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80 Anos de Caio Porfírio Carneiro - Linguagem Viva

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Página 4 - Julho <strong>de</strong> 2008Diálogo fantástico com uma barata famosaLINGUAGEM VIIVAMaria Lúcia Silveira RangelNaquela noite havia sonhadocom papai; ele levantava a mão numgesto <strong>de</strong> advertência, como costumavafazer, apregoando em vozautoritária:– Filha minha não casa semdiploma; precisa prover sua subsistência,não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> marido.Isso, porque eu estava namorandofirme o Jorge e não havia terminadoo curso na faculda<strong>de</strong>.Se ele tivesse vivido mais umpouco, penso que se <strong>de</strong>siludiriacom seu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “classe médiaintelectualizada” ao ver sua filha professoratão <strong>de</strong>smerecida e mal remunerada..Acor<strong>de</strong>i com a cabeça pesada,o corpo dolorido, mas <strong>de</strong>cidi continuara rotina habitual..Leciono no período noturno <strong>de</strong>uma Escola Estadual, vizinha aobairro on<strong>de</strong> moro, o que facilita minhavida.Os filhos já criados sabempreparar seus lanches e Jorge jantao prato requentado. Apesar da indisposição,resolvi fazer pão caseiro,que os meninos apreciam.Assim, fui ao supermercadocomprar os ingredientes.Na cozinha, comecei a prepararo pão: água morna, sal, açúcar,fermento para levedar; ao me voltar,<strong>de</strong>parei uma barata parada juntoaos meus pés, com aquele jeitosorrateiro que elas possuem. Ora,tenho pavor <strong>de</strong>sses insetos, não ou-Especializada emimportação direta <strong>de</strong>livros portugueses.sando sequer matá-los, tal a náuseaque me provocam suasvísceras esbranquiçadas; levei tamanhosusto que a tigela escapoumedas mãos e a mistura caiu justamentesobre a maldita barata.Então, para meu pasmo e horror,a barata começou a crescer;cresceu <strong>de</strong>vagar mas constante.Até alcançar mais ou menos ummetro e meio, ocupando gran<strong>de</strong>espaço na cozinha exígua, quaseme imprensando contra a pare<strong>de</strong>.Aterrorizada, esperando queela avançasse sobre mim e me atacasse,ia abrir a porta e sair correndo,quando ela falou com voz sumida,vinda do mais profundo <strong>de</strong> seuinterior, uma voz gemente, cheia <strong>de</strong>ressonâncias, quase inaudível:– Sei que está com medo <strong>de</strong>mim; aliás, todos me temem por algummotivo: ou por ser um insetoasqueroso, que vive na imundície,ou por minha própria aparência repelente.Mas não tenho culpa <strong>de</strong> serassim, até posso dizer que soumenos maléfica que o rato que traza peste ou que a aranha que envenena.Apesar disso, todos procuramme <strong>de</strong>struir – as mulheres sobemnas ca<strong>de</strong>iras e põem-se a gritarquando me vêem e é preciso queapareça um cavalheiro para me esmigalhare acalmar a dama <strong>de</strong> seufaniquito.Até os ambientalistas, que emnome do equilíbrio ecológico evitammatanças inúteis, também não meprotegem, permitindo que eu sejaLivros <strong>de</strong> todas as áreas <strong>de</strong> editoras portuguesas,Cds, artesanato e galeria <strong>de</strong> arte.Desconto <strong>de</strong> 10% para advogados, juristas,professores e estudantes.Aceitamos encomendas <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> editoras nacionais.Prazo <strong>de</strong> entrega: 15 dias.Galeria Louvre, loja 20 - Av São Luis, 192 - Centro - São Paulo -SPE-mail: coimbramartins@uol.com.brTel.: (11) 3120-5820 – Telefax: 3258-9105Tel.: (11) 2796-5716Profa. SoniaRevisão - DigitaçãoAulas particularesvítima <strong>de</strong> perseguição sistemática.Embora o pavor me dominasse,lembrei-me da Metamorfose,obra lida quando cursava o Colégio<strong>de</strong> Aplicação, e tive certeza <strong>de</strong> queera ela própria que estava diante <strong>de</strong>mim.Lá permanecia ela equilibradasobre as pernínhas curtas e frágeis,as costas abauladas e escuras,a boca rasgada entre as mandíbulasfortes.Juntando coragem, pois estavaquase <strong>de</strong>smaiando <strong>de</strong> medo,perguntei:– Você é a barata do Kafka?– Claro que sou; ainda não mehavia reconhecido? Talvez seja eua barata mais famosa do mundonunca se ouviu falar <strong>de</strong> outra; nãohá em obra alguma, nem na Bíblia,nem em Homero, nem naRamaiana, referência sobre umabarata... Precisava aparecer Kafkapara me tornar conhecida no mundointeiro...Lembrei-me da Metamorfoseguardada em minha estante: A históriado pobre Gregor Samsahostilizado e sacrificado pela família– a bela e implacável Irmã Grete,a bondosa mas alheada Mãe,o Paidominador e mesquinho – no momentoque, transformado em barata,não conseguiu mais sustentá-la.Lembrei-me quanto ficara impressionadacom a cruel conotação socialque emanava do livro,criticandoa valorização dos bens materiais:Apesar do medo, ousei perguntar,continuando aquele diálogofantástico:– Por que você aparece justamenteem minha cozinha?– Porque <strong>de</strong> vez em quandofico enfarada <strong>de</strong> estar presa no livro,então resolvo dar uma voltinha;hoje apareci por aqui pensando quenão seria notada e que pu<strong>de</strong>sse encontrarno lixo alguma fruta podre.Eu, conversando com umabarata! Parecia que fazia parte <strong>de</strong>uma cena surrealista! Não era possívelque fosse verda<strong>de</strong>!Um calafrio percorreu meucorpo; tateei minha fronte: escaldava;a gripe me <strong>de</strong>rrubara...Estonteada, abandonei tudo,fechei a porta e fui para meu leito: ofrio gelava meus pés e minhasmãos, a garganta seca e ar<strong>de</strong>ntepedia um copo <strong>de</strong> água, mas eu nãotinha coragem <strong>de</strong> voltar à cozinha.Permaneci <strong>de</strong>itada bem coberta,imaginando se teria disposição<strong>de</strong> dar minhas aulas <strong>de</strong> LiteraturaBrasileira; um torpor tomoume;adormeci.Acor<strong>de</strong>i sentindo meu maridoapalpar minha testa.– Está se sentindo melhor?Os sintomas haviam diminuídoe o mal estar abrandara..Ele disse:– Matei uma barata na cozinha.– Por que? Era a barata doKafka...– Você está <strong>de</strong>lirando com afebre...– Como conseguiu? Ela eraenorme.....– Nada disso; tamanho normal...Você <strong>de</strong>ixou tudo em completa<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m; que aconteceu?Minha cabeça ainda continuavadoendo; voltei-me para o ladosem respon<strong>de</strong>r.Quando a gripe me <strong>de</strong>ixou,corri à estante, à procura da obra<strong>de</strong> Kafka; i<strong>de</strong>ntifiquei capa, retirei-ada prateleira. Ao abrir o livro, constatei,surpresa e <strong>de</strong>solada , quesuas páginas estavam em branco...Maria Lúcia Silveira Rangel éescritora e crítica literária.portsonia@ig.com.br

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