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MILAGRES E DEVOÇÃO: JOÃO DAS PEDRAS O LADRÃO ... - Uem

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<strong>MILAGRES</strong> E <strong>DEVOÇÃO</strong>: <strong>JOÃO</strong> <strong>DAS</strong> <strong>PEDRAS</strong> O <strong>LADRÃO</strong>-SANTO DE SÃOBENEDITO – CEARÁ NA RELIGIOSIDADE POPULAR.MAIA, Michelle Ferreira (UFC-FUNCAP)RAMOS, Francisco Régis Lopes (UFC)Indrodução:Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dospassados roubados à legitimidade por outro, tempos empilhados quepodem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à esperae permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim,simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo [...] é umaprática do espaço este bem-estar tranqüilo sobre a linguagem ondese traça, um instante, como um clarão. 1O homem que se aproxima da morte deve desfazer-se pouco a poucode tudo, começando por abandonar as honrarias do mundo [...] aalma do morto precisa que os vivos orem por ela 2 .Lembro-me da primeira vez que entrei no Cemitério de São Benedito-Ceará 3 evi o túmulo de João das Pedras. Era o dia de finados de 1999. Como alguns queestavam em volta do túmulo, observei por alguns instantes algumas pessoas quebalbuciavam cabisbaixo as orações que compunham o terço em suas mãos. Nãoconsegui calar a pergunta que ansiava saber quem estaria ali sepultado, não haviainscrição alguma que identificasse o dono do jazigo.“Morreu queimado”. Esta foi a fala proferida por uma das pessoas que alicirculavam. Junto à resposta, as imagens da fumaça e do cheiro queimado das velasme incomodaram, principalmente, por não entender a razão de tantas velas queimandoe nem o porquê das pessoas deixarem pedaços feitos de madeira sobre o túmulo. Saído Cemitério, com aquelas confusas imagens não compreendidas.1 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. TRAD.: Ephraim Ferreira Alves.Petrópolis: VOZES, 1994. 7° Edição. pp.189-190.2 DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. TRAD.:, Renato JanineRibeiro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1887. pp.9-34.3 A cidade de São Benedito está localizada na Serra da Ibiapaba a aproximadamente 350 km deFortaleza, Capital do Ceará. Sua população estimada em 2004 era de 42.255 hab. Dadosdisponibilizados no site pt.wikipedia.org/wiki/São_Benedito_ (Ceará).


3Católica Apostólica Romana, sua santidade já existe no imaginário dos devotos queacreditam terem sido agraciados com suas intercessões.Mesmo fugindo dos parâmetros institucionais a devoção não deixa deapresentar fatores similares praticados no âmbito do Catolicismo institucional.Entretanto, a diferença das práticas devocionais naqueles que direcionam suasintenções ao santo.Neste artigo, busco analisar o sentido das intenções à alma de João dasPedras e a sua relação com a devoção. As intenções são aqui compreendidas edenominadas tendo em vista a destinada atitude devocional ao santo popular. A práticareligiosa da devoção configura-se na troca simbólica do devoto com o santo. Asintenções afirmam-se como elementos de exaltação à memória do santo milagreiroJoão das Pedras.Além disso, as intenções, a forma como são grafadas nas agendas aquianalisadas abrangem de 2003 a 2006, anunciam também que a santidade popular deJoão das Pedras não é bem recebida no âmbito sagrado da Igreja de São Benedito,quando seus representantes tentam igualá-lo a condição de cristão, buscandodesmistificar os poderes de santo a ele atribuído.As intenções proferidas durante as homilias juntam-se as imagensvislumbradas no dia de finados no cemitério de São Benedito, em particular ao túmulode João das Pedras: a homenagem ao defunto é inferior na devoção rendida a eleneste dia em maior visibilidade.O túmulo de João das Pedras, localizado próximo às extremidades da capelado cemitério, adquire sentido e forma como um espaço em que se manifesta umadevoção popular, despertando a curiosidade daqueles que o vislumbram, por ser olugar no qual está sepultado o ladrão, que hoje é cultuado como santo popular nareferida cidade.O túmulo de João das Pedras, recoberto por pedaços de madeira em forma decabeça, braços, pernas, abriga também terços, santos e velas que impõem ao olhar dopesquisador, a percepção de que é neste espaço, onde a relação do devoto com osanto popular é apresentada de forma mais efetiva: a fé é a relação do sujeito com osagrado.


4Um espaço que não é sagrado por si mesmo, mas por uma qualidade recebidapelas práticas dos devotos, uma concepção entendida a partir das discussõespropostas por Roger Caillois 5 .Um santo popular fabricado pela fé, pela estima de cada devoto a João dasPedras. Uma religiosidade que é dinâmica e que encontra brechas para sobreviver nocotidiano dos devotos, seja nas intenções ou nos demais pagamentos de promessasinscritos no túmulo de João das Pedras.1.Os Lugares do Santo.Precisamente, seguindo em direção aos fundos da Igreja Matriz de SãoBenedito, encontramos instaladas as dependências que compõem o espaço destinadoà Secretária Paroquial.A Igreja de São Benedito é a Igreja Maior. É o templo primeiro erigido em SãoBenedito servindo de casa de oração. Os fragmentos da taipa que antes a revolviamforam substituídos por uma capela revestida de pedra e cal coberta por telhas: templode maior capacidade para os fiéis da São Benedito dos anos de 1841, segundoBrandão 6 .O templo de hoje sepultou as ruínas e a memória da velha casa de taipa queantes abrigara sobre um altar de pedra a imagem do santo de devoção do índio Jacó,São Benedito 7 .Uma vez lapidada pelas (re) formas arquiteturais, a Igreja Matriz persevera nopresente aludindo uma necessidade de adequar o templo às exigências dos tempos5 Para Roger Caillos, o sagrado “é uma qualidade de que as coisas não possuem por si mesmas: umagraça misteriosa vem-na acrescentar a ela.” Vid.: CAILLOS, Roger. O Homem e o Sagrado. Edições 70.Lisboa, s/d, p.20.6 De acordo com José Hudson Brandão a reforma na estrutura da Igreja Matriz de São Benedito tevemaior intensidade nos anos entre 1847 a 1859 com a administração clerical do Padre João Crisóstomo: “Em 1847 para aqui veio residir o Padre João Crisóstomo de Oliveira Freire[...] Em 1859, empreendeu omesmo sacerdote construir um templo de maior capacidade, e, tendo obtido a necessária permissão foinesse trabalho auxiliado pelos moradores e não menos pelo administrador da Província, o vicepresidenteDr. Sebastião Gonçalves da Silva, que mandou um conto de réis para essa obra. Com aquelaquantia, alguns donativos de particulares e o produto de leilões em dias de festa, concluiu-se a excelenteIgreja Matriz.”. Vide: BRANDÃO, José Hudson. São Benedito: Dos Tabajaras ao Terceiro Milênio.Fortaleza: Premius; Ed. Livro Técnico, 2002. p.25.7 A primeira Imagem de São Benedito teria sido trazida pelo Índio Jacó de Sousa Castro. Um índiocatequizado pelos frades franciscanos, vindos de Pernambuco, acompanhando alguns Jesuítas para oCeará. Segundo Brandão, a devoção ao Santo como a própria nomeação da cidade faz referência aestima sentida pelo Índio Jacó: “O nome “São Benedito”, ainda conservado pela sua antiguidade, vem dadevoção consagrada a esse Santo pelo índio Jacó, que o festejava anualmente em sua cabana em localonde hoje faz parte sua Igreja matriz, no perímetro urbano da cidade.” . Idem. p. 24.


5modernos. As acomodações e o conforto de seus usuários, os fiéis, se configuramcomo os principais argumentos do (re) fazer inacabado, em que as obras sãocusteadas por uma parcimônia entre os leigos e o clero de São Benedito.A secretaria é, a propósito, uma dessas constantes (re) modelações.Aconchegante, o espaço retangular impõe ao observador a impressão de ter sidoconstruído com o propósito de acolher e servir quem por sua porta entrar. Suasinstalações estão divididas em duas salas-escritórios, uma copa, dois banheiros e, logona entrada, pela sala principal.Trabalhos burocráticos são ali, na sala principal, desenvolvidos. É na secretariaparoquial que o calendário das celebrações de missas, adorações ao santíssimo sãoinformados. Espaço no qual são agendados muitos dos sacramentos de batismo,crisma, casamento. Ali, dízimos são recebidos, intenções em ação de graças aos vivosou intenções aos mortos são rendidas. As intenções assemelham-se apenas pelo valorque as precedem: dois reais é o preço recebido pela secretaria por cada intenção.O visitante, ao entrar, sente-se acolhido pelos olhos ternos da imagem deNossa Senhora de Fátima. É ela, pois, a Santa dos três Pastorinhos quem tributa ashonras da casa santa abençoando a todos. Com suas mãos postas sobre um terço, aSanta, exposta no alto da parede, é apresentada sobreposta numa planta do futurosantuário de Fátima, em construção em São Benedito 8 .Ao vislumbrar os objetos da sala principal, o fiel avista uma mesa de madeirarevolvida pelo tom caramelo esmaltado. Sobre o móvel repousam dois computadores.Mesmo dispondo de um sistema computadorizado, algumas funções aindapermanecem fazendo uso da escrita: são as marcações de intenções aos mortos. Éatrás da bancada onde Fransquinha, Helena e Edvar, os três mais antigos funcionáriosda secretaria, se organizam em suas respectivas tarefas diárias.Um armário embutido junta-se ao quadro de poucos móveis a compor aaparência do ambiente. O armário, por sua vez, quase se confunde com a parede,distinguindo-se apenas pelo marfim envernizado e pelas duas fechaduras queanunciam sua abertura. Em seu interior, as quatro prateleiras seguram horizontalmenteos grossos livros de Batismo referentes a vários decênios. Em uma das prateleirasquatro agendas posicionadas uma sobre a outra, parecem disputar espaço com os8 Desde 2005 teve inicio em São Benedito uma campanha arrecadando fundos para a construção doSantuário de Fátima. Localizado no Bairro do Chora, a construção do Santuário segue em andamento.Uma obra que teve como principal articulador, o Padre Antonio Martins Irineu que presidiu a Paróquia deSão Benedito desde 15 de Agosto de 1993 a 2005.


6grossos livros. Agendas estas, referentes aos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006. Aindaestão (res) guardadas como se tivessem a reclamar um lugar no presente mesmoquando neste o seu valor de uso foi perdido, já que não servem mais para suasrespectivas funções: as de agendar, marcar.Ao repassar-se página por página, mês a mês, ano a ano, em meio aos nomesdos falecidos a quem são rendidas às intenções, o nome de um falecido, em particular,João Ferreira Gomes, impõe-se de forma mais continua. Vejamos a seguir, a ordemdos agendamentos:Ano 2003NomeMês/Dia da Semana/ HoraJoão de Deus 12 de Janeiro. Domingo. 07:00João de Deus 02 de Maio. Sexta. 07:00João de Deus 20 de Maio. Terça. 06:45João Ferreira Gomes 03 de Julho. Quinta. 21:00João das Pedras 16 de Julho. Quarta. 19:00João Ferreira Gomes 17 de Julho. Quinta. 19:00João Ferreira Gomes 01 de Agosto. Sexta. 18:00João Ferreira Gomes 12 de Agosto. Terça. 06:45João Ferreira Gomes 21 de Agosto. Quinta. 21:00João Ferreira Gomes 01 de Outubro. Quarta. 19:00João Ferreira Gomes 03 de Outubro. Sexta. 07:00João Ferreira Gomes 14 de Outubro. Terça. 06:45João Ferreira Gomes 15 de Outubro. Quarta. 06:45João Ferreira Gomes 26 de Outubro. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 01 de Novembro. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 20 de Novembro. Quinta. 06:45João Ferreira Gomes 08 de Dezembro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 16 de Dezembro. Terça. 18:00João Ferreira Gomes 25 de Dezembro. Quinta. 07:00E segue:Ano 2004João Ferreira Gomes 04 de Janeiro. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 17 de Janeiro. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 09 de Fevereiro. Segunda. 09:00João Ferreira Gomes 03 de Abril. Sábado. –João Ferreira Gomes 04 de Abril. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 24 de Maio. Segunda. 09:00João Ferreira Gomes 30 de Maio. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 08 de Julho. Quinta. 21:00João Ferreira Gomes 12 de Julho. Segunda. 19:00João Ferreira Gomes 18 de Julho. Domingo. 09:00João de Deus 05 de Agosto. Quinta. –João de Deus 09 de Agosto. Segunda. 09:00


7João de Deus 13 de Agosto. Sexta. 19:00João Ferreira Gomes 23 de Agosto. Segunda. 09:00João Ferreira Gomes 30 de Agosto. Segunda. 09:00João Ferreira Gomes 05 de Setembro. Segunda. 09:00João de Deus 28 de Setembro. Terça. 19:00João Ferreira Gomes (2intenções) 08 de Outubro. Sexta. 19:00João Ferreira Gomes 10 de Outubro. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 16 de Outubro. Sábado. –João Ferreira Gomes 13 de Novembro. Domingo. –João Ferreira Gomes 05 de Dezembro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes (2itenções) 11 de Dezembro. Sábado. –João Ferreira Gomes 28 de Dezembro. Terça. 07:00João Ferreira Gomes 31 de Dezembro. Sexta. 07:00No ano subseqüente, lê-se:Ano de 2005João Ferreira Gomes 02 de Janeiro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 10 de Janeiro. Segunda. 09:00João Ferreira Gomes 14 de Janeiro. Sexta. 07:00João Ferreira Gomes 15 de Janeiro. Sábado. –João Ferreira Gomes 02 de Fevereiro. Quarta. 18:00João das Pedras 26 de Fevereiro. Sábado. 19:00João de Deus 27 de Fevereiro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 05 de Março. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 10 de Março. Quinta. 18:30João Ferreira Gomes 14 de Maio. Sábado. –João Ferreira Gomes 07 de Junho (Missa no Santuário) 9 . Terça. -João Ferreira Gomes 09 de Julho. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 23 de Julho. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 27 de Julho. Quarta. 07:00João Ferreira Gomes (2itenções) 06 de Agosto. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 07 de Agosto. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 08 de Agosto. Segunda. -João de Deus 13 de Setembro. Terça. 07:00João Ferreira Gomes 25 de Setembro. Domingo. 17:00João Ferreira Gomes 03 de Dezembro. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 13 de Dezembro. Terça. 12:00João Ferreira Gomes 25 de Dezembro. Domingo. 09:00Por fim, verifica-se:Ano de 2006João Ferreira Gomes 06 de Janeiro. Sexta. 07:00João Ferreira Gomes 07 de Janeiro. Sábado. 07:00João Ferreira Gomes 08 de Janeiro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 18 de Janeiro. Quarta. 18:009 Embora, as intenções aqui analisadas façam referencias as missas celebradas na Igreja Matriz, umaintenção foi marcada para ser proferida em missa celebrada no Santuário de Fátima, que mesmo sem tersido terminado já abriga celebrações.


8João Ferreira Gomes 29 de Janeiro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 19 de Fevereiro. Domingo. 07:00João de Deus 21 de Fevereiro. Terça. 07:00João Ferreira Gomes 05 de Março. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 09 de Abril. Domingo. 09:00João de Deus 12 de Abril. Quarta. 07:00João Ferreira Gomes 16 de Abril. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 12 de Maio. Sexta. 17:00João Ferreira Gomes 30 de Maio. Terça. 07:00João Ferreira Gomes 13 de Junho. Terça. 07:00João de Deus 02 de Julho. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 15 de Julho. Sábado. 19:00João de Deus 23 de Julho. Domingo. 09:00João Ferreira Gomes 05 de Agosto. Sábado. –João das Pedras 09 de Setembro. Sábado. 19:00João Ferreira Gomes 07 de Outubro. Sábado. 19:00João das Pedras 13 de Outubro. Sexta. 07:00João Ferreira Gomes 12 de Novembro. Domingo. 07:00João Ferreira Gomes 16 de Novembro. Quinta. 19:00João Ferreira Gomes 22 de Novembro. Quarta. 09:00João das Pedras 03 de Dezembro. Domingo. 09:00OBS: - não tinha horário descrito nas agendas 10 .As intenções, grafadas sobre o papel, distinguem-se pelas três formas em quesão apresentadas: João de Deus, João das Pedras e João Ferreira Gomes. Distinçãointencional que elucida a pretensão dos “representantes de Deus na terra”, o clero, emdetrimento dos tratamentos cabíveis ao sujeito na sua condição de vivo ou morto. Indoalém de uma mudança na terminologia das palavras, a Igreja Católica de São Beneditosepara assim o que é considerado como sagrado e o que é por sua vez profano 11 .Distinção que lembra uma vida passada pecadora, profana. É assim que podemoscompreender as alcunhas de pendor eclesiástico. Embora, muitas vezes no cotidiano,estas tenham um outro sentido.As alcunhas também são herdadas como um bem, herança titular de umafamília, exemplo disso, é o substantivo Pedras. Talvez fora a única herança que10 Tendo uma seqüência presente desde o ano de 2003, seguindo aos anos de 2004, 2005 e 2006,acredito que a presença das intenções não é limitada apenas a estes respectivos anos. No entanto, éexclusivamente no percurso destes, o período em que nos é possível elucidar sua descrição. Umaanálise que é mediada, por sua vez, pela fonte documental aqui apresentada: as agendas de marcações.As outras intenções rabiscadas em outras agendas foram desembocar no lixo do esquecimento.11 De acordo com Roger Caillos o sagrado é uma categoria da sensibilidade humana, que: “Na verdade,é a categoria sobre a qual assenta a atitude religiosa, aquela que lhe dá o seu caráter específico, aquelaque impõe ao fiel um sentimento de respeito particular, que presume a sua fé contra o espírito de exame,a subtrai à discussão, a coloca fora e para além da razão.” Desse modo, o nome proferido durante asmissas assume também um Caráter mais especifico, um respeito ao falecido e principalmente ao espaçosagrado em que ele é evocado, a Igreja. Vide: CAILLOS, Roger. O Homem e o Sagrado. Edições 70.Lisboa, s/d p.20.


9Francisca Ferreira Gomes, na qualidade de avó, pudera conceder ao seu neto Joãodas Pedras. Alcunha que não jaz em sua sepultara mas que alimenta suas memórias.Pedrinhas, era assim conhecido um bairro nas extremidades do MunicípioGraça-Ceará 12 . Cidade na qual estava circunscrita a casa da rezadeira FranciscaFerreira Gomes e de sua família.De acordo com esta situação, em particular, a identificação do sujeito com oespaço em que vive, foi miscigenada pela sentimentalidade e pelo tempo de suapermanência naquele espaço, onde a matriarca, Francisca Ferreira Gomes, nascera econcebeu seus filhos e netos. Condições estas, em que lhe foi permitida uma outraidentificação, se configurando como um outro sobrenome.Não sendo efêmera, o substantivo Pedras resistiu à morte da matriarca-avó,Francisca Ferreira, e para muitos Francisca das Pedras, quando se perpetuou no nomede sua filha Maria Ferreira Gomes, conhecida por Maria das Pedras e pelo filhoprimogênito desta, João Ferreira Gomes, conhecido também por João das Pedras.Desse modo embora seja de um caráter e de uma linguagem coloquial,podemos inferir que a alcunha Pedras, encontrou no cotidiano um prestígio legítimotanto quanto um sobrenome que fora lavrado em cartório, ou seja, João FerreiraGomes.Durante as homilias a João das Pedras, agora o falecido, e dentro do espaçosagrado, a Igreja Matriz de São Benedito, resta-lhe o que o identifica e iguala aqualquer sujeito aos olhos institucionais da Igreja Católica, sua identificação naqualidade de cristão batizado.Daí, a razão pela qual a alcunha João das Pedras, atribuída a ele aindaquando criança, não ser bem recebida. Sendo, portanto, o nome João Ferreira Gomespredominantemente diante das duas outras formas apresentadas: o nome de Batismo.Enquanto que, por outro lado, João de Deus apresenta inicialmente umatransitoriedade, uma mediação entre os nomes João das Pedras e João FerreiraGomes. Sendo assim, o nome proferido durante a homilia separa o tempo da vida e otempo da morte. Além disso, ressalta igualmente que a preocupação dos vivos com odestino da alma, na contemporaneidade, ainda alimenta o medo do destino derradeiro,12 Ao lado leste de São Benedito, o Município de Graça localiza-se a uma latitude 04º02'46" sul e a umalongitude 40º45'10" oeste, estando a uma altitude de 179 metros acima do mar. Sua população estimadaem 2004 era de 15 043 habitantes. Possui uma área de 261,35 km². Dados disponibilizados no site:pt.wikipedia.org/wiki/Graça_(Ceará).


10o além. As intenções são os guinchos que têm o poder de tirar, salvar o falecido daschamas e da escuridão do inferno .Nos séculos XIII ao XVIII as missas aos falecidos podiam ser compreendidascomo uma prática surgida sob pressão da Igreja pelo medo do Além. Assim, o homemque sentia a morte chegar no Ocidente queria prevenir-se com as garantiasespirituais 13 .De um lado, as garantias espirituais encontraram no testamento umtestemunho do medo frente ao destino além-túmulo. O testamento, objetivava, por suavez, a atitude diante da morte ao impor aos vivos seus últimos desejos, na certezadestes serem irrestritamente cumpridos. Finalmente, a salvação da alma e o sossegoeterno, portanto, estavam sujeitos ao cumprimento do que fora estabelecido,principalmente no que diz respeito às missas estabelecidas pelo testador a sua própriaalma 14 .As missas davam continuidade aos ritos fúnebres que se iniciavam à cabeceirado moribundo. Em geral os familiares, agraciados pelos testadores e os Padres ou asIrmandades Religiosas, ficavam encarregados de contribuir para a salvação da alma dofalecido. Entretanto, as determinações testamentárias eram cumpridas pelo medo dosvivos em relação ao retorno da alma do falecido. As missas, assim afastavam apossibilidade da alma ficar penada e vagando mundo afora, a sofrer e a cobrar o quefora estabelecido 15 .A João das Pedras não lhe dera tempo de fazer um testamento econseqüentemente não pudera expor seus últimos desejos, não fora possível confessaras faltas cometidas e nem tão pouco conceder, pedir ou receber perdão. Não pudera13 Philippe Áries, em seu estudo sobre a História da Morte no Ocidente, afirma que “foi a partir do séculoXIII, e sem dúvida graças aos frades mendicantes que desempenharam um grande papel nos assuntosreferentes à morte até o século XVIII, que práticas que originalmente eram apenas clericais e monásticasestenderam-se ao mundo mais numeroso dos leigos urbanos”. Vide: ARIÉS, Philippe. História damorte no Ocidente. TRAD.: Priscila Viana de Siqueira – Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 114.14 Para Philippe Áries, os testamentos dos séculos XIII ao XVIII, se configuravam numa atitude entre avida e a morte. Desse modo, além de uma forma de elencar seus herdeiros, distribuir seus bens, otestamento poderia ser compreendido na mesma medida como: “o meio religioso e quase sacramentalde associar as riquezas á obra pessoal da salvação e, no fundo, de guardar o amor pelas coisas da terraao mesmo tempo em que delas se separava”. Idem, p. 115.15 Analisando os testamentos na Bahia do século XIX, o autor João José Reis infere que: “A boa mortesignificava que o fim não chegaria de surpresa para o individuo, sem que ele prestasse conta aos queficavam e também os instruísse sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus bensterrenos. Um dos meios de se preparar, principalmente mas não exclusivamente entre as pessoas maisabastadas, era redigir um testamento [...] o temor da morte, no entanto, não deve ser visto como o medosem controle. O grande medo era mesmo morrer sem um plano, o que para muitos incluía a feitura dotestamento. A preparação facilitava a espera da morte e aliviava a apreensão da passagem para oalém”. Nesse sentido, não fazer um testamento era correr o risco de conseqüentemente não recebermissas. Vide: REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil doséculo XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.92-95.


11ser digno com sua alma, quando não conseguiu ele mesmo cumprir os rituais quepoderiam salvá-lo.João das Pedras não sabia ler nem escrever. Muito embora, ressalte-se, otestamento pudesse ser redigido por algum servidor que o assistira no momento de suaagonia na passagem para o além. O certo é que não ficara agonizando e não tinhaservidor, para tal exercício, ao contrário de Guilherme Marechal 16 .Contrapondo-se ao Melhor Cavaleiro do Mundo João das Pedras, nãodispunha do que testar e deixar como herança. Restando-lhe igualar-se ao nobrecavalheiro medieval apenas na condição de desprovido do último sacramento, aextrema-unção: ambos não receberam o viático.À alma de João das Pedras, grande parte das intenções são rendidas noâmbito da Igreja Matriz de São Benedito. “É o morto que mais recebe intenção”,sublinhou a senhora Fransquinha, secretaria da paróquia.Nesse sentido, o verbo receber aqui atribuído, suscita-nos a questão de que ofato de merecer seria sinônimo de carecer, e, portanto, perecer. Ou seja, o fato deJoão das Pedras ser o morto-defunto que mais recebe missas estaria relacionado aocaso de sua alma necessitar desta estima?Para responder a pergunta seria necessário entrevistar cada individuo queentrou e continua entrando pela porta da secretaria paroquial de São Benedito. Umapossibilidade vetada: inscreve-se nas agendas o nome do destinatário e não o de seuemissor. Entretanto, se comparada às práticas medievais, a diferença das intençõesreside na possibilidade de identificar que não ocorrem no mesmo sentido. Em parte,muitas das intenções são frutos de pagamentos de promessas a alma de João dasPedras:Meu menino, Carlos Eduardo deu uma infecção intestinal muito forte, eulevei ele pro hospital, três vezes no hospital municipal, e o médico consultou elee desenganou que eu levasse pra casa que não tinha jeito. Aí eu fui levei pra16 Antes de morrer Guilherme Marechal profere suas vontades diante daqueles que o assistem morrer,não satisfeito, o moribundo: “[...] toma o cuidado de confiá-las ao texto escrito, para que fique bemestabelecido. Não há tabelião aqui, na época. O ato é redigido na própria casa, por servidores quesaibam escrever. Guilherme manda apor-lhe seu selo privado, e que também aponham os seus aesposa e o primogênito, que são, além dele, os únicos possuidores de todo o restante: o que ele legouele lhes tirou. Mais isso ainda não é tudo. Manda que o pergaminho seja levado ao arcebispo deCanterbury, ao legado, aos bispos de Salisbury e Winchester, para que também o selem e fulminem,contra eventuais infratores, as excomunhões rituais [...] Mas as palavras congeladas, que ela conservafeito relicário, pertencem agora ao tesouro da família.” Vide: DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou,o melhor cavaleiro do mundo. TRAD.: Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1887,p.17.


12casa, já mesmo como morto que ele não se mexia, ai eu fiz uma promessa como Finado João das Pedras que se ele escapasse, quando o menino tivesse dezanos é pra ele pagar uma missa pra ele com as mãos dele. Aí eu internei omenino, quando foi no outro dia seis horas da manhã ele começou a se mexer,aplicaram um soro nele, e ele se mexeu, e chorou com fome. Ele só mamava, eupassei oito dias com ele internado, e aí o médico deu alta que ele já tava bom. Etodas as promessas que eu faço com ele eu consigo. Eu já fiz três. Inclusivequando eu quebrei meu braço, faz nove anos têm um milagre aí (no túmulo) queeu butei que eu me apeguei com ele, não engessei e nem nada e ta aí o braçonormal, eu faço tudo... Graças a Deus eu tenho muita fé nele, ele é uma almamuito milagrosa 17 .Sendo, neste caso, uma atitude devocional de agraciar com uma missa quemlhe concedeu um milagre, construindo dessa forma, uma relação de devoçãocompreendida no universo do imaginário popular.As intenções para o clero de São Benedito, afirmam-se como merosinstrumentos para a salvação de um pobre cristão. Para muitos, as intenções proferidasdurante as homilias não anunciam João das Pedras apenas como um morto-defunto.Com isso, concedem-lhe distinções: trata-se de um morto que concede graças. Assim,o que é possível afirmar é que João das Pedras é um morto-defunto e não um defuntomorto.Ou seja, a cada homilia em que seu nome é proferido não apenas sua alma éalimentada assim como sua memória.O pedido intencionado a João das Pedras, e o conseqüente pagamento que érealizado pelo devoto legitima-o como santo. A observação dos ex-votos e das práticasde agradecimento dos milagres proporciona aos olhos daqueles que visitam o túmulode João das Pedras a indicação do seu poder de conceder milagres, advinda assim asua denominação enquanto santo popular. Além disso, induzimos que o pagamento dapromessa contribui ainda para o surgimento de outras/novas práticas.Seu lugar no imaginário dos devotos não está de forma alguma restrito a umadata específica construída por uma Instituição. No entanto, Por ser o dia dois definados o momento em que fervorosamente o culto se apresenta, intuimos que a datade nascimento e muitas vezes da própria morte de João das Pedras, é desconhecidapelos devotos. Com isso, nos é posta a questão de que a biografia do santo nemsempre é tão necessária ao estabelecimento da devoção, uma relação que éconstruída a partir da feitura da promessa de cada devoto. E é a partir daqui que sua17 SOUSA, Maria Auxiliadora Ribeiro. 33 anos, agricultora. Residente na Rodovia da Confiança Sul.Entrevista realizada no Cemitério de São Benedito, quando sua visita ao túmulo de João das Pedrasneste local no dia 02/02/2005.


13biografia toma corpo e forma como um concessor de milagres. De fato, o lugar de Joãodas Pedras é o lugar do imaginário dos devotos.

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