851. Apud ARAUJO, Dr. Carlos daSilva. op.cit., p.258.


24 DELUMEAU, Jean. op.cit., pp. 12 1-125.25 RENAULT, Delso. O Rio de Janeiro: a vida <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> ... p.19. . ..Infelizmente, não consegui localizar o preço comum co<strong>br</strong>ado por esteserviço. No entanto, em 7/5/1850, uma proposta do vereador DuqueEstrada, so<strong>br</strong>e a criação de um cemitC<strong>rio</strong> municipal, foi enviada àCâmara municipal do Rio de Janeiro, em que fazia referência ao'encarecimento <strong>dos</strong>,preços de carros para enterros. Segundo o vereador,durante a epidemia, o povo da <strong>cidade</strong> "sofria" com a exigência depreços muito altos pelos aluguCis de carros para a condução <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>;sendo notó<strong>rio</strong> que eram aluga<strong>dos</strong> por 300$000 rCis e mais, quando omesmo serviço poderia custar a terça ou a quarta parte desta quantia.Cf. AGCRJ - Proposta do vereador Duque Estrada que alude aoencarecimento de preços de carros para enterros e sugere a criaçãode um cemité<strong>rio</strong> municipal - onde se dê sepultura gratuita aospo<strong>br</strong>es, podendo-se localizar o dito cemité<strong>rio</strong> num grande terrenode Mata-Cavalos pertencente a João Joaquim Marques, que fica<strong>na</strong> alturafionteira da casa <strong>dos</strong> faleci<strong>dos</strong> Dr. Bontempo e em terrenoimediato que pertencia ou pertence a d. Luísa Botelho. Rio deJaneiro: 7/5/1850: No regulamento do serviço de enterros, baixadocom o decreto n0796, de 14/6/1851,um carro de condução decadhveres não saía por mais de 50$000 reis.l6 Ofício do chefe de polícia, Antônio Simões Silva, em 5/3/1850 in:MONTEIRO, JosC Chrysostomo. Notícia histórica da fundação docemité<strong>rio</strong> da Venerável Ordem Terceira <strong>dos</strong> Mínimos de S. Franciscode Paula, em Catumbi Grande. Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo,1873. p.14.l7 Ofício do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong>, em 8/3/1850 in:MONTEIRO, Jose Chrysostomo. op.cit., p.14.2B Ofício do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong>, em 16/3/1850 in:SERZEDELLO, Bento José Barbosa. Arquivo Historico da VenerávelOrdem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Canno, erecta no Riode Janeiro desde sua fundação, em 1648 a 1872. Rio de Janeiro: Typ.Perseverança, 1872. p.32629 Ofício do chefe de policia da Corte, em 30/5/185 in: MONTEIRO,JosC Chrysostomo. op.cit., p. 15.'OAGCRJ - Ofício do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> ao chefe depolícia da Corte, em 6/7/1850;AGCRJ - Ofcios do chefe de polícia Antonio Simões da Silva so<strong>br</strong>elicença para cemité<strong>rio</strong> e do visconde de Monte Alegre, ministro do


Impé<strong>rio</strong>, acerca do mesmo assunto. Rio de Janeiro: 71511 850;BN - Requerimento da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição dacapela da rua do Sabão a S.M. I, pedindo autorizaçãopara estabelecerseu cemité<strong>rio</strong> a rua do Catumbi, uma vez que tinham sido proibi<strong>dos</strong> ossepultamentos <strong>na</strong>s igrejas. Rio de Janeiro: 19/4/1850." REIS, João Jost. op.cit., p.278. O Campo da Pólvora era o cemitt<strong>rio</strong>desti<strong>na</strong>do aos escravos, suicidas, criminosos e indigentes de Salvador.Cf. o mesmo autor, pp.195-196.32A respeito da história do desenvolvimento da percepção olfativa, verCORBM, Alain. Saberes e odores. O olfato e o imaginá<strong>rio</strong> socialnos séculos dezoito e dezenove. Sâo Paulo: Companhia das Letras,. 1987.p~. 19-119." REIS, João Jost. op.cit., p.268.34 Ver ilustração p. 69.35 CORBM, A1ain.o~. cit. p.83. A respeito do "rebaixamento do limitede tolerância olfativa", ver pp.79-85.36 "Pretos novos" era a referência aos escravos rectm-chega<strong>dos</strong> da Áfiica.Uma vez que os <strong>na</strong>vios negreiros provenientes da Afiica chegavam-aoporto da <strong>cidade</strong>, os negros, após passarem pela Alfândega, eramconduzi<strong>dos</strong> para os depósitos que se situavam <strong>na</strong>s partes infe<strong>rio</strong>res deprtdios da rua Direita e do início das ruas transversais e lá ficavam àdisposição <strong>dos</strong> compradores. Cf. COARACY, Vivaldo. op.cit., p.358.37 FAZENDA, Jost Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro in:Revista do Instituto Histbico e Geográjco Brasileiro. Rio de Janeiro:Imprensa Nacio<strong>na</strong>l, ,I 92 1. Tomo 86, vol. 140. p.348.38COARACY, Vivaldo. op.cit., pp.383 e 385; Segundo Manolo GarciaFlorentino, entre as dtcadas de 17 10 e 1720, houve um aumento decerca de 40% no volume das importações de escravos pela <strong>cidade</strong> doRio de Janeiro. Cf. FLORENTMO, Manolo Garcia. Em costas negras:um estudo so<strong>br</strong>e o trájco atlántico de escravos para oporto do Rio deJaneiro c. 1790- c. 1730. Niterói: UFF, 199 1. Tese de doutorado. p.44.vol. 1.39 FAZENDA, Jost Vieira. op.cit., p.350.40 6 Valongo era o trecho urbano, pertencente à freguesia de Santa Rita,qiie compreendia os bairros da daúde e da Gamboa. Todo o antigo


distrito do Valongo estti hoje compreendido <strong>na</strong> zo<strong>na</strong> do Cais do Porto.Cf. COARACY, Vivaldo. op.cit., p.476.41 LAMARÃO, Sergio Tadeu de Niemeyer. Dos trapiches aoporto: um;estudo so<strong>br</strong>e a área portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: '.Secretaria Municipal de Cultura, 199 1. (Biblioteca Ca<strong>rio</strong>ca, v. 17) p.27.42 Idem, p.29.43 Idem, pp.37-40 e BERNARDES, Lysia M. C. Evolução da paisagemurba<strong>na</strong> do Rio de Janeiro ate o início do s~culo XX in: ABREU,Maurício de Almeida (org.) Natureza e sociedade no Rio de Janeiro.Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. pp.46-47.44 BRANDÃO, A<strong>na</strong> Maria de Paiva Macedo. Alterações climtiticas <strong>na</strong>tirea metropolita<strong>na</strong> do Rio de Janeiro: uma possível influência docrescimento urbano in: ABREU, Maurício de Almeida (org.) op.cit.,pp.148-149.45 KARASCH, Mary. op.cit., pp.38-39.46 Idem, p.38.47 BN - Ofício de João Inácio da Cunha a José Bonifácio de Andradee Silva, interpondo seu parecer so<strong>br</strong>e o requerimento <strong>dos</strong> moradoresdo bairro do Valongo, que pediam se removesse o cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong>pretos novos para local mais distante, e propondo as providênciasque sedeveriam tomar a esse respeito. Rio de Janeiro: 12/03/I 822.48 Idem.49 Idem.J0 BN - Oficio de João Inácio da Cunha a José Bonifácio de Andradee Silva, interpondo seu parecer so<strong>br</strong>e o requerimento <strong>dos</strong> moradoresdo bairro do Valongo .. .51 FAZENDA, Jose Vieira. op.cit, p.35 1.52 AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "negrds novos", ao morro daSaúde, no Valongo, 14/02/1829.53 Idem, 05/03/1 829.54 AGCRJ - Enterramento <strong>na</strong> igreja de Santo Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es.


Abaixo-assi<strong>na</strong>do de moradores da rua do Se<strong>na</strong>do próximo à igrejade Santo António <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es so<strong>br</strong>e os incovenientes das catacumbas<strong>na</strong>quela igreja [grifo no origi<strong>na</strong>l] e informação dofiscal dafreguesiade Santa<strong>na</strong>, a respeito do juiz de paz. Rio de Janeiro: 1832.55 Idem.56 AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> da freguesia da Lagoa - 1834 a 1836.57 Idem." Em 1839, o provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira, com oirmito de fazer o<strong>br</strong>as dc amplicação do seu hospital da Miseric<strong>br</strong>dia,no morro do Castelo, decidiu ocupar o terreno no qual se situava oantigo cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa, desti<strong>na</strong>do aos <strong>mortos</strong> do hospital, aosindigentes, aos escravos e aos militares. Co,m efeito, tencio<strong>na</strong>vaconstruir o novo cemite<strong>rio</strong> <strong>na</strong>s proximidades do Caju, em um terrenoque, para este fim, foi comprado.59 BN - Oficio de José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa aFrancisco de Paula Almeida e Albuquerque, emitindo parecer so<strong>br</strong>erequerimentoem que os moradores da praia de São Cristóvão epontado Caju solicitam a S.M.I. que a supracitada casa fosse impedida deestabelecer o seu cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong> ponte do Calafate. 1/07/1 839.60 ABREU, Maurício Aimeida. A evolução urba<strong>na</strong> do Rio de Janeiro. Riode Janeiro: IPLANRIOIZahar, 1987. p.37.i6' Ibidem e BEFWARDES, Lysia M. C. Evolução da paisagem urba<strong>na</strong> doRio de Janeiro até o inicio do século XX in: ABREU, Maurício Aimeida.Natureza e sociedade, p.50.62 COARACY, Vivaldo. op.cit., pp. 164- 166;AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong>s igrejas. Cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong> matriz de Santa<strong>na</strong> -1844.63 Idem.64 BN - Informação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro: a JoãoCarlos Pereira de Almeida Torres, ministro e secretá<strong>rio</strong> de Estado<strong>dos</strong> Negcjcios do Impé<strong>rio</strong>, so<strong>br</strong>e o requerimento <strong>dos</strong> moradores $afreguesia de Santa<strong>na</strong>, que se manifestam contra o projeto daIrmandade do Santíssimo Sacramento, de estabelecer um cemité<strong>rio</strong>no terreno desti<strong>na</strong>do à edrficação da igreja matriz. Rio de Janeiro:18/06/1844.


65 Idem.66 AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa da Misericórdia; e em terrenopróximo a Cadeia Nova, com a representação <strong>dos</strong> moradores dasruas São Leopoldo, Santa Rita, Alcântara e das Flores, e informaçãoda Polícia e do fiscal da freguesia de Santa<strong>na</strong> - 1841 e 1845.67 AGCRJ - Enterramento <strong>na</strong> Cadeia Nova. Freguesia de Santa<strong>na</strong> -1845.68 AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa da Misericórdia; e em terrenopróximo à Cadeia Nova ...69 Idem.70 AGCRJ - Cemité<strong>rio</strong> da Freguesia de Santa<strong>na</strong>.71 MACHADO, Roberto. op.cit., pp. 143- 146;IHGB - Carta régia aos <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>dores e bispos do Brasil proibindoenterro <strong>na</strong>s igrejas, e mandando fazer um ou mais cemité<strong>rio</strong>s. Lisboa,9/1/1801.72 REIS, João José. op.cit., pp.275-276; MACHADO, Roberto. op.cit.,pp. 184 e 293-294.73 MACHADO, Roberto. op.cit., pp. 189- 190.74 AGCRJ - Sepultura nos recintos <strong>dos</strong> templo. Rio de Janeiro: 3/91] 833.75 AGCRJ - Proposta da Cámara Municipal para o estudo do localdesti<strong>na</strong>do a cemité<strong>rio</strong> público. RJ. Sessão da Câmara, 22/51] 835.76 AGCRJ - Parecer da comissão nomeada pela Cdmara incumbida deapresentar um programa para os cemité<strong>rio</strong>s públicos. Rio de Janeiro:11/12/1841.AGCRJ - Proposta para que a municipalidade cuide da instalação decemité<strong>rio</strong>s. Rio de Janeuo: 91211 84 1.AGCRJ - Parecer do relator da comissão nomeada pela Câmara,Antônio José Souto Amaral, de 4/12/1842, a respeito <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>sIpúblicos.77 REIS, João José. op.cit., pp.281-285.i78 AGCRJ - Oficio do dr. José Pereira Rego so<strong>br</strong>e a pretensão de JoãoTarrand e João Pereira da Costa Mota de estabelecimento decemité<strong>rio</strong>s extramuros, acompanhado da solicitação feita pelos


mesmos ao poder legislativo, para fazer cessar os enterramentosnos templos ou em catacumbas. Rio de Janeiro: ?/5/1 843.79 Idem.'O Idem; REIS, João JosC. op.cit., p.295.'' AGCRJ - Ofício do Dr. José Pereira Rego so<strong>br</strong>e a pretensão deJoão Tarrand e João Pereira da Costa Motta ...AGCRJ - Portaria do ministro do Impé<strong>rio</strong>, José Antonio da SilvaMaia, so<strong>br</strong>e as catacumbas das igrejas que, contra as posturas,são abertas de auatro ou cinco meses. oedindo a Câmara oôr termoa tão escandaloso abuso [grifado no &igi<strong>na</strong>l]. Rio de ~anéiro: 12/811843.83 A<strong>na</strong>is da Cámara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 12/8/1843, discursos devisconde de Baependi e de Carneiro da Cunha. Tomo 2, pp.720-722.84 Idem, discurso de Luis Carlos. p.724.REIS, João José. op.cit., pp.292-333.86 A<strong>na</strong>is da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 12/8/1843, Carneiro daCunha. Tomo 2, pp.719 e 727.87 Idem, discurso de Paula Cândido. p.725.A<strong>na</strong>is da Cámara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 12/8/1843. pp.725-726.89 Idem, discurso de visconde de Baependi. p.726.90 Idem.9' Idem, discurso de Freitas Magalhães. pp.721 e 726.92 Idem, discurso de Paula Cândido. pp.728-729.93 Idem. p.729.94 Idem. p.730.95 Idem, discurso de Ramiro. p.809.96 Idem, discursos de Carneiro da Cunha e Resende. pp.809-810.


97 Idem, discurso de Freitas Magalhães. p.810.98 Idem, discurso de Paula Sousa. Vo1.4, pp.455-456.99 Estas comissões eram nomeadas de acordo com áreas de interesse,para as quais eram nomea<strong>dos</strong> três parlamentares. Sua função era a deexami<strong>na</strong>r questões específicas As áreas, que, durante uma sessão,oferecessem dúvidas ou impasses, de forma a darem um parecer so<strong>br</strong>eo assunto. Havia, pòr exemplo, comissões de Legislação, Marinha eGuerra; ComCrcio, Agricultura, Indústria e Artes, Saúde Pública,Redação das Leis, Instrução Pública e Negócios Eclesiásticos,Fazenda e Justiça, Estatística, Catequese e Colonização, dentre outras.'O0Idem, discurso de Maciel Monteiro. p.722.1°'FARIA, Sheila Siqueira de Castro; RODRIGUES, Cláudia;BRUGGER, Silvia Maria Jardim. Morrer escravo. Africanidade ecatolicismo, uma questão polêmica. Relató<strong>rio</strong> apresentado ao Centrode Estu<strong>dos</strong> Afro-Asiáticos, novem<strong>br</strong>o, 1992. pp.20-22.'O2 GUEDES, Sandra Paschoal Leite de Camargo. Atitudesperante a morteem São Paulo (séculosXViiaXLY). São Paulo, mimeo, 1986. Dissertaçãode mestrado apresentada à Universidade de São Paulo. pp.64-80.'O3REIS, João JosC Reis. op.cit., p.338.I MARAUJO, dr. Vicente Ferrer de Barros. Cemité<strong>rio</strong>s do Recife. Notaslegislativas extraídas <strong>dos</strong> a<strong>na</strong>is do 1" Congresso Médico dePer<strong>na</strong>mbuco. Lisboa, Typ. JosC Bastos, 191 1. pp.7-12.


A CRIAÇÃO DOS CEMITÉRIOSPUBLICOS NA COR TEAo longo da primeira metade do século XIX, vimos aemergência de um discurso médico que propunha a separaçãoentre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>, com a transferência <strong>dos</strong> sepultamentospara fora <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>. Discurso que encontrou <strong>na</strong>imprensa um veículo de difusão <strong>na</strong> sociedade, como pode serobservado pelo desenvolvimento da intolerância olfativa demoradores de alguns bairros com relação aos seus <strong>mortos</strong>"vizinhos". Entretanto, a efetiva supressão das sepulturas dointe<strong>rio</strong>r <strong>dos</strong> templos e das <strong>cidade</strong>s não ocorreu <strong>na</strong>s proporçõesdesejadas pelos médicos: para tanto contribuiu muito aineficácia da municipalidade em pôr em prática suas posturas.Ape<strong>na</strong>s quando surgia um surto epidêmico mais forte é quetais questões emergiam, sendo, após o enfraquecimento dasepidemias, novamente ignoradas.Na Corte, em 1850, houve uma pressão para que o<strong>gov</strong>erno imperial orde<strong>na</strong>sse o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>spúblicos <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, o que evidentemente ocorreu diante dagravidade da fe<strong>br</strong>e amarela que atacava até entre os segmentosda elite.Os debates no LegislativoComo jLi visto ante<strong>rio</strong>rmente, o projeto de 1843 foiarquivado ,pela comissão do Se<strong>na</strong>do, encarregada de dar seu


parecer so<strong>br</strong>e o asunto. O se<strong>na</strong>dor José Clemente Pereira,provedor da Santa Casa da Misericórdia, era mem<strong>br</strong>o destacomissão e, segundo alguns se<strong>na</strong>dores, foi um <strong>dos</strong>responsáveis, senão o maior, por este arquivamento. O motivoalegado foi o de ser atribuição da Câmara municipal oestabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, sendo desnecessária arealização pelo Parlamento, que deveria decidir so<strong>br</strong>e questõesgerais, e não de uma <strong>cidade</strong> que, por si<strong>na</strong>l, já tinha suas leisregulamentando a questão.Em 1850, no entanto, o mesmo José Clemente,fazendo parte da comissão de Saúde Pública, apresentouum outro projeto so<strong>br</strong>e estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s.Em 5 de junho, iniciou-se sua discussão no Se<strong>na</strong>do. Neleautorizava-se o <strong>gov</strong>erno a determi<strong>na</strong>r o número e alocalização <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s e regulamentar o preço dassepulturas, caixões, veículos de condução de cadáverese tudo o mais relativo aos serviços fúne<strong>br</strong>es'. A esteprojeto da comissão de Saúde Pública foram feitas váriascríticas. Seu conteúdo era, segundo os se<strong>na</strong>dores, diversodo projeto da Câmara. O fato de José Clemente Pereirater embargado o projeto ante<strong>rio</strong>r e ter, em 1850,defendido veementemente o da comissão de SaúdePública, suscitou questio<strong>na</strong>mentos e a opinião de que oatual vinha a atender seus interesses particulares. A maiorparte, senão todo o conteúdo do projeto que setransformaria em lei, era realmente fruto das idéias deJosé Clemente Pereira.Três foram os objetivos deste novo projeto.Primeiramente, pretendia-se regulamentar os preços do serviçofunerá<strong>rio</strong> que, com a epidemia, teriam sido eleva<strong>dos</strong> por parte<strong>dos</strong> armadores2 da <strong>cidade</strong>. As medidas do chefe de políciapara taxar os preços co<strong>br</strong>a<strong>dos</strong> não teriam surtido o efeitoesperado3. Em segundo lugar, pretendia-se tomar providênciaspara que fossem estabeleci<strong>dos</strong> os cemité<strong>rio</strong>s públicos <strong>na</strong> Corte,já que a Câmara municipal havia-se mostrado ineficiente nocumprimento das suas próprias posturas. Se, em 1843, JoséClemente Pereira impugnou o projeto vindo da Câmara <strong>dos</strong>Deputa<strong>dos</strong>, por acreditar que competia a municipalidade o


estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s, em 1850 defendia a intervençãodo <strong>gov</strong>erno imperial, pelo fat,o de a Câmara ter-se mostradoinerte ou incapaz de o fazer. E o que ele afirma4 :Já vê pois o no<strong>br</strong>e se<strong>na</strong>dor que eu pretendi marchar pelo caminhoda Câmara municipal, e que <strong>na</strong>da consegui; e então pareceu-meque devia buscar outro caminho mais expedito e seguro, recorriao corpo legislativo, até por entender que nem o <strong>gov</strong>erno nem aCâmara municipal podem por si só firmar algumas dasdisposições que se acham consig<strong>na</strong>das no projeto.O terceiro objetivo do projeto era o estabelecimento deenfermarias suficientes para tratamento da po<strong>br</strong>eza enferma,principalmente em circunstâncias extraordinárias. Segundo oprovedor da Santa Casa da Misericórdia, a epidemia não teriasido tão malig<strong>na</strong> em si; mas o que teria contribuído para o altoíndice de mortalidade fora a falta de tratamento imediato;problema que, segundo ele, teria sido solucio<strong>na</strong>do, seexistissem enfermarias filiais do hospital da Santa Casa.Empenhada <strong>na</strong> construção de seu novo hospital, ela não podiaser onerada com a criação de enfermarias filiais e, portanto,não poderia criá-las "a custa das suas rendas, pois ninguémpode ser o<strong>br</strong>igado a fazer mais do que pode"5. Ele mesmoafirmou que este era o principal objetivo que o levava a proporo projeto; mais do que a criação de cemité<strong>rio</strong>s, era precisoestabelecer enfermarias para tratamento da po<strong>br</strong>eza enferma.A proposta era conseguir sa<strong>na</strong>r o problema sem que fossenecessá<strong>rio</strong> utilizar recursos públicos, para o que seria suficienteo rendimento proveniente <strong>dos</strong> enterramentos6.Se os objetivos do projeto eram claros, turvas foram asdiscussões so<strong>br</strong>e o mesmo e so<strong>br</strong>e a forma como deveria serimplementado. Obviamente, o fato de o projeto da Câmara<strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> ter sido preterido em função do estabelecidopela comissão de Saúde Pública foi alvo de críticas durantemuitas sessões do Se<strong>na</strong>do. Afi<strong>na</strong>l, tor<strong>na</strong>va-se claro que oprojeto atual era uma articulação do provedor da Santa Casa,


empenhado em criar novas enfermarias permanentes,constituindo-se num ponto bastante polêmico que suscitariamuitos outros. Nele, o <strong>gov</strong>erno cometeria a fundação eadministração <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s e o fomecimento <strong>dos</strong> objetosrelativos ao serviço funerá<strong>rio</strong> a uma irmandade, corporaçãocivil e religiosa, ou mesmo a empresá<strong>rio</strong>s, com o encargo deestabelecerem, manterem e conservarem efetivamente trêsenfermarias com boticas regulares, e suficiente número deenfermeiros, nos lugares que o <strong>gov</strong>erno desig<strong>na</strong>sse, paratratamento e socorro da po<strong>br</strong>eza enferma, tanto em temposordiná<strong>rio</strong>s, como nos casos de epidemias que viessem a ocorrer.A idéia de se manterem enfermarias a partir <strong>dos</strong>rendimentos provenientes<strong>dos</strong> sepultamentos foi vista comoperigosa e ameaçadora a concepção de baratear os custos <strong>dos</strong>funerais, pois, para que fosse possível manter enfermarias comas rendas <strong>dos</strong> enterramentos, seria necessá<strong>rio</strong> que estes dessemlucro, o que implicaria em aumento <strong>dos</strong> preços <strong>dos</strong> objetos e<strong>dos</strong> serviços funerá<strong>rio</strong>s7. Na crítica a este ponto, o se<strong>na</strong>dor~kr~ueiro foi veemente, alegando que a manutenção deenfermarias resultaria em um imposto co<strong>br</strong>ado "so<strong>br</strong>e os<strong>mortos</strong> para tratar <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>", que, logicamente sairia das"heranças <strong>dos</strong> jacentes a favor <strong>dos</strong> doentes po<strong>br</strong>esv8. Para queo responsável pelo estabelecimento e administração <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s tivesse condições de manter as enfermarias, foiproposto que a quem fosse cometido o serviço <strong>dos</strong> funerais -irmandade, corporação ou empresá<strong>rio</strong>s - o <strong>gov</strong>erno desseprivilégio, sob a forma de monopólio <strong>dos</strong> mesmos serviços.Neste momento, duas questões surgiram, provocandonão só um rebuliço no Parlamento, como <strong>na</strong> sociedade. A idéiade monopólio e a possibilidade de empresá<strong>rio</strong>s terem o encargodo empreendimento não foi benquista, o que se mostrava maisperigoso, quando se pensava que empresá<strong>rio</strong>s poderiamadministrar os cemité<strong>rio</strong>s, tendo o monopólio so<strong>br</strong>e os serviçosfunerá<strong>rio</strong>s e so<strong>br</strong>e tudo o que fosse relativo aos enterros. Asquestões debatidas em 1843 retomaram. Assim, irmandades,armadores e os leitores que acompanhavam o desenrolar daquestão, através da imprensa diária, agitaram-se contra a ipiaque, segundo eles, representaria uma ameaça aos seus


interesses. O monopólio feria o direito de propriedade <strong>dos</strong>armadores so<strong>br</strong>e sua "indústria" e o das irmandades, so<strong>br</strong>e seuscemité<strong>rio</strong>s.Ao cerceamento do direito de propriedade, seguiaseo do direito a liberdade de os primeiros terem seusnegócios e de as segundas terem seus objetos de serviçofunerá<strong>rio</strong> e seus cemité<strong>rio</strong>s. Se o projeto passasse destaforma, os armadores ficariam arrui<strong>na</strong><strong>dos</strong> e as irmandadesseriam prejudicadas em seus rendimentos, provenientes<strong>dos</strong> enterros em suas catacumbas, já que teriam deabando<strong>na</strong>r seus cemité<strong>rio</strong>s particulares, ante a o<strong>br</strong>igaçãode irem para o cemité<strong>rio</strong> público.No seu discurso, o se<strong>na</strong>dor Vergueiro defendeu o direitode liberdade de as irmandades manterem seus cemité<strong>rio</strong>s, ondedavam sepultura não só a seus irmãos e aos mem<strong>br</strong>os dasfamílias destes, mas também aos necessita<strong>dos</strong>. Proibir que estaspessoas fossem sepultadas nos jazigos das irmandades de suadevoção era "tirania" do <strong>gov</strong>erno. As leis só deveriam, segundoele, ser feitas para utilidade pública, não sendo admissivel quetirassem de uns para dar a outros9.No caso <strong>dos</strong> armadores, seus interesses foram defendi<strong>dos</strong>incondicio<strong>na</strong>lmente pelos se<strong>na</strong>dores Paula Sousa, Batista deOliveira e Costa Ferreira, para quem, posto daquela forma, oprojeto era inconstitucio<strong>na</strong>l, pois, segundo a Carta Mag<strong>na</strong>, ummonopólio só poderia ser dado a inventoresI0. Era contra aConstituição, além do mais, por prejudicar "uma indústriainocente", atacando o direito de propriedade" :E no entanto esta lei concede um privilegio sem ser em caso deinvenção, e leva o exclusivismo desse privilegio a ponto de nãoconsentir que um pai, <strong>na</strong> força de sua dor, vá ti rua da Quitandacomprar galão para o caixão de seu filho, nem que um filhocompre crepe para o caixão de seu pai! "Tem galão?" perguntaraum homem lavado em lágrimas. "Para que e?" "E para or<strong>na</strong>r oesquife de meu filho." "Não posso vender, porque 6 contra alei." "Então alugue-me." "Tambem não posso porque a lei meproíbe." E assim a respeito de to<strong>dos</strong> os objetos relativos aoserviço <strong>dos</strong> enterros; creio que ate os bancos para se descansarem cima os caixões, quando a longitude exigir, não poderão ser


compra<strong>dos</strong>, nem aluga<strong>dos</strong>! Senhores, por este projeto, qualquerindivíduo que ficar com essa empresa, se tiver alma de ferro, háde enriquecer em pouco tempo (...).Em seu pronunciamento, o se<strong>na</strong>dor Costa Ferreira,um crítico ardoroso de José Clemente Pereira, pretendiacomover o Se<strong>na</strong>do. No desenrolar das discussões, tambémficou subentendido que a Santa Casa da Misericórdia teriao monopólio da administração <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s e do serviçofunerá<strong>rio</strong>. Neste ponto, até os demais críticos do projeto,ainda que contra sua vontade, acharam-<strong>na</strong> ela preferívelaos empresá<strong>rio</strong>s. Como em 1843, não se tinha perdidoainda o medo de que empresá<strong>rio</strong>s administrassem umnegócio que continuava a ser visto por muitos comoatividade sagrada. O receio de que o exemplo baiano serepetisse fez com que a maioria <strong>dos</strong> parlamentares, aindaque lutassem contra essa idéia, reiterasse o desejo de quefosse pelo menos uma instituição pia que ficasse com omonopólio. Além do que, por séculos, a Santa Casa daMisericórdia, tanto no Brasil como em Portugal, deteveo monopólio do serviço funerá<strong>rio</strong>, como o fornecimentode tumbas e esquifes para os sepultamento^'^O visconde de Olinda, defensor do projeto, foi, aliás,um <strong>dos</strong> que deu apoio e, por vezes, pressionou, para que aMisericórdia obtivesse o monopólio, propondo, inclusive,emendas ao projeto com este objetivo e justificando-as, diziaser a Santa Casa a corporação "mais própria para isso", pelaadministração eficiente de seu provedor. O próp<strong>rio</strong> JoséClemente, apesar de tentar desvencilhar-se da incumbência,dizendo que não havia sido autorizado pela irmandade a aceitartal encargo, traiu-se algumas vezes, como, por exemplo,quando disse que,se a Santa Casa da Misericórdia pudesse criar já enfermariasfiliais da sua lem<strong>br</strong>ança, decerto o seu provedor não viriaincomodar o corpo legislativo com semelhantepretensão [grifomeu]: já estariam criadas (...) a Misericórdia não pode criar novas


enfermarias nesta ocasião porque tem os meios de que podedispor aplica<strong>dos</strong> às o<strong>br</strong>as de seu novo hospital, e com o priviltgiopoderia, porque deste tiraria uma receita com que pudesse co<strong>br</strong>ir ,as despesas dessa criação".IFicam evidentes, neste pronunciamento, as intenções doprovedor da Misericórdia em açambarcar para a instituição oestabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos, para desonerar-se dacriação das enfermarias filiais, que ,tinham como objetivodesafogar o hospital geral em o<strong>br</strong>as. E possível, desta forma,compreender por que tendo rejeitado o projeto de 1843, JosCClemente Pereira retomava com ele agora. .Se o visconde de Olinda era um defensor do projeto, <strong>na</strong>scondições em que era apresentado, o se<strong>na</strong>dor Costa Ferreiranão o era. Atacando as intenções do provedor da Santa Casa,o se<strong>na</strong>dor pôs as claras o jogo político em torno do projeto,apontando a parcialidade do <strong>gov</strong>erno14.Eu sou muito claro quando falo a respeito deste projeto; digo,este projeto C feito pelo Sr. Jost Clemente, este projeto C feitopara o Sr. JosC Clemente, este projeto quer o sr. Jost Clementeque passe com condições favoráveis (...) este projeto t feitopelo Sr. Jost Clemente, e com efeito aqui está assi<strong>na</strong>do o nomedo no<strong>br</strong>e se<strong>na</strong>dor; foi feito para o Sr. Jost Clemente, porqueesta empresa há de ser dada à Santa Casa da Misericórdia; se oprojeto passar, ele t que há de ser o executor (...) Ora, quem háde impor as condições? O ministro. E quem t o ministro? E umamigo do Sr. Jost Clemente. Ora, quando nós temos ,amizade aqualquer indivíduo, acaso esta amizade nos faz vergar um poucopara o nosso amigo apesar de sermos reto e justos? Eis porqueeu digo que o projeto t feito para o Sr. Jost Clemente.O único ponto em que to<strong>dos</strong> concordavam era quantoao estabelecimento <strong>dos</strong> cemitd<strong>rio</strong>s extramuros. As concepçõesa respeito da "poluição" que as sepulturas dentro das <strong>cidade</strong>srepresentavam para os <strong>vivos</strong> estiveram presentes e foramaceitas pela maioria. O desenrolar <strong>dos</strong> debates que ocuparam


as sessões foram no sentido de defesas, ataques e contra-ataquesdas idéias básicas do projeto.Após termos visto os motivos pelos quais os críticos serecusavam a aceitar muitas das idéias do projeto, vejamos oque alegavam seus defensores. No seu discurso, o se<strong>na</strong>dor d.Manuel de Assis MascarenhasI5 sintetizou esta posição.Segundo ele, não via <strong>na</strong> lei a idéia de especulação, acusadapelos adversá<strong>rio</strong>s; acreditava, mesmo, que a mesma viriaatender ao interesse público tanto quanto ao particular,principalmente por extinguir os enterramentos <strong>na</strong>s igrejas -"um abuso", segundo ele e por estabelecer mais socorros aospo<strong>br</strong>es e desvali<strong>dos</strong>. Se havia especulação, era em favordaqueles po<strong>br</strong>es. Por outro lado, o projeto também atendia aointeresse particular, por acabar com o monopólio do armadores,que se teriam aproveitado da ocasião "das lágrimas, da dor,do gemido" para "extorquir grandes somas das famílias quelhes encarregassem do enterramento das pessoas que lhes erammais caras". Por fim, concluiu que se, posto nestes termos,não haveria como dizer que o projeto era um atentado aconstituição e ao direito de propriedadeI6.Segundo os que acreditavam <strong>na</strong> necessidade de limitara atuação <strong>dos</strong> armadores, o monopólio era a única forma decontrolar efetivamente as atividades funerárias. Para eles,inclusive, o ramo de atividades ligado aos serviços funerá<strong>rio</strong>snunca teria atuado com liberdade de mercado, <strong>na</strong> medida emque tais atividades teriam sempre operado com a especulação,já que constituíam uma "indústria" pela qual poucos seinteressavam, por ser "repulsiva" e que, portanto, tinha umaconcorrência limitada. Sendo uma atividade explorada porpoucos, tomara-se de fato uma espécie de monopólio, "dandolugar as exigências exorbitantes da insaciável sede deriqueza"".Um último ponto de discórdia foi o artigo referente àquestão de se permitir ou não a Ordem Terceira de SãoFrancisco de Paula o direito de manter o seu cemité<strong>rio</strong> noCatumbi, construido entre 1849 e i<strong>na</strong>ugurado em 1850. A idéiade um cemité<strong>rio</strong> central, monopolizado por quem ficasse coma o<strong>br</strong>igação de estabelecer e administrar os cemité<strong>rio</strong>s,


esbarrava <strong>na</strong> pretensão de a ordem terceira manter, ainda quecomo uma exceção a lei, seu cemité<strong>rio</strong>. Esta exceção foisolicitada pela ordem com o envio de representações aosparlamentares, alegando já estar <strong>na</strong> posse do referido cemité<strong>rio</strong>tendo, inclusive, dado sepultura a muitos <strong>mortos</strong>, quando o<strong>gov</strong>erno lhe ordenou, durante a epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela.Seu pedido recebeu apoio de alguns se<strong>na</strong>dores, quedefenderam a idéia de se lhe conceder uma exceção, como d.Manuel, que considerava a referida ordem terceira <strong>na</strong> possede direitos adquiri<strong>dos</strong>, e adquiri<strong>dos</strong> com títulos valiosos, comoos <strong>dos</strong> seus serviços presta<strong>dos</strong> durante o surto epidêmicol8.D. Manuel não excluía, tampouco, a possibilidade de as demaisirmandades possuírem seus cemité<strong>rio</strong>s, nem que fossemo<strong>br</strong>igadas a tê-los dentro do cemité<strong>rio</strong> geral, pois que asmesmas eram o<strong>br</strong>igadas, por seus compromissos, adesempenhar deveres para com seus irmãos - devendo, paratanto, gozar de todas as regalias para bem fazê-lo. Aquelesdeveres, dentre outros, eram gratuitos e implicavam em gastospor parte da corporação, como tratar <strong>dos</strong> irmãos em suasenfermidades e socorrer suas famílias. Não podiam, por isso,as irmandades ser oneradas com a despesa a mais de teremque construir seus cemité<strong>rio</strong>s dentro do cemité<strong>rio</strong> geral19.Estes foram, por outro lado, os motivos pelos quais outrosse<strong>na</strong>dores se posicio<strong>na</strong>ram contra a idéia do privilégioexclusivo da Ordem Terceira de São Francisco de Paula: comque direito haveriam de dar somente a ela tal privilégio, nãogozando as outras do mesmo beneficio? Como ficaria o casoda irmandade de Nossa Senhora da Conceição, que já haviafeito gastos com a compra do terreno para a edificação de seucemité<strong>rio</strong>, próximo ao do Caturnbi? Era necessá<strong>rio</strong>, para alguns- se<strong>na</strong>dores, que fosse dada igualdade a todas as corporaçõesreligiosas para manterem cemité<strong>rio</strong>s, sem haver privilégio parauma ou outra20.Segundo o se<strong>na</strong>dor Sousa Franco, as irmandades teriamperdas fi<strong>na</strong>nceiras, com reflexo inevitável <strong>na</strong> redução de suasatividades para manutenção do culto. Os prejuízos poderiamacarretar a extinção de várias irmandades e do culto público eprivado, por elas sustentado. Se não servissem "para dar jazigo


no fim da existência, para acompanharem ao enterramento <strong>dos</strong>irmãos, para os ofícios divinos e religiosos", acabariam seextinguindo e, com elas, as suas igrejas. O se<strong>na</strong>dor concluíapela necessidade de se respeitarem "os princípios religiososda pop~lação"~~ .A ordem terceira conseguiu seu intento e teve o direitode manter seu cemité<strong>rio</strong> como uma exceção. As demaisirmandades deveriam construir os seus espaços mortuá<strong>rio</strong>s noterreno do cemité<strong>rio</strong> geral. Este foi o único ponto do projetoque divergia da proposição de José Clemente Pereira, pois queeste desejava que o cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> terceiros fosse removido doCatumbi, alegando, para tal, a impropriedade do terreno epreconizando uma indenização que lhes daria condições paraadquirir um novo terreno dentro do cemité<strong>rio</strong> ger&. No fundo,o provedor da Santa Casa desejava que o cemité<strong>rio</strong> do Catumbinão fizesse concorrência ao cemité<strong>rio</strong> geral. Mais um exemploda sua intenção de que a Misericórdia ficasse com o monopólio<strong>dos</strong> serviços funerá<strong>rio</strong>s <strong>na</strong> Corte. Com ape<strong>na</strong>s esta modificaçãoimposta contra a sua opinião, as idéias do se<strong>na</strong>dor-provedorforam incorporadas ao projeto. Saído este do Se<strong>na</strong>do, foiaprovado pela Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> em 24 de agosto, apóstrês discussões com as defesas e as oposições de mo<strong>dos</strong>emelhante as do Se<strong>na</strong>do.A lei do cemité<strong>rio</strong> priblicoApós décadas de tentativas, os cemité<strong>rio</strong>s públicosseriam, fi<strong>na</strong>lmente, estabeleci<strong>dos</strong> <strong>na</strong> Corte, pelo decreto no583 de 1 85022 (vide Anexo), que autorizou o <strong>gov</strong>erno adetermi<strong>na</strong>r o seu número e a localização desde queestabeleci<strong>dos</strong> nos subúrbios do Rio de Janeiro; a regulamentaros preços das sepulturas, caixões, veículos de condução decadáveres e tudo o-mais que fosse relativo ao serviço <strong>dos</strong>enterros, organizando tabelas de taxas que só poderiam seralteradas a cada decênio; a cometer a uma irmandade,


corporação civil ou religiosa ou empresá<strong>rio</strong>s, pelo tempo ecom as condições convenientes, a fundação e administração<strong>dos</strong> mesmos cemité<strong>rio</strong>s, e o fornecimento de objetos relativosao referido serviço, com o encargo de os mesmosestabelecerem, manterem e conservarem três enfermariascompletamente servidas com boticas regulares para otratamento da po<strong>br</strong>eza enferma, tanto em tempos ordiná<strong>rio</strong>s,como nos casos de epidemia.Quem ficasse com o cometimento deveria prestar contasao <strong>gov</strong>erno anualmente, sem que este fosse o<strong>br</strong>igado a qualquerindenização, em caso de déficit. Assim que os cemité<strong>rio</strong>spúblicos fossem estabeleci<strong>dos</strong>, a nenhuma irmhndade,corporação, pessoa ou associação seria permitido ter cemité<strong>rio</strong>se fornecer objetos relativos ao serviço <strong>dos</strong> enterros, sob pe<strong>na</strong>de perda do terreno em que estivessem funda<strong>dos</strong> os mesmos,e <strong>dos</strong> referi<strong>dos</strong> objetos. Com algumas condições que julgasseconvenientes, o <strong>gov</strong>erno poderia permitir cemité<strong>rio</strong>sparticulares: aos prela<strong>dos</strong> diocesanos, que poderiam ter jazigo<strong>na</strong>s suas catedrais ou capelas; aos mosteiros e conventos,ape<strong>na</strong>s para sepultura de seus mem<strong>br</strong>os; as irmandades, composse de jazigos, desde que estabeleci<strong>dos</strong> nos terrenos <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s públicos e que fossem desti<strong>na</strong><strong>dos</strong> somente parasepultura de seus irmãos e as pessoas de culto diverso do dareligião do Estado.Algumas exceções, todavia, foram estabelecidas.Primeiramente, seria conservado o cemité<strong>rio</strong> do Catumbi, deposse da Ordem Terceira de S. Francisco de Paula, parasepultura de seus irmãos. Em segundo lugar, a manutençãodas armaçõès e objetos do serviço fúne<strong>br</strong>e dentro das capelas<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s particulares ou dentro das igrejas paroquiais,por ocasião de funerais, para as encomendações e que nãocausassem prejuízos a saúde pública. Por último, foi permitidaa posse de veículos de condução de cadáveres e <strong>dos</strong> objetosfúne<strong>br</strong>es pertencentes a casa do fi<strong>na</strong>do ou empresta<strong>dos</strong>gratuitamente por pessoa de sua família ou amizade.Os terrenos e edifícios, desig<strong>na</strong><strong>dos</strong> pelo <strong>gov</strong>erno enecessá<strong>rio</strong>s ao estabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s e enfermariasseriam considera<strong>dos</strong> de utilidade pública e sujeitos a


desapropriação, com indenização, a ser paga por quem ficassecom o monopólio. Fi<strong>na</strong>lmente, o decreto estabeleceu pe<strong>na</strong>scorrecio<strong>na</strong>is de prisão até seis meses e multa de 200$000 parao não cuqprimento <strong>dos</strong> regulamentos e instruções que seriamexpedi<strong>dos</strong> para a boa execução da lei e para a economia epolícia <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s e funerais. No ano seguinte, em 14 dejunho de 185 1, o decreto no 796 regulamentou o serviço <strong>dos</strong>enterros, o quantitativo das "esmolas" das sepulturas, a polícia<strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos e o preço <strong>dos</strong> caixões, veículos decondução <strong>dos</strong> cadáveres e os demais objetos relativos aosfunerais.Antes de a Santa Casa da Misericórdia ter sidooficialmente contactada pelo <strong>gov</strong>erno, o seu provedorconsultou a mesa da irmandade, prevenindo-a das vantagensdo negócio e da viabilidade de a instituição arcar com ele. Em24 de fevereiro de 185 1, em sessão da mesa23, o provedor,tomando a palavra, disse que,tendo sido promulgada o ano passado uma lei que orde<strong>na</strong> ainstituição <strong>dos</strong> cemitk<strong>rio</strong>s, autorizando o <strong>gov</strong>emo imperial aconfiar bdministração <strong>dos</strong> que se houvessem de fundar e, aum individuo ou corporação civil ou religiosa, lhe consta a ele,provedor, que está pr6ximo o momento de se'realizar tãobenkfica fundação, assim como lhe consta que o <strong>gov</strong>emo está<strong>na</strong> resolução de confiar este cargo à Santa Casa da Misericórdia,no caso que o queira ela aceitar: que ele provedor, por sua parteentende que a Santa Casa o deve fazer, porquanto não lheresultar8 prejuízo pois que certamente o rendimento devecompensar as despesas, e terá ela, assim, ocasião de mostrarquanto sua instituição 15 proveitosa à capital.José 'Clemente concluiu, afirmando ter iniciado asdiligências para desco<strong>br</strong>ir o provável local para os cemité<strong>rio</strong>s,encontrando três chácaras em Caturnbi. Fi<strong>na</strong>lizou perguntan<strong>dos</strong>e a "mesa e a junta" queriam que a comissão fosse aceita e,em caso positivo, que se autorizassem as despesas a fazer e aforma. Rogou aos irmãos que emitisse@ "francamente suasopiniões" e "acordassem como entendéssem conveniente à


Santa Casa e aos interesses da população da capital". Postaem votação, a matéria foi aprovada.No dia 28 de julho de 185 1, a Santa casa da Misericórdiafoi consultada pelo <strong>gov</strong>erno. Em sua resposta24, deveria dizero tempo e as condições que seriam estabelecidas para que elatomasse a si o cumprimento do decreto no 583. A instituiçãodisse aceitar as atribuições, por estar levando em consideraçãoo seu "antiquíssimo privilégio exclusivo do fornecimento detumbas e caixões de aluguel" que constituía um importanteramo das suas rendas, embora tivesse caído em desuso poucosanos antes. Se não fosse por isso, o fosse pelos seus "desejosde prestar dois grandes serviços, ambos próp<strong>rio</strong>s da instituiçãoda sua irmandade": curar a po<strong>br</strong>eza enferma e enterrar os<strong>mortos</strong>. Ela só se "limitava a esperar" que lhe fossem concedi<strong>dos</strong> osdireitos e privilégios que o decreto no 583 e o regulamento no 796lhe conferiam, "sem propor condição alguma".Entretanto, pelo fato de o encargo significar a "onerosa"o<strong>br</strong>igação de criar e manter as três enfermarias, com o risco deso<strong>br</strong>ecarregar as rendas de seu hospital, se a receita do serviçofunerá<strong>rio</strong> não fosse suficiente, se via "o<strong>br</strong>igada" a proporalgumas condições: que o tempo de concessão <strong>dos</strong> serviçosnão fosse infe<strong>rio</strong>r a cinquenta anos, para que, por esta forma,fosse possível obter um rendimento capaz de fazer face a"grande despesa anual" com que se deveria contar; que, nofim deste período, tivesse a preferência, em condições iguais,de continuar a mesma comissão e, quando por qualquer causa,esta lhe fosse retirada, fin<strong>dos</strong> os cinquenta anos, ou mesmoantes desse tempo, que fosse "precisamente" indenizada dadespesa que tivesse feito com a compra <strong>dos</strong> terrenos <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s e edificação de suas capelas e com a fundação dasenfermarias, abatendo-se somente as quantias recebidas dasordens terceiras e irmandades e de particulares, pelasconcessões que se fizessem de terreno para cemité<strong>rio</strong>sparticulares e sepulturas perpétuas; que, enquanto não pudesseconstruir ou comprar, com todas as condições exigiveis, asenfermarias permanentes, que lhe fosse permitido estabelecerenfermarias provisórias; que o <strong>gov</strong>erno imperial se o<strong>br</strong>igassea efetivar o gozo do privilégio exclusivo do decreto no 583 e,


em caso contrá<strong>rio</strong>, que ela se deso<strong>br</strong>igasse das condiçõescontraídas, com o direito de ser indenizada de todas as despesasque houvesse feito e, por fim, que, termi<strong>na</strong>do o tempo daconcessão, lhe fosse conservado o seu cemité<strong>rio</strong> do CampoSanto da Ponta do Caju para sepultura <strong>dos</strong> enfermos po<strong>br</strong>esque falecessem nos seus hospitais.A Misericórdia, por esse meio, se resguardava deeventuais prejuízos. O decreto no 843 de 18 de outu<strong>br</strong>o de185 1, cometeu a fundação e a administração <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>spúblicos do Rio de Janeiro e o fornecimento <strong>dos</strong> objetosrelativo ao serviço <strong>dos</strong> enterros a Santa Casa, pelo tempo decinquenta anos. O decreto trazia as condições impostas porela, incluindo, além disso, a o<strong>br</strong>igação de ela indenizar osarmadores e fornecedores de carros e seges de enterros, novalor de 58:066$870 réis, quantia proveniente das avaliações<strong>dos</strong> bens daquelas indústrias, feitas por avaliadores nomea<strong>dos</strong>pela Santa Casa e pelos interessa<strong>dos</strong>. Enquanto a indenizaçãonão fosse efetivada, a Misericórdia não poderia gozar doprivilégio exclusivo de fornecer os objetos funerá<strong>rio</strong>s2'.Concluídas as negociações, restava definir os locais <strong>dos</strong>dois cemité<strong>rio</strong>s públicos: um <strong>na</strong> ponta do Caju, com adenomi<strong>na</strong>ção de São Francisco Xavier, e o segundo, com adenomi<strong>na</strong>ção de São João Batista, seria localizado <strong>na</strong>sproximidades da lagoa Rodrigo de Freitas - em regiões distantesda área central da Corte; assim, os <strong>mortos</strong> seriamdefinitivamente afasta<strong>dos</strong> da vizinhança <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>. Porém, atéque fossem defini<strong>dos</strong> estes locais, muita discussão seriarealizada - envolvendo a Santa Casa, a Ordem Terceira de SãoFrancisco de Paula, as demais irmandades e ordens terceiras eos moradores das proximidades do Catumbi - no sentido de seresolverem os impasses so<strong>br</strong>e a localização <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s.No embate estiveram envolvi<strong>dos</strong> os que eram favoráveis alocalização do cemité<strong>rio</strong> geral no Caturnbi - irmandades e SantaCasa - e os moradores do bairro, que se recusavam a aceitarmais um cemité<strong>rio</strong> próximo as suas casas, sendo este deproporções muito maiores que o <strong>dos</strong> Mínimos de SãoFrancisco, valendo-se, para isso, do já conhecido discursomédico.


Neste ponto, resta saber como as associações religiosase a Igreja encararam a criação definitiva <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos<strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, após décadas de tentativasinfrutíferas. A análise de suas reações é relevante, não só paracompreendermos o processo de criação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, mastambém para que se possa entender a forma como o clero e osleigos avaliaram as questões referentes as transformações dasformas de sepultamento. Afi<strong>na</strong>l, <strong>na</strong> Bahia, como em São Paulo,as irmandades buscaram, ao máximo, postergar as decisões,fazendo uso da violência, através do incitamento a destruiçãodo prédio mortuá<strong>rio</strong> recém-construido. Ações estas que oParlamento, <strong>na</strong>s discussões so<strong>br</strong>e a lei <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s <strong>na</strong> Corte,tentara a todo custo evitar, através do cometimento daadministração <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos a uma instituição pia.As reações do cleroA contestação as medidas proibitivas com relação aossepultamentos eclesiásticos partiram <strong>dos</strong> conventos. Alegandoespecificamente a po<strong>br</strong>eza de suas comunidades, o conventode São Francisco e o de Santa Teresa, em 20 de março de1850 e 25 de setem<strong>br</strong>o de 1850, respectivamente, enviaramrepresentações ao imperador, solicitando licença parasepultarem os cadáveres de seus religiosos em seus templos26.Entre 11 de a<strong>br</strong>il de 1850 e 16 de dezem<strong>br</strong>o de 1852, o guardiãode Santo Antônio solicitou, por sete vezes, licenças parasepultamento de seus religiosos e escravos no seu convento,alegando não haver meios para dar-lhes sepultura nos lugaresmarca<strong>dos</strong> "por lei e por santov2'.Nos textos produzi<strong>dos</strong> por alguns representantes daIgreja, como o do padre Joaquim Caetano, no periódico AReligião, fica patente o fato de que, apesar da crítica a proibição<strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mental de as encomendações serem feitas dentro dasigrejas paroquiai~~~, não houve um posicio<strong>na</strong>mento, por partede alguns mem<strong>br</strong>os do clero, contrá<strong>rio</strong> a transferência <strong>dos</strong>


cemité<strong>rio</strong>s para fora das igrejas.O padre Joaquim Caetano chegou a afirmar que, com alei do <strong>gov</strong>erno, que criava os cemité<strong>rio</strong>s extramuros, seriapossível reestabelecer a discipli<strong>na</strong> canônica em todo o seuvigor, o que resultaria em vantagens, pois era "por meio abusoe nunca fundado em privilégio ou isenção" que as ordensterceiras e irmandades faziam as encomendações que, por sua<strong>na</strong>tureza, eram paroquiais. Ele foi mais além, propondo que, aexemplo da França, no Brasil, as igrejas paroquiais, por meiode suas fá<strong>br</strong>icas, gozassem do direito exclusivo de fornecerto<strong>dos</strong> os objetos relativos ao serviço fúne<strong>br</strong>e, sendo a receitaproveniente destes serviços aplicada as despesas do cultodivino, que poderia, assim, ser realizado com <strong>br</strong>ilhantismo. Efi<strong>na</strong>lizou com esperanças de que o corpo legislativo dotasse opaís de uma lei de cemité<strong>rio</strong>s que fosse dig<strong>na</strong> de sua altailustração e <strong>dos</strong> seus sentimentos eminentemente religioso^^^.Além das palavras do padre Joaquim Caetano, temos asdo bispo d. Manuel do Monte e as do monsenhor ManuelJoaquim de Miranda Rego, mencio<strong>na</strong>ndo idéias semelhantesas do primeiro a respeito das discussões parlamentares so<strong>br</strong>eo projeto de lei do cemité<strong>rio</strong> público. Para os três era fora dequestão o sepultamento nos cemité<strong>rio</strong>s públicos. As expressõessempre presentes em seus discursos eram nesse sentido, como,por exemplo: "se as sepulturas não podiam ter lugar <strong>na</strong>smatrizes ou <strong>na</strong>s suas catacumbas (...)"30; "julgamos convenientefalar nesta ocasião, para ajudar a esclarecer as novas medidasque se tomam atualmente <strong>na</strong>s Câmaras legislativas so<strong>br</strong>e oscemité<strong>rio</strong>^"^' ,"agora, com a lei do <strong>gov</strong>erno que cria cemité<strong>rio</strong>sextramuros, é possível restabelecer a discipli<strong>na</strong> em todo o seu vigor,o que resulta em muitas vantagens"32 .No Legislativo, alguns mem<strong>br</strong>os do clero tomaram parte<strong>na</strong>s discussões que produziram a lei da criação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>spúblicos. Podemos perceber a posição da Igreja a favor doprojeto, nos pronunciamentos de d. Manuel de AssisMascarenhas. Em longos discursos, pretendeu desfazer ascríticas severas do se<strong>na</strong>dor Vergueiro, no que foi bem -sucedido, pois, após a sua fala, as discussões foram encerradase o projeto, aprovado. Era como se os se<strong>na</strong>dores tivessem


concluído que, se a Igreja não era contra o projeto, quem maisseria capaz de derrubá-lo? Aludindo a posição do arcebispoda Bahia, d. Romualdo Seixas, que, em 1836, apoiara edefendera também as medidas de criação de cemité<strong>rio</strong>spúblicos, d. Manuel justificou as atitudes do arcebispo comonecessárias e esclarecidas. A respeito da posição do preladodo Rio de Janeiro, afirmou33 :Eu entendo, senhores, que o sr. bispo do Rio de Janeiro, se acasoaparecerem quaisquer idéias contrárias à religião do Estado, temo<strong>br</strong>igação de as combater, ainda mesmo que essas idkias se,tenham manifestado no corpo legislativo. A irresponsabilidade<strong>dos</strong> mem<strong>br</strong>os do corpo legislativo não inibe ao prelado diocesanode aparecer, ou com pastorais, ou com quaisquer outros escritos,mostrando que essas idkias são contrárias à religião. Ora, comonão vi ainda um s6 ato do sr. bispo diocesano que declarasseque as idéias do projeto nem levemente ofendem a religião doEstado, persuado-me que este argumento é fraquissimo; mascomo conheço que apesar de ser fraquíssimo, tem feitoimpressão em alguns espíritos menos esclareci<strong>dos</strong>, ou emconsciências nimiamente timoratas, k necessá<strong>rio</strong> levantar a vozmuitas vezes e mostrar que os no<strong>br</strong>es se<strong>na</strong>dores nesta parte nãotêm a menor razão, que seus argumentos são destituí<strong>dos</strong> defundamento, que o Se<strong>na</strong>do não podia aprovar em primeira esegunda discussão um projeto que fosse de encontro à religiãodo Estado.Seu pensamento refletia, segundo ele, o do bispo; oprojeto não apresentava, com efeito, idéias contrárias a religião.O que estava por detrás destas reações do clero? SegundoPhilippe A ~iès~~, apesar da prática do sepultamento ad sanctosser <strong>dos</strong> séculos V-VI, desde o início houve divergências,conforme se tratasse do cemité<strong>rio</strong> ao lado da igreja ou <strong>dos</strong>enterramentos no seu inte<strong>rio</strong>r. Em seus decretos, os concílios,durante séculos, persistiram em distinguir a igreja do espaçoconsagrado em tomo dela. Enquanto impunham a o<strong>br</strong>igaçãode enterrar ao lado da igreja, não 'deixaram de reafirmar a'proibição <strong>dos</strong> enterros em seu inte<strong>rio</strong>r, com algumas exceçõesem favor de padres, bispos, monges e alguns leigosprivilegia<strong>dos</strong>. Desde o século V até fins do XVIII, os textos se


epetiam quanto a proibição, tomando patente assim, o desrespeitoàs disposições canônicas.Quando, no Rio de Janeiro, percebemos a Igreja nãoadotando um posicio<strong>na</strong>mento formal contra a proibição <strong>dos</strong>sepultamentos no inte<strong>rio</strong>r e próximo as igrejas e, por outrolado, reiterando a lei canônica a respeito das encomendações,fica patente que ela desejava levar em consideração estasdisposições conciliares a respeito <strong>dos</strong> sepultamentoseclesiásticos. O seu posicio<strong>na</strong>mento era o da necessidade deseparação entre o culto divino e o culto aos <strong>mortos</strong>, como formade impor o "respeito devido aos lugares sagra<strong>dos</strong> em que habitao Deus vivo, e em que cele<strong>br</strong>a o culto divino"35.Esta postura da Igreja, neste período do século XIX, podeser chamada de "ilustrada", <strong>na</strong> medida em que levava emconsideração os novos conhecimentos médicos, como ficouclaro <strong>na</strong> forma como d. Manuel de Assis Mascarenhasjustificou a necessidade da adoção do projeto, para acabar comuma "prática tão contrária a salu<strong>br</strong>idade pública"36. Em nomeda saúde pública, o arcebispo de Salvador, d. Romualdo, nãosó teria aprovado, como ajudado a redigir o projeto da leiprovincial no 17, que determinou a criação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>spúblicos em Salvador, obviamente, estabelecendo a condiçãode que os empresá<strong>rio</strong>s executariam o regulamento que lhesfosse dado pela autoridade eclesiástica, a respeito dascerimônias religiosas indispensáveis <strong>na</strong>quele estabelecimento.Segundo José Reis, o regulamento resultante seguiu as"conveniências sociais, as regras legais e o direito ~anônico"~' .O cemité<strong>rio</strong> ficaria, desse modo, sob a jurisdiçãoeclesiástica, que imporia as regras inibidoras da profa<strong>na</strong>çãode um espaço consagrado aos <strong>mortos</strong>. O mesmo aconteceu <strong>na</strong>Corte. Pelo decreto de 5 de setem<strong>br</strong>o, em seu art. 4' 3 4O,afirmava-se que o cemité<strong>rio</strong> público era desti<strong>na</strong>do ape<strong>na</strong>s aosque seguissem a religião do Estado; no 3" do art. 1 O, garantiu-seos direitos eclesiásticos do cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong> sua parte religiosa. Comisto, quero mostrar que a Igreja não teve motivos para interferir<strong>na</strong>s medidas <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais a respeito <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos,<strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, em 1850, pelo fato de que, apesarde o cemité<strong>rio</strong> ter-se deslocado das proximidades do templo


. católico para fora <strong>dos</strong> limites da <strong>cidade</strong>, ele permanecia um espaçosagrado, controlado pela Igreja - tanto que a condição para seupleno funcio<strong>na</strong>mento era de que fosse benzido38. Apesar daproibição <strong>dos</strong> enterrarnentos <strong>na</strong>s igrejas, o cemité<strong>rio</strong> público nãose havia transformado em um local secularizado, mantendo, pelocontrá<strong>rio</strong>, as mesmas características e os mesmos fundamentosdo cemité<strong>rio</strong> eclesiástico. Mesmo tor<strong>na</strong>ndo-se um espaço público,era ainda desti<strong>na</strong>do ao "público" da religião oficial do Estado.As reações <strong>dos</strong> leigosNo que tange a proibição <strong>dos</strong> enterramentos eclesiásticos,é perceptível uma reação das irmandades e ordens terceiras,no Rio de Janeiro, diversa da empreendida, por exemplo, pelasdemais associações baia<strong>na</strong>s, quando da época da instituiçãoda lei provincial que extinguiu os sepultamentos no inte<strong>rio</strong>rou em tomo das igrejas, em 1836. Enquanto, em Salvador, asirmandades e ordens terceiras, juntamente com a população,destruíram o cemité<strong>rio</strong> recentemente fundado, recusando-se adeixarem de enterrar seus <strong>mortos</strong> no terreno das igrejas, noRio de Janeiro, é possível perceber que as irmandades e ordensterceiras cumpriram as medidas g~vemarnentais~~.Em momentos diferentes, referindo-se a ordem do <strong>gov</strong>emode transferirem os sepultamentos para fora das <strong>cidade</strong>s e/ou deconstruírem cemité<strong>rio</strong>s, dá-se o assentimento da Ordem Terceirade Nossa Senhora do Carmo40, da Irmandade de Nossa Senhorada Con~eição~~ e da Ordem Terceira de S. Francisco de Pa~la~~,respectivamente:De bom grado, quaisquer que sejam os seus prejuízos, irá elaestabelecer os jazigos de seus irmãos onde o <strong>gov</strong>erno entenderconveniente à salu<strong>br</strong>idade pública [grijò meu], e aoengrandecimento progressivo do Rio de Janeiro (...).Diz a Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Conceição (...),que tendo o <strong>gov</strong>emo de S.M.1 proibido o enterramento <strong>dos</strong> fiéisdentro das igrejas, e vendo-se a irmandade sem os meios de


poder desempenhar as o<strong>br</strong>igações que lhe impõe seucompromisso de dar sepultura aos seus irmãos po<strong>br</strong>es, resolveucomprar a chácara do Catumbi (...) para nela dar sepultura aosseus irmãos, e mais fiéis (...).Dizem (...) to<strong>dos</strong> da mesa atual da Venerável Ordem Terceirade S. Francisco de Paula desta Corte e <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro:que sendo hoje provado por fatos e experiências de incontestávelverdade, que o costume de sepultar-se cadaver dentro dasigrejas, ou ainda em seus claustros, ou recintos situa<strong>dos</strong> no centrodas povoações, é altamente prejudicial à saúde <strong>dos</strong> seushabitantes, pela evaporação <strong>dos</strong> miasmas, que provêm daputrefação <strong>dos</strong> corpos [grifo meu]; e sendo outrossim certoque um semelhante costume, desconhecido nos primeiross6culos da Igreja, mas que crenças, ou porventura superstiçõesposte<strong>rio</strong>res a fizeram tolerável está de presente quase geralabolido em todo o [ilegível] católico, e que deu lugar à previsãoda lei de 1 O de outu<strong>br</strong>o de 182643,que encarregou as câmarasmunicipais a promoverem o estabelecimento de cemité<strong>rio</strong>s forado recinto <strong>dos</strong> templos, resolveram os suplicantes, devidamenteautoriza<strong>dos</strong> pelo grêmio da ordem, em benefício <strong>dos</strong> habitantesdesta no<strong>br</strong>e e populosa <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro [grifo meu],[construir] um cemité<strong>rio</strong> para descanso e sepultura, assim deto<strong>dos</strong> os seus irmãos, como também das pessoas o disponhampor suas últimas vontades, ou cujos testamenteiros ou famíliaso requeiram.Nas respostas das três associações religiosas, ficaevidente o pronto atendimento as determi<strong>na</strong>ções<strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais. Acredito que, para isso, muito contribuiu o,fato de, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, o discurso médico tersido dissemi<strong>na</strong>do com mais eficiência do que, por exemplo,<strong>na</strong> Bahia; o que pode ser verificado <strong>na</strong> adoção de elementosdaquele discurso <strong>na</strong>s próprias declarações das irmandadesacima referidas. Em Salvador, diferentemente da Corte, taisacontecimentos ocorreram num período em que o discursomédico-normalizador das práticas funerárias tivera poucotempo para sua dissemi<strong>na</strong>ção - em ambas as <strong>cidade</strong>s, afaculdade de Medici<strong>na</strong>.fora criada em 1832. Deste período atéo estabelecimento <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos, passaram-se, emSalvador, quatro anos, e, <strong>na</strong> Corte, 18 anos. Por outro lado, <strong>na</strong><strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, a presença do poder imperial, numa


época de consolidação e centralização políticas, constituiu-se,também, em motivo relevante para que as irmandades da Cortedessem cumprimento as determi<strong>na</strong>ções <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais. EmSalvador, a presença do poder provincial, num momento depouca estabilidade, como o período regencial, teria propiciadoa eclosão de uma reação mais violenta por parte das irmandadese da população em geral, recusando-se a realizar ossepultamentos no cemité<strong>rio</strong> público.A proibição <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas, em 1850, foi,portanto, visto pelas irmandades e ordens terceiras da Corte,como um benefício para a saúde pública. Lem<strong>br</strong>emo-nosdaquelas referências a respeito das mudanças <strong>na</strong> sensibilidadeolfativa por parte de alguns segmentos da população que, tendopor base as concepções acerca da contami<strong>na</strong>ção cadavéricaso<strong>br</strong>e o ambiente, não mais encarava o hábito da inumaçãonos templos com <strong>na</strong>turalidade.A convivência <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> com seus <strong>mortos</strong> já não era tãosuportável quanto antes, ainda que muitos continuassem atolerá-la. Não houve, por tudo isso, a princípio, recusas radicaisdas associações religiosas da Corte em construir cemité<strong>rio</strong>sou em levar os cadáveres de irmãos para um <strong>dos</strong> dois cemité<strong>rio</strong>sconsidera<strong>dos</strong> extramuros pelo <strong>gov</strong>erno (o de Catumbi e o doCampo Santo). O fato de a administração <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s, noRio de Janeiro, ter ficado a cargo da Santa Casa daMisericórdia, e não <strong>dos</strong> empresá<strong>rio</strong>s, também contribuiu paraesta aceitação, afi<strong>na</strong>l, era ela também uma associação religiosa.Obviamente, os efeitos epidêmicos em muito contribuíram paraesta tomada de posição, como se percebe <strong>na</strong>s passagensgrifadas.Em Salvador, entretanto, algumas irmandades tambémmostraram não desconhecer o discurso médico, até fizeramuso dele, só que para reafirmar o caráter salu<strong>br</strong>e de suascatacurnbas, que estariam construídas dentro de "perfeitascondições higiêni~as"~~ . Jacqueline Thibaut-Payen, em seuestudo so<strong>br</strong>e o caso francês, qualificou tal discurso <strong>dos</strong>resistentes às mudanças como de "pseudocientificos~'45 . Comefeito, se o mesmo discurso médico serviu para corroborar asduas justificativas - a <strong>dos</strong> resistentes e a <strong>dos</strong> favoráveis a


transformação <strong>dos</strong> sepultamentos eclesiásticos -, é possível que aconjuntura específica de cada uma das <strong>cidade</strong>s nos dois perío<strong>dos</strong>em questão - 1836 e 1850 - tenha influenciado <strong>na</strong> forma como omesmo foi utilizado.Após receber o ofício do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios doImpé<strong>rio</strong>, de 16 de março de 1850, a Ordem Terceira de NossaSenhora do Monte do. Carmo sepultou os cadáveres de seusirmãos faleci<strong>dos</strong>, nos dias 19 e 2013, <strong>na</strong>s catacumbas da igrejada freguesia do Engenho Velho. A partir do dia 21 em diante,a ordem terceira começou a sepultá-los em um cemité<strong>rio</strong>provisó<strong>rio</strong>, no terreno do Caju, oferecido pela Santa Casa, emandado preparar a sua custa46.Quanto aos po<strong>br</strong>es,'os faleci<strong>dos</strong> no hospital da SantaCasa e os escravos, ou seja, aqueles que não eram associa<strong>dos</strong>a alguma irmandade e sem condições de arcarem com os custosde um sepultamento no cemité<strong>rio</strong> de Catumbi, foram leva<strong>dos</strong>para o Campo Santo da Misericórdia, no Caju. Se houvequestio<strong>na</strong>mentos das associações religiosas com relação aosdecretos n." 583 e n." 796, estes o foram de outra ordem, devidoao fato de a lei ter concedido privilégio aos terceiros de SãoFrancisco de Paula em manter\ o seu cemité<strong>rio</strong> do Catumbi.Apesar de, <strong>na</strong> Corte, as irmandades e ordens terceirasapresentarem uma relativa familiaridade com o discursomédico, a ponto de seguir, sem maiores questio<strong>na</strong>mentos, asdetermi<strong>na</strong>ções <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais, no que se referia aocumprimento do reg~lamento sanitá<strong>rio</strong> de 4 de março de 1850,no tocante a proibição das encomendações de corpos <strong>na</strong>s suasigrejas, é perceptível uma clara resistência em executar asordens imperiais.O pretexto dado pelas irmandades e ordens terceiras foio de não terem recebido ordens de seu dioces'ano. Em vistadisso, o Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> enviou aviso aobispo, em 2 de a<strong>br</strong>il, solicitando que o mesmo expedisse asordens convenientes para que o artigo 10 do regulamento fossereligiosamente cumprido. D. Manuel do Monte, em suaresposta ao <strong>gov</strong>erno, mostrou-se contrá<strong>rio</strong>,a"proibição e,provavelmente, isto chegou as irmandades, fortalecendo adesobediência ao regulamento. Diante'da resistência, o chefe de


polícia teve que expedi, já em 30 de maio, oficio a Ordem Terceirade S. Francisco, a fim de que construísse, em seu cemité<strong>rio</strong>, umacapela provisória para a realização das encomendações. Como oprazo dado fora de seis dias, não houve, a partir de então, comoas irmandades e ordens terceiras deixassem de obedecer. Apossível desculpa de que não havia local específico para este hnão podia mais ser utilizada.Quando o perigo da epidemia passou, entretanto, asirmandades e ordens terceiras enviaram representações aoimperador, solicitando que fosse permitido realizar asencomendações <strong>na</strong>s suas igrejas, apesar do decreto de 1850.A insistência perdurava.Em 10 de fevereiro de 1852, o <strong>gov</strong>erno imperial,consultando a Junta Central de Higiene Pública, permitiu que<strong>na</strong> igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula sefizessem as encomendações <strong>dos</strong> defuntos que fossemsepulta<strong>dos</strong> em seu cemité<strong>rio</strong> ou em qualquer outro, uma vezque o tivessem disposto em sua última vontade ou o quisessemas pessoas encarregadas de seus sepultamentos. Havia, porém,duas cláusulas: os caixões não poderiam ser abertos no atodas encomendações e a permissão cessaria logo que semanifestassem alguma moléstia contagiosa ou epidemia emgrande escala4'.A permissão dada aos mínimos foi o bastante para queoutras irmandades e ordens terceiras dirigissem representaçõesao imperador solicitando a concessão. No mesmo mês, asordens terceiras do Carmo e de São Francisco da Penitênciarecorreram. A primeira alegou o fim da epidemia, o fato deque os irmãos as teriam solicitado as pessoas incumbidas deseus enterros e a precedência aberta a ordem de São Franciscode Paula, precedência esta que se constituiu no único pontoalegado pela Ordem da Penitência. Ambas conseguiram seuintento48.Emcmarço e maio, a Ordem Terceira de Nossa Senhorada Conceição e Boa Morte e a Irmandade de São GonçaloGarcia conseguiram portaria a seu favoF9. Em outu<strong>br</strong>o edezem<strong>br</strong>o de 1 853, a Ordem Terceira do Senhor Bom Jesus doCalvá<strong>rio</strong> da Via-Sacra e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosá<strong>rio</strong>


e São Benedito, enviaram suas representações. Um motivodiferente, além <strong>dos</strong> já alega<strong>dos</strong>, foi citado. Pedia-se permissãopara encomendar os cadáveres de irmãos em seus templos, comoforma de dar cumprimento ao artigo de seus compromissos quemandava encomendar os corpos <strong>dos</strong> irmãos <strong>na</strong>s suas igrejasS0.Nessas atitudes das associações religiosas, fica evidente queelas colocaram-se,fmes no propósito de continuarem a fazer asencomendações <strong>dos</strong> seus irmãos <strong>mortos</strong> em seus templos. Diantedas determi<strong>na</strong>ções legais, aproveitaram-se das <strong>br</strong>echas surgidasdo confronto entre Igreja e Esta<strong>dos</strong>1 . O posicio<strong>na</strong>mento contrá<strong>rio</strong>do bispo d. Manuel do Monte às medidas que mandavam que asreferidas encomendações não se realizassem mais <strong>na</strong>s igrejas,levou-as a retardarem o máximo possível o cumprimento doregulamento saniíá<strong>rio</strong>, mostrando-se determi<strong>na</strong>das a defenderemsuas tmdições. Entretanto, se, por um momento, pareciam ter sidovencidas, reapareciam, logo em seguida, insistindo nos mesmospontos, conseguindo, por vezes, arrancar concessões dasautoridades <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>mentais, como no caso das representaçõesdeferidas a seu favor, com relação aos pedi<strong>dos</strong> de encomendaçãonos templos. E possível perceber uma luta das associações leigaspela preservação de sua autonomia, tanto em relação ao poderimperial, como ao poder eclesiásticoS2.Retomemos, após essa digressão, o posicio<strong>na</strong>mento dasirmandades e ordens terceiras diante do estabelecimento <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s públicos, <strong>na</strong> Corte. Em 14 de fevereiro de 1851, aadministração da Santa Casa da Misericórdia respondeu a umoficio do <strong>gov</strong>erno em que pedia informações so<strong>br</strong>e o númerode irmandades que quisessem possuir jazigos dentro <strong>dos</strong>terrenos <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos, sujeitos as condições do<strong>gov</strong>erno. Em seu oficio, José Clemente Pereira declarou quetreze irmandades pretendiam estebelecer seus cemité<strong>rio</strong>sparticulares, mas só quatro indicaram o terreno. Não deixou,em sua resposta, de manifestar o desejo delas de indicar oCatumbi "a fim de que a longitude do lugar não as coloqueem condiçães infe<strong>rio</strong>res a Ordem Terceira de São Francisco dePa~la"~~ .Aproveitando-se desta preferência, José ClementePereira emitiu opinião, <strong>na</strong> sua resposta ao <strong>gov</strong>erno, afirmando


que seria conveniente reconhecer a pretensão de que o cemité<strong>rio</strong>geral fosse localizado em Catumbi. Desta forma, "to<strong>dos</strong> ficariamsatisfeitos, e acabaria por uma maneira satisfatória uma questãoque dura já tempo demais, e conserva em inquietação as ordens eirmandades". Obviamente, esta possibilidade era bem vista peloprovedor da Santa Casa, pois já havia proposto a mesa dainstituição a compra de três chácaras em Catumbi, para a localizaçãodo cemité<strong>rio</strong> geral. Certamente esta escolha fundava-se nosmesmos objetivos das demais irmandades e ordens terceiras, emprevenir-se contra a possível preferência da população pelosenterros no cemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de São Francisco dePaula.Este fato levou a uma discussão que ganhou o Legislativoe a imprensa. No primeiro, várias representações foramenviadas por irmandades e ordens terceiras, questio<strong>na</strong>ndo oprivilégio e pedindo que o parágrafo 1 O, do artigo 5O, do decretono 583 fosse revogado, ou que as demais corporações religiosastivessem o mesmo direito de ter seu cemité<strong>rio</strong> particular. Emagosto de 1851 iniciaram-se as discussões <strong>na</strong> Câmara <strong>dos</strong>Deputa<strong>dos</strong> a respeito da revogação do dito art. 5' da lei so<strong>br</strong>ecemité<strong>rio</strong>s. Além do privilégio de uma ordem terceira, discutiaseo fato de esta manter seu cemité<strong>rio</strong> <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, contra asdetermi<strong>na</strong>ções médicas. A manutenção de um cemité<strong>rio</strong>intramuros foi o segundo fator criticado pelas demaisirmandades e ordens terceiras. Como se não bastasse que aOrdem Terceira de São Francisco de Paula mantivesse umcemité<strong>rio</strong> como exceção, contida <strong>na</strong> lei, ela o tinha em umaárea central, enquanto os sepultamentos das demais deveriamdirigir-se para um ponto extremo da <strong>cidade</strong>, a ponta do Caju,o local onde a Santa Casa estabeleceu um <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>spúblicos - o de São Francisco Xavier.Ainda em outu<strong>br</strong>o de 1850, a Ordem Terceira de NossaSenhora do Carmo dirigiu uma repre~entação'~ à AssembléiaGeral Legislativa, pedindo a revogação do referido artigo.Invocando os "princípios de equidade" que se opunham a que,por meio de favores exclusivos, uns fossem eleva<strong>dos</strong> so<strong>br</strong>e a ruí<strong>na</strong><strong>dos</strong> outros, os irmãos do Carmo alegavam que a proximidade dolocal <strong>dos</strong> enterramentos e a conseqüente facilidade <strong>dos</strong>


acompanhamentos seriam uma vantagem para a Ordem Terceirade São Francisco de Paula, que passaria a atrair os fiéis em gerale, ainda que lenta, porém progressivamente, as outras confiariasdefinhariam.Não só os terceiros do Carmo manifestaram odescontentamento com relação ao privilégio da Ordem Terceirade São Francisco de Paula e o desejo de ter seu cemité<strong>rio</strong> emCatumbi. Quando a Irmandade de Nossa Senhora da Conceiçãoapresentou requerimento ao <strong>gov</strong>erno, pedindo autorização paraestabelecer seu cemité<strong>rio</strong>, ela o fez com vistas a estabelecê-lono Catumbi, tendo, inclusive, contratado uma chácara <strong>na</strong>simediações do cemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de São Franciscode Paula.Se o clima <strong>na</strong>s sessões parlamentares era quente, maisameno não foi o da imprensa diária. No primeiro semestre de1851, inúmeros artigos publica<strong>dos</strong> sob pseudônimosabordaram o assunto, nos jor<strong>na</strong>is Diá<strong>rio</strong> do Rio de Janeiro55 eJor<strong>na</strong>l do C~rnrnercio~~. Provavelmente por isso, a Câmara<strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> sentiu-se pressio<strong>na</strong>da a discutir a questão,decidindo-se pela indenização do <strong>gov</strong>erno a Ordem Terceirade São Francisco de Paula, por conta da privação do seucemité<strong>rio</strong>.Em junho de 1852, outra representação da OrdemTerceira do Carmo5' foi dirigida ao corpo legislativo. Já nãobastava a Ordem do Carmo a revogação do privilégio <strong>dos</strong>terceiros mínimos, ela desejava ter um cemité<strong>rio</strong> cujaadministração passasse por ela, não ficando sob o monopólioda Santa Casa. Segundo ela, outras ordens terceiras tambémnão queriam ficar ligadas a Misericórdia e o motivo para talestava no preconceito contra o cemité<strong>rio</strong> do Caju: um cemité<strong>rio</strong>criado "para nele se enterrarem os escravos, os po<strong>br</strong>es, <strong>mortos</strong>no hospital da Santa Casa, e os padecentes". Não era de seudesejo enterrar seus irmãos, "muitos <strong>dos</strong> quais indivíduosimportantes <strong>na</strong> sociedade <strong>br</strong>asileira", entre os escravos, osmendigos e os padecentes. Isto seria, em sua opinião, um desprezopara com os seus irmãos <strong>mortos</strong>.A introdução das novas formas de sepultamento resultou<strong>na</strong> alteração das relações <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> com seus <strong>mortos</strong>. Estes,


antes vizinhos suportáveis, cuja presença se tolerava em nome deum hábito secular, não mais o seriam a partir de então. Os vestígiosde sua presença tor<strong>na</strong>r-se-iam intoleráveis e temíveis; deveriamser desloca<strong>dos</strong> para lugares mais distantes <strong>dos</strong> .<strong>vivos</strong>. Até que pontoesta mudança alterou o "lugar" que os <strong>mortos</strong> ocupavam <strong>na</strong> culturafùnerária <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>? Um caminho para se responder a esta questãoé identificar se, nos rituais fùnerá<strong>rio</strong>s, ao longo do século XIX, <strong>na</strong>Corte, surgiram alterações <strong>na</strong>s práticas adotadas e, caso apareçam:a) se podem ser associadas aquelas transformações apontadaspara a primeira metade do século XIX; b) se indicam o surgimentode um novo "lugar" para os <strong>mortos</strong>, <strong>na</strong> cultura fùnerária <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>,<strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro; c) até que ponto esta possívelalteração substituiu ou não as relações entre os <strong>vivos</strong> e seus <strong>mortos</strong>.Identificar os elementos de tradição e de transformação <strong>dos</strong>costumes füne<strong>br</strong>es, <strong>na</strong> Corte, durante o século XIX, é, pois, oobjeto da segunda parte deste trabalho.


NOTAS' Em março de 1850, foram apresenta<strong>dos</strong> à Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> projetosso<strong>br</strong>e o estabelecimento de cemitC<strong>rio</strong>s. Entretanto, a única referênciaque encontrei so<strong>br</strong>e o assunto, nos seus a<strong>na</strong>is, foi a dasessão do dia 13, <strong>na</strong> qual dois projetos a respeito de cemitd<strong>rio</strong>s foramapresenta<strong>dos</strong>. Por isso me foi impossível a<strong>na</strong>lisar o conteúdo <strong>dos</strong>debates ocorri<strong>dos</strong> nesta Câmara, motivo pelo qual me deterei nosdebates do Se<strong>na</strong>do, so<strong>br</strong>e os quais possuo referência de todas as 19sessões realizadas entre 51611 850 e 16/7/1850. O projeto, discutido eaprovado no Se<strong>na</strong>do, retomou à Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>: consegui encontrarreferências das três sessões realizadas entre 22 e 24 de agosto,<strong>na</strong>s quais se discutiu novamente o projeto modificado pelo Se<strong>na</strong>do,que se transformaria em decreto.Os armadores eram proprietá<strong>rio</strong>s de uma casa mortuária, <strong>na</strong> qual secompravam ou alugavam os objetos para a decoração da casa e daigreja, para a realização das cerimônias funerárias, como, por exemplo,o vel6<strong>rio</strong>. Na Corte, em 1850, pelo menos 19 pessoas estavam envolvidasno negócio de armação e seis no de aluguel de carros funerá<strong>rio</strong>s,a<strong>br</strong>angendo, respectivamente, um capital de 33:255$670 e 24:821$200rCis. Só pela quantidade de pessoas envolvidas com o aluguel de carrose o capital nele empregado se vê, em comparação com o <strong>dos</strong> armadores,os lucros que eles estavam obtendo durante a epidemia. Cf. Mapademonstrativo do valor <strong>dos</strong> objetos que possuem os diferentes armadorespara o serviço funerá<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> enterros, conforme as avaliações<strong>dos</strong> respectivos peritos e Mapa demonstrativo do valor <strong>dos</strong> carros emais veículos para enterros que possuem os diferentes alugadores decarros, conforme as avaliações <strong>dos</strong> respectivos peritos, que constaramdo oficio enviado pela Santa Casa da Miseric6rdia ao MinistC<strong>rio</strong><strong>dos</strong>Neg6cios do ImpC<strong>rio</strong>, em 171911 85 1 in: VASCONCELLOS, Zacariasde G6is e. op.cit.' Idem, discurso do visconde de Olinda. Vo1.4, p.34 1.Idem, discurso de Jost Clemente Pereira. p.328.' Idem.Idem, sessão de 51611 850, discurso de JosC Clemente Pereira. Vo1.4, p.87 esess%o de 221611 850, discurso de JosC Clemente Pereira. Vo1.4,pp.338-339.' Idem, sessão de 221611 850, discurso de Costa Ferreira. Vo1.4, pp.325-326.Idem, sessão de 121711 850, discurso do se<strong>na</strong>dor Vergueiro. Vo1.5, p.203.


A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 121711 850, discurso do se<strong>na</strong>dor Vergueiro.Vol. 5, pp.206-207.'O Idem, sessão de 5/6/1850, discurso de Batista de Oliveira. Vo1.4,p.94.'IIZIdem, sessão de 281611 850, discurso de Costa Ferreira. Vol. 4, p.474.RUSSELL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa daMisericórdia da Bahia, 1550-1 755. Brasi1ia:Editora Universidade deBrasilia, 1981.pp.153-154.l3 A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 14/6/1850, discurso do visconde de Olinda.Vo1.4, p. 150; sessão de 25/6/1850, discurso de José Clemente Pereira.Vo1.4, p.363.l4l5l6I'l9Idem, sessão de 261611 850, discurso de Costa Ferreira. Vo1.4, p.387.Não encontrei o nome deste se<strong>na</strong>dor no elenco <strong>dos</strong> bispos do Brasil.Possivelmente, tratava-se de um monge beneditino.Idem, sessão de 12/7/1850, discurso de d. Manuel. Vo1.5, pp.212-213.A<strong>na</strong>is da Cámara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 24/8/1850, discurso deZacarias de Góis e Vasconcelos, p.654.A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 281611 850, discurso de d. Manuel. Vol. 4,pp.461-462.Idem, p.468.l0 A<strong>na</strong>is da Cámara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>. Sessão de 22/8/1850, discurso dePaula Cândido. p.616.21 Idem, sessão de 23/8/1850, discurso de Sousa Franco, p.635.22 Decreto no 583, de 51911 850 in: VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e.Legislação so<strong>br</strong>e a-empresa funerária e os cemité<strong>rio</strong>s da <strong>cidade</strong> doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. da Escola de Serafim José Alves,1879.23 ASCMRJ - Atas da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro(1850/70). Sessão de 24121185 1, p.19." Oficio do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> à Santa Casa, em 28/7/


1851 e Ofcio da Santa Casa da Misericórdia ao Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negóciosdo Impé<strong>rio</strong>, em 2/8/1851 in: VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e.op.cit.25 Oficio do Ministé<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> Negócios do Impé<strong>rio</strong> ~5 Santa Casa da Misericórdia,em 18/10/1851 in: VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e. op.cit.26 BN - Requerimento de Teotônio de Santa Humilia<strong>na</strong>, provincial <strong>dos</strong>religiosos fi.anciscanos do Rio de Janeiro, a S. M. I., pedindo meiospara a subsisténcia daquela corporação e permissão para que seusreligiosos voltassem a ser sepulta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s depéndéncias do próp<strong>rio</strong>convento. Rio de Janeiro: 201311 850; ,BN - Requerimento da p<strong>rio</strong>resa e religiosa do convento de SantaTeresa da Corte a S. M. I., pedindo permissão para sepultar seu capelão,pe. Jacinto Marques Monteiro, nos jazigos daquele convento. Riode Janeiro: 25191 1850.27 BN - Requerimento do guardião do convento de Santo Antônio daCorte a S.M.I., solicitando licença para sepultarem-se <strong>na</strong>quele conventoseus religiosos e escravos. Rio de Janeiro: 1 11411 850 - 1611211 852.28 Para a Igreja, as encomendações constituiam--se em um direito essencialmenteparoquial, devendo ser realizadas ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s matrizes e, só porexceção, deveriam ser feitas <strong>na</strong>s casas e nos templos das-imandades.29 BN - Os cemité<strong>rio</strong>s in: A Religião. Vo1.3, no 2,151711 850.-.30 IHGB - Exposição de motivos, feita por M. B. C. C. M (Manuel, bispoconde capelão-mor), pelos quais não está de acordo com o aviso dovisconde de Mont'Alegre determi<strong>na</strong>ndo que, pelqjiegulamento Sanitá<strong>rio</strong>da Corte, fica proibida a encomendação3e corpos <strong>na</strong>s igrejas.Palácio da Conceição, 231411 850.3' BN - Os enterros in: A Religião. Vo1.3, n03, 11811 850.32 BN - Os cemité<strong>rio</strong>s; op. cit." A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 12171185 1, discurso de d. Manuel. Vo1.5,pp.209e216-217.34 ARIÈS, Philippe. op.cit., pp.50-52.A<strong>na</strong>is do Se<strong>na</strong>do. Sessão de 12171185 1, discurso de d. Manuel. Vo1.5,p.211.


j6 Idem.37 REIS, João José. op.cit., p.303._H3B Decreto no 796, de 141611 85 1 in: VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e.op. cit.j9 REIS, João JosC. op. cit. pp.308-341. Com a destruição do cemitt<strong>rio</strong>público de Salvador, os revoltosos garantiram a manutenção das práticasde sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas até 1855, quando, em função da epidemiade cólera-morbo, os enterrarnentos foram definitivamente transferi<strong>dos</strong>para os cemité<strong>rio</strong>s extramuros. Do mesmo modo que <strong>na</strong> Corte, aepidemia representou o "empurrão" fi<strong>na</strong>l <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> para fora <strong>dos</strong> templos,devido ao medo <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> serem por eles contami<strong>na</strong><strong>dos</strong>.40 Representação dirigida à Assembléia Geral Legislativa, em que sepede a revogação do artigo da lei funerária que concede à OrdemTerceira de S. Francisco de Paula um cemité<strong>rio</strong> privilegiado dentroda <strong>cidade</strong> in: SERZEDELLO, Bento José Barbosa. op.cit., p.342.41 AGCRJ - Requerimento da Irmandade de Nossa Senhora da Conceiçãoda capela da rua do Sabão à S.M.1, pedindo autorização paraestabelecer seu cemité<strong>rio</strong> à rua do Catumbi, uma vez que tinham sidoproibi<strong>dos</strong> os sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas. Rio de Janeiro: 19/04/1850.42 BN - Requerimento da Ordem Terceira de S. Francisco de Paula aS.M.1, pedindo autorização para estabelecer um cemité<strong>rio</strong> no caminhodo Catumbi Grande. Rio de Janeiro: 271211849.Não encontrei referências a 4 lei, ape<strong>na</strong>s B de ouiu<strong>br</strong>o de 1828, o queme faz pensar que pode simplesmente ter havido um engano <strong>na</strong> redação.I44 REIS, João Jose. op.cit., pp.311-3 13.45 THIBAULT-PAYEN, Jacqueline. Les morts, I 'Église et I 'État. Recherchesd'histoire administrative sur Ia sépulture et les cimetières &ns leressofl duparlement de Paris auxXVlle et XVIIIe siècles. Paris: EditionsFemand Lanore, 1977. pp.4 13-41 5.46 Ape<strong>na</strong>s em 1857 é que foi comprado um terreno no cemitk<strong>rio</strong> público deS. Francisco. Xavier. Cf. SERZEDELLO, Bento JosC Barbosa. op.cit.,p.326327.47 BN - Portaria de 1010211852 in: Representação da Ordem Terceira do


Senhor Bom Jesus do Calvá<strong>rio</strong> da Via-Sacra a S. M.I, solicitando licençapara encomendar os corpos <strong>dos</strong> irmãos faleci<strong>dos</strong> no inte<strong>rio</strong>r desua igreja. Rio de Janeiro: 181101 1853.48 BN - Requerimento do ministro e mesá<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de S.Francisco da Penitência a S.M.1, solicitando que, a exemplo da concessãofeita às demais ordens religiosas, Ihes fosse permitido oficiarcerimônias de encomendação de corpos <strong>dos</strong> irmãos faleci<strong>dos</strong>. Rio deJaneiro: 251211 852 e Requerimento de Francisco Carlos de Magalhães,p<strong>rio</strong>r da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo a S. M. I., pedindofossem liberadas as dependências da igreja daquela ordem, paraas cerimônias de encomendação de corpos. Rio de Janeiro: 2 11211 852.


PARTE IIA <strong>cidade</strong> e seus <strong>mortos</strong>


A vida, para certas sociedades, constitui-se em sucessivaspassagens de um estado para outro. Ritos e cerimôniasespecíficas, executa<strong>dos</strong> em determi<strong>na</strong>das ocasiões, operamessas passagens, como, por exemplo, nos funerais1 .Segundo Mircea Eliade, as sociedades, em geral, percebema existência cósmica como estando predetermi<strong>na</strong>da a passagens:o homem passa da pré-vida à vida, fi<strong>na</strong>lmente, com amorte, inicia a nova existênciapost-mortem2, de forma que osritos relacio<strong>na</strong><strong>dos</strong> a morte não se restringem ape<strong>na</strong>s ao fenômenobiológico em que a "vida" abando<strong>na</strong> o corpo.Assim, para a maioria das sociedades com umacosmovisão religiosa, a integraçã-o do morto ao "outro mundo"somente é reconhecida como acontecida após a realizaçãodas cerimônias fiíne<strong>br</strong>es, ou quando o princípio de exis- ,tência3 da pessoa tiver sido ritualmente conduzido a sua novamorada, no Além-túmulo, e lá for aceita pela comunidade <strong>dos</strong><strong>mortos</strong>. Com efeito, para o homem religioso, a passagem davida à existênciapost-mortem nunca é instantânea, é um trajeto,um percurso de provas e incertezas, cujo término se dá aofim da cele<strong>br</strong>ação <strong>dos</strong> rituais funerá<strong>rio</strong>s. Por isso a morte éidentificada como a passagem de uma forma de vida social auma outra, de modo que ela não é o fim da existência, mas ocomeço de uma nova vida. E considerada como a "supremainiciaçãom4.Com base nestes princípios, várias civilizações constroemmitos a respeito do que ocorre com o indivíduo após amorte, neles inserindo suas representações do Além e de comoeste se organiza. Minha preocupação é identificar certos aspectosdas constnições do Além-túmulo <strong>na</strong>s religiões africa-


<strong>na</strong>s e cristã, por considerá-las os sistemas religiosos majoritá<strong>rio</strong>s<strong>na</strong> sociedade urba<strong>na</strong> do Brasil escravista do Oitocentos.No primeiro caso, por representarem as tradições religiosas<strong>dos</strong> negros africanos que aqui se fizeram presentes, provenientesdo tráfico de escravos5, e, no segundo, a religião oficialdo Estado - seja português ou <strong>br</strong>asileiro - e a religião predomi<strong>na</strong>nteentre grande parte da população. Ambas as estruturasreligiosas se encontraram em muitos momentos, resultando aspráticas fúne<strong>br</strong>es, muitas vezes, do im<strong>br</strong>icamento das suas respectivasconcepções escatológJcas.A morte e o Alkm cristãoEncarada como momento de pas&gem <strong>na</strong> vida, a morteé um aspecto que se destaca <strong>na</strong>s sociedades de cultura cristã.Estas geralmente lhe atribuem a dimensão de "chave" de entrada<strong>na</strong> eternidade, enquanto tal chave pode ser vista comosinônimo de uma esperança escatológica. Entretanto, no Brasildo século XIX, era, paradoxalmente, temida. A preocupa-. ção com o destino no Além-túmulo se revestia de caráter apavorante,pois nem to<strong>dos</strong>, apesar de esperarem e desejarem aSalvação, tinham a certeza de que ela efetivamente ocorreria,até porque se encontrava intimamente relacio<strong>na</strong>da com a qualidadeda vida'terre<strong>na</strong>. O temor da morte estava ligado a crençano dia do Juizo Fi<strong>na</strong>l, quando o Cristo voltaria para julgaros homens, conde<strong>na</strong>ndo para todo o sempre os maus e conduzindoos justos para o Céu, para a vida eter<strong>na</strong>.Associado a esse medo, havia a preocupação com a morterepenti<strong>na</strong>, pois o homem podia não estar devidamente preparadopara ela. Para ser considerada uma "boa morte", era necessá<strong>rio</strong>que fossem tomadas determi<strong>na</strong>das medidas antecipadamente,para que um imprevisto não impedisse o fiel de demonstraro arrependimento pelos seus "atos maus", de fazerpenitência e de partir com o perdão <strong>dos</strong> seus peca<strong>dos</strong>. Destemodo, havendo ou não preparação cotidia<strong>na</strong> através de uma


"vida reta", os cristãos se preocupavam em determi<strong>na</strong><strong>dos</strong> momentosespeciais - como o da iminência da morte - com oinvestimento <strong>na</strong> Salvação, através da feitura do testamento,do ingresso em uma irmandade - a fim de ter uma assistênciaespecífica <strong>na</strong> hora derradeira - ou do recurso aos sacramentos,para não partir sem esses si<strong>na</strong>is sagra<strong>dos</strong>6.O destino da alma no Além cristão estava condicio<strong>na</strong>do,portanto, ao Juízo Fi<strong>na</strong>l, após o que haveria dois grupos dehomens para a eternidade: os eleitos, no Paraíso, e os conde<strong>na</strong><strong>dos</strong>,no Inferno. A sorte seria determi<strong>na</strong>da pela conduta emvida - a fé e as boas o<strong>br</strong>as decidiriam pela Salvação, enquantoa impiedade e os peca<strong>dos</strong> crimi<strong>na</strong>is/mortais conduziriam aoInferno7. A este esquema biná<strong>rio</strong> Inferno-Paraíso, foi adicio<strong>na</strong>do,por volta <strong>dos</strong> séculos XII-XIII, um terceiro lugar <strong>na</strong> "geografia"do Além cristão, que consistiu <strong>na</strong> introdução de umacategoria intermediária entre os extremos opostos, temporáriae não eter<strong>na</strong>: o Purgató<strong>rio</strong>. Segundo Le Goff, ela se mostrouduplamente intermediária: "nele não se é nem tão feliz comono Paraíso nem tão infeliz como no Inferno, e só durará até aoJulgamento Fi<strong>na</strong>lw8.Constituldo, no imagináriÒ cristão medieval, como espaçoe como tempo, o Purgató<strong>rio</strong> foi o resultado da crençacristã, surgida desde muito cedo, <strong>na</strong> possibilidade de remissãode determi<strong>na</strong><strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong>, sob certas condições, após a morte.O cristianismo julgou possível que certos peca<strong>dos</strong>, pela sua<strong>na</strong>tureza (peca<strong>dos</strong> leves, veniais) ou pelas condições de mortedo peydór (tendo feito a confissão sem, no entanto, ter realizadoa penitência), podiam ser expia<strong>dos</strong> através de uma purgaçãodepois da morte. O tempo desta purgação estaria situadoentre a morte individual e o Juízo Fi<strong>na</strong>l "coletivo", tempoem que os defuntos, beneficia<strong>dos</strong> desta possibilidade póstumade resgate, teriam que purgar os peca<strong>dos</strong>, podendo durarmais ou menos, de acordo com a gravidade das faltas aindapor expiar e consoante o zelo <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> de intercederem peloconde<strong>na</strong>do à purgação, por meio <strong>dos</strong> sufrágios. Os defuntosque termi<strong>na</strong>ssem a sua purgação antes do fim <strong>dos</strong> tempos iriamlogo para o Paraíso celeste9.A existência de um "espaço" pressupõe a crença em um


duplo julgamento. O primeiro, no momento da morte, e o segundo,no dia do Juizo Fi<strong>na</strong>l. Entre os dois haveria um intervalode tempo durante o qual ocorreria a purgação das pe<strong>na</strong>sdas almas de certos pecadores, que poderiam, assim, ser salvas.No Além cristão havia, portanto, três "lugares" chaves: oParaíso, o Inferno e o Purgató<strong>rio</strong>. Desti<strong>na</strong>da as crianças que,mortas sem o batismo, não estavam livres do pecado origi<strong>na</strong>l,mas tampouco tinham peca<strong>dos</strong> pessoais, havia a teoria teológicado LimbolO.Sem ter a preocupação em me deter no processo <strong>dos</strong>urgimento da doutri<strong>na</strong> do Purgató<strong>rio</strong> e do seu desenvolvimento,acho necessá<strong>rio</strong> a<strong>na</strong>lisar alguns pontos a ele relacio<strong>na</strong><strong>dos</strong>,por terem introduzi& importantes elementos no sistemado Além do cristão. Por um lado, o Purgató<strong>rio</strong> estaria relacio<strong>na</strong>doa uma pedagogia do medo - <strong>na</strong> qual o terceiro lugar seaproximaria do Inferno - que foi adotada por parte da Igreja,que insistia <strong>na</strong> dureza das pe<strong>na</strong>s purgatórias como forma deprolongar seu poder so<strong>br</strong>e os fiéis para além da morte. Teriasurgido no momento em que seu poder estava sendo posto emcausa - por volta <strong>dos</strong> séculos XII-XIII - pelos movimentosheréticos e pelos que caíram <strong>na</strong>s "tentações" do mundo. Naépoca, surgiu a noção de que a dor e o sofrimento, alCm dasimples expiação, podiam-se tomar origem de méritos que,segundo Le Goff, permitiriam as almas termi<strong>na</strong>rem a sua purgação.O poder eclesiástico reforçaria o seu poder com estenovo sistema do Além, ao administrar ou controlar as preces,as esmolas, as missas, as oferendas de to<strong>dos</strong> os gêneros, feitaspelos <strong>vivos</strong> em favor de seus <strong>mortos</strong>, tirando beneficio de tudo.Graças ao Purgató<strong>rio</strong>, desenvolveu o sistema das indulgências,fonte de grandes lucros, de poder e de dinheiro" .Por outro lado, como conseqüência para o tempo queenvolve o momento da morte, o Purgató<strong>rio</strong> levou àdramatização tanto do período que o precede quanto daqueleque se segue. Para sua obtenção, seria necessá<strong>rio</strong> que a penitênciativesse sido iniciada - ou, pelo menos, a confissão, ouainda, no mínimo, uma contrição sincera, de modo que a atitudedo pecador no momento de sua morte assumia uma importânciacapital e dramática12. O último instante passaria a


ser de suma importância para o moribundo que, sentindo-seinseguro de ir diretamente para o Paraíso, teria a possibilidadede conseguir ainda nesse instante a salvação através da expiaçãode suas culpas.Desta forma é.que muitos indivíduos no Brasil, da Colôniaaté mea<strong>dos</strong> do século XIX, se valeram do testamentopara demonstrar arrependimento por suas atitudes ao longo davida, como se percebe no testamento de Maria da ConceiçãoMatos13, <strong>na</strong>scida no Rio de Janeiro: filha de uma c<strong>rio</strong>ula forraque, em 1778, assim solicitou a intercessão da Virgem, <strong>dos</strong>anjos e santos por sua alma, quando esta fosse posta diante dojulgamento divino:Rogo à Virgem Santissima Nossa Senhora que interceda pormim diante de Seu Unigênito Filho para que me perdoe os meuspeca<strong>dos</strong> e me dê a graça fi<strong>na</strong>l santificante e me salve pelosmerecimentos infinitos de sua paixão e morte (...) que tambkmme perdoe toda a falta de respeito e desobediência aos seusavisos e ofendendo-o tantas vezes a Deus <strong>na</strong> sua presença e queme assista <strong>na</strong> última hora com as suas poderosas inspiraçõesapartando longe de mim toda sugestão do demonio.Em outro testamento, é possível perceber atitude semelhante.Filha ilegítima do senhor de sua mãe, Apolônia de Jesus,ao testar14, em 1779, mencionou seu arrependimento pelosseus atos, a fim de garantir a salvação de sua alma:(...) encomendo a minha alma à Santissima Trindade que a c<strong>rio</strong>ue ao Padre Eterno peço e rogo a queira receber como recebeu ade seu Unigênito Filho estando para morrer <strong>na</strong> Arvore da VeraCruz e a meu Senhor Jesus Cristo que se me faça participante<strong>dos</strong> merecimentos de Sua Sagrada Paixfio e ao Espírito Santopeço e rogo que me assista com a sua divi<strong>na</strong> graça para queconhecendo as ofensas que tenho cometido me arrependo delaspara merecer o prêmio eterno (...)Maria da Conceição e Apolônia de Jesus utilizaram otestamento como instrumento de manifestação do arrependi-


mento pelos atos que consideravam ofensas a Deus, como oúltimo recurso para se beneficiarem da contrição fi<strong>na</strong>l. Atitudesque estavam direcio<strong>na</strong>das a uma tentativa de influir nojulgamento individual, pois que este dependia da responsabilidadede cada um. Apesar de, após a morte, a duração daspe<strong>na</strong>s purgatórias estar sujeita aos sufrágios, já antes da morte,o julgamento do indivíduo começaria a ser pré-definidopelos "méritos ou deméritos, pelas virtudes e vícios, pelos arrependimentose reincidências, pelas confissões e negligências,pelas penitências mais ou menos bem cumpridas pelo futurodefunto"15.O período posterigr ao falecimento de um cristãoapresentava-se como o momento em que os sufrágios setor<strong>na</strong>vam eficazes e necessá<strong>rio</strong>s, dando assim uma responsabilidadecoletiva entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>, criando umasolidariedade que se refletia <strong>na</strong> cele<strong>br</strong>ação de missas e<strong>na</strong> fundação de irmandades e confrariasI6. Oração, jejum,esmola e missas serviriam não para a salvação, maspara sufragar pe<strong>na</strong>s purgatórias, fosse por meio da suamitigação ou da liberação mais rápida delas. Tais práticasobtinham a absolvição <strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong>, diminuíam a provaçãoe afastavam, portanto, da conde<strong>na</strong>ção eter<strong>na</strong>1'.O Purgató<strong>rio</strong>, em síntese, significou, para o cristão, umapossibilidade de resgate da alma após a morte; baseou-se <strong>na</strong>doutri<strong>na</strong> de que existia um local, com um "fogo purificador",para onde seriam leva<strong>dos</strong> aqueles que morriam depois de teremconfessado - mas que não haviam tido tempo de fazerpenitência - que morriam tendo peca<strong>dos</strong> veniais ou culpasmínimas, sendo aí purifica<strong>dos</strong> antes do Juízo Fi<strong>na</strong>l. Para obterema satisfação das pe<strong>na</strong>s, poderiam ser ajuda<strong>dos</strong> pelos sufrágios<strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, através de missas, esmolas, preces e o<strong>br</strong>aspie<strong>dos</strong>as. No Além cristão, o lugar desti<strong>na</strong>do à almacorrespondia a uma recompensa ou a um castigo merecido:"logo que essa alma sai do corpo ou fica submersa no Infernoou voa para o Céu, a menos que, neste último caso, uma dívidapara com a justiça divi<strong>na</strong> retarde o seu voo, o<strong>br</strong>igando-a auma purgação prévia"18. A doutri<strong>na</strong> da Igreja católica aparecia,desta forma, preocupada mais com a salvação do que com


o culto <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. Para esta doutri<strong>na</strong>, os indivíduos morriam"para viver entre os santos, anjos e Deus <strong>na</strong> glória ~elestial"'~.A morte e o Além africanoAntes de me deter <strong>na</strong> questão da morte e do Além africano,creio ser necessá<strong>rio</strong> fazer algumas observações prelimi<strong>na</strong>res.Primeiramente, levando-se em consideração que as fontesbásicas para o estudo da Parte I1 deste trabalho são os registrosparoquiais de óbitos - fonte cristã - e, por outro lado, aintenção de verificar também as concepções africa<strong>na</strong>s acercada morte, bem como alguns de seus rituais funerá<strong>rio</strong>s, julgonecessá<strong>rio</strong> explicitar o caminho adotado para dar conta destaquestão. Partindo da constatação de que os referi<strong>dos</strong> registrosremetem a uma prática cristã ocidental, busquei outros caminhospara chegar aquelas concepções e práticas africa<strong>na</strong>s,como, por exemplo, a bibliografia antropológica de algunsafricanistas e os relatos <strong>dos</strong> viajantes que, mesmo consideran<strong>dos</strong>ua carga de etnocentrismo, fornecem descrições a respeito<strong>dos</strong>.rituais fúne<strong>br</strong>es africanos no Rio de Janeiro, no séculoXIX.Entretanto, apesar 'de todas estas considerações, não sepode ignorar o fato de que escravos e libertos, fossem c<strong>rio</strong>ulosou africanos, apareceram mencio<strong>na</strong><strong>dos</strong> nos assentos de óbitos.Assim, por um lado, esta ocorrência aponta para aconstatação de que os negros, incluí<strong>dos</strong> os africanos, recorreramao funeral cristão, ainda porque este era o oficialmenteaceito e adotado pela maioria da população da Corte e o permitidopela religião oficial do Estado. Por outro lado, isto nãoimpede que, paralelamente, aqueles indivíduos tenham feitouso das suas práticas ancestrais, tanto antes como depois daexecução do cerimonial cristão, o que também aponta para apossibilidade de alguns daqueles negros terem adotado as duaspráticas, conscientemente e como instrumento de crença. Comoafirma Clifford GeertzZO, o homem é religioso por ser incli<strong>na</strong>-


do a participar de uma religião. Se ele crê em uma dada religião,não é ape<strong>na</strong>s por praticá-la, mas por vê-la como símbolode uma "verdade" transcendental. Deste modo, se os negros,constantes <strong>dos</strong> assentos de óbitos, adotavam o ritual fúne<strong>br</strong>ecristão, era porque, de alguma forma, acreditavam nele.A análise das concepções de morte e do Além é um modode se compreender muitas das tradições culturais <strong>dos</strong> vá<strong>rio</strong>sgrupos étnicos africanos trazi<strong>dos</strong> para o Brasil. Segundo RogerBastide, a importância dada pelos negros africanos aos rituaisliga<strong>dos</strong> à morte foi fundamental <strong>na</strong> preservação das tradiçõesdas religiões africa<strong>na</strong>s no Brasil2' .Diversos eram os grupos étnicos e diversos seus costumese suas tradições. Por isso, ao falar da visão de morte e doAlém africano, deve-se ter em mente que há várias concepçõesafrica<strong>na</strong>s acerca da morte e do Além, sendo, pois, necessá<strong>rio</strong>ter referências so<strong>br</strong>e os grupos étnicos introduzi<strong>dos</strong> noBrasil a partir do trXico tran~atlântico~~.Na atual região Sudeste do Brasil, a grande maioria <strong>dos</strong>escravos importa<strong>dos</strong> da Africa, desde o fi<strong>na</strong>l do século XVIIaté 1850, era proveniente de sociedades falantes de línguasbanto, que incluíam predomi<strong>na</strong>ntemente indivíduos da regiãoCong~lAngola~~. Ainda segundo Mary Karasch, <strong>na</strong> primeirametade do século XIX uma média de 900.000 a 950.000 escravosapartaram no Rio de Janeiro, provenientes do @ficotransatlântico. Destes, a maioria era proveniente da Africacentral, numa média de 96.2%, até 1811, e de cerca de 65% a70%, de 1811 at6 1850, destacando-se as "<strong>na</strong>ções" congo eangola (predomi<strong>na</strong>ntes), moçambique, cabinda, benguela e~assange~~.Segundo Robert Slene~~~, os negros que compartilha-vam do conjunto simbólico e cultural banto associavam a viagematravés do oceano à travessia/passagem da vida para amorte. Atravessar a Kalunga - simbolicamente representadapelas águas do <strong>rio</strong>, do mar ou por uma superficie reflexiva,como a de um espelho - significava "morrer", se a pessoa seencontrava no estágio da vida, ou "re<strong>na</strong>scer", se o movimentofosse no outro sentido.O termo Kalunga apareceu, segundo Artur Ramos26,


entre as divindades de Angola e, primitivamente, significavamar. Várias significações eram dadas a este termo <strong>na</strong> línguabanto, dentre elas, oceano e a personificação da morte, o quereforça a associação entre oceano e morte, feita por Slenes.E interessante notar que, para além das diversidadesculturais <strong>dos</strong> vá<strong>rio</strong>s grupos étnicos africanos, é possível perceberpontos de encontro. Digo isto, por acreditar ser possíveluma certa semelhança estrutural entre esta concepção banto arespeito da morte e, por exemplo, a concepção ioruba(sudanesa), expressa pelos <strong>na</strong>gÔsZ7A morte para os <strong>na</strong>gôs também representava uma passagem.Ao morrer, o individuo passava de uma existência a outra,do Aiye - plano material, o mundo terreno - para o Orun -plano espiritual, o mundo so<strong>br</strong>e<strong>na</strong>tural - de modo que a mortenão significava a extinção total ou aniquilamento. SegundoJua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong> SantosZB, morrer era "uma mudança de esta-do, de plano de existência e de status". O que pode ser consideradouma "boa morte", nesta concepção, era a possibilidadede que, ao passar para o Orun, o morto recebesse os rituaispertinentes, para que se transformasse em um egun (um outroplano da existência do individuo no Além). Por outro lado, amorte prematura de um individuo que não alcançasse a realizaçãode seu destino seria considerada anormal, resultado deum castigo por infração grave em seu relacio<strong>na</strong>mento com asentidades so<strong>br</strong>e<strong>na</strong>turais, principalmente a não realização dedetermi<strong>na</strong>das oferendasZ9.Neste sentido, a identificação banto de Kalunga - morte- com espelho pode ser associada a concepção <strong>na</strong>gô a respeitoda correspondência entre os elementos do Aiye e do Orun30,como se o mundo refletisse os conteú<strong>dos</strong> do Além, e viceversa.Atravessar o espelho, portanto, poderia significar amorte. Este pode ser o sentido da canção jeje que serve deepígrafe ao livro de João José Reis3' : "O morto atravessou oespelho. Para ele <strong>na</strong>da mais será escuridão". Na passagem davida para a morte, o "outro lado" podia ser visto e esperadocom prazer; afi<strong>na</strong>l seria nele que o "morto" reencontraria seusancestrais. Segundo Robert Slenes, uma característica comuma praticamente todas as sociedades banto, bem como a quase.


todas as sociedades africa<strong>na</strong>s, é o fato de elas se estruturaremem torno da família concebida como linhagem, ou seja, comoum grupo de parentesco que traça sua origem a partir de ancestraiscomuns32. Por isso, o culto aos ancestrais adquire sumaimportância entre os afrip-os, por representar a continuidadeda linhage,m. Nas palavras de Slene~~~, "o culto <strong>dos</strong> antepas-sa<strong>dos</strong> <strong>na</strong> Africa tem um significado amplo, político, social ereligioso, especialmente no caso da home<strong>na</strong>gem feita aos 'ancestraisfundadores' que, como os africanos dizem, 'deramorigem a nossa vida e nos trouxeram as terras onde vivemos"'.Jean ZiegleIJ4 aponta a existência, entre os <strong>na</strong>gôs, deum espaço - Ilu-Aiê - como sendo a "terra africa<strong>na</strong>, terra mãe,terra da vida", ocupado pelos espíritos <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> - eguns. Ouseja, em uma associação com o Orun, o Ilu-Aiê poderia expressaruma crença de alguns negros africanos da diásporaque justificava a morte como um caminho para o reencontroda Afica longínqua, <strong>dos</strong> seus ancestrais, da qual foi retiradopara o mundo da escravidão, e a qual dificilmente retomaria.São estes elementos que podem, talvez, explicar o fatode alguns negros da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro terem apresentado,aos olhos <strong>dos</strong> viajantes que por aqui passaram no séculoXIX, uma relação aparentemente estranha com a morte. Nadescrição <strong>dos</strong> funerais de um adulto, no inicio do Oitocentos,Luccock3' se assustou com a forma como o corpo de um negrofoi transportado para a igreja:Não o levam nesse passo lento e solene em perfeita procissão,tal como parece quadrar com uma dor profunda, mas sim numapressa indecente, uma especie quase de corrida, em meio dealto voze<strong>rio</strong> e com um ar de grosseira alegria. Os miseros despojosdo homem vão cobertos de to<strong>dos</strong> os galantes atavios deum dia de festa, o rosto pintado, cabelos empoa<strong>dos</strong>, a cabeçaenfeitada com uma guirlanda de flores ou coroa de metal, nãohavendo para essa faceirice outros limites alem <strong>dos</strong> que lheimpõe a habilidade <strong>dos</strong> amigos so<strong>br</strong>eviventes.Para Luccock, um cristão ocidental, a alegria que se expressavano cortejo, bem como o aparato do defunto represen-


tavam uma afronta ao tom solene que deveria, segundo ele,acompanhar um funeral com a imprescindível decência, silêncioe contrição. As descrições de De<strong>br</strong>eP6 de dois enterros,o primeiro de uma negra e o segundo do filho de um "rei"negro, expressaram surpresa diante do barulho presente nocortejo:(...) o tambor aproveita essa parada para fazer rufar seus instrumentos,enquanto as negras depositam no chão seus diversosfar<strong>dos</strong>; a fim de acompanhar com palmas os cantos fúne<strong>br</strong>es emhonra da defunta transportada <strong>na</strong> rede (...) a essa rui<strong>dos</strong>a pompafunerária junta-se o som de dois pequenos sinos, quase cobertopelo ranger <strong>dos</strong> gonzos enferruja<strong>dos</strong> que os suportam (...)Embora nenhum or<strong>na</strong>mento funerá<strong>rio</strong> designe a porta da casado defunto, pode ela ser reconhecida, mesmo de longe pelo grupopermanente de seus vassalos que salmodiam, acompanhando-seao som de instrumentos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is pouco sonoros, masreforça<strong>dos</strong> pelas palmas <strong>dos</strong> que os cercam. Estas constituemsede duas batidas rápidas e uma lenta ou de três rápidas e duaslentas, geralmente executadas com energia e conjunto. A esseruído monótono, que se prolonga desde o amanhecer, misturam-sepor intervalos a deto<strong>na</strong>ção de bombas (...) erguem-se onegro fogueteiro, soltando bombas e rojões, e três ou quatronegros volteadores, dando saltos mortais ou fazendo ali miloutras cab<strong>rio</strong>las para animar a ce<strong>na</strong>.O aparato festivo assustou os viajantes que, ao se veremdiante do "outro", demonstraram não compreender a possibilidadede um funeral apresentar-se diverso daqueles que conheciam.Em suas descrições - a de Luccock principalmente -so<strong>br</strong>essai a visão de que aqueles seriam costumes "grosseiros".Por trás de suas opiniões estava a concepção etnocêntrica- predomi<strong>na</strong>nte em grande parte <strong>dos</strong> viajantes que aqui estiveram- de que o que era diferente era infe<strong>rio</strong>r. Tal atitude ,foiatribuída por Todorov3' como presente em todo o colonizadorfrente ao colonizado. Segundo o autor, quando se reconhecia adiferença entre duas culturas, esta era traduzida em termos


de supe<strong>rio</strong>ri;lade e infe<strong>rio</strong>ridade, expressando, etnocentricamente,a recusa da existência de uma substância huma<strong>na</strong> realmenteoutra, que pudesse não ser meramente um estado imperfeitode si mesmo. Incapazes, portanto, de compreender e aceitar odiferente como o "outro", a quem se devia reconhecer e respeitar,da mesma forma que a si, não é de se estranhar a dificuldadede os viajantes entenderem a "alegria grosseira" <strong>dos</strong>funerais africanos.Nos relatos <strong>dos</strong> viajantes percebe-se realmente h climade festa que os fùnerais africanos, descritos por eles, pareciamtransmitir. A passagem para o outro mundo poderia, paraaqueles negros, ser motivo de contentamento, que se expressavapor meio da dança e do canto, provavelmente como aquelesque os viajantes presenciaram. Entre os africanos, vá<strong>rio</strong>sgrupos étnicos apresentavam, nos ritos fùnerá<strong>rio</strong>s, este conteúdofestivo. Entre os jejes do Daomé, por exemplo, as famíliase os amigos <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> cantavam, dançavam, comiam ebebiam <strong>na</strong>s cerimônias füne<strong>br</strong>es; os ritos malês de outrora erammarca<strong>dos</strong> pelos banquetes funerá<strong>rio</strong>s onde os dançarinos, emtrajes característicos, dançavam e cantavam ao som de tambores,pandeiros e outros instrumentos; costumes idênticos sefaziam presentes entre os angolanos, com seus batuques, comese bebes que duravam vá<strong>rio</strong>s dias38.Segundo Louis-Vincent Tl~omas~~, em seu estudo antropo-lógico so<strong>br</strong>e a morte entre alguns grupos étnicos africanos - osdiola, especificamente -, estas atitudes revelavam-se como técnicas,fosse para espantá-la ou fosse para domi<strong>na</strong>r a dor, protegendoa comunidade contra síndromes melancólicas. Seriam técnicasdirigidas mais a morte que ao morto, uma forma de manifestar odesprezo total ou uma "indiferença zombeteira"; daí as "açõesparódicas", os "comportamentos burlescos", a "indumentária ridícula"- veja-se a forma como o morto descrito por Luccock estavatrajado -, os saltos e as piruetas, tudo acompanhado de umbaruiho ensurdecedor, produzido pelos tambores, fogos, bombas,palmas, cantos. Ações que davam a entender, segundo o antropólogo,que o negro fingia não temer a morte, ao não demonstmtomá-la a sé<strong>rio</strong>, evidenciando seu desdém de modo simbólico.O clima alegre e festivo presente <strong>na</strong> sua análise poderia nos


levar a interpretação de que tais comportamentos fossem vistoscomo técnica dissimulatória de uma atitude de temor diante damorte. A indiferença, as ações paródicas, os comportamentosburlescos, os saltos e danças seriam como se os africanos daquelesgrupos fingissem temer a morte. Entretanto, o que garante quea morte não pudesse representar algo diferente do sentimento depavor, sofrimento e melancolia? Sentimentos que são, <strong>na</strong> verdade,um determi<strong>na</strong>do paradigma cristão ocidental, como vimos acima.O clima de alegria e festa podia ser encarado literalmentecomo tal, se se levar em consideração aquela imagem de mortecomo "passagem" para uma outra dimensão da vida, <strong>na</strong> qual serealizaria o reencontro com os ancestrais. Entre os povos de origembanto, a vida religiosa tinha como base o culto aos antepassa<strong>dos</strong>,para quem se acendia o fogo sagrado no altar - Okumo -preparado em uma choça especial. Os angolanos, por exemplo,acreditavam <strong>na</strong> transformação das almas e sua metamorfose atéem animais, provindo daí seus ritos funerá<strong>rio</strong>s e outros de carátertotêrnico; suas práticas religiosas e mágicas também eram ligadasao culto <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> e <strong>dos</strong> antepassa<strong>dos</strong>40. Em um fragmento decanção africa<strong>na</strong>, que faz parte do axexe4' - ritual fúne<strong>br</strong>e <strong>na</strong>gô,significando recomeço, re<strong>na</strong>scimento, é representativo da passagempara a nova vida, no Além: "Oh! Morte,/ Morte o levou consigo/Ele partiu, levantem-se e dancem/ Nós o saudamos!.Morrer, para muitos <strong>dos</strong> africanos, portanto, poderia seruma forma de se encontrar com os espíritos <strong>dos</strong> antepassa<strong>dos</strong>.Como parte destas concepçõespost-mortem, o Além seriaum mundo em que, ao contrá<strong>rio</strong> do cristão, não havia Purgató<strong>rio</strong>e muito menos Inferno. Ou seja, a perspectiva de umJulgamento Fi<strong>na</strong>l, no "fim <strong>dos</strong> tempos", não existia e, portanto,não haveria a possibilidade de medo com relação ao futuropost-mortem. Na verdade, a melancolia, a dor e o sofrimentosó existiriam se a morte fosse encarada como possibilidade denão obtenção de uma vida "paradisíaca" no Além, de acordocom o sistema cristão ocidental. Ao projetar a imagem do Infernocomo possibilidade para a vida Além-túmulo, a morteadquiria uma conotação atemorizante, sendo realmente difícilimaginá-la e esperá-la com alegria.


Na sociedade escravista <strong>br</strong>asileira, haveria, portanto, comoficar triste, quando os acompanhantes do cortejo de um afncanolou do seu descendente - que partilhassem desta perspectiva -poderiam acreditar que mais um companheiro de infortúnio partia,ou melhor, retomava para a sua aldeia de origem, para perto deseus parenteslancestrais, para a sua terra +ca<strong>na</strong>? Estou-me referindo,obviamente, àqueles trazi<strong>dos</strong> da Afiica pelos traficantes,com uma certa idade que lhes permitisse ter memória de uma vidapregressa; não é, pois, <strong>dos</strong> escravos c<strong>rio</strong>ulos que <strong>na</strong>sceram nocativeiro, ou filhos destes; se bem que, mesmo estes podiam terreferências, através de histórias, a essa vida <strong>na</strong> Africa em umaépoca de liberdade.Familiaridade entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> CorteAs sociedades podem apresentar, em suas concepções so<strong>br</strong>ea morte e os <strong>mortos</strong>, relações que vão da indiferença a convivênciafamiliar. A familiaridade <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> com os <strong>mortos</strong>, no Ocidentecristão, pode ser expressa <strong>na</strong> realização <strong>dos</strong> sepultamentosno inte<strong>rio</strong>r das <strong>cidade</strong>s e, em segundo lugar, <strong>na</strong> realiiação de sufrágios<strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> pelos seus <strong>mortos</strong>. Por volta do século VI, oscristãos passaram a não mais praticar os sepultamentos fora das<strong>cidade</strong>s, de acordo com os costumes da Antiguidade roma<strong>na</strong>, levando-ospara dentro de seus muros, marcando uma nova relaçãode familiaridade e proximidade entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>, expressanos sepultamentos realiza<strong>dos</strong> no inte<strong>rio</strong>r das igrejas43 .A este movimento, um outro veio reforçar, nos s6culos XIIe XIII, <strong>na</strong>s sociedades cristãs da Europa ocidental, o elo de solidariedadeentre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong>: o sistema do Purgató<strong>rio</strong>, que implicou<strong>na</strong> redefinição <strong>dos</strong> sufrágios como laços entre os habitantesdo mundo terreno e os do Além44. Paralelamente, neste período,ocorreu o desenvolvimento das ordens mendicantes e do movimentoconfiatemal, volta<strong>dos</strong> para o exercício da oração comum eda caridade para com o próximo,~comauxilio mútuo diante dainsegurança e das incertezas do mundo medieval45 ; tais solidarie-


dades entre os <strong>vivos</strong> foram estendidas aos <strong>mortos</strong>, de modo queas fi<strong>na</strong>lidades básicas do movimento cedi-ater<strong>na</strong>l passaram a sero amor ao próximo em vida, <strong>na</strong> altura do passamento e após amorte. Desta forma, acreditando <strong>na</strong> comunhão entre os que peregri<strong>na</strong>vam<strong>na</strong> Terra e os que residiam já no Além, as confiariasmedievais tiveram nos ritos funerá<strong>rio</strong>s e nos sufrágios pelas almas<strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> um de seus principais motivos de existência4.A solidariedade com as almas do Purgató<strong>rio</strong>, introduzida<strong>na</strong>s novas formas de piedade das confiarias configurou a irnportânciaque estas passaram a dar às orações pelos <strong>mortos</strong> comoforma de aliviá-los das pe<strong>na</strong>s purgatórias, mas igualmente a importânciada recipro<strong>cidade</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> por sua intercessão pelos<strong>vivos</strong>, como sugere Le Goe7 :A devoçilo que se exprime pelos altares e pelos ex-votos Asalmas do Purgató<strong>rio</strong> mostra que dai em diante não só essasalmas adquiririain mkritos mas podem tarnbkm dirigi-los aos <strong>vivos</strong>,restituir-lhes, devolver-lhes a sua assistência. [...] o sistemada solidariedade entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> atravks do Purgató<strong>rio</strong>tomou-se uma cadeia circular sem fim, uma corrente derecipro<strong>cidade</strong> perfeita. O anel fechou-se.A esta relação de familiaridade, Philippe Ariès denominou"morte domesticada", representativa de uma forma deencarar a morte, ao mesmo tempo como próxima e familiar,expressa pela vizinhança entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong> através da localizaçãodas sepulturas no inte<strong>rio</strong>r das <strong>cidade</strong>s, mais propriamente,das igrejas. Neste sistema, as irmydades passaram ater, como uma de suas principais funções, a realização <strong>dos</strong>rituais funerá<strong>rio</strong>s de seus associa<strong>dos</strong>, acompanhando-os da doençaà morte, desta à sepultura e daí em diante no "outro mundo",mantendo com eles uma união que, a partir de então, seriaselada por meio das orações - e outros .Tais redes de solidariedade também se manifestavam, noOcidente cristão, entre os séculos XIV e XIX, inclusive no BrasilColônia, <strong>na</strong>s cerimônias fúne<strong>br</strong>es, nos elabora<strong>dos</strong> preparativos para


a despedida, realiza<strong>dos</strong> por parentes e amigos <strong>dos</strong> faleci<strong>dos</strong>. NoBrasil, muitos <strong>dos</strong> elementos desta atitude diante da morte, acresci<strong>dos</strong>do caráter festivo que se verá adiante, foram herda<strong>dos</strong> dePortugal. Elementos esses que seriam reforça<strong>dos</strong> pelas concepçõese atitudes afiica<strong>na</strong>s.Assim, os <strong>mortos</strong> nos seus funerais eram alvos de umtratamento que ia desde a preocupação extremada com o vestuá<strong>rio</strong>aos cuida<strong>dos</strong> com o caixão e com a armação da casa eda igreja. Os veló<strong>rio</strong>s e os cortejos eram ocasiões de "festa",no sentido da concorrência de grande número de assistentes eacompanhantes. Da agonia a morte, e desta a sepultura, a solidãoe o silêncio estavam ausentes; desde a administração <strong>dos</strong>últimos sacramentos até o sepultamento, a presença de parentes,amigos, fiéis afiliado? hs irmandades e do clero era buscadacomo fonte de oração pelas almas <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>; tudo acrescido<strong>dos</strong> insistentes do<strong>br</strong>es <strong>dos</strong> sinos das igrejas por onde passasseo cortejo do viático e, depois, o fúne<strong>br</strong>e.Esta estrutura poderia variar de acordo com as possesdo morto e as de seus familiares; variação que se dava pelapompa do cerimonial, que poderia conter desde uma elaboradaarmação da casa e da igreja ate um cortejo fiíne<strong>br</strong>e de carruagens,com a presença de po<strong>br</strong>es, sacerdotes, irmandades eaté músicos. Michel Vovelle, em seus estu<strong>dos</strong> so<strong>br</strong>e a morte<strong>na</strong> França, atribuiu a esta estrutura a denomi<strong>na</strong>ção de "mortebarroca", enquanto expressão do cerimonial mortuá<strong>rio</strong>, cujoselementos constitutivos seriam a "morte preparada, temida,exercício de toda uma vida, dando lugar a um cerimonial públicoe ostentató<strong>rio</strong>, seguido de todo um conjunto de ritos eprestações desti<strong>na</strong>das, pelas o<strong>br</strong>as, pelas missas e orações, aassegurar a salvação ou a redenção a termo <strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong> do defiint~"-'~.Esta forma de morrer, marcada pelo espetáculo "festivo"forneceu os pilares <strong>dos</strong> costumes e rituais fúne<strong>br</strong>es,adota<strong>dos</strong> por grande parte da sociedade <strong>br</strong>asileira da Colôniaao Impé<strong>rio</strong>. João José Reiss0, ao estudar as atitudes diante damorte <strong>na</strong> Salvador do século XIX, encontrou prática idênticae classificou a morte como festa. Nesta, a pompa <strong>dos</strong> funerais"antecipava o feliz destino imagi<strong>na</strong>do para o morto e, por as-


sociação, promovia esse destino". Segundo ele, o "funeral antigoera vivido como um rituai de descompressão tão mais eficaz quantomaior fosse a difusão de signos, quanto mais gestos e objetos sirnbólicosfosse capaz de produzir. E quanto mais gente pudesseacompanhá-lo". Para o autor, os <strong>vivos</strong> reuni<strong>dos</strong>, solidá<strong>rio</strong>s paradespachar o morto, "recuperavam algo do equilíb<strong>rio</strong> perdido coma visita da morte, afirmando a continuidade da vida".O caráter festivo/barroco <strong>dos</strong> funerais, em Salvador e <strong>na</strong><strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, foi reforçado pelas tradições funerárias&ca<strong>na</strong>s, que apresentavam semelhanças estruturais importantes,como o excesso ritualístico e simbólico, que facilitaria a convergênciaentre os dois modelos - o barroco e o africano, Daí teremsido amplamente adotadas pelos negros, quer fossem c<strong>rio</strong>ulos,quer africanos, que, apropriando-se do ritual cristão, oreelaboraram a ponto de serem capazes de, ao mesmo tempo,realizarem suas cerimônias fiíne<strong>br</strong>es &ca<strong>na</strong>s antes de darem umdestino nos moldes cristãos ao corpo, através, por exemplo, <strong>dos</strong>epultamento <strong>na</strong>s igrejas.Ao afirmar que os negros se apropriaram do ritual cristão,reelaborando-o, remeto-me ao conceito de apropriação,utilizado por Roger Chartidl . Formulado enquanto um mecanismode recepção e uso diferenciado <strong>dos</strong> mesmos referenciais, eleé, nesse sentido, válido para este tipo de análise. Segundo o autor,práticas de apropriação sempre criam usos ou representaç6es muitopouco redutiveis aos desejos ou às intenções daqueles que produzemos discursos ou as normas. O conceito traz em si a noçãode que as relações entre duas culturas envolvem um "jogo de mãodupla",onde uma cultura pode ser, ao mesmo tempo, "aculturadae aculturadora; nem totalmente controlada, nem absolutamente livre",de forma que a aceitação das mensagens e modelos operamediante ajustes, combi<strong>na</strong>ções ou resistências. No caso <strong>dos</strong> costumesfunerá<strong>rio</strong>s <strong>dos</strong> negros <strong>na</strong> Corte, as descrições <strong>dos</strong> cortejosafricanos pelos viajantes deixam isto suficientemente claro: as "atitudesfestivas" davam-se diante do pórtico da igreja, onde palmas,cantos e salmodia, sons de tambores e de sinos se misturavam."Atitudes festivas", <strong>na</strong> medida em que o barulho estava presentee poderia ser visto como um facilitador da passagem domorto ao Além.


NOTAS' VAN GENNEP, Arnold. Os ritos &passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.~p.27-3 1.ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões.Lisboa: Livros do Brasil, s/d. pp.145-146.' Compreendido diferentemente pelas diversas culturas, como, por exemplo,alma, espírito etc.RODRIGUES, Jost Carlos. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamt,1983. p.46.Segundo Mary Karasch; <strong>na</strong> primeira metade do stculo XIX - períodode auge da escravidão no Rio de Janeiro - a percentagem de africanosso<strong>br</strong>e o total da população de escravos da Corte era muito alta. Nasdtcadas de 1830 e 1840, por exemplo, a percentagem de africanossituou-se entre dois. terços e três quartos da população escrava. Cf.KARASCH, Mary. op.cit., pp.xxxi e 8. Robert Slenes afma que <strong>na</strong>primeira metade do stculo XIX, <strong>na</strong> região Centro-Sul <strong>br</strong>asileira, a escravidão"era quase literalmente africa<strong>na</strong>". Com base em recenseamentosda tpoca, cerca de 80% <strong>dos</strong> escravos adultos (com mais de 15anos) desta área eram provenientes da Africa, e os adultos "c<strong>rio</strong>ulos"eram, majoritariamente, filhos de aíiicanos. Cf. SLENES, Robert W.Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações <strong>na</strong> formação dafamilia escrava. São Paulo/Stanford, mirneo, 1994.TAVARES, Maria Jost Pimenta Ferro. Po<strong>br</strong>eza e morte em Portugal<strong>na</strong> Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p.77. A respeito dafunção, estrutura e organização <strong>dos</strong> testamentos, ver, ,.dentre outros,REIS, João JosB. op.cit., pp.92-97; BEIRANTE, Maria Angela. Para ahistória da morte em Portugal (séc. XiI-XiV) in: MARQUES, A.H.O.Estu<strong>dos</strong> de história de Portugal (yol I - sécs. X-XV). Lisboa: EditorialEstampa, 1982. pp.361-374; ARIES, Philippe. op.cit., pp.200-2 14.' Na Cristandade medieval e colonial, os cristãos se identificavam comos cidadãos; por isso, os crimes e os peca<strong>dos</strong>, também.LE GOFF, Jacques. O <strong>na</strong>scimento do purgató<strong>rio</strong>. Lisboa: Ed. Estampa,1993. pp.'163 e 268 e, do mesmo autor, O imaginá<strong>rio</strong> medieval. Lisboa:Ed. Estampa, 1994. p. 1 14..LE GOFF, Jacques. O imaginá<strong>rio</strong>medieval. pp. 109-1 15.


'O TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. op.cit., p.72; LE GOFF. O <strong>na</strong>scimentodopurgató<strong>rio</strong>. pp. 17 e 309.LE GOFF, Jacques. O <strong>na</strong>scimento dopurgató<strong>rio</strong>. pp. 295-305 e 365.IZ LE GOFF, Jacques. O imaginá<strong>rio</strong> medieval, p. 1 15.l3ACMRJ - Livro de registros de óbitos da freguesia da Sé. Testamentode Maria da Conceição Matos, ?/1/1778.l4 Idem. Testamento de ApolGnia de Jesus, 24/2/1779.I' LE GOFF, O imaginá<strong>rio</strong> ... p.121.l6LE GOFF, Jacques. O <strong>na</strong>scimento do purgató<strong>rio</strong>,. pp.347-348 e26; CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). A criseda cristandade. Lisboa: Ed. 70, 1993. p. 16 1l7TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. op.cit., pp.73-75.LE GOFF, Jacques. O <strong>na</strong>scimento do purgató<strong>rio</strong>. p.3 15.l9 REIS, João José. op.cit., pp.90-91.l0 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:Gua<strong>na</strong>bara, 1989. p.104.21 BASTIDE, Roger. As religiões afiica<strong>na</strong>s no Brasil. Contribuição auma sociologia das interpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira,1989. pp. 185- 188.22 RAMOS, Arthur. As culturas negras no novo mundo. São Paulo: Ed.Nacio<strong>na</strong>l, 1979. pp. 186- 187. Na tentativa de reconstituir as culturasnegro-africa<strong>na</strong>s no Brasil, guiado pelo método preconizado por Ni<strong>na</strong>Rodrigues e estu<strong>dos</strong> poste<strong>rio</strong>res, Arthur Ramos apresentou o seguintequadro <strong>dos</strong> padr6es das culturas negras so<strong>br</strong>eviventes no Brasil: A)Culturas sudanesas, representadas principalmente pelos povos ioruba,da Nigéria (<strong>na</strong>gô; ijêchá; eubá, ou e<strong>br</strong>i, ketu, ibadan, yebu ou ijebu egrupos menores); pelos daomeanos (grupo jeje: ewe, fon ou efan egrupos menores); pelos fanti-ashanti, da Costa do Ouro (grupos mi<strong>na</strong>spropriamente ditos: fanti e ashanti); por grupos menores da Gâmbia,da Serra Leoa, da Libéria, da Costa da Malagueta, da Costa do Marfim,dentre outros (krupano, agni, zema, timini etc.) B) Culturasguineano-sudanesas islamizah, reprdsentadas em primeiro lugar pelospeuhl (fulah,jüla, etc), mandinga (solinke, bambara ...) e haussá do


norte da Nigeria; e por grupos menores como os Tapa, Bornu, Gurunsi,e outros. C) Culturas Bantos, constituídas pelas inúmeras tribos dogrupo angola-congolês e do grupo da Contra Costa (ambas representadas,dentre outros, pelos angola, cassanges, congos, cabindas,benguelas, moçambiques). Cf. RAMOS, Arthur. As culturas negras.Rio de Janeiro: Ed. Gua<strong>na</strong>bara, s/d. p.27.l3 SLENES, Robert W. Na senzala umaflor, pp. 5 e 99.l4 KARASCH, Mary. op.cit., pp. 14- 15.lS SLENES, Robert W. Malungu, ngoma vem!: Áfiica coberta e descobertano Brasil. São Paulo: mirneo, 1992. pp.53-54l6 RAMOS, Arthur. As culturas negras. p. 167.l7 OS <strong>na</strong>gôs, pertencentes à cultura ioruba da Afiica ocidental (sudanesa),não tiveram uma presença expressiva no Rio de Janeiro, compondouma proporção de 7%, antes de 1850. Apesar disso, eles foram os maisnumerosos <strong>dos</strong> grupos da Afiica ocidental <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro,especialmente após 1835, provenientes de Salvador, em decorrênciado tráfico interprovincial. Cf. KARASCH, Mary. op.cit., pp.26-27.'OSANTOS, Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong>. Os <strong>na</strong>gôs e a morte. Padé asésé e o cultoegun <strong>na</strong> Bahia. Petrópolis: Vozes, 1976. pp.220-222.Segundo Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong> Santos, a oferenda era, muitas vezes, realizadaatraves de sacrificios, antes de tudo, desti<strong>na</strong><strong>dos</strong> a enga<strong>na</strong>r a morte;era a oferenda-sacrificio que evitava, para os <strong>na</strong>gô, a morte prematura,que "permite ao indivíduo realizar ple<strong>na</strong>mente seu ciclo de vida,chegar h velhice e assegurar sua imortalidade. Devolvendo e fortalecendoas entidades so<strong>br</strong>e<strong>na</strong>turais uma parte do Axé do qual ele mesmose 'nutria', assegura não só sua própria so<strong>br</strong>evivência e seu pleno desenvolvimento.mas tamb6m a ~ossibilidade de futuros <strong>na</strong>scimentos.sua própria fecundidade e pros'peridade". Cf. op.cit., pp. 161-165 e224-225.No sistema religioso <strong>na</strong>gô a concepção de mundo compreendia doisplanos de existência: o Aiye e o Orun, o terreno e o Alem. Enquantoconcepção abstrata, o Orun não estava localizado em nenhuma daspartes do mundo concreto, apesar de constituir um mundo paralelo,que coexistia com to<strong>dos</strong> os conteú<strong>dos</strong> daquele. Cada "indivfduo, cadaárvore, cada animal, cada <strong>cidade</strong>, etc. possui um duplo espiritual eabstrato no Orun", lá habitam todas as entidades so<strong>br</strong>e<strong>na</strong>turais e "tudoo que existe no Orun tem sua ou suas representações materiais no


Aiye". De acordo com os mitos, em Cpocas remotas, o Aiye e o Orunnão se encontravam separa<strong>dos</strong>. Os seres <strong>dos</strong> dois mun<strong>dos</strong> iam e vinhamentre os dois espaços sem problemas; os orixás habitavam oAiye e os seres humanos podiam ir ao Orun e voltar. A violação de umainterdição teria sido a causa da separação entre os dois espaços. Apartir dessa violação, a existência ter-se-ia desdo<strong>br</strong>ado e os seres humanosnão tiveram mais a possibilidade de ir e voltar "<strong>vivos</strong>" do Orun.Cf. SANTOS, Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong>. op.cit., pp.53-54 e 102.'' REIS, João Jose. op.cit.,j2 SLENES, Robert W. Na senzala umajlor, p.5." Idem, p.92.'4 ZIEGLER, Jean. Os <strong>vivos</strong> e a morte: uma sociologia da morte no ocidenteda didspora afica<strong>na</strong> no Brasil e seus mecanismos culturais. Riode Janeiro: Zahar,1977. p.54.35 LUCCOCK, John. Notas so<strong>br</strong>e o Rio de Janeiro. Belo Horizonte1SãoPaulo,Itatiaia/EDUSP, 1975. p.35. O inglês John Luccockchegou ao Brasil em 1808, tendo aqui permanecido por dez anos.Não era, como muitos outros viajantes, um cientista desejosode aprofundar seus conhecimentos em determi<strong>na</strong>da ciência, massim um'comerciante. Não tendo encontrado no Rio de Janeiroum mercado favorável, deslocou-se para a região Sul e, aoretor<strong>na</strong>r à Inglaterra, em 1820, escreveu um livro so<strong>br</strong>e a terra<strong>br</strong>asileira.'$ DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. BeloHorizonteISão Paulo: ItatiaialEDUSP, 1989. pp. 178-1 79. Chegado aoBrasil, em 18 16, De<strong>br</strong>et era mem<strong>br</strong>o da Missão Artística Francesa e foicontratado como professor de intura histórica <strong>na</strong>s Belas Artes, tendopermanecido no Sudeste <strong>br</strong>asi f eiro por 15 anos.37 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questao do outro.São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.4 1.RAMOS, Arthur. As culturas negras. pp. 104,147 e 169.39 THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de Ia muerte. MCxico: Fondode Cultura Económica, 1983. p.525.40 So<strong>br</strong>e o culto <strong>dos</strong>antepassa<strong>dos</strong> entre os africanos ver RAMOS, Arthur.Asculturasnegras. pp.l01,118-119e 160-168.


4' Não tenho como verificar se o termo axexe era utilizado no Brasil deoutrora ou se C uma terminologia recente. Ver descrição e detalhes arespeito em SANTOS, Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong>. op.cit.,.p.235.42 SANTOS, Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong>. op.cit., p.234.43 ARIÈS, Philippe. op.cit., pp.34-47.44 LE GOFF, Jacques. O<strong>na</strong>scimento dopurgató<strong>rio</strong>. pp.347-348.4s BOSCHI, Caio CCsar. Os leigos e o poder: irmandades leigas epolítica colonizadora em Mi<strong>na</strong>s Gerais. São Paulo: Atica, 1986.pp.12-13; CHAUNU, Pierre. op.cit., p.164.46 TAVARES, Maria JosCPirnenta Ferro. op.cit., p. 101; COELHO, MariaHele<strong>na</strong> da Cruz. As confiarias medievaisportuguesas: espaços de solidariedades<strong>na</strong> vida e <strong>na</strong> morte p. 16 1.47 LE GOFF, Jacques. O <strong>na</strong>scimento dopurgató<strong>rio</strong>. pp.347-348 e 425-426.48 ARIÈS, Philippe. op.cit., pp. 12-19. A respeitoda atuação das irmandadesnos funerais, ver: REIS, João JosC. op.cit.; BOSCHI, Caio CCsar.op.cit.; SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A Irmandade deNossa Senhora do Rosa<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> pretos no distrito diamantino no sécu-IoXVIII. São Paulo: Cia. EditoraNacio<strong>na</strong>l, 1978; TAVARES, Maria JosCPimenta Ferro. op.cit.; COELHO, Maria Hele<strong>na</strong> da Cruz. op.cit., dentreoutros.49 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense,1991. p.353'O REIS, ião Jost. Li.&, p.138.CHARTIER, Roger. Tatos, impressão, leituras in: HUNT, Lynh. A novahistória cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp.232-234.


DA MORTE AO MORTO:COSTUMES FUNEBRES NA CORTENa medida em que diferentes culturas têmseus mitos econcepções escatológicas, a morte do individuo transformaseem um momento especial, onde ritos e práticas do costumesão realiza<strong>dos</strong> em função daqueles mitos e concepções. Deacordo com a estrutura ritual difundida por Arnold VanGennepl, os ritos funerá<strong>rio</strong>s podem ser dividi<strong>dos</strong>, de modogeral, em três modalidades: os ritos de separação <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>do mundo terreno, o de limi<strong>na</strong>ridade e os de sua incorporação-- ._no Além. A separaçãotem um caráter temporá<strong>rio</strong> e pretende fazer com queo morto passe da sociedade palpável <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> àsociedade invisível <strong>dos</strong> ancestrais. Como fenômenosocial, a morte e os ritos a ela associa<strong>dos</strong> consistem<strong>na</strong> realização do penoso trabalho de desagregar omorto de um domínio e introduzi-lo em outro. Taltrabalho exige todo um esforço de desestmturação ereorganização das categorias mentais e <strong>dos</strong> padrõesde relacio<strong>na</strong>mento social. O enterro, bem como asoutras maneiras de lidar com o corpo do morto, é ummeio de a comunidade assegurar a seus mem<strong>br</strong>os queo individuo falecido caminha <strong>na</strong> direção de seu lugardetermi<strong>na</strong>do, devidamente sob controle2 .Entre estas duas etapas haveria um momentointermediá<strong>rio</strong>, durante o qual o morto se encontraria em umestágio de limi<strong>na</strong>ridade, fase em que empreenderia a "viagem",


sem ainda ter deixado o mundo terreno e sem ter passado aindaa pertencer ao outro mundo.Muitas vezes, estas etapas rituais <strong>na</strong> prática se so<strong>br</strong>epõeme se fundem, tor<strong>na</strong>ndo dificil a identificação separadamentede cada uma delas3 como, por exemplo, a cerimônia <strong>dos</strong>epultamento que, ao mesmo tempo, pode representar aseparação do morto deste mundo e sua inclusão .no do Além.Baseado no esquema de Van Gennep, João José Reis4 assimrelacionou algumas das práticas rituais:são exemplos de ritos de separação a lavagem e o transporte docadáver, a queima de objetos pessoais do morto, cerimônias depurificação, de sepultamento, rituais periódicos de expulsão <strong>dos</strong>espíritos do morto da casa, da vila, enfun, do meio <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, oluto e tabus em geral. Ritos de incorporação seriam aquelesdirigi<strong>dos</strong> a propiciar a reunião do morto com aqueles queseguiram antes, como, por exemplo, a comida servida para a suaviagem, a extrema-unção, o próp<strong>rio</strong> enterro do cadáver.A realização <strong>dos</strong> ritos funerh<strong>rio</strong>s tem, pois, comofunção administrar a passagem que, por+não serinstantânea, é um trajeto, um percurso em direção a umdestino definido - e, muitas vezes, como no caso docristianismo, permeado de provas e incertezas - que s6termi<strong>na</strong> ao fim da cele<strong>br</strong>ação <strong>dos</strong> rituais mortuá<strong>rio</strong>s, queobjetivam facilitar a viagem do morto5. São esses rituaisdirigi<strong>dos</strong> aos <strong>mortos</strong> que passarei a a<strong>na</strong>lisar, <strong>na</strong> tentativade montar um quadro <strong>dos</strong> costumes fúne<strong>br</strong>es adota<strong>dos</strong>por parte <strong>dos</strong> habitantes da Corte.No romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó6, umdiálogo entre o Conselheiro Aires e a jovem Flora nos trazreferências da morte:174


- Por que não vai a Petrópolis? concluiu.- Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa ...Para o outro mundo, aposto?Acertou.Já tem bilhete de passagem?Comprarei no dia do embarque.- Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelasparagens; melhor 6 comprar antes, e, se quer, eu me encarregodisso; comprarei outro para mim, e iremos juntos, A traveysiaquando não há conheci<strong>dos</strong>, deve ser fastidiosa. As vezes, ospróp<strong>rio</strong>s conheci<strong>dos</strong> aborrecem, como sucede neste mundo. Assaudades da vida 6 que são agradáveis. A gente a bordo 6 vulgar,mas o comandante imp6e confiança. Não a<strong>br</strong>e a boca, dá assuas ordens por gestos, e não consta que haja <strong>na</strong>ufragado.- O senhor está caçoando comigo; eu creio que ate estou comfe<strong>br</strong>e.- Deixe ver.Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo:- Está; fe<strong>br</strong>e de quarenta e sete graus, a mão está ardendo,mas isto mesmo prova que não 6 <strong>na</strong>da, porque aquelasviagens fazem-se com as mãos frias ...A "passagem" é polissêmica, nos moldes apresenta<strong>dos</strong>pelo romance. No jogo de palavras do autor, era também aocasião em que o morto encetaria sua "viagem" com destinoao "outro mundo". A idéia de "viagem" era significativa, portratar-se da metáfora de um deslocamento do mundo terreno,do qual se opera o desligamento (a partida) para o do Além(seu destino). Se para uma viagem eram compra<strong>dos</strong> bilhetes,passagens e armadas as malas, quando se tratava da última"viagem", pode-se dizer também que era preciso munir-se <strong>dos</strong>"apetrechos" e "documentos" necessá<strong>rio</strong>s para se chegar aodestino. Neste caso, os preparativos exigiam maior cuidado,por se tratar de uma viagem definitiva e que demandava cautelapara que <strong>na</strong>da desse errado e que o morto seguisse seu caminho,que muitos desejavam fosse de paz e de luz - mesmo no casode alguns africanos que acreditavam no retomo <strong>dos</strong> espíritosao mundo <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, pois, ainda quando retomassem, não maisseria sob sua forma ante<strong>rio</strong>r A morte.Tomava-se, por isso, necessá<strong>rio</strong>, <strong>na</strong> iminência da morte,


quando o indivíduo ainda estava moribundo, a administração <strong>dos</strong>sacramentos da Igreja - mesmo os negros, quer c<strong>rio</strong>ulos, querafiicanos, recorriam a eles e/ou eram o<strong>br</strong>iga<strong>dos</strong> a eles recorrer7.Quando defunto, era preciso "aprontar" o morto para o veló<strong>rio</strong>(com banhos, toaletes, vestuá<strong>rio</strong>). Neste, os <strong>vivos</strong> a ele seapresentavam para um último encontro, para a despedida. Comogarantia a mais, no caso do ritual cristão, apareceram os ofíciosfiíne<strong>br</strong>es que, dirigi<strong>dos</strong> pelo clero, sob forma de encomendaçãoda alma e da missa de corpo presente, representavam como que osalvo-conduto para a "partida" derradeira.Nesta perspectiva, desenvolverei o estudo de alguns<strong>dos</strong> momentos nos rituais de "passagem": a administração<strong>dos</strong> sacramentos, o vestuá<strong>rio</strong> funerá<strong>rio</strong> e os ofícios fiíne<strong>br</strong>es.Os sacramentos do mortoOs sacramentos eram, para o cristão, si<strong>na</strong>is quesimbolizavam o sagrado e pertenciam ao universo da comunicaçãoentre Deus (emissor) e o fiel (receptor), mas eram si<strong>na</strong>is eficazesda graça que o emissor comunicava ao receptor para sua salvação.Em número de sete - batismo, confirmação, eucaristia, penitência,unção <strong>dos</strong> enfermoslextrema-unção, ordem e matrimônio - ossacramentos, enquanto si<strong>na</strong>is do encontro de Deus com o homem,em momentos existenciais densos, supunham, expressavam ealimentavam a fé. Nesse sentido, eram administra<strong>dos</strong> pela Igrejaem determi<strong>na</strong><strong>dos</strong> n6s existenciais da vida e da morte.Nos momentos de doença grave, incurável e fatal, apenitência, a eucaristia e a extrema-unção, administradas comsenti<strong>dos</strong> específicos, eram procuradas pelo doe., no momentoem que sentia que era "chegada a sua hora". A proximidadeda morte, a presença do padre era solicitada pelo moribundo,por seus parentes ou amigos, tendo em vista a necessidade deele entrar em contato "último" e íntimo com Deus, antes da


"partida". É nesse sentido que a figura do padre, interlocutor entreo moribundo e Deus, como mensageiro da palavra e <strong>dos</strong> si<strong>na</strong>is(sacramentos) divinos, se fazia presente. Se tentarmos estabeleceruma certa orde<strong>na</strong>ção <strong>na</strong> administração <strong>dos</strong> mesmos, seria:penitência (o moribundo confessava e pedia o perdão <strong>dos</strong> seuspeca<strong>dos</strong>); eucaristia (entrava em comunhão com o "corpo deCristo ressuscitado", de forma a garantir, também, a sua própriaressurreição) e a extrema-unção (era ungido com o óleo dasalvação, de foma elimi<strong>na</strong>r to<strong>dos</strong> os si<strong>na</strong>is da pmça bbmalig<strong>na</strong>").Referida à possibilidade de um renovado perdão <strong>dos</strong>peca<strong>dos</strong> após o batismo, em caso de falta grave, a penitência foidefinida pelas Constituiçõesprimeiras do arcebispado da Bahiascomoa segunda tábua depois do <strong>na</strong>ufrágio; porque tanto que umhomem batizado <strong>na</strong>ufragou pela culpa mortal, perdendo a graçade Deus, que no batismo tinha recebido, não ihe resta outroremtdio para se salvar neste <strong>na</strong>ufrágio, mais que esta tábua <strong>dos</strong>acramento da Penitência, confessando inteiramente, e com doros seus peca<strong>dos</strong> ao legitimo ministro, e alcançando por estemeio a absolvição deles.Fazer penitência pelos peca<strong>dos</strong> cometi<strong>dos</strong> exigia umtempo, de certa forma, longo, durante o qual o penitenteentregava-se a práticas de mortificação. Em perigo de morte,entretanto, poderia reconciliar-se a fim de receber o viático,sendo a absolvição dada imediatamente após a confissãopenitencia19 . As Constituições primeiras recomendavam aospárocos que visitassem muitas vezes seus fregueses enfermos e osadmoestassem ator<strong>na</strong>r os sacramentos que não tivessem recebido.No caso da penitência, mandava-se que médicos, cirurgiões oubarbeiros (que tratavam <strong>dos</strong> enfermos <strong>na</strong> ausência <strong>dos</strong>primeiros) recuperassem os enfermos primeiramente com a"medici<strong>na</strong> da alma", antes de aplicarem as medici<strong>na</strong>s para ocorpo. Neste sentido, deveriam persuadir os graves a se


confessarem, visto que, em muitos casos, a enfermidade docorpo poderia advir de uma "alma enferma com o pecado"lO.Desde os primórdios, a Igreja exortava os fiéis que seencontrassem em perigo de vida a serem "reconforta<strong>dos</strong>" com acomunhão sob a forma de viátiço, entendido como o sacramentoda eucaristia, administrado ao enfermo impossibilitado de sair decasa; era como uma provisão indispensável para a "viagem"" ,segundo a concepção de que, quem morresse, tendo comungado,veria a eucaristia realizar o seu poder de ressurreição para a glória,como diz Darnien SicardI2 :Quando vires que a sua morte está se aproximando, importanteque ele comungue do santo sacrifício, mesmo já tendo sealimentado neste dia, porque a comunhão serfi, para ele, defesae ajuda para a ressurreição <strong>dos</strong> justos. É por ela que eleress~scitará'~.A noção de provisão indispensável para a "viagem"era justificada pela idéia de que a eucaristia agia comoum "mantimento para a alma", alimentando-a esustentando-a de forma a acrescentar-lhe vida espirituale conforto14. Como to<strong>dos</strong> os demais sacramentos, aeucaristia devia ser recebida ainda em ple<strong>na</strong> consciência,pois entregar-se a Cristo, <strong>na</strong> passagem para Deus, <strong>na</strong>aceitação da morte assumida como férprofessada,supunha que a pessoa estivesse ainda em le<strong>na</strong> posse desua lucide~'~. Este era o motivo pelo qua a maioria dascrianças até os sete anos não recebessem os sacramentos,visto serem consideradas pela Igreja como "inocentes";ou seja, sem a capa<strong>cidade</strong> de ter noção, ainda, <strong>dos</strong> seusatos16.O sacramento da extrema-unção tinha a função de darespecial ajuda, conforto e auxilio <strong>na</strong> hora da morte,momento em que se considerava serem mais fortes eperigosas as tentações do "inimigo comum" <strong>dos</strong> cristãos,por ele "saber que tinha pouco tempo para os tentar".


Sendo um sacramento especifico diante da morte, possuíaefeitos particulares: perdoava os peca<strong>dos</strong>, aliviando a almado enfermo; dava-lhe saúde corporal quando assim conviesseà sua alma e o consolava, dando-lhe confiança e força paraque <strong>na</strong> hora da agonia pudesse "resistir aos assaltos doinimigo, e levar com paciência as dores da enfermidade".As condições para o seu recebimento eram a enfermidade -grave, com perigo de vida, e a manutenção da esperançaem viver. Não deveria ser administrada aos inocentes; aosatingi<strong>dos</strong> por morte violenta por justiça; aos que entrassemem batalha; aos excomunga<strong>dos</strong> impenitentes e que estivessemem pecado publico e aos dementes. Por outro lado, nãodeveria ser ministrada em tempo interdito, nem pela segundavez ao enfermo que já a tivesse recebido durante a doença,a não ser que esta fosse prolongada e o enfermo tor<strong>na</strong>sse acair em perigo de vida. Neste caso seria administrada tantasvezes quanto fosse necessá<strong>rio</strong>I7.A análise do padrão de recurso aos sacramentos poralguns <strong>dos</strong> habitantes da freguesia do Santissimo Sacramentodiante da morte, como se percebe <strong>na</strong> Tabela 1, evidencia quegrande parte <strong>dos</strong> moribun<strong>dos</strong>, 47.1 %, a eles recorreu <strong>na</strong> horada agonia. O que demonstra que, <strong>na</strong> iminência da morte, oconsolo <strong>dos</strong> sacramentos foi buscado como forma de garantiruma "boa morte", aquela que proporcio<strong>na</strong>ria a "salvação" nospadrões religiosos católicos. Destes, pelo menos 3 1.8% tiveramcondições de os receber to<strong>dos</strong>; entre os demais, a extrema-unçãofoi o sacramento que os sacerdotes mais ministraram aos enfermos(8.2%), demonstrando que, quando chegavam à residência domoribundo, este já estava beirando a morte, sem tempo para osdemais sacramentos. Fosse por que não procuraram o sacerdoteou por terem sofrido de morte repenti<strong>na</strong>, 8.9% <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> nãoreceberam os últimos sacramentos.Um número razoável de <strong>mortos</strong>, entretanto, 44%,"partiram" sem que se possa saber se receberam ou não ossacramentos, pelo fato de seus assentos de óbitos nãoapresentarem referências a respeito. Indice, aliás, que seaproxima <strong>dos</strong> 47.1 % que receberam to<strong>dos</strong> ou pelo menos umsacramento.


TABELA 1 - Índice de recurso aos sacramentosSACRAMENTOS N.O %To<strong>dos</strong>Penitência e extrema-unçãoPenitência e eucaristiaPenitênciaExtrema-unçãoBatizado "sub conditione"Casado <strong>na</strong> hora da morteSem sacramentos0Sem sacramentos p/ morrer repenti<strong>na</strong>menteSem sacramentos p/ não pedirlprocurarSem referência*TOTAL 4093 1 O0*Subtrai<strong>dos</strong> os 1755 inocentes, que não receberam os sacramentos.Fonte: ACMRJ - Livro de registros de óbitos da freguesia do SantissimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835,1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.É muito dificil que a ausência de referências signifiquea recusa aos sacramentos de um número tão grande deindivíduos, ainda que esta pudesse ter ocorrido - afi<strong>na</strong>l o nãoenquadramento de determi<strong>na</strong><strong>dos</strong> elementos da população aospadrões do catolicismo não pode ser descartado. Segundo asConstituições primeiras, a recusa aos sacramentos implicavao impedimento de sepultura eclesiástica. Por isso, é bempossível que grande parte destas omissões de registroestivessem relacio<strong>na</strong>das a outros fatores que não a recusa aossi<strong>na</strong>is sagra<strong>dos</strong>. Pode ter sido causada pela morosidade emacio<strong>na</strong>r o sacerdote a tempo - diante de uma morte repenti<strong>na</strong>,acidental - ou pela dificuldade de ele, ainda que tivesse sidocontactado, chegar a casa do moribundo com prontidão.Estas razões poderiam adquirir uma dimensão maiordiante de surtos epidêmicos. Como se pode observar <strong>na</strong> Tabela2, os anos de 1850, 1855 e 1860 tiveram altos índices deausência de referência aos sacramentos, tendo sido esses casps


ocasiões em que a <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro foi assolada pelafe<strong>br</strong>e amarela, pela cólera e pela fe<strong>br</strong>e amarela,respectivamente. Segundo José Pereira Rego, estes foram anosde grande mortalidade, em que se registraram, em 1850,1855e 1860, respectivamente, 11.192, 11.180 e 11 .O10 mortes <strong>na</strong>Corte - índices que superavam, em muito, a média anual demortes nos demais anos do século XIXI8. A década de 1880teve também um relativo crescimento no índice de ausência dereferência aos sacramentos. Por se tratar de um período próximodo fim do século, o alto índice de ausência de referência poderialevar a crer, a primeira vista, num possível arrefecimento dasua procura por parte <strong>dos</strong> indivíduos, como fator decrescimento do indiferentismo religioso. Entretanto, tal idéianão é reforçada por ocorrência semelhante nos anos seguintes,o que indica que tal ausência esteve bem mais relacio<strong>na</strong>da aepidemia de fe<strong>br</strong>e amarela que, juntamente com outras doenças(como a tubercul~se)'~, teria elevado o índice de mortalidadee, por conseguinte, dificultado aos sacerdotes e aos párocos aadministração <strong>dos</strong> sacramentos a to<strong>dos</strong>.Devido ao alto índice de mortalidade, era huma<strong>na</strong>menteimpossível aos sacerdotes e aos párocos ministrarem ossacramentos a to<strong>dos</strong> que falecessem vitima<strong>dos</strong> por epidemias.Não eram em número suficiente <strong>na</strong>s paróquias para a demanda,fato que foi, inclusive, mencio<strong>na</strong>do pelo bispo d. Manuel doMontezo ao <strong>gov</strong>erno imperial, em 1850:Vossa Excelência compreenderá que os párocos hão dever-se muitas vezes em embaraços, como <strong>na</strong> ama1 epidemiarei<strong>na</strong>nte se tem visto, para acudirem a todas as o<strong>br</strong>igações deseu ofício, somente eles e seus coadjutores, podendo nem estardoente, e o outro ter um impedimento qualquer, sem haver umsacerdote que osccoadjure.Em relação as necessidades, o baixo número desacerdotes atuando <strong>na</strong>s paróquias, para o "bom exercício" do


TABELA 2 - índice de ausências de referênch aos sacramentosAno %1812 5.51816 13.31820 11.21824 17.91828 18.71835 22.11845 35.91850 60.9Ano %1855 58.11860 60.71865 16.41870 5.71875 6.21880 41.61885 29.8Fonte: ACMRJ- Livro de registros de dbitos dapeguesia do SantksimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824,1828, 1835, 1845, 1850, 1855,1860,1865,1870,1875, 1880e 1885.serviço paroquial, toma patente que, face a um surto epidêmico,parte <strong>dos</strong> fiéis ficou certamente sem receber auxílio sacramental<strong>na</strong> hora da morte, por falta de sacerdotes e coadjutores que olevassem2] . De acordo com as Constituições primeiras, eles,mais que qualquer sacerdote, deveriam administrar ossacramentos e, só com sua licença, um outro poderia fazê-1022 .Desta maneira, diante da escassez de sacerdotes <strong>na</strong>sparóquias, grande parte <strong>dos</strong> 44% de ausência de referênciaaos sacramentos, mencio<strong>na</strong>do <strong>na</strong> Tabela 1, pode ter suajustificativa <strong>na</strong> dificuldade de os sacramentos chegarem atempo aos moribun<strong>dos</strong>.Um exemplo que reforça esta idéia é o fato de que, excluí<strong>dos</strong>da análise, os referi<strong>dos</strong> anos de 1850,1855 e 1860 (vide Tabela3), chegamos aos índices de 60.36% <strong>mortos</strong> sepulta<strong>dos</strong> com to<strong>dos</strong>ou pelo menos um sacramento, 12.2% sem sacramentos e 27.4%de ausência de referência aos mesmos. Ou seja, fora das quadrasepidêmicas, o índice de ausência de referência se reduz, ao passoque cresce consideravelmente o número de indivíduos a quemforam ministra<strong>dos</strong> to<strong>dos</strong> os sacramentos: <strong>dos</strong> 60.36% que osreceberam, 40.5% os receberam to<strong>dos</strong> - um índice que demonstraum padrão satisfató<strong>rio</strong> de busca <strong>dos</strong> si<strong>na</strong>is sagra<strong>dos</strong> peloshabitantes agonizantes da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, no séculoXIX, seguindo as próprias determi<strong>na</strong>ções eclesiásticas.


Comparando-se as duas tabelas, percebe-se, portanto, o quantoas epidemias podiam interferir <strong>na</strong> administração <strong>dos</strong> sacramentos<strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, confirmando as palavras do bispo d. Manuel do Monte.'TABELA 3 - Índice de recurso aos sacramentos, exclul<strong>dos</strong> os anos de 1850,1855 e 1860.SACRAMENTOS N.O ?'oTo<strong>dos</strong> 1201 40.5Penitência e extrema-unção 195 6.6Penitência e eucaristia 9 0.3Penitência 65 2.2Extrema-unção 33 1 10.5Batizado "sub conditione" 6 0.2Casado <strong>na</strong> hora da morte 2 0.06Sem sacramentos 221 7.4Sem sacramentos p/ morrer repenti<strong>na</strong>mente 15 0.5Sem sacramentos p/ não pedir/procurar 127 4.3Sem referência* 813 27.4TOTAL 2965 1 00*Subtraí<strong>dos</strong> os 1263 inocentes, que não receberam os sacramentos.Fonte: ACMRJ- Livro de registros de óbitos daji-eguesia do Santissimo Sacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 181 6,1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1865, 1870,18 75,1880 e 1885.Aos sacramentos recorriam os mais varia<strong>dos</strong> segmentossociais da Corte. Homens livres, forros e escravos buscaram-nosde maneira diferenciada <strong>na</strong> iminência da morte, como se percebe<strong>na</strong> Tabela 4.Dentre os <strong>mortos</strong> a quem foram ministra<strong>dos</strong> to<strong>dos</strong> oupelos menos um sacramento, temos que 36.5% eram decondição livre, 57.6% forros e 32.6% escravos. Estes númerosapontam para ur<strong>na</strong> aproximação entre os índices de livres e deescravos e um afastamento destes com relação aos forros. Esta


TABELA 4 - índices de recurso aos sacramentos, segundo a condiçãodo mortoLIVRES FORROS ESCRAVOSSACRAMENTOS No % No % No %To<strong>dos</strong> 137 25.1 154 41.3 69 12.3Penitência e extrema-unção 13 2.4 22 5.9 55 9.8Penitência e eucaristia 1 0.3 2 0.3Penitência 2 0.4 11 2.9 10 1.8Extrema-unção 46 8.4 27 7.2 46 8.2Casado <strong>na</strong> hora da morte 1 0.2 1 0.2Sem sacramentos 4 0.7 10 2.7 9 1.6Sem sacr. p/ morrer de repente 4 0.7 1 0.3Sem sacr. p/ não pedirlprocurar 2 0.4 1 0.3 6 1.1Sem referência* 336 61.6 146 39.1 361 64.6TOTAL 545 100 373 100 559 100- - - -*Subtraí<strong>dos</strong> os 398, 100 e.479 inocentes, respectivamente; sem referência aossacramentosFonte: Livro de registros de óbitos da freguesia do Santíssimo SacramentoiRio deJaneiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855, 1860,1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.aproximação também ocorre com relação aos índices deausência de referência aos sacramentos: 6 1.6% entre os livres,64.6% entre os escravos e 41.5% entre os forros. Tais da<strong>dos</strong>são muito interessantes e intrigantes, já que seria de esperarque os da<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> forros se aproximassem <strong>dos</strong> índices <strong>dos</strong> livrese não os <strong>dos</strong> escravos, <strong>na</strong> medida em que, teoricamente, osforros estariam, de uma maneira ou outra, mais inseri<strong>dos</strong> nouniverso da liberdade do que os cativos.Com relação a aproximação <strong>dos</strong> índices de ausência dereferência aos sacramentos, pode-se objetar que, em 1850, porexemplo, a taxa de mortalidade <strong>dos</strong> livres foi bem maior que a<strong>dos</strong> escravos - lem<strong>br</strong>e-se que durante a epidemia de fe<strong>br</strong>eamarela morreram muito mais indivíduos de condição livredo que escrava, <strong>na</strong> proporção de 71.3% para os livres, 20.6%para os escravos e 8.1% para os forros (vide capítulo 1). No


ano de 1 84523, também houve um número grande de morteentre os livres: 63.2%, contra 30.6% de escravos e 6.2% entreos forros. Tais da<strong>dos</strong> podem ter contribuído para fazer aumentara quantidade de ausência de referência aos sacramentos entreos livres, a ponto de seus índices terem se aproximado <strong>dos</strong>índices <strong>dos</strong> escravos. Ao afirmar isto, estou levando emconsideração, que, com relação aos livres, os escravosapresentariam uma taxa maior de ausência de referências aossacramentos devido a sua condição social, que tor<strong>na</strong>ria maisdifícil o contato da família ou conheci<strong>dos</strong> do moribundo como pároco e a sua chegada a tempo ao leito de morte do cativocom os sacramentos. Em seus trabalhos, Sheila de CastroFariaz4 e João José Reisz5 apresentam, para Campos <strong>dos</strong>Goitacases e para Salvador, respectivamente, da<strong>dos</strong> quereforçam esta idéia. Ambos demonstraram um maior indicede recebimento <strong>dos</strong> sacramentos para os livres do que entre osescravos: em Salvador, entre 1835- 1836,5 1 % <strong>dos</strong> livres e 37%<strong>dos</strong> escravos morreram tendo recebido os sacramentos; emCampos, no século XVIII, 77% <strong>dos</strong> livres e 40.4% <strong>dos</strong> escravosos receberam. Não possuo os indices de Salvador, mas, pelomenos em Campos, 5% <strong>dos</strong> livres contra 24.8% de escravosnão apresentaram referência aos sacramentos, no século XVIII.Deste modo, em comparação com os escravos, parte dogrande número de mortes de livres, nos anos de 1845 e 1850,poderia ter levado a uma aproximação entre os seus indices eos <strong>dos</strong> escravos. Entretanto, esta hipótese não se sustenta aocompararmos os índices de livres e de escravos, após a exclusão<strong>dos</strong> referi<strong>dos</strong> anos de nossa análise, conforme vemos <strong>na</strong> Tabela5. O resultado ainda aponta para a proximidade entre livres eescravos e o distanciarnento destes com relação aos forros:38.3% <strong>dos</strong> livres, 39.3% <strong>dos</strong> escravos e 64,3% <strong>dos</strong> forrosreceberam to<strong>dos</strong> ou pelo menos um sacramento <strong>na</strong> iminênciada morte. Além disso, excluí<strong>dos</strong> estes dois anos, permanece aproximidade entre livres e escravos quanto à ausência dereferência aos sacramentos: 57% para os livres, 56.9% para osescravos e 32% para os forros. Portanto, a aproximação <strong>dos</strong>indices de ausência de referência não pode ser explica<strong>dos</strong>omente pelo fato de ter havido um maior indice de morte


epenti<strong>na</strong> <strong>dos</strong> livres que não permitisse a eles receberem atempo a visita do padre.No momento, duas possibilidades me surgem. É possívelque muitos livres não tivessem sua condição social referidano assento de óbito pelo pároco, que procuraria declarar maisos escravos e os forros pela simples razão de que eram estesdois segmentos que precisavam ter demarcadas, para asociedade, suas condições de cativo e de liberto do cativeiro.Dos 5848 registros de óbitos a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong> por mim, 58% nãoreferiram a condição social do morto, enquanto 18% foramdeciara<strong>dos</strong> escravos, 8.1 % forros e ape<strong>na</strong>s 16.1 % livres. Ora,os da<strong>dos</strong> demográficos para a freguesia do SantíssimoSacramento, <strong>na</strong> década de 1840, apontam para um maiormero de <strong>mortos</strong> livres Qo que escravos - em consonânciacom o maior número de livres entre a população como umTABELA 5 -índices de recurso aos sacramentos, segundo a condiçiío domorto, exclul<strong>dos</strong> os anos de 1845 e 1850SACRAMENTOS LIVRES FORROS ESCRAVOSNO % NO % NO %To<strong>dos</strong>Penitência e extrema-unçfioPenitência e eucaristiaPenitênciaExtrema-unçfioCasado <strong>na</strong> hora da morteSem sacramentosSem sacr. p/ morrer de repenteSem sacr. p/ nfio pedirlprocurarSem referência*TOTAL 156 100 312 100 411 100*Subtraí<strong>dos</strong> os 112, 92 e 354 inocentes, respectivamente, sem referência aossacramentosFonte: Livro de registros de óbitos da freguesia do Santíssirno Sacrarnento/Rio deJaneiro. Anos de 1812, 181 6, 1820, 1824, 1828, 1835, 1855, 1860, 1865, 1870,18 75, 1880 e 1885.


0todo, como se percebe <strong>na</strong> Tabela 6, abaixo, com base nos da<strong>dos</strong>de Eulália Lobo26. Estes da<strong>dos</strong> confirmam a hipótese de quegrande parte <strong>dos</strong> indivíduos de condição livre não tiveramreferenciada a sua condição social no assento, de modo que épossível dizer que, <strong>dos</strong> 58% de registros sem referência acondição, a sua grande maioria poderia ser de livres.TABELA 6 - Proporçáo de <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> freguesia do Santlssimo Sacramento,<strong>na</strong> decada de 1840, segundo a condiçáo socialANO LIVRES ESCRAVOS TOTALNo Oh No %'Fonte: LOBO, Eulólia Maria Lahemeyer. História do Rio de Janeiro. Do capitalcomercial ao capital industrial e fi<strong>na</strong>nceiro. Rio de Janeiro: IBEMEC, 1978. p.368Isto permite explicar, portanto, o porquê de os indices do


dizer com isso que eram poucos os escravos, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio deJaneiro, <strong>na</strong>quele período. Pelo contrá<strong>rio</strong>, numericamente, eles quasese aproximavam do número de livres, só que, de modo geral, nãoOS superavam27 .Uma outra possibilidade de análise do padrão deaceitação <strong>dos</strong> sacramentos <strong>na</strong> Corte é a de tentar identificar,entre os negros de um modo geral - forros e escravos - adiferenciação quanto à origem - c<strong>rio</strong>ulos e africanos - que seconstituiu, geralmente, em um <strong>dos</strong> fatores de preservação daidentidade cultural.TABELA 7 -índices de recurso <strong>dos</strong> negros aos sacramentos, segundo a origemSACRAMENTOS CRIOULOS AFRICANOSNo % No %To<strong>dos</strong> 61 29.6 79 13.7Penitência e extrema-unção 12 5.8 42 7.3Penitência e eucaristia 1 0.5 2 0.3Penitência 3 1.4 12 2.1Extrema-unção 9 4.4 60 10.4Batizado "sub conditione"Casado <strong>na</strong> hora da morte 1 0.5 1 0.2Sem sacramentos 7 3.4 15 2.6Sem sacr. p/ morrer repenti<strong>na</strong>mente 2 1.0 2 0.3Sem sacr. p/ não pedirlprocurar 4 0.7Sem referência* 110 53.4 361 62.4-TOTAL 206 100 578 100- -- - - -* Subtraí<strong>dos</strong> os 446 e 7 inocentes, respectivamente, sem referência aos sacramentos.Fonte: ACMRJ- Livro de registros de óbitos dafieguesia do Santissimo Sacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855,1860,1865,1870,1875, 1880 e 1885.Observando a Tabela 7, vemos que 42.2% <strong>dos</strong> c<strong>rio</strong>ulosrecorreram aos sacramentos, enquanto 34% <strong>dos</strong> africanos ofizeram. Por outro lado, 4.4% de c<strong>rio</strong>ulos e 4.6% de africanos


não receberam os sacramentos; sendo que nenhum c<strong>rio</strong>ulo deixoude recebê-los "por não pedir ou procurar", o que fizeram algunsafi-icanos. Esta recusa pode ser interpretada como resistência aosritos católicos por parte de negros ainda identifica<strong>dos</strong> com a culturade origem. De qualquer forma, se interpretarmos o alto índice denão referência aos sacramentos por parte das duas origens comofator decorrente de epidemias e mortes repenti<strong>na</strong>s, chegaremos aconclusão de que os índices de recurso aos sacramentos por estessetores revelam-nos a existência de uma relativa aceitação do ritualcristão por parte deles.Procura<strong>dos</strong> por indivíduos das relações do moribundo - fosselivre, escravo ou forro - os sacramentos eram-lhe leva<strong>dos</strong> pelovigá<strong>rio</strong> e mem<strong>br</strong>os da Irmandade do Santíssimo Sacrament~~~, -em procissão que demandava algumas providências. Machado deAssis, em Dom Ca~murro~~, assim descreveu uma situação emque se faziam os preparativos para a administração <strong>dos</strong> sacramentosa uma enferma:- Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouçoum sino; é, creio que é em Santo Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es. Pare,senhor recebedor!O recebedor das passagens puxou a correia (...), o ônibus parou,e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas h cabeça,pegou-me no <strong>br</strong>aço e fez-me descer consigo. Iríamos tambémacompanhar o Santíssimo. Efetivamente o sino chamava os fiéisàquele serviço de última hora. Já havia algumas pessoas <strong>na</strong>sacristia.( ...) Quando o sacristão começou a distribuir as opas(...) Pádua solicitava ao sacristão uma das varas do pálio. JosCDias pediu uma para si.( ...)Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lem<strong>br</strong>ou-me que elecostumava acompanhar o Santissimo Sacramento aosmoribun<strong>dos</strong>, levando uma tocha, mas que a última vezconseguira uma vara do pálio. A distinção especial do páliovinha de co<strong>br</strong>ir o vigá<strong>rio</strong> e o sacramento; para tocha qualquerpessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto,cheio de uma glória pia e risonha (...)Opas enfiadas, tochas distribuidas e acesas, padre e cibó<strong>rio</strong>prontos, o sacristão de hissope e campainha <strong>na</strong>s mãos, saiu opréstito h rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelosfiéis, que se ajoelhavam, fiquei comovido.


No romance, os fiéis foram acio<strong>na</strong><strong>dos</strong> pelo toque <strong>dos</strong> sinos- alvo das críticas <strong>dos</strong> médicos, como já visto <strong>na</strong> Parte I destetrabalho. As Constituiçõesprirneiras do arcebispado da Bahiadetermi<strong>na</strong>vam que, quando o pároco houvesse de levar oSantíssimo Sacramento aos enfermos, mandasse fazer um si<strong>na</strong>lcom o sino maior da igreja e que tangessem a campainha pelasruas, o que não seria feito se a necessidade do enfermo fossepremente. Quanto ao sacerdote, iria vestido com so<strong>br</strong>epeliz e estolaroxa, tendo as mãos sua âmbula, contendo os "santos óleos" e aeucaristia30 .No caso de existir <strong>na</strong> paróquia a irmandade do SantissimoSacramento, seriam seus irmãos que,,ao aviso <strong>dos</strong> sinos, realizariamo acompanhamento do viático ao paroquiano enfermo, em perigode morte. Segundo De<strong>br</strong>et3' , cada paróquia tinha sua irmandadedo Santissimo Sacramento, encarregada de escoltar o padre nomomento de levar a extrema-unção. Sua participação no préstitoera solicitada <strong>na</strong> sacristia, onde se encontrava um irmão de plantão,a quem caberia despachar imediatamente um sineiro para percomras ruas adjacentes, reunindo os irmãos disponíveis para esse"dever" religioso.O Compromisso da Irmandade do Santissimo Sacramentoda freguesia sob a mesma invocação, determi<strong>na</strong>va, em vá<strong>rio</strong>scapítulos, as posições e funções exercidas pelos irmãos no cortejo,que podem ser assim elen~adas~~ :Provedor - atrás do pálio, presidindo sempre com a vara;Secretá<strong>rio</strong> - adiante da cruz com a campainha;Tesoureiro - levar a toaiha, caldeirinha e vara, entre as alas,compondo-as; mandar correr a campainha para o chamamento<strong>dos</strong> irmãos; dispor as opas, tochas, e mais insignias;Procurador - com tocha ao lado direito, adiante do pálio;Irmãos de mesa - uns levarão uma das varas do pálio e outrosirão com tochas aos la<strong>dos</strong>;Capelães - entoar salmos e cânticos;Andador - pronto a correr com a campainha para chamamento<strong>dos</strong> irmãos.A análise do quadro acima demonstra uma hierarquiade posições e funções, ditada pela <strong>dos</strong> cargos que os irmãos


ocupavam, chamada ordem de precedência. Provavelmente,em uma situação análoga, onde não existisse a irmandade, ecujas funções fossem executadas pelos paroquianos,comanda<strong>dos</strong> pelo sacristão ou pelo pároco, haveria disputapelas funções realizadas no cortejo do viático, a exemplo daque é <strong>na</strong>rrada <strong>na</strong> passagem de Dom Casmurro. Disputa estaque poderia ter sua justificativa <strong>na</strong> disposição das Constituiçõesprimeiras33, que concedia a todas as pessoas queacompanhassem o Santíssimo Sacramento indulgênciaspromovidas pelos sumos pontífices.Tendo sido feita a chamada <strong>dos</strong> irmãos e demaiscomponentes do cortejo, este organizava-se segundo adistribuição das funções e posições <strong>dos</strong> mem<strong>br</strong>os e <strong>dos</strong>respectivos objetos a transportar. A procissão podia ser simplesou mais aparatosa. De<strong>br</strong>et forneceu a descrição de um cortejosimples que consistia em um irmão carregando uma sineta,seguido de dois solda<strong>dos</strong> de cabeça descoberta, com a armavirada em si<strong>na</strong>l de luto; em seguida, vinham quatro outrosirmãos, precedendo o padre, que caminhava sob um pálioquadrado, sustentado por um <strong>br</strong>aço de ferro recwvado, presoa uma vara carregada por um irmão, marchando imediatamenteatrás do sacerdote; este tipo de cortejo era acompanhado poruma ou duas pessoas. Uma segunda modalidade de cortejo,um pouco mais no<strong>br</strong>e, diferia da primeira ape<strong>na</strong>s quanto aopálio, que era maior e de veludo carmesim com franjas deouro. O terceiro tipo consistia em mais aparato: o pálio erasustentado por seis varas, com a presença de músicos negros euma retaguarda militd4.Como se vê, era comum que, em caso de não se conseguirnúmero suficiente de mem<strong>br</strong>os, se apelasse para os solda<strong>dos</strong>do posto militar mais próximo. Este teria sido, para o viajante,um expediente comum, o que fazia com que, quase sempre, acruz, os candela<strong>br</strong>os e o pálio fossem carrega<strong>dos</strong> por solda<strong>dos</strong>vesti<strong>dos</strong> momentaneamente com a opa carmesim. Ainda,segundo De<strong>br</strong>et3', o "cortejo mais decente" comportava,"sempre", um destacamento militar de oito homenscomanda<strong>dos</strong> por um oficial, com boné <strong>na</strong> mão, sendoprecedi<strong>dos</strong> por um tambor e uma trombeta. Se, por acaso, os


preparativos acontecessem em um dia de festa <strong>na</strong> igreja, aassistência seria solicitada e o cortejo era acrescido"solenemente" de banda de música de negros. A pompa,portanto, perpassava do mais simples ao mais aparatoso cortejodo viático.E interessante observar que os elementos que formam oacompanhamento do viático aos moribun<strong>dos</strong> estão presentestambém <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas de Luiz Edmundo e Mello MoraesFilho36. Em suas descrições, percebe-se a estrutura mostradaem Dom Casmurro e <strong>na</strong> passagem de De<strong>br</strong>et. Na de LuizEdmundo, ressalta-se mistura de funções exercidas pelosirmãos do Santissimo Sacramento, que, em alguns momentos,diverge das mencio<strong>na</strong>das no compromisso; os mem<strong>br</strong>os dairmandade não participavam sozinhos do cortejo, já queparoquianos, não pertencentes a irmandade, se faziampresentes, a exemplo da procissão descrita em Dom Casmurro.Por outro lado, a descrição não evidencia a presença do pároco.Provavelmente, como afirmado <strong>na</strong>s Constituições primeirasdo arcebispado da Bahia, a irmandade é que orgqizaria aprocissão e com seus irmãos acompanharia o viático aos fiéis.Resta saber quem o ministrava, o que não fica claro <strong>na</strong>descrição, mas como não podia deixar de ser, um sacerdote.Além disso, so<strong>br</strong>essaem o som <strong>dos</strong> sinos, a presença da músicae <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>. No caso destes, inclusive, Mello Moraesadverte que, completo o pessoal necessá<strong>rio</strong>, não era precisoque fossem então chama<strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>.Além da referência as funções <strong>dos</strong> acompanhantesdo viático, descreve-se, tanto em Mello Moraes Filhocomo em Luiz Edmundo, a exemplo da passagem de DomCasmurro, o comportamento <strong>dos</strong> transeuntes quecruzavam com o cortejo. O que se percebe <strong>na</strong> descriçãode Mello Moraes3' :Na igreja, orde<strong>na</strong>ndo o préstito, o sineiro subia A torre, e curtorepique palhetava os ares de tini<strong>dos</strong> metálicos: - Nosso-Pai saia.E a campa soava.. .Ao ouvi-la, as mães acordavam os filhinhos tomando-os aoom<strong>br</strong>o, por trás das rótulas e As janelas os castiçais com velasapareciam de súbito, as mucamas prendiam aos batentes e às


sacadas colchas de seda da Índia; aos cantos das grades de pauou de ferro as serpenti<strong>na</strong>s e as mangas de vidro cintilavamprofusas.Os passantes, desco<strong>br</strong>indo-se, ajoelhavam-se, batiam nos peitos.Um coro verdadeiramente harmônico e religioso enchia o espaçoe avizinhava-se volumoso.Depois ... o coro calava-se, e o toque da campainha feria isoladoo silêncio ilumi<strong>na</strong>do.A passagem do préstito, as pessoas ajoelhavam-se,persig<strong>na</strong>vam-se ou rezavam pela alma do enfermo, comotambém o faziam em si<strong>na</strong>l de respeito ao SantissimoSacramento. Em geral, não era difícil para os acompanhantesreconhecerem a casa do moribundo, <strong>na</strong> qual já seencontravam amigos, parentes e vizinhos. A casa deveriaJstar limpa e preparada para a chegada do ~acerdote'~. Nemto<strong>dos</strong> entravam <strong>na</strong> casa, ape<strong>na</strong>s as pessoas necessárias. Osdemais esperavam a porta, em geral entoando seus cantos elitanias a Virgem. O barulho relacio<strong>na</strong>va-se com a idéia defuneral "festivo", percebido, segundo João José Reis, como"facilitador da comunicação entre o homem e oso<strong>br</strong>e<strong>na</strong>tural", sendo a morte silenciosa, inclusive,considerada má morte39. Aliás, a idéia de festa está semprepresente <strong>na</strong>s descrições de Luiz Edmundo, Mel10 MoraesFilho e, obviamente, <strong>na</strong>s de João José Reis. De<strong>br</strong>et40interpretou tal fato como si<strong>na</strong>l de barbárie:A esse conjunto revoltante de melodias e ritmos contrá<strong>rio</strong>s, juntaseainda o movimento mais lento de um coro de vozes esganiçadase fanhosas de uns trinta negros devotos, entoando as litaniasintermináveis da Virgem. Essa inexplicável e indecisa mistura deinstrumentos e vozes huma<strong>na</strong>s acompanha-se ainda de um baixocontinuo de outro gênero: o carrilhão de cada uma das igrejasdiante das quais passa o cortejo, ruído que se extingue aospoucos, gradualmente, <strong>na</strong> medida em que os sineiros perdem deouvido o som da sineta argenti<strong>na</strong> do irmão encarregado de daruma dupla badalada de minuto em minuto. Em resumo, esseinexprimível im<strong>br</strong>óglio de estilo e de harmonia que tanto de perto


como de longe irrita o sistema nervoso com sua barbhrierevoltante, imprime com efeito um sentimento de pavor nocoração do homem, mesmo bem disposto; efeito calculado, semdúvida, no rito primitivo, mas que hoje ridiculariza essa cerimôniae retira dela qualquer dignidade religiosa.O olhar estrangeiro de De<strong>br</strong>et não percebeu que a festaem torno do cortejo não excluía a "dignidade religiosa". Asimbiose entre o sagrado e o profano era característica da morteque Vovelle chamou de "barroca", que tinha por base oesplendo?' .Ao chegar ao seu destino, o vigá<strong>rio</strong> ministrava ossacramentos ao moribundo, que assim estaria preparado para a"chegada da morte". Feita logo a confissão, tendo o enfermo sidoabençoado pelo sacerdote, este, após as preces, lhe entregaria ahóstia. Se, por acaso, o estado do enfermo não desse tempo paraas preces, o padre imediatamente lhe daria o viático. Logo após,procedia à unção realizada so<strong>br</strong>e os cinco órgãos <strong>dos</strong> senti<strong>dos</strong>(olhos, ouvi<strong>dos</strong>, <strong>na</strong>riz, boca e mãos), juntamente com as oraçõesditas pelo padre; estas seriam suprimidas, se o moribundo estivessemorrendo. Caso morresse, o pároco não deveria seguir adiante42 .A recusa em receber os sacramentos seria, de acordo com asConstit~ições~meiras"~, punida com o impedimento da sepultumeclesiásíica Feitas as cerimônias, o acompanhamento mmariaà igtejaeo Santíssimo Sammento seria posto so<strong>br</strong>e o altar.O vestuá<strong>rio</strong> fúne<strong>br</strong>eQuando esteve no Rio de Janeiro, <strong>na</strong> década de 1840,Thomas Ewbar~k~~ prestou atenção as vestimentas funeráriasutilizadas pela população:Preocupa<strong>dos</strong> com as roupas enquanto <strong>vivos</strong>, os <strong>br</strong>asileiros sãoenterra<strong>dos</strong> com seus melhores trajes, salvo quando outros sãopreferi<strong>dos</strong> por motivos religiosos. Formalistas ao mhximoimpõem etiqueta mesmo aos <strong>mortos</strong>. Estes devem seguir para ooutro mundo em atitudes e trajes convenientes( ...)


Por trás deste costume verificado elo viajante, estavaa crença de que, <strong>na</strong> "passagem"aara o A P ém, o morto deveriaestar convenientemente vesti o. A simbologia das vestesfazia-se presente tanto entre cristãos como entre africanos,sendo o seu uso uma das formas de se garantir a "boa morte",uma espécie de código que permitisse a passagem ara ooutro mundo. Para os cristãos, o objetivo era o E ter asalvação. Quanto aos africanos, tratava-se de se prepararpara o encontro com os ancestrais; a mortalha, neste caso,era uma forma de possibilitar que a alma, ao abando<strong>na</strong>r ocorpo, fosse ao encontro <strong>dos</strong> ancestrais e não ficasse a vagaraqui <strong>na</strong> Terra.Nesse sentido, para cristãos e africanos, tinha randeimportância a cor e o tipo da mortalha. Seu uso tinha a k unçãoritual de integrar o morto no outro mundo. Determi<strong>na</strong>dascores, mal empregadas, poderiam, <strong>na</strong> conce ção cristã,dificultar o desprendimento da alma, hncio<strong>na</strong>n 8 o como umaespécie de barreira a entrada no Além; outras, pelocontrá<strong>rio</strong>, poderiam servir de identificação e passaporte.Crianças geralmente eram amortalhadas em teci<strong>dos</strong>colori<strong>dos</strong>, talvez, pelo fato de que, por serem declaradasinocentes por parte da Igreja, já eram consideradas emestado de graça e, portanto, o uso do colorido poderiaindicar um estado de contentamento pela certeza dasalvação45 - no caso de terem sido batizadas, é claro.No caso das mortalhas de santos, a intenção era obter,por sua intercessão, a graça junto a Deus. Juntamentecom a roteção, a força do santo invocado poderiaservir c!e salvo-conduto <strong>na</strong> viagem rumo ao Paraíso4'j.Segundo Ewbank4',as mulheres casadas com vestido preto, vdu preto, <strong>br</strong>açoscruza<strong>dos</strong> e as mãos descansando no cotovelo oposto, as solteiras,vestidas de <strong>br</strong>anco, vdus e gri<strong>na</strong>lda de flores <strong>br</strong>ancas, as mãosfechadas como em adoração, com folhas de palmas entre elas., As mãos <strong>dos</strong> homens e meninos são cruzadas so<strong>br</strong>e o peito, e,se não foram ocupadas por outros símbolos, coloca-se nelasuma peque<strong>na</strong> taça que d retirada antes do caixão descer para otúmulo. Os que desempenham qualquer autoridade são vesti<strong>dos</strong>com trajes oficiais, os padres com suas vestes, os solda<strong>dos</strong> com


seus uniformes, os mem<strong>br</strong>os de irmandades com suas alvas, asirmãs das sociedades religiosas com a indumentária apropriada[...I As crianças de menos de 10 ou 11 anos são vestidas defrades, freiras, santos e anjos.Pode-se distinguir, a partir desta descrição, cinco tiposbásicos de mortalhas: as de santos, as de cores, as vestes oficiais,militares ou sacerdotais, as das sociedades religiosas (conventos,irmandades e ordens terceiras), e, por último, os melhores trajesou as roupas do uso. Nos registros paroquiais de óbitos a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong>por mim, o padrão das vestes funerárias apresentou semeihançascom o descrito pelo viajante, como se pode notar <strong>na</strong> Tabela 8.TABELA 8 - índice do uso de mortalhasMORTALHANoMortalha de santo (a) 2380Mortalha de cor 867Roupas do uso 523Mortalha de irmandade/ord.terceira 124Vestes militares 44Vestes sacerdotais 27Outras (beca, vestes angelicais/virgi<strong>na</strong>is, teci<strong>dos</strong> diversos) 1 17Sem referência 1787Fonte: ACMRJ - Livro de regispos de óbitos da fi-eguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 181 6, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885..\A alusão a determi<strong>na</strong>do,santo, a uma determi<strong>na</strong>da cor, auma determi<strong>na</strong>da sociedade religiosa e, até mesmo, as roupasdo uso, tinha sua lógica ritual. Comparando sua utilização, aolongo do século XIX, percebe-se que as mortalhas de santo(a)foram as mais usadas pelos <strong>mortos</strong> <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>. Segundo João


TABELA 9 - índice do uso de mortalhas de santosMORTALHA No YoN." Sr." da ConceiçiíoSto. AntônioS. FranciscoN.Yr? do CarmoS. Francisco de PaulaS. Jogo EvangelistaN.Vr? das DoresS. DomingosS. JogoS. Francisco da PenitênciaS. Francisco das ChagasMenino do coroOutros santosTOTAL* 2487 100- - - - - --* Na feitura deste quadro, inclui tambbm as invocaçdes aos santos, presentes <strong>na</strong>smortalhas de irmandades e ordens terceiras. Por exemplo, as referências ils ,mortalhas das ordens terceiras de São Francisco de Paula e da Penitência, foramconsideradas como mortalhas de são Francisco de Paula e de são Francisco daPenitência: o mesmo ocorrendo com relação ils ordens terceiras de N.' Sr? da~oncei~ão-e Boa Morte e de N.' Sr.' do C'armo.Fonte: ACMRI - Livro de registros de óbitos daj?eguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812,181 6,1820,1824,1828, 1835,1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.José Reis, o uso de mortalhas de santos representava um apelopara que eles ajudassem os que assim estivessem vesti<strong>dos</strong>; demodo geral, os homens se vestiam de santos e as mulheres, desantas4*. A Tabela 9 mostra os santos a que mais se recorria, <strong>na</strong>Corte, ao ser amortalhado. Juntamente com santo Antônio, com26.5%, era a Nossa Senhora da Conceição (26.6%) - utilizadamajoritariamente pelas meni<strong>na</strong>s - que os <strong>mortos</strong> recorriam commais frequência. Esta ocorrência pode ter sido conseqüência dofato de a santa ser a padroeira do Impé<strong>rio</strong>. Provavelmente, emdecorrência disto, dentre as invocações maria<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s irmandadesda Corte, eraNossa Senhora da Conceição a que se encontrava


com maior re~orrência~~. São Francisco e suas denomi<strong>na</strong>ções- da Penitência e das Chagas - vinha em terceiro lugar, com8.3%; a seguir, Nossa Senhora do Carmo, com 5.5%; sãoFrancisco de Paula, com 5.2%; são João Evangelista, com4.6%; Nossa Senhora das Dores, com 3.6%; são Domingos,com 3.2%; e, por último, são João, com 1.7%. E de se notarque as invocações maria<strong>na</strong>s juntas totalizavam 35.7%50.Após as mortalhas de santos, as de cores vinham emsegundo lugar como padrão de uso. Pela Tabela 10, nota-seque as de cor <strong>br</strong>anca eram as mais buscadas por 54.1% <strong>dos</strong><strong>mortos</strong> constantes <strong>dos</strong> registros a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong>. Em segundo lugar,estavam as pretas, com 42.8%. As coloridas eram,surpreendentemente, pouco escolhidas, se compararmos comos índices da freguesia de São Salvador de Campos <strong>dos</strong>Goitacases, encontra<strong>dos</strong> <strong>na</strong> pesquisa de Sheila de CastroFariaS1 .TABELA 10 - fndice das cores das mortalhasCOR No YoBrancaPretaOutras coresTQTAL 867 100Fonte: ACMRI - Livro de registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramentoiRio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.A comparação com uma área agrária permite a<strong>na</strong>lisar osaspectos da devoção <strong>na</strong>s zo<strong>na</strong>s urba<strong>na</strong>s e <strong>na</strong>s rurais. No séculoXVIII, em Campos <strong>dos</strong> Goitacases, dentre os livres, 75%recorreram às mortalhas de cor e 25%, As de santo; com relaçãoaos escravos, 99% fizeram uso de mortalhas coloridas,enquanto 1 % recorreu as de santo. No século XIX, os escravosforam enterra<strong>dos</strong> com 91% de mortalhas de cor, 1 % com as desanto e 8% com as vestes do uso. Apesar da ausência de


eferências para os livres no século XIX, pode-se imagi<strong>na</strong>r, acomparar-se com os da<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> escravos, que as mortalhas decor tenham continuado a prevalecer diante das de santo, tendoaumentado também o índice das vestes do uso. A diferençaentre as referências aos santos, presente <strong>na</strong>s mortalhas, <strong>na</strong>sduas regiões sugere que a menção aos santos era maior <strong>na</strong>sáreas urba<strong>na</strong>s do que <strong>na</strong>s agrárias. O que, talvez, possa serexplicado pelo fato de as associações religiosas, comoirmandades, conventos, mosteiros e ordens terceiras, nãopossuírem uma presença e uma atuação tão intensas <strong>na</strong>s zo<strong>na</strong>sagrárias como <strong>na</strong>s <strong>cidade</strong>s, o que levava a maior parte <strong>dos</strong><strong>mortos</strong> destas ultimas a recorrerem menos as mortalhas de core mais as de santos.Com relação às cores das mortalhas utilizadas <strong>na</strong> Corte,wbe-se que, de modo semelhante ao encontrado por João JoséReis <strong>na</strong> Salvador das primeiras décadas do século XIX, o <strong>br</strong>ancopredomi<strong>na</strong>va, seguido pelo pm. Com adiferença de que em Salvador,em relação a to<strong>dos</strong> os outros tipos de mortalhas, as <strong>br</strong>ancas foram asmais utilizadas, alcançando o índice de 44% do total do vestuá<strong>rio</strong>fúne<strong>br</strong>e, apresentando uma distância grande em relação às mortalhaspretas (15%). Ou seja, em Salvador a cor <strong>br</strong>anca era expressivamenteescolhida como cor das mortalhas. No Rio de Janeiro, ao conirá<strong>rio</strong>,eram as mortalhas de santo que predomi<strong>na</strong>vam. Em relação àsmortallias de cor, entretanto, o índice do <strong>br</strong>anco era maior (54. 1%),porém, não muito distante do índice do preto (42.8%). Observando atabela 11, é possível pbera relação entre os índices da cor <strong>br</strong>ancae os da cor preta, no Rio de Janeiro, ao longo do século XIX. A cor<strong>br</strong>anca aparece - da mesma forma que em Salvador, entre 1835-1 836- &quentemente com predominância so<strong>br</strong>e a preta, demomtmndouma similitude entre a sensibilidade fúne<strong>br</strong>e de Salvador e a do Riode Janeiro. Entretanto, os índices apontam para um crescimento douso do preto conforme o avançar do século; em 1 835, há, pela primeiravez, uma aproximação entre os dois índices e, em 1845, o preto s upo <strong>br</strong>anco. Infelizmente, a menção às cores desaparece a partir de1850, impossibilitando a confirmação da substituição da cor <strong>br</strong>ancapela preta <strong>na</strong> preferência <strong>dos</strong> habitantes da <strong>cidade</strong> do Rio deJaneiro, <strong>na</strong> hora de confeccio<strong>na</strong>r suas mortalhas.


Tabela 11 - fndice do uso das mortalhas coloridas, ao longo <strong>dos</strong>éculo XIXCORESBRANCO PRETO OUTRAS TOTALANO No % NO % NO % ?'o1812 25 59.5 17 40.5 421816 47 72.3 18 27.7 651820 21 65.6 11 34.4 321824 119 73.0 42 25.8 2 1.2 1631828 109 59.0 71 38.3 5 2.7 1851835 74 47.1 69 43.9 14 52.0 1571845 74 34.7 134 63.0 5 2.3 2131850 - 1 0.2 11865 3 0.8 31880 5 1.3 51885 1TOTAL 469 100.0 371 100.0 27 100.0 867Fonte: ACMRI - Livro de registros de óbitos dafieguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1865, 1880 e 1885.A predominância do <strong>br</strong>anco pode ser explicada pelosignificado que lhe era dado tanto no universo cultural afiicanocomo no cristão. Entre os vá<strong>rio</strong>s grupos étnicos africanos, o<strong>br</strong>anco simbolizava a morte. Para os cristãos, a cor simbolizavaa esperança <strong>na</strong> vida eter<strong>na</strong>, prometida através da Ressurreição,expressando, também, ur<strong>na</strong> identificação com o santo sudá<strong>rio</strong>- tecido <strong>br</strong>anco que envolveu o corpo de Jesus Cristo após amorte no Calvá<strong>rio</strong> e com o qual ressuscitou. Ainda poderíamosacrescentar que, para os africanos e também para os cristãos,o <strong>br</strong>anco representava tanto a morte como o (re)<strong>na</strong>scimento, sendoeste associado a ressurreição pelos cristãos e, para os africanos,ao <strong>na</strong>scimento para uma nova vidas2 ; estes, todavia demonstravamfazer maior uso dele.Comparando os tipos de mortallias adotadas pelos <strong>mortos</strong> devárias condições, <strong>na</strong> Corte, pode-se perceber, pela Tabela 12,elementos importantes a respeito da religiosidade da população.


TABELA 12 -índice do uso de mortalha, segundo a condicão do mortoMORTALHA LIVRES FORROS ESCRAVOSNO % NO % NO %Háb. de S. Francisco 6 1.3 22 5.3 8 0.9Háb. de S. Francisco de Paula 9 2.0 5 12 5 0.6Háb. de S. João 33 7.0 - 5 0.6Háb. de S. João Evangelista 9 2.0 2 0.5 5 0.6Háb. de N.a Sr." da Conceição 128 27.1 62 15.0 144 16.8Háb. de Sto. Antônio Q 13.1 90 22.0 30 3.5Háb. de N." Sr." do Carmo 14 3.0 3 0.7 8 0.9Háb. de S. Domingos 4 0.8 24 5.8 42 5.0Háb. de N.a Sr." das Mercês 2 0.4 12 3.0 4 0.5Háb. de N." Sr." das Dores 17 3.6 10 2.4 19 22Háb. de Sta. +ta - 2 02Háb. de Sta. Ursula - 1 0.1Háb. de Sta. Efigênia 7 1.7 2 02Vestes de menino,do coro 36 7.6 18 4.3 85 10.0Outros santos 6 1.3 2 0.5 9 1.0 .Háb. da0.T. de S.Fco. dePaula 14 3.0 - 1 0.1Háb. daO.T.deS.F.daPenitência 4 0.8 2 0.5Háb. da O. T. do Sr. Bom Jesus 6 1.3Háb. &O. T. dalonc. eB. Mo* 6 1.3 2 0.5Háb. &O. T. deN" Sr."doCarmo 4 0.8Vestes sacerdotais 1 02Vestes militares 5 1.0A cavaiheira 2 0.4Vestes do uso 12 2.5 6 1.4 19 22Preta 70 5.0 59 14.3 169 19.7Branca 17 3.6 87 21.0 281 32.7Outras cores 4 0.8 - 19 22TOrAL 471 100 413 100 858 100Fonte: ACMRJ- Livro de registros de óbitos dafieguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.Entre os livres, a mortalha de Nossa Senhora da Conceiqão foia prefdda, com 27.1 % de procura - <strong>na</strong> medida em que ela era usadaprincipalmente por meni<strong>na</strong>s, o maior índice entre os livres se explicapelo fato de haver, entre os forros e os escravos (africanos,principalmente), um índice maior de adultos e uma maior taxa de


masculinidade (devido ao número de &canospveni~do~co)-segudoopartrãogaal~adecor~veiomsegundo lugar, com15%. Santo Antônio, apósNossa Senhora, apareceu como o segun<strong>dos</strong>anto de devoção <strong>dos</strong> livres, novamente de acordo com o padrão' gd. Próximo a este santo, são João aparece como terceira o@entre os livres. Dentre os escravos, o uso do <strong>br</strong>anco foi predomi<strong>na</strong>nte,com 32.7%, seguido do preto, com 19.7%; a devoção aNossa Senhorada Conceição veio em terceiro lugar com 16.8% e as vestes de meninodo coro em quarto, com 10%. Enquanto isso, os forros apmximammsemais <strong>dos</strong> escravos, apresentando, em primeiro lugar, apreferênciapela mortalha de santo Antônio, com 22.0%; logo em seguida, comousuá<strong>rio</strong>s da <strong>br</strong>anca, prefaencial <strong>dos</strong> escravos, com 21 .O%, sendoque as mortalhas de Nossa Senhora e a preta vieram em terceiro equarto lugares, com 15%, e 14.3%, respectivamente.Observando os da<strong>dos</strong> referentes às mortalhas de cor <strong>br</strong>anca,pode-se veriíicar uma escala seqüenciai, onde quanto mais próximodo universo <strong>dos</strong> escravos, mais o <strong>br</strong>anco era utilizado: os <strong>mortos</strong> decondição livre, foms e escravos foram sepulta<strong>dos</strong> com a mortalha<strong>br</strong>anca, respectivamente, <strong>na</strong> progressão de 3.6%, 21% e 32.7%.Com rel* ao preto, há um maior equili'<strong>rio</strong> entre os trêssegmentos sociais, sendo que os escravos apresentaram um índicemaior de uso: 19.7% contra 16.6% de foms e 15% de livres. Levanbse em consideração que, após a devoção de ]Vossa Senhora daConceição, a cor preta era a segunda preferida entre os livres(certamente pelos adultos), podemos interpretar o índice de 15%entre os livres como conseqüência, por um lado, da não declaraçãoda condição <strong>dos</strong> livres nos assentos de óbitos - segundo a hipóteselevantada ante<strong>rio</strong>rmente, a respeito da desproporção, nos assentos deóbitos, da declaração de livres e de escravos - e, por outro, do fato deque os livres apresentavam um leque maior de opções de mortalhas -representado, principalmente, pelas morialhas de medesmts- doque os escravos e os libertos, fãto este também pacebido por João JoséReis, em Mvad0P3 . No caso <strong>dos</strong> escravos, provavelmente, o pretofoi a única opção para os adultos, fora da vestes do menino docoro e de Nossa Senhora da Conceição, que eram utilizadasbasicamente por meninos e meni<strong>na</strong>s cativos, daí a cor pretaaparecer, entre os escravos, com um índice relativamente alto,em comparação com os livres.


TABELA 13 - fndice do uso de mortalhas, segundo a origem domortoMORTALHA CRIOULO AFRICANONO ?'o NO ?'oHáb. de S. Francisco 1 O 1.7 9 2.0Háb. de N." Sr." da Conceição 162 28.2 6 1.3Háb. de Sto Antônio 27 4.7 50 10.5Háb. de N." Sr." do Carmo 10 1.7Háb. de S. Domingos 47 82 8 1.7Háb. de N." Sr." das Mercês 9 1.6Háb. de N.9r." das Dores 25 4.3 1 02Háb. de Sta. Efigênia 8 1.4Vestes de menino do coro 79 14.0Háb. de outros santos 19 3.3 3 0.6Branca 98 17.1 212 45.0Reta 58 10.1 148 31.3Outras cores 13 2.3 3 0.6Vestes do uso 7 12 32 6.8Vestes angelicais 1 02Fonte: ACMW - Livro de registros de dbitos dafieguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.Os tipos de mortalha usa<strong>dos</strong> pelos negros seguem, demodo geral, a origem c<strong>rio</strong>ula ou africa<strong>na</strong>, como se pode observar<strong>na</strong> Tabela 13. Dentre os africanos, o <strong>br</strong>anco prevaleceu comocor mortuária, com 45% de frequência, seguido pelo índicerelativamente alto de mortalhas pretas, 31.3%, confirmando oque foi dito ante<strong>rio</strong>rmente a respeito da pouca opção demortalhas que não fosse a <strong>br</strong>anca. Além do que, o padrãodemográfico entre os africanos era o de uma alta taxa demasculinidade, sendo eles jovens e adultos, com poucascrianças - em função da preferência <strong>dos</strong> traficantes por indivíduosjá em idade produtiva (mais homens que mulheres e crianças), oque explica o reduzido índice de mortalhas de Nossa Senhora daConceição (1.3%) e das vestes de menino do coro (O%), emcomparação com os c<strong>rio</strong>ulos: entre estes havia maior equilíb<strong>rio</strong>


numérico entre homens e mulheres e maior número decrianças, daí os 28.2% de hábitos de Nossa Senhora daConceição e os 14% de vestes de menino do coro.O uso das mortalhas <strong>br</strong>ancas, <strong>na</strong> verdade, mais queaproximação com o universo da escravidão, significava umaidentidade africa<strong>na</strong>, no sentido de que seu uso reiterava práticasancestrais. E que relações com a religiosidade africa<strong>na</strong> podemser percebidas através deste padrão?Segundo Louis Vincent-Thomas, o <strong>br</strong>anco éfrequentemente a cor <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> e da morte. O sentidoque possuía nos rituais fúne<strong>br</strong>es africanos estavarelacio<strong>na</strong>do as técnicas simbólicas para garantir uma "boapassagem". Por isso mesmo, servia para afastar a mortee, por extensão, as desgraças, simbolizando a morte damorte. A água de argila <strong>br</strong>anca, por exemplo, estavapresente nos vá<strong>rio</strong>s rituais de tratamento das enfermidadese da conjuração das desgraças. O <strong>br</strong>anco também era acor da primeira fase <strong>dos</strong> ritos de iniciação, significando o<strong>na</strong>scimento ritual. Entre os bapende - um <strong>dos</strong> gruposétnicos bantos - os mestres iniciadores do rito mugongoeram literalmente <strong>br</strong>anquea<strong>dos</strong> com pemba (uma espéciede giz <strong>br</strong>anco). Entre alguns grupos étnicos da região deCamarões, as viúvas ndiki pintavam as per<strong>na</strong>s de <strong>br</strong>anco eos fali envolviam o cadáver (com exceção <strong>dos</strong> pés e dasmãos) com cintas de algodão <strong>br</strong>ancd4. O <strong>br</strong>anco também era aimagem viva <strong>dos</strong> espíritos <strong>dos</strong> antepassa<strong>dos</strong>; por isso, para algunsgrupos étnicos bantos, o <strong>br</strong>anco era a cor <strong>dos</strong> defuntos; umcadáver que caia <strong>na</strong> água voltava em<strong>br</strong>anquecido, dai aassimilação frequente do <strong>br</strong>anco europeu com um espíritoaquático; entre os benguelas, por exemplo, o deus ibanza vivia<strong>na</strong> água. Por estes motivos, no imaginá<strong>rio</strong> local era <strong>na</strong>tural aassociação <strong>dos</strong> <strong>br</strong>ancos (europeus) que vinham da água(oceano), com certos atributos da divindade: eles eramconsidera<strong>dos</strong> como antepassa<strong>dos</strong> reencar<strong>na</strong><strong>dos</strong>, o que podeexplicar a associação que os negros, que partilhavam destacultura, faziam entre a terra <strong>dos</strong> <strong>br</strong>ancos (a América) com aterra <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> e, por conseguinte, a relação entre atravessia do oceano a uma travessia para a morte55.


Sendo um <strong>dos</strong> três elementos -juntamente com o pretoe o vermelho - que participam daformação de tudo o que existia,o <strong>br</strong>anco representava, para muitos grupos étnicos africanos,portanto, a criação, bem como a relação com os ancestrais.Ao mesmo tempo, era representativo da passagem etransformação de um nível da existência para outro. Entre os<strong>na</strong>gôs, a ele era atribuída a passagem entre o Aiye e o Orun,simbolizando, assim, o (re)<strong>na</strong>scimento e a morte; da mesmaforma, o <strong>br</strong>anco era a cor de Oxalá (orixá responsável pelacriação doAinda que, segundo João José Reiss7, a escolha <strong>dos</strong>negros pelas mortalhas de cor <strong>br</strong>anca tivesse um caráterfi<strong>na</strong>nceiro, por se tratar de tecido mais barato, não se podedescartar a possibilidade - também aventada pelohistoriador - de sua escolha ter levado em consideração,também, crité<strong>rio</strong>s rituais, principalmente tendo em vista ofato de que o <strong>br</strong>anco foi, em alguns casos, utilizado emteci<strong>dos</strong> mais caros para a época, como, por exemplo, o cetim,o tafetá, o veludo. Além disso, como vimos acima, osescravos apresentavam um índice relativo no uso de tecidopreto - que, em relação ao <strong>br</strong>anco, era mais caro, segundoos padrões da época - o que nos leva a relativizar a questãosócio-econômica como um fator preponderante <strong>na</strong> utilizaçãode mortalhas <strong>br</strong>ancas pelos cativos da <strong>cidade</strong> do Rio deJaneiro, <strong>na</strong> medida em que faziam uso do preto em escalanão reduzida. Ainda porque estamos tratando de escravosde uma área urba<strong>na</strong> que, dentro <strong>dos</strong> limites impostos pelaescravidão, é claro, possibilitava aos cativos maiormobilidade física e maior possibilidade de acumular algumrendimento, principalmente em função de terem no "ganho"- em que o escravo dispunha de seu tempo e força de trabalhopor um período limitado, recebendo remuneração peloserviço prestado - uma de suas atividades principais.Segundo Leila Algrantis8,a escravidão <strong>na</strong>s <strong>cidade</strong>s se apresentou, em alguns aspectos, deforma distinta da escravidão no mundo rural [...I Na <strong>cidade</strong>, ocontrole do escravo por parte <strong>dos</strong> senhores era menor que no


campo [...I a mobilidade vertical e horizontal <strong>dos</strong> cativos emtermos de estratificação social tendia a ser maior <strong>na</strong>s <strong>cidade</strong>se era mais ampla a sua mobilidade fisica, o que levava a umcontato também maior com os diversos grupos sociais ...Deste modo, é possível que, em grande parte, a escolhada cor <strong>br</strong>anca pelos escravos - africanos, principalmente -tivesse uma justificativa religiosa, o que demonstra um padrãoconsciente de seleção e adoção de práticas fúne<strong>br</strong>esconhecidas, ainda que diante de um ritual inserido <strong>na</strong>s diretrizesda Igreja católica; ao apropriar-se59 do código de base católico,os negros, muitas vezes, o redefiniram, introduzindo, noscerimoniais cristãos, práticas de origem africa<strong>na</strong>.Escravos e forros apresentavam, como no caso <strong>dos</strong>sacramentos, escolhas específicas com relação às mortalhasde acordo com a origem, c<strong>rio</strong>ula ou africa<strong>na</strong>, o que pode servisto <strong>na</strong> análise das Tabelas 10 e 11.Os c<strong>rio</strong>ulos, tanto foms como escravos, apresentavam emprimeiro lugar, preferênciapela&deN05~a~daCok@Q4.4%deMe29.4%demos).ApósospadrõessdiferenciamOs~~~wdamortalhabiancamsegins$olugar,~do~vestesdemeninodomeda&preta,mtaceiroeqmtolupqrespectivamerrte.Osfònos~m~'lugar,owdohábitodesantoAntônio,mean,damortaIha~e,mqmto,dododes.Danmg0s;amoIDilha<strong>br</strong>anca apareceu em quinto lugar. Ou seja, os excativosiam se distanciando do uso das mortalhas <strong>br</strong>ancas, numaevidência de que, após a liberdade, se desligavam aos poucos deseus costumes africa-nos, enquanto os escravos aindamantinham, mesmo que não majcrhiatneníe,~desuaculturaancestral - se entendemos, é claro, o uso do <strong>br</strong>anco como estandorelacio<strong>na</strong>do às hdições fun& africa<strong>na</strong>s, sem desatar totalmente,porém, o faIo de estas tmdições terem podido ser mantidas, em muito,pelofaIodeosteci<strong>dos</strong><strong>br</strong>ancossaemosmaisbaratos,oqueeraumelemento iãditador das tradiçk.Podemos pensar, portanto, que a medida que asgerações caminhavam, a cultura crist?i ocidenfal afirmava-seso<strong>br</strong>e a memória africa<strong>na</strong>. Os procedentes da Africa viveram


TABELA 14 - Índice do uso de mortalhas pelos forros, segundo aorigemMORTALHASCRIOULOS AFRICANOSNooHáb. de S. Francisco 5 3.7 6 5.0Háb. de S. Francisco de Paula - 1 0.8Háb. de N." Sr." da Conceição 33 24.4 1 0.8Háb. de Sto. Antônio 22 16.3 29 23.7Háb. de N." Sr." do Carmo 2 1.5Háb. de S. Domingos 15 11.1 6 5.0Háb. de N." Sr." das Mercês 7 52Háb. de N." Sr." das Dores 7 52Háb. de Sta. Efigênia 6 4.4Vestes de menino do coro 7 52Háb. da Irmandade de N." Sr." das Merces 1 0.7Preta 17 12.6 30 24.5Branca 12 9.0 45 36.8Vestes do uso 1 0.7 4 3.3TABELA 15 - Índice do uso de mortalhas pelos escravos, segundo aorigemMORTALHA CRIOULOS AFRICANOSNO % NO %Háb. de S. Francisco 5 12 3 1 .OHáb. de N." Sr." da ConceiçãoHáb. de Sto. AntônioHáb. de S. DomingosHáb. de N." Sr." do CarmoHáb. deN." Sr." daSDoresVestes de menino do coroHáb. de outros santosHáb. da Ord. Terc. de S. Fco. de PaulaBrancaPretaOutras coresVestes do usoVestes angelicaisFonte: ACMRI - Livro de registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramentoiRio de Janeiro. Anos de 1812, 181 6, 1820, 1824, 1828,


como escravos e, conseguindo a alfoma, ainda mantinham <strong>vivos</strong>os elementos da sua terra de origem. Já os negros que aqui<strong>na</strong>sceram, foram escravos e, tomando-se forros, demonstraramum padrão de maior aculturação, apropriando-se de parte <strong>dos</strong>costumes <strong>dos</strong> homens livres. Ao falar, neste momento, deaculturação, creio ser necessá<strong>rio</strong> delimitar que estou aquientendendo-a, segundo a acepção de Nathan Wachte160, enquantoum processo de interpenetração de culturas que, sem ser reduzidoa uma marcha única - a simples transformação da cultura docolonizado <strong>na</strong> do colonizador - significa um processo inverso, peloqual uma dada cultura integra os elementos de outra, sem perdersuas características origi<strong>na</strong>is. Neste sentido, há uma aproximaçãoentre este conceito e a nova interpretação do sincretismo propostapor Amo Vogel que, ao referir-se a combi<strong>na</strong>ção de identidadesculturais fortemente diferenciadas, afia que esta só foi possíveldevido ao sincretismo, que "pôde fazê-lo exatamente porque deumargem a incorporação, embora parcial e restritiva, do Outro, <strong>na</strong>exata medida em que a<strong>br</strong>iu mão do requisito de 'p~reza'"~'Com relação aos africanos, certamente ainda guardavamos vínculos com a cultura origi<strong>na</strong>l, ao fazerem uso da cor <strong>br</strong>ancaem primeiro lugar (forros com 36.8% e escravos com 52.2%).O preto apareceu como segunda opção, tanto de forros (24.5%),como de escravos (36%). Sendo que, entre os libertos, veiopróximo da mortalha de santo Antônio (23.7%); aliás, os forrosaíiicanos apresentaram, mais que os escravos, maior diversificaçãono uso das mortalhas, tendo feito uso também <strong>dos</strong> hábitos de sãoFrancisco (5%) e de são Domingos (5%). Entre os escravosaíiicanos, após o preto, só apareceu, com alguma expressividade,a mortalha de santo Antônio. O fato de nenhum <strong>dos</strong> dois terapresentado o uso expressivo da mortalha de Nossa Senhora daConceição, das vestes de menino do coro, bem como das mortalhasdas demais devoções maria<strong>na</strong>s, como os c<strong>rio</strong>ulos, relacio<strong>na</strong>-se aoque já foi dito a respeito do padrão demográíico <strong>dos</strong> &canos -ped de masculinidade e de idade adulta - que limitava a existênciade o w mortalhas por parte de forros e escravos aíiicanos.Vejamos o uso das mortalhas por parte das crianças.Segundo Thomas E ~bank~~, as crianças com menos de dez ouonze anos eram vestidas de frades, freiras, santos e anjos:.


Quando se veste de são João o cadáver de um menino, colocaseuma pe<strong>na</strong> em uma das mãos e um livro <strong>na</strong> outra. Quando Centerrado como são JosC, um bordão coroado de flores tomao lugar de pe<strong>na</strong>, pois JosC tinha um cajado que florescia comoo de A<strong>br</strong>aão. A criança que tem o mesmo nome que sãoFrancisco ou santo Antônio usa geralmente como mortalha umhábito de monge e capuz. Para a maioria, são Miguel Arcanjo Co modelo. Veste-se então, o pequeno cadáver com uma túnica,uma saia curta presa por um cinto, um capacete dourado (depapelão dourado) e apertadas botas vermelhas, com a mãodireita apoiada so<strong>br</strong>e o punho de uma espada. As meni<strong>na</strong>srepresentam "mado<strong>na</strong>s" e outras figuras populares. Quan<strong>dos</strong>ão necessá<strong>rio</strong>s antis de cabelo suplementar, o agente funerá<strong>rio</strong>os fornece, assim como rouge para as faces e p6 para o pescoçoe os <strong>br</strong>aços".Das mortallias descritas acima, ape<strong>na</strong>s a de são João apareceucom certa representatividade nos assentos de óbito a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong>; asdemaisnãoapareceramcomfkquência Quantoàsmeni<strong>na</strong>s,mlmenterepresentavam as "mado<strong>na</strong>s", sob a invocação de Nossa Senhora daConceição e Nossa Senhora das Dores.Com base nos da<strong>dos</strong> da Tabela 16, percebe-se, entre ascrianças, a difusão das mortalhas de Nossa Senhora da Conceição,com 3 1.5%; em segundo lugar, com 20.0%, o uso das vestes <strong>dos</strong>meninos do coro, aqueles que ajudavam o padre <strong>na</strong> missa, fazendoparte também do coro infantil: trajavam uma bati<strong>na</strong> vermelha e porcima uma veste bmca - as vestes de menino do coro predomi<strong>na</strong>ramno período ante<strong>rio</strong>r a 1845, após o qual não se faz, nos assentosde 1850, 1855 e 1860 referência as mortalhas, provavelmentedevido a epidemia, que ocasionou as dificuldades <strong>dos</strong> párocosde registrarem os óbitos. E interessante notar que ThomasEwbank, ao descrever com detalhes as mortalhas das crianças,não mencionou as vestes de menino do coro. Levando-se emconsideração que esteve no Rio de Janeiro em 1846 e que em1845 ainda havia referências as vestes, é possível que seu usojá estivesse diminuindo entre os meninos da Corte, tendodesaparecido em 1 865.


TABELA 16 - índice do uso de mortalhas pelos inocentes, segundoO sexoGERAL FEMININO MASCULINOMORTALHA No % No % No %Háb. de S. JoãoHáb. de S. João EvangelistaHáb. de N." Sr." da Concei@oHáb. de N." Sr." do CarmoHáb. de S. DomingosHáb. de N." Sr." das DoresVestes de menino do coroHáb. de outros santosPretaBrancaOutras coresVestes angelicaisVestes do usolwI“4L 1221 100 591 100 603 100Fonte: ACMRJ - Registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812,181 6,1820,1824,1828,1835,1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.Quando reapareceram as referências, a partir de 1865,as vestes de menino do coro, bem como grande parte dasdemais, já haviam dado lugar às vestes angelicais e/ou virgi<strong>na</strong>is.Em terceiro lugar, surgiu a mortalha de são João Evangelista,com 8.8% que, a exemplo do afirmado por João José Reispara Salvador, era bastante difundida, principalmente entre ascrianças.A Tabela 17 mostra o uso das mortaihas infantis de acordocom as condições, percebendo-se que a devoção a Nossa Senhorada Conceição esteve presente em to<strong>dos</strong> os segmentos. Do senhorao escravo, procurava-se envolver os filhos em mortallias de NossaSenhora, se meni<strong>na</strong>, e <strong>na</strong>s vestes de meninos do coro, se menino.Ape<strong>na</strong>s entre os escravos o uso da cor <strong>br</strong>anca foi maior, emcomparação com os outros grupos; mas, ainda assim, veio apósas mortalhas de Nossa Senhora e das vestes de menino do coro,preferidas para se envolver os cadáveres das criancinhas.


TABELA 17 - Índice do uso de mortalhas pelos inocentes, segundoa condiçãoMORTALHA LIVRES FORROS ESCRAVOSNO % NO % NO %Háb. de S. Francisco de Paula - 1 1.1 4 1.0Háb. de S. João 32 19.0 5 12Háb. de S. João Evangelista 7 4.1 1 1.1 4 1.0Háb. de N." Sr.a da Conceição 61 35.6 44 47.0 130 31.3Háb. deN.a Sr." do Carmo 1 0.6 8 2.0Háb. de S. Miguel 2 12Háb. de S. Domingos 2 12 9 9.6 37 9.0Háb. de N.a SSr das Mercês - 3 3.1 3 0.7Háb. de N." Sr." das Dores 14 8.1 7 7.4 17 4.1Háb. de Sta. Efigênia - 6 6.4 2 0.5Vestes de menino do coro 36 21.0 17 18.0 79 19.0Háb. de outros santos 3 1.7 9 2.1Preta 2 12 2 2.1 26 62Branca 7 4.0 4 42 69 16.6Outras cores 3 1.7 17 4.1Vestes angelicais 4 1.0Vestes do uso 1 0.6 1 02Tm'AL 171 100 W 100 415 100Obs: Cumpre destacar que nesta tabela s6 estão mencio<strong>na</strong><strong>dos</strong> os inocentes cujascondiçdes socias puderam ser identificadas com segurança.Fonte: ACMRJ- Livro de registros de óbitos dafieguesia do Santksimo SacramenfoiRio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855,1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.Por ki, cabe ressaltar um aspecto importante com relação aouso das mortalhas, <strong>na</strong> Corte. Ao longo do século XIX, houve umadiferenciação no uso das vestes mortuárias, sendo possíveldetectar alterações ao longo das décadas. Acompanhando aTabela 1 8, nota-se um progressivo aumento, a partir da décadade 1 865, do uso das roupas do usolvestes seculares - padrãoque jáem em pequeno númm,an 1835,desaparecendo no @tervaloda década das duas grandes epidemias de fe<strong>br</strong>e amarela. Indicesque, se forem acresci<strong>dos</strong> do igual crescimento no uso das vestesangelicaislvirgi<strong>na</strong>is - utiliza<strong>dos</strong> majoritariamente pelas crianças- indicam uma sensível redução no uso das mortalhas de cores e


TABELA 18 - Índice <strong>dos</strong> tipos de mortalhas em relação ao totalANOSVestes%de n30Roupasdode angelicaisl referência8mençiioaosassentamentos virgi<strong>na</strong>is santos e 8sde 6bitos No % No % Na % cores** Soma<strong>dos</strong>. os valores das três últimas colu<strong>na</strong>s, obtCm-se o percentual denão mençiio aos santos e às cores <strong>na</strong>s mortaihas.Fonte: ACMRJ - Livro de registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.santos, a partir de 1850. Tais da<strong>dos</strong> são importantes e, certamente,apontam para uma mudança de sensibilidade diante da morte, emque o período de 1850-1860 (época das epidemias de fe<strong>br</strong>eamarela) aparece como balizador, <strong>na</strong> medida em que nele forampraticamente inexistentes as referências as mortalhas nosassento.s, após o qual surgiria uma significativa modificaçãoem relação aos padrões ante<strong>rio</strong>res, com o desaparecimento damenção aos santos e as cores e o crescimento das vestes douso/seculares. A ausência de referências as mortalhas,extremamente grande nos perío<strong>dos</strong> de epidemia, volta a crescera partir da década de 1880 e, juntamente com as roupas do


uso/seculares, são as únicas referências a respeito das mortalhasnos assentos. Prelúdio, talvez, de mudanças <strong>na</strong>s práticasfunerárias e, possivelmente, até <strong>na</strong>s concepções de morte.Os oficios fúne<strong>br</strong>esApós o recebimento <strong>dos</strong> sacramentos e a escolha das vestesfunerárias, os oficios fiine<strong>br</strong>es - encomendação da alma e missade corpo presente - eram realiza<strong>dos</strong> com o objetivo de empreenderorações em intenção da salvação da alma do defunto. Realizadaspelo pároco, as encomendhções da alma eram uma espécie deentrega da alma do morto a Deus. Segundo as Constituiçõesprimeiras do arcebispado da Bahia, nenhum defunto poderiaser enterrado sem ser primeiramente encomendado pelo seu párocoou outro sacerdote a seu mando, o que deveria ser feito com "muitadiligência", procruando saber ante<strong>rio</strong>rmente se o morto haviadeixado testamento e/ou determi<strong>na</strong>ções a respeito <strong>dos</strong> funerais,lega<strong>dos</strong> pios ou o<strong>br</strong>igações de missas, a fim de que fossemcumpri<strong>dos</strong>; após o que deveria encomendá-lo, onde o corpo 'estivesse, com so<strong>br</strong>epeliz e estola preta ou roxa, segundo o rituai.A encomendação poderia ser realizada em casa ou <strong>na</strong>igreja, lugares mais comuns encontra<strong>dos</strong> nos assentos de óbitos.Outros lugares, entretanto, apareceram mencio<strong>na</strong><strong>dos</strong>, após1850, ainda que em casos raros como <strong>na</strong> casa de saúde, nohospital e nos cemité<strong>rio</strong>s. Antes da epidemia de fe<strong>br</strong>e amarela,grande parte das encomendações foram realizadas <strong>na</strong>s igrejasou, em alguns poucos casos (4.3%) <strong>na</strong>s casas. Após o surto, asencomendações realizadas <strong>na</strong>s casas superaram as realizadas<strong>na</strong>s igrejas, principalmente após as determi<strong>na</strong>ções imperiaisque proibiram a sua realização nos templos, enquanto vigorassea epidemia: o índice das encomendações em casa subiu para59.6%, indicando o descumprimento da determi<strong>na</strong>ção do chefede policiá da Corte que, em virtude da proibição dasencomendações <strong>na</strong>s igrejas mandava que a Ordem Terceira deSão Francisco de Paula estabelecesse uma capela provisória


no cemité<strong>rio</strong> do Catumbi. Ou seja, nem com o estabelecimentode uma capela no cemité<strong>rio</strong>, as pessoas deixaram de realizaras encomendações <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> <strong>na</strong>s suas casas.TABELA 19 -Índice <strong>dos</strong> locais de encomendaçfio <strong>dos</strong> corposEm casaNa igrejaEm casa e recomendado da igrejaNo cemitk<strong>rio</strong>Na casa de saúdeNo colegiado de SBo PedroNo hospital Bom JesusSem referênciaKJTAL 5848 100Fonte: ACMRJ - Registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramentoiRio de Janeiro. Anos de 1812, 181 6, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870,. 1875, 1880 e 1885.A prática da encomendação <strong>na</strong>s casas (determi<strong>na</strong>da peloregulamento sanitá<strong>rio</strong> de 4 de março de 1850) não foi bem vistapelo bispo d. Manuel do Monte. Segundo o prelado, as exéquiaseram um direito essencialmente paroquial, devendo ser realizadas<strong>na</strong> igrejas matrizes. Reprovava a idéia do regulamento, pelo fatode as encomendações e outros oficios pelas almas <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>saem atos públicos da religião, tendo <strong>na</strong>s igrejas o lugar apropriadopara sua cele<strong>br</strong>ação, e, só por exceção o seriam <strong>na</strong>s casasparticulares. O artigo do regulamento, para o prelado, inverteu aexceção em regra geraP4.Para o bispo, não haveria inconveniente em que o cadáverfosse levado a matriz, já que teria que ser retirado de casa efazer um trajeto pelas ruas até o cemité<strong>rio</strong>, podendo parar umpouco <strong>na</strong> igreja, sem que causasse prejuízo a saúde pública.As encomendações realizadas em casa seriam um problema,pois nem todas ofereciam condições para isso e nem toda equalquer família gostaria, <strong>na</strong> opinião dele, de presenciar um


"espetáculo melancólico". Uma segunda razão para a realizaçãodas encomendações <strong>na</strong>s igrejas paroquiais dizia respeito aconcorrência que as confrarias e ordens terceiras estariamfazendo aos párocos, já que era em suas igrejas que "todas asencomendações solenes eram realizadas", tor<strong>na</strong>ndo raras asencomendações e, ainda mais, os ofícios <strong>na</strong>s matrizes, fatoque contribuiria, segundo o prelado, para o esvaziamento <strong>dos</strong>erviço paroquial. Se as encomendações fossem feitas somente<strong>na</strong>s igrejas matrizes, em consonância com o direito, ossacerdotes se habituariam a servir <strong>na</strong>s paróquias, tomando suaadministração melhor, sem que houvesse os inconvenientes que,segundo ele, ocorriam em época de epidemia65 - certamenteele estava se referindo a airsência de sacerdotes <strong>na</strong>s paróquias.Na atitude do bispo, fica patente a sua concepção totalmentebaseada nos preceitos canônicos, com a qual buscou delimitar osespaços do que competia a igreja paroquial e do que competia asirmandades e as ordens terceiras. Estas foram vistas comofomentadoras de práticas conde<strong>na</strong>das pelos canonistas, a pontode o bispo e de outros mem<strong>br</strong>os do clero secular as teremchamado a se porem sob a jurisdição paroquial. Ficou claro,portanto, que d. Manuel do Monte não expediu qualquer ordemas irmandades e ordens terceiras para que realizassem asencomendações <strong>dos</strong> seus irmãos <strong>na</strong>s casas em vez de nos seustemplos; por isso, em 30 de maio o chefe de polícia teve queexpedir à Ordem Terceira de São Francisco de Paula a ordem deconstrução da capela provisória.A encomendação do defunto poderia ser simples, com apresença ape<strong>na</strong>s do pároco, ou mais aparatosa, com aparticipação de outros sacerdotes além do vigá<strong>rio</strong>, adquirindocaráter solene. A<strong>na</strong>lisando-se a Tabela 20, nota-se que 27.5%<strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> tiveram sua alma encomendada por um sacerdote.Poucos <strong>mortos</strong> foram encomenda<strong>dos</strong> pelo pároco e maissacerdotes: 4.2% com o pároco e de dois a cinco sacerdotes, e4% com o pároco e de seis a dez sacerdotes. Menores aindaforam os índices que registraram a participação de um númerosupe<strong>rio</strong>r a dez sacerdotes.


TABELA 20 - Índice do número de padres <strong>na</strong>s encomenda~ões decorposENCOMENDADO POR No '!40Coadjutor/cônego curaCoadjutor/cônego cura mais 2 a 5 sacerdotesCoadjutor/cônego cura mais 6 a 10 sacerdotesCoadjutor/cônego cura mais 1 1 a 15 sacerdotesCoadjutor/cônego cura mais 16 a 20 sacerdotesCoadjutor/cônego cura mais 22 a 24 sacerdotesCoadjutor/cônego cura mais vá<strong>rio</strong>s sacerdotesCônego cura mais o colegiado de S. PedroReverendo comissá<strong>rio</strong>Vigá<strong>rio</strong> de outra freguesiaSem referênciaTOTAL 5848 1 O0Fonte: ACMRJ - Livro de registros de óbitos dafieguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 181 6, 1820, 1824, 1828, 1835,1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.O sepultamentoApós serem encomenda<strong>dos</strong> por seus párocos, os <strong>mortos</strong>deveriam, segundo as Constituiçõesprimeiras do arcebispadoda Bahia, ser por eles acompanha<strong>dos</strong> até a sepultura. Casotivessem algum impedimento em fazê-lo, deveriam enviaroutro sacerdote que, sob sua licença, deveria encomendar e enterraroO momento em que saía o cortejo acompanhando o mortoera o ápice da morte-espetáculo, a pompa poderia ser expressatanto <strong>na</strong> quantidade de participantes, como no aparato <strong>dos</strong>objetos fimerá<strong>rio</strong>s. Se a morte era um acontecimento individualpara o que morria, para os que ficavam, era um acontecimentosociaP7 . Provavelmente por isso, lendo-se as d&ções <strong>dos</strong> viajantesque estiveram no Rio de Janeiro, ao longo da primeira metade <strong>dos</strong>éculo XIX, percebe-se muito mais descrições de funerais do que,por exemplo, de batismos e casamentos. De<strong>br</strong>eP8 descreveu duas


cerimônias de batismos e duas de casamentos, sendo que asdescrições de cerimônias fúne<strong>br</strong>es, ou assunto a elas referi<strong>dos</strong>,foram oito; KiddeF9 fez ape<strong>na</strong>s uma referência a um batismo,nenhuma a casamentos e detalhou a respeito <strong>dos</strong> funerais;Ewbank70 não fez referência nem a batismos e nem acasamentos, descrevendo, porém, os cemité<strong>rio</strong>s, os enterros, oluto, o preço das missas fúne<strong>br</strong>es e um funeral; Luccock7',além de descrever os funerais, um, inclusive, de que se viuo<strong>br</strong>igado a tomar parte, falou a respeito do batismo e nemmencionou os casamentos. Por esses relatos, percebemos queos viajantes parecem ter prestado mais atenção aos funeraisque, em se tratando de ritual, tinham um conteúdo muito maispúblico do que privado. &rales de Los assim referiusea eles:Naqueles tempos, o enterro de algudm era cerimônia à qualcompareciam os moradores da <strong>cidade</strong> com um certo prazer ...Ali se encontravam os amigos e inimigos do morto, contavaseanedotas, falava-se mal da vida alheia, conversava-se em vozalta, exaltavam-se as qualidades do recdm-falecido oudesencava-se, de rijo, <strong>na</strong> sua pele ainda quente, e comentavasea po<strong>br</strong>eza ou fortu<strong>na</strong> deixada pelo mesmo.O caráter "festivo" - característico da morte barrocaportuguesa, bem como européia e, no Brasil, reforçado pelastradições africa<strong>na</strong>s - estava presente no momento da morte enos veló<strong>rio</strong>s, <strong>na</strong> Corte. Para João José Reis, o espetáculofúne<strong>br</strong>e distraia o participante da dor, em uma espécie deconsolação <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, de modo que, reuni<strong>dos</strong> e solidá<strong>rio</strong>s paradespacharem o morto, "os <strong>vivos</strong> recuperavam algo do equilíb<strong>rio</strong>perdido com a visita da morte, afirmando a continuidade davida"73. Nos romances oitocentistas os funerais foram descritoscomo ocasião de espetáculo público, como o do marido deLuisinha, em Memórias de um sargento de milícias74 :O enterro saiu acompanhado pela gente da amizade; os escravosda casa fizeram uma algazarra tremenda. A vizinhança pôs-setoda A janela, e tudo foi a<strong>na</strong>lisado, desde as argolas e galões docaixão atd o numero e qualidade <strong>dos</strong> convida<strong>dos</strong>, e so<strong>br</strong>e cadauma desses pontos apareceram três ou quatro opiniões diversas.


Pela descrição do romance, os funerais aparecem, destaforma, como uma "festa para os olhos" <strong>na</strong> expressão de JoãoJosé Reis75. O cortejo era a ocasião para exte<strong>rio</strong>ridades - de queas pessoas aparentavam tanto gostar. Nele se deveria expressar apompa füne<strong>br</strong>e, cujo fim último era a manifestação do infinitodesejode salvação e a ânsia pela redenção <strong>na</strong> . Os funeraisque tinham a tragédia por trás de si eram bastante concorri<strong>dos</strong>,como o de Amâncio, rapaz assassi<strong>na</strong>do em Casa depen~ão~~ :AS dez horas da manhã já não se podia entrar facilmente nonecrotk<strong>rio</strong>, para onde fora, sem perda de tempo, .conduzido ocadáver de Amâncio, entre um cortejo imenso de cu<strong>rio</strong>sos (...)O funeral atingiu dimensões gigantescas: parecia que se tratavada morte de um grande benemkrito da pátria (...)A <strong>cidade</strong> inteira abalou-se, demoveu-se, para deixar passar aquelaestranha procissão de um magro cadáver de vinte anos.Veio muita gente <strong>dos</strong> arrabaldes. De to<strong>dos</strong> os cantos do Rio deJaneiro acudia povo e mais povo a ver o enterro. As ruas, oslargos, por onde ele ia, ficaram acogula<strong>dos</strong> de gente; os garotosgrimpavam-se aos muros, escalavam as árvores, subiam Bsgrades das chácaras, as janelas regurgitavam, como domingode festa.O caixão foi carregado a pulso, coberto de coroas; no cemitk<strong>rio</strong>ningukm se podia mexer com a multidão que afluía.Não ape<strong>na</strong>s este tipo de morte era motivo de afluência depúblico, mas até mesmo os funerais de um indivíduo comum, cujamorte fora comum, tinha aparato festivo. Foi o caso de Flora emEsaú e Jacó78 :Aqui vai sair o caixão. To<strong>dos</strong> tiram o chapku, logo que eleassoma à porta. Gente que passa, pára. Das janelas de<strong>br</strong>uça-sea vizinhança, em algumas atopeta-se, por serem as famíliasmaiores que o espaço; às portas os cria<strong>dos</strong>. To<strong>dos</strong> os olhosexami<strong>na</strong>m as pessoas que pegam <strong>na</strong>s alças do caixão ...Nesta mesma passagem do romance machádiano, uma


afirmação é elucidativa: "Ainda uma vez, não há novidade nosenterros. Daí o provável tédio <strong>dos</strong> coveiros, a<strong>br</strong>indo e fechandocovas to<strong>dos</strong> os dias"79. Ou seja, o show <strong>dos</strong> funerais estava nocortejo e não <strong>na</strong> inumação propriamente dita. Era o préstito -formado em tomo do cadáver e acrescido de espectadores que,ainda que dele não participassem, paravam para vê-lo passar, oshomens tirando o chapéu em si<strong>na</strong>l de respeito - que era o alvo dasatenções. Era este o momento do espetáculo, onde ostentação econtrição caminhavam no mesmo passo, sendo por vezesacrescidas da "algazarra <strong>dos</strong> negros", em uma simbiose entre osagrado e o profano. Certamente por isso, Brás Cubas, em suasmemóriasg0, afirmara que a vida triste era como os enterros depo<strong>br</strong>es: solitária, calada, labq<strong>rio</strong>sa; ou seja, um funeral sem muitosacompanhantes não era visto com bons olhos. Ainda no mesmoromance, o pai de Eulália - a jovem que morrera subitamente,atacada pela fe<strong>br</strong>e amarela, em 1850 (cujo epitáfio a<strong>br</strong>e a ParteI deste livro) - assim expiessou seu desagrado para com ofuneral da filha:A tristeza de Damasceno era profunda, esse po<strong>br</strong>e homem pareciauma ruí<strong>na</strong>. Quinze dias depois estive com ele; continuavainconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o castigarafora ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. Nãome disse mais <strong>na</strong>da. Três sema<strong>na</strong>s depois tomou ao assunto, eentão confessou-me que, no meio do desastre irreparável, quiserater a consolação da presença <strong>dos</strong> amigos. Doze pessoas ape<strong>na</strong>se três quartas partes amigos do Cotrirn, acompanharam à covao cadáver de sua querida filha. E ele fizera expedir oitentaconvites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bemse podia desculpar essa desatençilo aparente. Damascenoaba<strong>na</strong>va a cabeça de um modo incrkdulo e triste.- Qual! gemia ele, desampararam-me.Cotrirn, que estava presente:- Vieram os que deveras se interessam por você e por 116s. Osoitenta viriam por formalidade, falariam da inkrcia do <strong>gov</strong>erno,das pa<strong>na</strong>ckias <strong>dos</strong> boticá<strong>rio</strong>s, do preço das casas, ou uns <strong>dos</strong>outros (...)Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:- Mas viessem!


Ainda que por formalidade, os convida<strong>dos</strong> deveriam,segundo Damasceno, comparecer ao funeral da filha. Umacontecimento social, inclusive com convites, os funerais nãodeveriam, portanto, ser solitá<strong>rio</strong>s. Como afirma José CarlosRodrigues, a morte de outrora, em to<strong>dos</strong> os níveis, era públicae comunitária; detestava-se morrer em segredo, longe,inesperadamente, sem testemunhas, sem cerimonial; a mortesilenciosa, esquiva, traiçoeira e repenti<strong>na</strong> era especialmentetemida e indesejada8' . Indesejada e sofrida, como a do tísico deCasa depensãog2 que, longe de sua pátria, "partiu" só:O senhor 6 que não podia sossegar, com a idtia <strong>na</strong>quele po<strong>br</strong>erapaz, que ali morria aos poucos, sem familia, nem carinhos deesptcie alguma; sem ter ao menos quem o tratasse, nem disporde um amigo que se compadecesse dele.- Infeliz criatura! pensava - Alem do mais, longe da pátria, longede tudo que lhe podia ser caro!Para grande parte <strong>dos</strong> indivíduos residentes <strong>na</strong> Corte,no século XIX, a forma do "passamento" era o oposto doocorrido com o tísico no romance machadiano; seria maisaproximado daquela descrita em uma das crônicas de LuizEdrnundog3 que, escrevendo so<strong>br</strong>e um <strong>dos</strong> momentos da vida emum cortiço, assim falou a respeito do "quarto ao defunto":É nesse momento que a Adelaide, portuguesa, vem informar,cheia de emoção e de pasmo, que o Chico, da casa IX, queestava <strong>na</strong>s últimas, já está de olho vidrado e com a vela <strong>na</strong> mão(...)A sinistra noticia corre de boca em boca. As lavadeiras nãocantam mais. Cessa a roupa de bater. Emudecem as crianças.Os próp<strong>rio</strong>s cães, impressio<strong>na</strong><strong>dos</strong> com aquela vaga de silêncio,põem as orelhas em pt. Faz-se uma romaria à casa do moribundo.E to<strong>dos</strong> querem ver o Chico, que estrebucha, despedindo-se davida, o olho vago num Cristo de madeira, a sua vela de cera <strong>na</strong>mão. Porta e janela da casinhola triste onde ele morre estão abertasde par a par. A massa <strong>dos</strong> moradores do cortiço aproveita einvade-a. Enche-a literalmente. Há gente cercando o leito, trepadaem bancos, em cadeiras, att pelos parapeitos das janelas. E oChico vai, não vai, o olho fosco, a boca aberta e o pernil já de


todo esticado (...)E cada vez mais gente para cheirar a ce<strong>na</strong>, para assistir aoespetáculo: dez, vinte, oitenta pessoas! E o cortiço inteiro!Empurrão daqui, empurrão dacolá. De repente uma vozesganiçada de mulher berra, como a pug<strong>na</strong>r por um direito:- Que diabo! Não empurre! Que eu também quero ver!Essa gente morre, é verdade; porém se diverte. Diverte-se atéfazendo quarto ao defunto.Para velar um morto que está <strong>na</strong> sua alcova, de mãos postasso<strong>br</strong>e o peito, um lenço a lhe amarrar os queixos, vai ela, emsúcia, para o terreiro da estalagem, palrar, beber, discutir (...)Vezes, diante da barulheira que provoca os risos e até asescandalosas gargalhadas, um parente do que morreu vem àporta do cubículo saber do que se trata.- Nada, é uma que o Bento acaba de contar, mas das boas. Ahist6ria do rei que ganhou um cesto de abacaxis (...)E to<strong>dos</strong>, recordando os detalhes picarescos da anedota:- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Muito boa!Talvez haja menos bulha, menos alegria pelas festas em que oshabitantes do cortiço comemoram as datas de aniversá<strong>rio</strong><strong>na</strong>talício, batiza<strong>dos</strong> e casamentos. Talvez.'As cerimônias fiine<strong>br</strong>es eram, portanto, <strong>na</strong>queles tempos,acontecimentos marcantes da vida social, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>. Apesardas diferenciações <strong>na</strong> forma como eram realizadas, em virtudedas condições socio-econômicas do defunto e de seusfamiliares, os funerais e o momento da morte eram ocasiõesque, dificilmente, passariam despercebi<strong>dos</strong> pelas pessoas. Eelucidativa a <strong>na</strong>riação de Luiz Edmundo so<strong>br</strong>e o fato de a mortepossuir para aquelas pessoas um caráter mais comunitá<strong>rio</strong> doque, por exemplo, os batiza<strong>dos</strong> e casamentos; to<strong>dos</strong> desejavamver o cadáver, desejavam tomar parte <strong>na</strong> "festa". Mesmo entreos que não tinham condições de realizar um cerimonialespecialmente preparado e um ostensivo cortejo, buscavamnão deixar que o morto partisse em solidão. Se fosse preciso,pediam esmolas, como no caso do enterro de uma negra po<strong>br</strong>e,descrito por De<strong>br</strong>eta4.Quando a defunta é de classe indigente, os parentes e os amigosaproveitam a manhã para transportar o corpo numa rede e


depositá-lo no chão, junto ao muro de uma igreja ou perto deuma porta de uma venda. Ai, uma ou duas mulheres conservamacesa uma peque<strong>na</strong> vela junto a rede funerária e recolhem <strong>dos</strong>passantes cari<strong>dos</strong>os módicas esmolas para completar aimportância necessária as despesas de sepultura <strong>na</strong> igreja ou,mais economicamente, <strong>na</strong> Santa Casa da Misericórdia, ondeeste tipo de inumação custa três patacas, ficando o transportepor conta da instituição.Esta exposição pública atrai infalivelmente os cu<strong>rio</strong>sos,so<strong>br</strong>etudo compat<strong>rio</strong>tas da defunta, que tarnbCm contribuem parao enterro. Po<strong>br</strong>es como ela, dão ape<strong>na</strong>s, o mais das vezes, umamoeda de dez, a menor moeda em circulação. Mas o númerosupre a modi<strong>cidade</strong> do óbolo, pois não há exemplo de indigentemoçambique que fique sem sepultura por falta de dinheiro.A ce<strong>na</strong> se passa diante da Lampa<strong>dos</strong>a, peque<strong>na</strong> igreja servidapor um padre negro e assistida por uma confraria de mulatos.O mestre-de-cerimônias, negro, com uma vara <strong>na</strong> mão, vestindouma dupla cota formada por lenços de cor e com sua rodilha, fazparar o cortejo diante da porta, que só C aberta no momento dachegada, a fim de evitar a entrada da multidão de cu<strong>rio</strong>sos, seuscompat<strong>rio</strong>tas. O tambor aproveita esta parada para fazer rufarseu instrumento, enquanto as negras depositam no chão seusdiversos far<strong>dos</strong>, a fim de acompanhar com palmas os cantosfúne<strong>br</strong>es em honra da defunta transportada <strong>na</strong> rede eacompanhada por oito parentes ou amigas íntimas, cada umadas quais pousa a mão so<strong>br</strong>e a mortalha.O interessantenesta passagem é que, ainda que se tratassede um enterro po<strong>br</strong>e, as cerimônias estavam presentes, com ossons e gestos característicos, evidenciando que, mesmo osindivíduos sem posses desejavam acompanhamento <strong>na</strong> hora damorte.Passo a a<strong>na</strong>lisar como foram sepulta<strong>dos</strong> os <strong>mortos</strong> <strong>na</strong><strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, ao longo do século XIX.Relatando os aspectos da <strong>cidade</strong> e das ruas do Rio deJaneiro, no tempo <strong>dos</strong> vice-reis, Luiz Edmun<strong>dos</strong>s nos fala so<strong>br</strong>eo "cemité<strong>rio</strong> cristão":No Rio antigo os templos são o cemitt<strong>rio</strong> do cristão. Enterra-se<strong>na</strong>s igrejas pelo solo, pelas paredes, debaixo <strong>dos</strong> altares, porcima deles, por detrás <strong>dos</strong> orató<strong>rio</strong>s.223


Recheio de tolo é bazófiaRecheio de porco é farbjiaRecheio de igreja é defunto.As igrejas do Rio de Janeiro foram, até 1850, como omemorialista diz, o "cemité<strong>rio</strong> cristão". Nelas, os <strong>mortos</strong>residiam em ur<strong>na</strong> relação de proximidade com os <strong>vivos</strong> que asfrequentavam. Esta familiaridade entre <strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong> foi ur<strong>na</strong>característica essencialmente cristã, surgida, como se viu, aindano fi<strong>na</strong>l da Antiguidade, contrariando a antiga repulsa aos <strong>mortos</strong>; otemor causado, <strong>na</strong>quela época, pela vizhhança <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, faziacom que seus corpos fossem manti<strong>dos</strong> a distância A veneração pelostúmulos tinha também ur<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>lidade específica: im@ que osdefiintos "retomassem" ao mundo <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> e os perturbassem, comoafirma Philippe Arièss6. Além disso, havia o medo da poluiçãocausada pelos flui<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. Por isso, os cemité<strong>rio</strong>s daAntiguidade localizavam-se fora das <strong>cidade</strong>s, geralmente ao longodas estradas, como a Via Appia roma<strong>na</strong>.A aceitação desses princípios, pelos cristãos, foi mantidaaté o século VI, quando esta repugnância cedeu. O elementoque permitiu a aproximação <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> com os <strong>mortos</strong> foi aassociação entre o culto <strong>dos</strong> antigos mártires, de seus túmulose a fé, crescente, <strong>na</strong> ressurreição. Acreditava-se que'a sepulturaadequada e inviolada possibilitaria a salvm, <strong>na</strong> medida em queesta era associada a conservm do corpo; pois, segundo a crençapopular, aviolação da sepultura comprometeria o despertar do defiintono último dia, e, por conseguinte, a sua ressurreição para aeternidades7 .Este mesmo temor da violação seria responsável pelageneralização da pática de se enterrar perto <strong>dos</strong> túmulos <strong>dos</strong> santosmártires que, tendo seu lugar imediato e certo no Paraíso, seriamcapazes de repelir os profa<strong>na</strong>dores de sepulturas. Além da busca daproteção <strong>dos</strong> despojos mortais, esta prática tambémsignificava o anseio de que o "corpo espiritual" estivessesob a mesma guarda. Outra dimensão ainda teria motivado ageneralização <strong>dos</strong> enterms ad sanctos: a proximidade <strong>dos</strong> santossignificaria o alívio e, até mesmo, a obliteração <strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong>.Procurada a proximidade com os santos inicialmente, num


momento poste<strong>rio</strong>r buscou-se a <strong>dos</strong> que haviam si<strong>dos</strong>epulta<strong>dos</strong> perto deles. A partir desse momento, segundoPhilippe Ariès, os <strong>mortos</strong> deixaram de significar repulsa,tor<strong>na</strong>ndo-se elementos sacraliza<strong>dos</strong>. Com efeito, enquantoespaço <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, os cemité<strong>rio</strong>s cristãos foramconsidera<strong>dos</strong>, nesse sentido, um espaço sagrado,desti<strong>na</strong>do às orações pelas almas <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> e, porconseguinte, bastante frequentado^.^^Na Idade Média, a Igreja tentou interditar os locais sagra<strong>dos</strong>aos que morriam sem estar <strong>na</strong>s boas graças dela; foi o início deseu controle so<strong>br</strong>e os <strong>mortos</strong>. Um aspecto novo surgiu nestecontexto: a aceitação e a imposição das sepulturas ad sanctosentrou em choque com o aspecto da espacialidade das sepulturas<strong>na</strong>s igrejas. Que os <strong>mortos</strong> devessem ser inuma<strong>dos</strong> em volta daigreja era uma coisa; outra era o seu enterro dentro dela. Ao longo<strong>dos</strong> séculos, os concílios reiteraram a proibição do sepultamentono inte<strong>rio</strong>r das igrejas, exceto no caso <strong>dos</strong> padres, bispos, mongese alguns leigos privilegia<strong>dos</strong>, como mostrou Philippe Ariè~~~. Adesobediência a tais preceitos foi evidente, quando se percebeque a mesma perdurou do século V ao XVIII, evidenciando aexistência de subterfúgios às leis canônicas. Paralelamente àsproibições, claramente desobedecidas, desenvolveu-se o costumeda compra <strong>dos</strong> locais de inumação; tal prática foi o marco dadiferenciação <strong>dos</strong> preços entre as sepulturas <strong>na</strong>s igrejas e as <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s, que passaram a ser o local de inumação <strong>dos</strong> maispo<strong>br</strong>es.Este costume constituiu-se em prática comum no Rio deJaneiro, bem como <strong>na</strong> sociedade <strong>br</strong>asileira até 1850 - quandoas autoridades imperiais instituíram o sepultamento fora <strong>dos</strong>limites da <strong>cidade</strong>. Enquanto durou o enterrarnento eclesiástico,as inumações foram feitas em tomo das igrejas e das capelas,o que seria de esperar, numa <strong>cidade</strong> em que a religião católicapredomi<strong>na</strong>va entre a maioria <strong>dos</strong> habitantes. Trazi<strong>dos</strong> pelosportugueses, tais costumes foram adota<strong>dos</strong> desde os primórdiosda colonização e remontavam à tradição ocidental cristã, que viano sepultamento eclesiástico, em espaço sagrado, uma dasformas de se proceder à "boa morte ", cujo fim era a salvaçãono Além-túmulo.


'Até 1850, várias eram as igrejas procuradas para locaisde sepultura para os habitantes do Rio de Janeiro. Tal prática,após este período, foi modificada, de forma que os cemité<strong>rio</strong>spúblicos (não mais eclesiásticos) transformaram-se no lugarde destino o<strong>br</strong>igató<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> da <strong>cidade</strong>. Até que fosseproibido, o sepultamento <strong>na</strong>s igrejas foi o preferido pelamaioria absoluta da população da freguesia do SantíssimoSacramento, como se pode observar <strong>na</strong> Tabela 2 1.TABELA 21 - fndice <strong>dos</strong> locais de sepultura, antes de 16/3/1850SEPULTURA No %1 - Igreja matriz do Santíssimo Sacramento1 - Igrejas de irmandades/ordens terceiras1 - Igrejas de convento1 - Igrejas de irmandadeslordem terceira de negros2 - Igrejas matrizes2 - Igrejas de irmandades/ordens terceiras2 - Igrejas de conventoOutras igrejas não identificadasCemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de S. Fco. de Paula (Catumbi)Cemité<strong>rio</strong> do Campo Santo da Misericórdia (Caju)Cemitk<strong>rio</strong> de São Francisco Xavier (Caju)Cemité<strong>rio</strong> de São João Batista da LagoaCemitk<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de N." Sr.a do Carmo (Caju)Cemitk<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de S. Fco. da Penitência (Caju)Outros cemitk<strong>rio</strong>sSem referência1 - Freguesia do Santíssirno Sacramento 2 - Outras freguesias (Candelária,São Josk, Santa Rita, Santa<strong>na</strong>, Inhaúma, Engenho Velho)Fonte: ACMRJ - Livro de registros de óbitos dafieguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828,1835, 1845, 1850 (atd 16/3)As igrejas de irmandades ou ordem terceira de negrosg0eram as mais procuradas como locais de sepultura, <strong>na</strong> freguesiado Santíssimo Sacramento, com 49.1%; em segundo lugar vinhaa matriz do Santíssimo Sacramento, com 2 1.4% e, por último,


as igrejas das demais irmandades e ordens terceiras daparóquia. Em suma, poucos <strong>mortos</strong> seriam sepulta<strong>dos</strong> fora desua fieguesia.Em suas Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro 91,José Vieira Fazenda nos aponta os dois tipos de sepulturasencontra<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s igrejas da <strong>cidade</strong>: as covas e, mais tarde, ascatacumbas, sendo as primeiras, cavadas no chão <strong>dos</strong> templose as segundas, construídas em formas de nichos abertos emgrossas paredes, nos quais o caixão era encerrado e, depois,tapa<strong>dos</strong> com tijolos. Ewbankg2 descreveu as catacumbas daigreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, como sesegue:Passando atravts da porta lateral, entramos numa áreaquadrangular fechada por quatro altas paredes, com um alpendreou telhado projetando-se para dentro e deixando um espaçocentral aberto sob o ceu e ocupado por alguns túmulos demármore. Os nichos para os cadáveres, abertos <strong>na</strong>s paredes,tinham um pouco mais de 1,80 metro por 80 centímetros, com45 de altura <strong>na</strong>s extremidades e 60 no meio, formando a partesupe<strong>rio</strong>r um arco baixo. To<strong>dos</strong> são reboca<strong>dos</strong> e pinta<strong>dos</strong> de<strong>br</strong>anco. No tempo de calor não serviam mais como lugares dedescanso para os <strong>vivos</strong>. (...)Existem três fileiras de nichos, cada uma das quais estende-seao longo de toda a volta do pátio. Os nichos ocupa<strong>dos</strong> sãofecha<strong>dos</strong> <strong>na</strong> frente por tijolos e reboca<strong>dos</strong>. To<strong>dos</strong> sãonumera<strong>dos</strong>, não havendo, porem, quaisquer outras marcas ouinscriçdes. Seus inquilinos ocupam-nos por muito pouco tempopara que as inscriçdes e os elogios permaneçam.Quanto às covas rasas, no inte<strong>rio</strong>r <strong>dos</strong> templos, davamexatarnente a idéia traduzida por Luiz Edmundo, <strong>na</strong> citação referidaacima: entara<strong>dos</strong> no solo, debaixo <strong>dos</strong> altares, atrás <strong>dos</strong> orató<strong>rio</strong>s,os <strong>mortos</strong> eram o recheio das igrejas. Quanto às caiacumbas, segundoWrn , eram ainda mentes <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, em 1816. Ape<strong>na</strong>s duas igrejasas possuíam, a de Nossa Senhora do Cmo e a de São Francisco dePaula, desti<strong>na</strong>das ao seus conkdes. Já em 1829, o viajante afirmouque a inovafão das catacumbas havia conquistado tantos partidá<strong>rio</strong>sque não havia <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> nenhuma irmandade que não as tivesse


mandado construir ou no pátio ou em algum trecho do jardim contínuoa igrejaEm 1846, quando esteve no Rio de Janeiro, Ewbankg4, aoreferir-se aos cemité<strong>rio</strong>s e aos enterros, descreveu o funeral <strong>dos</strong>ecretá<strong>rio</strong> do Instituto Histórico e Geográfico, &nego Januá<strong>rio</strong> daCunha Barbosag5, ocomdo no dia 22 de fevereiro, em uma dascatacumbas da Ordem Terceira de São Francisco de Paula.Ouando o caixão foi colocado so<strong>br</strong>e o estiado. as tam<strong>na</strong>sdò<strong>br</strong>adiças foram abertas (...) Enquanto o padre cáminhaviaoredor do caixão, cantando, lançando turíbulos e aspergindo ocorpo, o pedreiro negro que se encontrava em cima descansan<strong>dos</strong>o<strong>br</strong>e sua picareta mostrava-se como um espectador conspícuo.(4O caixão foi colocado so<strong>br</strong>e uma plataforma temporária, pertode um nicho, <strong>na</strong> fileira do meio, para o inte<strong>rio</strong>r da qual foiempurrado com as tampas abertas. Um lenço foi estendido so<strong>br</strong>eo rosto do falecido por um de seus amigos. Em seguida os padrese o amigos avançaram sucessivamente, um de cada vez comaspersó<strong>rio</strong> de prata seguro pelo sacristão, lançaram água bentaso<strong>br</strong>e o corpo e esvaziaram uma peque<strong>na</strong> pá de cal em pó, queum assistente mantinha prontas so<strong>br</strong>e o caixão. Cerca de quarentalitros de cal foram assim emprega<strong>dos</strong> atC ter oculto o corpo e atéter-se amontoado so<strong>br</strong>e o caixão. Um padre usou novamente oaspersó<strong>rio</strong> de prata e derramou algo de uma peque<strong>na</strong> caixaperfurada, encerrando assim, a cerimônia <strong>na</strong> Igreja. Descansamosagora nossos candela<strong>br</strong>os, encostando-os <strong>na</strong> parede de ondecria<strong>dos</strong> negros os retiraram.Um cavalheiro tirou então do peito um papel e durante meiahora leu um necrológio. Uma segunda, uma terceira e mesmouma quarta oração foram assim pronunciadas. Por fim, opresidente do Instituto fechou as tampas do caixão e entregoua minúscula chave a um parente do defunto. Encerraram-seassim os cu<strong>rio</strong>sos ritos. Encontravam-se presentes vá<strong>rio</strong>sfuncioná<strong>rio</strong>s do Estado, militares e mem<strong>br</strong>os do Se<strong>na</strong>do.Dentro de meia hora, a parte dianteira do nicho estava fechadacom tijolos e coberta por uma camada de reboco <strong>br</strong>anco.Nos assentos de óbitos a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong>, aparecem menções asepulturas <strong>na</strong>s catacumbas das igrejas da matriz do SantíssimoSacramento, de Santo Elesbão e Santa Efigênia, do conventode Santo Antônio, de Nossa Senhora do Bonsucem e de São Francisco


(com certeza a de Paula), que apareceram nos registros a partir de1828; ou seja, a afirmativa de Deht de que já em 1829 quase todasas igrejas tinham suas catacumbas provavelmente está correta.As primeiras catacumbas construídas <strong>na</strong>s igrejas das ordensterceiras de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de Paulaparecem ser bem ante<strong>rio</strong>res a 1816, segundo areferênciade De&.Vivaldo Coaracy informa que as da igreja <strong>dos</strong> terceiros do Cmosão de 1782 e, segundo Gastão Cds, as <strong>dos</strong> mínimos de São Franciscode Paula, datadas de 1805%.A Tabela 22 mostra as igrejas mais procuradas para ossepultamentos, por parte <strong>dos</strong> habitantes da kguesia do SantíssirnoSacramento. A igreja matriz recebeu a maior parte <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong> dakguesia, com 22%. Em segundo lugar, a igreja da Ordem Terceirade Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, com 10.6%, e emterceiro, a igreja da Ordem Terceira de São Domingos, com 10.2%,sendo ambas igrejas de associação religiosa de homens negros.Se for levado em consideração que, em quarto lugar, apareciaa igreja da Irmandade de Nossa Senhora da Lampa<strong>dos</strong>a, com 9.5%(também de negros), coa-sea constatação acima referida de quea maioria <strong>dos</strong> habitantes da kguesia pmmva igrejas de negrospara os sepultamentos. Aliás, o que seria de se esperar, em umakguesia cuja maior parte de seus habitantes era constituída por negrose cuja maioria das igrejas era de suas irmandadedordens terceiras97 .O sepultamento <strong>na</strong>s igrejas era prática adotada por vá<strong>rio</strong>ssegmentos sociais. Até mesmo os escravos para lá eramleva<strong>dos</strong>. A<strong>na</strong>lisando a Tabela 23, pembemos que a maior parte<strong>dos</strong> escravos da kguesia foi inumada <strong>na</strong> igreja matriz, com 29%.Em seguida, foram escolhidas a de Nossa Senhora da Lampa<strong>dos</strong>a,com 16.1 %; a da Ordem Terceira de São Domingos, com 14.1% e ade Nossa Senhora do Rosá<strong>rio</strong>, com 11.1 %. Em sétimo lugar, a deSanto Elesbão e Santa Efigênia, com 6.6% e, em oitavo, a do SenhorBom Jesus do Calvá<strong>rio</strong>, com 6.0%.Observando o quadro, nota-se que a matriz foi localduplamente buscado, pelos livres e pelos escravos. No caso<strong>dos</strong> livres, é possível que, em virtude da predominância dasigrejas de irmandades de negros <strong>na</strong> freguesia do SantíssimoSacramento, grande parte deles não tenham tido muitas opçõesde escolha de sepultura fora das oferecidas pela igreja matriz;


TABELA 22 - Índice das sepulturas <strong>na</strong>s igrejas antes de 16/3/1850SEPULTURA No %1 - Igreja matriz do Santíssimo Sacramento 803 22.01 - Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula 249 7.01 - Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência 92 2.51 - Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (...) 24 0.61 - Igreja do convento de Santo Antônio 253 7.01 - Igreja de N." Sr." do Parto 45 1.21 - Igreja do Senhor <strong>dos</strong> Passos 1 0.031.1 - Igreja da Ord. Terc. de N." Sr." da Conc. e Boa Morte 375 10.21.1 - Igreja da Ordem Terceira de São Domingos 388 10.6 41.1 - Igreja de N." Sr." do Rosá<strong>rio</strong> 243 6.61.1 - Igreja de Santo Elesbão e 'santa Efigênia 139 4.01,d - Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge 107 2.91.1 - Igreja de N." SSr da Lampa<strong>dos</strong>a 349 9.51.1 - Igreja do Senhor Bom Jesus do Calvá<strong>rio</strong> 241 6.62 - Igreja matriz da Candelária 8 0.22 - Igreja da Ordem Terceira de N." Sr." do Carmo 113 3.12 - Igreja de N." Sr." Mãe <strong>dos</strong> Homens 47 1.32 - Igreja de São Pedro 24 0.63 - Igreja matriz de São Jose 12 0.33 - Igreja de N." Sr." da Lapa do Conv. de N." Sr." do Carmo 3 0.13 - Igreja de N." Sr." do Bonsucesso 20 0.53 - Igreja de N." Sr." do Carmo, <strong>dos</strong> religiosos do Carmo 11 0.3 i3 - Igreja de Santa Luzia 13 0.34 - Igreja matriz de Santa Rita 20 0.54 - Igreja do mosteiro de São Bento 5 0.14 - Igreja de São Joaquim 5 0.15 - Igreja matriz de Santa<strong>na</strong> 13 0.35 - Igreja de Santo Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es 57 1.56 - Igreja matriz da freguesia de Inhaúma 2 0.057 - Igreja matriz de São Francisco do Engenho Velho 5 0.1TOTAL 3667 100.01 - Freguesia do Santissimo Sacramento (1.1 - Igrejas de irmandades/ordensterceiras de negros) - 2 - Freg. da Candelária - 3 - Freg. de São Jose -4 - Freg. de Santa Rita - 5 - Freg. de Santa<strong>na</strong> - 6 - Freg. de Inhaúma -7 - Freg. do Eng. VelhoFonte: ACMRJ - Livro de registros de dbitos dafieguesia do SantissimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812,1816, 1820,1824, 1828,1835,1845, 1850 (até 16/3)-!


principalmente aos que não tivessem condições de acesso, porexemplo, as sepulturas da Ordem Terceira de São Franciscode Paula ou ao convento de Santo Antônio - mais caras. Istonão significa, entretanto, que não ihes fosse facultado, em algunscasos, o acesso as sepulturas <strong>na</strong>s igrejas das irmandades denegros.Quanto aos escravos, o maior número de sepultamentos nosterrenos em volta da matriz se deu, provavelmente, em decorrênciade serem as suas covas mais baratas do que, por exemplo, as dasigrejas das irmandades, principalmente para quem não fosse irmão.Além do que, os forros seriam, mais que os cativos, os que formavamo maior contingente de afilia<strong>dos</strong> às irmandades de negros - comoexemplo, tem-se que, dentre os 819 irmãos registra<strong>dos</strong> no Livro deEntrada da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, entre asdécadas de 1840 e 1880, ape<strong>na</strong>s 11.8% foram declara<strong>dos</strong> comoescravos9*. Na hguesia de São Salvador de Campos <strong>dos</strong> Goitacases,no século XVIII, Sheilade Castro Fariag9 também encontrou, em suaanálise <strong>dos</strong> registros de óbitos, os escravos sendo, em sua maioria(83.4%), sepulta<strong>dos</strong> <strong>na</strong> igreja matriz, enquanto ape<strong>na</strong>s 16.6%foram desti<strong>na</strong><strong>dos</strong> as covas das irmandades. Segundo ahistoriadora, em relação aos livres, os escravos da freguesia,por questões fi<strong>na</strong>nceiras, tinham menos opções de escolha deirmandades para se afiliarem.A<strong>na</strong>lisando os locais de sepultura de acordo com aorigem, vemos que os c<strong>rio</strong>ulos, em sua maioria, iam para aigreja matriz (30.9%) e para a igreja da Ordem Terceira de SãoDomingos (14%), conforme se pode observar <strong>na</strong> Tabela 24. Osaíiicanos dividiram as suas preferências entre a Ordem Terceirade São Domingos, com 17.3% e a Irmandade da Lampa<strong>dos</strong>a,com 16.4%; sendo a igreja de Santo Elesbão e Santa Efigêniae a matriz buscadas em quinto lugar, com 10.1% e 1 O%,respectivamente. Tal diferenciação <strong>na</strong> busca das sepulturassugere uma maior integração do negro c<strong>rio</strong>ulo <strong>na</strong> comunidadeparoquial, enquanto o afiicano preferia igrejas mais específicas,como as das irmandades de negros. Segundo João José Reis,para o africano "viver entre parentes reais tomara-se dificilpelo trauma da escravidão, mas morrer numa família ritual, ecom ela passar ao Além tomou-se possível com a irmandade"lrn.


TABELA 23 - fndice das escolhas de sepulturas, segundo a condiçiio domorto, antes de 16/3/1850LIV. FOR. ESCR.SEPULTURA - ND % N O % N O %1. Igreja matriz do SS. Sacramento 107 21.0 46 lll8 259 29.01. Catacumbas da matriz do SS. Sacramento 1 0.1 8 2.0 12 1.31. Igreja da O. T. de Sào Fco. de Paula 46 9.9 3 0.7 7 0.81. Igreja da O. T. de Sào Fco. da Penitência 10 2.0 - - 1 0.11. Igreja da O. T. de Sào Fco. (?) 1 0.1 1 0.2 -1. Igreja de N." Sr." do Parto 2 0.3 19 4.6 8 1.01. Igreja do Senhor <strong>dos</strong> Passos 2 0.1 - - -1. Igreja do convento de santo AntGnio 58 11.2 4 1.0 5 0.6l.l.Ig.daO.T.deN."Sr."daConc~B.Morte 83 17.0 14 3.4 39 4.31 .I. Ig. da O. T. de S. Domingos 31 6.0111 26.6126 14.11.1. Igreja do Senhor Bom Jesus do Calvá<strong>rio</strong> 24 4.6 9 2.2 53 6.01.1. Igreja de N." Sr." do Rosá<strong>rio</strong> 35 6.7 55 13.2 99 11.11.1. Igreja de Santo Elesbào e Santa Efigênia 4 0.7 56 13.4 59 6.61.1. Catacumbas da ig. de S. Elesbão e S. Efigênia - - 1 0.2 -1.1. Igreja de S. Gonçalo Garcia e S. Jorge 21 4.0 12 2.9 32 7.61.1. Igreja de N." Sr." da Lampa<strong>dos</strong>a 42 8.1 68 16.3 144 16.12. Igreja matriz da Candelária - 2 0.5 4 0.42. Igreja da Ord. Terc. de N." Sr." do Carmo 21 4.0 1 0.2 1 0.12. Igreja de N.9Sr MMBe <strong>dos</strong> Homens 7 1.3 - - -2. Igreja de S. Pedro - 2 0.5 3 0.33. Igreja de S. Jos6 1 0.1 - - -3. Igreja de N." Sr." do Bonsucesso - 1 0.2 2 0.23. Ig. de N." Sr." do Carmo do conv. <strong>dos</strong> Carmelitas 5 1 .O - - 1 0.13. Igreja de Santa Luzia 3 0.5 2 0.5 3 0.34. Igreja matfiz de Santa Rita 2 0.3 1 0.2 1 0.14. Igreja do mosteiro de S. Bento 1 0.1 - - -4. Igreja de S. Joaquim 1 0.1 - - -5. Igreja matriz de Santa<strong>na</strong> 3 0.5 - - 2 0.25. Igreja de santo AntBnio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es 6 1.1 - - 13 1.46. Igreja matriz de Inhaúma - 1 0.2 -Cemite<strong>rio</strong> do Campo Santo da Misericórdia - - - 21 2.3TOTAL 516 100 417 100 895 1001 -Freguesia do Santlssimo Sacramento(1.1 - Igrejas de irmandadedordens terceiras de negros)2 - Freg. da Candelária3 - Freg. de São JosB4 - Freg. desanta Rita5 - Freg. de Santa<strong>na</strong>6 - Freg. de lnhaúmaFonte: ACMRJ- Livro de registros de óbitos dafieguesia do Santíssimo Sacramento/Riode Janeiro. Anosde 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835,1845, 1850 (até 1613)


TABELA 24 - índice das escolhas de sepulturas pelos negros, segundo aorigemSEPULTURACRIOUL. AFRIC.NO % NO %1. Igreja matriz do Santissimo Sacramento 185 28.6 57 9.81. Catacumbas da matriz do Santissimo Sacramento 15 2.3 10.21.1. Igreja da Ord. Terceira de São Francisco de Paula 6 1.0 3 0.51. Igreja da Ord. Terceira de São Francisco da Penitência 1 0.1 -1. Igreja de N.9r.8 do Parto 15 2.3 1 0.21. Igreja do convento de Santo Antônio 6 1.0 1 0.21. Catacumba da igreja do convento de Santo AntBnio 1 0.1 -1.1. Igreja da Ord. Terc. de N.8 Sr.' da Conc. e B. Morte 28 4.3 12 2.01.1. Igreja da Ord. Terc. de S. Domingos 89 14.0 101 17.31.1. Igreja do Senhor Bom Jesus do Calvá<strong>rio</strong> 25 4.0 17 2.91.1. Igreja de N? Sr? do Rosá<strong>rio</strong> 68 10.4 73 12.5c 1.1. Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 40 6.1 59 10.11.1. Catacumbas da igrejade Santo Elesbão e SantaEfigênia 1 0.1 -1.1. Igreja de S. Gonçalo Garcia e S. Jorge 24 3.6 17 2.91.1. Igreja de N.8 Sr? da Lampa<strong>dos</strong>a 65 10.0 96 16.42. Igreja matriz da Candelária - 3 0.52. Igreja da Ord. Terc. deN.a Sr.a do C mo 1 0.1 1 0.22. Igreja de S. Pedro 4 0.6 -3. Igreja de N.a Sr.8 do BonsucessoISta. C. da Misericórdia - - 2 0.33. Igreja de N."s' do C mo do convento <strong>dos</strong> Cmelitas 1 0.1 1 0.23. Igreja de Santa Luzia 2 0.3 1 0.24. Igreja matriz de Santa Rita 1 0.1 -5. Igreja matriz de Santa<strong>na</strong> 1 0.1 -5. Igreja de Santo Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es 10 1.5 3 0.5Cemitk<strong>rio</strong> do Campo Santo da Misericórdia 14 2.1 n 4.6Cemitt<strong>rio</strong> da Ord. Terc. de S. Fco. de Paula (Catumbi) 9 1.4 13 2.2Cemitt<strong>rio</strong> de São Francisco Xavier (Caju) 36 5.5 90 15.4Cemitk<strong>rio</strong> de São João Batista da Lagoa 3 0.5 4 0.7Cemitt<strong>rio</strong> de São Francisco Xavier do Engenho Velho - 1 0.2TOTAL 651 100.0 584 100.01 - Freguesia do Santissimo Sacramento(1.1 - Igrejas de irmandadeslordens terceiras de negros)2 - Freguesia da Candelária3 - Freguesia de São Josk4 - Freguesia de Santa Rita5 - Freeuesia de Santa<strong>na</strong>~onte:Ã~~lV- Livro de registros de dbitos dafreguesia do Santtssimo Sacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855,1860,1865, 1870,1875, 1880 e 1885.


Desse modo, a opção <strong>dos</strong> africanos pelas irmandades de"homens de cor" poderia estar relacio<strong>na</strong>da ao fato de elasconstituírem-se em um espaço de identidade do negro,principalmente o africano, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>I0'. A preferência <strong>dos</strong>c<strong>rio</strong>ulos pela igreja matriz significava uma aproximação maior,como já vimos através de outros exemplos, <strong>dos</strong> padrões dacomunidade <strong>dos</strong> livres, evidenciando uma maior inserção nouniverso da liberdade, mesmo que a condição fosseeventualmente de cativo.Como foi visto, a busca <strong>dos</strong> cristãos por uma sepulturaeclesiástica estava associada As concepçtjes acerca da sacralidadedo solo, onde, ao a<strong>br</strong>igo do templo de Deus e de seu séquito de anjose santos, deveriam os cadáveres bbdescansar" até a ressurreiçãoprometida para o "fim<strong>dos</strong> tempos"'02 .As fontes utilizadas neste estudo foram basicamente as cristãs,não permitindo identificar práticas aíiica<strong>na</strong>s de inumaqão. No entanto,isto não impede que os negros refai<strong>dos</strong> nos assentos católicos, querfossem c<strong>rio</strong>ulos ou &canos, não tivessem empreendido seus rituaispróp<strong>rio</strong>s, aindaque tenham dado um destino cristão ao cadáver. MaryKarasch aponta também para esta possibilidade, ao afirmar que ossepultamentos <strong>dos</strong> negros eram precedi<strong>dos</strong> de cerimôniasfunerárias a.fiica<strong>na</strong>s'O3 . 6Segundo Roger Bastide, o enterro e os rituais deseparação entre os <strong>vivos</strong> e os <strong>mortos</strong> entre os africanos adquiriaimportância fundamental <strong>na</strong> preservação <strong>dos</strong> cultos ancestrais;por trás daqueles rituais estava a idéia de que a "alma"/espírito<strong>dos</strong> faleci<strong>dos</strong> reuníam-se a grande família espiritual <strong>dos</strong>ancestrais no outro lado do oceano. Havia o cuidado de "renderaos <strong>mortos</strong> o culto que se lhe devia, a fim de que não sevingassem, para que não viessem perturbar seus filhos comdoenças ou pesadelo^"'^^.Na descrição de De<strong>br</strong>etIo5 do funeral de um soberanonegro, <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro (já referido <strong>na</strong> pági<strong>na</strong> 16 I),percebe-se a presença de elementos africanos no cerimonial:A este espetáculo turbulento, sucede a saída silenciosa <strong>dos</strong>amigos e das deputações, escoltando gravemente o corpo,2 3 4t


carregado numa rede coberta por um pano mortuá<strong>rio</strong>.( ...) Ocortejo dirige-se para uma das quatro igrejas mantidas porirmandades negras: a Velha SC, Nossa Senhora da Lampa<strong>dos</strong>a,Nossa Senhora do Parto ou São Domingos. Durante a cerimoniado enterro, o estrondo das bombas, o ruído das palmas, aharmonia surda <strong>dos</strong> instrumentos africanos acompanham oscantos <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, de ambos os sexos e todas as idades,reuni<strong>dos</strong> <strong>na</strong> praça diante do pórtico da igreja.IINesta passagem fica evidente a realização de um ritualcom expressivos elementos africanos - o barulho, as bombas,os saltos e as cab<strong>rio</strong>las, as palmas, os instrumentos musicais -o que permite supor a realização das cerimônias africa<strong>na</strong>s nonível privado, já que, publicamente, pelo menos no que tange aocomportamento festivo, elas não foram escondidas; paralelamente,ao mesmo tempo que isso tivesse ocorrido, o cortejo dirigia-se auma igreja para que fosse lá sepultado. Em sua descrição (eilustração) do funeral de uma negra po<strong>br</strong>e, já referidoanteri~rmente'~~ (<strong>na</strong> pági<strong>na</strong> 160 ), De<strong>br</strong>et mostra o cerimonial"festivo" que ocorria diante da igreja da Lampa<strong>dos</strong>alo7 .Segundo João José Reis, apesar das mudanças que muitos<strong>dos</strong> costumes mortuá<strong>rio</strong>s africanos sofreram ao longo daescravidão, boa parte foi mantida pelos escravos no Brasil,sofrendo, inclusive, empréstimos do ritual católico; de formaque as pessoas do candomblé, ainda hoje, são enterradassegundo as normas católicas e as normas africa<strong>na</strong>s, "com osacrifício da missa e de animais"'08 :No passado escravista, C possivel que uma dualidade entre opúblico (ritual católico) e o privadolsecreto (ritual africano)tenha caracterizado os funerais negros. Nem por isso, o ladopúblico de muitos deles deixou de desviar-se das regrascatólicas. Nas Mi<strong>na</strong>s Gerais de 1726, por exemplo, o bispo d.AntGnio de Guadalupe protestou que escravos africanos faziam'ajuntamento de noite com vozes e instrumentos em sufrágio deseus faleci<strong>dos</strong> ajuntando-se em algumas vendas, ondecompravam várias bebidas e comidas, e depois de comeremlançam os restos <strong>na</strong>s sepulturas'. O prelado dava assim,testemunho da tradição africa<strong>na</strong> de que os <strong>mortos</strong> devem levar


à sepultura oferendas propiciatórias, participando do banquetefestivo de despedida <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>.Ainda que se trate de um caso ocorrido <strong>na</strong> Bahia, éinteressante a citação de Roger Bastide - com base em Luís Vian<strong>na</strong>Filho (em O negro <strong>na</strong> Bahia),- de que quando da visita daInquisição a Bahia, em 18 16, Sebastião Barreto denunciou aospadres o costume <strong>dos</strong> negros de matar animais em seus enterrospara lavar os corpos em seu sangue, para que a alma, ao abando<strong>na</strong>ro corpo, fosse para o céu109. Em que pese a escolha <strong>dos</strong>epultamento cristão, por parte <strong>dos</strong> negros, havia, portanto, portrás destas práticas, elementos rituais &canos que interagiam comas práticas cristãs.Por questões de fortu<strong>na</strong> e ventura, nem to<strong>dos</strong> os <strong>mortos</strong>eram, antes de 1850, enterra<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s igrejas ou ao seu redor.Os escravos e homens livres po<strong>br</strong>es que não pertencessem asirmandades e/ou não pudessem pagar por uma cova oucatacumba de igreja; os justiça<strong>dos</strong>, a quem era vedado osepultamento em local sagrado; os indigentes e os não católicostinham como destino um <strong>dos</strong> vá<strong>rio</strong>s cemité<strong>rio</strong>s que existiram <strong>na</strong><strong>cidade</strong>.Quanto aos escravos, três possibilidades eram dadas: ocemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "negros novos", inicialmente no largo de SantaRita e, poste<strong>rio</strong>rmente, no Valongol'O ; o <strong>dos</strong> franciscanos, aopé do morro do convento de Santo Antônio, e o da Santa Casada Misericórdia.Segundo Vivaldo Coaracy, entre o século XVII e o iníciodo século XX, a parte sul do largo da Ca<strong>rio</strong>ca, entre a rua daCa<strong>rio</strong>ca (antiga rua do Piolho) e a ladeira de acesso às igrejas deSanto Antônio e de São Francisco da Penitência, havia ohospital da Penitência; sendo que, antes dele, fora aquele terrenoum cemité<strong>rio</strong>. Nele, a partir de 1665, os franciscanoscomeçaram a dar sepultura aos seus escravos faleci<strong>dos</strong>.Entretanto, devido as precárias condições com que algunssenhores enterravam seus cativos em lugares ermos da <strong>cidade</strong>,os frades decidiram a<strong>br</strong>ir o campo santo também para outrosescravos, que eles mesmos se encarregavam de enterrar"' .As "precárias" condições com que eram estabele'ci<strong>dos</strong>


os locais para sepultura <strong>dos</strong> escravos teriam levado àinterferência da Metrópole. Diante <strong>dos</strong> efeitos da epidemia deMiP,varíola, em 1694, o então <strong>gov</strong>er<strong>na</strong>dor Paes de Sande iniciouos acor<strong>dos</strong> com a Santa Casa da Misericórdia para que elaauxiliasse no serviço de enterros <strong>dos</strong> escravos, dando, assim,cumprimento à ordem régia de 23 de janeiro daquele ano. Em91696, a Irmandade da Misericórdia, em acordo com o <strong>gov</strong>erno,se comprometeu a dar sepultura aos escravos mediantepagamento pelos senhores de quatrocentos réis112. Instaladonos terrenos por trás do seu hospital, junto ao morro do Castelo,a Santa Casa da Misericórdia passou a dar sepultura aoscadáveres <strong>dos</strong> despossuí<strong>dos</strong>, <strong>dos</strong> indigentes, <strong>dos</strong> justiça<strong>dos</strong> e<strong>dos</strong> escravos. Com o tempo, no entanto, houve a necessidadede ampliá-lo, em razão de o terreno ter se tomado exiguo113.Até 1827, assim permaneceu, quando foi concedida àMisericórdia uma porção da chácara pertencente ao hospitalMilitar1 14. Em 1839, objetivando ampliar as o<strong>br</strong>as do novohospital, o provedor da Santa Casa da Misericórdia, JoséClemente Pereira, transferiu o então cemité<strong>rio</strong> para osarrabaldes do Caju, onde, a partir de 2 de julho, começou a se+ realizar o novo serviço de enterramento, de modo que, <strong>na</strong> igrejada Misericórdia e em suas respectivas covas e catacumbas,continuaram a ser sepulta<strong>dos</strong> somente os irmãos e pessoaslivre^"^.Na descrição do enterro <strong>dos</strong> negros, Luccock116 apontoupara a identificação de como eram sepulta<strong>dos</strong> os que tinhamcomo destino um destes cemité<strong>rio</strong>s da <strong>cidade</strong>, provavelmenteo da Santa Casa da Misericórdia, já que, segundo ele, o cadáver"devia ser transportado pela instituição responsável pelorespectivo cemité<strong>rio</strong>":Logo em seguida ao falecimento, costura-se o corpo dentro deuma roupa grosseira e envia-se uma intimação a um <strong>dos</strong> doiscemité<strong>rio</strong>s a eles desti<strong>na</strong><strong>dos</strong> para que enterre o corpo.Aparecem dois homens <strong>na</strong> casa, colocam o defunto numaespécie de rede, dependuram-no num pau, e, carregando-o pelasextremidades, levam-no através das ruas (...) Se acontece depelo caminho encontrarem com mais um ou dois que de formaidêntica estejam' de partida para a mesma mansão horrível,


p6em-nos <strong>na</strong> mesma rede e levam-nos juntos para o cemité<strong>rio</strong>.A<strong>br</strong>e-se transversalmente ali, uma longa cova, com seis pés delargo e quatro ou cinco de fundo; os corpos são nela atira<strong>dos</strong>sem cerimônia de espécie alguma, de atravessado e em pilhas,uns por cima <strong>dos</strong> outros, de maneira que a cabeça de um repousaso<strong>br</strong>e os pés do outro que lhe fica imediatamente por baixo, eassim vai trabalhando o preto sacristão, que não pensa nemsente, até encher a cova, quase que por inteiro, em seguida, p6eterra até para cima do nível.Provavelmente com intenção de evitar este destino,muitos escravos e libertos filiavam-se a irmandades de negrospara que, após a morte, pudessem ter seu corpo sepultado emsuas igrejas, <strong>na</strong>s covas ou catacumbas que estas possuíam <strong>na</strong>sigrejas matrizes ou em seus cemité<strong>rio</strong>s"' . Quando não afilia<strong>dos</strong>,ainda procuravam outras formas de conseguir pagar por umasepultura em uma das covas das. igrejas, ainda que neste casotivessem de proceder a arrecadação de esmolas para que o cadávertivesse sepultamento conveniente, como <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> descrita porDe<strong>br</strong>et do enterro de um negra po<strong>br</strong>e1I8.No caso <strong>dos</strong> estrangeiros cristãos, não católicos, lhes eradesti<strong>na</strong>do o cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> ingleses/protestantes, situado <strong>na</strong>Gamboa. Em função do "Tratado de Amizade", de 1810,estabelecido entre Portugal e Inglaterra, os <strong>br</strong>itânicosgarantiram, além <strong>dos</strong> privilégios excepcio<strong>na</strong>is no comércio, aliberdade de culto e de dar sepultura aos seus <strong>mortos</strong> emcemité<strong>rio</strong>s particulares <strong>na</strong> colônia <strong>br</strong>asileira, tendo ape<strong>na</strong>s aresssalva de que não poderiam dar as suas igrejas e capelas' aaparência de templo e nem buscar a conversão <strong>dos</strong> habitantes dopaís a sua religião'I9 . Nesse sentido foi construído um cemité<strong>rio</strong>desti<strong>na</strong>do aos ingleses, no morro da Gamboa, <strong>na</strong> rua do mesmonome. Há divergências quanto a data de sua fundação. VivaldoCoaracy diz ser em 1815 e Gaston Cruls, em 1811. A iniciativade seu estabelecimento teria sido do embaixahor <strong>br</strong>itânico LordStrangfordlZO. Segundo Gastão Crul~'~' :Alguns viajantes, como os ingleses Maria Graham e JohnWalsh, e o americano Thomas Ewbank, deslum<strong>br</strong>aram-se com


a beleza do sitio, tendo h frente um delicioso recorte daGua<strong>na</strong>bara, todo salpicado de ilhas. Diz Maria Graham, em1822, ser aquele um <strong>dos</strong> lugares mais bonitos por ela jh vistos(...) Este [Ewbank] mostra-se minucioso <strong>na</strong> descrição <strong>dos</strong> seustúmulos flori<strong>dos</strong>, das ruas bordadas de mangueiras, dasnunierosas árvores que lhe som<strong>br</strong>eiam os quadros (...).Em 1849, os terceiros de São Francisco de Paulaconstruíram seu cemité<strong>rio</strong> no Catumbi, em virtude de ascatacumbas de sua igreja terem-se tomado exíguas. Desti<strong>na</strong>doaos cadáveres de seus irmãos afilia<strong>dos</strong>, a ordem terceira teve,por ordens imperiais, que a<strong>br</strong>ir exceção para que, em funçãoda fe<strong>br</strong>e amarela, desse sepultilua a to<strong>dos</strong> os <strong>mortos</strong> para láenvia<strong>dos</strong>; situação que perdurou até o estabelecimento <strong>dos</strong>cemité<strong>rio</strong>s públicos - o de São Francisco Xavier, no Caju e ode São João Batista, <strong>na</strong> Lagoa - em 185 1.TABELA 25 - fndice <strong>dos</strong> locais de sepulturas, após 16/3/1850SEPULTURA No %1 - Igreja matriz do Santíssimo Sacramento 1 0.051 - Igrejas de irmandadeslordens terceiras 7 0.31 - Igrejas de convento 3 0.11 - Igrejas de irmandadeslordem terceira de negros 10 0.62 - Igrejas matrizes 3 0.12 - Igrejas de irmandadeslordens terceiras 4 0.19Cemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de S. Fco. de Paula (Catumbi) 534 25.5Cemité<strong>rio</strong> do campobSanto da Misericórdia (Caju) 57 2.7Cemité<strong>rio</strong> de São Rancisco Xavier (Caju) 1110 53.0Cemité<strong>rio</strong> de São João Batista da Lagoa 280 13.3Cemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de N." Sr." do Carmo (Caju) 3 7 1.8Cemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de S. Fco. da Penitência (Caju) 2 8 1.3Outros cemité<strong>rio</strong>s 18 0.8Sem referência 5 0.2TOTAL 2097 100.01 - Freguesia do Santissimo Sacramento2 - Outras freguesiasFonte: ACMRJ - Livro de registros de óbitos da freguesia do SantíssimoSacramento/Rio de Janeiro. Anos de 1850 (após 16/3), 1855, 1860,1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.


Em virtude da proibição <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas,em 1850, foram muito poucas as inumações nos templos, após16 de março, sendo a maioria <strong>dos</strong> cadáveres sepulta<strong>dos</strong> nocemité<strong>rio</strong> da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, noCatumbi, que teve um aumento significativo do número deenterramentos: do inexpressivo indice de 0.02% (vide Tabela22), saltou-se para'25.5%, como se percebe pela Tabela 25.A partir da criação <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s públicos e efetivadaa proibição <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas, pode-se perceberque o cemité<strong>rio</strong> de São Francisco Xavier foi o mais procuradopela população, com um indice de 53.0%, enquanto o cemité<strong>rio</strong>de São João Batista da Lagoa recebeu 13.3% <strong>dos</strong> cadáveres -índice reduzido, que se explica pelo fato de o mesmo estarlocalizado em uma região mais distante da área da freguesiado Santíssimo Sacramento.TABELA 26 - fndice das escolhas de sepultura, segundo a condiçiíodo morto, após 16/3/1850.SEPULTURA LIVRES FOR. ESCR.NO % NO % NO %1. Igreja da Ord. T. de São Franc. de Paula 1 0.2 1.1.Ig.daO.T.deN."Sr."daConc.eB.Morte 10.2 - - -1.1. Igreja de N." Sr." do Rosá<strong>rio</strong> 1 2.0 1 0.71.1. Igreja de S. Gonçalo e S. Jorge - - - 1 0.72. Igreja da Ord. Terc. de N." Sr." do Carmo 1 0.2 - -Cemitk<strong>rio</strong> do Campo Santo da Misericórdia 17 4.0 3 6.0 17 12.5Cemit da O. T. de S. Fco.de Paula (Catumbi) 18945.0 16 32.0 9 6.6Cemit. da O. T. de N." Sr." do Carmo (provi.) 1 0.2 - - -Cemitk<strong>rio</strong> de São Francisco Xavier (Caju) 17342.0 2856.0 96 70.7Cemitk<strong>rio</strong> de São João Batista da Lagoa 33 8.0 2 4.0 12 8.8Cemit. da O. T. de N." Sr." do Carmo (Caju) 1 0.2 - Cemitk<strong>rio</strong> da O. T. de Santo Antônio (Caju) 1 0.2 Cemit. de S. Fco. Xavier do Engenho Velho 2 0.4 Cemit. do hosp. de Pedro I1 (Praia Vermeiha) 1 0.2 - - -TOTAL 421 100 50 100136 1001 -Freguesia do Santissimo Sacramento(1.1 - Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros)2 -Freguesia da CandeláriaFonte: Registros de óbitos da peguesia do Santíssimo Sacramento/Rio de Janeiro.Anos de 1850 (Após 16/3), 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.


A<strong>na</strong>lisando as escolhas <strong>dos</strong> cemité<strong>rio</strong>s de acordo com acondição, vemos, segundo a Tabela 26, que a maior parte <strong>dos</strong>livres optou pelo cemité<strong>rio</strong> de São Francisco de Paula, com46.6%; enquanto 39.4%, foram para o de São Francisco Xavier,no Caju. Durante a epidemia, os forros (32%) foram, mais queos escravos, sepulta<strong>dos</strong> no cemité<strong>rio</strong> do Catumbi, juntamentecom os livres, sendo desti<strong>na</strong><strong>dos</strong> ao cemité<strong>rio</strong> de São FranciscoXavier em menor quantidade que os escravos, 56% contra 70%<strong>dos</strong> cativos, o que evidencia uma certa diferenciação <strong>dos</strong>libertos com relação aos escravos no acesso as sepulturas. Osescravos, por sua vez, foram para o Campo Santo daMisericórdia, no Caju, local <strong>dos</strong> mais po<strong>br</strong>es. De modo geral,já não havia mais a possibilidade de os negros serem sepulta<strong>dos</strong><strong>na</strong>s covas das suas irmandades, mesmo porque, estas nãoconstruíram cemité<strong>rio</strong>s privativos no inte<strong>rio</strong>r do cemité<strong>rio</strong>geral. O cemité<strong>rio</strong> público, dali em diante seria seu destinoquase que o<strong>br</strong>igató<strong>rio</strong>.Após 1850, o cerimonial fúne<strong>br</strong>e aparentemente não semodificou muito em relação ao ante<strong>rio</strong>r, como se percebe nestapassagem ma~hadia<strong>na</strong>'~~ :Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sanchaquis despedir-se do marido, e o desespero daquele lanceconstemou a to<strong>dos</strong>. Muitos homens choravam também, asmulheres todas. S6 Capitu, amparando a viúva, parecia vencersea si mesma (...)- Vamos,. são horas (...)Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-loe eu peguei numa das argolas; rompeu o alarido fi<strong>na</strong>l. (...) Nocemitk<strong>rio</strong> tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as correias,e ajudar a levar o féretro à cova. (...) Descido o cadáver a cova,trouxeram a cal e a pá (....)Se o sentido do veló<strong>rio</strong>, cerimônia que antecedia osepultamento, não se modificou estruturalmente, o mesmo nãopode ser dito a respeito do cortejo. Na medida em que oscemité<strong>rio</strong>s públicos do Caju e da Lagoa passaram a ser asúnicas possibilidades de sepultura, o itinerá<strong>rio</strong> e a forma deacompanhamento sofreriam mudanças. Com a transferência da


sepultura para longe da área central da <strong>cidade</strong>, o cortejodemandava um trajeto maior, comparativamente ao que antespoderia ser feito da casa para a igreja, o que implicou a reduçãodo número de acompanhantes da cortejo fúne<strong>br</strong>e ao cemité<strong>rio</strong>.Isto, provavelmente, exerceria influência so<strong>br</strong>e o ritual ..funerá<strong>rio</strong>, e implicaria algumas transforma.ções no mesmo, a '.ponto de Lima Barret~'~~, nos primeiros anos do século XX,descrever, da seguinte forma, a ce<strong>na</strong> de um enterro ocorridono cemité<strong>rio</strong> público do Caju:. 'No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetradoduma indiferença glacial. (...)(...) Afi<strong>na</strong>l, veio a hora do saimento. A aglomeração aumentou<strong>na</strong> porta. Algumas mulheres choravam. Gonzaga de Sá ia evinha, tomando as últimas disposições. Fechou-se o caixão.Houve um pequeno ruído, seco, vulgar, exatamente igual ao dequalquer coisa que se fecha (...) E foi s6!Fomos levando o cadáver pela rua empedrouçada, trôpegos,revezando-nos, aborreci<strong>dos</strong> e tristes sob o claro e vito<strong>rio</strong>so olharde um firme sol de março. Pelo caminho [eram nove horas damanhã], os transeuntes mecanicamente se desco<strong>br</strong>iam, olhavamas gri<strong>na</strong>ldas, o aspecto do acompanhamento, medindo bem dequem era e de quem não era. (...) e o caixão foi pesando até quedescansamos nos bancos da estação. Em <strong>br</strong>eve o trem correuconosco e o morto pelos rails afora, velozmente atravessandoas paragens suburba<strong>na</strong>s., O carro fúne<strong>br</strong>e era o primeiro (...)Saltamos enfim <strong>na</strong> Central. Tínhamos vindo oito e s6 quatroiriam ao cemité<strong>rio</strong>. (...) Colocamos o esquife no coche e fomostomar lugar <strong>na</strong> velha caleça de aluguel. (...)Seguido por duas caleças de acompanhamento, o coche roloupelos paralelepípe<strong>dos</strong>, tomando a direção do cemitk<strong>rio</strong> do Caju.(...) Rolávamos agora pela rua de são Cristóvão, cruzávamonoscom os bondes do bairro (...)- Creio que, se tivéssemos coragem das nossas opiniões,decretávamos um caminho especial para o cemité<strong>rio</strong> - talvezsubterrâneo. S6 assim, não teríamos <strong>na</strong> vida esse constanteespetáculo que nos desgosta! (...)E não me disse mais <strong>na</strong>da até chegarmos ao portão do cemité<strong>rio</strong>,quando meavisou que ia tratar <strong>dos</strong> atos administrativosindispensáveis A fi<strong>na</strong>lização do enterro. Seguimos o caixãoso<strong>br</strong>e a carreta mortuária, que os emprega<strong>dos</strong> impeliamprofissio<strong>na</strong>lmente, em <strong>br</strong>eve, Gonzaga de Sá se nos veio juntar.


íamos pela altura de meio-dia. (...) Chegamos em <strong>br</strong>eve B beirada cova funda (...) O caixão desceu rapidamente pela sepulturaabaixo. As correntes tilintaram aborrecidas daquela fai<strong>na</strong> queexerciam há tantos anos. Lancei a minha pá de cal, (...) vimcom Gonzaga de Sá andando vagarosamente até B porta docemitd<strong>rio</strong> (...)Após o veló<strong>rio</strong> de uma perso<strong>na</strong>gem do romance,residente em subúrbio da <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, seu caixãoseria levado em cortejo por ape<strong>na</strong>s oito pessoas até a estação detrem, sendo que, de lá, somente quatro delas o conduziriam aocemité<strong>rio</strong> do Caju. Mais significativas que isso foram as reaçõesdiante da passagem do cortejo fhe<strong>br</strong>e pelas ruas: as atitudes <strong>dos</strong>passantes - que antes eram mencio<strong>na</strong>das como efusivas epermeadas de cu<strong>rio</strong>sos, muitos <strong>dos</strong> quais, contritos - foram,<strong>na</strong>quele momento, no romance, apontadas como "mecânicas". Eo espetáculo que era assistir ao cortejo, agora transforma-se emuma ce<strong>na</strong> "desgostosay', a qual era desejo que fosse evitada. Muitoprovavelmente esta tenha sido uma ce<strong>na</strong> experimentada pelo autor<strong>na</strong>queles anos iniciais do século XX.Com o passar das décadas, possivelmente, as alteraçõesque a lei de 1850 infligira aos sepultamentos alcançariam,gradativamente, o ritual como um todo. Além do cortejo, asalterações nos padrões das vestimentas funerárias podem servistas como indicadoras de tais mudanças, <strong>na</strong> medida em quehouve uma considerável redução no uso das mortalhas de santoe, por outro lado, um crescimento do número de cadáveressendo amortalha<strong>dos</strong> com suas roupas de uso/seculares,evidenciando modificações nos costumes tradicio<strong>na</strong>is depreparação do morto para a "passagem". Si<strong>na</strong>is de possíveismudanças <strong>na</strong> concepção cristã de morte?


NOTASVAN GENNEP, Arnold. op.cit., pp. 126- 140.RODRIGUES, José Carlos. op.cit., pp.4.5-46.Idem, p.47; REIS, João José. op.cit., p.139.REIS, João José. op.cit., p.89.' RODRIGUES, José Carlos. op.cit., pp.416 e 49.ASSIS, Machado de. Esaú e Jacd. Rio tle Janeiro: Ediouro, sld. (ColeçãoPrestígio) p. 13 1.AS Constituições primeiras do arcctbispado da Bahia (documentocanônico mais usado pelo clero no Brasil nos século XVIII e XIX, <strong>na</strong>ssuas atividades pastorais, resultaraim do único sínodo diocesanorealizado no Brasil colônia, em 1707, em Salvador - sede do únicoarcebispado existente no Brasil até 1892) deu atenção aos escravos,determi<strong>na</strong>ndo aos senhores a o<strong>br</strong>igação de darem sepultura e os demaissocorros espirituais aos seus cativos. A este respeito ver REIS, JoãoJosé. op.cit.,pp.173 e 106-1 10.VIDE, Sebastião Monteiro da. Constitiiriçõesprimeiras do arcebispadoda Bahia feitas, e orde<strong>na</strong>das pelo ilustríssimo e reverendíssimosenhor Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo do dito arcebispado,e do Conselho de Sua Majestade, propostas e aceitas no sínododiocesano, que o dito senhor cele<strong>br</strong>ou em I2 de junho de 1707.Coim<strong>br</strong>a: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. TítuloXXXIII, c.123, p: 54.Desde o século XIII, e, so<strong>br</strong>etudo, de:sde o Concílio de Trento, que aabsolvição era dada logo após a coiifissão, seguindo-se então e sóentão a penitência. Cf. VOGEL, Cyrille. Le pécheur et lu pénitenceau Moyen Age. Paris: Cerf, 1969.'OVIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Título MIII, c.85, pp.67-68I' A este respeito vale lem<strong>br</strong>ar o tema tlo Auto da alma, onde a Igrejaera a estalagem para os viandantes e a mesa, o altar, e o alimento, aeucaristia. Cf. VICENTE, Gil. Auto da alma. Lisboa: Livraria DidácticaEditora, 196 1.


l2 SICARD, Damien. A morte do cristão in: MARTIMORT, Aimt Georges(org.) A Igreja em oração: introdução à liturgia <strong>dos</strong> sacramentos.Petrópolis: Vozes, 1981. p. 196." Apud SICARD, Darnien. op.cit., La liturgie de lu mort dans l'tglise latim,des origines a Ia réforme carolingienne. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileiraBrasilia: iNL; Munster: AshendoríT, 1978.l4VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Titulo XXIV, c.86 e TituloXXXVI, c. 139, p.36.SICARD, Damien. op.cit., p.200.l6 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., pp.37 e 59.l7 Idem. Titulo XLVII, cânokes 191, 193, 194, 195 e 197, pp.8 1-83.REGO, Jost Pereira. Esboço histórico, pp. 100-101.Cf a este respeito, FRITSCH, Lilian de Amorim. Palavras ao vento: aurbanização do Rio imperial in: Revista do Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF,mai./ago. de 1986. p.77.20 MGB - &vosição de mohbm, p.3.2' Segundo os da<strong>dos</strong> do primeiro censo oficial <strong>br</strong>asileiro, realizado em1872, utilizado por Francisco Gomes, para uma população diocesa<strong>na</strong>(em 1850, a diocese compreendia, altm do atual estado do Rio deJaneiro: os do Espírito Santo, Santa Catari<strong>na</strong> e a Zo<strong>na</strong> da Mata mineira) de1.635569 habitantes, haveria cerca de418 padres e religiosos, altm deles,5 1 religiosas. Cf GOMES, Francisco Jost Silva. op.cit., pp.462-463.22 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Título XLVII, c. 192. p.8 1.23 Não consegui desco<strong>br</strong>ir a existência de surto epidêmico,<strong>na</strong> <strong>cidade</strong> doRio de Janeiro, no ano de 1845, que poderia justificar este alto indicede mortalidade entre os livres. Pelo contrá<strong>rio</strong>, José Pereira Rego afirma queneste ano não houve epidemias <strong>na</strong> <strong>cidade</strong>, tendo existido somente 'inol6stiasmais ou menos graves, e As vezes frequentes, segundo o predomíniodas condições atmosftricas". Cf. REGO, Jost Pereira. Esboço hktórico,p.43.24 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A colônia em movimento. Fortu<strong>na</strong>e família no cotidiano colonial (sudeste, século XVIII). Niterói:UFF,mimeo., 1994. p.502. (Tese de doutorado)


25 REIS, João Jose. op.cit., p. 1 10.26 LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro. Docapital comercial ao capital industrial e fi<strong>na</strong>nceiro. Rio de Janeiro:IBEMEC, 1978. p.368. A autora unifica os livres e os libertos, dai agrande diferença entre os índices de livres e de escravos. Infelizmente,ela não conseguiu montar um quadro semelhante para as demais décadas <strong>dos</strong>éculo, o que nos possibilitaria ter uma visão mais abmgente.27 Cf. a este respeito, os da<strong>dos</strong> de LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. op.cit.,pp.124-126 e 225-228 e de KARASCH, Mary. op.cit., pp.60-66.28 AS irmandades do Santíssimo Sacramento, responsáveis por tudo quetivesse relação com o Santissimo Sacramento <strong>na</strong>s paróquias, tinhamcomo função, dentre outras, a o<strong>br</strong>igação de estarem presentes noacompanhamento do viático à casa do moribundo, juntamente com opároco. As constituições primeiras do arcebispado da Bahiarecomendavam a instituição da devoção ao Santissimo Sacramento<strong>na</strong>s paróquias. Cf. REIS, João Jose. op.cit., p. 107.29 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.(Col. Prestígio) pp.49-50.30 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Título XXIX, c.102 e TituloXLVIII, c.198. pp. 46-47 e 83.3' DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., p.166.32 BN - Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento daFreguesia de sua Invocação. Antigamente freguesia da sé catedraldo Rio de Janeiro. Reformado, e de novo organizado. Rio de Janeiro:Typ. do Diá<strong>rio</strong>, 183 1.33 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Titulo XXIX, c.105, p.48.34 Ver ilustração p. 193" DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., p. 166.36 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo <strong>dos</strong> vice-reis. Rio de Janeiro:Ed. Conquista, 4". ed., 1956 (vol. 1). pp. 44-45 e MORAES FILHO, Mello.Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia/SãoPaulo:EDUSP, 1979. pp.2 15-2 17.37 MORAES FILHO, Mello. op.cit., pp.215-217


Idem, p.217; EDMUNDO, Luiz. op.cit., p.45; VIDE, SebastiãoMonteiro da. op.cit., p.47.39 REIS, João Jose. op.cit., p.105. So<strong>br</strong>e a menção àpresença do barulho<strong>na</strong>s descriçaes, ver MORAES FILHO, Mello. op.cit., p.217; DEBRET,Jean Baptiste. op.cit., p.167;40 DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., p.167.41 VOVELLE, Michel. Piété baroque et déchristianisation en Provenceau WIIIe siècles. Paris: Gallimard, 1978. pp.85-100.42 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Título XXIX, c.107 e TituloXLVIII, c.200, pp. 48 e 84.43 Idem. p.85." EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia/SãoPaulo:EDUSP, 1976. p.58. Ewbank, tendo deixado Nova York, emdezem<strong>br</strong>o de 1845, partiu para o Brasil, tendo aqui chegado em janeirode 1846. Desenhista e escritor, ficou pouco tempo em terras <strong>br</strong>asileiras,partindo em agosto do mesmo ano para Nova York.45 REIS, Jogo Jose. op.cit., p. 123.47 EWBANK, Thomas. op.cit., pp.58-59.48 REIS, João Jose. op.cit., p. 120.49 A este respeito, ver o capítulo 1 de OLIVEIRA, Anderson JosC Machadode. Devoção e caridade: as irmandades religiosas no Rio de Janeiroimperial (1840-1889). Niterói:UFF, 1995. (Dissertação de mestrado).50 São Francisco, chamado tambCm, da Penitência e das Chagas, foi osanto fundador da ordem mendicante conhecida por Ordem <strong>dos</strong> FradesMenores. O santo de Assis viveu no seculo XIII. São Francisco dePaula, <strong>na</strong>scido <strong>na</strong> Calá<strong>br</strong>ia, em Paola, no sCculo XV, e que viveu grandeparte da sua vida e morreu <strong>na</strong> França, foi o fundador da Ordem <strong>dos</strong>Mínimos, as quais nunca vieram para o Brasil - <strong>na</strong> ColGnia e no ImpC<strong>rio</strong>- somente sua ordem terceira, cuja igreja da Corte se encontra nolargo de São Francisco. No caso de são João Evangelista, trata-se doapóstolo e discípulo de Jesus. Já são João, sem nenhuma outra menção,penso tratar-se do Precursor, do Batista.


FARIA, Sheila Siqueira de Castro. op-cit., p.506.52 REIS, João JosC. op.cit., p.118; RODRIGUES, Cláudia. Funeraissincréticos: práticas fúne<strong>br</strong>es no Brasil escravista. Niterói,mimeo, 1995. (Texto apresentado no XVIII Simpósio daANPUH, em Recife).. s3 REIS, João JosC. op.cit., p. 125.54 THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. MCxico:Fondode Cultura Económica, 1983. p.523.ss Idem, pp.523-524.56 SANTOS, Jua<strong>na</strong> Elbein <strong>dos</strong>. op.cit., pp.78-79.57 REIS, João JosC. op.cit., p. 126.58 ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente. Estu<strong>dos</strong> so<strong>br</strong>e aescravidão urba<strong>na</strong> no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis: Vozes,1988. pp.65-66.59 Cf. CHARTIER, Roger. op.cit. A respeito do uso que faço desteconceito, ver a Parte I deste livro, item: Familiaridade entre <strong>vivos</strong> e<strong>mortos</strong> <strong>na</strong> Corte.60 WACHTEL, Nathan. A aculturação in: LE GOFF, ~ac~ues (org.)História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979.pp.113-114.6' VOGEL, Arno. A galinha-dlAngola: iniciação e identidade <strong>na</strong>cultura afro-<strong>br</strong>asileira. Rio de Janeiro: Pallas: FLACSORúiterói:EDUFF, 1993. p.167. Estes da<strong>dos</strong> vêm mostrar a possibilidade desuperar as concepções tradicio<strong>na</strong>is acerca do sincretismo religioso,<strong>na</strong>s quais o fenomeno é associado a dois tipos de comportamento donegro: o primeiro, significando uma introjeção "a-critica" <strong>dos</strong> valoressenhoriais/domi<strong>na</strong>ntes, e o segundo, implicando a elaboraçfío de estratCgiasdissimulatórias frente à Igreja católica, que lhe permitissemanter, às escondidas, seus cultos de origem. Roger Bastide foi um<strong>dos</strong> que difundiu esta concepçiio de sincretismo. Para ele, <strong>na</strong> medidaem que o escravo teria sido "coisificado" e submetido, só teria restadoceder à religião do grupo domi<strong>na</strong>nte. Quando não, so<strong>br</strong>aria aos negrosa tática da "dissimulação", com o intuito de integrar-se à sociedade<strong>dos</strong> "<strong>br</strong>ancos", fosse pela forma cultural - adesão ao catolicismo - oupela biológica - purificação do sangue, atravCs da mestiçagem. Por


mais que ele afirme que a aculturação tambCm teve a sua contramão<strong>na</strong> transferência de traços culturais africanos para a cultura luso<strong>br</strong>asileira,o fato C que a dissimulação, enquanto estratkgia social, teriaocorrido em função de o catolicismo ter permanecido de mo<strong>dos</strong>uperficial <strong>na</strong>s práticas religiosas do negro. Ter-se-ia ape<strong>na</strong>sso<strong>br</strong>eposto à religião africa<strong>na</strong>, no período colonial, sem substituí-la,de forma que o culto ancestral teria continuado "à som<strong>br</strong>a da cmz, dacapela do engenho e da igreja urba<strong>na</strong>". Cf. BASTIDE, Roger. Asreligiões africa<strong>na</strong>s no Brasil. Contribuição a uma sociologia dasinterpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1989. pp.99- 100.O caminho inverso ao apontado por esta interpretação C o que vê nosincretismo uma prática que traz em si a apropriação, pelos negros,de forma consciente e autônoma, <strong>dos</strong> elementos da religiosidadeafrica<strong>na</strong> e católica, produzindo algo ao mesmo tempo próximo ediferente de suas matrizes, e que se constituía 'em uma identidadereligiosa <strong>dos</strong> negros <strong>na</strong> sociedade escravista.EWBANK, Thomas. op.cit., p.59.63 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Titulo XLV, cânones 8 12, 8 13e 814. pp.287-288." IHGB - Exposição de motivos, p.5.6s Idem, pp.3-6.66 VIDE, Sebastião Monteiro da. op.cit., Título XLV, 815 p.288.67 BOSSY, Jonh. A cristandade no ocidente 1400-1 700. Lisboa: Ed.70, 1990. p.43.DEBRET, Jean Baptiste. op.cit.,69KIDDER, Daniel Parish. Reminiscéncias de viagens epermanências <strong>na</strong>s províncias do Sul do Brasil. BeloHorizonte:Itatiaia/São Paulo:EDUSP, 1980. Nascido em 181 5,em Nova York, Kidder, apesar de não pertencer a uma famíliametodista e de seu pai ter-se oposto a que ele adotasse taldoutri<strong>na</strong>, converteu-se e resolveu ser pastor. Tendo aceitado ocargo de missioná<strong>rio</strong> no Brasil, pela American Bible Society;embarcou para o Rio de Janeiro em 1837, acompanhado de suaesposa. Em, 1840, falecendo sua mulher, resolveu retor<strong>na</strong>r aosEsta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong>, onde publicou, em 1864, três livros so<strong>br</strong>e oBrasil.70 EWBANK, Thomas. op.cit.


71 LUCCOCK, John.,op.cit.72 MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. op.cit., p. 149.73 REIS, João Jose. op.cit., p.138.74 ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento demilicias. Rio de Janeiro: Ediouro, sld. (Coleção Prestígio) p.117.75 REIS, João Jose. op.cit.76 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Consideraç6es so<strong>br</strong>e a pompa fúne<strong>br</strong>e <strong>na</strong>capitania das Mi<strong>na</strong>s - seculo XVIII in: Revista do Departamento deHistória da UFMG, 4, (1987). pp. 13-14.77 AZEVEDO, Aluísio de. Casa depensão. Rio de Janeiro: Ediouro, sld.(Coleção Prestigio) pp. 185- 186.78 ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó, p. 14 1.79 Idem. p. 14 1.ASSIS, Machado de. Memóriaspóstumas de Brás Cubas, p.54.81 RODRIGUES, Jose Carlos. op.cit., p. 1 18.82 AZEVEDO, Aluísio. Casa depensão, pp. 124-125.EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Ed.Conquista, 1957. (Vo1.2) pp.387-388.84 DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., p. 177. Ver ilustração ("Enterro de umanegra") <strong>na</strong> pági<strong>na</strong> 16085 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo <strong>dos</strong> vice-reis, p.83.86 ARIÈS, Philippe. op.cit., p.37.87 Idem, p.4 1.88 Idem.89 Idem.90Ao me referir a "negros", estarei entedendo to<strong>dos</strong> os indivíduos " decor", sejam pretos, mulatos, par<strong>dos</strong> etc.


91FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias, p.354.92EWBANK, Thomas. op.cit., p.88.93 DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., p.208.94 EWBANK, Thomas. op.cit., p. 88.95 Segundo Ewbank, o Cônego tivera ambições pollticas, da mesma formaque teve fama cientlfica e monástica. Mem<strong>br</strong>o da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>,tomou parte ativa <strong>na</strong> Independência e incitou d. Pedro I a sssumir otitulo de imperador, por ser mais imponente que o de rei. Cf.EWBANK, Thomas. op.cit., p.90.96 CRLTLS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro. Notícia histórica edescritiva da <strong>cidade</strong>. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1965. (t.11) p.578;COARACY, Vivaldo. op.cit., p. 286.97 FAZENDA, José Vieira. Divisão territorial do Distrito Federal em suaevolução histórica in: Consolidação das leis e posturas municipais.Rio de Janeiro: 1905. pp. 288-293.98 Cf. OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Santos negros e negrosdevotos: a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio deJaneiro (1840-1888). Rio de Janeiro: mimeo, 1995 (Texto apresentadono XVIII Simpósio da ANPUH, em Recife).99 FARIA, Sheila Siqueira de as& op.cit., pp.5 1 1-5 12.'O0 REIS, João José. op.cit., p. 198.'O1So<strong>br</strong>e a irmandade de negros como um espaço de identidades culturais<strong>dos</strong> negros <strong>na</strong> Corte, ver OLIVEIRA, Anderson José Machado de.Santos negros e negros devotos ... pp.3-4.'O2 REIS, João José. op.cit., p. 17 1.'O3 KARASCH, Mary. op.cit., p.86.'O4 BASTIDE, Roger. op-cit., p. 185.'O5 DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., pp. 178- 179. Ver ilustração p. 161'O6Idem.'O7 DEBRET, Jean Baptiste. op.cit., pp. 178-1 79. Ver ilustração p. 160


5'O8 REIS, João José. op.cit., p.160. A respeito da interação entreas práticas africa<strong>na</strong>s e católicas, ver também FARIA, Sheila deCastro. op.cit., p.498.'O9 Idem, p. 186.'I0So<strong>br</strong>e este cemité<strong>rio</strong>, ver parte I, O medo da contami<strong>na</strong>çãopelos <strong>mortos</strong> e o fim <strong>dos</strong> sepultamentos <strong>na</strong>s igrejas."I COARACY, Vivaldo. op.cit., pp. 1 18- 1 19.'I2FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias, p.347 eCOARACY, Vivaldo. op..cit., p.38 1.I!I3 COARACY, ~ivaldo. op.cit., p.383.r12'122iiFAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias, p.348. SegundoVivaldo Coaracy, pelo motivo de seu terreno ser exíguo,já em 1722 cuidou-se da instituição de um cemité<strong>rio</strong> exclusivopara os escravos, do que teria resultado o estabelecimentodo cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "pretos novos". Cf. COARACY,Vivaldo. op.cit., p.383.'I5 FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias, p. 349.LUCCOCK, John.op.cit.,p.39."' SCARANO, Julita, op.cit., p.55 e KARASCH, Mary.op.city., pp.86,164 e 259.Il8 Vide supra itens Visões de morte e do além-túmulo e Da morteao morto: costumes fúne<strong>br</strong>es <strong>na</strong> Corte. So<strong>br</strong>e a arrecadaçãode esmolas para o enterro de negros, ver também KARASCH,Mary.op.cit.,pp.86 e 259."9 CRULS, Gastão,op.cit.,p.369.I2O Idem,p.37 1 e COARACY, ~ivaldo.o~.c"it.,p.44 1.CRULS, Gastão.op.cit.,p.37 1.ASSIS, Machado. Dom Casmurro, pp.134- 135.5 12' BARRETO, Lima. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Riode Janeiro: Ediouro, s/d. pp.63-65.(col. Prestigio.)


Ao longo das primeiras décadas do século XIX,principalmente a partir da chegada da família real, em 1808,a <strong>cidade</strong> do Rio de Janeiro, tor<strong>na</strong>da Corte, passou por umprocesso de mudança em vá<strong>rio</strong>s de seus aspectos. Aurbanização foi um deles. Incentivada pela <strong>na</strong>scentemedici<strong>na</strong> social, configurou-se numa ação que visava àpromoção da higienização <strong>dos</strong> espaços públicos, com vistasà prevenção de doenças.Um <strong>dos</strong> elementos enfoca<strong>dos</strong> pela políticanormalizadora <strong>dos</strong> espaços e comportamentos urbanos foi acrítica à prática <strong>dos</strong> sepultamentos no inte<strong>rio</strong>r das <strong>cidade</strong>s.Passou-se a acreditar que estes eram prejudiciais à saúde<strong>dos</strong> indivíduos, em função <strong>dos</strong> miasmas produzi<strong>dos</strong> pelasema<strong>na</strong>ções cadavéricas. As sepulturas deveriam, em funçãodisto, ser elimi<strong>na</strong>das do inte<strong>rio</strong>r e das proximidades dasigrejas. O desenvolvimento desta concepção em muitocontribuiu para a formação e difusão do medo dacontami<strong>na</strong>ção <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> pelos <strong>mortos</strong>, que culminou <strong>na</strong>transferêncià <strong>dos</strong> sepultamentos para longe <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, coma criação, em 1850, de cemité<strong>rio</strong>s extramuros. Medo estecada vez mais reiterado, <strong>na</strong> década de 1850, peloaparecimento das três grandes epidemias do século XIX -fe<strong>br</strong>e amarela (1 850), cólera (1 855) e fe<strong>br</strong>e amarela (1 860)- cujos altos índices de mortalidade foram imputa<strong>dos</strong> aosmiasmas, produzi<strong>dos</strong> pelo grande número de cadáveres quesuperlotavam a <strong>cidade</strong>.Esta transformação <strong>dos</strong> locais de sepultura foi o pontoculmi<strong>na</strong>nte de um processo em que a sensibilidade espiritual,a fé e a percepção do mundo, sob a pressão da emergentesecularização, intensificada pela epidemia e pelas posturasdo "saber médico" e do Estado, teriam incidido so<strong>br</strong>e a


sensibilidade olfativa <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong> em relação aos <strong>mortos</strong>. Emfunção deste processo, o medo da contami<strong>na</strong>çãotransformaria a secular relação de proximidade/vizinhançadas sepulturas com as residências. A antiga relação defamiliaridade foi abalada.O adensamento populacio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> em constanteexpansão representou um elemento importante nesta transformação.Para os <strong>vivos</strong>, os <strong>mortos</strong> e suas sepulturas competiam com elespelos mesmos espaços, devendo, por isso, ser remaneja<strong>dos</strong> paralocais mais distantes. Ora, numa relação de vizinhança cujosalicerces foram que<strong>br</strong>a<strong>dos</strong>, as atitudes de intolerância olfativa porparte de alguns moradores da <strong>cidade</strong>, com relação aos <strong>mortos</strong>,apresentar-se-iam como necessárias, afi<strong>na</strong>l, seus antigos"companheiros" constituíam, neste momento, ameaça a sua saúde- bem cada vez mais considerado.Os <strong>mortos</strong>, que antes compartilhavam do espaço <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>,da <strong>cidade</strong> <strong>dos</strong> <strong>vivos</strong>, deveriam ser desloca<strong>dos</strong> para locais maisdistantes do centro urbano. Tal mudança de atitudes com relaçãoaos <strong>mortos</strong> evidencia os traços do desenvolvimento de umaconcepção individualista - si<strong>na</strong>is <strong>dos</strong> tempos modernos - queconferia a vida e aos <strong>vivos</strong> um sentido p<strong>rio</strong>ritá<strong>rio</strong>, restando aos<strong>mortos</strong> "manterem-se" no seu novo "lugar", sem incomodar os<strong>vivos</strong>. Ao afirmar isto, não quero dizer que, antes, os <strong>vivos</strong> tambémnão estivessem no centro das atenções. Com efeito, toda aquelaprofusão de sentimentos e de atitudes diante da morte também eradesti<strong>na</strong>da aos <strong>vivos</strong>, que visavam a sua "saúde espiritual". O quepareceu mudar neste momento foi que a saúde física passou apredomi<strong>na</strong>r so<strong>br</strong>e a saúde espiritual no rol de suas preocupações.A vida e os <strong>vivos</strong> passaram, a partir de então, a ser o alvo dasatenções; a morte e os <strong>mortos</strong> seriam, doravante, relega<strong>dos</strong> asinstâncias do privado.Os reflexos dessa mudança de idéias foram senti<strong>dos</strong> <strong>na</strong>modificação que, com o tempo, surgiria, por exemplo, noscortejos e acompanhamentos fúne<strong>br</strong>es. Estes teriam, aospoucos, sua extensão reduzida. O que até então fora o ápicedo cerimonial funerá<strong>rio</strong>, apresentar-se-ia como algo muitasvezes solitá<strong>rio</strong> - lem<strong>br</strong>o o acompanhamento que teve o caixãodo compadre de M.J. Gonzaga de Sá, no romance de Lima


Barreto. Dada a distância a percorrer, da casa ao cemité<strong>rio</strong>,poucos seriam os que acompanhariam o cortejo, principalmentepara os que não tivessem condições fi<strong>na</strong>nceiras de alugar meiosde transporte para levar e acompanhar, so<strong>br</strong>e rodas, o defuntoaté a sua "última morada".O esvaziamento deste, que era o "grande cerimonial" doritual, não foi o único si<strong>na</strong>l de transformação fúne<strong>br</strong>e <strong>na</strong> Corte. Elatambém pode ser sentida <strong>na</strong>s alterações com relação às vestimentasfunerárias. As mortalhas, antes expressão de devoção adetermi<strong>na</strong><strong>dos</strong> santos, já não mais pareciam cumprir sua antigafunção religiosa de passaporte para o Além, em vista de muitos<strong>mortos</strong> terem "encetado a viagem" com suas roupas de uso diá<strong>rio</strong>,principalmente a partir de 1850.Um aspecto do ritual, a princípio, não apresentoumudanças significativas: continuava-se a buscar ossacramentos e a encomendação do defunto, o que aponta parauma privatização do cerimonial, <strong>na</strong> medida em que, ao sedesgastar aos poucos o "espetáculo para os olhos", <strong>dos</strong>elabora<strong>dos</strong> e concorri<strong>dos</strong> cortejos funerá<strong>rio</strong>s, as cerimôniasde administração <strong>dos</strong> sacramentos e de encomendação manterse-iammais privatizadas, tendo a encomendação, inclusive,passado a ser, majoritariamente, realizada <strong>na</strong>s casas.Para onde apontam estas mudanças?'O fim de uma certafamiliaridade entre '<strong>vivos</strong> e <strong>mortos</strong> é inegável. A ponto devivermos hoje, <strong>na</strong> grande maioria das <strong>cidade</strong>s <strong>br</strong>asileiras, comoafirma Philippe Ariès, em uma época da "morte interdita"'.As atitudes perante a morte mudaram, é claro que lentamente,a partir de então. A morte, "outrora tão presente, de tal modo(...) familiar, vai desvanecer-se e desaparecer. Toma-severgonhosa e objeto de um interdit~"~. Seria expressão dacrescente secularização por que, teria passado o século XIX, apartir da sua segunda metade? E possível, mas outros estu<strong>dos</strong>deveriam ser realiza<strong>dos</strong>, outras abordagens so<strong>br</strong>e a morteseriam necessárias para se confirmar esta hipótese.


NOTAS'ARIÈS, Philippe. Histon's da morte no ocidente; desde a Idade Médiaaos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1 977. pp.55-64.Idem. p.55.


FONTESMANUSCRITASArquivo Geral da Cidade do Rio de Janeim (A GCRJ)Códices:58.2.1 - Cemité<strong>rio</strong> <strong>dos</strong> "negros novos"; próximo ao morro da Saúde, noValongo; local para cemité<strong>rio</strong> público (proposta do vereadorNepomuceno),do largo de Santa Rita;Ofício so<strong>br</strong>e o parecer da comissão de salu<strong>br</strong>idade geral daSociedade de Medici<strong>na</strong> do Rio de Janeiro;Local para o novo cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa;Sepultura no recinto <strong>dos</strong> templos;Proposta da Cãmara municipal para o estudo do local desti<strong>na</strong>doa cemité<strong>rio</strong> público;Requerimento do provedor da Santa Casa da Misericórdia, JoséClemente Pereira, para dar principio ao Campo Santo;1829-1839.58.2.3 - Enterramentos <strong>na</strong> igreja de Santo Antônio <strong>dos</strong> Po<strong>br</strong>es, 1832.58.2.4 - Cemité<strong>rio</strong>s <strong>na</strong>s igrejas: Engenho Velho, São João Batista da Lagoa,Santa<strong>na</strong> e da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição da ruado Sabão para fundar cemité<strong>rio</strong> continuo ao da Ordem Terceirade São Francisco de Paula, 1833- 1850.58.2.5 - Cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa da Misericórdia <strong>na</strong> praia de SantaLuzia. Ofícios e pareceres etc., 1838-1839.58.2.6 - Cemité<strong>rio</strong> da Santa Casa da Misericórdia, e terreno próximo aCadeia Nova, com representação <strong>dos</strong> moradores das ruas SãoLeopoldo, Santa Rosa, Alcântara e das Flores etc., 184 1 - 1845.58.2.7 - Cemité<strong>rio</strong>s: proposta para cessarem os enterramentos <strong>na</strong>s igrejaspareceres e outros documentos so<strong>br</strong>e o assunto, 184 1 - 1856.


Arquivo da Cúria Metropolita<strong>na</strong> do Rio deJaneiro (ACMRJ)Livro de registro de óbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento, daantiga se 1812,181 9,1824,1828,1835,1845,1850,1850, 1855,1860,1865,1870,1875, 1880 e 1885.Arquivo Nacio<strong>na</strong>l (AN)Inventá<strong>rio</strong>s/Testamentos, século XVIII.Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l (BN)Requerimentos e representações de moradores de algumas freguesias,irmandades, ordens terceiras e conventos ao imperador, 1822- 1853.Instituto Histórico e Geqráfico Brasileiro (IHGB)Coleção Marquês de Olinda;Conselho Ultramarino.IMPRESSASBiblioteca Nacio<strong>na</strong>lDESCRIÇÃO da fe<strong>br</strong>e amarela que no ano de 1850 reinou epidemicamente<strong>na</strong> capital do Impé<strong>rio</strong>, pela comissão central de Saúde Pública.FEITAL, Jose Maria Noronha. Memória so<strong>br</strong>e as medidas conducentes aprevenir e atalhar o progresso da fe<strong>br</strong>e amarela. Rio de Janeiro:Typ. do Brasil, 1850.LA L LEMANT, Roberto. Observações acerca da epidemia de fe<strong>br</strong>e amarelano ano de 1850 no Rio deJmeiro: colhidas nos hospitais e <strong>na</strong>policlínica. Rio de Janeiro: Typ. de J. Villeneuve & Comp., 185 1.REGO, José Pereira. História e descrição da fe<strong>br</strong>e amareia epidêmica quegmu no Rio deJsneiro em 1850. Rio de Janeiro: Typ. de Franciscode Paula Brito, 1851.. Esboço histórico das epidemias que têm grassado <strong>na</strong> <strong>cidade</strong> doRio deJsneiro desde I830 a 1870. Rio demeiro: Sp. Nacio<strong>na</strong>41872.REPRESENTAÇÕES de irmandades e ordens terceiras ao Parlamento<strong>br</strong>asileiro, 1850- 185 1.260


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