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Comissão de Mulheres do PT

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Mulher e política


Leia também da Editora Fundação Perseu Abramo:Um trabalha<strong>do</strong>r da notícia:Textos <strong>de</strong> Perseu AbramoOrganização <strong>de</strong> Bia AbramoOrçamento Participativo:A experiência <strong>de</strong> Porto AlegreTarso Genro e Ubiratan <strong>de</strong> SouzaDesorganizan<strong>do</strong> o consenso:Entrevistas com intelectuais brasileirosFernan<strong>do</strong> Haddad (organiza<strong>do</strong>r)Em co-edição com a Editora Vozes(Coleção Zero à Esquerda)Vida e Arte:Memórias <strong>de</strong> Lélia AbramoLélia AbramoEm co-edição com a Editora da UNICAMPRememória:Entrevistas sobre o Brasil<strong>do</strong> século XXColetâneaO Manifesto Comunista150 anos <strong>de</strong>poisDaniel Aarão Reis Filho (organiza<strong>do</strong>r)Em co-edição com a Contraponto EditoraDesafios <strong>do</strong> governo local:O mo<strong>do</strong> petista <strong>de</strong> governarVarios autoresSérgio Buarque <strong>de</strong> Holandae o BrasilAntonio Candi<strong>do</strong> (organiza<strong>do</strong>r)Da<strong>do</strong>s Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira <strong>do</strong> Livro, SP, Brasil)Mulher e política : Gênero e feminismo no Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>sTrabalha<strong>do</strong>res / Ângela Borba, Nalu Faria, Tatau Godinho(organiza<strong>do</strong>ras). — São Paulo : Editora Fundação PerseuAbramo, 1998.Várias autoras.ISBN 85-86469-07-61. Discriminação contra mulheres — Brasil 2. Feminismo —Brasil 3. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero — Brasil 4. <strong>Mulheres</strong> e socialismo— Brasil I. Borba, Ângela. II. Faria, Nalu. III. Godinho, Tatau.98-2784 CDD-305.420981Copyright © 1998 by Editora Fundação Perseu Abramoe Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>/DNISBN 85-86469-07-6


Ângela Borba — Nalu Faria — Tatau Godinho(organiza<strong>do</strong>ras)Andréa Butto — Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> MeloIvete Garcia — Lígia Men<strong>do</strong>nçaLuci Choinaski — Márcia CamargoMaria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong> (Didice)Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>sMarta Suplicy — Matil<strong>de</strong> RibeiroVera SoaresMulher e políticaGênero e feminismono Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resEDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO


Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resem maio <strong>de</strong> 1996.DiretoriaLuiz Dulci — presi<strong>de</strong>nteZilah Abramo — vice-presi<strong>de</strong>nteHamilton Pereira — diretorRicar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> — diretorEditora Fundação Perseu AbramoCoor<strong>de</strong>nação EditorialFlamarion MauésRevisãoMaurício Balthazar LealSandra BrazilIlustração da capaMarta BaiãoCapaAugusto GomesEditoração EletrônicaAugis - Editoração e Arte1 a edição: agosto <strong>de</strong> 1998To<strong>do</strong>s os direitos reserva<strong>do</strong>s àEditora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 23404117-091 — São Paulo — SP — BrasilTelefone: (011) 571-4299Fax: (011) 573-3338Home-page: http://www.fpabramo.org.brE-mail: editora@fpabramo.org.br


SumárioPrefácioBILA SORJ...........................................................................................09Apresentação.................................................................................11O <strong>PT</strong> e o feminismoTATAU GODINHO..............................................................................15Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no BrasilVERA SOARES.................................................................................33Globalização, políticas neoliberais erelações <strong>de</strong> gênero no BrasilHILDETE PEREIRA DE MELO...............................................................55Gênero, família e trabalhoANDRÉA BUTTO...............................................................................71Sexualida<strong>de</strong> e feminismoNALU FARIA....................................................................................85Mulher e saú<strong>de</strong>: uma avaliação contemporâneaLÍGIA MENDONÇA..........................................................................101Aborto: história <strong>de</strong> muitas históriasMARTA SUPLICY............................................................................113


Novas políticas públicas <strong>de</strong>combate à violênciaMÁRCIA CAMARGO......................................................................121Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesMARIA VICTORIA BENEVIDES........................................................137Legislan<strong>do</strong> para mulheresÂNGELA BORBA............................................................................153Gênero e políticas públicas municipaisIVETE GARCIA..............................................................................173Antigas personagens, novas cenas:mulheres negras e participação políticaMATILDE RIBEIRO.........................................................................189<strong>Mulheres</strong> na CUT:um novo olhar sobre o sindicalismoMARIA BERENICE GODINHO DELGADO (DIDICE)...........................209Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaLUCI CHOINASKI..........................................................................225


HomenagemDurante um ano e seis meses trabalhamos a seis mãos na organização<strong>de</strong>ste livro. Não foi a primeira vez que trabalhamos juntas. Tínhamosuma longa história <strong>de</strong> atuação no <strong>PT</strong> e no movimento <strong>de</strong> mulheres.Mas foi a primeira vez que organizamos um livro. E o trabalhofoi intenso. Apren<strong>de</strong>mos, compartilhamos, <strong>de</strong>batemos os artigos, nosconhecemos muito mais.E quan<strong>do</strong>, finalmente, já estávamos nos últimos <strong>de</strong>talhes, fomoscolhidas por uma <strong>de</strong>stas surpresas que a vida nos impõe e que nos<strong>de</strong>ixam marcas <strong>de</strong> ausência. Deixam um vazio que nem mesmo o tempopo<strong>de</strong> preencher. Um aneurisma cerebral nos tirou Ângela Borbapara sempre.Agora, quan<strong>do</strong> fechamos as últimas linhas <strong>do</strong> livro com essa homenagem,continuamos nos sentin<strong>do</strong> três, porque as idéias, as propostas,o trabalho incansável e a tenacida<strong>de</strong> com que Ângela encaravasuas tarefas e suas responsabilida<strong>de</strong>s estão neste livro.Ângela é uma estrela. Uma estrela que reluz em cada uma <strong>de</strong> nós,na memória <strong>de</strong> sua intolerância com a injustiça e <strong>de</strong> sua tolerância comas divergências. Da coragem com que buscou a coerência. Uma estrelaque <strong>de</strong>safiou a dicotomia entre razão e emoção e viveu a sofrida intensida<strong>de</strong><strong>de</strong>sta busca diante das contradições <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com que nos <strong>de</strong>paramos.Deixou sua marca por on<strong>de</strong> passou. Por isso, <strong>de</strong>dicamos estelivro a Ângela, que permanece como parte <strong>de</strong>le e <strong>de</strong> todas nós.NALU FARIA E TATAU GODINHO


8Mulher e política


ApresentaçãoPrefácioQualquer história <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres no Brasil teránecessariamente que consagrar um capítulo especial à atuação <strong>do</strong>Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res nas últimas décadas. O papel que esteparti<strong>do</strong> vem <strong>de</strong>sempenhan<strong>do</strong> com a inovação <strong>de</strong> suas práticas <strong>de</strong>ampliação <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> participação das mulheres transcen<strong>de</strong> emmuito seu âmbito específico para alcançar a socieda<strong>de</strong> brasileira em seuconjunto.O Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, que emergiu da confluência <strong>de</strong>vários movimentos sociais, entre eles o feminismo, ainda no perío<strong>do</strong>das lutas pela <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> país, não se restringiu a carregaruma pálida marca <strong>de</strong> sua origem, mas soube, sobretu<strong>do</strong>, darcontinuida<strong>de</strong> às principais reivindicações das mulheres e <strong>do</strong> feminismono país.Sabemos, pela realida<strong>de</strong> nacional e internacional, o quanto temsi<strong>do</strong> difícil para o movimento <strong>de</strong> mulheres ganhar espaços e mudarprocedimentos nos quais as longas e sedimentadas tradição e culturamasculinas acabaram por naturalizar a exclusão das mulheres. Éevi<strong>de</strong>nte, também, que o espaço da política é, <strong>de</strong>ntre os <strong>do</strong>mínios daação pública, aquele que mais resiste às transformações. Se o merca<strong>do</strong><strong>de</strong> trabalho e o sistema educacional, por exemplo, passaram aincorporar mulheres, diminuin<strong>do</strong> <strong>de</strong> alguma forma a enorme distânciaque as separa da participação <strong>do</strong>s homens, é na vida políticaque encontramos os maiores e mais urgentes obstáculos à integraçãodas mulheres à cidadania.9


Mulher e políticaA questão <strong>de</strong> gênero ganha, hoje, novos contornos. O <strong>de</strong>batepolítico sobre qual o papel e a dimensão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que queremostem implicações diretas sobre o bem-estar das mulheres. Apesar <strong>do</strong>viés paternalista e clientelista que caracteriza o Esta<strong>do</strong> brasileiro,sua atuação na promoção das condições básicas <strong>de</strong> reprodução socialfoi um fator importante no processo <strong>de</strong> emancipação das mulheres<strong>do</strong>s lugares tradicionais a que foram e ainda estão, em boamedida, confinadas. Portanto, para as mulheres, a antinomia intervençãoestatal versus liberda<strong>de</strong> econômica é um falso dilema comconseqüências perversas. Gran<strong>de</strong> parte das ações em favor da contenção<strong>de</strong> custos <strong>de</strong> produção ou <strong>de</strong> gastos estatais implica a suatransferência para a esfera <strong>do</strong> trabalho não-remunera<strong>do</strong> das mulheres.Muito provavelmente são e serão as mulheres que pagarão aprincipal conta da redução das esferas <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Nesse senti<strong>do</strong>, o esforço que as feministas ligadas ao <strong>PT</strong> têmfeito para sensibilizar seu próprio parti<strong>do</strong> para as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>gênero, tão gritantes em nossa socieda<strong>de</strong>, e elaborar propostas coletivaspara sua superação, adquire particular relevância.O presente livro é uma <strong>de</strong>monstração cabal <strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> mulheresligadas ao <strong>PT</strong> convencidas <strong>de</strong> que uma intervenção sensível,competente, exige o conhecimento apura<strong>do</strong> e bem-informa<strong>do</strong> <strong>de</strong>nossa realida<strong>de</strong> social.Convi<strong>do</strong> o leitor a se engajar nesse <strong>de</strong>bate e nos esforços <strong>de</strong>promover mais <strong>de</strong>mocracia e igualda<strong>de</strong> entre os gêneros.BILA SORJ10


ApresentaçãoApresentaçãoA organização feminista no <strong>PT</strong> ousou respon<strong>de</strong>r a uma questãofreqüentemente colocada: a <strong>de</strong> construir o feminismo vincula<strong>do</strong> a umprojeto político partidário. Buscou, portanto, enfrentar uma antiga <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>da esquerda, que é objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate permanente no movimento<strong>de</strong> mulheres. No <strong>PT</strong> a organização feminista existe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a suafundação, em 1980. Anos <strong>de</strong>pois, quan<strong>do</strong> as feministas petistas fazem<strong>do</strong> canto <strong>de</strong> Elis Regina — “Agora eu sou uma estrela” — uma <strong>de</strong> suasmarcas, já simbolizavam uma relação que frutificava no seu reconhecimentopelo conjunto <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Des<strong>de</strong> então o lilás, cor <strong>do</strong> feminismo,é também símbolo <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, integra<strong>do</strong> em uma trajetória <strong>de</strong> autoorganizaçãodas mulheres no parti<strong>do</strong>.A proposta da Editora Fundação Perseu Abramo para a publicação<strong>de</strong>ste livro representa um avanço nesse reconhecimento e foisaudada pela Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> com entusiasmo.Após 18 anos <strong>de</strong> vida partidária, consi<strong>de</strong>ramos importante divulgaro que construímos no <strong>PT</strong> e contribuir para o diálogo face aos <strong>de</strong>safioscoloca<strong>do</strong>s ao feminismo. Da mesma forma, o livro amplia o alcance<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate partidário, ao sintetizar aspectos significativos <strong>de</strong> nossadiscussão. Em um parti<strong>do</strong> que apenas recentemente começou a escrevera sua própria história, também almejamos que esta obra possa servircomo referência para um amplo setor das mulheres organiza<strong>do</strong> emtorno <strong>do</strong> feminismo e que tem sua prática inspirada no feminismo petista.Outro aspecto ressalta<strong>do</strong> pelo livro é o fato <strong>de</strong> que a atuaçãopartidária, por sua natureza, colocou as militantes petistas diante <strong>do</strong>11


Mulher e política<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> pensar políticas globais e integrais, tanto <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vistadas políticas públicas, como também para dar conta da complexida<strong>de</strong>partidária e sua relação com os movimentos sociais. Nesse senti<strong>do</strong>,acreditamos que os artigos darão novos elementos para a discussãosobre mulher e política no Brasil hoje.No quadro atual <strong>de</strong> hegemonia neoliberal, em que o ataque aosdireitos das mulheres ocorre <strong>de</strong> forma aguda e drástica, é fundamentala reflexão sobre a atualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> feminismo. Assim, torna-se ainda maisimportante a construção <strong>de</strong> um projeto político e organizativo alternativocapaz <strong>de</strong> enfrentar os <strong>de</strong>safios coloca<strong>do</strong>s, o que inclui a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> alianças com outros setores organiza<strong>do</strong>s. Para isso, o movimentofeminista terá <strong>de</strong> superar os impasses em que se encontra ecaminhar na construção <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres: feminista, amplo,autônomo e radical na sua utopia. Assim, esperamos que este livropossa ser inspira<strong>do</strong>r <strong>de</strong> práticas plenas <strong>de</strong> rebeldia, radicalida<strong>de</strong>,renovação da ação e das esperanças na transformação socialista dasocieda<strong>de</strong>, na qual homens e mulheres sejam livres e iguais.A prática feminista das petistas, disseminada nos mais varia<strong>do</strong>scampos e i<strong>de</strong>ntificada com a ousadia <strong>do</strong> feminismo <strong>de</strong> querer transformaro mun<strong>do</strong> em sua totalida<strong>de</strong>, se multiplica em inúmeras áreas<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate, crítica social e cultural, propostas, experiências <strong>de</strong> ação eorganização etc. Obviamente, seria impossível abarcar to<strong>do</strong>s os temas<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um único livro. Entretanto, enfrentan<strong>do</strong> a necessáriaimposição <strong>de</strong>stes limites, a escolha <strong>do</strong>s artigos buscou apresentarum panorama geral e expressar a varieda<strong>de</strong> das contribuições daspetistas. Procuramos contemplar uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas, <strong>de</strong> autorascom diferentes experiências e pontos <strong>de</strong> vista políticos, <strong>de</strong> váriosesta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país.Este é um livro plural. Os artigos não são parte <strong>de</strong> uma visãooficial <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Alguns representam o acúmulo coletivo da Secretaria<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>, sempre expressos, entretanto, a partir da ótica particular<strong>de</strong> suas autoras. São temas e interpretações em <strong>de</strong>bate.Os <strong>do</strong>is primeiros artigos se referem ao histórico <strong>do</strong> feminismo no<strong>PT</strong> e no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970. O primeiro aborda o processo <strong>de</strong>organização feminista no <strong>PT</strong>, suas conquistas e <strong>de</strong>safios, além <strong>do</strong> papelda militância petista no movimento <strong>de</strong> mulheres e no <strong>de</strong>bate feminista12


Apresentaçãono Brasil. O artigo seguinte mostra como essa segunda onda <strong>do</strong> movimentofeminista chega ao Brasil diretamente vinculada à atuação políticada esquerda e à luta pela anistia, transforman<strong>do</strong> o movimento <strong>de</strong>mulheres em um novo ator na política brasileira.Em seguida, os artigos analisam temas — trabalho, família, sexualida<strong>de</strong>,saú<strong>de</strong>, aborto e violência —, traçan<strong>do</strong> um panorama dasituação das mulheres hoje, as principais mudanças nas últimas duasdécadas, as políticas governamentais e seus efeitos. Abordam o acúmuloe limites <strong>do</strong> feminismo quanto à construção <strong>de</strong> políticas. As autorasrefletem também sobre antigos impasses, como a articulação entre família,trabalho <strong>do</strong>méstico e trabalho assalaria<strong>do</strong> e o não-reconhecimentosocial da maternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> pela brutal fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>políticas que contribuam para alterar o papel das mulheres na família esua autonomia pessoal. O marco são os atuais <strong>de</strong>safios conjunturais,em particular os efeitos das políticas neoliberais sobre a condição dasmulheres. Dentro <strong>de</strong>sse conjunto <strong>de</strong> temas, ainda são aborda<strong>do</strong>s sexualida<strong>de</strong>e aborto. Dois assuntos tabus na socieda<strong>de</strong>, em que ocorreuma forte discriminação no direito <strong>de</strong> cada mulher escolher e exercersua livre auto<strong>de</strong>terminação. A maternida<strong>de</strong> é uma forte imposição, paraa qual <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> é direcionada a i<strong>de</strong>ntificação das mulheres.Assim, na sexualida<strong>de</strong> ocorre a tentativa <strong>de</strong> normatizar a vivência dasmulheres a partir <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo heterossexual, basea<strong>do</strong> no casamentomonogâmico, e da <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que é a sexualida<strong>de</strong> correta e <strong>do</strong> que éconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> <strong>de</strong>svio. O feminismo contribui muito nessa discussão ecobra o <strong>de</strong>svendamento <strong>de</strong> mecanismos milenares <strong>de</strong> opressão, expressosna normatização repressiva sobre a sexualida<strong>de</strong> e sobre o corpodas mulheres. É neste marco que o aborto continua sen<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>crime e cada vez mais a hipocrisia que recobre sua realida<strong>de</strong> socialpune <strong>de</strong> forma mais aguda as mulheres pobres pelos riscos que enfrentamface a uma gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada.Um outro bloco se refere à questão da cidadania, à elaboração <strong>de</strong>políticas públicas e à participação das mulheres nos espaços <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,problematizan<strong>do</strong> a questão das condições para construção da igualda<strong>de</strong>.A constituição das mulheres como sujeito político e novo alvo <strong>de</strong>políticas governamentais, a partir das décadas <strong>de</strong> 1970 e 1980, abriuum novo campo <strong>de</strong> ação — e novas polêmicas — para o movimento13


Mulher e política<strong>de</strong> mulheres. Uma visão crítica ao que tem si<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong> como“institucionalização <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres” e sua ambigüida<strong>de</strong>diante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> levantou novos <strong>de</strong>bates sobre as visões <strong>de</strong> autonomia.E colocou uma exigência maior, e agora bem mais complexa <strong>do</strong>que nos anos <strong>de</strong> luta contra a ditadura: a <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comos diferentes projetos políticos presentes na socieda<strong>de</strong> brasileira e, conseqüentemente,também esclarecer a relação <strong>do</strong>s diversos setores <strong>do</strong>movimento <strong>de</strong> mulheres com o Esta<strong>do</strong>.Ao mesmo tempo, na atuação partidária, as feministas petistasnos vimos face à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir uma visão própria <strong>de</strong> atuaçãoparlamentar e governamental, indispensável para respon<strong>de</strong>r às exigências<strong>de</strong> uma nova realida<strong>de</strong> constituída pela atuação <strong>do</strong> <strong>PT</strong> à frente<strong>de</strong> governos municipais e estaduais, pela elaboração <strong>de</strong> suas plataformase pela ampliação <strong>de</strong> sua representação parlamentar.Um último bloco analisa a organização setorial <strong>de</strong> mulheres negras,sindicalistas cutistas e trabalha<strong>do</strong>ras rurais. A organização dasmulheres nestes setores representou um <strong>de</strong>safio para as feministas e anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliar sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> lidar com diferentesrealida<strong>de</strong>s e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. A atuação em movimentos mistos, assimcomo nos parti<strong>do</strong>s políticos, enriqueceu a experiência das mulheres,ao mesmo tempo que cobrou-lhes a construção <strong>de</strong> novas estratégias,além <strong>de</strong> ampliar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilização e o raio <strong>de</strong> ação <strong>do</strong>feminismo. Face à exigência <strong>de</strong> nova elaboração política e à ampliação<strong>do</strong> alcance <strong>de</strong> suas propostas, este enriquecimento se mol<strong>do</strong>u muitasvezes respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a um conflito aberto diante das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>integrar a dimensão da igualda<strong>de</strong> entre homens e mulheres na tradição<strong>do</strong>s movimentos políticos e da esquerda. Mais ainda, pela exigência dacoerência entre um projeto político anuncia<strong>do</strong> como esperança <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>social e coletiva e a dimensão pessoal vivida na experiência damilitância. O artigo final é um <strong>de</strong>poimento tocante da extensão <strong>de</strong>ssaluta, expressa no cotidiano da atuação política das mulheres.Esperamos que este livro contribua para que o necessário <strong>de</strong>batetrazi<strong>do</strong> pelo feminismo à socieda<strong>de</strong> possa se alimentar também <strong>do</strong>s<strong>de</strong>safios apresenta<strong>do</strong>s pelas mulheres <strong>do</strong> <strong>PT</strong>.AS ORGANIZADORAS14


O <strong>PT</strong> e o feminismoO <strong>PT</strong> e ofeminismoTatau GodinhoDiscutir o Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res e o feminismo é discutiruma relação rica e conflituosa, cheia <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s mas que,ao mesmo tempo, enfrenta obstáculos cotidianos, e que se estabeleceuna vida <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fundação.No Brasil, o feminismo atual é contemporâneo <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong> luta contra a ditadura, <strong>de</strong> reorganização popular e da esquerda.É neste mesmo processo que surge também o <strong>PT</strong>. Aqui, o feminismoencontrou eco junto a militantes políticas da esquerda, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntesou <strong>de</strong> grupos políticos organiza<strong>do</strong>s, provenientes da lutacontra a ditadura, e que buscavam construir o feminismo cola<strong>do</strong>aos movimentos populares. Para parte significativa das ativistas quese <strong>de</strong>dicaram à construção <strong>do</strong> movimento, a luta pela libertação dasmulheres não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser parte integrante <strong>de</strong> um projetosocialista, nas múltiplas visões existentes <strong>de</strong>sse projeto. Não poracaso uma das primeiras palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>stacadas pelas mulheresorganizadas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> <strong>PT</strong> (a partir da articulação <strong>de</strong> mulheres <strong>do</strong><strong>PT</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul) foi “Não há socialismo sem feminismo”.É nessa busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o projeto político <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong><strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res e uma visão <strong>de</strong> luta pela libertação das mulheresque nasce e se <strong>de</strong>senvolve o feminismo no <strong>PT</strong>. Essa trajetóriaTatau GodinhoIntegrante da Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong><strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res e <strong>do</strong> Diretório Regional<strong>de</strong> São Paulo. Foi Secretária <strong>de</strong> Organizaçãoda Executiva Nacional <strong>do</strong> <strong>PT</strong> (1993-95).15


Tatau Godinhonão se <strong>de</strong>senvolve sem contradições. No Brasil, como em váriosoutros países, a relação <strong>do</strong> feminismo com a esquerda se <strong>de</strong>senvolveucontraditoriamente, ora negan<strong>do</strong> ora afirman<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.Cíntia Sarti (1988) chama a atenção para as exigências colocadaspara as ativistas <strong>do</strong>s movimentos sociais no Brasil, naquele momentoem que ocorria um amplo processo <strong>de</strong> mobilização.“O feminismo foi se impon<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse quadro geral <strong>de</strong> mobilizaçõesdiferenciadas. Procurou conviver com essa diversida<strong>de</strong>, semnegar sua particularida<strong>de</strong>. Isso envolveu muita cautela. Inicialmente,ser feminista tinha uma conotação negativa. Vivia-se sob o fogocruza<strong>do</strong>. Para a direita, era um movimento perigoso, imoral. Paraa esquerda, reformismo burguês, e para muitas mulheres e homens,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ologia, ser feminista tinha uma conotaçãoantifeminina.”É pela mão <strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas militantes feministas <strong>de</strong>dicadas àconstrução <strong>de</strong> um projeto partidário que o feminismo entra no <strong>PT</strong>,trazen<strong>do</strong> três elementos fundamentais: uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> feminismocom as lutas populares que se <strong>de</strong>senvolviam no país; uma elaboraçãofeminista que se colocava como integrante e essencial a umprojeto socialista; e uma visão crítica da relação histórica da esquerdacom as lutas das mulheres. Um projeto <strong>de</strong> muitas mãos e cujainterpretação, sem dúvida, não é única.Feminismo e socialismo:renovan<strong>do</strong> um projeto <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>O enraizamento nas diferentes formas <strong>de</strong> organização popular,nos movimentos políticos contra a ditadura militar, na luta social,que esteve na base da construção <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, constituía um campofértil para uma ampla camada <strong>de</strong> ativistas feministas que, por diferentescaminhos e experiências, tentavam construir um movimento<strong>de</strong> mulheres que fosse <strong>de</strong> massa, com sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, plataformae formas <strong>de</strong> organização, porém profundamente vincula<strong>do</strong> à16


O <strong>PT</strong> e o feminismoluta e à organização <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res 1 . A elaboração inicial <strong>do</strong>“feminismo petista” afirmava-se em uma visão <strong>de</strong> que “qualquer movimentose organiza em torno <strong>de</strong> lutas” (COMISSÃO DE MULHERES DO<strong>PT</strong>, 1981, p. 3) e propunha que o <strong>PT</strong> <strong>de</strong>veria comprometer-se com aslutas e ban<strong>de</strong>iras das mulheres, aprovadas nos fóruns amplos <strong>do</strong>movimento, e também que as petistas se incorporassem ao movimentoautônomo <strong>de</strong> mulheres. Insistia no reconhecimento das “diferentesiniciativas das mulheres para enfrentar em seus própriosâmbitos as artimanhas <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r patriarcal” e na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>“implantar estratégias múltiplas <strong>de</strong> ação, amplian<strong>do</strong> os caminhos<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r para o movimento, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>, junto com outroscoletivos e grupos, espaços <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e visibilida<strong>de</strong> no público. E,ao mesmo tempo, converter essa multiplicida<strong>de</strong> em um movimento<strong>de</strong> mulheres autônomo, massivo, com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser uminterlocutor váli<strong>do</strong> frente aos parti<strong>do</strong>s, instituições, Esta<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>sos outros movimentos sociais” (O <strong>PT</strong> E A LUTA..., 1988).Um segun<strong>do</strong> elemento extremamente importante se vinculavaa uma renovação <strong>do</strong> socialismo. Ao introduzir no <strong>de</strong>bate sobre aconstrução <strong>de</strong> um projeto político socialista libertário, efetivamente<strong>de</strong>mocrático, o questionamento da incongruência entre o público eo priva<strong>do</strong>, a <strong>de</strong>fesa da privacida<strong>de</strong> e ao mesmo tempo a reivindicação<strong>do</strong> estatuto político das questões consi<strong>de</strong>radas privadas e a idéia<strong>de</strong> construção da igualda<strong>de</strong> entre homens e mulheres, na concretu<strong>de</strong><strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s materiais e também na profundida<strong>de</strong> das relaçõesprivadas e coletivas, a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> feminismo trazia para <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, como temas políticos, uma nova visão <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong>futuro. Introduziam-se novos elementos em uma plataforma <strong>de</strong>renovação da esquerda: a importância da sexualida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>núncia da1. O primeiro <strong>do</strong>cumento mais amplo da Comissão <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong> São Paulo procuraapresentar ao parti<strong>do</strong> uma compreensão geral sobre o movimento <strong>de</strong> mulheres, sua importânciae uma proposta <strong>de</strong> organização interna das mulheres, buscan<strong>do</strong> convencer e legitimara organização das mulheres: “[...] a opressão das mulheres não está <strong>de</strong>sligada da opressão<strong>de</strong> classe, mas se vincula a ela. O movimento <strong>de</strong> mulheres não é pois um espaço isola<strong>do</strong> daluta <strong>de</strong> classes e das lutas políticas.” COMISSÃO DE MULHERES DO <strong>PT</strong>. Mulher e <strong>PT</strong>: uma proposta<strong>de</strong> discussão e trabalho. São Paulo, jul. 1981, item 2, p. 2.17


Tatau Godinhoopressão e da violência presentes na vida familiar e pessoal, o reconhecimentoda homossexualida<strong>de</strong> como forma legítima <strong>de</strong> expressãoda sexualida<strong>de</strong>, o questionamento da falta <strong>de</strong> autonomia dasmulheres, o papel da divisão sexual <strong>do</strong> trabalho na superexploraçãoe discriminação no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e no trabalho <strong>do</strong>méstico,os cortes <strong>de</strong> gênero na usurpação e nas disputas <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Estesaspectos, como vários outros presentes no feminismo, introduziamno <strong>de</strong>bate programático <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> uma amplitu<strong>de</strong> que cobrava umanova compreensão da política.Ao buscar <strong>de</strong>svelar a forma como se entrelaçavam as relações<strong>de</strong> gênero e as relações <strong>de</strong> classe nos processos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação, umsetor <strong>do</strong> feminismo i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o socialismo, em âmbito internacional,questionava o quadro teórico da esquerda e introduziaos elementos <strong>de</strong> uma das principais renovações teóricas neste campona segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século (ANDERSON, 1984).Vários serão os pontos <strong>de</strong> vista neste <strong>de</strong>bate, também <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> feminismo. Helena Hirata e Danièle Kergoat (1994), por exemplo,insistem que “o conceito <strong>de</strong> classes sociais foi reinterpreta<strong>do</strong>pelo feminismo — em particular, pelas pesquisas sobre as relaçõessociais <strong>de</strong> sexo e sobre o gênero”, e afirmam que “as relações <strong>de</strong>classe e relações <strong>de</strong> sexo são, <strong>de</strong> fato, coextensivas (isto é, elas sesuperpõem em parte): tanto para as mulheres como para os homenssó po<strong>de</strong>m ser analisadas conjuntamente”.Mas a contribuição teórica introduzida pelo feminismo vaialém <strong>do</strong> âmbito da política e da esquerda. Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos(1996) assinala que a importância da atenção sobre a“especificida<strong>de</strong> da exploração <strong>do</strong> trabalho e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> femininas,não só no espaço da produção capitalista como também noespaço <strong>do</strong>méstico e na esfera pública em geral, constitui o contributomais importante para a sociologia <strong>do</strong>s anos 80”.E, finalmente, ao se construir no contraponto das experiências<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s comunistas tradicionais, hegemônicos até a década <strong>de</strong>1970, o <strong>PT</strong> estava potencialmente aberto a essa renovação, inclusivepor sua pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origens. Em parte também <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à pouca18


O <strong>PT</strong> e o feminismoconsolidação programática, característica <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> em seu perío<strong>do</strong><strong>de</strong> formação. Como o <strong>PT</strong> nunca chegou a uma elaboração maisexaustiva <strong>de</strong> projeto, é nas resoluções <strong>do</strong>s sucessivos encontros nacionais,nos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> plataformas eleitorais e nos gran<strong>de</strong>smomentos <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> posição diante da conjuntura que oparti<strong>do</strong> vai elaboran<strong>do</strong>, em geral <strong>de</strong> forma pouco sistemática, seuprograma. E é nesses momentos que se po<strong>de</strong> avaliar o quanto dasreflexões <strong>de</strong>senvolvidas pelas mulheres organizadas em seu interiorse refletiam efetivamente na elaboração <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e em aspectosimportantes <strong>de</strong> sua intervenção.Construí<strong>do</strong> e se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> no campo da esquerda, ofeminismo enfrentava o tensionamento e os limites da relaçãocom a própria esquerda. A convivência exigia uma visão crítica<strong>de</strong>ssa relação. Questionava as formas organizativas tradicionais,em geral inspiradas, internamente, nos “<strong>de</strong>partamentos femininos”<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s comunistas. Na organização externa, <strong>de</strong>safiavaa lógica <strong>de</strong> organizações <strong>de</strong> mulheres totalmente subordinadas àsdireções partidárias e as relações discriminatórias e exclu<strong>de</strong>ntesno exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.Os conflitos e contradições aparecem também porque na formação<strong>do</strong> <strong>PT</strong> confluíram setores diferencia<strong>do</strong>s, com tradições políticasdiversas e avessos às formas autônomas e à rebeldia propostapelo feminismo. Traziam consigo visões muitas vezes conserva<strong>do</strong>rassobre a plataforma feminista ou até mesmo sobre o processo <strong>de</strong>organização das mulheres.Uma concepção <strong>de</strong> organização partidária que respeitasse aautonomia <strong>do</strong>s movimentos sociais foi um elemento importante noprocesso <strong>de</strong> constituição <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. Talvez por isso, a compreensão daautonomia <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> não percebero movimento como extensão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, não tenha enfrenta<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>dificulda<strong>de</strong>. Pelo contrário, a realida<strong>de</strong> é que o parti<strong>do</strong> sempreteve dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir uma proposta coerente e unificada <strong>de</strong>intervenção <strong>de</strong> suas militantes no movimento. Por outro la<strong>do</strong>, o reconhecimentodas mulheres como sujeitos sociais, a compreensão <strong>do</strong>sconflitos da opressão <strong>de</strong> gênero no interior das classes sociais, a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> combatê-la no interior das classes trabalha<strong>do</strong>ras revelaram-se19


Tatau Godinhomuito mais difíceis. Ainda hoje existe resistência diante da postulação<strong>de</strong> que a luta contra a opressão das mulheres não po<strong>de</strong> ser subsumidaà luta <strong>de</strong> classes e a uma frágil compreensão da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizaçãoprópria e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das mulheres. A legitimida<strong>de</strong> e oreconhecimento da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-organização das mulheresfoi e permanece um <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.A organização das mulheres<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> <strong>PT</strong>Inicialmente, a organização das mulheres <strong>do</strong> <strong>PT</strong> se concentrou,como o restante da vida partidária, nos gran<strong>de</strong>s centros urbanos.Durante os primeiros anos <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, a organização das mulheresse <strong>de</strong>senvolveu com mais força nos esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> São Paulo, Rio<strong>de</strong> Janeiro, Minas Gerais e Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, embora alguns outrosesta<strong>do</strong>s também tivessem organiza<strong>do</strong> comissões <strong>de</strong> mulheres.Esse é um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate organizativo, no qual se apresentavamdiferentes visões sobre a forma <strong>de</strong> organização das mulheres.Em parte, po<strong>de</strong>-se atribuir essas diferentes visões a diversas concepções<strong>de</strong> construção partidária. Mas isso não se constituía em diferençaessencial. De fato, durante vários anos, se <strong>de</strong>senvolveu um <strong>de</strong>bateinteressante sobre a forma mais a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> organização das mulheres.Se em núcleos <strong>de</strong> base, como era a proposta geral <strong>de</strong> organizaçãoda base partidária, ou em secretarias ou comissões <strong>de</strong> mulherescom funções mais <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação e elaboração <strong>de</strong> propostaspara o parti<strong>do</strong>. Como ficou claro com o passar <strong>do</strong>s anos, com o grau<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> as duas formas podiam se mostrar úteis. Osenti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate era muito mais o <strong>de</strong> verificar os caminhos paraampliar a força das mulheres, <strong>de</strong> construir mecanismos <strong>de</strong> aproximaçãodas mulheres. Afinal, em suas gran<strong>de</strong>s linhas, havia i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>sobre os objetivos gerais <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> organização. Qualquerque fosse a forma orgânica escolhida, os objetivos e <strong>de</strong>safios coloca<strong>do</strong>seram, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista prático, basicamente os mesmos: constituirum espaço para a organização das mulheres no parti<strong>do</strong>, ganhar espaçopara a agenda feminista no programa <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e na socieda<strong>de</strong>, potencializara presença das petistas no movimento <strong>de</strong> mulheres, incentivar o <strong>de</strong>bate20


O <strong>PT</strong> e o feminismosobre uma plataforma feminista geral, construir a política <strong>do</strong> <strong>PT</strong> para asmulheres, influencian<strong>do</strong> as instâncias partidárias nos diferentes momentos<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sua ação e seu programa.No final <strong>do</strong>s anos 80 ganha força um outro objetivo: a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> ampliar os espaços <strong>de</strong> participação política das mulheres.À medida que o parti<strong>do</strong> se construía, se consolidava, ganhava seuespaço na socieda<strong>de</strong>, estabilizava sua camada <strong>de</strong> direção e <strong>de</strong> expressõespúblicas, as mulheres iam per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> espaço. Foi no bojo <strong>de</strong>ssaavaliação que se propôs uma política <strong>de</strong> ação afirmativa, que serádiscutida mais tar<strong>de</strong>.Ousadia no projeto <strong>de</strong> ConstituiçãoUm importante momento <strong>de</strong> teste, <strong>de</strong> avaliação da capacida<strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a uma plataforma feminista, foi o perío<strong>do</strong> da Constituinte.Apesar das limitações <strong>do</strong> Congresso Constituinte eleito, o <strong>PT</strong>se colocou o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> apresentar um projeto alternativo global <strong>de</strong>organização da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Avalian<strong>do</strong> os limites e entravesque enfrentaria em uma discussão feita a partir da correlação <strong>de</strong> forçasconserva<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Congresso, o <strong>PT</strong> partiu para a elaboração <strong>de</strong> seu projeto.Ao se colocar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> um projeto global, o <strong>PT</strong> não po<strong>de</strong>ria<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> la<strong>do</strong> pontos essenciais <strong>de</strong> uma agenda feminista.Três são os aspectos que se <strong>de</strong>stacam na proposta: a luta geralcontra a discriminação, a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> direito à livre orientação sexuale a <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong> aborto 2 .A afirmação <strong>do</strong> princípio geral <strong>de</strong> não-aceitação <strong>de</strong> qualquerforma <strong>de</strong> opressão e discriminação, ainda que estas apareçam muitasvezes <strong>de</strong> forma geral e abstrata, é uma base importante para a <strong>de</strong>fesa<strong>de</strong> direitos <strong>de</strong> efetiva igualda<strong>de</strong>. Assim, não é irrelevante que naquelaproposta o parti<strong>do</strong> con<strong>de</strong>nasse explicitamente, entre todas as formas<strong>de</strong> discriminação, aquelas baseadas no sexo e na orientaçãosexual.2. O projeto <strong>de</strong> Constituição apresenta<strong>do</strong> pelo <strong>PT</strong> ainda aponta para outras questões,como total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> divórcio; reconhecimento da paternida<strong>de</strong> e maternida<strong>de</strong> como funçãosocial; explicitação da garantia <strong>de</strong> segurida<strong>de</strong> social para as <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa, trabalha<strong>do</strong>rasrurais e empregadas <strong>do</strong>mésticas etc.21


Tatau GodinhoE, finalmente, a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> direito ao aborto. Sob um clima <strong>de</strong>disputa <strong>de</strong> posições, pressão e compromissos com setores da Igrejacatólica, a direção <strong>do</strong> <strong>PT</strong> aprovou a proposta <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong>aborto. O projeto <strong>de</strong> Constituição apresenta<strong>do</strong> pelo <strong>PT</strong> ao Congresso,em 1987, <strong>de</strong>fendia uma posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong> aborto e oseu atendimento pela re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Submeti<strong>do</strong> a uma fortepressão interna e externa, vinda <strong>de</strong> setores vincula<strong>do</strong>s à hierarquiada Igreja, o parti<strong>do</strong> manteve com coerência o conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> suaposição. As concessões a estes setores foram feitas abrin<strong>do</strong> mão daunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encaminhamento ao se aprovar uma excepcionalida<strong>de</strong>no encaminhamento das votações: apenas neste item, relativo aoaborto, aqueles <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s fe<strong>de</strong>rais da bancada petista que se sentiamconstrangi<strong>do</strong>s, por suas relações religiosas, <strong>de</strong> votar com a proposta<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> podiam abster-se, mas não se confrontar à posição <strong>do</strong>parti<strong>do</strong> votan<strong>do</strong> contrariamente 3 . O texto final <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> Constituiçãoapresenta<strong>do</strong> pelo <strong>PT</strong> ao Congresso Nacional dizia:“Direito à prática <strong>do</strong> abortoArt. 47 — A lei não punirá a prática <strong>do</strong> aborto, quan<strong>do</strong> consenti<strong>do</strong>livremente pela gestante ou por seu representante legal, bem comonos casos on<strong>de</strong> houver risco <strong>de</strong> vida.Parágrafo único. Nos termos <strong>de</strong>ste artigo, os órgãos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> públicaprestarão toda assistência à mulher que se submeter à prática<strong>do</strong> aborto.”O momento <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong>ste projeto é um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> maiorcoerência e coesão na elaboração partidária; <strong>de</strong> radicalida<strong>de</strong> na disputai<strong>de</strong>ológica na <strong>de</strong>fesa das posições <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, mesmo enfrentan<strong>do</strong>o conserva<strong>do</strong>rismo <strong>de</strong> setores alia<strong>do</strong>s importantes; e <strong>de</strong> umaousadia que o parti<strong>do</strong> per<strong>de</strong>rá na década seguinte, juntamente com3. A reunião ampliada <strong>do</strong> Diretório Nacional <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, realizada nos dias 11 e 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong>1987, que discutiu os pontos polêmicos <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> Constituição a ser <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> peloparti<strong>do</strong>, a<strong>do</strong>tou como posição indicativa a <strong>de</strong>fesa da garantia constitucional ao direito daprática <strong>do</strong> aborto, com assistência e amparo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em todas as fases, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> aabertura <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> discussão no parti<strong>do</strong> sobre a questão <strong>do</strong> aborto. Após esseprocesso, o texto final <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> Constituição apresenta<strong>do</strong> pelo <strong>PT</strong> ao Congresso Nacionalpropunha claramente a <strong>de</strong>scriminação, como transcrito aqui.22


O <strong>PT</strong> e o feminismoo <strong>de</strong>clínio da coesão <strong>de</strong> sua bancada fe<strong>de</strong>ral. É significativo lembrarque, recentemente, em uma emenda que previa apenas o atendimentona re<strong>de</strong> pública <strong>do</strong>s casos <strong>de</strong> aborto já previstos em lei (Projeto<strong>de</strong> Lei 20/91) 4 , a atuação da bancada fe<strong>de</strong>ral foi minada peladissidência <strong>de</strong> alguns e justificativas envergonhadas <strong>de</strong> outros.Uma atuação tímida nas administraçõesAinda que o parti<strong>do</strong> tivesse si<strong>do</strong> vitorioso em alguns municípiosnas eleições <strong>de</strong> 1982, será a partir <strong>de</strong> 1988, com vitórias em um númeromuito mais significativo <strong>de</strong> prefeituras, entre elas capitais como Vitória,Porto Alegre e São Paulo e cida<strong>de</strong>s como Campinas, Santos, SantoAndré e São Bernar<strong>do</strong>, num total <strong>de</strong> 36 prefeituras, que o <strong>PT</strong> ampliarásua elaboração <strong>de</strong> política municipal, introduzin<strong>do</strong> inovações comoabertura <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> participação popular, orçamento participativo,mudanças na política educacional e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> etc. Será também nestemomento que irá se colocar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> políticas públicas em relaçãoàs mulheres. O resulta<strong>do</strong>, entretanto, foi uma política tímida, que nãose propôs a mudanças significativas para a vida das mulheres.Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma avaliação crítica da experiência <strong>do</strong>s vários Conselhosda Mulher, cria<strong>do</strong>s principalmente pelos governos <strong>do</strong> PMDB, o<strong>PT</strong> vai elaborar uma nova proposta para suas administrações. Esta críticaestá bem sintetizada no <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> proposta da Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>riada Mulher da Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo 5 . Há o reconhecimento <strong>de</strong> que aconstituição <strong>de</strong> organismos na esfera <strong>do</strong> Executivo“com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver políticas em relação às mulheressignifica um avanço não apenas no reconhecimento da discriminação4. O Projeto <strong>de</strong> Lei 20/91 em nada alterava a legislação sobre o aborto. Apenas previa que oserviço público <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>via cumprir a lei e aten<strong>de</strong>r os casos <strong>de</strong> aborto nela previstos(gravi<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> estupro e em caso <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> vida para a mãe). Ver neste livro oartigo <strong>de</strong> Marta Suplicy.5. Projeto para a Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria Especial da Mulher para a Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo. Documentoelabora<strong>do</strong> por um grupo <strong>de</strong> trabalho constituí<strong>do</strong> pela administração municipal, comparticipação <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e PC<strong>do</strong>B e uma integrante não-filiada a nenhum parti<strong>do</strong>. A representante<strong>do</strong> PC<strong>do</strong>B registrou no projeto sua discordância da proposta feita pela Comissão <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong><strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> uma Secretaria da Mulher no governo municipal. No processo <strong>de</strong>negociação com a prefeitura a proposta foi modificada para uma Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria. O <strong>do</strong>cumentofoi aprova<strong>do</strong> pela administração em abril <strong>de</strong> 1989.23


Tatau Godinhodas mulheres, mas principalmente na responsabilização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>de</strong> intervir com uma política antidiscriminatória”e na aceitação <strong>de</strong> reivindicações <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres. Noentanto, continua o <strong>do</strong>cumento, este“reconhecimento não obscurece as críticas que fazemos a sua forma<strong>de</strong> estruturação, às <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s na proposta e implementação <strong>de</strong>políticas <strong>de</strong>senvolvidas pelos Conselhos e à ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua relaçãocom o movimento <strong>de</strong> mulheres”.A crítica se fundamentava na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes organismos comoarticula<strong>do</strong>res e implementa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> governo e na suaexistência prioritariamente como instrumentos <strong>de</strong> propaganda <strong>do</strong>sgovernos que procuravam se legitimar como interlocutores <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Diante <strong>de</strong>ssas críticas, a proposta elaborada e <strong>de</strong>fendida nointerior das Secretarias <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong>mandava a criação <strong>de</strong>organismos executivos, com caráter <strong>de</strong> implementação <strong>de</strong> políticaspúblicas em conjunto com outros organismos <strong>de</strong> governo. Para queisso se efetivasse, obviamente, seria necessário garantir um nível real<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, com competência e autonomia financeira e administrativapara que se pu<strong>de</strong>sse garantir a integração <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>gênero na atuação global <strong>do</strong> Executivo.Mesmo com uma avaliação crítica e construin<strong>do</strong> uma novaproposta, o fato é que a implementação da política não ganhou pesonas prefeituras ou governos administra<strong>do</strong>s pelo <strong>PT</strong>. E não se constituicomo marca da experiência petista. A elaboração <strong>de</strong> uma alternativanão se difundiu no parti<strong>do</strong>, inviabilizan<strong>do</strong> uma integraçãoreal <strong>de</strong>ssa política na visão geral das administrações. As experiênciasimportantes que se <strong>de</strong>senvolveram permaneceram isoladas mesmo<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s governos e não se generalizaram no quadrogeral das administrações. Vale a pena mencionar a Assessoria <strong>do</strong>sDireitos da Mulher da Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Santo André, que nagestão 1989-92 buscou construir uma política inova<strong>do</strong>ra, com umavisão <strong>de</strong> transformação mais global da ação municipal, buscan<strong>do</strong>24


O <strong>PT</strong> e o feminismoi<strong>de</strong>ntificar na política e na vida urbana aqueles elementos que pu<strong>de</strong>ssemconstituir mudanças na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das mulheres apartir <strong>de</strong> uma intervenção municipal. Isso levou a tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> políticas setoriais específicas, ten<strong>do</strong> as mulherescomo alvo <strong>de</strong> políticas públicas nas áreas <strong>de</strong> combate à violência,saú<strong>de</strong>, educação, transporte público etc.Outro exemplo importante que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar foi a política<strong>de</strong> atendimento <strong>do</strong> aborto nos casos já previstos em lei, implementa<strong>do</strong>pela Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Esse serviço,<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no Hospital Jabaquara, cumpriu o papel importante<strong>de</strong> romper com o silêncio sobre o atendimento ao aborto. Sofren<strong>do</strong>oposição interna nos quadros da própria administração, a implantação<strong>do</strong> serviço foi pioneira no enfrentamento <strong>do</strong> problema <strong>do</strong> aborto.Em si mesmo, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> número <strong>de</strong> mulheres atendidas,o serviço é bastante limita<strong>do</strong>, uma vez que está subordina<strong>do</strong> auma legislação extremamente restrita (possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aborto emcaso <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> estupro e em casos <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> vidapara a mãe) e ao número reduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias <strong>do</strong>s casos <strong>de</strong> estupro.Sua importância está, <strong>de</strong> fato, na quebra <strong>do</strong> tabu e <strong>do</strong> silêncioque paira sobre a proibição <strong>do</strong> aborto no Brasil.Houve outras experiências <strong>de</strong> ações específicas, em algumasoutras administrações, principalmente com a constituição <strong>de</strong> casas<strong>de</strong> referência e atendimento a mulheres vítimas <strong>de</strong> violência, ou, aindamenos generaliza<strong>do</strong>s, atendimentos <strong>de</strong> planejamento familiar, queneste ponto alteravam a qualida<strong>de</strong> da atenção à saú<strong>de</strong> das mulheres,ou políticas <strong>de</strong> apoio econômico às mulheres. Mas o fato é que amaioria das prefeituras e governos estaduais <strong>do</strong> <strong>PT</strong> constituíram estruturasdébeis, inspiradas nos mo<strong>de</strong>los <strong>do</strong>s Conselhos, e não conseguiramconstruir uma marca administrativa e política que fosse referência<strong>de</strong> políticas públicas dirigidas às mulheres.Rompen<strong>do</strong> com engrenagenstradicionais das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rA presença política <strong>do</strong> feminismo no <strong>PT</strong> e a existência <strong>de</strong> organismos<strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s à construção <strong>de</strong>sta política no parti<strong>do</strong> não foram25


Tatau Godinhosuficientes para alterar <strong>de</strong> forma substantiva as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acessodas mulheres aos cargos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no parti<strong>do</strong>. Apenas em 1991,com a aprovação <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> ação afirmativa, ocorre uma alteraçãoimportante na presença das mulheres nas direções 6 .A partir <strong>de</strong> 1980, ano <strong>de</strong> fundação <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, as direções nacionais<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> mantiveram uma composição em que a presença masculinase mantinha sempre em torno <strong>do</strong>s 90%. O processo <strong>de</strong> seleçãodas direções <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> refletia e repetia os mecanismos encontra<strong>do</strong>snas diferentes áreas da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> maior exclusão das mulheresà medida que se ascen<strong>de</strong> nos graus <strong>de</strong> hierarquia das direções (nocaso <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, diretórios municipais, estaduais e nacional). Expressan<strong>do</strong>a divisão sexual <strong>de</strong> trabalho, papéis e funções, que coloca barreirasà entrada das mulheres nas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r público 7 , este não éum fenômeno característico ou exclusivo <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. A presença dasmulheres nas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nos parti<strong>do</strong>s políticos brasileiros é,em geral, ainda menor <strong>do</strong> que no <strong>PT</strong>, mesmo antes da aprovação <strong>de</strong>políticas <strong>de</strong> ação afirmativa 8 . A cota mínima <strong>de</strong> 30% <strong>de</strong> mulheresnas direções partidárias foi aprovada no 1 o Congresso <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, realiza<strong>do</strong>entre 27 <strong>de</strong> novembro e 1 o <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1991. Naquele anoo parti<strong>do</strong> não renovou suas direções. As direções estaduais e municipaisforam renovadas pela primeira vez já com o dispositivo dascotas em 1992 e a direção nacional em 1993. Trata-se, portanto, <strong>de</strong>uma experiência ainda recente. A discriminação <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> filiação<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o sexo não está disponível em relação a to<strong>do</strong>s osesta<strong>do</strong>s, já que neles o levantamento da Justiça Eleitoral não é unifica<strong>do</strong>.No entanto, os da<strong>do</strong>s disponíveis no momento da discussão <strong>de</strong>ssapolítica no <strong>PT</strong> <strong>de</strong>monstravam que, na gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s,6. Para esta parte utilizei o meu artigo “Ação afirmativa no Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res”. RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas. Rio <strong>de</strong> Janeiro, IFCS/UFRJ-PPCIS/UERJ, vol. 4, 1/96, p. 148-157.7. Aqui nos referimos aos espaços públicos em oposição à vida privada, e não em oposiçãoà chamada “iniciativa privada”. Ou seja, o espaço público po<strong>de</strong> se referir ao Esta<strong>do</strong> ou aosdiferentes aspectos da socieda<strong>de</strong> civil.8. É difícil encontrar da<strong>do</strong>s sistematiza<strong>do</strong>s sobre a presença das mulheres nas direçõespartidárias no Brasil. De maneira geral, os da<strong>do</strong>s precisam ser recolhi<strong>do</strong>s junto às direçõespartidárias ou ao TSE. A publicação <strong>Mulheres</strong> latino-americanas em da<strong>do</strong>s, organizada porTeresa Val<strong>de</strong>s e Henrique Gomariz, é uma fonte importante, embora contenha imprecisões.Ver também, para outros da<strong>do</strong>s, Fanny Tabak (1989) e Lúcia Avelar (1989 e 1996).26


O <strong>PT</strong> e o feminismoo número <strong>de</strong> mulheres filiadas estava entre 35% e 45% 9 . O contrasteentre a presença das mulheres nas direções e na base total <strong>de</strong> filia<strong>do</strong>sera enorme e colocava em xeque a coerência <strong>do</strong>s discursos em <strong>de</strong>fesada igualda<strong>de</strong>. Vale a pena conferir os da<strong>do</strong>s.Diretório Nacional <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resproporção entre mulheres e homensAno <strong>de</strong> eleição dadireçãoTotal <strong>de</strong> membros HomensNúmero - %<strong>Mulheres</strong>Número - %1981 92 84 - 91,3% 8 - 8,7%1984 66 62 - 93,9% 4 - 6,1%1986 81 76 - 93,8% 5 - 6,2%1987 81 77 - 95,1% 4 - 4,9%1990 82 77 - 93,9% 5 - 6,1%1993 84 59 - 70,24% 25 - 29,76%1995 83 58 - 69,88% 25 - 30,12%1997 82 57 - 69,51% 25 - 30,49%Fonte: PARTIDO DOS TRABALHADORES. Boletim da Subsecretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, nov. 1991.Resoluções <strong>do</strong> 8º Encontro Nacional, 1993, e Resoluções <strong>do</strong> 10º Encontro Nacional, s/d.; SecretariaNacional <strong>de</strong> Organização.Obs.: Estes números não incluem os lí<strong>de</strong>res da bancada no Congresso Nacional.O espaço para a discussão <strong>de</strong> temáticas femininas ou feministasganhou espaço nos parti<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong>s anos 70 e, no Brasil, emparticular nos anos 80 (ALVAREZ, 1988; DUBY e PERROT, 1995). Oacesso aos cargos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, tanto nas disputas parlamentares comona estrutura interna <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s, é muito mais complica<strong>do</strong>. E éinteressante ver que, mesmo em países on<strong>de</strong> o feminismo foi significativamentemais forte e organiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> que no Brasil, a presençadas mulheres nestes espaços só se alterou a partir da a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> políticas<strong>de</strong> ação afirmativa (DUBY e PERROT, 1995).Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua aprovação no <strong>PT</strong>, o tema <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> açãoafirmativa era praticamente ausente da socieda<strong>de</strong> brasileira comoum to<strong>do</strong> e mesmo <strong>do</strong>s setores acadêmicos ou <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>mulheres. A idéia <strong>de</strong> uma cota mínima <strong>de</strong> mulheres para as direções9. A filiação <strong>de</strong> mulheres correspondia a 38,8% em São Paulo; 42,9% no Rio <strong>de</strong> Janeiro;39% no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul; 35,5% no Paraná, 44,8% em Pernambuco (da<strong>do</strong>s forneci<strong>do</strong>spelos Tribunais Regionais Eleitorais). PARTIDO DOS TRABALHADORES. Boletim da SubsecretariaNacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, nov. 1991.27


Tatau Godinhofoi inicialmente levantada como proposição a ser apresentada aoparti<strong>do</strong> durante o 2º Encontro Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> 10 , realiza<strong>do</strong>em Vitória (ES) em 1988. Naquele momento a proposta <strong>de</strong>abrir a discussão sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> uma política<strong>de</strong> cotas foi <strong>de</strong>rrotada, por pequena margem <strong>de</strong> votos. E ressurgiuquase três anos <strong>de</strong>pois quan<strong>do</strong> a Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong><strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong>cidiu levar novamente a proposta ao 3º Encontro Nacional<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, realiza<strong>do</strong> em agosto <strong>de</strong> 1991 em Ibirité (MG).Desta vez, entretanto, a proposta foi discutida e aprovada pelo fórumdas mulheres petistas como parte <strong>de</strong> uma plataforma <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>ação afirmativa mais ampla.A introdução <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> ação afirmativa no Brasil paraas eleições parlamentares <strong>de</strong> 1996 foi um passo importante parainserir o <strong>de</strong>bate em uma esfera mais ampla, ainda que aqui não sepossa <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enfatizar as contradições advindas <strong>de</strong> sua aplicaçãoem um sistema eleitoral que privilegia a votação individual enão por lista partidária, o que distorce totalmente a eficácia damedida.A discussão sobre a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> ação afirmativaestá relacionada a uma visão sobre <strong>de</strong>mocracia, igualda<strong>de</strong> e direitos.Defen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os pressupostos da reivindicação <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> postuladaem sua visão <strong>do</strong> feminismo (em contraposição a correntesvinculadas ao feminismo da diferença), Alicia Puleo (1994) insisteem que o feminismo, “por uma razão básica <strong>de</strong> justiça, pe<strong>de</strong> umaverda<strong>de</strong>ira igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s que se plasme na realida<strong>de</strong>concreta por meio <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> medidas políticas <strong>de</strong> ação positiva”.Partin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que diante da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> socialexistente entre homens e mulheres é necessário estabelecer umapolítica consciente para sua superação, em contraposição a uma visão<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> formal estritamente fundada na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> direitose <strong>de</strong>veres iguais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das condições sociais <strong>do</strong>s indivíduos,as políticas <strong>de</strong> ação afirmativa significam uma <strong>de</strong>cisão consciente10. Até o terceiro encontro, foi manti<strong>do</strong> o nome “Encontro <strong>de</strong> Militantes Petistas <strong>do</strong>Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>”. Já a partir <strong>do</strong> quarto encontro, em 1993, passou-se a utilizar“Encontro <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>”. A Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> manteve-secomo “subsecretaria” até a gestão <strong>de</strong> 1995. Por simplificação, no texto utilizamos anomenclatura atual.28


O <strong>PT</strong> e o feminismoe explícita <strong>de</strong> intervir nas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s entre homense mulheres.É evi<strong>de</strong>nte que a dinâmica <strong>de</strong> exclusão funda-se em <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>ssociais que estão além <strong>do</strong>s espaços da política, sejam os parti<strong>do</strong>sou as dinâmicas eleitorais. Mas com certeza é fortalecida pormeio <strong>de</strong> mecanismos que reproduzem internamente a hierarquia <strong>de</strong>gênero, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> a valorização diferenciada <strong>de</strong> tarefas e papéise estigmatizan<strong>do</strong> as mulheres em espaços <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s secundários.Assim, a maneira como se concretizam as relações partidáriase os mecanismos <strong>de</strong> seleção das direções, ao contrário <strong>de</strong> introduzircríticas a esta segmentação, a reforça.Os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> direção basea<strong>do</strong>s fundamentalmente no <strong>de</strong>sempenhoindividual, nas relações pessoais privilegiadas com a mídia,no exercício <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s pouco <strong>de</strong>senvolvidas no processo <strong>de</strong>socialização das mulheres, como falar em público, e a presença constante<strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> disputa extremamente agressivos sem dúvidadificultam a entrada e a permanência das mulheres em espaços <strong>de</strong>direção partidária. Freqüentemente, a simbologia e a linguagem <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r expressam uma pretensa superiorida<strong>de</strong> masculina. E é nesseambiente que as mulheres enfrentam o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> se construir comodirigentes.Assim como no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, são extremamente relevantesas dificulda<strong>de</strong>s advindas da situação familiar das mulheres, dadivisão sexual <strong>do</strong> trabalho em casa e da ausência <strong>de</strong> políticas sociais quefacilitem sua inserção na vida pública. E pesam muito mais em umaárea on<strong>de</strong> a organização <strong>do</strong> tempo disponível para a ativida<strong>de</strong> políticaé pouco adaptada aos horários tradicionais da vida familiar.A primeira conseqüência positiva da aprovação da política <strong>de</strong>cotas foi um <strong>de</strong>sbloqueamento <strong>do</strong> espaço das mulheres no parti<strong>do</strong>.A sua presença nos órgãos <strong>de</strong> direção criou condições mais propíciaspara um início <strong>de</strong> alteração das relações cotidianas entre homense mulheres. Este é um processo <strong>de</strong> longo prazo e sempre pressiona<strong>do</strong>a retroce<strong>de</strong>r ante o crescimento <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo e ainvestida da direita sobre a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> para as mulheres.Tornou-se mais freqüente no parti<strong>do</strong> a cobrança para que as mulheresocupassem cargos <strong>de</strong> representação. Ao mesmo tempo, a nova29


Tatau Godinhosituação impulsionou as mulheres a ousarem disputar e se apresentarpoliticamente.Embora ainda permaneçam dúvidas e questionamentos quantoà proposta, sua aprovação foi i<strong>de</strong>ntificada como uma conquistacoletiva das mulheres. Isso ampliou a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> das militantes coma plataforma <strong>de</strong>fendida pelas mulheres organizadas no parti<strong>do</strong>, suai<strong>de</strong>ntificação enquanto mulheres (lutas e reivindicações <strong>de</strong> gênero),mesmo que com caráter contraditório. Não significou, necessariamente,uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas como feministas (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>fato <strong>de</strong> serem favoráveis ou não às políticas <strong>de</strong> ação afirmativa, jáque este é um <strong>de</strong>bate existente mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>mulheres). Valen<strong>do</strong>-nos novamente <strong>de</strong> Alicia Puleo (1994), é precisoreconhecer que“poucos souberam e sabem ver o potencial <strong>de</strong> transformação revolucionáriaque o feminismo significa para nossa espécie em seu conjunto.O termo feminismo assusta, e ainda hoje muitas mulheres sevêem obrigadas a se distanciar publicamente <strong>do</strong> feminismo paragarantir o perdão por sua intromissão nos espaços tradicionalmentemasculinos das letras, das artes, da política ou da ciência”.A complexidada<strong>de</strong> da construção das mulheres como sujeitose da sua i<strong>de</strong>ntificação como feministas é uma “condicionante importanteda dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> novos sujeitos ou mesmoda i<strong>de</strong>ntificação mais instrumental das mulheres com as propostasfeministas” (PINTO, 1994). Ampliar a presença das mulheres nos espaços<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r é um elemento importante para romper com o caráter<strong>de</strong> excepcionalida<strong>de</strong> que torna ainda mais difícil o reconhecimentodas mulheres como sujeitos políticos integrais.Na verda<strong>de</strong>, as políticas <strong>de</strong> ação afirmativa se fundamentamem uma concepção <strong>de</strong> política e <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> gênero emque as mulheres, como gênero, são o alvo. Buscam alterar as relações<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre homens e mulheres, reforçadas pela convicção<strong>de</strong> que sua presença coletiva, e não como exceções, é elementoessencial, embora não suficiente, para se alterar as relações <strong>de</strong>gênero. A isso se acrescenta a manutenção e a atuação organizada30


O <strong>PT</strong> e o feminismo<strong>de</strong> um pólo dinamiza<strong>do</strong>r da política feminista no parti<strong>do</strong> (as secretarias,comissões ou núcleos), a luta política para que o parti<strong>do</strong>incorpore <strong>de</strong> fato a plataforma feminista, a atuação buscan<strong>do</strong>ampliar o <strong>de</strong>senvolvimento da consciência feminista <strong>do</strong>s e dasmilitantes <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.Muitas <strong>de</strong>ssas mudanças correspon<strong>de</strong>m a um processo <strong>de</strong> alteração<strong>de</strong> hábitos e valores a serem reconstruí<strong>do</strong>s nas relações cotidianase vão muito além da intervenção nas direções partidárias 11 . Talvezpor ser a única iniciativa que inci<strong>de</strong> diretamente sobre a constituiçãomesma <strong>do</strong>s núcleos <strong>de</strong> direção, a proposta <strong>de</strong> cota mínima <strong>de</strong>mulheres foi não apenas a mais polêmica, mas a única efetivamentedisputada. E, ainda que o parti<strong>do</strong> aprove, como foram aprovadas,outras medidas necessárias à criação <strong>de</strong> condições para a participaçãodas mulheres, nenhuma <strong>de</strong>las alterou <strong>de</strong> forma tão significativao acesso ao po<strong>de</strong>r e o papel das mulheres no parti<strong>do</strong>.Seria falso dizer que estão superadas as resistências e dificulda<strong>de</strong>s.Elas reaparecem a cada momento em que as disputas se renovamou que o <strong>de</strong>bate vem à tona. Mas a experiência é <strong>de</strong> uma ampliaçãoreal <strong>do</strong> espaço político para as mulheres, com contradições,mas ganhan<strong>do</strong> espaços no <strong>de</strong>bate na socieda<strong>de</strong>.BibliografiaALVAREZ, Sônia. 1988. Politizan<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong> gênero e engendran<strong>do</strong> a<strong>de</strong>mocracia. In: STEPAN, Alfred, org. Democratizan<strong>do</strong> o Brasil. Rio<strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra.ANDERSON, Perry. 1984. A crise da crise <strong>do</strong> marxismo. São Paulo, Brasiliense.AVELAR, Lúcia. 1989. O segun<strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong>: tendências <strong>do</strong> voto feminino noBrasil. Campinas, Ed. da Unicamp.11. O 3º Encontro Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> aprovou uma série <strong>de</strong> propostas que buscavama ampliação da participação política das mulheres por meio <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> ação afirmativa:reconhecimento da igualda<strong>de</strong> entre homens e mulheres no enuncia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s princípiosgerais <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, reconhecimento da organização interna das mulheres como Secretaria,política <strong>de</strong> formação para as mulheres bem como presença da temática feminista na políticageral <strong>de</strong> formação <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e na imprensa, exigência <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> creches durante osencontros partidários etc. Des<strong>de</strong> o primeiro momento, entretanto, ficou evi<strong>de</strong>nte que o centro<strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates seria a proposta <strong>de</strong> cota mínima <strong>de</strong> mulheres nas direções.31


Tatau GodinhoAVELAR, Lúcia. 1996. <strong>Mulheres</strong> na elite política brasileira: canais <strong>de</strong> acesso aopo<strong>de</strong>r. São Paulo, Fundação Konrad A<strong>de</strong>nauer, Série Pesquisas n. 6.COMISSÃO DE MULHERES DO <strong>PT</strong>. 1981. Mulher e <strong>PT</strong>: uma proposta <strong>de</strong> discussãoe trabalho. São Paulo,. jul. Mimeogr.DUBY, G. e PERROT, Michelle. 1995. História das mulheres no oci<strong>de</strong>nte.Porto/São Paulo, Afrontamento/Ebradil, vol. 5.GODINHO, Tatau. 1996. Ação afirmativa no Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas. Rio <strong>de</strong> Janeiro, IFCS, v. 4, nº 2, p. 148-157,jan.HIRATA, Helena e KERGOAT, Danièle. 1994. A classe operária tem <strong>do</strong>issexos. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ,v. 2, nº 3, p. 93-100.O <strong>PT</strong> e a luta pela libertação das mulheres. 1988. Texto base para o 2ºEncontro Nacional <strong>de</strong> Militantes Petistas <strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>.Vitória. Mimeogr.PARTIDO DOS TRABALHADORES. 1991. Boletim da Subsecretaria Nacional <strong>de</strong><strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. São Paulo, nov.PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções <strong>do</strong> 1º Congresso. São Paulo, 1992.PINTO, Céli Regina Jardim. 1994. Mulher e política no Brasil: os impasses<strong>do</strong> feminismo enquanto movimento social, face às regras <strong>do</strong> jogo da<strong>de</strong>mocracia representativa. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro,CIEC/ECO/UFRJ, número especial, p. 256-70.PROJETO <strong>de</strong> Constituição apresenta<strong>do</strong> pela bancada <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resà Assembléia Nacional Constituinte. 1987. Brasília, 6 <strong>de</strong> maio.SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. 1989. Projeto para a Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria Especialda Mulher para a Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo.PULEO, Alicia. 1994. Memoria <strong>de</strong> una ilustración olvidada. El Viejo Topo,Madrid, nº 73, p. 27-30.SANTOS, Boaventura <strong>de</strong> Sousa. 1996. Pela mão <strong>de</strong> Alice: o social e o políticona pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. São Paulo, Cortez.SARTI, Cíntia. 1988. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular. Ca<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, São Paulo, nº 64, p. 38-47, fev.TABAK, Fanny. 1989. A mulher brasileira no Congresso Nacional. Brasília,Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s.VALDES, Teresa e GOMARIZ, Henrique, coords. 1993. <strong>Mulheres</strong> latino-americanasem da<strong>do</strong>s: Brasil. Espanha, Instituto <strong>de</strong> la Mujer e FLACSO.32


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no BrasilMuitas faces <strong>do</strong>feminismono BrasilVera SoaresIntroduçãoEste texto busca construir uma trajetória <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>mulheres a partir <strong>do</strong>s anos 70, i<strong>de</strong>ntificar os vários espaços on<strong>de</strong> asmulheres se organizam e apontar alguns <strong>de</strong>safios coloca<strong>do</strong>s para omovimento <strong>de</strong> mulheres, em particular para o feminismo, a partir<strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização e <strong>de</strong> globalização.A bibliografia sobre os movimentos <strong>de</strong> mulheres foi o ponto<strong>de</strong> partida, mas muitas vezes foi a memória a fonte para a inspiração,fazen<strong>do</strong> refletir minha experiência e construin<strong>do</strong> uma visãoparticular das trajetórias e das questões que <strong>de</strong>safiam esse movimento.Como vivo e milito na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, esta análise certamentetraz um viés paulistano.O conceito <strong>de</strong> feminismo aqui utiliza<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong>que o feminismo é a ação política das mulheres. Engloba teoria,prática, ética e toma as mulheres como sujeitos históricos da transformação<strong>de</strong> sua própria condição social. Propõe que as mulherespartam para transformar a si mesmas e ao mun<strong>do</strong>. O feminismo seVera SoaresFoi integrante da Comissão <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong><strong>de</strong> 1982 a 1994. É militante feminista, membro daELAS — Elisabeth Lobo Assessoria, consultoracientífica <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s da Mulher e RelaçõesSociais <strong>de</strong> Gênero da USP — NEMGE-USP. (Este texto é uma reelaboração <strong>de</strong> textosanteriores: SOARES, 1994; DELGADO e SOARES, 1995.)33


Vera Soaresexpressa em ações coletivas, individuais e existenciais, na arte, nateoria, na política. Reconhece um po<strong>de</strong>r não somente no âmbito <strong>do</strong>público-estatal, mas também o po<strong>de</strong>r presente em to<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social,fazen<strong>do</strong> a concepção convencional da política e a noção <strong>de</strong> sujeitose ampliarem. To<strong>do</strong>s aqueles que têm uma posição subalternana relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r existentes são chama<strong>do</strong>s a transformálas.Não existe pois um só sujeito histórico que enfrenta e transformatais relações em nome <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os subalternos. Reconheceuma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeitos que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua opressão específica,questionam e atuam para transformar esta situação (SOARES etalii, 1995).Apesar <strong>de</strong> a ação das mulheres se inscrever numa ação maisgeral <strong>de</strong>mocratiza<strong>do</strong>ra e mo<strong>de</strong>rniza<strong>do</strong>ra da cultura e <strong>do</strong>s costumesna socieda<strong>de</strong> brasileira, a reflexão aqui fica no âmbito <strong>do</strong>s movimentos<strong>de</strong> mulheres e <strong>do</strong> movimento feminista. Esta escolha per<strong>de</strong>ao não analisar as influências mais amplas <strong>do</strong> movimento feministamas, por outro la<strong>do</strong>, ganha nas possibilida<strong>de</strong>s da reflexão <strong>de</strong> umsegmento organiza<strong>do</strong> das mulheres na socieda<strong>de</strong>.As mulheres nos movimentosA presença das mulheres na cena social brasileira nas últimasdécadas tem si<strong>do</strong> inquestionável. Durante os 21 anos em que o Brasilesteve sob o regime militar, as mulheres estiveram à frente nosmovimentos populares <strong>de</strong> oposição, crian<strong>do</strong> suas formas próprias<strong>de</strong> organização, lutan<strong>do</strong> por direitos sociais, justiça econômica e<strong>de</strong>mocratização. “O movimento operário que se organizou nos anos70 é seguramente o ator mais importante neste cenário. Os movimentos<strong>de</strong> mulheres constituem a novida<strong>de</strong>” (SOUZA-LOBO, 1991, p.269). A presença das mulheres na arena política foi, assim, construídano perío<strong>do</strong> da ditadura, a partir <strong>do</strong>s anos 60, sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s elementosque contribuíram para os processos <strong>de</strong> mudanças no regime político;“[...] além disso, mulheres também compuseram a colunavertebral <strong>de</strong> muitas das organizações <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> civil e parti<strong>do</strong>spolíticos <strong>de</strong> oposição que com êxito <strong>de</strong>safiaram regras autoritáriasdurante os anos 70 e início <strong>do</strong>s 80” (ALVAREZ, 1988).34


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no BrasilDe fato, as mulheres estiveram presentes nas lutas <strong>de</strong>mocráticase, simultaneamente, mostraram e têm <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> que diversossetores se inserem diferentemente na conquista da cidadania eque os efeitos <strong>do</strong> sistema econômico são senti<strong>do</strong>s diferenciadamente<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as contradições específicas nas quais estes setoresestão imersos (SADER, 1988).As mulheres — novas atrizes —, ao transcen<strong>de</strong>rem seu cotidiano<strong>do</strong>méstico, fizeram <strong>de</strong>spontar um novo sujeito social: mulheresanuladas emergem como inteiras, múltiplas. Elas estavam nos movimentoscontra a alta <strong>do</strong> custo <strong>de</strong> vida, pela anistia política, porcreches. Criaram associações e casas <strong>de</strong> mulheres, entraram nos sindicatos,on<strong>de</strong> reivindicaram um espaço próprio. Realizaram seusencontros. Novos temas entraram no cenário político, novas práticassurgiram. Algumas autoras citam o movimento que emergiu noBrasil como talvez “o mais amplo, maior, mais diverso, mais radicale o movimento <strong>de</strong> maior influência <strong>do</strong>s movimentos <strong>de</strong> mulheresda América Latina” (STERNBACH et alii, 1992, p. 414).Dois processos fundamentais que cruzaram a segunda meta<strong>de</strong><strong>do</strong>s anos 70 e toda a década <strong>de</strong> 1980 marcam a presença <strong>do</strong>s movimentossociais no Brasil contemporâneo: as crises econômicas e a inflaçãocrescente que <strong>de</strong>las <strong>de</strong>correm, e o processo <strong>de</strong> abertura política, ambosafetan<strong>do</strong> e mobilizan<strong>do</strong> tanto as classes médias como as operárias.A “transição negociada” <strong>do</strong> regime autoritário processou-se apartir da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s anos 70, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> “distensãolenta e gradual” <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte Geisel, e veio acompanhada da proliferação<strong>de</strong> movimentos populares, da consolidação da oposição, daremobilização da esquerda, da rearticulação <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> oposição,da expansão da ação pastoral da Igreja católica. As mulheresneste perío<strong>do</strong> tiveram espaço para uma maior ação política emcontraposição ao imaginário social que as vê como cidadãs <strong>de</strong>spolitizadasou intrinsecamente apolíticas.Foi durante a ditadura militar, quan<strong>do</strong> existiam as torturas apresos políticos, a homens, mulheres e crianças supostamente participantes<strong>de</strong> movimentos políticos, que o movimento feminista foicapaz <strong>de</strong> produzir uma série <strong>de</strong> argumentos iluminan<strong>do</strong> as ligaçõesda violência contra a pessoa e contra as mulheres na esfera <strong>do</strong>méstica.35


Vera SoaresO movimento <strong>de</strong> mulheres que aparece durante os anos 70rompeu com uma tradição segun<strong>do</strong> a qual as mulheres manifestavampublicamente valores tradicionais e conserva<strong>do</strong>res, como ocorreucom a Marcha da Família com Deus pela Liberda<strong>de</strong>, que prece<strong>de</strong>o golpe militar (BLAY, 1987). O movimento <strong>de</strong> mulheres nosanos 70 trouxe uma nova versão da mulher brasileira, que vai àsruas em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus direitos e necessida<strong>de</strong>s e que realiza enormesmanifestações <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Concor<strong>do</strong> com Alvarezquan<strong>do</strong> afirma que, ironicamente, as regras autoritárias <strong>do</strong>s militares,que tinham por intenção <strong>de</strong>spolitizar e restringir os direitos <strong>do</strong>scidadãos e cidadãs, tiveram como conseqüência a mobilização dasmulheres, geralmente marginais na política (ALVAREZ, 1990).O movimento <strong>de</strong> mulheres no Brasil foi (e ainda é) muito heterogêneo.Na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vemos tratar <strong>de</strong> movimentos <strong>de</strong> mulheres quetrouxeram à participação política muitas mulheres influenciadas pelofeminismo que ressurgiu também no perío<strong>do</strong>, “um feminismorevisita<strong>do</strong>”, como afirmou Beth Lobo ao fazer referência aos movimentosfeministas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século, em que mulheres lutaram pelaconquista <strong>do</strong> voto e pelo direito à educação (SOUZA-LOBO, 1991).O movimento feminista que reapareceu no Brasil a partir <strong>de</strong>mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 70 teve algumas características <strong>do</strong>s movimentosque surgiram na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s nos anos 60. Noentanto, as condições políticas locais, geradas pelas peculiarida<strong>de</strong>sda primeira fase <strong>do</strong> governo militar, não <strong>de</strong>ram lugar à emergência<strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> liberação radicaliza<strong>do</strong>, como os que mobilizarammulheres da mesma geração e camada social naquelas socieda<strong>de</strong>s,com trajetórias e questionamentos “i<strong>de</strong>ntitários” semelhantesaos <strong>de</strong> muitas jovens brasileiras (GOLDBERG, 1989).Esta mesma situação, por outro la<strong>do</strong>, propiciou a emergência<strong>do</strong> feminismo no seio das militantes <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerda e <strong>de</strong>mulheres engajadas na luta pela <strong>de</strong>mocracia no país. Tratou-se <strong>do</strong>surgimento <strong>de</strong> um feminismo cujas militantes estavam em sua maioriatambém engajadas nos grupos <strong>de</strong> esquerda ou nas lutas <strong>de</strong>mocráticas,crian<strong>do</strong> um movimento feminista bastante politiza<strong>do</strong>, o que aautora chamou <strong>de</strong> “um feminismo bom para o Brasil” (GOLDBERG,1988).36


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no BrasilO ano <strong>de</strong> 1975 é freqüentemente cita<strong>do</strong> como aquele em queos grupos feministas reapareceram nos principais centros urbanos.Naquele ano, quan<strong>do</strong> muitas vozes dissi<strong>de</strong>ntes eram sistematicamentesilenciadas pelos militares brasileiros, a proclamação da Décadada Mulher pelas Nações Unidas aju<strong>do</strong>u a legitimar <strong>de</strong>mandasincipientes <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> entre homens e mulheres. As mulheres souberamaproveitar a brecha e organizaram encontros, seminários,conferências, principalmente nas cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong> SãoPaulo. A partir daí, comemorações públicas <strong>do</strong> Dia Internacionalda Mulher (8 <strong>de</strong> março) passaram a ocorrer em vários esta<strong>do</strong>s, váriasorganizações feministas tomaram forma e vários jornais feministasapareceram.Os primeiros grupos feministas cria<strong>do</strong>s na década <strong>de</strong> 1970nasceram com o compromisso <strong>de</strong> lutar tanto pela igualda<strong>de</strong> dasmulheres como pela anistia e pela abertura <strong>de</strong>mocrática 1 . Eram grupos<strong>de</strong> reflexão e pressão, cujas feministas tomaram como tarefa“traduzir sua motivação original em proposições que sejam relevantespara a gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>sprivilegiadas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> amobilizá-las contra a opressão <strong>de</strong> sexo e <strong>de</strong> classe” (SINGER, 1980, p.119). Muitas mulheres passaram a dirigir sua atuação, por intermédio<strong>do</strong>s grupos recém-cria<strong>do</strong>s, para lutas em bairros e comunida<strong>de</strong>sdas periferias urbanas, da Igreja católica, em clubes <strong>de</strong> mães, associações<strong>de</strong> vizinhança, on<strong>de</strong> <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa e mães se reuniam, organizavam-see mobilizavam-se por questões <strong>do</strong> cotidiano.Os grupos feministas e os movimentos populares <strong>de</strong> mulheresproliferaram durante os anos 70 e início <strong>do</strong>s 80. As comemorações<strong>do</strong> Dia Internacional da Mulher se constituíram em momentos-chavepara a organização <strong>de</strong> fóruns das mulheres, articulan<strong>do</strong> protestospúblicos contra a discriminação <strong>de</strong> sexo e uma agenda <strong>de</strong> reivindicações,consolidan<strong>do</strong> uma coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> mulheres e laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>.Até os dias <strong>de</strong> hoje essas comemorações se constituem em um<strong>do</strong>s momentos privilegia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> encontro <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres.1. A luta pela anistia no Brasil teve uma gran<strong>de</strong> participação das mulheres, que iniciaram oMovimento Feminino pela Anistia, em 1975, composto principalmente por esposas, mães,irmãs e outras familiares <strong>de</strong> vítimas da repressão. Muitas feministas tiveram participaçãoimportante neste movimento, conforme aponta Paul Singer (1980).37


Vera SoaresOs sindicatos também passaram a ser lugar da militância feminista,crian<strong>do</strong>-se uma interlocução entre as feministas e as sindicalistas,que teve <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos significativos para as relações entreo sindicalismo e as trabalha<strong>do</strong>ras.As feministas <strong>de</strong>bateram com as esquerdas e com as forças políticasprogressistas alguns pontos da teoria e da prática <strong>do</strong> fazer político,apontan<strong>do</strong> para a não-hierarquização das lutas e a sexualização das práticasnos espaços públicos. O feminismo trouxe novos temas para oconjunto <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres, posteriormente incorpora<strong>do</strong>spelos parti<strong>do</strong>s políticos: direito <strong>de</strong> ter ou não filhos, punição aos assassinos<strong>de</strong> mulheres, aborto, sexualida<strong>de</strong>, violência <strong>do</strong>méstica.No início <strong>do</strong>s anos 80 chegavam a quase uma centena os gruposfeministas espalha<strong>do</strong>s pelos principais centros urbanos <strong>do</strong> país.No Brasil, como também em vários países da América Latina,as mulheres se fizeram e se fazem visíveis por meio <strong>de</strong> umamultiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressões organizativas, uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reivindicaçõese formas <strong>de</strong> luta.Os movimentos <strong>de</strong> mulheres, como outros movimentos sociais,são movimentos não-clássicos, na medida em que transcorremnas esferas não-tradicionais <strong>de</strong> organização e ação política — a novida<strong>de</strong>é que tornaram visíveis a prática e a percepção <strong>de</strong> amplos setoressociais que geralmente estavam marginaliza<strong>do</strong>s da análise da realida<strong>de</strong>social, iluminaram aspectos da vida e <strong>do</strong>s conflitos sociais emgeral obscureci<strong>do</strong>s e ajudaram a questionar velhos paradigmas daação política. Uma das principais contribuições <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>mulheres tem si<strong>do</strong> evi<strong>de</strong>nciar a complexida<strong>de</strong> da dinâmica social eda ação <strong>do</strong>s sujeitos sociais, revelan<strong>do</strong> o caráter multidimensional ehierárquico das relações sociais e a existência <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong>heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> conflito.Para uma compreensão inicial <strong>de</strong>stes movimentos foi usualnos referirmos ao movimento feminista como uma das expressões<strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> mulheres mais amplo (VARGAS, 1993). As feministascompõem uma face <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres. As mulheresdas periferias <strong>do</strong>s centros urbanos, das pequenas comunida<strong>de</strong>srurais, as que atuam nos sindicatos compõem a outra face. Cadauma das vertentes <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres po<strong>de</strong>ria ser analisada38


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilcomo um movimento social, enfocan<strong>do</strong> suas dinâmicas próprias,suas formas <strong>de</strong> expressão etc. Mas como estas vertentes se tocam, seentrelaçam, entram em contradição, utilizaremos a expressão movimento<strong>de</strong> mulheres, reconhecen<strong>do</strong> que este é uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>processos. O movimento <strong>de</strong> mulheres, à semelhança <strong>de</strong> outros movimentossociais, representa “uma noção analítica, que abarca umimenso guarda-chuva, abrigan<strong>do</strong> ações coletivas diversas, com diferentessignifica<strong>do</strong>s, alcances e durações” (PAOLI, 1995).As feministas, como expressão <strong>de</strong> uma das vertentes <strong>de</strong>stemovimento, traduzem a rebeldia das mulheres na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>sua situação <strong>de</strong> subordinação e exclusão <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e buscam construiruma proposta i<strong>de</strong>ológica que reverta esta marginalida<strong>de</strong> e quese concretize a partir da construção <strong>de</strong> uma prática social que negueos mecanismos que impe<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua consciênciacomo seres autônomos e que supere a exclusão. As feministas fazem<strong>do</strong> conhecimento e da eliminação das hierarquias sexuais seu objetivocentral, e a partir daí se articulam com as outras vertentes <strong>do</strong>movimento <strong>de</strong> mulheres (SOARES et alii, 1995).Uma das parcelas <strong>do</strong>s movimentos <strong>de</strong> mulheres nos anos 70 e80, no Brasil, nasceu <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> vizinhança nas periferias <strong>do</strong>sgran<strong>de</strong>s centros urbanos. As mulheres <strong>do</strong>s bairros populares construíramuma dinâmica política própria. Por intermédio <strong>de</strong> seus papéissocialmente <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esposas e mães, fizeram os primeirosprotestos contra o regime militar. Lutaram contra o aumento <strong>do</strong>custo <strong>de</strong> vida, reivindicaram boas escolas, centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, águacorrente, transportes, re<strong>de</strong> elétrica, moradia, legalização <strong>de</strong> terrenos eoutras necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> infra-estrutura urbana, exigiram condições a<strong>de</strong>quadaspara cuidar <strong>de</strong> sua família, educar suas crianças (SAFFIOTI, 1988;SARTI, 1988; GOLDBERG, 1989). Sônia Alvarez (1988) utiliza o termomilitant motherhood para caracterizar estes movimentos.Em fins <strong>do</strong>s anos 70 apareceram pelo menos <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>smovimentos sociais li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s por mulheres: o movimento contra aalta <strong>do</strong> custo <strong>de</strong> vida e o <strong>de</strong> luta por creches 2 . A participação nestesmovimentos levou muitas mulheres a reunirem condições <strong>de</strong>2. A luta por creches nos bairros populares <strong>de</strong> São Paulo, em 1973, por intermédio das comunida<strong>de</strong>sda Igreja católica, foi um movimento <strong>de</strong> diversos grupos espalha<strong>do</strong>s pela cida<strong>de</strong>,39


Vera Soaresquestionar as relações <strong>de</strong> gênero, suas relações não-igualitárias comseus mari<strong>do</strong>s, famílias e comunida<strong>de</strong>s.A forte presença da Igreja católica na vida das mulheres éinseparável <strong>de</strong>sses movimentos. Como resulta<strong>do</strong> das medidas repressivas<strong>do</strong> governo militar, principalmente <strong>de</strong> 1964 a 1974, apareceramnovas estratégias das comunida<strong>de</strong>s organizadas. A Igreja católicafoi um <strong>do</strong>s poucos espaços que permitiram a articulação daresistência não-armada ao governo militar. A Igreja progressistaofereceu um guarda-chuva organizacional para a oposição ao regimee cobriu as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> oposição com um véu <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>moral (ALVAREZ, 1988). A vida concreta <strong>de</strong>ssas mulheres se modificouparcialmente por meio <strong>de</strong> sua inserção nas comunida<strong>de</strong>s, “o uso<strong>de</strong> seu tempo, a ampliação <strong>de</strong> seu espaço <strong>de</strong> circulação geográfico esocial, suas trocas com outras mulheres, seu ativismo religioso e suamilitância política transformaram seu cotidiano” (NUNES ROSADO,1991, p. 274).Assim, as mulheres pobres, a partir da ação política para melhorarsuas vidas e a <strong>de</strong> seus familiares, se re<strong>de</strong>finiam para si mesmascomo legítimas atrizes públicas e modificavam as normas tradicionaisque limitam a mulher ao âmbito priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> lar. Entretanto,mesmo que organizadas em suas ações <strong>de</strong> sobrevivência, mesmo ten<strong>do</strong>saí<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu encerramento <strong>do</strong>méstico, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> interlocutores,aumenta<strong>do</strong> seu sentimento <strong>de</strong> auto-estima, estas mulherespo<strong>de</strong>m não modificar no essencial a profunda segregação sexual nasocieda<strong>de</strong>, nem alterar a direção <strong>do</strong>s projetos sociais. Mas elas seconstituíram e ainda se constituem nas interlocutoras privilegiadasdas feministas.Em geral, a hierarquia da Igreja e alguns padres progressistasficaram <strong>do</strong>utrinariamente em oposição, ou agiram mesmo com hostilida<strong>de</strong>em relação a algumas reivindicações <strong>do</strong> feminismo, principalmentequanto aos direitos reprodutivos e temas da sexualida<strong>de</strong>,inicialmente sem vínculo entre si. A partir <strong>do</strong> I Congresso da Mulher Paulista, em 1979, organiza<strong>do</strong>pelas feministas e que teve a participação <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> mulheres <strong>do</strong>s bairros, ocorreua articulação <strong>de</strong>sses vários grupos, nascen<strong>do</strong> um amplo movimento <strong>de</strong> luta por creches. OMovimento Contra a Carestia foi uma das primeiras manifestações contra o regime militar econtou com a participação <strong>de</strong> diversos setores da socieda<strong>de</strong>. As mulheres foram suas principaisprotagonistas e <strong>de</strong>le <strong>de</strong>correram várias organizações <strong>de</strong> mulheres.40


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilem particular o aborto. Mas as mulheres nestes espaços foram sujeitosativos e reagiram às muitas práticas e discursos da Igreja (NUNESROSADO, 1991). Criou-se uma relação ao mesmo tempo conflitiva e<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> entre as mulheres das Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong>Base e as feministas, fazen<strong>do</strong> surgir um amplo movimento <strong>de</strong> mulheres.Quan<strong>do</strong> essas mulheres ganham formas autônomas <strong>de</strong> organizaçãoem relação à Igreja, constituin<strong>do</strong>, por exemplo, casas <strong>de</strong>mulheres, ampliam seu grau <strong>de</strong> autonomia política e o espectro <strong>de</strong>suas reivindicações.Uma outra parcela <strong>de</strong>ste movimento <strong>de</strong> mulheres são as trabalha<strong>do</strong>rasurbanas e rurais. O crescimento da presença das mulheresno merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho foi simultâneo ao aumento <strong>de</strong> suasindicalização e à emergência <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres, o qual,sem dúvida, influenciou no relacionamento <strong>do</strong>s sindicatos com estase na percepção <strong>de</strong>stas quanto a sua condição <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ras(CAPPELLIN, 1994). No <strong>de</strong>correr da década <strong>de</strong> 1980 vão aparecermuitas comissões <strong>de</strong> mulheres ou <strong>de</strong>partamentos nos sindicatos enas centrais sindicais, organizadas a partir <strong>de</strong> 1983. Logo surgem ascomissões ou secretarias <strong>de</strong> mulheres. Estas vão se constituir emlugares on<strong>de</strong> são geradas as reflexões e propostas <strong>de</strong> ação sindical dasmulheres, um lugar on<strong>de</strong> as trabalha<strong>do</strong>ras “possam romper seu silêncio,falar <strong>de</strong> suas angústias e me<strong>do</strong>s e legitimar uma representaçãofeminina num espaço político consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> masculino” (NEVES,1994, p. 255). As centrais sindicais e os sindicatos tiveram <strong>de</strong> se abrir àorganização das trabalha<strong>do</strong>ras e incorporar questões trazidas por elaspara o <strong>de</strong>bate. Elas introduziram a discussão <strong>do</strong> cotidiano <strong>do</strong> trabalho,da <strong>de</strong>svalorização <strong>do</strong> salário, da segregação ocupacional, da ausência<strong>de</strong> infra-estrutura <strong>de</strong> assistência à trabalha<strong>do</strong>ra gestante, daviolência no local <strong>de</strong> trabalho e também das práticas sindicais que asexcluem <strong>de</strong> uma participação mais ativa nos postos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Conseguemfazer uma reflexão própria que articula uma luta contra adiscriminação por sexo nos locais <strong>de</strong> trabalho com uma <strong>de</strong>mandavisan<strong>do</strong> a romper a assimetria nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no interior dasorganizações sindicais. As trabalha<strong>do</strong>ras tratam também <strong>do</strong>s elos eimpasses na articulação entre merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e família (DEL-GADO, 1996).41


Vera SoaresAs trabalha<strong>do</strong>ras rurais participaram (e participam) <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> organização das trabalha<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> maneira expressiva e peculiar3 . Fazem parte <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> extremamente heterogênea,<strong>de</strong>rivada da penetração <strong>do</strong> capital na agricultura, em que a luta pelareforma agrária e pela terra, por melhores condições <strong>de</strong> produção,preços agrícolas, salários e direitos sociais — que unificam homens emulheres <strong>do</strong> campo — se alia à luta particular das camponesas porcidadania e visibilida<strong>de</strong> como trabalha<strong>do</strong>ras.“Sejam pequenas produtoras rurais, sem-terra ou barrageiras, bóiasfriasou empregadas nas gran<strong>de</strong>s fazendas, elas vêm transforman<strong>do</strong>o cenário político e social da agricultura brasileira ao mostrar suacombativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>terminação na luta pela conquista <strong>de</strong> uma novai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, a <strong>de</strong> mulheres trabalha<strong>do</strong>ras rurais” (LAVINAS eCAPPELLIN, 1991, p. 28).Nos anos 80 as feministas mantiveram, e mantêm ainda hoje,uma relação intensa com essas diversas faces <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres— muitas vezes tensa, outras enriquece<strong>do</strong>ra ou até empobrece<strong>do</strong>ra.Fizeram um entrelaçamento <strong>de</strong>ssas diferentes vertentes, <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> que hoje ficam um pouco menos nítidas as <strong>de</strong>marcações, principalmenteentre as mulheres <strong>do</strong>s movimentos populares e o movimentofeminista.Anos 90: uma explosãoA década <strong>de</strong> 1980 foi marcada pela reconstrução das instânciasda <strong>de</strong>mocracia liberal: reorganização partidária, eleições para os diversosníveis, reelaboração da Constituição <strong>do</strong> país, eleições presi<strong>de</strong>nciaisetc. A questão da <strong>de</strong>mocracia, presente na constituição <strong>do</strong>smovimentos sociais, agora se coloca na relação <strong>de</strong>sses com o Esta<strong>do</strong>— a incorporação das suas reivindicações. As políticas públicaspassam à agenda <strong>de</strong>sses movimentos.Fez parte da “transição lenta e gradual” para a <strong>de</strong>mocracia areformulação e a criação <strong>de</strong> novos parti<strong>do</strong>s políticos. Com a possi-3. Sobre a situação da mulher na área rural brasileira ver, entre outras, Lena Lavinas (1987).42


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilbilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consolidação das bases sociais <strong>de</strong>stes novos parti<strong>do</strong>s, ossetores <strong>de</strong> oposição se alinharam genericamente em torno <strong>de</strong> duasestratégias diferentes: manter as alianças e permanecer no mesmoparti<strong>do</strong>, com o objetivo <strong>de</strong> ganhar, em 1982, as primeiras eleiçõesdiretas para os governos estaduais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1965, ou criar parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong>oposição com posições mais <strong>de</strong>finidas 4 .Essas duas diferentes estratégias levaram à formação <strong>de</strong> <strong>do</strong>isblocos, polarizan<strong>do</strong> os diversos segmentos da socieda<strong>de</strong> civil — intelectuais,setores <strong>de</strong>mocráticos, movimento <strong>de</strong> mulheres —, e resultaramna divisão <strong>do</strong> PMDB (Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Movimento DemocráticoBrasileiro) e no surgimento <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res.Assim, o movimento feminista, a partir <strong>de</strong> 1981, ficou maiscomplexo em sua organização e mais diverso i<strong>de</strong>ologicamente. Coma reorganização partidária, foi polariza<strong>do</strong> pelas diversas propostasque surgiram no âmbito das questões gerais da reconstrução da <strong>de</strong>mocracialiberal. Muitas mulheres privilegiaram a atuação nos parti<strong>do</strong>s.A partir <strong>de</strong> então, apareceu uma nova militante nos parti<strong>do</strong>spolíticos, a feminista, e nestes espaços o tema “mulher” tornou-sealvo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate, item obrigatório <strong>do</strong>s programas e plataformas eleitorais<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s progressistas, como resulta<strong>do</strong> da visibilida<strong>de</strong> que as questõesdas mulheres ganharam, trazidas pelos seus movimentos.Uma outra conseqüência foi a tentativa <strong>de</strong> incorporar suasreivindicações nas políticas sociais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> por iniciativa das militantesfeministas nos parti<strong>do</strong>s. São criadas instâncias com a finalida<strong>de</strong><strong>de</strong> pensar e propor políticas públicas, que remetem à questãoda igualda<strong>de</strong>/diferença: igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos e condições diferentes<strong>de</strong> exercer estes direitos.Na campanha eleitoral <strong>de</strong> 1982, as feministas <strong>do</strong> PMDB <strong>de</strong> SãoPaulo propuseram e implementaram um Conselho da CondiçãoFeminina junto ao governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, “para servir <strong>de</strong> instrumento<strong>de</strong> uma política global <strong>de</strong>stinada a eliminar a discriminação sofridapelas mulheres” (PROPOSTA..., 1982). Esta proposta não encontrou4. O PMDB, cria<strong>do</strong> em 1979, é continuação <strong>do</strong> MDB (Movimento Democrático Brasileiro),cria<strong>do</strong> em 1966, e foi um parti<strong>do</strong> guarda-chuva para os grupos que reivindicavam o retornoda <strong>de</strong>mocracia. Com a volta <strong>do</strong> governo civil em 1985, o PMBD se tornou o maior parti<strong>do</strong>existente e absorveu políticos com antigos vínculos com o governo militar.43


Vera Soaresunanimida<strong>de</strong> no movimento <strong>de</strong> mulheres e abriu uma polêmica sobrea autonomia <strong>do</strong> movimento feminista em sua relação com oEsta<strong>do</strong>, as formas <strong>de</strong> diálogo e interlocução possíveis e <strong>de</strong>sejáveis,com posições diversas e mesmo antagônicas.Foram cria<strong>do</strong>s nos diversos níveis (nacional, estadual e municipal)Conselhos <strong>do</strong>s Direitos da Mulher. Uma análise <strong>de</strong>sses organismosgovernamentais, <strong>de</strong> suas realizações e limitações está sen<strong>do</strong>feita (ver por exemplo Maria Aparecida Schumarer e ElisabethVargas, 1993, que apresentam as discussões no movimento para aaprovação e implementação <strong>do</strong> Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos daMulher, e as ações e limitações <strong>de</strong>sses organismos).O <strong>PT</strong>, em 1988, ao conquistar a vitória em algumas prefeituras,propõe uma forma alternativa <strong>de</strong> órgãos estatais para as questões dasmulheres, liga<strong>do</strong>s ao gabinete <strong>do</strong>s prefeitos. Diferentemente <strong>do</strong>s conselhos,estes organismos são estritamente executivos, sem nenhuma forma<strong>de</strong> representação <strong>do</strong> movimento. Na base <strong>de</strong>ssa diferença estava o<strong>de</strong>bate sobre o papel <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo na implementação <strong>de</strong> políticaspúblicas <strong>de</strong>stinadas ao combate das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s das mulheres esobre a relação entre Esta<strong>do</strong> e movimentos sociais.Atualmente existe um consenso entre as feministas <strong>do</strong>s diversosparti<strong>do</strong>s progressistas e <strong>do</strong>s movimentos na avaliação <strong>do</strong>s limitesdas duas propostas e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reelaborar a questão da participaçãono Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a se constituir uma ação mais eficazpara coibir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s das mulheres.O feminismo se diversificou crian<strong>do</strong> novas formas <strong>de</strong> organizaçãoe instituin<strong>do</strong> práticas como os coletivos volta<strong>do</strong>s para açõesrelacionadas ao corpo, à saú<strong>de</strong>, à sexualida<strong>de</strong> feminina e ao combateà violência. Surgiram serviços e grupos <strong>de</strong> formação/educação, muitos<strong>do</strong>s quais permanecem até os dias <strong>de</strong> hoje. O feminismo buscoutambém manter duas estratégias <strong>de</strong> atuação a partir <strong>de</strong> 1982: continuarin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e atuar nas instâncias governamentais.Preservou canais autônomos <strong>de</strong> articulação, não só temáticosmas gerais, por meio <strong>do</strong>s encontros nacionais feministas, com participação<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> mulheres.Des<strong>de</strong> 1982 são realiza<strong>do</strong>s encontros nacionais anuais comgran<strong>de</strong> participação. Em outubro <strong>de</strong> 1997 foi realiza<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r44


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilo 12º Encontro Nacional Feminista, com o tema <strong>de</strong> “Gênero comdiversida<strong>de</strong> no país da exclusão”. Esse encontro teve a participaçãoexpressiva das mulheres negras e <strong>de</strong> muitas mulheres jovens (CFEMEA,1997).Nos anos 80, este espaço possibilitou a articulação <strong>de</strong> outrossegmentos <strong>do</strong> movimento. Assim, a partir <strong>de</strong> 1986, ele foi importantepara a discussão sobre o lesbianismo, que embora estivessesempre presente no movimento feminista nunca tinha si<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong>pelo conjunto das feministas e <strong>do</strong>s movimentos <strong>de</strong> mulheres. Osencontros nacionais feministas propiciaram também a articulaçãodas mulheres negras. O feminismo branco, no seu início, não viu asmulheres negras, referencia<strong>do</strong> que esteve no feminismo europeu eno viés <strong>de</strong> classe. Foi a organização própria das mulheres negras noâmbito <strong>do</strong>s encontros feministas que propiciou a articulação dascategorias classe, gênero e raça para uma compreensão mais concretada exclusão das mulheres. As mulheres negras, ao criarem suasformas próprias <strong>de</strong> organização, têm manti<strong>do</strong> uma relação educativacom o feminismo, enfocan<strong>do</strong> as questões das diferenças entre negrase brancas. A construção <strong>de</strong>ste sujeito — as mulheres negras— trouxe maior complexida<strong>de</strong> e exige o reconhecimento das profundasdiferenças culturais nas práticas das mulheres; exige tambémque se trabalhe, sem que se caia numa gran<strong>de</strong> fragmentação,com o princípio da heterogeneida<strong>de</strong> da condição e da insubordinaçãodas mulheres, possibilitan<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> um campocomum na ação para construir um diálogo <strong>de</strong>ntro da pluralida<strong>de</strong>(SOARES, 1997).Ao longo <strong>de</strong>stes anos, as feministas foram optan<strong>do</strong> por centrarem-seem ativida<strong>de</strong>s mais concretas e especializadas. Isto levou a umamultiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços gera<strong>do</strong>s por organizações <strong>de</strong> mulheres e àconstrução <strong>de</strong> um varia<strong>do</strong> arsenal <strong>de</strong> estratégias e táticas: protestos, proposiçãoe incrementação <strong>de</strong> políticas públicas, alterações legislativas,construção <strong>de</strong> coalizões com outros movimentos. Ao mesmo tempo,elas têm manti<strong>do</strong> fóruns <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres para as <strong>de</strong>cisões<strong>de</strong> suas agendas e <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> atuação conjuntas.Neste percurso, e à semelhança <strong>de</strong> outros movimentos, o feminismose especializou. Muitos grupos passaram à produção <strong>de</strong>45


Vera Soaresconhecimentos, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> mais serviços <strong>do</strong> que ações diretas,e possibilitan<strong>do</strong> a constituição <strong>de</strong> uma “morada” para o movimento:as organizações não-governamentais (ONGs) feministas.Essas novas formas <strong>de</strong> institucionalização ten<strong>de</strong>m a gerar novashierarquias entre as mulheres nos movimentos, como apontaÂngela Borba (1993). Se por um la<strong>do</strong> amplia a geração <strong>de</strong> conhecimentose a inserção <strong>do</strong> feminismo, constitui um <strong>de</strong>safio paramanter laços e estratégias comuns ao amplo movimento dasmulheres.Os anos 90 <strong>de</strong>monstram que o feminismo multiplicou os espaçose lugares em que atua e, conseqüentemente, on<strong>de</strong> circula odiscurso feminista. As fronteiras entre o movimento <strong>de</strong> mulheres eo feminista têm si<strong>do</strong> sistematicamente ofuscadas, com um númerocrescente <strong>de</strong> mulheres pobres, trabalha<strong>do</strong>ras, negras, lésbicas, sindicalistas,ativistas católicas progressistas e <strong>de</strong> outros setores <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong> mulheres incorporan<strong>do</strong> elementos centrais <strong>do</strong> i<strong>de</strong>ário e<strong>do</strong> imaginário feministas, reelabora<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com suas posições,preferências i<strong>de</strong>ológicas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s particulares. Assim, muitosfeminismos são construí<strong>do</strong>s. As mulheres <strong>do</strong>s movimentos pertencema grupos e classes sociais muito diversos, a raças e etnias diferentes,com sexualida<strong>de</strong>s e trajetórias políticas distintas. SôniaAlvarez (1988) usa o termo “mosaico <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>” quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>screveos movimentos presentes no processo da IV ConferênciaMundial da Mulher, em 1995.Na década <strong>de</strong> 1990, as feministas brasileiras começam a participarmais ativamente <strong>do</strong>s fóruns políticos internacionais, a partir<strong>do</strong> ciclo <strong>de</strong> Conferências Mundiais das Nações Unidas, que se iniciouem 1992 com a Conferência <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro sobre Desenvolvimentoe Meio Ambiente (ECO-92). Uma re<strong>de</strong> feminista das ONGs<strong>de</strong> mulheres foi organizada para introduzir a questão <strong>de</strong> gênero nasdiscussões preparatórias da ECO-92. Um número crescente <strong>de</strong> organizações<strong>de</strong> mulheres trabalhou na preparação da Conferência <strong>de</strong>Viena sobre Direitos Humanos. Em 1994, os preparativos da Conferência<strong>do</strong> Cairo sobre Desenvolvimento e População articularamum gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> mulheres por meio da Re<strong>de</strong> Nacional Feminista<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Direitos Reprodutivos. Mas a participação em cada46


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilum <strong>de</strong>stes processos preparatórios ficou muito restrita a setores especialistas<strong>do</strong> movimento.Em 1994, o início <strong>do</strong>s preparativos para a IV Conferência Mundialdas <strong>Mulheres</strong>, realizada em 1995, proporcionou excelente oportunida<strong>de</strong>para o fortalecimento <strong>do</strong>s movimentos feminista e <strong>de</strong> mulheres.Inúmeros grupos feministas e centenas <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> mulheres construíramuma diversa e complexa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cooperação para a preparação daConferência, <strong>de</strong> proporções realmente nacionais. Estavam incluídas asorganizações <strong>de</strong> mulheres negras, movimentos <strong>de</strong> mulheres urbanos erurais, grupos das periferias das cida<strong>de</strong>s, trabalha<strong>do</strong>ras das centrais sindicais,organizações <strong>de</strong> lésbicas, sindicatos <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas,feministas acadêmicas, associações <strong>de</strong> prostitutas, entre outras (SOARES,1995). Impulsionou-se um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate público sobre a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>das mulheres. Com o objetivo <strong>de</strong> fortalecer e unificar o movimento <strong>de</strong>mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das diferenças i<strong>de</strong>ológicas e políticas, foi organizadauma coor<strong>de</strong>nação: a Articulação <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Brasileiras paraBeijing-95. Esse processo gerou uma agenda genuína <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>mulheres no Brasil, centrada nas necessida<strong>de</strong>s das mulheres <strong>de</strong> todas asclasses e grupos étnico-raciais 5 .Os anos 90 também se caracterizaram pela introdução <strong>de</strong> novastemáticas: as ações afirmativas, as cotas mínimas <strong>de</strong> mulheresnas direções <strong>do</strong>s sindicatos, parti<strong>do</strong>s políticos e, mais recentemente,nas listas <strong>de</strong> candidaturas aos cargos legislativos, como medidas parasuperar a quase ausência das mulheres nesses ambientes 6 . Recentemente,a luta pelo direito das mulheres ao aborto tem si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong>muitos <strong>de</strong>bates e reportagens na gran<strong>de</strong> imprensa. Esse é um velhotema das feministas, mas no Brasil só após a <strong>de</strong>mocratização temenvolvi<strong>do</strong> em maior número as mulheres.5. Sobre o processo da IV Conferência Mundial das <strong>Mulheres</strong> realizada na China em 1995ver artigos na Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, vol. 3, nº 1 e nº 2 <strong>de</strong> 1995, e os Ca<strong>de</strong>rnos <strong>do</strong> CIM,nº 2, 1995.6. O <strong>PT</strong> aprovou no Congresso <strong>de</strong> 1991 a proposta <strong>de</strong> 30% <strong>de</strong> cota mínima para mulheresnas direções. A CUT aprovou, em 1993, uma cota mínima <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> 30% na direçãoda Central, e sugere aos sindicatos cota proporcional ao número <strong>de</strong> mulheres nas respectivasbases sindicais. A diretoria eleita em 1994 foi composta com esta proporção. Em 1995foi aprova<strong>do</strong> pelo Congresso Nacional uma cota <strong>de</strong> 20% nas listas das candidaturas paracargos <strong>de</strong> verea<strong>do</strong>ras e em 1997 foi aprova<strong>do</strong> o índice <strong>de</strong> 25% para to<strong>do</strong>s os cargos eletivos.47


Vera SoaresQuestões e <strong>de</strong>safiosPo<strong>de</strong>-se dizer que, no Brasil, a estratégia <strong>do</strong> feminismo emtornar visível a questão da mulher, sua exclusão e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, foivitoriosa. Agora são necessárias outras estratégias capazes <strong>de</strong> enfrentaras questões colocadas pelos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização,globalização e implementação das políticas neoliberais.Diferentes motivos levam a apontar o feminismo como umprojeto que teve êxito em tornar visível uma problemática que antesnão estava presente nos movimentos sociais, nem nos políticos.Ao mesmo tempo que apontou para a exclusão das mulheres nasocieda<strong>de</strong>, ele criou novos paradigmas para a análise <strong>de</strong>ssas situaçõese inscreveu-se como tema das pesquisas acadêmicas. As idéias <strong>do</strong>feminismo se instalaram em diversos espaços <strong>do</strong> social e <strong>do</strong> teórico.O feminismo i<strong>de</strong>ntificou o Esta<strong>do</strong> como a concretização material esimbólica <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político central, aquele que sintetiza e globalizaas relações <strong>de</strong> exclusão, dan<strong>do</strong> uma dimensão institucional e umageneralida<strong>de</strong> ao conjunto da socieda<strong>de</strong>. Mas mostrou também que opo<strong>de</strong>r se esten<strong>de</strong> e está presente em todas as instâncias <strong>do</strong> cotidiano.Trouxe reflexões à política, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua ampliação e da incorporação<strong>de</strong> novos sujeitos, e <strong>de</strong>bateu com as esquerdas a não-hierarquizaçãodas lutas. Nas lutas pela <strong>de</strong>mocracia tratava-se <strong>de</strong> incorporaras mulheres como sujeitos porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> reivindicações e<strong>de</strong> direitos. Trouxe para as agendas <strong>do</strong>s movimentos as questõesda igualda<strong>de</strong> na educação, <strong>do</strong>s direitos reprodutivos e da saú<strong>de</strong>,da participação política das mulheres, da discriminação no trabalhoe das políticas <strong>de</strong> emprego, <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> com as crianças, dapobreza e <strong>do</strong> bem-estar, da violência contra a mulher. Mais recentemente,colocou em <strong>de</strong>bate as ações afirmativas e as propostas<strong>de</strong> cotas mínimas <strong>de</strong> participação nos lugares <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Contribuiupara manter a coalizão das mulheres e constituir ummovimento <strong>de</strong> massa, mas enfrenta dificulda<strong>de</strong>s para instalar-sena política.Contribuiu para o questionamento, compartilha<strong>do</strong> por muitos,da crise <strong>de</strong> representativida<strong>de</strong> e legitimida<strong>de</strong> da representação<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s políticos, e em vários momentos — como no processo48


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilconstituinte — participou junto com outros movimentos nas emendaspopulares e crian<strong>do</strong> novos mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta.Trabalhou com conceitos <strong>de</strong> ação coletiva e direta, a partir danegação da representação por <strong>de</strong>legação e manteve fóruns com asdiferentes vertentes <strong>do</strong> movimento. As características da organização<strong>de</strong>stes fóruns são: vonta<strong>de</strong> unitária — todas as mulheres po<strong>de</strong>mparticipar; auto-organização — o fórum <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, <strong>de</strong>lega, organiza seupróprio trabalho; vonta<strong>de</strong> autônoma em relação aos sindicatos eparti<strong>do</strong>s. Mantiveram a autonomia <strong>do</strong> movimento num país cujaação política é marcada pelo clientelismo.É <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> estreito pensar a inserção <strong>do</strong> feminismo somentenos âmbitos organizativos, erro em que caímos quan<strong>do</strong> nos perguntamosem termos quantitativos sobre a incidência <strong>do</strong> feminismo nasocieda<strong>de</strong>, pois há ações na esfera i<strong>de</strong>ológica, que são ao mesmotempo difusas e sólidas. O feminismo criou novas maneiras <strong>de</strong> ler arealida<strong>de</strong> e reescreveu o discurso público da igualda<strong>de</strong> da mulher.Muitas jovens são diferentes hoje <strong>de</strong> suas avós porque existia o movimento<strong>de</strong> mulheres quan<strong>do</strong> estavam crescen<strong>do</strong>. As principais idéias<strong>do</strong> feminismo estão presentes hoje em inúmeros espaços.Os <strong>de</strong>safios são inúmeros. Nos últimos anos, a partir <strong>do</strong> golpemilitar <strong>de</strong> 1964, houve um aumento das riquezas produzidas, umamaior integração <strong>do</strong> capitalismo em todas as esferas da vida, mastambém aumentaram a concentração <strong>de</strong> renda e os problemas urbanos,dificultan<strong>do</strong> muito a reprodução da vida.“O Brasil apresentava, no início <strong>de</strong>sta década, um <strong>do</strong>s maiores graus<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> no mun<strong>do</strong>. Para a gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s países, a renda<strong>de</strong> um indivíduo entre os 10% mais ricos é, em média, até <strong>de</strong>z vezesmaior <strong>do</strong> que a <strong>de</strong> uma pessoa entre os 40% mais pobres. No casobrasileiro, a renda média <strong>do</strong>s 10% mais ricos é quase trinta vezesmaior <strong>do</strong> que a renda média <strong>do</strong>s 40% mais pobres” (PNUD/IPEA, 1996).Esse é um país <strong>de</strong> renda per capita das mais altas no contextomundial. Cerca <strong>de</strong> 75% da população mundial vive em paísescom renda per capita inferior à brasileira. Da<strong>do</strong> o contexto atual,o Brasil não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um país pobre, mas 40% <strong>do</strong>s49


Vera Soaresbrasileiros vivem em famílias com renda per capita abaixo da linhada pobreza.“É o alto grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e não o baixo nível <strong>de</strong> renda percapita, verda<strong>de</strong>iramente, a principal razão para o eleva<strong>do</strong> grau <strong>de</strong>pobreza no Brasil. Um <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse argumento: ao mesmotempo que o volume <strong>de</strong> alimentos produzi<strong>do</strong> é pelo menosduas vezes superior ao necessário para a alimentação da população,uma parcela significativa da população passa fome” (BARROS,CAMARGO e MENDONÇA, 1996).Nós, mulheres feministas, <strong>de</strong>vemos enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rquestões como estas ao nosso mo<strong>do</strong>: reafirman<strong>do</strong> ereelaboran<strong>do</strong> nossos conceitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong> cidadania, <strong>de</strong> éticanas relações humanas. Certamente, vamos encontrar as respostasquan<strong>do</strong> conseguirmos as formas <strong>de</strong> romper com a resistência políticaem relação à participação das mulheres.Precisamos reelaborar nossos conceitos <strong>de</strong> autonomia, <strong>de</strong>institucionalização <strong>do</strong> movimento, para manter vivo e ousa<strong>do</strong> omovimento <strong>de</strong> mulheres, o movimento feminista, pois temos contribuiçõespara esta crise <strong>de</strong> civilização — uma crise <strong>de</strong> ajuste fundamentalda espécie humana com a natureza e consigo mesma.Dadas a diversida<strong>de</strong> e a multiplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento, atualmenteo <strong>de</strong>safio é i<strong>de</strong>ntificar as diversas vertentes ou os distintosfeminismos e procurar explicitar as diferenças, i<strong>de</strong>ntificar os distintosprojetos, os diversos paradigmas, para <strong>de</strong>finir com quem é possívelmanter uma unida<strong>de</strong> para elaborar projetos que mantenhamacesas nossas utopias e que criem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construir símbolos,valores, linguagens marcadas por relações <strong>de</strong> colaboração e não<strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio entre as pessoas. Resta saber como manter um projetocomum <strong>de</strong> mudanças, seus limites, e com quem se unir para elaborálo.Um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>safios está hoje em estabelecer nossas diferenças, nossosdistintos feminismos. Não é mais necessário nos i<strong>de</strong>ntificarmoscomo iguais, não é mais necessário apelar para nossa condição <strong>de</strong>gênero para nos apoiarmos mutuamente. Trata-se <strong>de</strong> assumir que asarticulações não po<strong>de</strong>m se dar a partir <strong>de</strong> um eixo exclusivo e privile-50


Muitas faces <strong>do</strong> feminismo no Brasilgia<strong>do</strong>, mas sim a partir da articulação das diferenças, das racionalida<strong>de</strong>smúltiplas e diversas que se instalaram no movimento.Se por um la<strong>do</strong> o feminismo <strong>de</strong>ve criar <strong>de</strong> forma crescentesuas formas <strong>de</strong> organização e locais <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> novas práticas econhecimentos, como as ONGs, por outro não se po<strong>de</strong> esquecer oumenosprezar as ativida<strong>de</strong>s amplas, <strong>de</strong> mobilização, que são parteintegrante <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> transformação político-cultural <strong>do</strong> feminismo.Sem essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilização, <strong>de</strong> conscientização e <strong>de</strong>ação com a base da socieda<strong>de</strong> — até hoje as interlocutoras privilegiadas—, o feminismo não tem efetivo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> pressão perante instituiçõese autorida<strong>de</strong>s. Sem estes <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, não é possível assegurara implantação e implementação <strong>do</strong>s novos direitos que o feminismoreclama.Os <strong>de</strong>safios são complexos, exigem respostas globais para asuperação <strong>de</strong>ssas crises e mais eficazes para a melhoria das condições<strong>de</strong> vida das mulheres. A <strong>de</strong>mocracia é um marco substancial para ainter-relação <strong>de</strong> sujeitos, espaços, lógicas e formas. É a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> invenção e fruição <strong>de</strong> novos direitos. É urgente repensar seu significa<strong>do</strong>para as mulheres e ligá-lo às condições <strong>do</strong> país: corrupção,miséria crescente, instituições que não funcionam, tradição culturale política <strong>de</strong> práticas autoritárias, violência crescente etc. É precisocriticar as formas da <strong>de</strong>mocracia que não reconhecem a profundida<strong>de</strong>da diversida<strong>de</strong> humana, passan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finir o bem comum a partir<strong>de</strong> formas radicalmente distintas da construção <strong>do</strong>s sujeitos. Certamenteé um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio repensarmos as formas para o feminismose reinstalar nesse público, traduzin<strong>do</strong>, por sua vez, o que issoquer dizer para as mulheres.BibliografiaALVAREZ, Sônia. 1988. Politizan<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong> gênero e engendran<strong>do</strong> a<strong>de</strong>mocracia. In: STEPAN, A., ed. Democratizan<strong>do</strong> o Brazil. Rio <strong>de</strong> Janeiro,Paz e Terra.________. 1990. Engen<strong>de</strong>ring <strong>de</strong>mocracy in Brazil: women’s movementsin transition politics. USA, Princeton University Press.51


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Globalização, políticas neoliberais...Globalização, políticasneoliberais e relações<strong>de</strong> gênero no BrasilHil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> MeloNo fim da década <strong>de</strong> 1990 o movimento <strong>de</strong> mulheres encontra-senuma encruzilhada. A luta para construir a plenitu<strong>de</strong> da cidadaniafeminina enfrenta o impasse quanto ao papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>bem-estar e às propostas políticas oriundas da alternativa neoliberale da globalização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s. Preocupada com essa questão e tentan<strong>do</strong>contribuir para a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> em que homense mulheres sejam iguais, abor<strong>do</strong> neste texto as mudanças nomerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho em paralelo com o <strong>de</strong>smonte das estruturaspúblicas <strong>de</strong> assistência social, que ofereciam parcialmente soluçõespara algumas das funções femininas no cuida<strong>do</strong> das crianças e <strong>do</strong>svelhos.Feminismo e merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho:a difícil transição no Brasil (1970-95)Os anos compreendi<strong>do</strong>s entre 1970 e 1995 foram significativospara as mulheres brasileiras quanto a sua participação no espaçopúblico. Entre 1970 e 1980 o emprego feminino cresceu 92% e amais tradicional ocupação das mulheres, o serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong>,apenas 43% (MELO, 1989 e 1998; BRUSCHINI, 1994a; MELLO,Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> MeloProfessora <strong>do</strong>utora em economia da Faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> Economia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense(UFF), integrante da Secretaria <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong><strong>do</strong> <strong>PT</strong>/RJ.55


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Melo1982; CAMARGO e SERRANO, 1983; PAIVA, 1980). O avanço <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> industrialização da economia brasileira e sua ligeira<strong>de</strong>sconcentração, nessa década, explicam a queda na importância <strong>do</strong>emprego <strong>do</strong>méstico para as mulheres brasileiras: em 1970, este representava27% e em 1980 aproximadamente 20% das trabalha<strong>do</strong>ras1 . É interessante observar que neste patamar permanecemos atéos dias atuais, apesar da crença <strong>de</strong> que essa é uma ativida<strong>de</strong> emextinção. Isso porque o serviço <strong>do</strong>méstico é visto pela literaturasocioeconômica como a continuação <strong>do</strong> trabalho pré-industrial. Nocaso brasileiro, apresenta-se ainda com um cheiro <strong>de</strong> senzala. Coma industrialização processaram-se mudanças, mas não o seu fim.Contu<strong>do</strong>, as transformações no serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> foramno senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> modificar a relação patroa/empregada <strong>do</strong>méstica,tornan<strong>do</strong>-a menos pessoal, sem relações <strong>de</strong> parentesco fictícias e<strong>de</strong> ajuda à trabalha<strong>do</strong>ra e sua família. Houve uma certa “profissionalização”ou “mercantilização” <strong>do</strong> posto <strong>de</strong> trabalho, distinta daantiga relação, baseada numa dimensão pessoal muito estreita. Analisan<strong>do</strong>globalmente a década (1985-95), nota-se que o serviço <strong>do</strong>mésticoremunera<strong>do</strong> manteve como ocupação uma posiçãoquantitativamente importante na socieda<strong>de</strong> brasileira, e isso é váli<strong>do</strong>também para a América Latina.É importante assinalar que o aumento da taxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> dasmulheres brasileiras no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho fez-se com uma maiordiversificação ocupacional e, assim, a mais tradicional e antiga dasocupações femininas (serviço <strong>do</strong>méstico) per<strong>de</strong>u naturalmenteposição (Tabela 1). De qualquer maneira, é preciso explicitar queem todas as ativida<strong>de</strong>s econômicas houve um aumento da participaçãofeminina. Quan<strong>do</strong> se compara a distribuição da população ocupadafeminina em 1985 com 1995 (Tabela 2), observa-se um crescimento,expresso na passagem <strong>do</strong> patamar <strong>de</strong> participação no total1. Esta relação entre industrialização e diminuição <strong>do</strong> emprego <strong>do</strong>méstico é contraditória ehistoricamente encontram-se exemplos diferentes para alguns países <strong>do</strong> continente americano(HIGMAN, 1989). A relação parece mais evi<strong>de</strong>nte com o crescimento da migração ruralurbana.Acontece que as economias da América Latina e <strong>do</strong> Caribe tiveram um processo <strong>de</strong>expulsão da agricultura sem um concomitante avanço <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> industrialização. Nocaso brasileiro também <strong>de</strong>ve-se avaliar que as mulheres pobres sempre trabalharam fora. Anovida<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1970 foi a entrada maciça das mulheres <strong>de</strong> classe média no merca<strong>do</strong><strong>de</strong> trabalho. Esta po<strong>de</strong> ser uma das explicações para esta menor participação.56


Globalização, políticas neoliberais...da população ocupada feminina <strong>de</strong> 33,42% (1985) para 37,95% (1995),com uma taxa média <strong>de</strong> crescimento ao ano <strong>de</strong>ssa ocupação <strong>de</strong> 3,68%contra 2,37% <strong>do</strong> total das pessoas ocupadas. Esse crescimento permiteconcluir que a absorção das mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhona última década foi mais dinâmica que a <strong>do</strong>s homens, e as ativida<strong>de</strong>seconômicas que mais expandiram a ocupação feminina foram ocomércio e administração pública.Tabela 1BrasilDistribuição da população ocupada feminina segun<strong>do</strong> os setores <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s (%)Setor <strong>de</strong> Ativida<strong>de</strong> 1985 1995Agropecuária 16,03 14,03Extração vegetal/mineral 2,11 0,97Indústria geral 11,73 9,17Construção civil 0,32 0,32Serviços industriais <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública 0,38 0,51Comércio 9,90 12,98Transportes 0,46 0,48Comunicação 0,39 0,37Instituições financeiras 2,47 1,47Administração pública 13,85 14,83Outros serviços técnicos profissionais 1,54 2,25Outros serviços presta<strong>do</strong>s às empresas 1,54 1,64Outros serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ensino 4,96 5,53Outros serviços comunitários 1,51 1,72Outros serviços <strong>de</strong> reparação e conservação 0,15 0,31Outros serviços <strong>de</strong> hospedagem e alimentação 3,15 4,35Outros serviços pessoais 28,39 27,43Outros serviços sociais 0,07 0,11Outros serviços distributivos 0,84 1,21Outros serviços auxiliares 0,21 0,32Total 100,00 100,00Fonte: IBGE/PNAD, 1985 e 1995.A relativa diversificação na ocupação das mulheres, na década,não representa ainda uma profunda mudança, pois o serviço<strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> ainda é a ocupação principal das brasileiras,como <strong>de</strong>monstra a Tabela 1. Embora nessa tabela esse serviço estejacompreendi<strong>do</strong> na rubrica “outros serviços pessoais”, em númerosabsolutos, são quase 5 milhões <strong>de</strong> mulheres 2 , o que po<strong>de</strong> exemplificar2. São 4.782.016 (IBGE/PNAD, 1995).57


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Meloa segregação ocupacional por sexo no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. Em recentepesquisa, Barros, Men<strong>do</strong>nça e Macha<strong>do</strong> (1997) concluem queas mulheres mantiveram-se majoritariamente concentradas num lequerestrito <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s: <strong>do</strong>mésticas, trabalha<strong>do</strong>ras rurais ecomerciárias. Essas três ativida<strong>de</strong>s englobavam, em 1995, 46% damão-<strong>de</strong>-obra feminina. Agregan<strong>do</strong>-se as professoras, enfermeiras/aten<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, operárias <strong>do</strong> vestuário, operárias <strong>do</strong>s setorestêxtil e eletroeletrônico, temos quase 80% das trabalha<strong>do</strong>ras 3 . Issoverifica-se a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> incremento da ocupação feminina; na realida<strong>de</strong>essa concentração é mais antiga e reflete a estrutura produtivanacional. Portanto, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da estrutura ocupacional, nãohouve gran<strong>de</strong>s mudanças, na década, na participação das mulheresno merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. Ao longo <strong>do</strong>s últimos 25 anos essas ativida<strong>de</strong>snão foram alteradas. O Censo Demográfico <strong>de</strong> 1970 mostravaque as empregadas <strong>do</strong>mésticas, trabalha<strong>do</strong>ras rurais, professorasprimárias, costureiras, comerciárias, aten<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, auxiliares <strong>de</strong>escritório e operárias têxteis representavam quase 80% da populaçãoocupada feminina. Em 1980 essas ainda eram as principais ocupaçõesdas mulheres brasileiras. Embora tivessem diminuí<strong>do</strong> sua importância,representavam ainda cerca <strong>de</strong> 60% 4 . De 1985 até 1995 a distribuição dasocupações das mulheres brasileiras po<strong>de</strong> ser vista na Tabela 1.Na última década, as transformações no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhonacional refletiram-se no aumento da ocupação <strong>do</strong> setor serviços.Em 1985 as mulheres que trabalhavam nessas ocupações representavam69% da população ocupada e, em 1995, essas ocupações atingirama participação <strong>de</strong> 75%. A perda <strong>do</strong>s postos <strong>de</strong> trabalho ocorreuna indústria em geral e na agropecuária, tradicionais redutos da ocupaçãomasculina. Nos serviços a participação é praticamente a mesmapara os <strong>do</strong>is sexos (51% homens e 49% mulheres): nessas ativida<strong>de</strong>so comércio concentra proporcionalmente mais homens e os serviços<strong>do</strong>mésticos mais mulheres. Na Tabela 2 po<strong>de</strong> ainda ser vistoque, além <strong>do</strong>s serviços <strong>do</strong>mésticos remunera<strong>do</strong>s, são também femi-3. Os mesmos autores (1996) afirmam que 50% das mulheres encontram-se em ocupaçõesque correspon<strong>de</strong>m a 5% da força <strong>de</strong> trabalho masculina e vice-versa.4. As informações sobre a ocupação das mulheres brasileiras para os anos 1970 e da<strong>do</strong>scensitários <strong>de</strong> 1980 po<strong>de</strong>m ser encontra<strong>do</strong>s nos seguintes trabalhos: BRUSCHINI, 1988 e 1994;MELLO, 1982.58


Globalização, políticas neoliberais...ninos outros serviços pessoais, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ensino e na administraçãopública e higiene pessoal (os serviços <strong>de</strong> beleza).O serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> tem um papel importantena absorção das mulheres <strong>de</strong> menor escolarida<strong>de</strong> e sem experiênciaprofissional no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. As migrantes rurais-urbanastêm nessas ativida<strong>de</strong>s “o caminho <strong>de</strong> socialização na cida<strong>de</strong> [...] oabrigo, a comida, a casa e a família” (GARCIA CASTRO, 1982), inician<strong>do</strong>essas tarefas como “ajuda”. Provavelmente, a oferta abundante eos baixos salários pagos às trabalha<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico possibilitarama entrada das mulheres <strong>do</strong>s estratos médios e altos nomerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho nas últimas décadas, sem que a socieda<strong>de</strong> criasseserviços coletivos <strong>de</strong> creches e escolas em tempo integral que diminuíssemem parte os encargos com a socialização das crianças.Tabela 2BrasilPopulação ocupada nos setores <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s segun<strong>do</strong> o sexo (%)Setor <strong>de</strong> Ativida<strong>de</strong> 1985 1995Homem Mulher Homem MulherAgropecuária 79,94 20,06 75,91 24,09Extração vegetal/mineral 66,77 33,23 64,72 35,28Indústria geral 73,55 26,45 72,91 27,09Construção civil 98,18 1,82 98,03 1,97Serviços industriais <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública 85,69 14,31 78,49 21,51Comércio 68,21 31,79 61,57 38,43Transportes 95,14 4,86 94,62 5,38Comunicação 70,94 29,06 68,62 31,38Instituições financeiras 65,40 34,60 58,74 41,26Administração pública 47,22 52,78 42,57 57,43Outros serviços técnicos profissionais 65,51 34,49 59,12 40,88Outros serviços presta<strong>do</strong>s às empresas 72,65 27,35 73,10 26,90Outros serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ensino 29,75 70,25 27,63 72,37Outros serviços comunitários 50,49 49,51 44,36 55,64Outros serviços <strong>de</strong> reparação e conservação 97,90 2,10 96,10 3,90Outros serviços <strong>de</strong> hospedagem e a60,58 39,42 55,14 44,86alimentaçãoOutros serviços pessoais 14,06 85,94 14,31 85,69Outros serviços sociais 80,96 19,04 70,93 29,07Outros serviços distributivos 72,33 27,67 62,81 37,19Outros serviços auxiliares 84,03 15,97 71,76 28,24Serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> 6,43 93,57 6,84 93,16Total da Economia 66,58 33,42 62,05 37,95Fonte: IBGE/PNAD, 1985 e 1995.59


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> MeloComo as mulheres pobres não têm voz no cenário político, paraelas restaram as soluções improvisadas para a guarda <strong>de</strong> seus própriosfilhos, sem interferência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A novida<strong>de</strong> é o trabalho fora<strong>de</strong> casa das mulheres da classe média, já que as mulheres pobressempre trabalharam para seus sustento.As gran<strong>de</strong>s disparida<strong>de</strong>s, que caracterizam as rendas <strong>do</strong> trabalhono Brasil, aparecem ainda mais <strong>de</strong>siguais quan<strong>do</strong> se faz o corte<strong>de</strong> gênero. Tanto no trabalho urbano como no rural os homensobtêm praticamente o <strong>do</strong>bro das rendas <strong>do</strong> trabalho feminino. Ébem verda<strong>de</strong> que a remuneração <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res rurais significacerca <strong>de</strong> 30% da auferida pelos trabalha<strong>do</strong>res urbanos. As mulheresse apropriam <strong>de</strong> apenas 25% <strong>de</strong> toda a riqueza produzida no país(BARSTED e LAVINAS, 1997; LAVINAS, 1997; CARTILHA, 1996). O hiato<strong>de</strong> rendimento entre os sexos é bastante acentua<strong>do</strong>: em qualquersituação, seja no setor público ou no priva<strong>do</strong>, as mulheres recebemmenos. Isso é mais alarmante quan<strong>do</strong> se engloba o setor público,on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria haver isonomia 5 e mesmo assim há diferenciais entreos rendimentos. Assim, esse hiato é praticamente o mesmo tantono setor priva<strong>do</strong> como no público, varian<strong>do</strong>, no ano <strong>de</strong> 1995, entre40% e 50%, isto é, as mulheres recebem essa fração das rendas masculinas.O <strong>de</strong>staque fica por conta <strong>do</strong> maior diferencial <strong>de</strong> rendimentospara as mulheres com curso superior (Tabela 3). Todas as pesquisassobre <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s mostram que a variável educação explica emparte a distribuição <strong>de</strong> renda, e um diploma superior garante <strong>de</strong>certa forma uma melhoria <strong>de</strong> rendimentos. Mas para as mulheresisso não acontece. Fica-se com uma fração <strong>de</strong> 50% das rendas masculinas,tanto no setor público como no priva<strong>do</strong>. Nem um diploma superioré uma solução coletiva. Para os níveis médios <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> ohiato entre os rendimentos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sexos é menor no setor priva<strong>do</strong>.Mesmo não apresentan<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s completos, quero ressaltar que estessão cruéis quan<strong>do</strong> se faz, além <strong>do</strong> corte <strong>de</strong> gênero, a separação peloquesito cor. Os negros (homens e mulheres) ganham menos que osbrancos e só o trabalha<strong>do</strong>r rural negro tem um rendimento médiomensal superior ao da trabalha<strong>do</strong>ra rural branca (CARTILHA, 1996).5. É preciso esclarecer que para o mesmo cargo os salários são idênticos; a questão é quepara funções gratificadas existe uma pre<strong>do</strong>minância masculina.60


Globalização, políticas neoliberais...Tabela 3Salário feminino como fração <strong>do</strong> masculino, por grau <strong>de</strong> instrução(População ocupada por setor) — 1995Setor Público Setor Priva<strong>do</strong>1º Grau incompleto 0,48 0,491º Grau completo 0,52 0,582º Grau completo 0,53 0,623º Grau completo 0,50 0,50Fonte: L. Lavinas (1997), apud IBGE/PNAD, 1995.Para o <strong>de</strong>bate sobre a questão da Previdência Social e a situaçãodas mulheres, o indica<strong>do</strong>r mais emprega<strong>do</strong> tem si<strong>do</strong> dimensionaro montante <strong>de</strong> pessoas que potencialmente participam <strong>do</strong> merca<strong>do</strong><strong>de</strong> trabalho — a taxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> 6 . O sal<strong>do</strong> da comparaçãoentre os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1981 e 1990, quanto às taxas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s masculinase femininas, <strong>de</strong>monstra uma gran<strong>de</strong> elevação da participaçãofeminina (19,2%) e um incremento mínimo para a masculina (0,9%),<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio/IBGE. Isso se <strong>de</strong>ve à gran<strong>de</strong> entrada <strong>de</strong> mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho na última década e diferencia-se da tradicional dinâmica daparticipação masculina — prove<strong>do</strong>res da família, e, portanto, maciçamenteengaja<strong>do</strong>s no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho — <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o advento daindustrialização. Entre 1985 e 1995 a taxa <strong>de</strong> crescimento <strong>do</strong> empregofeminino foi <strong>de</strong> 3,68% ao ano, contra 2,37% <strong>do</strong> emprego total(MELO, 1998). As mulheres foram mais favorecidas <strong>do</strong> que os homensnesses anos. O problema foi que a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s postos <strong>de</strong>trabalho tornou-se precária: flexibilização e <strong>de</strong>sassalariamento. Assim,as maiores chances oferecidas para as mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho na realida<strong>de</strong> significaram empregos precários, com menorsegurança e baixa proteção social.Os anos 90 também consagraram uma novida<strong>de</strong> com relaçãoà inserção da mulher no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho: houve uma queda nataxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> das mulheres mais jovens e uma forte e constanteexpansão nas faixas etárias mais altas, perfil mais assemelha<strong>do</strong> com6. A taxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> representa a relação existente entre a população economicamenteativa (PEA) <strong>do</strong> grupo que se preten<strong>de</strong> estudar e a população total <strong>de</strong> 10 anos ou mais <strong>de</strong>stemesmo grupo.61


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Meloo padrão masculino. Isto é, nos anos 70 a maior taxa <strong>de</strong> participaçãofeminina ficava entre 20-24 anos, <strong>de</strong>crescen<strong>do</strong> rapidamente após estafaixa e subin<strong>do</strong> um pouco na faixa etária compreendida entre 35-45anos. Nesta década, observa-se um aumento da taxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> dasmulheres à medida que a ida<strong>de</strong> avança. Esse novo perfil femininono merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho sinaliza que a tendência será <strong>de</strong> padrõessemelhantes para ambos os sexos nas próximas décadas, isto é, asmulheres continuarão buscan<strong>do</strong> emprego cada vez mais (LAVINAS,1997; MELO, 1998).Para as mulheres isso não significou o alívio <strong>do</strong>s encargos <strong>do</strong>mésticos,mas acumulação <strong>de</strong> tarefas. Essa maior participação femininano merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho tem si<strong>do</strong> também conseqüênciada dura luta pela sobrevivência, obrigan<strong>do</strong> as mulheres a permanecerum tempo maior em ocupações fora <strong>do</strong> lar; portanto, temocorri<strong>do</strong> um alongamento <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> trabalho feminino. Esseamadurecimento <strong>do</strong> perfil feminino no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho se refletena <strong>de</strong>manda por benefícios previ<strong>de</strong>nciários, atualmente aindamuito baixa, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua insignificância no merca<strong>do</strong> formal: sãomajoritariamente empregos instáveis, como empregadas <strong>do</strong>mésticas,ou no setor informal da economia, como costureiras, <strong>do</strong>ceiras,ambulantes, manicures. Além disso, a porcentagem da força <strong>de</strong> trabalhofeminina não-contribuinte para a Previdência é superior àmasculina, mesmo nos ramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s industriais com maioresíndices <strong>de</strong> contribuição previ<strong>de</strong>nciária.No Brasil, o aumento da participação feminina no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>trabalho fora <strong>de</strong> casa veio acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma queda extraordináriana taxa <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong> nas últimas décadas 7 , sem que tenha havi<strong>do</strong>nenhuma política pública específica sobre a questão. Aconteceu umapura solução <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, tão ao gosto <strong>do</strong> i<strong>de</strong>ário neoliberal. Perversae <strong>do</strong>lorosa para milhares e milhares <strong>de</strong> mulheres, que buscaram aesterilização e o aborto — e muitas encontraram a morte na tentativa<strong>de</strong> viver com mais dignida<strong>de</strong>. Da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Censo <strong>de</strong> 1991 indicamque a taxa <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong> atingiu níveis inferiores a 2,7 filhos por7. Entre 1940 e 1960 foi <strong>de</strong> seis o número médio <strong>de</strong> filhos por mulher em ida<strong>de</strong> fértil. Em1981 este número caiu para 4,7 crianças e em 1990 para 3,2 (PNAD/1990). Veja também,sobre o assunto, Perfil estatístico <strong>de</strong> crianças e mães no Brasil — A situação da fecundida<strong>de</strong>:<strong>de</strong>terminantes gerais e características da transição recente, IBGE, 1988.62


Globalização, políticas neoliberais...mulher em ida<strong>de</strong> fértil. Essa forte queda no padrão reprodutivo femininotem si<strong>do</strong> explicada, na ausência <strong>de</strong> políticas públicas específicas,pelo aumento vertiginoso da urbanização, cujas taxas são <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> 70% para o país. A urbanização impõe para a família maiorescustos, na medida em que os filhos não são mais usa<strong>do</strong>s comoforça <strong>de</strong> trabalho, como nas socieda<strong>de</strong>s agrícolas, mas, ao contrário,seguin<strong>do</strong> o padrão vigente nas economias industriais, os filhos representammaiores gastos familiares. Para a Previdência Social estaquestão tem a longo prazo um impacto significativo, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às mudançasna relação entre ativos e inativos e também pela pressão femininano futuro por mais benefícios previ<strong>de</strong>nciários. Além disso,a queda na taxa <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong> também reduz relativamente as <strong>de</strong>spesasda Previdência Social com o salário-maternida<strong>de</strong>.Um outro aspecto a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, e que tem cria<strong>do</strong> muitaceleuma na socieda<strong>de</strong> brasileira, diz respeito à expectativa <strong>de</strong> vidada mulher. Com base nos Censos Demográficos <strong>de</strong> 1970 e 1980, aesperança <strong>de</strong> vida da mulher ao nascer era <strong>de</strong> 63,4 anos, e a masculina<strong>de</strong> 57 anos. Com os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Censo <strong>de</strong> 1991 temsea evidência <strong>de</strong> que as mulheres continuam viven<strong>do</strong> mais que oshomens. Para a administração previ<strong>de</strong>nciária, este fato implica maiorescustos, porque ten<strong>do</strong> as mulheres uma sobrevida maior que a <strong>do</strong>homem (em média sete anos), e po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> se aposentar mais ce<strong>do</strong>,isso representaria, num futuro próximo, um maior dispêndio nocusteio da Previdência. Esse horizonte, ainda longínquo, está distanteda realida<strong>de</strong> atual da Previdência 8 . Mas coloca essa questão naor<strong>de</strong>m <strong>do</strong> dia <strong>do</strong> governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so, que na suaprimeira tentativa <strong>de</strong> reforma da previdênciaria propunha igualar mulherese homens na mesma faixa etária para efeito <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>ria.O último aspecto a ser discuti<strong>do</strong> nesse quadro <strong>de</strong> globalização,políticas neoliberais e relações <strong>de</strong> gênero é a questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego.Este problema, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> no momento o mais grave <strong>do</strong>s problemasque afligem a socieda<strong>de</strong> brasileira, vem nos últimos anos8. Levianamente tem-se usa<strong>do</strong> este argumento para justificar a proposta <strong>de</strong> reformaprevi<strong>de</strong>nciária <strong>do</strong> governo. Para se saber a real dimensão <strong>de</strong>ssa problemática é necessáriofazer um estu<strong>do</strong> utilizan<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> coorte para melhor avaliar a tendência e o horizonteno qual esse efeito po<strong>de</strong> se tornar relevante.63


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Meloaumentan<strong>do</strong> mais rapidamente para o sexo feminino. Da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>boletim <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Trabalho/IPEA — Merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> Trabalho —Conjuntura e Análise (1997) <strong>de</strong>monstram que para as regiões metropolitanas,já em 1991, a taxa <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego era <strong>de</strong> 4,79% para oshomens e 4,85% para as mulheres. Eram taxas muito próximas, massuperiores para as mulheres. Em 1996, o hiato aumentou, o sexomasculino apresentou uma taxa <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> 4,98% e o feminino6,09%; e para o perío<strong>do</strong> janeiro/abril <strong>de</strong> 1997 estas taxas alcançaram5,38% e 6,53% respectivamente: são índices crescentes paraambos os sexos, mas maiores para as mulheres, que eram cerca <strong>de</strong>39% <strong>do</strong>s <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s em 1991, e, em 1997, representam 45%<strong>de</strong>ste contingente. Segun<strong>do</strong> Lena Lavinas (1998)“temos, assim, um quadro para<strong>do</strong>xal [...] por um la<strong>do</strong> as mulherestiram mais parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que os homens da baixa oferta <strong>de</strong> novos empregose, por outro, são e ten<strong>de</strong>rão a ser as mais afetadas pelo <strong>de</strong>semprego.Tu<strong>do</strong> isso em meio a uma certeza: sen<strong>do</strong> a taxa <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> femininaainda relativamente baixa no Brasil (40%) [...] a pressãofeminina no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho em épocas <strong>de</strong> reduzida oferta<strong>de</strong> empregos parece que não vai mesmo ce<strong>de</strong>r”.Não é um futuro promissor o que aguarda os novos contingentes<strong>de</strong> mulheres que esperam entrar no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho.Merca<strong>do</strong>, globalização eas políticas públicasDa Primeira Conferência Internacional da Mulher, promovidapela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, na Cida<strong>de</strong><strong>do</strong> México, para a <strong>de</strong> Nairobi, em 1985, foram propostas políticaspúblicas para to<strong>do</strong>s os países que asseguravam igualda<strong>de</strong> entre homense mulheres no acesso aos benefícios e serviços <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong>segurida<strong>de</strong> social e equipamentos públicos, para possibilitar a retirada<strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> lar <strong>de</strong> certos serviços, mas isso tem permaneci<strong>do</strong>uma lista <strong>de</strong> boas intenções. A <strong>de</strong>manda feminina por mais serviçospor parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> chegou às agendas <strong>do</strong>s governos quan<strong>do</strong> já esta-64


Globalização, políticas neoliberais...vam em curso profundas mudanças tecnológicas e políticas. Estasaumentaram a polarização entre os países e entre as classes sociais,tanto nos países ricos como nos periféricos, já que o aumento daprodutivida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> criar uma enorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias,resultou numa expansão <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego e da miséria 9 .Estas mudanças têm si<strong>do</strong> caracterizadas como resultantes <strong>do</strong>fenômeno da globalização 10 . Livre circulação <strong>de</strong> capitais, <strong>de</strong>spolitização<strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, império da i<strong>de</strong>ologia econômica liberal, naspalavras <strong>de</strong> Fiori (1997), a força e a difusão da idéia <strong>de</strong> globalização<strong>de</strong>ve ser buscada neste retorno às raízes mais profundas e utópicas<strong>do</strong> liberalismo. Esta nova roupagem <strong>do</strong> velho liberalismo econômico<strong>do</strong> século XVIII — que para se diferenciar <strong>do</strong> antigo i<strong>de</strong>ário foirotula<strong>do</strong> <strong>de</strong> neoliberalismo — é uma reação teórica e política contrao Esta<strong>do</strong> intervencionista e <strong>de</strong> bem-estar <strong>do</strong> século XX.Globalização e políticas econômicas neoliberais são farinha<strong>do</strong> mesmo saco. O que se enten<strong>de</strong> por globalização? Esta, apesar <strong>de</strong>ser representada por um termo sem consistência teórica, po<strong>de</strong> serentendida como um processo que está em curso há várias décadas,por meio da transnacionalização da produção e <strong>do</strong> comércio internacionalque levou as gran<strong>de</strong>s empresas (multinacionais) a <strong>de</strong>slocarempartes e peças <strong>de</strong> suas unida<strong>de</strong>s produtivas para vários lugares<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, localizan<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com seus macrointeresses. Estefenômeno foi populariza<strong>do</strong> como globalização, mas no século XIX,quan<strong>do</strong> se iniciou, era chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> imperialismo. A aparente maiorintensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste fenômeno nos anos 80 <strong>de</strong>ve-se à revoluçãotecnológica que possibilitou que a <strong>de</strong>sregulamentação <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>sfinanceiros e cambiais tivesse um enorme impulso, sob a batuta norteamericana.A liberalização <strong>de</strong>sses merca<strong>do</strong>s, que teve como precursoresos governos <strong>de</strong> Reagan (EUA) e Thatcher (Inglaterra), propagou-seem ondas pela economia mundial. Isso acabou por contaminaraté o regime comunista soviético, que, como um castelo <strong>de</strong> cartas,ruiu logo após a queda <strong>do</strong> Muro <strong>de</strong> Berlim, em novembro <strong>de</strong>9. Segun<strong>do</strong> a Organização Internacional <strong>do</strong> Trabalho (OIT), 30% da população economicamenteativa <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> não possuía em 1995 um emprego estável (Folha <strong>de</strong> S. Paulo,11/2/1996).10. Sobre este conceito e suas conseqüências, veja TAVARES e FIORI, 1997.65


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Melo1989. O colapso <strong>do</strong> bloco soviético trouxe como conseqüência aagonia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> bem-estar, construí<strong>do</strong> pelos trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> muitas lutas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX. Mas setores <strong>do</strong>movimento <strong>de</strong> mulheres <strong>do</strong>s países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s viviam a utopia<strong>de</strong> que a igualda<strong>de</strong> era possível, mesmo num quadro <strong>de</strong> políticasneoliberais. Afinal, o liberalismo promete a igualda<strong>de</strong> formal parato<strong>do</strong>s. O contraponto a essa perspectiva tem si<strong>do</strong> da<strong>do</strong> pelo movimento<strong>de</strong> mulheres i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o socialismo.Atualmente, no final <strong>do</strong> século XX, transcorri<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos darealização da última Conferência Internacional da Mulher (Pequim,setembro <strong>de</strong> 1995) promovida pela ONU, que, como as anteriores,<strong>de</strong>clarou a igualda<strong>de</strong> na lei entre homens e mulheres, assiste-se à<strong>de</strong>struição <strong>do</strong>s direitos sociais e não se leva em consi<strong>de</strong>ração o <strong>de</strong>sigualcotidiano feminino. Que tipo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> as políticas neoliberaistêm <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> em seu rastro? Uma socieda<strong>de</strong> heterogênea,marcada por profundas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s — classe, gênero, raça —que foram exacerbadas por essas políticas. Os excluí<strong>do</strong>s estão con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>sà marginalida<strong>de</strong> e aí resi<strong>de</strong> o gran<strong>de</strong> problema para asmassas femininas, que formam uma gran<strong>de</strong> parcela <strong>do</strong>s pobres<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Qualquer idéia <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma cidadania feminina plenapassa por uma discussão <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Existem duas possíveisrespostas ou soluções para a crise <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> bem-estar. Aprimeira seria a melhoria <strong>do</strong>s serviços presta<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>,eliminan<strong>do</strong>-se toda ineficiência <strong>de</strong> sua administração. A segunda seriaa diminuição forçada das <strong>de</strong>mandas e necessida<strong>de</strong>s sociais <strong>do</strong>scidadãos. As informações <strong>do</strong>s últimos anos permitem concluir quea segunda resposta num maior ou menor grau tem si<strong>do</strong> a preferidapela maioria <strong>do</strong>s governos. Esta alternativa tem como objetivo o<strong>de</strong>smantelamento puro e simples das conquistas sociais conseguidasao longo <strong>do</strong> século XX. Os <strong>de</strong>fensores <strong>do</strong> <strong>de</strong>smantelamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>de</strong> bem-estar baseiam-se em duas razões fundamentais. A primeira,<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômica, diz respeito à sobrecarga fiscal produzidapelas <strong>de</strong>mandas socioeconômicas. A segunda, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política,i<strong>de</strong>ntificaria fatores <strong>de</strong> ingovernabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ssa sobrecargafiscal imposta ao Esta<strong>do</strong>.66


Globalização, políticas neoliberais...As mudanças no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, em paralelo com o <strong>de</strong>smontedas estruturas públicas <strong>de</strong> assistência social que ofereciamparcialmente soluções para algumas das funções femininas no cuida<strong>do</strong>das crianças, criaram maiores obstáculos para a construção <strong>de</strong>uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> homens e mulheres sejam iguais. Como encontrarsoluções <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> para essas obrigações? Assim, as mulheres,além <strong>de</strong> não terem resolvi<strong>do</strong>s esses problemas, porque faltam creches,escolas em tempo integral, lavan<strong>de</strong>rias e refeitórios coletivos,hospitais e postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, equipamentos essenciais para minimizaras tarefas <strong>do</strong>mésticas, ainda têm <strong>de</strong> enfrentar a precarização <strong>do</strong> emprego,aliada ao fantasma <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego (MORAES, 1997).Desafios sem respostas nosmarcos da política neoliberalComo construir uma socieda<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente igualitáriapara nós mulheres sem a participação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>? É preciso garantira proteção à maternida<strong>de</strong>, com abertura <strong>de</strong> creches e escolas emtempo integral e o direito à licença-paternida<strong>de</strong> como forma <strong>de</strong>ampliar a responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens em relação aos filhos. Soluções<strong>de</strong> merca<strong>do</strong> para essas questões são impossíveis. Como <strong>de</strong>finirnovas formas <strong>de</strong> contratualida<strong>de</strong> que regulamentem o trabalho em<strong>do</strong>micílio e o serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> num cenário econômicorecessivo, que se <strong>de</strong>senvolve em paralelo a um violento processo<strong>de</strong> reestruturação produtiva, que tem <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> milhares <strong>de</strong>postos <strong>de</strong> trabalho? Este é o <strong>de</strong>safio. Um <strong>de</strong>safio sem resposta nosmarcos <strong>de</strong> uma política econômica neoliberal.A luta das mulheres brasileiras nestas últimas décadas possibilitoueliminar da legislação nacional um conjunto <strong>de</strong> normas e leisque restringiam o acesso das mulheres à plena cidadania. O processo<strong>de</strong> industrialização transformou o papel feminino da condição<strong>de</strong> mãe e esposa para o <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ra secundária, <strong>de</strong> apoio, nãoindividualizada.Embora um <strong>do</strong>s maiores problemas ainda enfrenta<strong>do</strong>spelas mulheres resulte das práticas sexistas não superadas, comoa i<strong>de</strong>ntificação da maternida<strong>de</strong> como empecilho ao trabalho, no campolegal o Brasil não apresenta nenhuma norma inibi<strong>do</strong>ra da entrada67


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Meloou permanência das mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. Ao se confirmaremas tendências <strong>de</strong> incremento mais que proporcional <strong>do</strong><strong>de</strong>semprego das mulheres, há que pensar como enfrentar mais esse<strong>de</strong>safio no que tange às <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho.São inúmeros os <strong>de</strong>safios, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>manda por trabalho atéa manutenção e ampliação <strong>de</strong> direitos sociais, duramente conquista<strong>do</strong>spelos trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ambos os sexos e que o fenômeno daglobalização e as políticas neoliberais ameaçam <strong>de</strong> extinção.BibliografiaBARROS, R. P. e MENDONÇA, R. 1995. Pobreza, estrutura familiar e trabalho.Rio <strong>de</strong> Janeiro, IPEA, TD nº 366, fev.BARROS, R. P.; MENDONÇA, R. e MACHADO, Ana F. 1997. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>da pobreza: estratégias ocupacionais e diferenciais por gênero. Rio<strong>de</strong> Janeiro, IPEA, TD nº 453.BARSTED, Leila <strong>de</strong> A. L. e LAVINAS, L. 1997. Direitos trabalhistas da mulher.Rio <strong>de</strong> Janeiro, Convênio MTb/IPEA. Mimeogr.BRASIL. Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística. 1988. Perfil estatístico<strong>de</strong> crianças e mães no Brasil — A situação da fecundida<strong>de</strong>:Determinantes gerais e características da transição recente. Rio <strong>de</strong>Janeiro.________. 1985 e 1995. Pesquisa Nacional por Amostra <strong>de</strong> Domicílios. Rio<strong>de</strong> Janeiro.BRASIL. Ministério da Justiça/Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos da Mulher,publicações <strong>de</strong> 1985 e 1986.BRASIL. Ministério <strong>do</strong> Trabalho. 1997 e 1998. Merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> Trabalho — Conjunturae Análise. Rio <strong>de</strong> Janeiro/Brasília, DIPES/IPEA, números 4 a7, março <strong>de</strong> 1997 a fevereiro <strong>de</strong> 1998.BRUSCHINI, Cristina. 1988. Tendências da força <strong>de</strong> trabalho feminina brasileiranos 70 e 80: algumas comparações regionais. Textos FCC, nº1, São Paulo, Fundação Carlos Chagas.________. 1994a. O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes.Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, númeroespecial, 2º semestre.68


Globalização, políticas neoliberais...________. 1994b. O trabalho da mulher no Brasil: tendências recentes.In: SAFFIOTI, H. I. e MUNHOZ-VARGAS, M., orgs. Mulher brasileira éassim. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rosa <strong>do</strong>s Tempos.CAMARGO, José Marcio e SERRANO, F. 1983. Os <strong>do</strong>is merca<strong>do</strong>s: homens emulheres na indústria brasileira. Revista Brasileira <strong>de</strong> Economia, Rio<strong>de</strong> Janeiro, vol. 37, nº 4, out./<strong>de</strong>z.CARTILHA para as mulheres candidatas a verea<strong>do</strong>ras. 1996. Campanha <strong>Mulheres</strong>Sem Me<strong>do</strong> <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r. Rio <strong>de</strong> Janeiro/Brasília, IPEA/DIPES.CHESNAIS, F. 1996. La Mondialization Financière. Paris, Syros.GARCIA CASTRO, Mary. 1982. ¿Qué se compra y qué se paga en el servicio<strong>do</strong>méstico?: el caso <strong>de</strong> Bogotá. In: LEON, Magdalena, ed. La realidadcolombiana. Bogotá, Associación Colombiana para el Estudio <strong>de</strong> laPoblación, vol. 1: Debate sobre la mujer en America Latina y elCaribe.HIGMAN, B. W. 1989/1983. El servicio <strong>do</strong>méstico en Jamaica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1750.In: CHANEY e GARCIA CASTRO, eds. Muchacha No More. USA, TempleUniversity Press.LAVINAS, Lena. 1997. Emprego feminino: o que há <strong>de</strong> novo e o que serepete. Da<strong>do</strong>s — Revista <strong>de</strong> Ciências Sociais, Rio <strong>de</strong> Janeiro, vol. 40.________. 1998. As recentes políticas públicas <strong>de</strong> emprego no Brasil e suaabordagem <strong>de</strong> gênero. Rio <strong>de</strong> Janeiro, IPEA. Mimeogr.MELLO, João M. C. <strong>de</strong>. 1997. A contra-revolução liberal-conserva<strong>do</strong>ra e atradição crítica latino-americana. In: TAVARES, Maria da Conceiçãoe FIORI, José Luís, orgs. Po<strong>de</strong>r e dinheiro: Uma economia política daglobalização. Petrópolis, Vozes.MELLO, Marina F. <strong>de</strong>. 1982. Análise da participação feminina no merca<strong>do</strong><strong>de</strong> trabalho no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, PUC/RJ.MELO, Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong>. 1989/1983. Feministas y empleadas <strong>do</strong>mésticasen Rio <strong>de</strong> Janeiro. In: CHANEY e GARCIA CASTRO, eds. MuchachaNo More. USA, Temple University Press.________. 1998. O serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> no Brasil: <strong>de</strong> criadas atrabalha<strong>do</strong>ras. Rio <strong>de</strong> Janeiro, IPEA/DIPES, Série Seminário, nº 6.MORAES, Maria Lygia Q. <strong>de</strong>. 1997. O feminismo e a vitória <strong>do</strong> neoliberalismo.In: SCHPUN, Mônica Raisa, org. Gênero sem fronteiras.Florianópolis, Editora <strong>Mulheres</strong>.69


Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> MeloPAIVA, Paulo <strong>de</strong> T. 1980. A mulher no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho urbano. Trabalhoapresenta<strong>do</strong> no II Encontro Nacional <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Populacionais,Águas <strong>de</strong> São Pedro (SP).REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS. 1994. Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, númeroespecial, 2º semestre.SAFFIOTI, Heleieth I. B. 1984. Mulher brasileira: Opressão e subordinação.Rio <strong>de</strong> Janeiro, Edições Achimé.TAVARES, Maria da Conceição e FIORI, José Luís, orgs. 1997. Po<strong>de</strong>r e Dinheiro:Uma economia política da globalização. Petrópolis, Vozes.70


Gênero, família e trabalhoGênero,famíliae trabalhoAndréa ButtoA socieda<strong>de</strong> brasileira hoje está mais atenta às <strong>de</strong>mandas dasmulheres. Mas apesar <strong>de</strong>ste avanço, com o neoliberalismo novosobstáculos se apresentam para o exercício pleno da cidadania dasmulheres. As relações entre gênero, família, trabalho e políticas sociaissão afetadas por essas transformações. As mulheres à frente dachefia familiar, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e a precarização das relações <strong>de</strong> trabalhoe <strong>do</strong>s serviços sociais presta<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong> outro, ganhamcentralida<strong>de</strong> nesse quadro. Realizar uma reflexão crítica <strong>de</strong>stes aspectos,capaz <strong>de</strong> orientar a ação política das mulheres, visan<strong>do</strong> combateras <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero, surge assim como tarefa importantepara o momento.A diversida<strong>de</strong> das famílias brasileirasO mapeamento das famílias no Brasil <strong>de</strong>ve ser realiza<strong>do</strong> noplural, pois, como Ana Maria Goldani (1994) indica, existe hojeuma gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupos familiares. As principais mudançasnas estruturas familiares apontadas pela <strong>de</strong>mografia dizem respeitoa seu número, tamanho, a seus arranjos internos e estágio <strong>de</strong>Andréa ButtoMestre em antropologia pela Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco; professora assistenteda Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural <strong>de</strong> Pernambuco;integrante da Secretaria Estadual <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong><strong>do</strong> <strong>PT</strong> e <strong>do</strong> Diretório Regional/PE. Foi membro<strong>do</strong> Diretório Nacional <strong>do</strong> <strong>PT</strong> (1993-95).71


Andréa Butto<strong>de</strong>senvolvimento. O número <strong>de</strong> famílias nas décadas <strong>de</strong> 1970 e 1980quase <strong>do</strong>brou, passan<strong>do</strong> <strong>de</strong> 18,4 milhões para 36,6 milhões. Nestemesmo perío<strong>do</strong>, o tamanho das famílias diminuiu em média umapessoa (<strong>de</strong> 5,0 para 4,1), tendência que guarda diferenciações geográficas(com tamanho maior nas áreas rurais). Os motivos são: quedada fecundida<strong>de</strong>, diminuição da mortalida<strong>de</strong>, fim <strong>de</strong> matrimôniospor viuvez, separações e divórcios.Na organização interna das famílias ainda pre<strong>do</strong>mina o casal,com ou sem filhos, apesar <strong>de</strong> a última década estar marcada peloaumento das famílias “monoparentais” (grupo forma<strong>do</strong> por mãe oupai com filhos). Apesar <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio, houve uma diminuição relativadas famílias constituídas por casal com filhos; as taxas anuais<strong>de</strong> crescimento <strong>de</strong>sse grupo foram, na década <strong>de</strong> 1980, as mais baixasda história (2,8%). As famílias monoparentais, por outro la<strong>do</strong>,conheceram, nas últimas duas décadas, uma taxa média <strong>de</strong> crescimento<strong>de</strong> 5% ao ano.Os estágios <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um grupo familiar compreen<strong>de</strong>mtrês fases: o <strong>de</strong> constituição ou formação, o <strong>de</strong> expansãoou consolidação (chegada <strong>do</strong>s filhos até a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 15 anos) e o <strong>de</strong>dispersão, quan<strong>do</strong> da formação <strong>de</strong> novos núcleos familiares. Cerca<strong>de</strong> meta<strong>de</strong> das famílias brasileiras está em fase <strong>de</strong> expansão ou consolidação.Aumentou também a proporção <strong>de</strong> casais sem filhosmas, sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> famílias monoparentais. Dentre elas, as compostaspor mãe com filhos e sem cônjuge são as que mais aumentam suaparticipação relativa no total.O aumento da chefia familiar entre as mulheres está diretamenterelaciona<strong>do</strong> à pobreza. Isso explica por que esse aumentotem um forte componente regional. A maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas famíliaspo<strong>de</strong> ser encontrada nas áreas mais carentes <strong>do</strong> Norte-Nor<strong>de</strong>ste<strong>do</strong> Brasil (por exemplo, as regiões metropolitanas <strong>de</strong> Belém,Recife e Salva<strong>do</strong>r). Uma proporção intermediária está localizadaem áreas como o Rio <strong>de</strong> Janeiro e Belo Horizonte e a menor concentraçãoestá nas áreas mais ricas <strong>do</strong> Sul-Su<strong>de</strong>ste (como São Paulo,Curitiba e Porto Alegre).As famílias chefiadas por mulheres são pre<strong>do</strong>minantes entreos setores mais pobres da população, porque essas mulheres têm72


Gênero, família e trabalhocapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ganho mais baixa <strong>do</strong> que os homens e não porqueganhem menos que outras mulheres, tenham mais crianças ou suasfamílias tenham menos adultos (como aponta estu<strong>do</strong> recente <strong>de</strong>Ricar<strong>do</strong> Barros, Louise Fox e Roseane Men<strong>do</strong>nça, 1994); não é acomposição interna <strong>de</strong>ssas famílias o elemento gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> pobreza,mas sim a condição <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ras das mulheres que as chefiam.São grupos que têm menor presença <strong>de</strong> crianças, menor <strong>de</strong>pendênciae nos quais as crianças são mais velhas. Quanto à renda, observaseque a média é menor que nos <strong>de</strong>mais grupos familiares, principalmenteentre aqueles com crianças. Em relação aos homens, constata-seque as mulheres chefes <strong>de</strong> família são mais velhas <strong>do</strong> que estesquan<strong>do</strong> exercem a mesma função, são menos instruídas, participammenos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e têm níveis <strong>de</strong> renda mais baixos.Comparadas com as <strong>de</strong>mais mulheres chefes <strong>de</strong> família (aquelas cujosfilhos já aban<strong>do</strong>naram a casa), aquelas com crianças são mais jovens,igualmente instruídas, mais propensas a participar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho, com níveis <strong>de</strong> renda médio mais baixos e representam asfamílias mais pobres <strong>do</strong> total <strong>de</strong> famílias.Mas a maior incorporação das mulheres ao merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhoou setor informal provoca também algumas mudanças positivas,que po<strong>de</strong>m ser observadas na organização e no funcionamentoda família, por meio <strong>de</strong> repercussões nos papéis e nas relações econômicasna família, nos padrões <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, hierarquia, distribuição<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s, nas <strong>de</strong>cisões e relações <strong>de</strong> casal. Esteselementos, porém, não po<strong>de</strong>m nos fazer esquecer, como ressaltaValéria Ramirez (1995), que empregos <strong>de</strong> parca remuneração resultampouco atrativos para o <strong>de</strong>senvolvimento pessoal e a auto-estimadas mulheres pobres.Apesar disso, não há como <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar que o <strong>de</strong>semprego eprecarização <strong>do</strong> trabalho masculino, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e a incorporaçãodas mulheres em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção remunerada, <strong>de</strong> outro,muitas vezes re<strong>de</strong>finem a tradicional divisão sexual <strong>do</strong> trabalho egeram mudanças internas nas famílias — separações, divórcios e achefia familiar feminina.Com o enfraquecimento <strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r, o lugar<strong>do</strong>s homens nessas famílias sofre uma reor<strong>de</strong>nação. O homem não73


Andréa Buttoestá completamente ausente: o pai biológico ou os novos companheirosfreqüentemente continuam participan<strong>do</strong> da família, emborasob novas bases. A mulher tem um papel mais <strong>de</strong>cisivo na manutençãoda casa e há, em relação aos homens, um afrouxamento nasexpectativas em relação a seu <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> esposo, a ponto <strong>de</strong>eles se tornarem apenas colabora<strong>do</strong>res no sustento da casa. Essa reduçãodas funções <strong>do</strong>s homens na vida <strong>do</strong>méstica correspon<strong>de</strong>, portanto,à ampliação das funções das mulheres (incluí<strong>do</strong> aí o provimento),situação que contradiz os padrões sociais tradicionais queorientam a divisão sexual <strong>do</strong> trabalho e provoca um acirramentodas tensões no interior das famílias.As mulheres tornam-se responsáveis pela administração <strong>do</strong>srecursos internos disponíveis na família para resistir às carências<strong>de</strong>correntes das crises econômicas e da ausência <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>-pai.Por meio <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s referenciadas nas mulheres (tias, sogras, avós,entre outras) <strong>de</strong>finem-se as estratégias e padrões <strong>de</strong> sobrevivênciadas famílias.Qual é o lugar que a pobreza ocupa na dinâmica <strong>de</strong>ssas famílias?Para alguns cientistas sociais (por exemplo, Klass Woortmann,1984), as relações <strong>de</strong> gênero estão <strong>de</strong>terminadas pelas relações <strong>de</strong>classe; o papel econômico da família prevalece sobre a análise dasrelações <strong>de</strong> gênero.Para compreen<strong>de</strong>r este fenômeno me parece que também énecessário enten<strong>de</strong>r as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r internas a essas novas famílias.Elas se constituem <strong>de</strong>sta forma porque relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r anteriormenteestabelecidas entre homens e mulheres <strong>de</strong>finem as relaçõescom a pobreza. Atribuir a expansão <strong>de</strong>ssa nova modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>família apenas à migração, ao empobrecimento e à manutenção <strong>de</strong>padrões tradicionais <strong>de</strong> convivência — reforçan<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong> que setrata <strong>de</strong> famílias incompletas, vulneráveis e <strong>de</strong>sejosas <strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r masculinosignifica simplificar a realida<strong>de</strong> e reificá-la. Implica secundarizaro fato <strong>de</strong> que, nas famílias, são as mulheres as que recebem maior sobrecarga<strong>de</strong> trabalho e que passam a assumir responsabilida<strong>de</strong>s antes compartilhadascom os seus companheiros ou mari<strong>do</strong>s.A diversida<strong>de</strong> empírica das famílias é <strong>de</strong>cisiva para a mudançana representação social e nos padrões culturais. Ela possibilita o74


Gênero, família e trabalho<strong>de</strong>senvolvimento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero para além da exclusivida<strong>de</strong><strong>de</strong> mães e esposas. Não po<strong>de</strong>mos confundir a família como umaconstrução i<strong>de</strong>ológica e a real experiência <strong>de</strong> homens e mulheres emdiferentes arranjos familiares. É esta diferença que possibilita enten<strong>de</strong>rcomo a existência <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia familista escon<strong>de</strong> ouso que a família e a socieda<strong>de</strong> fazem <strong>do</strong> trabalho reprodutivo e<strong>do</strong>méstico. Como diz Magdalena Leon (1994) “estas relações sãoconstruídas por experiências culturais e históricas, transcen<strong>de</strong>mo nível individual da conduta e o âmbito da família, incluin<strong>do</strong>arranjos institucionais”.As famílias chefiadas por mulheres são expressão <strong>de</strong> uma diversida<strong>de</strong>que questiona as construções i<strong>de</strong>ológicas tradicionais, confrontan<strong>do</strong>-ascom as experiências reais das mulheres, que subverteantigas formas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação das relações <strong>de</strong> gênero. Embora váriastransformações que as mulheres estejam vivencia<strong>do</strong> não lhes sejam<strong>de</strong> to<strong>do</strong> favoráveis, é importante reforçar o significa<strong>do</strong> positivo <strong>de</strong>projetos autônomos e espaços próprios que incluam a re<strong>de</strong>finiçãodas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r construídas nas famílias e buscar um maiorequilíbrio nas <strong>de</strong>cisões, na divisão <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticase na distribuição <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> trabalho ou livre.A globalização precarizao trabalho das mulheresA incorporação das mulheres ao merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, inclusivecom o incremento <strong>de</strong> novas ativida<strong>de</strong>s e a criação <strong>de</strong> espaçosprodutivos volta<strong>do</strong>s para o comércio exterior, tem si<strong>do</strong> muito <strong>de</strong>stacada.Mas pouco se discute o que é essencial <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma perspectiva<strong>de</strong> gênero: em que medida têm se altera<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r entre mulheres e homens nas novas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>sprodutivas.As políticas <strong>de</strong> ajuste têm como pressuposto a manutenção e ofortalecimento da divisão sexual <strong>do</strong> trabalho, que atribui às mulheresfunções <strong>de</strong> reprodução e produção orientadas para a sustentaçãoda sua família. Encarregadas <strong>de</strong> administrar a renda insuficiente proveniente<strong>de</strong> toda a família, e com uma dupla jornada <strong>de</strong> trabalho, as75


Andréa Buttomulheres são o setor da classe trabalha<strong>do</strong>ra que acaba receben<strong>do</strong> omaior impacto das políticas <strong>de</strong> estabilização neoliberal. Na verda<strong>de</strong>,essas políticas fortalecem a dualização da força <strong>de</strong> trabalho — o que,<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> gênero, reforça a opressão e a posição subordinadadas mulheres na socieda<strong>de</strong>.Apesar <strong>de</strong> todas as conferências mundiais em prol <strong>de</strong> uma plataformaprogressista em relação às mulheres, nenhum governo tomouações efetivas para garantir os direitos das mulheres a iguaisremunerações e oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> promoção e capacitação. As mulherescontinuam sen<strong>do</strong> tratadas como uma força <strong>de</strong> trabalho secundáriacom menores direitos e <strong>de</strong>mandas que os homens, mesmoten<strong>do</strong> uma inserção no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho cada vez mais permanente(já não se retiram durante os anos <strong>de</strong> gestação, crescimento ecuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos) e seus salários sen<strong>do</strong> cada vez mais essenciaispara a sobrevivência familiar.No Brasil, da<strong>do</strong>s para a área urbana apontam um aumento naparticipação das mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, com fortesegmentação sexista. Concentradas no setor terciário <strong>do</strong>s centrosurbanos, as mais instruídas trabalham em empregos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>smédios — secretárias, professoras, enfermeiras (ativida<strong>de</strong>s ligadasaos serviços estatais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, educação e Previdência Social) — e asmenos instruídas no emprego <strong>do</strong>méstico.Embora tenha se verifica<strong>do</strong> também um aumento nas horas<strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>dicadas pelas mulheres às ativida<strong>de</strong>s “produtivas”, astaxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego são maiores entre as mulheres, principalmenteentre as mais jovens. O emprego só teve um aumento entre as menosinstruídas. Dentre as razões explicativas <strong>de</strong>ste quadro po<strong>de</strong>mosmencionar os programas <strong>de</strong> enxugamento <strong>do</strong> quadro <strong>de</strong> servi<strong>do</strong>respúblicos, que no Nor<strong>de</strong>ste, por exemplo, absorve uma parte bastantesignificativa da força <strong>de</strong> trabalho.Há também uma concentração em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> baixa produtivida<strong>de</strong>e <strong>de</strong> informalida<strong>de</strong>. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Trabalho,em 1990 as mulheres auto-empregadas e aquelas que trabalhamcomo ajudantes não-remuneradas <strong>de</strong> outros membros da famíliachegavam a um total <strong>de</strong> 24%, representan<strong>do</strong> a segunda maiortaxa da América Latina. Aquelas que são auto-empregadas chegam a76


Gênero, família e trabalhopassar 14 horas diárias ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> na rua ou manufaturan<strong>do</strong> produtosem casa. São trabalha<strong>do</strong>ras informais que não estão protegidaspelas leis relativas aos salários, que não contam com PrevidênciaSocial nem benefícios secundários e estão sujeitas a per<strong>de</strong>r a remuneraçãodiante das mudanças no merca<strong>do</strong>.Quanto às regiões metropolitanas no país, Recife apresenta amaior proporção <strong>de</strong>sse setor, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, Rio <strong>de</strong> Janeiro eSão Paulo. A maior participação é das mulheres. Nas pequenas unida<strong>de</strong>sprodutivas representam apenas 10% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>resque têm carteira assinada e 63,9% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res autônomos.Em Recife elas chegam a representar um total <strong>de</strong> 70% <strong>do</strong> total<strong>do</strong> setor. Os trabalha<strong>do</strong>res negros — mulheres e homens — são osmais representativos neste setor: constituem 47,2% contra 38% <strong>de</strong>brancos.As mulheres trabalham mais em <strong>do</strong>micílio que os homens,totalizan<strong>do</strong> um percentual <strong>de</strong> 82,8%, o que explica a concentração<strong>de</strong> mulheres em empregos <strong>do</strong>mésticos. Entre estas trabalha<strong>do</strong>rassão as negras as mais presentes nestas ativida<strong>de</strong>s.Houve também uma queda nos níveis <strong>de</strong> renda das mulheresem relação aos homens. Como se já não bastasse a diferençasalarial no merca<strong>do</strong> formal da economia, quan<strong>do</strong> as mulheresingressam no setor informal elas acentuam a diferença na remuneração,per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> 20% <strong>do</strong> total que antes recebiam com as suasativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho.No campo, observa-se uma indiferenciação entre ativida<strong>de</strong>sprodutivas e <strong>do</strong>mésticas: as mulheres concentram-se napequena produção e, diante <strong>do</strong> trabalho assalaria<strong>do</strong>, aceitam contratoscurtos e sistemas <strong>de</strong> trabalho regula<strong>do</strong>s pela produtivida<strong>de</strong>.Têm também forte participação em re<strong>de</strong>s informais. As mulheres<strong>do</strong> campo acabam dispon<strong>do</strong> <strong>de</strong> menor tempo para ganhardinheiro, pela distância <strong>do</strong> local <strong>de</strong> trabalho, e menor acesso ao trabalhoassalaria<strong>do</strong>, pois permanecem com responsabilida<strong>de</strong>s exclusivasno trabalho reprodutivo e <strong>do</strong>méstico. No comércio rural, asmulheres ven<strong>de</strong>m menores quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produtos embora realizemmaior número <strong>de</strong> negociações <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às limitações geográficas<strong>do</strong> raio <strong>de</strong> atuação, obten<strong>do</strong> menores rendimentos das transações77


Andréa Buttoque realizam se comparadas com as <strong>do</strong>s homens. Com a substituiçãopor produtos industriais, as ativida<strong>de</strong>s artesanais realizadas pelasmulheres per<strong>de</strong>ram importância. Des<strong>de</strong> o fim da década <strong>de</strong> 1970aumentou a proporção <strong>de</strong> mulheres em cultivos intensivos, principalmenteentre as mais jovens.Quanto ao trabalho <strong>do</strong>méstico nas áreas urbanas, observa-seo aumentou da sua intensida<strong>de</strong> diante da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suprir arenda familiar e da privatização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s antes <strong>de</strong>senvolvidaspelo setor público, reforçan<strong>do</strong> ainda mais a responsabilida<strong>de</strong> dasmulheres nas famílias.Em áreas rurais, as mulheres contam com menor estruturamaterial, por isso <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>m mais esforço físico e mais tempo, oque limita ainda mais as oportunida<strong>de</strong>s socioeconômicas.Em síntese, os da<strong>do</strong>s disponíveis apontam assim para umaforte tendência à precarização das condições <strong>de</strong> trabalho das mulheres,sua exclusão <strong>de</strong> áreas tecnologizadas e um estatuto inferior ao<strong>do</strong>s homens como trabalha<strong>do</strong>ras e cidadãs. Elas se inserem no merca<strong>do</strong>na medida em que as condições <strong>de</strong> trabalho vão se <strong>de</strong>terioran<strong>do</strong>.Não po<strong>de</strong>mos, portanto, analisar as relações <strong>de</strong> gênero abstrain<strong>do</strong>os aspectos macrossociais <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>res das gran<strong>de</strong>s linhas nas quaisse inscreve a vida cotidiana das mulheres. A constituição <strong>de</strong> umaeconomia mais voltada para a exportação gera uma segmentação <strong>de</strong>gênero nos sistemas <strong>de</strong> trabalho que prejudica as mulheres.Redução das políticas sociaisprejudica mais as mulheresO Esta<strong>do</strong> sempre foi um elemento ativo na reorganização dasrelações sociais. Com o neoliberalismo, altera-se o seu papel em relaçãoà família, ao trabalho e às relações <strong>de</strong> gênero em comparaçãocom o perío<strong>do</strong> anterior.O Esta<strong>do</strong>, sob os governos neoliberais, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista político,dá continuida<strong>de</strong> à incorporação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas das mulheres,absorven<strong>do</strong> aspectos <strong>do</strong> discurso feminista. Mas, por outro la<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista social e econômico, a <strong>de</strong>sregulamentação das relações<strong>de</strong> trabalho e a busca <strong>de</strong> maior competitivida<strong>de</strong> no merca<strong>do</strong> mundial78


Gênero, família e trabalhocom o barateamento <strong>do</strong> custo da força <strong>de</strong> trabalho prejudica a populaçãotrabalha<strong>do</strong>ra e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, mais ainda as mulheres.A orientação política <strong>do</strong>minante <strong>do</strong>s governos mantém a hierarquia<strong>de</strong> gênero e a posição subordinada das mulheres. Assim, porexemplo, nos programas <strong>de</strong> reforma agrária, os homens são privilegia<strong>do</strong>scomo chefes <strong>do</strong> lar, e as políticas públicas acabam ignoran<strong>do</strong>as famílias chefiadas por mulheres e o direito das casadas a umaparticipação conjunta, limitan<strong>do</strong> o direito ao lote <strong>de</strong> terra. Para oINCRA (Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e Reforma Agrária), aexistência <strong>de</strong> um homem impe<strong>de</strong> a mulher <strong>de</strong> receber lote, por julgarque as famílias chefiadas por mulheres não têm força <strong>de</strong> trabalhosuficiente para produzir. Por to<strong>do</strong>s esses motivos, as mulheres acabamten<strong>do</strong> limita<strong>do</strong> acesso ao crédito e à tecnologia. E exemplos<strong>de</strong>sse tipo po<strong>de</strong>m ser encontra<strong>do</strong>s pelas mais diversas áreas <strong>de</strong> atuaçãoestatal.Uma parcela significativa <strong>de</strong> serviços sociais está sen<strong>do</strong>privatizada: educação, saú<strong>de</strong>, Previdência Social e moradia. A repercussãoestá presente na redução da qualida<strong>de</strong> e abrangência <strong>do</strong>sserviços públicos e na conseqüente queda nos níveis <strong>de</strong> renda efetivosindividual e familiar.A situação <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> Previdência Social e os investimentosem serviços <strong>de</strong> assistência à infância são indica<strong>do</strong>res exemplaresdas tendências gerais no terreno social. A Previdência Social no Brasilten<strong>de</strong> a aprofundar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais tanto <strong>de</strong> classe como<strong>de</strong> gênero. Na área <strong>do</strong>s benefícios previ<strong>de</strong>nciários, o sistema compensamelhor os segmentos <strong>de</strong> renda mais elevada, e em uma proporçãopequena os pobres. Quanto às diferenças <strong>de</strong> gênero, diversosestu<strong>do</strong>s indicam que, apesar <strong>de</strong> as mulheres apresentarem índices <strong>de</strong>contribuição para a Previdência muito pareci<strong>do</strong>s com os <strong>do</strong>s homens(48% e 50% respectivamente), elas iniciam sua contribuição mais ce<strong>do</strong>que eles e, à medida que a ida<strong>de</strong> aumenta, também cresce a participaçãodas mulheres como contribuintes da Previdência.Os contribuintes <strong>de</strong> menor renda recebem proporcionalmentemaior número <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>rias por ida<strong>de</strong> ou invali<strong>de</strong>z, e aqueles<strong>de</strong> faixas mais elevadas <strong>de</strong> renda respon<strong>de</strong>m pela maior incidênciaproporcional <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>rias por tempo <strong>de</strong> serviço e especial79


Andréa Butto(tipos <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>ria que têm uma carência mais elevada). Comoos contribuintes homens têm renda mais elevada, são eles os que recebemem maior proporção esse tipo <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>ria. Embora nas faixasmais altas as mulheres contribuam em iguais condições com os homens,as mulheres estão concentradas nas faixas mais baixas.Os benefícios concedi<strong>do</strong>s às mulheres estão concentra<strong>do</strong>s nafaixa <strong>de</strong> um a <strong>do</strong>is salários mínimos (86%), enquanto entre os homensessa proporção equivale a 67%. Essa diferença vai seaprofundan<strong>do</strong> à medida que aumenta a faixa salarial. Como 48% dapopulação economicamente ativa feminina se encontra no setor informal,79% <strong>do</strong>s ganhos estão concentra<strong>do</strong>s em até <strong>do</strong>is saláriosmínimos, e meta<strong>de</strong> ganha no máximo um salário mínimo, gran<strong>de</strong>parte das mulheres só po<strong>de</strong>m ser incluídas no sistema como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> seus mari<strong>do</strong>s ou pais contribuintes, ten<strong>do</strong> acesso limita<strong>do</strong>a serviços <strong>de</strong> assistência hospitalar e aos benefícios <strong>de</strong> pensões pormorte <strong>do</strong> contribuinte.Precarieda<strong>de</strong> da política <strong>de</strong> crechesA falta <strong>de</strong> redistributivida<strong>de</strong> também marca as políticas <strong>de</strong>proteção à maternida<strong>de</strong> e à família, que recebem benefícios insignificantes,com uma participação muita baixa nos gastos sociais. Afamília, que recentemente vinha receben<strong>do</strong> uma mínima atenção<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, volta a se privatizar quan<strong>do</strong> é encarada pelas políticasneoliberais como um ponto <strong>de</strong> apoio para a redução <strong>de</strong> gastos sociais.Estas mudanças são visíveis, por exemplo, na queda <strong>do</strong>s investimentosem educação para as crianças entre 0 e 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.O relatório <strong>do</strong> PNUD/IPEA <strong>de</strong> 1996 constata que em relaçãoao grupo etário <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> 6 anos existe uma carência <strong>de</strong> serviçosno país. Apenas 5% das crianças <strong>de</strong> 0 a 3 anos freqüentamcreche. A porcentagem é maior no caso <strong>do</strong>s filhos <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong>maior rendimento: 14% contra 3% <strong>do</strong>s que se originam <strong>de</strong> famíliaspobres. Meta<strong>de</strong> das crianças <strong>de</strong> 5 a 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> freqüentavaa escola em 1990. Essa parcela é maior nas famílias com rendimentomensal <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is salários mínimos per capita (81%), ese reduz para 37% no caso das crianças pobres. A diferença entre a80


Gênero, família e trabalhocondição <strong>de</strong> escolarização das crianças urbanas e rurais é bem acentuada:57% contra 30%.A falta <strong>de</strong> cobertura e o recorte <strong>de</strong> classe presente nesta realida<strong>de</strong>não <strong>de</strong>spertou no governo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r comações capazes <strong>de</strong> melhorar a situação das crianças brasileiras. Pelocontrário, os últimos fatos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s no Sena<strong>do</strong> por ocasião daaprovação da Lei <strong>de</strong> Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)<strong>de</strong>monstram que o movimento <strong>do</strong> governo é no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>aprofundar a sua <strong>de</strong>sobrigação com a educação infantil. A incumbênciada creche é atribuição <strong>do</strong>s municípios e oferecida apenas acrianças com até 3 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, reduzin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa forma a coberturaaté os 6 anos, como previa a antiga LDB. O atendimento à infânciana ida<strong>de</strong> entre 4 e 6 anos é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> parte da pré-escola.O Projeto <strong>de</strong> Lei 2.802, apresenta<strong>do</strong> em 1992 e que garantia queempresas em que trabalhassem pelo menos 30 mulheres com mais <strong>de</strong>16 anos disporiam <strong>de</strong> local apropria<strong>do</strong> on<strong>de</strong> fosse permiti<strong>do</strong> guardarsob vigilância e assistência técnica educacional suas crianças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> operío<strong>do</strong> <strong>de</strong> amamentação até os 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, sofreu um sério ataque.No início <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997 o Congresso Nacional aprovou o projeto,embora asseguran<strong>do</strong> o direito apenas aos filhos das trabalha<strong>do</strong>ras,mas bastou apenas uma quinzena para que o presi<strong>de</strong>nte Fernan<strong>do</strong>Henrique Car<strong>do</strong>so vetasse integralmente esse projeto.A ausência <strong>de</strong>sses serviços implica uma sobrecarga ainda maior<strong>de</strong> tempo a ser <strong>de</strong>spendi<strong>do</strong> com o cuida<strong>do</strong> das crianças por parte dasmulheres e, conseqüentemente, o surgimento <strong>de</strong> maiores limitaçõesprofissionais e ocupacionais em relação aos homens.No momento, é importante pensar na manutenção e na qualida<strong>de</strong><strong>de</strong>sses serviços, mas também nas relações sociais que se constroemem seu interior e na interação <strong>de</strong>stes com a família e a socieda<strong>de</strong>em geral. É importante uma maior valorização, por parte dasfamílias, <strong>do</strong> papel <strong>de</strong> socialização e educação <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelascreches junto aos seus filhos. Resgatar o espaço lúdico e pedagógico<strong>de</strong>stas instituições, rompen<strong>do</strong> com a visão mais largamente difundidaque associa creche apenas aos cuida<strong>do</strong>s alimentares e higiênicos.Os serviços <strong>de</strong> assistência à infância <strong>de</strong>vem também estar atentosaos estereótipos que se reproduzem no seu interior, e buscar81


Andréa Buttoformas alternativas <strong>de</strong> lidar com as relações <strong>de</strong> gênero. O <strong>de</strong>safio écontinuar construin<strong>do</strong> a noção <strong>de</strong> que “a creche é um direito dascrianças”, da mãe trabalha<strong>do</strong>ra e <strong>do</strong> pai trabalha<strong>do</strong>r, base para oreconhecimento <strong>de</strong> outros mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> família, nos quais a participaçãoda mulher-mãe na força <strong>de</strong> trabalho e <strong>do</strong> homem-pai na vidafamiliar torne-se um novo valor.Conclusão: a agenda das mulheresAs tendências recentes <strong>de</strong> mudança da situação das mulheres nasocieda<strong>de</strong> brasileira são fortemente condicionadas pelas transformaçõesem curso na economia e no Esta<strong>do</strong>. E as <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> gênero das mulheres— que po<strong>de</strong>m melhorar suas condições <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> autonomia ereforçar seu po<strong>de</strong>r relativo diante <strong>do</strong>s homens — confrontam-se diretamentecom o núcleo orienta<strong>do</strong>r das políticas neoliberais. A universalização<strong>de</strong> direitos e <strong>do</strong> acesso aos serviços sociais e políticas <strong>de</strong> açãoafirmativa voltadas para os setores mais vulneráveis da socieda<strong>de</strong>, quebeneficiariam em primeiro lugar <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> mulheres, sãoalvo <strong>de</strong> ataque por parte <strong>do</strong>s governos alinha<strong>do</strong>s com o neoliberalismo— cuja orientação amplia a “feminização da pobreza”.A agenda política das mulheres brasileiras <strong>de</strong>staca, entre suas<strong>de</strong>mandas fundamentais, diversos pontos relativos à família, ao trabalhoe às políticas sociais.Na família, promover o reconhecimento da chefia familiarexercida pelas mulheres; e, nas políticas sociais voltadas à infância,buscar uma maior capacitação técnica e política e reagir diante daredução da presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na área.Na área <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>senvolver uma agenda <strong>de</strong> ações afirmativaspara as trabalha<strong>do</strong>ras, que possibilitem melhorar os sistemas<strong>de</strong> comercialização <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> gênero; facilitar o acessoà terra e a equipamentos sociais <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à reprodução familiar.Promoção <strong>de</strong> maior eqüida<strong>de</strong> no uso <strong>de</strong> tecnologia; regular otipo <strong>de</strong> contratos para promover melhores jornadas <strong>de</strong> trabalho emenor precarização.Finalmente, na Previdência <strong>de</strong>vemos combater a privatização<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> Previdência Social e consi<strong>de</strong>rar que as mulheres estão82


Gênero, família e trabalhomajoritariamente representadas entre os trabalha<strong>do</strong>res excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e que têm baixíssimos níveis <strong>de</strong> renda.BibliografiaABREU, Alice Rangel e SORJ, Bila. 1994. O informal no Brasil. RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas, número especial, CIEC/ECO/UFRJ, 2º sem.AFONSO, Lúcia. 1995. Gênero e processo <strong>de</strong> socialização em creches comunitárias.Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas,nº 93, maio.BARROS, Ricar<strong>do</strong> Paes; FOX, Louise e MENDONÇA, Rosane Pinto. 1994.Pobreza e <strong>do</strong>micílios chefia<strong>do</strong>s por mulheres. In: LAVINAS, Lena,coord. II Seminário Nacional: políticas econômicas, pobreza e trabalho.Cap. VIII, Série Seminário 1994, Diretoria <strong>de</strong> Pesquisa; 4ª ConferênciaInternacional da Mulher. IPEA, maio. Mimeogr.BOTELHO, Virgínia. 1994. Previdência Social: perspectivas para as mulheres.In: LAVINAS, Lena, coord. II Seminário Nacional: políticas econômicas,pobreza e trabalho. Série Seminário, nº 7/94, Diretoria <strong>de</strong> Pesquisa/IPEA,maio. Mimeogr.FILGUEIRAS, Cristina A. C. 1995. Os atores da mobilização por crechese pré-escolas comunitárias. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>do</strong> CEAS, 159, setembro/outubro.GOLDANI, Ana Maria. 1994. As famílias brasileiras: mudanças e perspectivas.Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, nº 91,nov.INSTITUTO DE LA MUJER. 1994. Família y reparto <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s. Saludy calidad <strong>de</strong> vida. Madrid, Ministerio <strong>de</strong> Asuntos Sociales.LEON, Magdalena. 1994. La i<strong>de</strong>ntidad se construye en la família? In: Famíliassiglo XXI. ISIS Internacional, Ediciones <strong>de</strong> las Mujeres, n° 20, Santiago,nov.NEVES, Delma Pessanha. 1983. “Nesse terreiro galo não canta”: estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>caráter matrifocal <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s familiares <strong>de</strong> “baixa renda”. AnuárioAntropológico, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro.PNUD/IPEA. 1996. Relatório sobre o <strong>de</strong>senvolvimento humano no Brasil. Rio<strong>de</strong> Janeiro/Brasília, PNUD/IPEA.83


Andréa ButtoRAMIREZ, Valéria. 1995. Cambios en la família y en los roles <strong>de</strong> la mujer.Santiago <strong>de</strong> Chile, Centro Latinoamericano <strong>de</strong> Demografia (CELADE),Comision Economica para América Latina y el Caribe (CEPAL).VALDÉS, Ximena. 1994. Das mulheres ao gênero no <strong>de</strong>senvolvimento rural.In: BARRING, Maruja e WEHKAMP, Andy, eds. Sin Morir en elintento: experiencias <strong>de</strong> planificacion <strong>de</strong> género en el <strong>de</strong>sarrollo. Lima,Red entre Mujeres.WOORTMANN, Klass. 1984. A família trabalha<strong>do</strong>ra. Ciências Sociais hoje(Anuário <strong>de</strong> Antropologia, Política e Sociologia), São Paulo, ANPOCS,Cortez.84


Sexualida<strong>de</strong> e feminismoSexualida<strong>de</strong>e feminismoNalu Faria“Da mesma forma que o gênero, a sexualida<strong>de</strong> é política. Está organizadaem sistemas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que alentam e recompensam alguns indivíduos eativida<strong>de</strong>s, enquanto castigam e suprimem outros e outras. Assim como aorganização capitalista <strong>do</strong> trabalho e sua distribuição <strong>de</strong> recompensas epo<strong>de</strong>res, o tema sexual tem si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> luta política <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que apareceu ecomo tal tem se <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>. Porém, se as disputas entre trabalho e capitalestão mistificadas, os conflitos sexuais estão camufla<strong>do</strong>s.”Gayle Rubin“Na vida das mulheres a tensão entre o perigo e o prazer sexual é muitopo<strong>de</strong>rosa. A sexualida<strong>de</strong> é um terreno <strong>de</strong> constrangimento, <strong>de</strong> repressão eperigo, e um terreno <strong>de</strong> exploração, prazer e atuação. Centrar-se só no prazere gratificação <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a estrutura patriarcal em que atuam as mulheres.Entretanto, falar só <strong>de</strong> violência e opressão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a experiência dasmulheres no terreno da atuação e da eleição sexual e aumenta, sem sepreten<strong>de</strong>r, o terror, o <strong>de</strong>samparo sexual com que vivem as mulheres.”Carol VanceNo tratamento da sexualida<strong>de</strong>, o feminismo incorpora contribuiçõesvindas <strong>de</strong> várias fontes teóricas e das experiências <strong>de</strong>conquista <strong>de</strong> autonomia das mulheres. Este artigo tem por objetivoNalu FariaPsicóloga, membro da Secretaria Nacional <strong>de</strong><strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra da SOF —Sempreviva Organização Feminista. Foi membro<strong>do</strong> Diretório Nacional <strong>do</strong> <strong>PT</strong> (1995-97).85


Nalu Fariacontribuir para o <strong>de</strong>bate sobre uma política para a sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> feminismo. O ponto <strong>de</strong> partida é a <strong>de</strong>fesa que o feminismo fazda emancipação feminina e da autonomia sexual para as mulheres. Sobeste foco, em muitos aspectos, serão feitas referências à sexualida<strong>de</strong>masculina, uma vez que os problemas e a vivência das mulheres estãovincula<strong>do</strong>s, em gran<strong>de</strong> parte, aos homens, seja pelas relações heterossexuais,seja pela forma como a sexualida<strong>de</strong> é construída em uma socieda<strong>de</strong>marcada pela opressão das mulheres e pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero.A cultura oci<strong>de</strong>ntal continua sen<strong>do</strong> muito ambígua em relaçãoà sexualida<strong>de</strong> das mulheres, tanto que estabeleceu como pactotradicional entre homens e mulheres um duplo padrão: se as mulheressão assexuadas — virtuosas —, a elas se reserva a proteção masculina;se expressam seu <strong>de</strong>sejo são consi<strong>de</strong>radas profanas e, portanto,a essas é dirigi<strong>do</strong> o <strong>de</strong>srespeito, a humilhação. Este binômio é chama<strong>do</strong>vulgarmente <strong>de</strong> “as santas e as putas” ou as “boas e másmeninas”. Como diz Lynn Segal (1995, p. 21)“não é fácil romper os códigos que vinculam a sexualida<strong>de</strong> ativacom as polarida<strong>de</strong>s hierárquicas <strong>de</strong> gênero. As mulheres são continuamentefreadas, tanto pela linguagem e pela cultura como pelaspolíticas <strong>de</strong> gênero vigentes, para que não afirmem um <strong>de</strong>sejo sexualativo como mulheres”.A sexualida<strong>de</strong> no feminismoDes<strong>de</strong> o século XIX, nunca houve, entre as feministas, umavisão única sobre como tratar a questão da sexualida<strong>de</strong>. A primeiraonda <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> teve uma postura majoritariamente protecionista,cujo ponto <strong>de</strong> partida era a visão <strong>de</strong> que as mulheres teriam<strong>de</strong> cultivar a pureza como forma <strong>de</strong> conseguir respeitabilida<strong>de</strong> e,por isso, uma gran<strong>de</strong> parte da ação <strong>do</strong> movimento neste campo foi<strong>de</strong> crítica à prostituição. Essa posição compartia <strong>de</strong> uma interpretação,comum àquela época, <strong>de</strong> que a expressão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo femininoincitava a agressivida<strong>de</strong> masculina, assim como uma visão <strong>de</strong> que asexualida<strong>de</strong> das mulheres era intrinsecamente passiva e só po<strong>de</strong>riaflorescer em uma situação <strong>de</strong> segurança.86


Sexualida<strong>de</strong> e feminismoA segunda onda feminista, na década <strong>de</strong> 1960, foi mais exploratóriae expansionista, acreditan<strong>do</strong> que as mulheres “podiam aventurar-sea manifestar sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas mais visíveis e atrevidas”(VANCE, 1989, p. 10), principalmente <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às mudançasmateriais que favoreciam a maior autonomia das mulheres, como otrabalho assalaria<strong>do</strong>, a anticoncepção, o direito ao aborto, a vidaurbana.Nesta retomada <strong>do</strong> feminismo, um primeiro aspecto fundamentalfoi o questionamento da separação entre pessoal e político ea argumentação <strong>de</strong> que o que se vive na vida privada também épolítico. Um segun<strong>do</strong> aspecto foi a construção <strong>de</strong> uma compreensãoda sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma visão geral <strong>de</strong> relações humanas,questionan<strong>do</strong> a vinculação entre sexualida<strong>de</strong> e maternida<strong>de</strong> e colocan<strong>do</strong>a importância <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a auto-estima das mulheres e anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a sexualida<strong>de</strong> ser vista a partir <strong>do</strong> âmbito mais geral<strong>de</strong> relações <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> contato humano. Mas também <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong>a exploração vivida pelas mulheres, inclusive o estupro <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>casamento (antes consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> uma prerrogativa <strong>do</strong>s homens), construin<strong>do</strong>uma consciência sobre o assédio sexual, enfim, colocan<strong>do</strong> anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição nas relações entre homens e mulheres noconjunto das relações sociais e, em particular, na sexualida<strong>de</strong>.As feministas questionaram a supremacia masculina nas relaçõessexuais e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram as mulheres como seres sexuais, abordarama necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> próprio corpo e <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo(não por meio <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> “outro”), reivindicaram o prazer sexualfeminino e o papel <strong>do</strong> clitóris, questionaram o coito como a únicaforma <strong>de</strong> relação sexual. Num primeiro momento, o movimentofeminista foi bastante influencia<strong>do</strong> pelas teorias <strong>de</strong> Masters e Johnson,Shere Hite e Kinsey, enfatizan<strong>do</strong> a importância <strong>do</strong> conhecimento<strong>do</strong> próprio corpo e como saber excitá-lo a<strong>de</strong>quadamente. Com certezaesse foi um passo importante e fundamental para muitas mulheresque nunca haviam ouvi<strong>do</strong> falar <strong>do</strong> clitóris ou que jamais haviamse atrevi<strong>do</strong> a olhar os genitais. Porém, posteriormente, houveo <strong>de</strong>senvolvimento da consciência <strong>de</strong> que o corpo, com suas zonaserógenas e terminações nervosas, tem um papel importante, porémnão exclusivo, na sexualida<strong>de</strong>. A experiência sexual envolve87


Nalu Fariaa totalida<strong>de</strong> da pessoa e nela entram em jogo vários fatorespsicológicos, fantasias, <strong>de</strong>sejos, proibições e normas às vezes conscientes,às vezes não.O feminismo sempre teve dificulda<strong>de</strong>s para trabalhar com adiversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências das mulheres e isso se <strong>de</strong>u também emrelação à sexualida<strong>de</strong>. De fato, inicialmente, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> feminismose consoli<strong>do</strong>u uma análise hegemônica, significativamente restrita àsexualida<strong>de</strong> das mulheres brancas <strong>de</strong> classe média e heterossexuais, eque teve dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lidar com as tensões advindas das diferenças<strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> raça. Da mesma forma, até o começo <strong>do</strong>s anos 80,a política <strong>do</strong> movimento feminista em relação à sexualida<strong>de</strong> se movia<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites da heterossexualida<strong>de</strong>. Foi sobretu<strong>do</strong> a partirda ação <strong>do</strong>s coletivos <strong>de</strong> feministas lésbicos que houve o questionamentoda heterossexualida<strong>de</strong> como “norma <strong>de</strong> cumprimento obrigatório”e a colocação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo lésbico como uma possibilida<strong>de</strong>para todas as mulheres (GARAIZABAL, 1992, p. 51).Mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> estes avanços, a avaliação <strong>de</strong> muitas feministasé que ainda conhecemos pouco a experiência sexual dasmulheres, o que gera o <strong>de</strong>sejo e o prazer feminino. A discussão dasexualida<strong>de</strong> é bastante complexa e sua compreensão e estu<strong>do</strong> teóricoexigem a articulação <strong>de</strong> várias disciplinas. Sua análise envolve aarticulação da cultura <strong>de</strong> cada povo e seus símbolos, a conexão entreindivíduo e coletivo, entre corpo e cultura e o momento históricoem que é vivida; e, finalmente, entra no terreno das relações individuais,o que dificulta a generalização.A vivência da sexualida<strong>de</strong> femininaComo afirmou Carol Vance (1989), a sexualida<strong>de</strong> é um terrenoque coloca as mulheres em uma tensão entre o perigo e o prazer.É uma experiência ao mesmo tempo <strong>de</strong> alegria e tristeza, humilhaçãoe prazer. Não é só subordinação ao po<strong>de</strong>r masculino, ao mo<strong>de</strong>lo<strong>do</strong>minante, mas tampouco uma experiência <strong>de</strong> completa liberda<strong>de</strong>e satisfação. Desta forma, existem muitas mulheres que nuncaexperimentaram o prazer. A questão que se coloca é como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ro direito das mulheres <strong>de</strong> expressar seu <strong>de</strong>sejo e ao mesmo tempo88


Sexualida<strong>de</strong> e feminismocombater os perigos, uma vez que estamos em uma socieda<strong>de</strong> patriarcale <strong>de</strong> opressão às mulheres.A revolução sexual <strong>do</strong>s anos 60 e a maior autonomia sexualadquirida com as conquistas feministas — como o direito ao abortoem muitos países, a disseminação <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s contraconceptivos,a diminuição <strong>de</strong> alguns tabus, que possibilitaram a expansão da sexualida<strong>de</strong>feminina — por um la<strong>do</strong> tornou o prazer mais acessível àsmulheres e as tornou mais visíveis mas, por outro, também aumentousua vulnerabilida<strong>de</strong>, uma vez que se mantiveram várias das estruturaspatriarcais. Aumentou sua vulnerabilida<strong>de</strong> pois ficaram maisexpostas, uma vez que, sempre que as mulheres expressam o seu<strong>de</strong>sejo se <strong>de</strong>slocam na fronteira na qual são consi<strong>de</strong>radas virtuosasou profanas, crescen<strong>do</strong> o <strong>de</strong>srespeito e a agressivida<strong>de</strong> sobre elas.Além disso, a maior expressão das mulheres é utilizada como justificativapara a violência masculina. Isto coloca as mulheres premidaspelas limitações e contradições ou alertas diante <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>representar perigo face à violência sexista: agressões, estupro, assédio,as diferentes formas <strong>de</strong> prepotência masculina <strong>de</strong> muitos homens.A interiorização que muitas mulheres fazem <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong>gênero também contribui para que vivam a sexualida<strong>de</strong> como algoperigoso. Experimentam o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> conhecer e viver os <strong>de</strong>sejos, <strong>de</strong>per<strong>de</strong>r os limites <strong>do</strong> próprio corpo, das <strong>de</strong>pendências e as vivênciascontraditórias que muitas vezes implicam, por exemplo, fantasiasque não correspon<strong>de</strong>m aos critérios i<strong>de</strong>ológicos vigentes.O mo<strong>de</strong>lo sexual <strong>do</strong>minanteA forma que a cultura <strong>do</strong>minante tem utiliza<strong>do</strong> paranormatizar a vivência da sexualida<strong>de</strong> é estabelecer um mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong>minante,em que se consi<strong>de</strong>ra que to<strong>do</strong>s e todas têm <strong>de</strong> se enquadrar.Po<strong>de</strong>-se dizer que o atual mo<strong>de</strong>lo sexual hegemônico é frutoda luta <strong>do</strong>s oprimi<strong>do</strong>s pela autonomia sexual, mistura<strong>do</strong> aoselementos <strong>do</strong> capitalismo e da cultura patriarcal, uma vez quealguns elementos da luta <strong>do</strong>s oprimi<strong>do</strong>s foram assimila<strong>do</strong>s. A função<strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo é normatizar e hierarquizar o que é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>como o “sexo bom”; e tu<strong>do</strong> que sai <strong>de</strong>sta norma é estigmatiza<strong>do</strong>.89


Nalu FariaAinda hoje é consi<strong>de</strong>rada normal a sexualida<strong>de</strong> heterossexual, <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> casamento monogâmico, ainda que tenha si<strong>do</strong> incorporada apossibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> prazer e, portanto, alargadas as fronteiras entre operigo e o prazer.Para as mulheres, a passivida<strong>de</strong>A passivida<strong>de</strong> ainda é estimulada como mo<strong>de</strong>lo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong>feminilida<strong>de</strong> e faz parte <strong>do</strong> que é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> normal nas relaçõessexuais. Um exemplo é o fato <strong>de</strong> as mulheres ainda encontraremdificulda<strong>de</strong>s para negociar com seus parceiros o uso da camisinhamesmo diante <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> AIDS. O relato dasa<strong>do</strong>lescentes é que não po<strong>de</strong>m exigir o uso da camisinha nem emuma primeira relação sexual pois isso indicaria que ela já estava premeditan<strong>do</strong>fazer sexo e não apenas “ce<strong>de</strong>u à sedução” <strong>do</strong> namora<strong>do</strong>.Muitas mulheres sentem-se pressionadas a realizar algumas práticassexuais que não <strong>de</strong>sejam pois, se não o fizerem, seus companheiros“po<strong>de</strong>m procurar outra na rua” e isso é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um ameaçapara a relação. Um outro aspecto <strong>de</strong>ssa norma <strong>do</strong>minante é a existênciadas relações sexuais forçadas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> casamento.A sexologia e a psicanálise, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>,passaram a discutir e legitimar o prazer como um elemento nas relaçõessexuais, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ver o sexo apenas a partir da função <strong>de</strong>reprodução. No entanto, ainda hoje, para as mulheres o mo<strong>de</strong>losexual <strong>do</strong>minante está muito centra<strong>do</strong> na reprodução. Basta citarcomo exemplo a exigência da maternida<strong>de</strong> e a questão <strong>do</strong> aborto. Oaborto continua sen<strong>do</strong> crime em muitos países ou, quan<strong>do</strong> menos,duramente ataca<strong>do</strong>, como é o caso <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. E sabemosque a criminalização <strong>do</strong> aborto é um forte pilar <strong>de</strong> sustentação daopressão das mulheres e <strong>de</strong> repressão da sexualida<strong>de</strong> feminina. Amaternida<strong>de</strong> continua colocada como o i<strong>de</strong>al supremo <strong>de</strong> todas asmulheres, a sua maior realização.O pensamento liberal, atualmente, busca passar uma imagem<strong>de</strong> que não existem relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no âmbito da sexualida<strong>de</strong> entrehomens e mulheres. Nas relações heterossexuais é claro! Nessaperspectiva as mulheres são apresentadas como ativas e igualitárias90


Sexualida<strong>de</strong> e feminismocompanheiras sexuais <strong>do</strong>s homens. E são os meios <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> massa, inclusive muitas revistas femininas, os principais transmissores<strong>de</strong>ssa visão. As recomendações são <strong>de</strong> “como obter umhomem”, como agradá-lo e, mais recentemente, as revistas femininasfazem matérias <strong>do</strong> tipo “os homens abrem o jogo, falam <strong>de</strong> suasfantasias ou <strong>do</strong> que mais lhes agrada em uma mulher” etc. etc. Essaretórica nega a amplitu<strong>de</strong> da violência contra as mulheres e évoluntariamente cega à misoginia cultural e interpessoal.Uma outra questão a ressaltar é a reação negativa quan<strong>do</strong> asmulheres <strong>de</strong>nunciam agressões como o assédio. As respostas são sempreno senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> misturar assédio com sedução ou responsabilizara mulher. Portanto, ainda prevalece a idéia <strong>de</strong> que várias expressõesdas mulheres dão, aos homens, o direito <strong>de</strong> dispor <strong>do</strong> seu corpo, <strong>de</strong>humilhar, <strong>de</strong> achar que ela está a sua disposição. Ainda é muitopresente a idéia <strong>de</strong> que para as mulheres serem respeitadas <strong>de</strong>vemser assexuadas. Leia-se: passivas. Pois, na verda<strong>de</strong>, o que a culturapatriarcal exige é a passivida<strong>de</strong> das mulheres diante da vida. Emto<strong>do</strong>s os espaços — familiar, profissional, político — encontramosvalores da cultura <strong>do</strong>minante que provocam o <strong>de</strong>srespeito ao direitoe à autonomia das mulheres, que <strong>de</strong>terminam uma convivênciacotidiana com a <strong>de</strong>squalificação, em particular em relação à formacomo ela exerce a sua sexualida<strong>de</strong>. Qualquer atitu<strong>de</strong> que se distancieda norma é, ainda, consi<strong>de</strong>rada motivo ou justificativa para o <strong>de</strong>srespeito.A maior autonomia das mulheres e o fato <strong>de</strong> estarem sen<strong>do</strong>mais ativas, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> seu direito <strong>de</strong> ir e vir, colocou a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> se re<strong>de</strong>finir o velho pacto. Mas ainda existem muitas resistências,justamente porque isto significa mudar as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rentre homens e mulheres.A imposição da heterossexualida<strong>de</strong>e suas limitaçõesAo se analisar outras práticas fora da heterossexualida<strong>de</strong> e <strong>do</strong>casamento, fica ainda mais evi<strong>de</strong>nte a norma. Basta mencionar adiscriminação contra o lesbianismo, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> coisa <strong>de</strong> “sapatão,mulher-macho”, na qual é notória a indignação com a recusa das91


Nalu Fariamulheres em seguir um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong> ainda associa<strong>do</strong>à escolha sexual. Se a lésbica tem uma relação dura<strong>do</strong>ura, epadrões <strong>de</strong> comportamento vistos como tipicamente femininos,existe maior tolerância. No entanto, se são mulheres que utilizamformas <strong>de</strong> vestir e <strong>de</strong> agir consi<strong>de</strong>radas masculinas, o preconceito ea con<strong>de</strong>nação são muito maiores, em nome <strong>do</strong> argumento <strong>de</strong> queestão reproduzin<strong>do</strong>, nesta relação, o autoritarismo masculino. E issomesmo entre aqueles setores que já possuem uma visão menos preconcebidasobre os comportamentos sexuais. A imposição daheterossexualida<strong>de</strong> tem si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s aspectos fundamentais para aimposição <strong>do</strong>s gêneros. Hoje já se ampliou o universo <strong>do</strong> que é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>“<strong>de</strong> mulher”, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que as mulheres continuemsen<strong>do</strong> “femininas”, gostan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser mães e exercen<strong>do</strong> sua sexualida<strong>de</strong>com e para os homens. Por outro la<strong>do</strong>, para os homens, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ce<strong>do</strong>, o gran<strong>de</strong> me<strong>do</strong> é per<strong>de</strong>r sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “masculina”, que setorne “uma mulherzinha”. A resistência diante <strong>de</strong>sse risco aparecesempre vinculada à reafirmação das características masculinas e àescolha da heterossexualida<strong>de</strong>. Isso evi<strong>de</strong>ncia que a imposição daheterossexualida<strong>de</strong> se mantém como uma peça-chave da imposição<strong>do</strong>s gêneros.Um outro aspecto a ser levanta<strong>do</strong> sobre este mo<strong>de</strong>lo sexual<strong>do</strong>minante, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com as relações heterossexuais consi<strong>de</strong>radascomo as a<strong>de</strong>quadas, é o fato <strong>de</strong> ser ainda bastante limita<strong>do</strong> àgenitalida<strong>de</strong> e ao coito, e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar outras formas <strong>de</strong> expressãoda sexualida<strong>de</strong>. Esse fato nos mostra que, em geral, tanto homenscomo mulheres ainda vivem sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma limitada emuitas vezes até empobrecida. Nunca é muito reafirmar, entretanto,que com certeza alguns aspectos são mais acirra<strong>do</strong>s para as mulheres.Ou seja, o fato <strong>de</strong> as práticas sexuais terem si<strong>do</strong> construídasten<strong>do</strong>-se como referência a iniciativa masculina faz com que, namaioria das vezes, nas relações heterossexuais prevaleça o que oshomens consi<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>sejável e a expressão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo das mulherestenha menos, ou nenhum, espaço. Um exemplo disso é a freqüenteimposição masculina <strong>do</strong> coito sexual; o não-reconhecimento, porexemplo, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> existir um limite entre jogo erótico e relaçõessexuais. Um limite da vonta<strong>de</strong> ou <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Quem não se lembra92


Sexualida<strong>de</strong> e feminismo<strong>de</strong> tantos relatos <strong>de</strong> mulheres que mantiveram relações sexuais emocasiões em que não <strong>de</strong>sejavam, basicamente porque se encontravamem situações nas quais o seu não não seria respeita<strong>do</strong>. E o ambienteem que isso ocorre po<strong>de</strong> ser em casa, em um motel, em relaçõesmais dura<strong>do</strong>uras ou ocasionais.Diversida<strong>de</strong> e multiplicida<strong>de</strong><strong>de</strong> experiênciasA existência <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong>minante não enquadra todas aspessoas. Em relação à sexualida<strong>de</strong> feminina, mesmo nos momentos<strong>de</strong> maior repressão, nem todas as mulheres viveram sua sexualida<strong>de</strong><strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com esse mo<strong>de</strong>lo. Embora sejam estigmatizadas ecastigadas mesmo quan<strong>do</strong> estas práticas fazem parte <strong>do</strong> própriomo<strong>de</strong>lo, como é o caso da prostituição.Conhecemos pouco a sexualida<strong>de</strong> feminina, assim como herdamosformas bastante ina<strong>de</strong>quadas para <strong>de</strong>screver essa experiência,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o vocabulário até os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sexologia. Portanto, é necessárioconstruirmos nossos próprios instrumentos, nossos da<strong>do</strong>s e nossaprópria linguagem. Até mesmo porque sabemos pouco sobre a experiênciasexual das mulheres, o que gera seu <strong>de</strong>sejo e prazer, suasfantasias; é muito importante, para avançarmos, ter uma posturaque reconheça a diversida<strong>de</strong> e a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> práticas. Um mesmoato sexual po<strong>de</strong> ter significa<strong>do</strong>s diferentes em diferentes culturasou mesmo para cada indivíduo. É difícil estabelecer os limitesentre fantasias e práticas. As fantasias ainda são como um terrenoinexplora<strong>do</strong>, pouco conheci<strong>do</strong> e que precisa ser pesquisa<strong>do</strong> se quisermoscompreen<strong>de</strong>r a diversida<strong>de</strong> e a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências.É fundamental consi<strong>de</strong>rarmos as mulheres como sujeitos ativos.Mesmo diante das contradições e ambigüida<strong>de</strong>s que existem aoexplorar sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto patriarcal, é importanteencorajá-las a viver seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> forma positiva e potencializa<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> sua energias.A história <strong>do</strong> feminismo mostra que no campo da sexualida<strong>de</strong>é difícil se fazer reivindicações. E nos momentos em que isso foi propostocaiu-se na tentativa <strong>de</strong> normatizar o que era uma sexualida<strong>de</strong>93


Nalu Fariapoliticamente correta <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista feminista. E, em seguida,houve posturas que estabeleciam julgamentos. O que <strong>de</strong>ve ser feitoé <strong>de</strong>nunciar toda forma <strong>de</strong> violência, imposição e exploração masnão <strong>de</strong>finir que tipo <strong>de</strong> sexo se po<strong>de</strong> ou se <strong>de</strong>ve praticar.Os limites das teorias <strong>de</strong>construção socialNa elaboração <strong>do</strong> movimento feminista existe um gran<strong>de</strong> acor<strong>do</strong>no entendimento <strong>de</strong> que a sexualida<strong>de</strong> é construída socialmente,ou seja, que não é apenas um da<strong>do</strong> biológico. As teorias socioconstrutivistasforam também muito importantes para afirmar quenão existe uma essência da sexualida<strong>de</strong>, ou uma natureza sexual.Este é um da<strong>do</strong> importante, em primeiro lugar, para a discussão <strong>de</strong>que não existe uma suposta natureza sexual masculina agressiva eviolenta e uma natureza sexual feminina <strong>do</strong>ce e passiva. E, em segun<strong>do</strong>lugar, para <strong>de</strong>smistificar a idéia <strong>de</strong> que a sexualida<strong>de</strong> é algo <strong>do</strong><strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong> e que não tem <strong>de</strong> ser discutida.Porém, as teorias da construção social também apresentamalguns limites e, mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> feminismo, muitas vezes serviramà interpretação <strong>de</strong> que certos comportamentos sexuais não sãoreais, nem legítimos. Alguns comportamentos são recompensa<strong>do</strong>s,como a heterossexualida<strong>de</strong>, a maternida<strong>de</strong>, o casamento. Outros,menos privilegia<strong>do</strong>s, se vêem regula<strong>do</strong>s e castiga<strong>do</strong>s. Por exemploas relações butch-femme 1 ou o sa<strong>do</strong>masoquismo são práticas reais e,mesmo que não se esteja <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a visão expressa por cadaindivíduo — mulher ou homem —, a expressão <strong>de</strong> tais práticas élegítima nos marcos <strong>de</strong> uma relação consensual. Vale enfatizar quepara a construção afirmativa da sexualida<strong>de</strong> das mulheres é importanteque se vivam e se expressem os <strong>de</strong>sejos e fantasias e que seconheçam quais são as práticas sem normatizar, nem hierarquizar.Ainda <strong>de</strong>ntro da discussão <strong>de</strong> construção social, outro risco éo <strong>de</strong> se concluir a partir daí que a sexualida<strong>de</strong>, se construída social-1. Relações em que as duas mulheres <strong>de</strong> um casal <strong>de</strong> lésbicas representam, pelo menosformalmente falan<strong>do</strong>, papéis claramente diferencia<strong>do</strong>s que po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar como masculinoe feminino.94


Sexualida<strong>de</strong> e feminismomente, po<strong>de</strong> facilmente ser <strong>de</strong>sconstruída e reconstruída. A experiênciamostra que não é tão simples assim. A orientação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejopassa por processos culturais e sociais complexos. Ainda conhecemosmuito pouco sobre a mutabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Sabemos que existempessoas que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> se consi<strong>de</strong>raram homo (com orientaçãohomossexual) e, mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma cultura homofóbica, permaneceramhomo; ou pessoas hétero que mais tar<strong>de</strong> fizeram uma opçãohomo. Estas mudanças <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo em diferentes etapas <strong>de</strong> seuciclo vital ocorrem segun<strong>do</strong> razões que sugerem mais uma mudançainterna <strong>do</strong> que a expressão adiada <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo “reprimi<strong>do</strong>”.Relação entre sexo e gêneroAs teorias <strong>de</strong> construção social têm permiti<strong>do</strong> perceber quesexo e gênero são campos separa<strong>do</strong>s ainda que, ao mesmo tempo, seinterliguem e se misturem. O feminismo, no início, ao buscar separarmaternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> estava justamente separan<strong>do</strong> sexualida<strong>de</strong><strong>de</strong> gênero. Esta tendência, entretanto, não se manteve e, posteriormente,a maioria das análises feministas discutia a sexualida<strong>de</strong>como uma categoria totalmente <strong>de</strong>rivada da estrutura <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><strong>de</strong> gênero. Ou seja, consi<strong>de</strong>ravam que a sexualida<strong>de</strong> feminina éestruturada a partir das relações <strong>de</strong> gênero.Atualmente, no entanto, várias feministas analisam que asexualida<strong>de</strong> não é uma categoria residual <strong>do</strong> gênero, embora existammuitas ligações entre ambos. Além disso, o patriarca<strong>do</strong> temprocura<strong>do</strong> fundir gênero e sexualida<strong>de</strong>, ou seja, fazer com quemulheres e homens vivam sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os comportamentosespera<strong>do</strong>s para cada gênero. No entanto, não se po<strong>de</strong>dizer que seja totalmente assim. Uma vez que sexo tem a vercom <strong>de</strong>sejo e prazer, muitas pessoas vivem sua sexualida<strong>de</strong> comuma certa autonomia em relação à sua construção como gênerofeminino ou masculino. Nossa tarefa é <strong>de</strong>screver e analisar comose estabelecem conexões culturais entre os corpos das mulheres eo que se enten<strong>de</strong> por mulher ou sexualida<strong>de</strong> feminina. Uma mulherpo<strong>de</strong> ter um comportamento social marca<strong>do</strong> pela passivida<strong>de</strong> eviver sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma ativa. Da mesma forma, nem sempre,95


Nalu Fariaos homens buscam <strong>do</strong>minar as mulheres em suas relações sexuais;muitas vezes <strong>de</strong>sejam apenas o prazer, a satisfação sexual paraambos. Também um homem po<strong>de</strong> ser profundamente masculinoe homossexual; e uma mulher com características consi<strong>de</strong>radasmasculinas po<strong>de</strong> ser profundamente hétero etc. Além disso,as teorias <strong>de</strong> gênero têm se <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> insuficientes para explicarvárias práticas sexuais, como as <strong>do</strong>s travestis e transexuais.Essa visão, hoje compartilhada por muitas feministas, diz queas teorias <strong>de</strong> gênero não são totalmente capazes <strong>de</strong> analisar a sexualida<strong>de</strong>.É uma análise que exige uma investigação mais <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong>como as categorias adquirem senti<strong>do</strong>, como se erotizam os objetos,os atos, e como símbolos externos adquirem significa<strong>do</strong> interno eintrapsíquico. Os trabalhos recentes têm da<strong>do</strong> atenção às gran<strong>de</strong>sformações que organizam a socieda<strong>de</strong> (economia, política, religião,sistema educacional e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, código penal), mas também têm se<strong>de</strong>ti<strong>do</strong> sobre a forma como essas forças atuam por mediações navida privada, no casamento, na família, na educação <strong>do</strong>s filhos, naintimida<strong>de</strong>.Um outro aspecto a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> nas relações entre sexo egênero é o papel <strong>do</strong>s símbolos e das representações. Existem contradiçõese ambigüida<strong>de</strong>s internas. As pessoas não são recipientes vaziosaos símbolos e à cultura. Ao contrário, elas cumprem um papelativo na reinterpretação e transformação <strong>do</strong>s elementos culturais.Para enten<strong>de</strong>r a sexualida<strong>de</strong> necessitamos <strong>de</strong> mais informações sobreas respostas individuais aos símbolos e imagens. Se partimos <strong>de</strong>um ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que são unitários, <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> investigar aexperiência e o conhecimento individual. O fato <strong>de</strong> uma pessoa ver,por exemplo, revistas pornográficas não <strong>de</strong>fine que seu comportamentoserá uma imitação <strong>do</strong> que ali está representa<strong>do</strong>. Para cadapessoa isso po<strong>de</strong> ter um significa<strong>do</strong> diferente, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com suaprópria interpretação ou elaboração. Da mesma forma, os atos sexuaisnão têm o mesmo significa<strong>do</strong> para qualquer pessoa que ospratiquem, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> variar segun<strong>do</strong> vários elementos a partir dainterpretação <strong>de</strong> cada um.96


Sexualida<strong>de</strong> e feminismoConclusãoPara <strong>de</strong>senvolver a discussão sobre sexualida<strong>de</strong> é necessárioreconhecer os limites <strong>de</strong> nosso conhecimento nesta área e lidar comas tensões entre a especificida<strong>de</strong> e a generalização, sem cair na idéia<strong>de</strong> que a experiência é individual e, portanto, não se po<strong>de</strong> estabelecernenhum tipo <strong>de</strong> generalização.A total liberda<strong>de</strong> na vivência da sexualida<strong>de</strong> implica mudança<strong>de</strong> ambos os gêneros. As feministas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos as mulheres e suaspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> exercer sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma prazerosa, porémreconhecemos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças também das própriasmulheres <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à construção <strong>de</strong> gêneros.O feminismo tem insisti<strong>do</strong> que o <strong>de</strong>bate em torno da sexualida<strong>de</strong>contribui para recuperar a auto-estima e buscar a auto<strong>de</strong>terminação.Auto<strong>de</strong>terminação que segue caminhos múltiplos e varia<strong>do</strong>s.A conseqüência <strong>de</strong>ssa abordagem é o reconhecimento da necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma política audaz e <strong>de</strong> afirmação da sexualida<strong>de</strong> das mulheresque cobra a criação <strong>de</strong> espaços para o <strong>de</strong>bate e a abertura para acompreensão das vivências. Além disso, como já foi assinala<strong>do</strong>, énecessário ter consciência <strong>do</strong>s perigos e da vulnerabilida<strong>de</strong> em quese encontram as mulheres quan<strong>do</strong> estão mais visíveis. Isso implica aresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ação consciente, que impulsione as mediações<strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> mudança ao mesmo tempo que estimula osespaços <strong>de</strong> luta social construí<strong>do</strong>s em torno da questão.O feminismo luta também por mudanças materiais que permitamtanto às mulheres como aos homens experimentar uma sexualida<strong>de</strong>menos vinculada e menos moldada pelo gênero. Essasmudanças incluem a igualda<strong>de</strong> social e econômica, o fim da heterossexualida<strong>de</strong>obrigatória, o acesso à anticoncepção, o direito ao abortoe à educação sexual.Abordar a questão da sexualida<strong>de</strong> em público ainda não é umaquestão fácil, embora seja um <strong>do</strong>s temas <strong>de</strong> maior interesse <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> mulheres, até mesmo pela ausência <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> discussãomais amplos. E creio que temos a tarefa <strong>de</strong> ser mais ofensivaspara a construção <strong>de</strong> uma política em relação à sexualida<strong>de</strong> que concorrapara fortalecer as mulheres e sua auto-estima. O que contribuirá97


Nalu Fariapara que possamos viver <strong>de</strong> fato uma postura ativa e exploratória <strong>de</strong>nosso <strong>de</strong>sejo, conscientes das contradições. Isso po<strong>de</strong>rá garantir umaação propositiva, uma postura afirmativa, que aju<strong>de</strong> a romper como sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização e, ao mesmo tempo, nos permita<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-nos <strong>do</strong>s perigos e da vulnerabilida<strong>de</strong>.Na esquerda este <strong>de</strong>bate tem si<strong>do</strong> muito difícil. Ao longo <strong>do</strong>sanos, as feministas aí presentes têm trabalha<strong>do</strong> para que a questãodas relações igualitárias entre homens e mulheres seja uma priorida<strong>de</strong>.Atuan<strong>do</strong> nos parti<strong>do</strong>s, enfrentaram o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> lutar por taismudanças <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> organizações mistas e na construção <strong>de</strong> umprojeto político global para a socieda<strong>de</strong>. No campo da sexualida<strong>de</strong>,esta discussão exige compreensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua construçãohistórica e sua organização em sistemas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Gayle Rubin (1989)diz que estes sistemas fazem com que alguns sejam recompensa<strong>do</strong>s eoutros castiga<strong>do</strong>s e puni<strong>do</strong>s. A tarefa da esquerda é colocar esta questãocomo política, reconhecen<strong>do</strong> que diz respeito à vida <strong>de</strong> todas aspessoas, assim como enten<strong>de</strong>mos que o prazer sexual é uma fontepotencializa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> energias e <strong>de</strong>ve fazer parte <strong>de</strong> uma propostaampla <strong>de</strong> relações humanas baseadas na solidarieda<strong>de</strong> e no <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> todas as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um.BibliografiaGARAIZABAL, Cristina. 1992. Sexualidad: una asignatura pendiente. Nosotras,Madrid, nº 8, 60 p.KATS, Jonathan.1996. A invenção da heterossexualida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro,Ediouro, 272 p.OLIVARES, Rosa. 1989. Por uma abordagem revolucionária da questão sexual.Ca<strong>de</strong>rnos Democracia Socialista. São Paulo, Editora Aparte, 43 p.OSBORNE, Raquel. 1989. Las mujeres en la encrucijada <strong>de</strong> la sexualidad. Barcelona,Ediciones <strong>de</strong> les Dones, 208 p.________. 1993. La Construcion sexual <strong>de</strong> la realidad. Madrid, EdicionesCátedra S.A., 324 p.PARKER, Richard G. 1991. Corpos, prazeres e paixões. São Paulo, Best Seller,295 p.98


Sexualida<strong>de</strong> e feminismoRUBIN, Gayle. 1989. Reflexionan<strong>do</strong> sobre el sexo: notas para una teoriaradical <strong>de</strong> la sexualidad. In: VANCE, Carol, org. Placer y peligro: exploran<strong>do</strong>la sexualidad feminina. Madrid, Editorial Revolución.SEGAL, Lynn. 1995. Repensan<strong>do</strong> la heterossexualidad: las mujeres con loshombres. Debate Feminista. Número temático: Sexualidad: teoria yprática. México, año 6, vol. II, abril, 405 p.VANCE, Carol S. 1989. El Placer y el peligro. In: VANCE, Carol, org. Placery peligro: exploran<strong>do</strong> la sexualidad feminina. Madrid, EditorialRevolución, 232 p.________ e SNITOW, Ann B. 1990. Sobre la possibilidad <strong>de</strong> un <strong>de</strong>bate acerca<strong>de</strong> la sexualidad <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l feminismo. In: CALDERÓN, M. eOSBORNE, R., orgs. Mujer, sexo e po<strong>de</strong>r. Madrid, Proyeto Mujer yPo<strong>de</strong>r, Instituto <strong>de</strong> Filosofia. CSIC, Forum <strong>de</strong> Política Feminista yComisión Antiagressiones <strong>de</strong>l Movimiento Feminista, 92 p.WEEKS, Jeffrey. 1993. El mal estar en la sexualidad. Madrid, TalasaEdiciones, 426 p.99


Mulher e saú<strong>de</strong>Mulher e saú<strong>de</strong>:uma avaliaçãocontemporâneaLígia Men<strong>do</strong>nçaCorpo e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>Falar em saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença é sinônimo <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida. Interessa a to<strong>do</strong>s, como <strong>de</strong>monstram pesquisas <strong>de</strong> opinião.Também as mulheres brasileiras <strong>de</strong>stacaram o tema entre suas principaisreivindicações <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>do</strong>s anos 70, em seus encontros econgressos. É fácil enten<strong>de</strong>r por quê.Em primeiro lugar estava a compreensão, por parte das feministas,<strong>de</strong> que a posição subalterna das mulheres em relação aos homens,e a limitação <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s ao espaço <strong>do</strong>méstico, tinhacomo um <strong>de</strong> seus pilares a <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> corpo, o controle dasexualida<strong>de</strong> e a exaltação da função materna como <strong>de</strong>stino. Um passoessencial para a emancipação das mulheres teria <strong>de</strong> ser então asuperação <strong>de</strong>ssa “naturalização <strong>do</strong> corpo da mulher e <strong>de</strong> suas funçõesreprodutivas”, abrin<strong>do</strong> caminho para se compreen<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>terminaçõessociais que se sobrepuseram às características naturais e<strong>de</strong>limitaram os <strong>de</strong>senvolvimentos possíveis da fêmea humana nosvários momentos da história. O terreno da saú<strong>de</strong> abria a porta paraessas reflexões.Lígia Men<strong>do</strong>nçaSocióloga da Secretaria Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>Paraná, participa <strong>do</strong> Fórum Popular <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> eda diretoria <strong>do</strong> SINDSaú<strong>de</strong> (PR). Foi integranteda direção <strong>do</strong> <strong>PT</strong>-PR e candidata a verea<strong>do</strong>ra,<strong>de</strong>putada estadual e vice-prefeita.101


Lígia Me<strong>do</strong>nçaAs mulheres <strong>do</strong>s movimentos popular e sindical chegaram poroutras vias à problemática da saú<strong>de</strong>. Sofriam nas filas com longasesperas e falta <strong>de</strong> vagas, e nos consultórios e hospitais com o atendimentoimpessoal, às vezes grosseiro e constrange<strong>do</strong>r. À tão louvadamaternida<strong>de</strong> se contrapunha um pré-natal malfeito, falta <strong>de</strong> garantia<strong>de</strong> acesso ao hospital e risco <strong>de</strong> vida por infecções e hemorragias noparto, além <strong>de</strong> provável <strong>de</strong>semprego após a licença-maternida<strong>de</strong>. Paramilhares <strong>de</strong> outras os problemas eram a gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, o risco <strong>de</strong>aborto clan<strong>de</strong>stino, a <strong>de</strong>sinformação sobre os riscos e usos ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s<strong>de</strong> anticoncepcionais e a ocorrência <strong>de</strong> câncer ginecológico.Elas são a maior parte da clientela nos hospitais e postos <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, seja como gestantes e parturientes, seja como acompanhantes<strong>de</strong> crianças e i<strong>do</strong>sos. Em casa, quase sempre cabe às mulheres “cuidarda saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s outros”. Também constituem cerca <strong>de</strong> 80% <strong>do</strong>sprofissionais <strong>do</strong> setor, embora pouco representadas em cargos <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão e direção, e geralmente <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> formação e informaçãosobre o “enfoque <strong>de</strong> gênero”.De que a<strong>do</strong>ecem e morrem as mulheresSempre se reconheceu que as mulheres têm um elenco específico<strong>de</strong> características físicas — e <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças — <strong>de</strong>correntes<strong>de</strong> sua função biológica na reprodução, <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> teremhormônios, ciclos e órgãos que possibilitam engravidar, parir,amamentar. A novida<strong>de</strong> das últimas décadas foi ampliar essa compreensão,enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que a situação sociocultural <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorizaçãoe a subordinação das mulheres têm gran<strong>de</strong> influência sobresua saú<strong>de</strong>. Por me<strong>do</strong>, vergonha, <strong>de</strong>sinformação ou falta <strong>de</strong>auto-estima, resultantes <strong>de</strong> uma educação repressora da sexualida<strong>de</strong>e que reforçou sua <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s homens, muitas <strong>de</strong>scuidamda saú<strong>de</strong> e arriscam a vida.Apresenta-se aqui uma breve síntese <strong>do</strong>s problemas mais freqüentese mais graves que afetam as mulheres no Brasil, sem discutirsuas causas e utilizan<strong>do</strong> poucos números. Deve-se lembrar quenesse país imenso e com tantas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, seria <strong>de</strong>sejável conheceras muitas diversida<strong>de</strong>s (<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à renda, à etnia ou à categoria102


Mulher e saú<strong>de</strong>ocupacional) nesse universo <strong>de</strong> 78 milhões <strong>de</strong> brasileiras. Uma dasfontes mais importantes e atuais <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre o tema é a PesquisaNacional <strong>de</strong> Demografia e Saú<strong>de</strong> — PNDS/1996, mas outras fontes<strong>de</strong>vem ser consultadas quan<strong>do</strong> se quiser traçar um quadro apropria<strong>do</strong>em cada região ou município.1) A<strong>do</strong>lescentes e jovens — a <strong>de</strong>sinformação e o uso ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong><strong>de</strong> anticoncepcionais, alia<strong>do</strong> ao início precoce das ativida<strong>de</strong>ssexuais, vem ocasionan<strong>do</strong> aumento das taxas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z entreas a<strong>do</strong>lescentes, com maiores riscos para a saú<strong>de</strong> da jovem e<strong>do</strong> bebê, além <strong>de</strong> maior número <strong>de</strong> abortos provoca<strong>do</strong>s. Tambémvêm crescen<strong>do</strong> as <strong>do</strong>enças sexualmente transmissíveis (DST),com ênfase na AIDS.2) <strong>Mulheres</strong> adultas — é o grupo mais numeroso e <strong>de</strong> maiorativida<strong>de</strong> sexual e reprodutiva. Os maiores problemas são o mauatendimento no pré-natal e no parto, explicita<strong>do</strong>s em altas taxas <strong>de</strong>cesariana e <strong>de</strong> morte materna. São importantes ainda os riscos <strong>de</strong>correntes<strong>do</strong> uso prolonga<strong>do</strong>, ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> e inseguro <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>scontraceptivos, os abortos clan<strong>de</strong>stinos, o crescimento da AIDS e ocâncer <strong>de</strong> colo uterino e <strong>de</strong> mama.3) <strong>Mulheres</strong> trabalha<strong>do</strong>ras — ao ingressarem no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho, as mulheres passam a sofrer também novos riscos. Mas osregistros oficiais ainda <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> fora to<strong>do</strong>s que trabalham no merca<strong>do</strong>informal e no serviço público, <strong>do</strong>is setores em que há gran<strong>de</strong>pre<strong>do</strong>mínio da mão-<strong>de</strong>-obra feminina. Da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> três anos paraCuritiba (CENTRO METROPOLITANO..., 1994) mostram que os aci<strong>de</strong>ntese <strong>do</strong>enças <strong>do</strong> trabalho entre as mulheres representam quase20% <strong>do</strong> total registra<strong>do</strong>, e 70% ocorreram em cinco tipos <strong>de</strong> ocupação:pessoal <strong>de</strong> enfermagem (18,6%), serventes e garis (16,7%),bancárias (12,6%), operárias da produção (12,2%) e cozinheiras/ajudantes (10,6%). Dentre as <strong>do</strong>enças profissionais <strong>de</strong>staca-se a LER(lesão por esforço repetitivo), que afeta muito as mulheres, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ànatureza <strong>do</strong>s trabalhos que executam (datilografia e digitação) e aoacúmulo com os serviços <strong>do</strong>mésticos, além <strong>do</strong> fator hormonal feminino,que favorece a retenção <strong>de</strong> líqui<strong>do</strong> e prolonga a inflamaçãolocalizada. Entre a população rural vem crescen<strong>do</strong> o número <strong>de</strong>aci<strong>de</strong>ntes com mulheres causa<strong>do</strong>s por agrotóxicos.103


Lígia Me<strong>do</strong>nçaAinda resta mencionar o sofrimento emocional, que se expressapor maior ocorrência <strong>de</strong> “nervosismo” e tensão, em gran<strong>de</strong>parte <strong>de</strong>corrente da dupla jornada <strong>de</strong> trabalho e da falta <strong>de</strong> lazer.4) <strong>Mulheres</strong> no climatério e i<strong>do</strong>sas — além <strong>do</strong>s sintomas e <strong>de</strong>sconfortosque po<strong>de</strong>m acompanhar a cessação <strong>do</strong>s hormônios, estasmulheres apresentam maior risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e instabilida<strong>de</strong> emocional,<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às mudanças ou perdas <strong>de</strong> papéis sociais (filhos adultosque <strong>de</strong>ixam a casa, aposenta<strong>do</strong>ria, viuvez ou separação). A terapia<strong>de</strong> reposição hormonal (TRH), alar<strong>de</strong>ada como solução mágica,também apresenta riscos (aumento <strong>de</strong> câncer <strong>de</strong> mama). Seu uso noscasos <strong>de</strong> combate à osteoporose e aos problemas cardíacos exige acompanhamentomédico. São altos os índices <strong>de</strong> câncer <strong>de</strong> mama e <strong>de</strong>colo uterino e crescentes os <strong>de</strong> câncer <strong>de</strong> pulmão.O Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS)No início <strong>do</strong>s anos 80 o país, ainda sob ditadura e mergulha<strong>do</strong>em profunda crise econômica, assistia ao crescimento daslutas sociais: organizavam-se sindicatos e associações <strong>de</strong> bairro,as Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base (CEBs) e outras entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> interesses específicos (mulheres, negros, jovens, indígenas,ecologistas, homossexuais). No campo da reorganização partidáriaa principal novida<strong>de</strong> foi o surgimento <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res.A questão da saú<strong>de</strong> já constituía um ponto importante <strong>de</strong> reivindicaçãopopular. Profissionais e professores com visão crítica <strong>do</strong>sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> existente elaboraram a proposta da “Reforma Sanitária”que ganhou força com a mobilização social, e em 1986 resultouno relatório da histórica 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,que reuniu 5.000 pessoas em Brasília. Dois anos <strong>de</strong>pois a nova ConstituiçãoFe<strong>de</strong>ral oficializou o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS) que estabelececomo responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e direito das pessoas,um atendimento integral à saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acesso universal, com qualida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> caráter preventivo e curativo, sem qualquer cobrança. Comoestratégias prevê a <strong>de</strong>scentralização <strong>do</strong> planejamento e da gestão paraesta<strong>do</strong>s e municípios, e a participação popular no controle <strong>do</strong> siste-104


Mulher e saú<strong>de</strong>ma. Incorpora, assim, alguns <strong>do</strong>s princípios que já constavam <strong>do</strong>plano <strong>de</strong> lutas das mulheres.O que queriam as mulheresAo colocar em pauta a questão da saú<strong>de</strong>, as li<strong>de</strong>ranças <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong> mulheres queriam várias coisas:1) Recuperar e aumentar a auto-estima e o po<strong>de</strong>r das mulheressobre seu corpo, a partir da divulgação/apropriação <strong>de</strong> conhecimentose linguagens antes circunscritos ao campo médico e acadêmico.Isso iria permitir que elas participassem ativamente da preservação<strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong>, física e mental, e da escolha <strong>de</strong> tratamentos e procedimentosem caso <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças. Uma das preocupações centrais era secontrapor à política controla<strong>do</strong>ra da natalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agências internacionais,afirman<strong>do</strong> o direito das mulheres à anticoncepção e à maternida<strong>de</strong>como <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>las, sem objetivo <strong>de</strong> atingir qualquer meta<strong>de</strong>mográfica.2) Associar sempre, ao discutir saú<strong>de</strong> reprodutiva (gravi<strong>de</strong>z,pré-natal, parto, anticoncepção, aborto, menopausa), os aspectos fisiológicoscom a questão da sexualida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> direito da mulher aoprazer. Os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam informar com clareza,mas respeitan<strong>do</strong> as diferenças <strong>de</strong> valores e as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> suaspacientes.3) Provocar mudanças concretas nos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> formaa que aten<strong>de</strong>ssem às mulheres como pessoas integrais (não apenascomo porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> um útero), levan<strong>do</strong> em conta suas característicasbiológicas e culturais. Além <strong>de</strong> melhores condições físicas e materiaisnas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> seria imprescindível formar e capacitaras equipes para aten<strong>de</strong>rem a mulher com respeito, clareza, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za.A qualida<strong>de</strong> da relação profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>/paciente, dimensãoreivindicada em to<strong>do</strong>s os fóruns <strong>de</strong> discussão da Reforma daSaú<strong>de</strong>, torna-se ponto central nas ações dirigidas à mulher, pois lidamdiretamente com a intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um corpo feminino sobre oqual pesam tantos interditos e normas.105


Lígia Me<strong>do</strong>nçaA ação <strong>do</strong> movimento e o PAISMAlém <strong>de</strong> recomendar, as mulheres foram à prática. No exteriortambém se constituíram entida<strong>de</strong>s voltadas ao tema, como a ISIS,a Re<strong>de</strong> Latino-Americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e a Re<strong>de</strong> Mundial <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>Pelos Direitos Reprodutivos. Aqui formaram-se vários grupos, que<strong>de</strong>ram origem a organizações não-governamentais (ONGs), quasesempre contan<strong>do</strong> com financiamento externo, que implantaram serviços“alternativos” em algumas capitais, mostran<strong>do</strong> na prática como<strong>de</strong>via e podia ser o atendimento à saú<strong>de</strong> da mulher. O efeito-<strong>de</strong>monstraçãofoi alcança<strong>do</strong>. O <strong>de</strong>safio era ampliar esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>serviço para milhões <strong>de</strong> brasileiras.O acúmulo teórico e prático permitiu que as mulheres fossemouvidas e que se criasse o Programa <strong>de</strong> Atenção Integral à Saú<strong>de</strong> daMulher (PAISM), a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> em 1983 pelo Ministério da Saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>poispelo Ministério da Previdência e Assistência Social/InstitutoNacional <strong>de</strong> Assistência Médica da Previdência Social (MPAS/INAMPSportaria nº 3.360/86).Bem fundamenta<strong>do</strong> tecnicamente, o PAISM apontava os principaisriscos, biológicos e sociais, e as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento àmulher nas diversas fases/situações <strong>de</strong> sua vida: como a<strong>do</strong>lescente,adulta, grávida, no climatério e na velhice. A<strong>do</strong>tava o princípio básico<strong>de</strong> não restringir seu alcance às questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> reprodutiva.Mostrava os caminhos para formação <strong>de</strong> pessoal com meto<strong>do</strong>logiaparticipativa e problematiza<strong>do</strong>ra, produção <strong>de</strong> material educativo,quantifican<strong>do</strong> custos <strong>de</strong> equipamentos, material <strong>de</strong> consumo e medicamentos.A atuação <strong>de</strong> mulheres com sólida formação no movimentofeminista e preparo técnico foi <strong>de</strong>cisiva para o andamento <strong>do</strong>programa nos primeiros anos, aliada à mobilização real <strong>de</strong> mulherespor to<strong>do</strong> o país, como evi<strong>de</strong>nciam as centenas <strong>de</strong> pré-conferênciasmunicipais e estaduais que se realizaram como preparação para aConferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Direitos da Mulher, que aconteceuem Brasília em outubro <strong>de</strong> 1986. Esse momento representouum ponto alto da luta pois permitiu uma gran<strong>de</strong> troca entre os movimentos<strong>de</strong> mulheres e os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e contribuiu parafortalecer o conjunto da proposta global <strong>do</strong> movimento sanitário.106


Mulher e saú<strong>de</strong>Um outro momento explicitou a luta das mulheres pela saú<strong>de</strong>:a coleta <strong>de</strong> assinaturas, no processo constituinte, pela proposta<strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong> aborto, coor<strong>de</strong>nada pelo Conselho Nacional<strong>de</strong> Direitos da Mulher (CNDM). Pela primeira vez as mulheres saíramàs ruas com esta reivindicação.Um programa esvazia<strong>do</strong>Uma avaliação realizada em fins <strong>de</strong> 1986, por consultores nacionaise internacionais, com apoio <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, apontavaque o nível <strong>de</strong> implantação <strong>do</strong> PAISM em to<strong>do</strong> o território nacionalera baixo, não ten<strong>do</strong> havi<strong>do</strong> mudança nos serviços para a maioriadas usuárias. Alguns esta<strong>do</strong>s apresentavam situação mais positivacomo São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe e Pará(ARILHA, 1987). Constatava ainda problemas com recursos financeiros— <strong>do</strong> total previsto para o triênio 1984-86 foi executa<strong>do</strong> menos<strong>de</strong> 60% na média <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> — e registrava escassez <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>santiconcepcionais. Mostrava 69% <strong>de</strong> cumprimento das metas quantoa treinamento <strong>de</strong> recursos humanos, além da formulação <strong>de</strong> normastécnicas, material informativo e educativo <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong>.Margarete Arilha conclui que “<strong>do</strong> discurso à ação o caminho é sinuoso”e que era gran<strong>de</strong> “a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> vencer a inércia inicial damáquina administrativa para a operacionalização <strong>de</strong> uma propostaprogramática inteiramente nova” 1 .Em 1992 nova pesquisa avaliou da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 16 secretarias municipaise 14 secretarias estaduais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, concluin<strong>do</strong> que as experiências<strong>de</strong> assistência integral à mulher eram isoladas e <strong>de</strong>scontínuas.Muito fala<strong>do</strong> e pouco aplica<strong>do</strong>, o PAISM é mais um exemplo <strong>de</strong> quenão nos faltam propostas técnicas, e sim <strong>de</strong>cisão política.1. No Paraná, entre 1987/88, foi extinto o setor que coor<strong>de</strong>nava o PAISM na SecretariaEstadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e orientava os municípios. A expansão da municipalização da saú<strong>de</strong>ocorre então seguin<strong>do</strong> um “mo<strong>de</strong>lo INAMPS”, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a <strong>de</strong>manda eventual, sem prontuário,programação ou acompanhamento epi<strong>de</strong>miológico. Por ironia, esse mesmo governoencaminha e aprova a lei estadual nº 9.303/90 crian<strong>do</strong> o PAISM no esta<strong>do</strong>!107


Lígia Me<strong>do</strong>nçaPolíticas públicas dão marcha à réA vitória <strong>do</strong> bloco político conserva<strong>do</strong>r, com Fernan<strong>do</strong> Collornas eleições <strong>de</strong> 1989 e Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so em 1994, <strong>de</strong>nítida inspiração neoliberal, teve sério impacto nas conquistas quevinham se realizan<strong>do</strong>. As lutas sociais entram em <strong>de</strong>scenso. Ao invésda implementação da nova Constituição Fe<strong>de</strong>ral, tem início oprocesso <strong>de</strong> reforma constitucional, realiza<strong>do</strong> pelas reformas votadasem 1997-98 e por outras medidas administrativas.Todas as políticas sociais <strong>de</strong> caráter universal e com execução<strong>de</strong>scentralizada foram seriamente prejudicadas com cortes, <strong>de</strong>svios<strong>de</strong> verbas e aumento <strong>do</strong> clientelismo. No caso <strong>do</strong> SUS houve umaredução <strong>de</strong> quase 50%: o gasto público per capita em saú<strong>de</strong> caiu <strong>de</strong>80 dólares em 1987 para apenas 44 dólares em 1993! Em 1998 seretornou ao patamar anterior, com um gasto <strong>de</strong> apenas 100 dólarespor habitante, um <strong>do</strong>s mais baixos da América Latina. Apesar <strong>de</strong>alguns avanços inegáveis na implantação localizada <strong>do</strong> SUS, o quadrogeral é <strong>de</strong> crise.Seria ilusão imaginar que o PAISM po<strong>de</strong>ria dar certo quan<strong>do</strong>o próprio SUS está ameaça<strong>do</strong> e trafega na contramão da políticahegemônica que corta gastos públicos, reduz o tamanho <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> e recomenda a privatização como sinônimo <strong>de</strong> eficiência.Jamais será possível aten<strong>de</strong>r aos princípios <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, eqüida<strong>de</strong>e universalização <strong>do</strong> SUS por meio <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>.A falência <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Assistência à Saú<strong>de</strong> (PAS) em SãoPaulo é prova disso.O PAISM, embora per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> força como estratégia governamental,foi e continua a ser a referência nacional mais importantepara orientar as reivindicações e ações em saú<strong>de</strong> da mulher. Issopo<strong>de</strong> ser comprova<strong>do</strong> naqueles esta<strong>do</strong>s e municípios em que forameleitos governos <strong>do</strong> campo <strong>de</strong>mocrático-popular. Em algumas prefeituras<strong>do</strong> <strong>PT</strong>, como a <strong>de</strong> São Paulo na gestão 1989-92, constatou-sesignificativo progresso com a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>rias ou secretariasda mulher, implantação <strong>de</strong> serviço <strong>de</strong> aborto legal em hospitaispúblicos, ampliação <strong>de</strong> vagas em maternida<strong>de</strong>s, criação <strong>de</strong> Casas <strong>de</strong>Passagem (on<strong>de</strong> a gestante <strong>de</strong> risco po<strong>de</strong> aguardar o momento <strong>do</strong>108


Mulher e saú<strong>de</strong>parto sem ocupar um leito hospitalar) e outras iniciativas parahumanizar o parto. Ocorreu ampliação na oferta <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>scontraceptivos, além <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s para melhorar o registro e o atendimentonos casos <strong>de</strong> violência contra as mulheres, dan<strong>do</strong> visibilida<strong>de</strong>não só aos danos físicos e emocionais <strong>do</strong>s espancamentos e estuproscomo à violência e <strong>de</strong>srespeito nos próprios serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.DesafiosNesse final <strong>de</strong> século é possível afirmar que a questão da saú<strong>de</strong>da mulher é tema constante <strong>de</strong> encontros sindicais e <strong>do</strong> movimentopopular e também das comemorações <strong>do</strong> 8 <strong>de</strong> março. Em 1998 asentida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mulheres rurais <strong>de</strong>stacaram a saú<strong>de</strong> como a principalreivindicação. A data <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> maio, específica para <strong>de</strong>bater o tema,começa a ganhar maior <strong>de</strong>staque.A ativida<strong>de</strong> da Re<strong>de</strong> Nacional Feminista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e DireitosReprodutivos, criada em 1991, vem contribuin<strong>do</strong> para sistematizare divulgar a questão. A realização <strong>do</strong> 8º Encontro Internacional <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> da Mulher (EISM) mostrou como é amplo o painel temático,muito além <strong>do</strong>s direitos reprodutivos: há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprofundaros temas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da mulher relaciona<strong>do</strong>s ao trabalho, à saú<strong>de</strong> mental,à violência, à pobreza, à falta <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nas relações sexuais, àutilização <strong>de</strong> novas tecnologias e às situações <strong>de</strong> política econômicaglobal. As participantes <strong>do</strong> 8º EISM analisaram a enorme distânciaentre intenção e gesto: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> avanço propositivo, legale técnico <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos oficiais (SUS, PAISM, ECO-92, <strong>de</strong>claração<strong>do</strong> Cairo em 1994 e a Plataforma <strong>de</strong> Pequim em 1995), e, por outro,a redução e má qualida<strong>de</strong> nos serviços realmente disponíveis para asmulheres. No item final <strong>do</strong> relatório estão sintetizadas a principaisestratégias para fazer acontecer na prática a questão <strong>do</strong>s direitos dasmulheres à saú<strong>de</strong> (DECLARAÇÃO DO GLÓRIA, 1997). Algumas <strong>de</strong>las:utilizar mais os meios <strong>de</strong> comunicação; sistematizar e publicar osda<strong>do</strong>s estatísticos por gênero; ampliar alianças com movimentos <strong>de</strong>cidadania; intensificar trocas <strong>de</strong> materiais e pesquisas; disputar espaçospúblicos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, como cargos eletivos; apren<strong>de</strong>r a fiscalizar o usodas verbas públicas, e outras.109


Lígia Me<strong>do</strong>nçaNo Brasil, on<strong>de</strong> se vive uma situação <strong>de</strong> “cidadania exclu<strong>de</strong>nte”,com <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s antigas se soman<strong>do</strong> às novas, é impossível avançarna luta por saú<strong>de</strong> sem uma atuação conjunta que permita umamudança real <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e inversão <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s nos investimentospúblicos.Se queremos melhorar a saú<strong>de</strong> das mulheres, e da população,é preciso participar da implantação e <strong>do</strong> acompanhamento da Política<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, exigin<strong>do</strong> fontes <strong>de</strong> financiamento suficientes e regularespara o SUS, como quer a Proposta <strong>de</strong> Emenda Constitucional 169 2 .Também é necessário retomar e ampliar a organização emobilização das mulheres para que ocupem espaço nos ConselhosMunicipais e Estaduais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, e outros fóruns similares. A implantaçãorecente <strong>de</strong> repasse direto <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> aos municípiospor meio <strong>do</strong> Piso <strong>de</strong> Assistência Básica (PAB) — previsto naNorma Operacional Básica/96 — <strong>de</strong>ve reforçar a partir <strong>de</strong> agora opo<strong>de</strong>r local na utilização das verbas <strong>do</strong> SUS. Convém lembrar aindaque se po<strong>de</strong>m implantar partes <strong>do</strong> antigo PAISM, ten<strong>do</strong> claro que oobjetivo final está por alcançar 3 .Fica evi<strong>de</strong>nte que o tema saú<strong>de</strong> e sexualida<strong>de</strong> era, e ainda é,uma preocupação essencial <strong>de</strong>ssa nova mulher, que se quer valorizadae respeitada em sua dignida<strong>de</strong> pessoal e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, <strong>de</strong>sfrutan<strong>do</strong>plenamente direitos individuais, sociais e políticos. Alémdisso, é um eficiente ponto <strong>de</strong> partida para a organização <strong>de</strong> grupos<strong>de</strong> base, porque respon<strong>de</strong> à motivação imediata e concreta das mulheresem praticamente to<strong>do</strong>s os lugares.O <strong>de</strong>safio será aliar esse interesse imediato com o projeto maisamplo <strong>de</strong> um país justo e <strong>de</strong>mocrático.2. Proposta <strong>de</strong> Emenda Constitucional, <strong>de</strong> autoria <strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge (<strong>PT</strong>-SP) eoutros, que prevê o repasse anual para o SUS <strong>de</strong> 30% da arrecadação da Previdência e 10%<strong>do</strong> orçamento fiscal <strong>de</strong> cada nível <strong>de</strong> governo. Deve ser votada em 1998.3. Para implantar <strong>de</strong> fato um programa estadual <strong>de</strong> Controle <strong>do</strong> Câncer Cérvico-uterino (um<strong>do</strong>s itens <strong>do</strong> PAISM) foram necessários <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong> trabalho intensivo, no Paraná, da equipetécnica da Secretaria Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> com participação <strong>do</strong> Fórum Popular <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>.110


Mulher e saú<strong>de</strong>BibliografiaABEP/FNUAP. 1996. Diversida<strong>de</strong>s brasileiras: um olhar <strong>de</strong>mográfico (cartaz),São Paulo.ARILHA, Margarete. 1987. Reflexões sobre a saú<strong>de</strong> da mulher. Texto apresenta<strong>do</strong>na I Jornada <strong>do</strong> Comitê para a Eliminação da Discriminaçãocontra a Mulher (CEDAW).BITTAR , Jorge, org. 1992. O mo<strong>do</strong> petista <strong>de</strong> governar. São Paulo, Ca<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> Teoria&Debate, Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, capítulos sobreMulher e sobre Saú<strong>de</strong>.BORGES, Sherrine M. N. 1986. A relação profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com as mulheres.Mimeogr.BRASIL. Ministério da Saú<strong>de</strong>. 1994. Brasil: Estatísticas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>.Brasília.CARTA <strong>de</strong> Itapecirica. 1984. Texto aprova<strong>do</strong> no 1º Encontro Nacional <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> da Mulher – Itapecirica da Serra (SP), nov.CENTRO METROPOLITANO DE ATENDIMENTO À SAÚDE DO TRABALHADOR.1994/95/96. Comunicações <strong>de</strong> Aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Trabalho em Curitiba, porsexo. Curitiba.DECLARAÇÃO <strong>do</strong> Glória. 1997. Relatório <strong>do</strong> 8º Encontro Internacionalsobre Saú<strong>de</strong> da Mulher. Rio <strong>de</strong> Janeiro, março.LEME; MAUAB; PETRAMALI e ROMEIRO. 1996. Serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>: O que asmulheres querem. Conselho Nacional <strong>de</strong> Defesa da Mulher, julho.Mimeogr.MENDONÇA, Lígia A. C. 1995. Mulher: o ser e o fazer. Informativo ABEN,março. Texto base para a 56ª Semana <strong>de</strong> Enfermagem.PESQUISA Nacional sobre Demografia e Saú<strong>de</strong> (PNDS). 1996. Bemfam/MS/IBGE/DHS/USAID/FNUAP/UNICEF .SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Violência e saú<strong>de</strong> da mulher. 1993.Mulher e Saú<strong>de</strong>, São Paulo, SOF, nov.111


Aborto: história <strong>de</strong> muitas históriasAborto:história <strong>de</strong>muitas históriasMarta SuplicyNa legislatura 1995-1998 <strong>do</strong> Congresso Nacional, alguns assuntosconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s “tabus” ganharam maior amplitu<strong>de</strong> e repercussãona arena política e nos meios <strong>de</strong> comunicação.Um <strong>de</strong>les é a questão <strong>do</strong> aborto. Desperta paixões, ressuscitapreconceitos, confronta idéias e valores, mexe com concepções religiosasmas, fundamentalmente, faz parte das histórias <strong>de</strong> muitasmulheres em nosso país.Dizemos que é (ou era) um assunto “tabu”. E se vive um para<strong>do</strong>xoa cada dia: todas as pessoas conhecem (e comentam à bocapequena) um caso <strong>de</strong> aborto na família ou nos círculos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s,embora o nosso Código Penal consi<strong>de</strong>re o ato <strong>de</strong> abortar (à exceção<strong>de</strong> <strong>do</strong>is casos: risco <strong>de</strong> vida da mãe e gravi<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> estupro)um crime passível <strong>de</strong> pena <strong>de</strong> reclusão.Dificilmente um caso <strong>de</strong> aborto vai parar na Justiça. As cifras(estimadas, dada a ilegalida<strong>de</strong>) dão conta da dimensão <strong>do</strong> problema.Os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> DATASUS (Ministério da Saú<strong>de</strong>) servem <strong>de</strong> basepara qualquer projeção que se faça. Para cada caso <strong>de</strong> hospitalização<strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> abortamento, ocorrem <strong>de</strong> três a cinco outros casosMarta SuplicyEx-<strong>de</strong>putada fe<strong>de</strong>ral e vice-lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> <strong>PT</strong> na CâmaraFe<strong>de</strong>ral. Foi candidata a governa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> SãoPaulo em 1998. Psicanalista e autora <strong>de</strong> livrossobre sexualida<strong>de</strong>. Autora <strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong> cotas<strong>de</strong> mulheres candidatas para eleiçõeslegislativas, educação sexual nas escolas e <strong>de</strong>união civil entre pessoas <strong>de</strong> mesmo sexo.113


Marta Suplicyque não chegam aos hospitais. O ex-ministro Adib Jatene, falan<strong>do</strong>na Comissão <strong>de</strong> Acompanhamento <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Atenção Integralà Saú<strong>de</strong> da Mulher (PAISM), que coor<strong>de</strong>nei em 1996-97, fala daproporção 1/8.Mas vejamos (CORREA e FREITAS, 1997):REGIÕESHospitalizações <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>abortamentos (DATASUS)Interrupções voluntárias dagravi<strong>de</strong>z (estimativa fator 1/5)1994 1995 1996 1994 1995 1996Norte 19.889 18.936 16.459 84.000 80.000 69.500Nor<strong>de</strong>ste 121.406 105.285 94.752 512.100 444.000 399.900Su<strong>de</strong>ste 127.332 113.969 101.732 537.800 481.000 429.400Centro-Oeste 16.638 14.281 14.170 70.400 60.200 59.800Sul 26.551 22.227 19.247 112.100 93.800 81.200Total 331.861 274.698 246.370 1.316.400 1.159.400 1.039.900Para se ter uma idéia da dimensão da questão, vejamos esteexemplo. No esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo, em 1996 se realizaram 461.840partos (CORRÊA e FREITAS, 1997).Pelo fator 1/5 (a cada 5 abortos clan<strong>de</strong>stinos um chega ao hospitalpara curetagem ou outro procedimento) teríamos um total <strong>de</strong>242 mil abortamentos em São Paulo. A meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> número <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>zeslevadas a termo. Um problema macro, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, arequerer atenção prioritária.Por mais que se queira con<strong>de</strong>nar a prática ou não enten<strong>de</strong>r osmotivos, fica claro que milhares <strong>de</strong> mulheres, a cada ano, realizam oaborto. Com ou sem atendimento médico. Aliás, a maioria, em máscondições, sujeitas a seqüelas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> física e mental.E por quê? Seria irresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tantas mulheres? Insensibilida<strong>de</strong>?Falta <strong>de</strong> moral?114


Aborto: história <strong>de</strong> muitas históriasNão cabe julgar <strong>de</strong> forma linear alguém por um ato que dizrespeito a uma <strong>de</strong>cisão muito pessoal e íntima. Quem trabalha diretamentecom as mulheres conhece suas realida<strong>de</strong>s: falta acesso a informaçõese a méto<strong>do</strong>s contraceptivos eficazes; falta suporte psicológicoem situações e contextos <strong>de</strong> extrema pobreza, sobram carências oudificulda<strong>de</strong>s pessoais <strong>de</strong> diferentes naturezas (aban<strong>do</strong>no, pressão sociale familiar etc.).Tu<strong>do</strong> isso em meio a uma cultura <strong>de</strong> queda da fecundida<strong>de</strong>.Em um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 20 anos, passamos por gran<strong>de</strong>s mudanças. Em1975, o índice médio era <strong>de</strong> 4,3 filhos/mulher. As estimativas, apartir <strong>do</strong> Censo <strong>de</strong> 1990, indicam uma taxa entre 2,4 a 2,9 filhos/mulher, com um <strong>de</strong>clínio muito superior ao observa<strong>do</strong> nas décadasanteriores (PNDU/IPEA, 1996, p. 66). Neste quadro, muito em breveestaremos chegan<strong>do</strong> a um índice similar aos <strong>de</strong> países industrializa<strong>do</strong>s,on<strong>de</strong> a queda da fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong>correu <strong>do</strong> acesso à educação,à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, a méto<strong>do</strong>s contraceptivos e da melhoria <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população em geral.Por aqui, essa queda não veio acompanhada <strong>de</strong> proporcionaisíndices <strong>de</strong> melhoria <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Aliás, ao mesmo tempo quese amplia a participação da mulher no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e não seinverte a lógica da “dupla jornada” nem se socializam os cuida<strong>do</strong>s comas crianças, os <strong>do</strong>entes, os i<strong>do</strong>sos das famílias, pune-se a cada dia asmulheres, empurradas para soluções extremas, tal como o aborto.Nenhuma mulher “gosta” <strong>de</strong> abortar. As mulheres sentem suaatitu<strong>de</strong> como um gesto extremo, um ato que lhe custa muita reflexão,dúvida, ansieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>r. Quem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong>aborto não é, simplesmente, “a favor <strong>do</strong> aborto”.Somos a favor da vida da mulher, com respeito e dignida<strong>de</strong>,reconhecen<strong>do</strong> suas angústias e perplexida<strong>de</strong>s.A ausência <strong>de</strong> políticas governamentais eficazes <strong>de</strong> planejamentofamiliar e educação sexual agravam ainda mais o problema:cerca <strong>de</strong> 20% das mulheres grávidas, em média, têm menos <strong>de</strong> 20anos. E gran<strong>de</strong> parte das mulheres que abortam são a<strong>do</strong>lescentes.Para além <strong>do</strong> dilema <strong>do</strong> aborto, há o dilema da con<strong>de</strong>naçãopura e simples <strong>de</strong> seu ato. O jogo na ilegalida<strong>de</strong>. O confronto com amorte, a <strong>do</strong>ença, a clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>.115


Marta SuplicyE, quan<strong>do</strong> o tema chega ao Congresso, é preciso legislar para asocieda<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> em vista a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> situações, a vivência concretadas pessoas, a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convicções religiosas e pessoais.Uma Igreja, um grupo religioso, se harmoniza em torno <strong>de</strong>princípios que dizem respeito a seus fiéis. O Parlamento tem <strong>de</strong> seharmonizar por padrões genéricos da socieda<strong>de</strong>, distinguin<strong>do</strong> entreo que é norma ética geral <strong>do</strong> país e o que são princípios e valores <strong>de</strong>grupos.Esse tema — “aborto” — mexe com valores e preconceitosarraiga<strong>do</strong>s.O grupo Católicas pelo Direito <strong>de</strong> Decidir, que surgiu a partirda reflexão sobre o papel das mulheres no mun<strong>do</strong> e na Igreja edas formas <strong>de</strong> se valorizar a autonomia das mulheres, respeitan<strong>do</strong>suas convicções e <strong>de</strong>cisões pessoais também no campo da saú<strong>de</strong> reprodutiva(um <strong>do</strong>s campos <strong>de</strong> resistência <strong>de</strong> controle da mulher),tem refleti<strong>do</strong> uma posição <strong>de</strong> acolhimento, compreensão e solidarieda<strong>de</strong>para com as mulheres que se sentem levadas à prática <strong>do</strong> aborto,por múltiplas razões. E o grupo aprofunda estu<strong>do</strong>s sobre visões<strong>de</strong> teólogos ao longo da história, mostran<strong>do</strong> o quanto há <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong><strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s diante da questão, conforme a ótica em que se analisaa questão, o contexto em que se insere, o conhecimento que setem da vida cotidiana das mulheres e a abordagem que se faz daautonomia e da <strong>de</strong>cisão pessoal.Sabemos que o tema é polêmico. Mexe fun<strong>do</strong> não só com obinômio contra/a favor da <strong>de</strong>scriminação mas, fundamentalmente,com a concepção que se tem das mulheres, como pessoas autônomase com direitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão própria.O Brasil se alinha ainda entre os 25% <strong>do</strong>s países com legislaçãomais restrita em relação ao aborto.A história comprova que, ao se aprovar a <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong>aborto, acompanhada <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> planejamento familiar, educaçãosexual e saú<strong>de</strong> da mulher, não há aumento <strong>do</strong> índice <strong>de</strong> abortos.Pelo contrário, este índice diminui, pois é possível falar livrementesobre o assunto, saber <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s objetivos e concretos, semme<strong>do</strong> <strong>de</strong> repressão.116


Aborto: história <strong>de</strong> muitas históriasA legislação no BrasilSegun<strong>do</strong> trabalho apresenta<strong>do</strong> por Maria Izabel Baltar da Rocha(1996), o tema <strong>do</strong> aborto tem forte apelo no Congresso Nacional:foram apresentadas 49 propostas no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1946 a 1995. Amaioria <strong>de</strong>las referente à ampliação <strong>de</strong> permissivos legais para a prática<strong>do</strong> aborto.Isso coinci<strong>de</strong> com o aumento gradativo <strong>do</strong> número <strong>de</strong> paísesem que há cada vez menos restrições e punições para a mulher quepratica aborto.A Conferência da ONU, no Cairo (ratificada pela Conferência<strong>de</strong> Pequim), coloca a questão como um problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública eexorta “os países a reverem as legislações que punem as mulheresque praticam aborto”.A maioria das propostas apresentadas no Congresso Nacional,estudadas por Rocha (cerca <strong>de</strong> 26), diz respeito a modificações<strong>do</strong> Código Penal (data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1940). Onze se referiam à Lei <strong>de</strong> ContravençõesPenais, duas à Consolidação das Leis <strong>do</strong> Trabalho (CLT),duas sobre a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> atendimento <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> (SUS) aos casos previstos em lei.Atualmente há oito projetos sen<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s pela <strong>de</strong>putadaJandira Feghali (PC<strong>do</strong>B-RJ), relatora <strong>do</strong> tema. Há <strong>do</strong>is projetos quetratam da <strong>de</strong>scriminação/legalização <strong>do</strong> aborto, total (autoria <strong>de</strong>José Genoíno, <strong>PT</strong>-SP) ou parcialmente (autoria <strong>de</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge,<strong>PT</strong>-SP). Outros tratam da ampliação <strong>de</strong> permissivos legais para oaborto.Os movimentos <strong>de</strong> mulheres entraram em cena <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década<strong>de</strong> 1970. E continuam na cena política, enfrentan<strong>do</strong> a questão.Alguns, com postura gradualista, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o aumento <strong>do</strong>s permissivoslegais para o aborto, passo a passo. Outros, lutan<strong>do</strong> pela<strong>de</strong>scriminação e legalização <strong>do</strong> aborto.Profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, já há anos, incluem-se nesse <strong>de</strong>bate, <strong>de</strong>forma muito profícua.Apresentei na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s um projeto que buscarefletir uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> permissivo legal já constatada:o aborto para os casos em que há comprovada inviabilida<strong>de</strong>117


Marta Suplicy<strong>de</strong> sobrevida <strong>do</strong> feto após o nascimento, por má-formação fetal (talcomo a anencefalia, a falta <strong>de</strong> cérebro).Mais <strong>de</strong> 400 casos <strong>de</strong> autorização judicial foram dadas a mulherespara a prática <strong>do</strong> aborto nessas condições.A falsa polêmicaNo ano <strong>de</strong> 1996 discutiu-se muito sobre uma proposta <strong>de</strong>emenda à Constituição que tratava <strong>do</strong> “direito à vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção”,uma forma <strong>de</strong> barrar avanços já consegui<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940.Foi <strong>de</strong>rrotada.Mas no ano <strong>de</strong> 1997 o <strong>de</strong>bate sobre o aborto girou em torno<strong>de</strong> uma falsa polêmica. O Projeto 20/91 (aprova<strong>do</strong> na Comissão <strong>de</strong>Segurida<strong>de</strong> Social e em pauta para votação em plenário) foi provoca<strong>do</strong>r<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s e acirra<strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates (e atitu<strong>de</strong>s agressivas contraparlamentares que o apoiam).De autoria <strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge e da <strong>de</strong>putada SandraStarling (<strong>PT</strong>-MG), não propõe nenhuma alteração substantiva emrelação aos permissivos para o aborto: nem mais nem menos direitos<strong>de</strong> realizar aborto sem punição legal.Apenas — e tão-somente — o projeto busca regulamentar umdireito das mulheres (previsto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940): o <strong>de</strong> serem atendidas noshospitais liga<strong>do</strong>s ao SUS, quan<strong>do</strong> uma gravi<strong>de</strong>z lhes ameaça a vidaou quan<strong>do</strong> há gravi<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> estupro e a mulher quer realizaro aborto.Há 13 hospitais públicos que regulamentaram o atendimentonesses casos, muito especialmente em relação à mulher que foi vítima<strong>de</strong> estupro, em diferentes esta<strong>do</strong>s (São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro,Pernambuco, Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Goiás, Distrito Fe<strong>de</strong>ral). Bastavonta<strong>de</strong> política e investimento na saú<strong>de</strong> das mulheres.São Paulo tem um Código <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, aprova<strong>do</strong> pela AssembléiaLegislativa e sanciona<strong>do</strong> pelo governa<strong>do</strong>r Mário Covas em 1995,que, em seu artigo 25, diz que os profissionais <strong>do</strong> SUS <strong>de</strong>verão prestaratendimento especializa<strong>do</strong> para possibilitar o aborto nos casos<strong>de</strong> “antijuridicida<strong>de</strong>”, isto é, nos casos <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> vida da mãe e <strong>de</strong>gravi<strong>de</strong>z por estupro, quan<strong>do</strong> a mulher opta por essa <strong>de</strong>cisão.118


Aborto: história <strong>de</strong> muitas históriasNo caso <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> vida da mãe há menos polêmica e os hospitaise médicos têm encaminha<strong>do</strong> a questão sem muito alar<strong>de</strong>.Mas, em São Paulo, cumprem esse dispositivo legal apenas oHospital Jabaquara (pioneiro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gestão Erundina), o HospitalEstadual Pérola Byngton e o Hospital São Paulo. Em Campinas, oCentro <strong>de</strong> Atendimento Integral à Saú<strong>de</strong> da Mulher (CAISM), naUnicamp. Como fazem as mulheres pobres <strong>do</strong>s diferentes rincões<strong>de</strong>ste e <strong>de</strong> outros esta<strong>do</strong>s, estupradas e que não querem levar adianteuma gravi<strong>de</strong>z com a qual não conseguem conviver?ConclusãoO tema envolve convicções, <strong>de</strong>bate sobre autonomia e tutela,valores, preconceitos e entendimento das questões das mulheres.É competência <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Legislativo discutir a ampliação (ounão) <strong>de</strong> permissivos legais para o aborto, sua <strong>de</strong>scriminação e/oulegalização.Mas aos po<strong>de</strong>res executivos cabe cumprir seu <strong>de</strong>ver e regulamentar,em seus níveis <strong>de</strong> competência, o atendimento às mulheresque, diante da possibilida<strong>de</strong> dada pelo Código Penal (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940) epor sentenças judiciais, têm direito a serem atendidas com dignida<strong>de</strong>e qualida<strong>de</strong>, respeito e solidarieda<strong>de</strong>, por equipes multiprofissionaisespecificamente preparadas para tal, que acolham as mulheresque optam pelo aborto, <strong>de</strong>ntro da lei, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> direito vigente,<strong>de</strong>ntro da ética da humanização e universalização <strong>do</strong> atendimento àsaú<strong>de</strong>, no caso, à saú<strong>de</strong> da mulher.E, fundamentalmente, cabe ao Po<strong>de</strong>r Executivo assegurar condiçõesobjetivas <strong>de</strong> acesso às informações e méto<strong>do</strong>s contraceptivos.Cumpre-lhe garantir a<strong>de</strong>quada educação sexual nas escolas. Essassão condições essenciais para se prevenir o aborto.BibliografiaCORREA, Sônia e FREITAS, Ângela. 1997. Atualizan<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s sobre ainterrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z no Brasil. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas,IFCS/UFRJ, vol. 5, nº 2.119


Marta SuplicyPNUD/IPEA. 1996. Relatório sobre o <strong>de</strong>senvolvimento humano no Brasil.Brasília/Rio <strong>de</strong> Janeiro, PNUD/IPEA.ROCHA, Maria Izabel Baltar da. 1996. A questão <strong>do</strong> aborto no Brasil.Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, IFCS/UFRJ, vol. 4, nº 2.120


Novas políticas públicas...Novas políticaspúblicas <strong>de</strong>combate à violênciaMárcia CamargoO avanço obti<strong>do</strong> pelas mulheres em sua luta a partir <strong>do</strong> final<strong>do</strong> século XIX e por to<strong>do</strong> o século XX tem significação profundapara a história da humanida<strong>de</strong>. Foi neste século que se constituiu,entre contradições e conquistas, um arcabouço conceitual e as basesconcretas que nos permitem hoje localizar um movimento mundialdas mulheres na luta por sua cidadania. Esse fenômeno históricoarticulou necessida<strong>de</strong>s e contradições <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> da humanida<strong>de</strong> emvários campos da vida social, questionou e reviu conceitos fundantesda socieda<strong>de</strong> e a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s como universais — como o conceito <strong>de</strong>direitos humanos, por exemplo — ou ditas verda<strong>de</strong>s científicas sobreo corpo e a natureza feminina, numa batalha que percorreutemas da filosofia, da política, da ética, da sexualida<strong>de</strong>, entre outros.Esse movimento promoveu também críticas e revisões no seu próprioseio, permitin<strong>do</strong>-se polêmicas ousadas acerca <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>como movimento, seu objeto, seus paradigmas e suas projeções <strong>de</strong>futuro. Imbricou-se junto a outros movimentos sociais e articulousea outros setores que reivindicam também autoria e po<strong>de</strong>r.Um <strong>de</strong>safio inquietante para o movimento <strong>de</strong> mulheres é o <strong>de</strong>compreen<strong>de</strong>r a violência, ao mesmo tempo geran<strong>do</strong> meios <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesadas mulheres. Isso implica lutas no campo jurídico, social, político,Márcia CamargoMilitante feminista, vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> ConselhoMunicipal <strong>do</strong>s Direitos da Mulher <strong>de</strong> Porto Alegre(RS). Funda<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, é jornalista e trabalhana Secretaria Municipal <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e na Casa<strong>de</strong> Apoio Viva Maria.121


Márcia Camargomas implica sobretu<strong>do</strong> uma mudança profunda nos padrões, representaçõese conceitos <strong>do</strong> que é legítimo como atitu<strong>de</strong> no cenário <strong>de</strong>disputas e conflitos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s estruturais— <strong>de</strong> raça-etnia, <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> gênero.“Um conceito estreito <strong>de</strong> violência po<strong>de</strong> sugerir um ato ilegal, uso criminalda força, mas <strong>de</strong> forma mais ampla inclui também a exploração, a discriminaçãoe a manutenção <strong>de</strong> uma estrutura econômica e social <strong>de</strong>sigual,a criação <strong>de</strong> uma atmosfera <strong>de</strong> terror e ameaça, e outras formas <strong>de</strong> violênciapolítica”,como diz Govind Kelkar (1984). Já que estas formas <strong>de</strong> violênciaestão inter-relacionadas, a especificida<strong>de</strong> da violência contra a mulher<strong>de</strong>manda uma visão mais próxima e mais crítica sobre suas <strong>de</strong>terminaçõese articulações estruturais. Conforme Heleieth Saffioti(1994b):“Existem diferenças relativas à natureza da relação — as diferenças<strong>de</strong> gênero, raça e etnia, classe social. E outras <strong>de</strong> carátertransitório — como nas relações intergeracionais. [...] No primeirocaso temos relações contraditórias, em que o conflito <strong>de</strong> interessessó se resolve pela busca <strong>de</strong> uma nova estruturação social. Não épossível, conservan<strong>do</strong>-se a mesma estrutura social, superar estesconflitos. Não é possível enten<strong>de</strong>r-se estas relações como meramentehierárquicas. Hierárquicas elas são sim, mas são por natureza contraditórias[...]”.As feministas e muitas estudiosas que utilizam as categorias raçaetnia,classe e gênero articuladas entre si na produção e significação <strong>do</strong>spapéis sociais <strong>de</strong> homens e mulheres e suas contradições, compreen<strong>de</strong>ma violência <strong>de</strong> gênero como componente constitutivo <strong>de</strong>stas relações.E mais, é possível reinterpretar esta violência e seus significa<strong>do</strong>snas diferentes esferas da socieda<strong>de</strong>: a violência contra as mulheres nospadrões e atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da política e nasrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro e fora <strong>do</strong> campo institucional, na produçãocultural e simbólica, nas relações afetivas e familiares.122


Novas políticas públicas...Algumas teóricas e militantes <strong>do</strong> movimento afirmam que aviolência constitui componente fundamental <strong>do</strong> a<strong>de</strong>stramento(BROWNMILLER, 1976; SAFFIOTI, 1994a) das mulheres para viveremem uma socieda<strong>de</strong> patriarcal. Esta compreensão é muito importantepara que se confira à violência <strong>de</strong> gênero um conceito que dêconta não só <strong>de</strong> suas articulações sociais com as <strong>de</strong>mais opressões,mas para que se compreenda sua transversalida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong>stes outrosconceitos — <strong>de</strong> raça-etnia, <strong>de</strong> classe e geracional. Para compreen<strong>de</strong>resta afirmação talvez fosse preciso resgatar uma longa série<strong>de</strong> construções e fatos históricos, mitos, interditos que cercama violência contra a mulher, evitan<strong>do</strong> o risco <strong>de</strong> simplificaçãoe apreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> da violência como mecanismo<strong>de</strong> controle social.A violência não é exercida diretamente sobre todas as mulheres,mas é introjetada por elas como uma ameaça pertinente a todas.Neste senti<strong>do</strong>, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que são consagradas as estatísticas <strong>de</strong>países oci<strong>de</strong>ntais que relacionam 25% a 30% das mulheres comoten<strong>do</strong> sofri<strong>do</strong> pelo menos uma situação <strong>de</strong> violência direta por suacondição <strong>de</strong> mulher, atualmente, e que nos países orientais que a<strong>do</strong>tamo fundamentalismo, as práticas <strong>de</strong> infibulação e cliteri<strong>de</strong>ctomia 1atingem entre 50% e 90% das meninas antes da primeira menstruação,isto é, entre 8 e 14 anos (PRESENÇA..., 1995), a violência po<strong>de</strong> serincorporada como uma ameaça para todas as mulheres. O a<strong>de</strong>stramento,neste senti<strong>do</strong>, significa a inculcação, para homens e mulheres,<strong>de</strong>sta violência como uma ameaça cotidiana, em que se dá aoshomens a legitimida<strong>de</strong> — por herança e como bagagem <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>— <strong>de</strong> submeter a vonta<strong>de</strong> feminina, <strong>do</strong>miná-la e mesmo tomála,segun<strong>do</strong> as <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> gênero. Talvez oestupro, em suas significações através da história, seja o maior exemplodisso (BROWNMILLER, 1976; TOMASELLI e PORTIER, 1992).Compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> as repercussões para o <strong>de</strong>senvolvimento pessoale social trazidas pela vivência da violência <strong>de</strong> gênero por tantasmulheres — e por todas e cada uma como instância subjetiva da1. Infibulação: costura das membranas que cercam a vagina externamente, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> apenasum pequeno orifício para a saída da menstruação e da urina. Cliteri<strong>de</strong>ctomia: extirpação <strong>do</strong>clitóris, por meio <strong>de</strong> uma incisão.123


Márcia Camargovivência <strong>do</strong> feminino — é que o movimento <strong>de</strong> mulheres compromete-sena luta por políticas públicas <strong>de</strong> combate a esta violência.O primeiro obstáculo que encontramos, e que hoje foi supera<strong>do</strong>teoricamente, ainda que a inércia <strong>do</strong>s costumes e a ação <strong>do</strong>sinteresses traga este argumento à cena, foi a consagração em nossasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um âmbito dito priva<strong>do</strong> on<strong>de</strong> estariam e permaneceriamocultos a violência <strong>do</strong>méstica contra mulheres, a prática <strong>de</strong>homens expulsarem mulheres <strong>de</strong> casa, a agressão sexual contra mulherese crianças, a divisão <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico por sexo, entreoutros. Buscar estatuto <strong>de</strong> problemas públicos para estas questõesfoi esforço e conquista <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres.A noção tradicional <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong> está etimologicamenterelacionada com privação, como observa Hannah Arendt (1997). Opriva<strong>do</strong>, a seu ver, é o que <strong>de</strong>ve estar escondi<strong>do</strong> da vista, ou o quenão po<strong>de</strong> ser trazi<strong>do</strong> à vista. O priva<strong>do</strong>, nesta noção tradicional,relaciona-se com vergonha e imperfeição e implica excluir <strong>do</strong> públicoaspectos corporais e afetivos pessoais. O conceito feminista “opessoal é político” não nega, como explica Iris Young (1987), umadistinção entre público e priva<strong>do</strong>, mas <strong>de</strong> fato nega uma divisãosocial entre as esferas pública e privada, com diferentes espécies <strong>de</strong>instituições, ativida<strong>de</strong>s e atributos humanos. Dois princípios sãopropostos por Young, a partir daí: nenhuma instituição ou práticasocial <strong>de</strong>ve ser excluída a priori como sen<strong>do</strong> questão própria paradiscussão e expressão pública, e nenhuma pessoa, nem ações nemaspectos da vida <strong>de</strong> uma pessoa, <strong>de</strong>vem ser força<strong>do</strong>s à privacida<strong>de</strong>.Assim, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir privacida<strong>de</strong> como o que o público exclui,esta <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>finida como aquele aspecto da vida ou ativida<strong>de</strong>que qualquer indivíduo, homem ou mulher, tenha o direito <strong>de</strong> excluir<strong>do</strong>s outros. E Young argumenta pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acentuaro direito <strong>do</strong> indivíduo retirar-se em vez <strong>de</strong> ser retira<strong>do</strong>. Em favor<strong>de</strong>sta argumentação, resgatan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> o direito <strong>do</strong> indivíduo àprivacida<strong>de</strong>, e, <strong>de</strong> outro, uma concepção <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> cidadania,é preciso <strong>de</strong>svelar que diferentes indivíduos integram o espaço público.O apagamento <strong>de</strong>stas diferenças — em favor <strong>de</strong> uma concepção<strong>do</strong> público como homogêneo — implica a exclusão <strong>de</strong> pessoas easpectos das pessoas da vida pública e da condição cidadã.124


Novas políticas públicas...Estas críticas ao conceito <strong>de</strong> público pre<strong>do</strong>minante na socieda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rna permitem uma forte incidência <strong>do</strong> movimento feminista,seu porta<strong>do</strong>r, diante <strong>de</strong> toda uma lógica <strong>de</strong> não-inclusão dasreivindicações e lutas das mulheres pelo Esta<strong>do</strong>, preservan<strong>do</strong> o cerne<strong>de</strong>mocrático <strong>do</strong> respeito à vonta<strong>de</strong> individual <strong>de</strong> incluir-se comoopção.Estes conceitos são fundamentais para <strong>de</strong>limitar as possibilida<strong>de</strong>se limites da intervenção estatal — por meio <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> políticas públicas — nas situações <strong>de</strong> violência <strong>do</strong>mésticae sexual.A criação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> assistência, em diversas áreas, às vítimas<strong>de</strong> violência e a todas as pessoas que vivenciam a situação <strong>de</strong> violênciaexige uma gran<strong>de</strong> reflexão <strong>do</strong> movimento feminista, pela complexida<strong>de</strong>das questões envolvidas.Evidências estatísticasMesmo que consi<strong>de</strong>remos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar um estu<strong>do</strong>sobre a violência contra a mulher no Brasil por meio <strong>de</strong> um instrumentounifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa, <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma meto<strong>do</strong>logia econceituação que possibilite estabelecer resulta<strong>do</strong>s nacionais, já queas pesquisas mais expressivas até então basearam-se em amostragensregionais, quan<strong>do</strong> não até mesmo locais, e principalmente centradasnos registros das Delegacias da Mulher, são extremamente expressivosos da<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s e possibilitam conclusões <strong>de</strong> caráter diagnósticosobre a situação.O relatório Criminal Injustice — Violence Against Women inBrasil, divulga<strong>do</strong> em 1991 por America’s Watch, relacionou da<strong>do</strong>ssobre o tema da violência contra a mulher no Brasil chaman<strong>do</strong> atençãosobre a evidência estatística <strong>de</strong> sua existência e da impunida<strong>de</strong>pre<strong>do</strong>minante.Resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma pesquisa publica<strong>do</strong>s no Jornal da Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>1º <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1993 dizem que “a cada quatro minutos, a políciaregistra uma agressão física contra a mulher no Brasil”.A Comissão Parlamentar <strong>de</strong> Inquérito sobre a Violência contraa Mulher no Brasil (BRASIL, 1993), instituída em janeiro <strong>de</strong> 1991,125


Márcia Camargoa pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s Sandra Starling (<strong>PT</strong>-MG) e José Fortunati(<strong>PT</strong>-RS), analisou mais <strong>de</strong> 200 mil questionários sobre casos <strong>de</strong> violênciae diligências em vários esta<strong>do</strong>s e concluiu: “É trágico constatarque ainda se mantêm padrões <strong>de</strong> violência contra a mulherobserváveis no século passa<strong>do</strong>”. Existe uma média/dia <strong>de</strong> 300 ocorrênciasregistradas no país em to<strong>do</strong>s os níveis: no trabalho (assédiosexual e discriminação salarial), na comunida<strong>de</strong> (tráfico, prostituição,estupro, assassinato), na mídia e na família.Em recente reportagem a edição brasileira da revista MarieClaire (1997), ouvin<strong>do</strong> ativistas e instituições envolvidas na assistênciaa mulheres em situação <strong>de</strong> violência e no seu combate, <strong>de</strong>nunciou:a cada hora uma mulher é estuprada no Brasil. Em 12esta<strong>do</strong>s foram registradas mais <strong>de</strong> 11 mil <strong>de</strong>núncias em 1996. Segun<strong>do</strong>a revista, <strong>de</strong> cada 12 casos que são registra<strong>do</strong>s em Boletim <strong>de</strong>Ocorrência, apenas um é resolvi<strong>do</strong> com a punição <strong>do</strong> responsável.Em Campinas, por exemplo, <strong>de</strong> 441 <strong>de</strong>núncias, apenas 37 acabaramem con<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> agressor. No esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, noperío<strong>do</strong> entre outubro <strong>de</strong> 1996 e outubro <strong>de</strong> 1997, foram registra<strong>do</strong>s1.200 casos <strong>de</strong> estupro, 600 <strong>de</strong>stes na Região Metropolitana <strong>de</strong> PortoAlegre, segun<strong>do</strong> o Departamento Médico Legal.Destacamos os da<strong>do</strong>s e análises cita<strong>do</strong>s por Saffioti (1994b),extraí<strong>do</strong>s da pesquisa Justiça e vitimização (Participação PolíticoSocial, FIBGE, 1988). Os da<strong>do</strong>s, segun<strong>do</strong> Saffioti, reafirmam publicaçõesanteriores no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a violência física <strong>do</strong>méstica atingetrês vezes mais a mulher <strong>do</strong> que o homem (32% para 10%). Sinalizamtambém uma mais intensa cronicida<strong>de</strong> da violência entre homeme mulher que entre homens. Dentre as vítimas <strong>de</strong> agressãofísica na residência, 37% são homens e 63% são mulheres. Daviolência ocorrida fora <strong>de</strong> casa, 87% das vítimas são homens, quan<strong>do</strong>ocorre em prédio comercial, e 68% quan<strong>do</strong> ocorre em via pública.As mulheres são agredidas <strong>de</strong> forma maciça na residência (63%<strong>do</strong>s agredi<strong>do</strong>s neste contexto), o que indica a gravida<strong>de</strong> da violência<strong>do</strong>méstica contra a mulher. Dentre as vítimas <strong>de</strong> agressão por parte<strong>de</strong> parentes, as mulheres representam 65,8%, ou seja, praticamente <strong>do</strong>isterços. As mulheres fisicamente agredidas por parentes ou pessoasconhecidas somavam, em 1988, 297.287, além <strong>de</strong> 142.251 vítimas <strong>de</strong>126


Novas políticas públicas...agressão física por parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s. A distribuição por faixaetária indica que a mulher sofre pre<strong>do</strong>minantemente a violência<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, por parentes (mari<strong>do</strong>, namora<strong>do</strong>, companheiro) entreos 18 e os 29 anos (43,6%) e <strong>de</strong> 30 a 49 anos ( 38,4%). Este contextotambém <strong>de</strong>nuncia a rotinização da violência, uma vez que elaestá circunscrita a relações familiares, <strong>de</strong> casamento e <strong>de</strong> coabitação.Por meio <strong>de</strong> observações qualitativas feitas em 1992 pela equipeda Casa <strong>de</strong> Apoio Viva Maria — abrigo para mulheres em situação<strong>de</strong> violência <strong>do</strong>méstica que impliquem agravos à saú<strong>de</strong> ou risco<strong>de</strong> vida, manti<strong>do</strong> pela Secretaria Municipal <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da PrefeituraMunicipal <strong>de</strong> Porto Alegre —, po<strong>de</strong>-se constatar que estas ocorrênciassão acompanhadas <strong>de</strong> repercussões sociais, econômicas, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,entre outras, que comprometem a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e restringemas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento pessoal e social das mulherese meninas que vivem em situação <strong>de</strong> violência.Ciclo da vulnerabilida<strong>de</strong>/vitimizaçãoTrês aspectos <strong>de</strong>stacam-se na observação <strong>do</strong> impacto daviolência <strong>do</strong>méstica sobre a vida social, a saú<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>senvolvimento:<strong>de</strong>sorganização das relações familiares e sociais, reclusão ao espaço<strong>do</strong>méstico e constantes fugas e <strong>de</strong>slocamentos <strong>do</strong> grupo familiar.Com a <strong>de</strong>sorganização e quebra <strong>de</strong> vínculos nas relações familiarese sociais, configura-se uma forte tendência ao isolamento davítima. Este isolamento, muitas vezes, é parte da estratégia <strong>de</strong>violência, e é relevante quan<strong>do</strong> a violência torna-se crônica na relação.Estabelece-se um rompimento <strong>do</strong>s vínculos afetivos e familiares,com componentes psicológicos e materiais <strong>de</strong> fragilização davítima, pouco contato social e até mesmo a prática <strong>de</strong> cárcere priva<strong>do</strong>.Esta prática é muito mais freqüente <strong>do</strong> que se reconhece, nãoestan<strong>do</strong> presente nas estatísticas criminais. Simbolicamente, oapagamento <strong>do</strong>s vínculos e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social da vítima peloagressor — como filha, irmã, amiga, trabalha<strong>do</strong>ra etc. — é muitasvezes relaciona<strong>do</strong> com a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, fotos, roupasou objetos que representem referências pessoais anteriores, distintasdaquelas <strong>do</strong> contexto da relação violenta.127


Márcia CamargoNestas circunstâncias, dificilmente a vítima mantém-se em umtrabalho fora <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>méstico e, freqüentemente, este é umponto <strong>de</strong> conflito visível e relevante na relação violenta rotinizada.Assim, também a evasão escolar é muito freqüente na trajetória <strong>de</strong>crianças e a<strong>do</strong>lescentes em situação <strong>de</strong> violência.Outro aspecto importante é o <strong>de</strong>slocamento das famílias emfuga, provoca<strong>do</strong> pelo agravamento das situações <strong>de</strong> violência <strong>do</strong>méstica.Esta fuga, seja iniciativa da vítima, seja circunscrita à emergênciada <strong>de</strong>fesa da integrida<strong>de</strong> física da vítima e seus filhos, porintermédio da intervenção <strong>de</strong> órgãos <strong>de</strong> proteção (Conselhos Tutelares,órgãos policiais ou <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>), igualmente leva amulher e seus filhos, muitas vezes, a per<strong>de</strong>r a moradia e o suportesocial conquista<strong>do</strong> (escola, creche, posto <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> etc.). Em tese, pormeio da intervenção legal, com medidas cautelares <strong>de</strong> proteção, istonão aconteceria. No entanto, as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso à Justiça emesmo a <strong>de</strong>sobediência à or<strong>de</strong>m legal, comum por parte <strong>do</strong> agressor,tornam estas prerrogativas legais inócuas.O impacto <strong>de</strong>ssa situação tem gran<strong>de</strong> peso na vitimização evulnerabilização das mulheres em situação <strong>de</strong> violência. Imbrica<strong>do</strong>sa esta realida<strong>de</strong> estão também o <strong>de</strong>samparo e maus-tratos às crianças,freqüentemente atingidas diretamente nas situações <strong>de</strong> violência<strong>do</strong>méstica, agravan<strong>do</strong>-se nas situações <strong>de</strong> abuso incestuoso, pelaculpabilização.Os três aspectos relaciona<strong>do</strong>s ao contexto <strong>de</strong> violência <strong>do</strong>méstica— o isolamento social e a perda <strong>de</strong> vínculos afetivos; as perdasmateriais e simbólicas representadas pelo êxo<strong>do</strong> para fugir aoagressor, acarretan<strong>do</strong> inclusive a <strong>de</strong>sarticulação <strong>do</strong>s recursos <strong>de</strong> suportesocial anteriormente adquiri<strong>do</strong>s; e, finalmente, os agravos àsaú<strong>de</strong> física e mental <strong>de</strong>correntes da vivência continuada <strong>de</strong> violência— têm gran<strong>de</strong> impacto social e sobre a saú<strong>de</strong> coletiva.Não apenas pela valorização estatística da vivência <strong>de</strong> situações<strong>de</strong> violência para boa parte da população feminina, mas tambémpela profundida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s danos daí <strong>de</strong>correntes, avaliamos o impactoepi<strong>de</strong>miológico da violência <strong>de</strong> gênero no Brasil hoje.Só muito recentemente a Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (1991)reconheceu o impacto da violência <strong>do</strong>méstica como agravo à saú<strong>de</strong>,128


Novas políticas públicas...passan<strong>do</strong>-se a relacionar à violência <strong>do</strong>méstica <strong>do</strong>enças e problemas<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> freqüentemente relata<strong>do</strong>s pelas vítimas. A violência sexual,e mais especificamente o estupro, são eventos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importânciana etiologia <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças venéreas, e articulam-se com agravosà saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>zes in<strong>de</strong>sejadas. To<strong>do</strong> este contextotem graves repercussões na saú<strong>de</strong> psicológica e representa sofrimentomental para as pessoas em situação <strong>de</strong> violência.Assim, contextualizamos o impacto da violência <strong>do</strong>mésticapara além das estatísticas <strong>de</strong> sua incidência, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>inscrevê-la na interpretação das causas <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ecimento, empobrecimento,<strong>de</strong>samparo à infância e evasão escolar, enfim, comoobstáculos ao <strong>de</strong>senvolvimento pessoal e social para milhares <strong>de</strong>mulheres.A ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a <strong>de</strong>svitimizaçãoDiferente das políticas <strong>de</strong> atenção integral à saú<strong>de</strong> da mulherreivindicadas pelo movimento feminista na década <strong>de</strong> 1980 e queoriginaram o Programa <strong>de</strong> Atenção Integral à Saú<strong>de</strong> da Mulher(PAISM), o enfrentamento à violência contra a mulher não encontrouuma formulação global e programática no Esta<strong>do</strong> brasileiro. OPAISM, mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a incipiência <strong>de</strong> sua aplicação programáticae a baixa cobertura em relação à <strong>de</strong>manda, foi reconheci<strong>do</strong> ea<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> como política <strong>de</strong> nível ministerial e inscreveu-se entre asnormas técnicas <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS). O mesmo nuncaaconteceu com relação ao problema da violência.Na década <strong>de</strong> 1980, como conquista da luta contra a violência,foram instituídas as Delegacias <strong>de</strong> Polícia <strong>de</strong> Defesa da Mulher(DPDM). A primeira DPDM foi criada em São Paulo, em agosto <strong>de</strong>1985, pelo governo Franco Montoro (PMDB), sob pressão <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong> mulheres e <strong>do</strong> Conselho Estadual da Condição Feminina(SAFFIOTI, 1994a). Em seguida, outras 152 foram instaladas, sen<strong>do</strong>que mais da meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>las no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo e as <strong>de</strong>mais principalmentenas capitais <strong>de</strong> outros esta<strong>do</strong>s. Embora a gran<strong>de</strong> concentraçãodas <strong>de</strong>legacias tenha ocorri<strong>do</strong> no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo e a existência<strong>do</strong> serviço tenha permaneci<strong>do</strong> quase restrita às capitais, houve129


Márcia Camargouma evi<strong>de</strong>nte influência no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> um incremento <strong>de</strong> registro<strong>de</strong> ocorrências policiais em to<strong>do</strong> o Brasil.Em <strong>de</strong>poimento em 1994 no Seminário Nacional Preparatórioà Conferência <strong>de</strong> Pequim no tema “Violência Contra a Mulher”,a <strong>de</strong>legada Suzana Maria Ferreira, da seccional <strong>de</strong> Monte Aprazível(SP), revelou:“Na verda<strong>de</strong>, as DPDMs já nasceram discriminadas. A primeira foicriada em 1985 [...] Neste momento começou a surgir a discriminaçãodas mulheres, porque nossos colegas passaram a ver na aprovaçãodas <strong>de</strong>legadas e na criação das DPDMs uma perda <strong>de</strong> espaço [...]A DPDM não é uma luta das <strong>de</strong>legadas <strong>de</strong> polícia. A DPDM é fruto<strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres [...] Só que o movimento <strong>de</strong> mulheresnão passou às <strong>de</strong>legadas a importância <strong>de</strong>sta luta [...]”.Outro <strong>de</strong>poimento no mesmo Seminário, da antropólogaMaria Luíza Heilborn, agrega elementos a esta análise, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong>vista feminista:“[...] algumas mulheres, particularmente as mulheres <strong>de</strong> camadaspopulares, vão às <strong>de</strong>legacias da mulher fazer a sua <strong>de</strong>núncia [...]mas o que se <strong>de</strong>seja não é uma clareza, uma niti<strong>de</strong>z <strong>de</strong> que há umpropósito <strong>de</strong> punir, <strong>de</strong> impetrar o início <strong>de</strong> um processo, uma queixacrime contra o mari<strong>do</strong>, mas se reivindica a intervenção <strong>de</strong> umaautorida<strong>de</strong> que possa regular as relações <strong>do</strong>mésticas”.Inicialmente, <strong>de</strong>positou-se sobre as Delegacias a expectativa<strong>de</strong> constituírem-se em uma resposta global ao enfrentamento <strong>do</strong>problema da violência <strong>do</strong>méstica. Paralelamente, reuniu-se umaproposta crítica para reformulação <strong>do</strong>s códigos Civil e Penal e querepresentava o reconhecimento da cidadania feminina em temascomo a organização da família; as regras <strong>de</strong> matrimônio; direitosiguais na administração <strong>de</strong> bens e responsabilida<strong>de</strong>s na socieda<strong>de</strong>conjugal; o respeito à integrida<strong>de</strong> física e à vonta<strong>de</strong> da mulher noscasos <strong>de</strong> violência sexual, prece<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os interesses morais <strong>de</strong> quemquer que seja; a eliminação <strong>de</strong> dispositivos abertamente injustos como130


Novas políticas públicas...a virginda<strong>de</strong> da mulher como qualida<strong>de</strong> essencial <strong>de</strong> pessoa, e outroscomo a expressão “mulher honesta”, e <strong>de</strong> figuras crime como oadultério e sedução, entre outros; a inclusão <strong>do</strong> assédio sexual comocrime relativo ao uso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> agente sobre a vítima por cargo,profissão ou ativida<strong>de</strong> religiosa, e outros mais.Estas duas estratégias, <strong>de</strong>senvolvidas ao longo <strong>de</strong> duas décadaspelo movimento <strong>de</strong> mulheres, já po<strong>de</strong>m sofrer uma avaliaçãoconclusiva.A luta pela reformulação <strong>do</strong>s códigos é hoje vitoriosa. Comodiz a advogada Florisa Verucci (CFEMEA, 1998),“[...] após 17 anos <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> elaboração, divulgação, <strong>de</strong>bate,revisão, conquistas, acompanhamento e tu<strong>do</strong> o mais que pu<strong>de</strong>ssetirar a família <strong>de</strong> sua imagem patriarcal ultrapassada, chegamos aofim <strong>do</strong> que parece ser a etapa final <strong>de</strong> um processo lento e penoso,que embora não seja o nosso i<strong>de</strong>al, é o que se pô<strong>de</strong> construir atéaqui”.Quanto à implantação das Delegacias, po<strong>de</strong>mos avaliar claramenteseu impacto na visibilização da violência contra a mulher, noaumento das <strong>de</strong>núncias, mas também seus limites se operadas <strong>de</strong>forma isolada e sem os elementos necessários à qualificação <strong>do</strong> atendimentodispensa<strong>do</strong> à mulher.“A DPDM, além <strong>de</strong> trazer os números a público, trouxe uma discussãopolítica sobre a violência contra a mulher. Os números alarmantesfizeram com que a violência entrasse na pauta das discussõespolíticas [...] Por outro la<strong>do</strong>, vejo a década <strong>de</strong> 1990 como a da<strong>de</strong>cadência das Delegacias [...]”Este <strong>de</strong>poimento da <strong>de</strong>legada Suzana Maria Ferreira, em 1994, <strong>de</strong>veser toma<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que como um alerta, como um chama<strong>do</strong> à luta.O conflito entre expectativa elevada, objetivos difusos e falta<strong>de</strong> aparelhamento, colocou as Delegacias da Mulher diante <strong>de</strong> importantesimpasses. Ao implantarem-se as Delegacias, na ausência<strong>de</strong> outros serviços para o atendimento às <strong>de</strong>mandas complexas nas131


Márcia Camargosituações <strong>de</strong> violência <strong>do</strong>méstica, muitos foram os papéis a elas atribuí<strong>do</strong>s.Estes papéis nem sempre se a<strong>de</strong>quavam aos objetivos paraos quais foram preconizadas e estavam equipadas. De outro la<strong>do</strong>, aausência <strong>de</strong> capacitação para o manejo profissional em esfera públicadas situações <strong>de</strong> violência e a convicção <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>avaautomaticamente a resolução da situação, colocaram asDelegacias como alvo <strong>de</strong> críticas <strong>do</strong> movimento feminista, sem queestivessem dadas as possibilida<strong>de</strong>s para um melhor funcionamento<strong>do</strong> serviço.Retoman<strong>do</strong> e avalian<strong>do</strong> a experiência da implantação das Delegacias,à luz da própria experiência e observação <strong>do</strong> movimentofeminista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a militância nos S.O.S., po<strong>de</strong>mos melhor compreen<strong>de</strong>ros limites e possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticaspúblicas <strong>de</strong> combate à violência contra a mulher. Da mesma formaque centrávamos na <strong>de</strong>núncia a resolução da situação <strong>de</strong> violência,oferecíamos a ação policial como primeiro recurso, e mesmo único,dada a inexistência <strong>de</strong> outros recursos e serviços. A Delegacia, que<strong>de</strong>ve ser um recurso específico para a responsabilização criminal <strong>do</strong>agressor, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se em providências judiciais, esgotava-se comoúnica alternativa. Deste processo resultou um aumento crescente <strong>de</strong><strong>de</strong>núncias que, no entanto, se confrontavam socialmente com a falta<strong>de</strong> recursos para o respal<strong>do</strong> às vítimas na área social, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> emesmo na área jurídica.De outro la<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a queixa policial <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> to<strong>do</strong>um processo judicial, e estan<strong>do</strong> como primeiro e único recurso, rapidamenteevi<strong>de</strong>nciaram-se seus limites diante da ambigüida<strong>de</strong> damulher. Esta ambigüida<strong>de</strong> não teve lugar nas Delegacias, e a traduçãosocial veio fortalecer a representação <strong>de</strong> uma mulher que nãosabe o que quer diante da violência, gosta <strong>de</strong> apanhar, e tantas outrasinterpretações daí surgidas.Sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> isolamentoNa experiência <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um serviço <strong>de</strong> assistência àsmulheres em situação <strong>de</strong> violência — a Casa <strong>de</strong> Apoio Viva Maria —,vivenciamos a tendência ao isolamento e à onipotência a que são leva-132


Novas políticas públicas...<strong>do</strong>s os temas e ações que não possuem um lugar no or<strong>de</strong>namento administrativo,técnico e social <strong>de</strong> organizações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Este lugar <strong>de</strong> isolamento é também o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem aclientela a ser assistida — as mulheres em situação <strong>de</strong> violência.Portanto, a instituição, a equipe responsável e seus pressupostosvivem uma tensão constante <strong>de</strong> exclusão. Esta exclusão articula-se,mais uma vez, com os conceitos <strong>de</strong> público e <strong>de</strong> cidadania pre<strong>do</strong>minantes,nos quais não <strong>de</strong>veria caber a violência <strong>do</strong>méstica. Esta tensãopelo isolamento foi vivida também pelas Delegacias. E, por razõeshistóricas e sociológicas, agravou-se sem que se possa encontrar umasolução apenas pelo fortalecimento e capacitação <strong>do</strong>s serviços.Fruto das pressões <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres, as Delegaciasestabeleceram-se como um local que provisoriamente sediou a assistênciaao problema da violência, numa negociação com o Esta<strong>do</strong>que <strong>de</strong>ve, neste momento, ser revista e ampliada.A função <strong>de</strong> responsabilizar e punir o agressor, restrita à Justiça,apoiada pela polícia, e a função <strong>de</strong> diagnosticar, assistir, dimensionarimpactos à saú<strong>de</strong> e ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s, prevenir,enfim, toda a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ações implicadas, <strong>de</strong>vem serassumidas por outros órgãos, serviços, agentes sociais e comunitários,por meio <strong>de</strong> programas articula<strong>do</strong>s. Conferir onipotência aeste ou aquele serviço ou ação, enquanto política isolada, serve apenaspara reinscrever a violência <strong>do</strong>méstica em seu estigma.O impacto social das políticas públicas <strong>de</strong> combate à violênciaestá intimamente relaciona<strong>do</strong> à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelamento <strong>de</strong> seusvínculos e articulações sociais, econômicas, políticas, e sua imbricaçãoestrutural.Nesta perspectiva, duas novas questões <strong>de</strong>vem ser apontadasna agenda <strong>do</strong> combate à violência <strong>do</strong>méstica: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, é precisovalorizar a dinâmica <strong>de</strong> construção da violência <strong>do</strong>méstica comoum processo relacional, <strong>de</strong>smistifican<strong>do</strong> os papéis <strong>de</strong> vítima e algozatribuí<strong>do</strong>s a mulheres e homens. O diálogo com o <strong>de</strong>sejo e o sentimento<strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s, a compreensão e consciência das mulheresdiante da responsabilida<strong>de</strong> por suas vidas, enfim, o questionamentoà vitimização, são conteú<strong>do</strong>s fundamentais nas políticas e ações públicas<strong>de</strong> combate à violência contra a mulher. De outro la<strong>do</strong>, é133


Márcia Camargopreciso dar conseqüência às <strong>de</strong>núncias, <strong>de</strong> parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, responsabilizan<strong>do</strong>e punin<strong>do</strong> o agressor.A reprovação social à violência <strong>de</strong> gênero, necessária àlegitimação da negociação nos conflitos <strong>do</strong>mésticos e afetivos entrehomens e mulheres, é a base para uma crítica <strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> interação<strong>do</strong> masculino e <strong>do</strong> feminino consagra<strong>do</strong>s nas relações <strong>de</strong> gênero erepresenta<strong>do</strong>s no imaginário pelo mito da mulher que gosta <strong>de</strong>apanhar e <strong>do</strong> homem que precisa agredir.BibliografiaAGENTES DE PASTORAL NEGRA. 1990. A violência contra a mulher negrana família e na socieda<strong>de</strong>. In: Mulher negra: resistência e soberania <strong>de</strong>uma raça. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Vozes/Quilombo Central.AMERICA'S WATCH. 1991. Criminal Injustice. Violence Against Women inBrazil. USA, Human Rights Watch.ARENDT, Hannah. 1997. A condição humana. São Paulo, Forense Universitária.BRASIL. Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s. 1993. Comissão Parlamentar <strong>de</strong> Inquéritosobre a violência contra a mulher no Brasil. Relatório. Brasília.BROWNMILLER, Susan. 1976. Le viol. Paris, Stock.CFEMEA. 1988. Boletim Fêmea. Brasília, CFEMEA - Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s eAssessoria, ano 6, nº 61, fev.FÓRUM NACIONAL DE PRESIDENTAS DE CCDM E UNIFEM. 1994. DocumentosFórum 2/Violência contra a mulher — Síntese. São Paulo.GENDRON, Colette. 1994. Violência e assédio sexual. In: Revista Estu<strong>do</strong>sFeministas, número especial, CIEC/ECO/UFRJ.GIBERTI, Eva. 1992. Mujer, enfermedad y violência en medicina. In: Lamujer y la violencia invisible. Mimeogr.GILLIGAN, Carol. 1992. Uma voz diferente. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rosa <strong>do</strong>s Tempos.KELKAR, Govind. 1984. Violência contra las mujeres: entendien<strong>do</strong> laresponsabilidad por sus vidas. In: VIMOCHANA, Sangarsh. Women andStructural Violence in India. Bangalore.ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. 1991. Relatório sobre as condições <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> nas Américas. Washington D. C., OMS.134


Novas políticas públicas...PRESENÇA da mulher. 1995. Da<strong>do</strong>s da Organização Mundial da Saú<strong>de</strong>.REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS. 1994. Número especial. Dossiê violência eassédio sexual. UFRJ, out.RUBIN, Gayle. 1993. O tráfico <strong>de</strong> mulheres: notas sobre a economia política<strong>do</strong> sexo. Ca<strong>de</strong>rnos SOS Corpo, Recife.SAFFIOTI, H. I. B. 1994a. Violência <strong>de</strong> gênero no Brasil atual. In: RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas, número especial, CIEC/ECO/UFRJ.________. 1994b. Violência <strong>de</strong> gênero no Brasil contemporâneo. In:MUNHOZ-VARGAS, Mônica, org. Mulher brasileira é assim. São Paulo,Rosa <strong>do</strong>s Tempos.________. 1996. No fio da navalha: violência contra crianças e a<strong>do</strong>lescentesno Brasil. In: MADEIRA, Felícia Reicher. Quem man<strong>do</strong>u nascermulher? Rio <strong>de</strong> Janeiro, Unicef/Rosa <strong>do</strong>s Tempos.TOMASELLI, Sylvana; PORTIER, Sidney. 1992. Estupro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, RioFun<strong>do</strong>.YOUNG, Iris Marion. 1987. A imparcialida<strong>de</strong> e o público cívico: algumasimplicações das críticas feministas da teoria moral e política. In:BENHABIB, Seyla, CORNELL e DRUCILLA, orgs. Feminismo como críticada mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. São Paulo, Rosa <strong>do</strong>s Tempos.135


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesDemocracia<strong>de</strong> iguais,mas diferentesMaria Victoria Benevi<strong>de</strong>sA comemoração <strong>do</strong> cinqüentenário da Declaração Internacional<strong>do</strong>s Direitos Humanos, aprovada em 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1948,tem motiva<strong>do</strong> o aprofundamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate em torno da idéia e davigência da <strong>de</strong>mocracia, entendida como o regime político que melhorprotege e promove os direitos humanos.Sem dúvida, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>finir <strong>de</strong>mocracia como o regime políticofunda<strong>do</strong> na soberania popular e na separação e <strong>de</strong>sconcentração<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, com pleno respeito aos direitos humanos. Esta breve<strong>de</strong>finição tem a vantagem <strong>de</strong> agregar <strong>de</strong>mocracia política e <strong>de</strong>mocraciasocial; isto é, reúne as liberda<strong>de</strong>s civis, a separação e o controlesobre os po<strong>de</strong>res, a alternância e a transparência no po<strong>de</strong>r, a igualda<strong>de</strong>jurídica e a busca da igualda<strong>de</strong> social, a exigência da participaçãopopular na esfera pública, a solidarieda<strong>de</strong>, o respeito à diversida<strong>de</strong>e a tolerância.A associação imediata entre <strong>de</strong>mocracia e direitos humanosna socieda<strong>de</strong> contemporânea, e especialmente no Brasil, não <strong>de</strong>corre<strong>de</strong> um consenso. Pelo contrário. É corrente a afirmação <strong>de</strong> queestamos “em plena <strong>de</strong>mocracia”, uma vez que temos voto universale eleições periódicas, que os po<strong>de</strong>res constitucionais funcionam e nãoexiste censura nem presos políticos. Quanto aos direitos humanos, éMaria Victoria Benevi<strong>de</strong>sSocióloga, é professora titular da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Educação da USP e diretora da Escola <strong>de</strong> Governo,em São Paulo. É autora, entre outros livros,<strong>de</strong> A cidadania ativa (Ática).137


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>sconhecida a manipulação <strong>do</strong> conceito, visan<strong>do</strong> a i<strong>de</strong>ntificá-los como“direitos <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s”.Preten<strong>do</strong>, neste texto, contribuir para o <strong>de</strong>bate a partir <strong>de</strong>algumas questões que consi<strong>de</strong>ro cruciais:• o que são direitos humanos, com especial <strong>de</strong>staque para a questãoda igualda<strong>de</strong>;• a polêmica em torno da oposição virtual entre universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>direitos humanos e o direito à cultura, ou à diferença;• a educação para a <strong>de</strong>mocracia, como saída para se enfrentar a discriminaçãoe o preconceito por intermédio <strong>de</strong> uma nova “cultura<strong>de</strong>mocrática”.Parto, ainda, <strong>de</strong> uma inquietação que vem sen<strong>do</strong> crescentementeespicaçada: até que ponto os direitos humanos, vincula<strong>do</strong>s aprincípios e valores ti<strong>do</strong>s por “universais”, respon<strong>de</strong>m às necessida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> reconhecimento da legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> particularida<strong>de</strong>s, seja emtermos <strong>do</strong> direito à cultura, seja em termos <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong>s biológico-culturais,como as questões <strong>de</strong> gênero. Para essa questão adiantoapenas algumas consi<strong>de</strong>rações, pois enten<strong>do</strong> que persistem aindamuitas dúvidas e perplexida<strong>de</strong>s, sobretu<strong>do</strong> referentes às chamadaspolíticas <strong>de</strong> ação afirmativa — em relação às quais, no caso brasileiro,tenho uma posição em princípio favorável.Direitos humanos ea questão da igualda<strong>de</strong>Direitos humanos são aqueles direitos comuns a to<strong>do</strong>s osseres humanos, sem distinção <strong>de</strong> raça, etnia, nacionalida<strong>de</strong>, sexo,orientação sexual, nível socioeconômico, religião, instrução,opinião política e julgamento moral, e que têm como pressupostoóbvio o direito à vida. Decorrem <strong>do</strong> reconhecimento da dignida<strong>de</strong>intrínseca a to<strong>do</strong> ser humano e diferem <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> cidadão— embora estes estejam, em gran<strong>de</strong> parte, aí incluí<strong>do</strong>s —,porque os direitos humanos extrapolam as condições legais e asfronteiras, as quais <strong>de</strong>finem a cidadania e a nacionalida<strong>de</strong>. A ausência<strong>de</strong> cidadania jurídica, por exemplo, não implica ausência<strong>de</strong> direitos humanos.138


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesPara fins didáticos e <strong>de</strong> compreensão histórica, costuma-se classificaros direitos humanos em três gerações, as quais, <strong>de</strong> certa forma,correspon<strong>de</strong>riam àqueles i<strong>de</strong>ais da Revolução Francesa: liberda<strong>de</strong>,igualda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong>. A primeira geração, engloban<strong>do</strong> osdireitos civis e políticos e as liberda<strong>de</strong>s individuais, é fruto da longamarcha das idéias liberais e tem sua inserção histórica marcada pelasconquistas da “<strong>de</strong>mocracia americana”. A segunda geração, correspon<strong>de</strong>nteaos direitos econômicos e sociais — basicamente vincula<strong>do</strong>sao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho —, permanece associada às lutas operáriase socialistas na Europa, e sempre referidas ao i<strong>de</strong>al da igualda<strong>de</strong>.A terceira geração, entendida como o conjunto <strong>de</strong> direitos <strong>de</strong>correntes<strong>do</strong> i<strong>de</strong>al da fraternida<strong>de</strong> e da solidarieda<strong>de</strong> (alguns falam atéem “solidarieda<strong>de</strong> planetária”) correspon<strong>de</strong> ao direito à auto<strong>de</strong>terminação<strong>do</strong>s povos e passou a incluir, mais recentemente, o direitoao <strong>de</strong>senvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambientesaudável, ao usufruto <strong>do</strong>s bens qualifica<strong>do</strong>s como “patrimônio comumda humanida<strong>de</strong>”.Em relação ao conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada geração vale lembrar que <strong>de</strong>terminadassocieda<strong>de</strong>s, mesmo se afirman<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocráticas, enfatizampriorida<strong>de</strong>s ou simplesmente recusam certos direitos — o que já comprometea “universalida<strong>de</strong>”. Os liberais conserva<strong>do</strong>res, por exemplo,apegam-se aos direitos da primeira geração e <strong>de</strong>nunciam suaviolação por parte <strong>do</strong>s regimes autoritários, mas sempre tiveramsérias dificulda<strong>de</strong>s para aceitar, como direitos fundamentais, os <strong>de</strong>segunda geração, os direitos sociais. Até hoje os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,enquanto Esta<strong>do</strong>, recusam tal associação — o que explica, em parte,a ênfase americana na expressão “direitos civis” e não “direitos humanos”— e, em <strong>de</strong>corrência, excluem as prestações positivas nocampo social, como saú<strong>de</strong> e previdência, por exemplo, no velhoestilo hoje renomea<strong>do</strong>, entre nós, <strong>de</strong> neoliberal.Em termos <strong>de</strong> direitos universais, a liberda<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong> aosdireitos e garantias para o exercício das liberda<strong>de</strong>s individuais oucoletivas; inclui <strong>do</strong> direito à integrida<strong>de</strong> física e psíquica aos direitos<strong>de</strong> expressão e <strong>de</strong> organização política. A igualda<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong> aosdireitos à igualda<strong>de</strong> diante da lei, mas também em relação a necessida<strong>de</strong>sbásicas, como saú<strong>de</strong>, educação, habitação, trabalho e salário139


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>sjusto, segurida<strong>de</strong> e previdência etc. A solidarieda<strong>de</strong>, que os franceseschamaram <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>, correspon<strong>de</strong> ao direito e ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> coresponsabilida<strong>de</strong>pela busca <strong>do</strong> bem comum, o que implica participaçãona vida pública.É preciso <strong>de</strong>stacar o direito-<strong>de</strong>ver da solidarieda<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong>num país como o nosso, pois comumente a palavra assume, entrenós, significa<strong>do</strong>s próximos à idéia <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, assistencialismo, boavonta<strong>de</strong>. No entanto, se aceitamos a premissa da igualda<strong>de</strong> na dignida<strong>de</strong>humana, a solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser entendida em várias acepções:1) a coesão entre diferentes indivíduos e grupos é indispensável àmanutenção <strong>do</strong> to<strong>do</strong> social, pois cada qual traz ao conjunto umacontribuição insubstituível; 2) os indivíduos ou grupos que se achamem situação <strong>de</strong> fraqueza ou <strong>de</strong>ficiência, <strong>de</strong>vem ser ampara<strong>do</strong>s pelosoutros. To<strong>do</strong>s têm igual direito a uma vida digna, sem privações <strong>do</strong>que é razoavelmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> essencial (COMPARATO, 1993). Justificam-seaqui, por exemplo, os programas <strong>de</strong> renda mínima, jáaprova<strong>do</strong>s em países <strong>do</strong> Primeiro Mun<strong>do</strong> e em implementação emnosso Distrito Fe<strong>de</strong>ral e em algumas outras cida<strong>de</strong>s.Outro ponto a ser <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> é a relação, muitas vezes vistacomo dilemática, entre igualda<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>. Se os direitos civis epolíticos exigem que to<strong>do</strong>s gozem da mesma liberda<strong>de</strong>, são os direitossociais que garantirão a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> origem; casocontrário, a falta <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> acabar geran<strong>do</strong>, justamente, afalta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Por sua vez, não é menos verda<strong>de</strong> que a liberda<strong>de</strong>propicia as condições para a reivindicação <strong>de</strong> direitos sociais.É preciso enten<strong>de</strong>r claramente o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> conti<strong>do</strong>na proposta da cidadania <strong>de</strong>mocrática. É evi<strong>de</strong>nte que não sesupõe a igualda<strong>de</strong> como “uniformida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os seres humanos— com suas saudáveis diferenças <strong>de</strong> raça, etnia, sexo, ocupação, talentosespecíficos, religião e opção política, cultura no senti<strong>do</strong> maisamplo. O contrário da igualda<strong>de</strong> não é a diferença, mas a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>,que é socialmente construída, sobretu<strong>do</strong> numa socieda<strong>de</strong> tãomarcada pela exploração classista. As diferenças não significam, necessariamente,<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, isto é, não existe uma valoração hierárquicainferior/superior na distinção entre pessoas diferentes.Homens e mulheres são obviamente diferentes, mas a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>140


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesestará implícita se tratarmos essa diferença estabelecen<strong>do</strong> a superiorida<strong>de</strong>masculina, por exemplo. O mesmo po<strong>de</strong> ser dito das diferençasculturais e étnicas.Em outras palavras, a diferença po<strong>de</strong> ser enriquece<strong>do</strong>ra, mas a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser um crime. É nesse senti<strong>do</strong> que se enten<strong>de</strong> porque,no Direito contemporâneo (inclusive na legislação brasileira),manifestações <strong>de</strong> discriminação ou racismo — no trabalho, no acessoa bens e serviços, nas diversas formas <strong>de</strong> expressão social — sãotipificadas como crime, em alguns casos insuscetíveis <strong>de</strong> fiança ouprescrição. No entanto, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais, tão evi<strong>de</strong>ntes noBrasil — com sua herança da escravidão sempre presente —, não sãoainda entendidas como crime, mesmo quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> políticasostensivamente exclu<strong>de</strong>ntes.A igualda<strong>de</strong> é sempre uma dimensão social, não individual.Ao contrário da liberda<strong>de</strong>, ela ocorre sempre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um gruposocial, ou entre grupos sociais, e não entre indivíduos isoladamenteconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s. Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar quatro dimensões da igualda<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática:• a igualda<strong>de</strong> diante da lei; é um pressuposto da aplicação concretada lei, quer proteja, quer puna. É o que os gregos chamavam <strong>de</strong>isonomia;• a igualda<strong>de</strong> <strong>do</strong> uso da palavra, ou da participação política; é o queos gregos chamavam <strong>de</strong> isegoria;• a igualda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>corre, num para<strong>do</strong>xo apenas aparente, <strong>do</strong> direitoà diferença, ou seja, o direito que to<strong>do</strong>s igualmente têm <strong>de</strong> preservarsua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, bem como exigir tratamento específico em atendimentoa necessida<strong>de</strong>s singulares <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (no caso, porexemplo, <strong>do</strong>s direitos específicos das mulheres);• a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições socioeconômicas básicas, para garantir adignida<strong>de</strong> humana. Desconhecida <strong>do</strong>s gregos antigos, é o resulta<strong>do</strong>das revoluções burguesas mas, principalmente, das lutas <strong>do</strong> movimentooperário e socialista nos séculos XIX e XX.Fábio Comparato (1993) insiste, com razão, em que essa quartaigualda<strong>de</strong> não configura um pressuposto, mas uma meta a seralcançada, não só por meio <strong>de</strong> leis, mas pela correta implementação<strong>de</strong> políticas públicas. Pois a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> aqui consi<strong>de</strong>rada é a que141


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>safeta as classes, grupos ou o gênero inferioriza<strong>do</strong>s, isto é, que possuemmenos força ou capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>fesa na socieda<strong>de</strong>. As classes ougrupos sociais inferioriza<strong>do</strong>s têm direito ao exercício, pelo Esta<strong>do</strong>,<strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> integração social.Para Aristóteles a <strong>de</strong>mocracia seria o regime funda<strong>do</strong> na idéia<strong>de</strong> que os homens são iguais em tu<strong>do</strong>, e a oligarquia, aquele funda<strong>do</strong>na idéia <strong>de</strong> que os homens são <strong>de</strong>siguais em tu<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>mocracia é o regime em que to<strong>do</strong>s têm, igualmente, direito a cultivarseus próprios valores e mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que isso não importeem subordinar ou oprimir outros grupos e pessoas (COMPARATO,1993).A tría<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>-igualda<strong>de</strong>-solidarieda<strong>de</strong> é a base <strong>do</strong> regime<strong>de</strong>mocrático.Direitos universais e direitosà diferença: o relativismo culturalA discussão atual sobre direitos humanos tem provoca<strong>do</strong> muitapolêmica sobre a relação entre a universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s direitos e a crescentereivindicação pelo reconhecimento da diversida<strong>de</strong> cultural,em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. Aqui discutem-se o significa<strong>do</strong> da tolerância— um <strong>do</strong>s valores essenciais da <strong>de</strong>mocracia — e <strong>do</strong> reconhecimento<strong>de</strong> que direitos humanos tornaram-se “um tema global”.O que significa tratar direitos humanos como um “tema global”?Significa reconhecer que já existe, em âmbito mundial, a a<strong>de</strong>sãoa um campo comum <strong>de</strong> valores que — in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong>quaisquer variáveis, individuais ou coletivas, <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> sexo,raça, etnia, nacionalida<strong>de</strong>, religião, nível <strong>de</strong> instrução, julgamentomoral, opção política e classe social — <strong>de</strong>finem a humanida<strong>de</strong>, a dignida<strong>de</strong><strong>de</strong> to<strong>do</strong> ser humano. Tais valores transcen<strong>de</strong>m, hoje, o quadrohistórico <strong>do</strong> anticolonialismo e <strong>do</strong> anti-racismo (embora os incorporem,é evi<strong>de</strong>nte), além <strong>do</strong>s direitos e das liberda<strong>de</strong>s consagradasno liberalismo clássico, para abranger o direito à paz, ao <strong>de</strong>senvolvimento,à cultura, ao reconhecimento <strong>do</strong> direito às diferenças eparticularida<strong>de</strong>s, manten<strong>do</strong>-se a premissa da igualda<strong>de</strong>, a postulação<strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m política e econômica mais solidária.142


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesTratar direitos humanos como um tema global não é, evi<strong>de</strong>ntemente,a mesma coisa que falar em “globalização” <strong>do</strong>s direitoshumanos. A globalização <strong>do</strong> Direito po<strong>de</strong> significar, por exemplo,a extensão ultrafronteiras <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> interesse — como a<strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> meio ambiente ou o acesso ao patrimônio cultural e científicoda humanida<strong>de</strong>. Falar em direitos humanos como tema globaltambém não significa priorizar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s interesses internacionais,mesmo os mais nobres, mas colocar em primeiro plano aabrangência — global — <strong>de</strong> valores éticos enraiza<strong>do</strong>s nas noções <strong>de</strong>justiça e igualda<strong>de</strong>. Volta-se, assim, aos i<strong>de</strong>ais, não concretiza<strong>do</strong>s namaior parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, da Revolução Francesa e da DeclaraçãoUniversal <strong>de</strong> 1948.Deve ser lembra<strong>do</strong>, a<strong>de</strong>mais, que a Conferência Internacional<strong>de</strong> Direitos Humanos, em Viena (ONU, 1993), consagrou como consensobásico o reconhecimento da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> gênero humano — oque lhe confere a dignida<strong>de</strong> —, apesar <strong>de</strong> manter a ênfase no respeitoe na tolerância à diversida<strong>de</strong> das nações, das regiões e <strong>do</strong>s grupossociais em seus aspectos históricos, culturais e religiosos.O conteú<strong>do</strong> da terceira geração <strong>de</strong> direitos humanos vem <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong>especial polêmica, pois muitos estudiosos — to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>primeiríssimo mun<strong>do</strong>, ciosos <strong>de</strong> sua hegemonia econômica e cultural— apontam para a imprecisão e a heterogeneida<strong>de</strong> <strong>do</strong> elenco <strong>de</strong>direitos, além <strong>de</strong> problemas no plano jurídico para sua efetivação.A principal dificulda<strong>de</strong> jurídica resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que tais direitos,<strong>de</strong> fruição também coletiva, contrariam o entendimento mais correntesobre o “individualismo” em que se baseia a conceituação tradicional<strong>de</strong> direitos humanos, na ótica <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte. Vale lembrar,no entanto, o avanço consegui<strong>do</strong> em Viena, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que odireito ao <strong>de</strong>senvolvimento, além <strong>de</strong> concebi<strong>do</strong> como <strong>de</strong> titularida<strong>de</strong>individual e coletiva (ou seja, para todas as pessoas e para to<strong>do</strong>s ospovos) foi reforça<strong>do</strong> como um direito universal e inalienável e parteintegrante <strong>do</strong>s direitos humanos fundamentais.Mas a questão crucial diz respeito à virtual oposição entre auniversalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s direitos humanos e o relativismo cultural. Apolêmica é tão mais intensa porque não apenas envolve questõesteóricas, muito caras aos antropólogos, por exemplo, como — e sobre-143


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>stu<strong>do</strong> — envolve <strong>de</strong>licadas questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política. Estas, no planomundial, ten<strong>de</strong>m a opor conceitos diversos <strong>do</strong> que sejam “civilizações”e a fomentar acusações <strong>de</strong> etnocentrismo, o qual visaria especificamenteuma possível “<strong>do</strong>minação cultural <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte”.Boaventura <strong>de</strong> Souza Santos (1997) entra fortemente na polêmicaafirman<strong>do</strong> que“enquanto forem concebi<strong>do</strong>s como direitos humanos universais,os direitos humanos ten<strong>de</strong>rão a operar como localismo globaliza<strong>do</strong>— uma forma <strong>de</strong> globalização <strong>de</strong>-cima-para-baixo. Serão sempreum instrumento <strong>do</strong> choque <strong>de</strong> civilizações, ou seja, como arma <strong>do</strong>Oci<strong>de</strong>nte contra o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”.E propõe, como tarefa central da política emancipatória <strong>de</strong>nosso tempo “a transformação da idéia e da prática <strong>do</strong>s direitos humanos<strong>de</strong> um localismo globaliza<strong>do</strong> num projeto cosmopolita”.Como Santos insiste na excelência da abordagem marxista — aquela,segun<strong>do</strong> ele, que enfatiza a igualda<strong>de</strong> no plano socioeconômico,em <strong>de</strong>trimento da abordagem liberal, que apenas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria a igualda<strong>de</strong>no plano político —, vale a pena conhecer melhor suas teses.Por todas as consi<strong>de</strong>rações até agora feitas, não estou convencida <strong>de</strong>que apenas a versão marxista consi<strong>de</strong>ra a questão da <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s direitoshumanos com ênfase na igualda<strong>de</strong> social; a versão da <strong>de</strong>mocraciaradical, por mim a<strong>do</strong>tada, enfatiza exatamente a urgência <strong>de</strong>ssa igualda<strong>de</strong>,sobretu<strong>do</strong> num país como o Brasil.No plano interno das nações, o reconhecimento <strong>do</strong> direito<strong>do</strong>s povos a sua cultura ten<strong>de</strong> a exacerbar reações centraliza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> face às “minorias”, bem como as reivindicações específicas<strong>de</strong> grupos por um certo tipo <strong>de</strong> “políticas compensatórias” (mulheres,negros, pobres) ten<strong>de</strong> a levantar outros tipos <strong>de</strong> discriminação.Como foi amplamente divulga<strong>do</strong> pela imprensa, na época, esse temaprovocou intensos <strong>de</strong>bates em Viena, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> veementementequestiona<strong>do</strong> pelos países asiáticos e africanos e os <strong>de</strong> religião islâmica.A própria associação entre direitos humanos e <strong>de</strong>senvolvimento econômicocomeçou a ser contestada em função <strong>do</strong> que seria entendi<strong>do</strong>como imposição <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>lo” <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,144


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferenteso qual po<strong>de</strong> significar “progresso” para os países ricos às custas daexploração <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra proletarizada <strong>do</strong>s pobres. Por outro la<strong>do</strong>,a extinção <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada cultura, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao “progresso” daciência ou da tecnologia, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada um atenta<strong>do</strong> às liberda<strong>de</strong>sfundamentais.O relativismo cultural representa uma faca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is gumes:po<strong>de</strong>, sem dúvida, significar proteção às minorias, quan<strong>do</strong> são respeita<strong>do</strong>sos elementos <strong>de</strong> configuração das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Mas po<strong>de</strong>significar, também, a complacência com costumes que atentam contraa dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser humano (mutilações rituais ou castigos <strong>de</strong>gradantes,por exemplo, especialmente graves no caso <strong>de</strong> agressão àsmulheres) ou, no outro extremo, a escalada <strong>de</strong> conflitos étnicos e <strong>do</strong>fundamentalismo religioso que, além <strong>de</strong> atingir o conjunto das populaçõesenvolvidas, ainda significam maior violência contra as mulheres,como na história recentíssima <strong>do</strong> Afeganistão e da Argélia.O <strong>de</strong>bate sobre o relativismo cultural leva à discussão <strong>do</strong>multiculturalismo, tema can<strong>de</strong>nte sobretu<strong>do</strong> na área da educação.Pelo que se tem observa<strong>do</strong>, sem qualquer pretensão <strong>de</strong> aprofundamento,até os movimentos políticos <strong>de</strong> esquerda ten<strong>de</strong>m a refutarteses radicais sobre o multiculturalismo, bem como sobre qualquerpolítica pública <strong>de</strong> “ação afirmativa”, como as que existem nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s para negros, mulheres, hispânicos, <strong>de</strong>ficientes. Muitosestudiosos consi<strong>de</strong>ram que a oposição entre universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s direitoshumanos e direito à cultura encerra um dilema. Consi<strong>de</strong>ro,no entanto, que a única saída é <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, em todas as situações, queé possível reconhecer um consenso em torno da hierarquia <strong>do</strong>s princípiose das normas, no qual pre<strong>do</strong>mina o direito à vida e à integrida<strong>de</strong>física e psíquica <strong>de</strong> to<strong>do</strong> ser humano. Nesse senti<strong>do</strong>, o direito àcultura <strong>de</strong>ve estar condiciona<strong>do</strong> também ao princípio da liberda<strong>de</strong>individual: cabe ao adulto escolher livremente sua i<strong>de</strong>ntificação cultural— ou não escolher, ou <strong>de</strong>sistir da escolha, em qualquer época.Tal discussão obriga ao redimensionamento <strong>do</strong> alcance e <strong>do</strong>slimites da virtu<strong>de</strong> cívica da tolerância, essencial às <strong>de</strong>mocracias.Em primeiro lugar, é claro que essa tolerância não significalevar ao extremo o temor <strong>do</strong> etnocentrismo e, daí, bloquear to<strong>do</strong>julgamento ético e político em nome <strong>do</strong> relativismo cultural. O145


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>srespeito à diferença não significa esterilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convicções. Não setrata <strong>de</strong> uma simples virtu<strong>de</strong> passiva, <strong>de</strong> aceitação ou <strong>de</strong> passivida<strong>de</strong>,mas reúne <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s, estreitamente vincula<strong>do</strong>s aos <strong>de</strong>mais valores<strong>de</strong>mocráticos da igualda<strong>de</strong> e da liberda<strong>de</strong>: a tolerância como respeitoàs diferenças e à varieda<strong>de</strong> da criativida<strong>de</strong> cultural e a tolerânciacomo o reconhecimento pleno da igualda<strong>de</strong> em dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s— indivíduos ou grupos — apesar das diferenças.A tolerância <strong>de</strong>mocrática opõe-se ao autoritarismo e ao <strong>do</strong>gmatismosob todas as suas formas — políticas, sociais, morais ecientíficas. Para a consciência <strong>de</strong>mocrática a tolerância não seráempecilho para <strong>de</strong>nunciar e repudiar o intolerável, como a discriminaçãoe a agressão aos diferentes, que leva ao racismo, aosexismo, ao fundamentalismo religioso, às diferentes formas <strong>do</strong>nazi-fascismo; o recurso irresponsável da busca <strong>de</strong> soluçõesviolentas <strong>do</strong>s conflitos; a falta <strong>de</strong> ética nas relações profissionaise na política.É evi<strong>de</strong>nte que a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que seja “intolerável” vai variarna mesma medida que variam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais, com suas noçõespróprias <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver, direito, justo e injusto, amigo, inimigo. Amelhor discussão que encontrei, no meio acadêmico, sobre o tema,é a <strong>de</strong>senvolvida por Celi Pinto (1997). Essa autora levanta questõesfundamentais: até que ponto se admite a diferença? Todas as diferenças<strong>de</strong>vem ser incorporadas como passíveis <strong>de</strong> convivência? Épossível um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> diferenças absolutas?A autora discute como“os entusiastas da diferença e <strong>de</strong> um multiculturalismo ingênuo ten<strong>de</strong>ma ver toda construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e toda a manutenção dadiferença como conquistas. Entretanto, <strong>de</strong>ve-se chamar a atençãopara o fato <strong>de</strong> que um consi<strong>de</strong>rável número <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se constituiunão pelos sujeitos que, por meio <strong>de</strong>las, foram enuncia<strong>do</strong>s,mas pelo seu contrário, pelo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r. Negros, mulheres, índios,imigrantes, minorias étnicas das mais diversas, to<strong>do</strong>s foram nomea<strong>do</strong>spelos brancos, homens etc. Características associadas à cor dapele, ou ao sexo, à condição social ou à localização espacial, têm-seconstituí<strong>do</strong> historicamente como formas <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação”.146


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesEstamos diante <strong>de</strong> um problema, continua, que só po<strong>de</strong> serresolvi<strong>do</strong> pela tolerância — e mal resolvi<strong>do</strong>, na medida em que tolerari<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é, ao mesmo tempo, congelá-las e não as integrar.Por outro la<strong>do</strong>, a inclusão <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada diferença em umda<strong>do</strong> cenário <strong>de</strong> forças, em uma dada comunida<strong>de</strong>, não é um fenômenosimples. A inclusão não é a eliminação da diferença, mas oreconhecimento da diferença; a exclusão, essa sim, é o não-reconhecimento<strong>do</strong> outro (PINTO, 1997). Celi Pinto conclui retoman<strong>do</strong> oselementos <strong>do</strong> quadro <strong>do</strong>minante/<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>:“Devemos redirecionar a discussão no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> buscar formas <strong>de</strong>redistribuição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na socieda<strong>de</strong>, que tenham como resulta<strong>do</strong>o fim da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns grupos i<strong>de</strong>ntitários <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rem datolerância para garantir até mesmo suas vidas”.É difícil não concordar com ela.Educação para a cidadaniae em direitos humanosA violação sistemática <strong>de</strong> direitos humanos em nosso país, emtodas as áreas, é incompatível com qualquer projeto <strong>de</strong> cidadania<strong>de</strong>mocrática. É fato inegável que, no Brasil, os direitos políticossempre antece<strong>de</strong>ram os direitos sociais. Criamos o sufrágio universal— o que é, evi<strong>de</strong>ntemente, uma conquista — mas, com ele, criousetambém a ilusão <strong>do</strong> respeito pelo cidadão. A realização periódica<strong>de</strong> eleições convive com o esmagamento da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana,em todas as suas dimensões. A constatação <strong>de</strong>sse quadro sombrionos leva a refletir, conforme Paulo Freire, sobre a importânciada educação como transformação no senti<strong>do</strong> da construção <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática.O artigo 13 <strong>do</strong> Pacto Internacional das Nações Unidas, relativoaos direitos econômicos, sociais e culturais (ONU, 1966), reconhece nãoapenas o direito <strong>de</strong> todas as pessoas à educação, mas que esta <strong>de</strong>ve visarao pleno <strong>de</strong>senvolvimento da personalida<strong>de</strong> humana, na sua dignida<strong>de</strong>;<strong>de</strong>ve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e as liberda<strong>de</strong>s147


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>sfundamentais; <strong>de</strong>ve capacitar todas as pessoas a participar efetivamente<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> livre. Temos aí, portanto, um marco jurídico importantepara a reivindicação da educação para a cidadania.Outro importante marco jurídico <strong>de</strong> abrangência mundial é aConvenção para a eliminação <strong>de</strong> todas as formas <strong>de</strong> discriminação contramulheres (ONU, 1979). Em seu artigo 5º estabelece que os Esta<strong>do</strong>smembros <strong>de</strong>vem tomar as medidas necessárias para “modificaros padrões sociais e culturais na conduta <strong>de</strong> homens e mulheres,visan<strong>do</strong> a eliminação <strong>de</strong> preconceitos e práticas <strong>de</strong>rivadas da crençana inferiorida<strong>de</strong> ou superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s sexos”. No artigo 10ºestabelece que <strong>de</strong>vem ser tomadas todas as medidas para implementarprogramas <strong>de</strong> educação mista, garantin<strong>do</strong> direitos iguais às mulheres epromoven<strong>do</strong> revisão nos textos didáticos preconceituosos e na própriameto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino. Nos <strong>do</strong>is casos trata-se <strong>de</strong> estimular iniciativas<strong>de</strong> educação para a <strong>de</strong>mocracia, nos termos aqui <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s.É preciso <strong>de</strong>ixar claro que aqui i<strong>de</strong>ntificamos especificamentea educação para a cidadania <strong>de</strong>mocrática. Essa ressalva parece óbvia,mas ela se justifica quan<strong>do</strong> lembramos que a formação <strong>de</strong> cidadãossempre foi preocupação <strong>de</strong> regimes totalitários, no senti<strong>do</strong> damobilização e da inculcação <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> submissão à pátria e aoculto à personalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> exaltação das ações militares e <strong>do</strong> nacionalismoxenófobo, da discriminação <strong>do</strong>s consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s “diferentes ouinferiores”, da padronização absoluta <strong>de</strong> opinião, religião, comportamentoetc. Os trágicos exemplos <strong>do</strong> nazismo, <strong>do</strong> stalinismo e <strong>do</strong>sfascismos <strong>de</strong>ste século são eloqüentes; seus governantes investirameficientemente na educação <strong>de</strong> cidadãos comprometi<strong>do</strong>s com valoresradicalmente contrários à <strong>de</strong>mocracia.A educação para a cidadania <strong>de</strong>mocrática consiste na formação<strong>de</strong> uma consciência ética que inclui tanto sentimentos como razão;passa pela conquista <strong>de</strong> corações e mentes, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mudarmentalida<strong>de</strong>s, combater preconceitos e discriminações e enraizarhábitos e atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconhecimento da dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, sejamdiferentes ou divergentes; passa pelo aprendiza<strong>do</strong> da cooperação ativae da subordinação <strong>do</strong> interesse pessoal ou <strong>de</strong> grupo ao interesse geral,ao bem comum. Se falamos em ética, trata-se <strong>de</strong> confirmar valores;nesse senti<strong>do</strong>, a educação para a <strong>de</strong>mocracia inclui o <strong>de</strong>senvolvi-148


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesmento <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s políticas <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong>s valores republicanos e<strong>de</strong>mocráticos.Por virtu<strong>de</strong>s republicanas enten<strong>de</strong>m-se:a) o respeito às leis, vistas como “educa<strong>do</strong>ras”, no senti<strong>do</strong> da autonomia,isto é, leis <strong>de</strong>cididas em processos regulares e amplamenteparticipativos;b) o respeito ao bem público, acima <strong>do</strong> interesse priva<strong>do</strong> e patriarcal,típico <strong>de</strong> nossa tradição <strong>do</strong>méstica;c) o senti<strong>do</strong> da responsabilida<strong>de</strong> no exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, com a consciência<strong>do</strong>s males coletivos que resultam <strong>do</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>verespróprios <strong>de</strong> cada um, nas diferentes esferas <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> cidadão.Por virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas enten<strong>de</strong>m-se:a) o reconhecimento da igualda<strong>de</strong> e o conseqüente horror aos privilégios;b) a aceitação da vonta<strong>de</strong> da maioria legalmente formada <strong>de</strong>corrente<strong>de</strong> eleições ou <strong>de</strong> outro processo <strong>de</strong>mocrático, porém com constanterespeito aos direitos das minorias. No Brasil, como é sabi<strong>do</strong>, asgran<strong>de</strong>s maiorias — <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista socioeconômico — permanecemalijadas da participação política, apesar <strong>de</strong> votarem nas eleições.O <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>mocrático para a construção da cidadania é, justamente,a transformação <strong>de</strong>ssa maioria social em maioria política;c) o respeito integral aos direitos humanos.Os direitos implícitos nos valores são <strong>de</strong>finíveis intelectualmente,mas é evi<strong>de</strong>nte que o seu conhecimento não será suficiente para queeles sejam respeita<strong>do</strong>s, promovi<strong>do</strong>s e protegi<strong>do</strong>s. Os direitos são históricos:é preciso entendê-los nas suas origens, mas também no seu significa<strong>do</strong>atual e universal, assim como é mister compreen<strong>de</strong>r as dificulda<strong>de</strong>spolíticas e culturais para sua plena realização.Em outros termos, <strong>de</strong>mocracia, cidadania e direitos estão sempreem processo <strong>de</strong> construção. Isso significa que não po<strong>de</strong>mos congelar,para uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong>, uma lista fechada <strong>de</strong> direitos.Tal lista será sempre historicamente <strong>de</strong>terminada. Como assinalouHannah Arendt (1988), o que permanece inarredável, comopressuposto básico, é o direito a ter direitos.O processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>mocrática, lembra Marilena Chauí(1984), implica a criação <strong>de</strong> espaços sociais <strong>de</strong> lutas (movimentossociais, sindicais e populares) e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> instituições permanentes149


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>spara a expressão política, como parti<strong>do</strong>s, legislação e órgãos <strong>do</strong>spo<strong>de</strong>res públicos. Distingue-se, portanto, a cidadania passiva — aquelaque é outorgada pelo Esta<strong>do</strong>, com a idéia moral da tutela e <strong>do</strong> favor— da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como porta<strong>do</strong>r<strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres, mas essencialmente cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> direitos paraabrir espaços <strong>de</strong> participação e possibilitar a emergência <strong>de</strong> novossujeitos políticos.A escola po<strong>de</strong> ser um locus excelente para a educação para acidadania. Alguns programas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores em direitoshumanos (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gestão <strong>de</strong> Paulo Freire na Secretaria <strong>de</strong> Educaçãoda cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo) assim o indicam. Mas existem outrosespaços para a educação para a cidadania — eleições, parti<strong>do</strong>s, associaçõesprofissionais, sindicatos, movimentos sociais e populares,mecanismos institucionais <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta (como o plebiscito,o referen<strong>do</strong>, a iniciativa popular legislativa, o mandato imperativo,a revogação <strong>de</strong> mandatos, os conselhos populares, o orçamentoparticipativo etc.).Além das iniciativas <strong>de</strong> parti<strong>do</strong>s e movimentos, cabe reivindicara implementação das propostas <strong>de</strong> educação para a cidadania,como aquelas previstas no Programa Nacional <strong>de</strong> DireitosHumanos, apresenta<strong>do</strong> pelo Ministério da Justiça e com oapoio explícito da Presidência da República, em maio <strong>de</strong> 1996.Cabe, igualmente, discutir e aprofundar os novos “ParâmetrosCurriculares”, <strong>do</strong> Ministério da Educação, que prevêem a educaçãopara a cidadania por meio <strong>de</strong> “temas transversais” nas escolas<strong>de</strong> primeiro, segun<strong>do</strong> e terceiro graus. Deve ser lembra<strong>do</strong>, ainda,o recente Programa Estadual <strong>de</strong> Direitos Humanos, <strong>do</strong> governo<strong>de</strong> São Paulo. São propostas públicas, em relação às quais a cidadania<strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong>ve se manifestar — eventualmente para criticare transformar.Finalmente, na discussão <strong>de</strong> direitos e valores <strong>de</strong>mocráticosnunca será <strong>de</strong>mais enfatizar a solidarieda<strong>de</strong> como uma virtu<strong>de</strong> políticaativa — por isso difícil <strong>de</strong> ser cultivada —, pois exige uma açãopositiva para o enfrentamento das diferenças injustas (que, por sereminjustas caracterizam <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s) entre os cidadãos. Assim,não basta educar para a tolerância e para a liberda<strong>de</strong>, sem o forte150


Democracia <strong>de</strong> iguais, mas diferentesvínculo estabeleci<strong>do</strong> entre igualda<strong>de</strong> e solidarieda<strong>de</strong>. Esta implicaráo <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong>s sentimentos <strong>de</strong> indignação e revolta contra a injustiçae, como proposta pedagógica, <strong>de</strong>verá impulsionar a criativida<strong>de</strong>das iniciativas ten<strong>de</strong>ntes a suprimi-la, bem como levar ao aprendiza<strong>do</strong>da participação popular nos processos <strong>de</strong>cisórios, em função nãoapenas <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s sociais, como também para a reivindicação eo reconhecimento efetivo das diferenças e das particularida<strong>de</strong>s.BibliografiaARENDT, Hannah. 1988. Da Revolução. São Paulo, Ática.BENEVIDES, Maria Victoria <strong>de</strong> Mesquita. 1992. A cidadania ativa. São Paulo,Ática.________. 1996. Educação para a Democracia. Lua Nova, São Paulo, nº38, p. 223-38.________. 1998. O <strong>de</strong>safio da educação para a cidadania. In: Aquino, JúlioGroppa, org. Diferenças e preconceito na escola. São Paulo, SummusEditorial.CHAUÍ, Marilena. 1984. Cultura e <strong>de</strong>mocracia. São Paulo, Mo<strong>de</strong>rna.COMPARATO, Fábio Kon<strong>de</strong>r. 1993. A nova cidadania. Lua Nova, São Paulo,nº 28/29, p. 85-106.________. 1993. Para viver a <strong>de</strong>mocracia. São Paulo, Brasiliense.________. 1996. Igualda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Revista Trimestral <strong>de</strong> DireitoPúblico, São Paulo, p. 69-78.ONU. 1966. Pacto internacional <strong>do</strong>s direitos econômicos, sociais e culturais.Tradução não-oficial para o português. In: PIOVESAN, Flávia.Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo,Max Limonad, 1996, p. 365-374.ONU. 1979. Convention on the elimination of all forms of discriminationagainst women. In: The United Nations and Human Rights. TheUnited Nations Blue Books Series, vol. VII.ONU. 1993. Vienna Declaration and Programme of Action a<strong>do</strong>ptedat the World Conference of Human Rights. In: The UnitedNations and Human Rights. The United Nations Blue BooksSeries.151


Maria Victoria Benevi<strong>de</strong>sPINTO, Celi Regina Jardim. 1997. Para além da tolerância. Texto paradiscussão, Depto. <strong>de</strong> Ciência Política da UFRGS.SANTOS, Boaventura <strong>de</strong> Souza. 1997. Por uma concepção multicultural <strong>de</strong>direitos humanos. Lua Nova, São Paulo, nº 30, p. 105-124.152


Legislan<strong>do</strong> para mulheresLegislan<strong>do</strong>paramulheresÂngela BorbaA participação das mulheres brasileiras em vários espaços sociaistem si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> inúmeros estu<strong>do</strong>s e reportagens da imprensanas últimas duas décadas. Mas pouco se tem fala<strong>do</strong> sobre a participaçãofeminina no Parlamento, salvo a partir <strong>de</strong> 1996, quan<strong>do</strong> foiestabelecida a cota mínima <strong>de</strong> 20% <strong>de</strong> candidatas nas listas partidáriaspara as eleições municipais daquele ano. Além disso, é flagrantea falta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s que permitam análises mais consistentes. Mesmoquan<strong>do</strong> forneci<strong>do</strong>s pela Mesa da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, é possívelencontrar incorreções. Por exemplo, a Cartilha para mulherescandidatas a verea<strong>do</strong>ras, produzida pelo IPEA-DIPES em 1996, quetrabalhou com da<strong>do</strong>s forneci<strong>do</strong>s pelo Congresso Nacional, ao listaras <strong>de</strong>putadas fe<strong>de</strong>rais eleitas para o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1991/1995, não cita a<strong>de</strong>putada fe<strong>de</strong>ral Luci Choinaski (<strong>PT</strong>-SC).A que se <strong>de</strong>ve tal fato? À pouca importância que se atribui aoParlamento no país? À reduzida presença feminina nestes espaçospúblicos? À hostilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Parlamento e da política à participaçãofeminina?Fica a certeza <strong>de</strong> que ainda estamos inician<strong>do</strong> a tarefa <strong>de</strong> reescreveresta história, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a existência e a atuação da mulher.Ângela BorbaHistoria<strong>do</strong>ra, foi assessora <strong>do</strong> Gabinete da Li<strong>de</strong>rança<strong>do</strong> <strong>PT</strong> na Assembléia Legislativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983, funda<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><strong>PT</strong> no esta<strong>do</strong> e integrante da Secretaria Nacional<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>.153


Ângela BorbaDespertan<strong>do</strong> para a políticaA história da participação da mulher brasileira no Parlamentotem como marco inicial a conquista <strong>do</strong> direito ao voto, em 1932,após longa batalha. Já na primeira Constituinte republicana, o <strong>de</strong>batea este respeito se impôs, ten<strong>do</strong>, entretanto, como tônica a posiçãoconserva<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> que o papel da mulher se restringia ao espaço priva<strong>do</strong>e que sua participação para além <strong>de</strong>ste <strong>do</strong>mínio era perniciosapara a família, em especial se estivesse em questão o mun<strong>do</strong> da política.Representan<strong>do</strong> o pensamento <strong>do</strong>minante na primeira Constituinteda República, o sena<strong>do</strong>r Muniz Freire <strong>de</strong>clarou:“Esten<strong>de</strong>r o direito <strong>de</strong> voto à mulher é uma idéia imoral e anárquica,porque no dia em que for convertida em lei, ficará <strong>de</strong>cretada adissolução da família brasileira. A concorrência <strong>do</strong>s sexos nas relaçõesda vida anula os laços sagra<strong>do</strong>s da família” (apud TOSCANO,1975, p. 35).Declarações como estas refletiam a i<strong>de</strong>ologia patriarcal <strong>do</strong>minanteem que ser mulher era sinônimo <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>, lar e trabalhos<strong>do</strong>mésticos. As primeiras manifestações feministas não questionaramas bases <strong>de</strong>sta discriminação, o que só veio a ocorrer nadécada <strong>de</strong> 1960, e com maior expressão a partir <strong>de</strong> 1975. Nossassufragistas limitaram-se a lutar pelos direitos políticos e, posteriormente,trabalhistas, sem questionar o papel que a socieda<strong>de</strong> lhesatribuía. Bertha Lutz afirma num <strong>do</strong>s seu primeiros artigos que osdireitos políticos da mulher “não significarão um rompimento coma família, com o seu papel tradicional <strong>de</strong> mãe e esposa”. Argumentaque“sen<strong>do</strong> o lar o local tipicamente feminino, nem por isso <strong>de</strong>ve amulher limitar seus horizontes a ele […] Ser feminista não é, <strong>de</strong>nenhum mo<strong>do</strong>, abdicar <strong>do</strong>s belos atributos morais, da sensibilida<strong>de</strong>e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za afetivas, não é <strong>de</strong>svirtuar a finalida<strong>de</strong> sublimeda mulher na terra: filha, noiva, esposa e mãe” (apud ALVES, p.102 e 173).154


Legislan<strong>do</strong> para mulheresVale lembrar que o direito ao voto foi conquista<strong>do</strong>, mas quepermaneceram em nossa legislação discriminações bárbaras, como porexemplo a incapacida<strong>de</strong> civil da mulher casada, estabelecida pelo CódigoCivil <strong>de</strong> 1917: podia-se votar, mas, caso a mulher fosse casada, eranecessária a autorização <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> para que ela trabalhasse fora.Aqueles que combateram as sufragistas construíram uma imagemnegativa <strong>de</strong>ssas militantes, insinuan<strong>do</strong> inclusive que elas tinhamcomportamento masculino. Bertha Lutz preocupou-se em <strong>de</strong>sfazeressa imagem, afirman<strong>do</strong> que as feministas não eram mulheres <strong>de</strong>“cabelos curtos, trajes semimasculinos, andar pesa<strong>do</strong>, gestos <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s<strong>de</strong> graça alguma” (apud ALVES, 1980, p. 102). Sustentou que asverda<strong>de</strong>iras feministas lutavam pelo direito ao voto, preten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>exercê-lo com responsabilida<strong>de</strong> e tratar <strong>de</strong> questões que competiamàs mulheres, tais como “o bem-estar das crianças e <strong>de</strong> sua mãe, alegislação <strong>do</strong> trabalho, a instituição <strong>de</strong> horas mais curtas, saláriosmais a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s para as operárias…” (apud ALVES, 1980, p. 102).A primeira e única mulher eleita em 1934 para o Congresso —Assembléia Constituinte — foi Carlota Pereira <strong>de</strong> Queiroz. A estaeleição concorreram três candidatas <strong>de</strong> São Paulo e uma <strong>do</strong> DistritoFe<strong>de</strong>ral (Bertha Lutz, que ficou como suplente e acabou assumin<strong>do</strong>o mandato em 1935). Bahia, São Paulo, Sergipe e Amazonas tambémelegeram mulheres para os parlamentos estaduais. O preconceitocontra as sufragistas, o não envolvimento <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> outrasclasses e o pequeno número <strong>de</strong> candidatas po<strong>de</strong> explicar o fraco<strong>de</strong>sempenho nesta primeira eleição (ver tabela na p. 170).Nas eleições seguintes a situação não se alterou muito, chegan<strong>do</strong>a piorar em 1946, quan<strong>do</strong> nenhuma mulher se elegeu para aCâmara Fe<strong>de</strong>ral, apesar <strong>do</strong> aumento significativo <strong>de</strong> candidatas (18).Isso po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>do</strong>, em parte, ao Esta<strong>do</strong> Novo e à repressão quese instalou entre 1937 e 1945, mas não é suficiente, já que se observouintensa participação feminina nas lutas pela paz, pela <strong>de</strong>rrubada<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo e contra a carestia, em sindicatos e associações <strong>de</strong>bairros e até mesmo em ligas femininas. Moema Toscano alerta parao fato <strong>de</strong> que, ao contrário <strong>de</strong> 1934, não houve <strong>de</strong>bate sobre a questãofeminina no perío<strong>do</strong> eleitoral. Esta po<strong>de</strong>, efetivamente, ter si<strong>do</strong>a razão que contribuiu para o referi<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> nas eleições <strong>de</strong> 1945.155


Ângela BorbaPara as assembléias estaduais o quadro foi um pouco melhor (vertabela na p. 170), com <strong>de</strong>staque para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> as mulheres,em geral, sempre tiveram uma performance mais positiva <strong>do</strong>que em outros esta<strong>do</strong>s, mesmo <strong>de</strong>pois da transferência da capitalfe<strong>de</strong>ral para Brasília. Certamente, o fato <strong>de</strong> ser o centro político ecultural <strong>do</strong> país interferiu nesta realida<strong>de</strong>.Entre 1946 e 1982 não há alteração significativa na representaçãofeminina no Congresso Nacional, a não ser pela presença <strong>de</strong>duas sena<strong>do</strong>ras. Em 1979, pela primeira vez, uma mulher assumeuma ca<strong>de</strong>ira no Sena<strong>do</strong>. Trata-se <strong>de</strong> Eunice Michiles, que, sen<strong>do</strong>suplente <strong>de</strong> um sena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amazonas, chegou ao Sena<strong>do</strong> após amorte <strong>do</strong> titular. A primeira sena<strong>do</strong>ra da República <strong>de</strong>dicou-se comempenho a questões <strong>de</strong> interesse feminino: entre outros temas, abor<strong>do</strong>uo direito à informação e acesso à contracepção e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um amplo <strong>de</strong>bate sobre a <strong>de</strong>scriminação <strong>do</strong> aborto.A segunda sena<strong>do</strong>ra a ocupar uma ca<strong>de</strong>ira no Sena<strong>do</strong>, em 1982, foiLaélia <strong>de</strong> Alcântara, eleita suplente pelo Acre. Nas assembléias estaduais,não houve alterações significativas neste perío<strong>do</strong>.As mulheres e a Constituinte <strong>de</strong> 1988Sabemos que, embora a realida<strong>de</strong> tenha se modifica<strong>do</strong> bastante,ser mulher com atuação política ainda é ativida<strong>de</strong> vista com preconceito.Afinal, nossos dicionários ainda registram prostituta comosinônimo <strong>de</strong> mulher pública, enquanto homem público é sinônimo<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e político. O Parlamento e o mun<strong>do</strong> da política emgeral — o Po<strong>de</strong>r Executivo, o Judiciário, os parti<strong>do</strong>s políticos e ossindicatos — são espaços hostis para as mulheres.Em 1983, Lúcia Arruda, uma das seis <strong>de</strong>putadas eleitas no Rio<strong>de</strong> Janeiro, constatou a falta <strong>de</strong> banheiro feminino no plenário daAssembléia Legislativa e foi obrigada a lutar para que se dividisse obanheiro existente em <strong>do</strong>is. Se consi<strong>de</strong>rarmos que o prédio da Assembléia<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro era o local on<strong>de</strong> funcionava anteriormentea Câmara Fe<strong>de</strong>ral, concluiremos que nossas <strong>de</strong>putadas fe<strong>de</strong>rais,até a mudança <strong>do</strong> Congresso para Brasília, não podiam usufruir <strong>de</strong>sanitários próprios no plenário.156


Legislan<strong>do</strong> para mulheresO ano <strong>de</strong> 1975, <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> pela Organização das Nações Unidas(ONU) como Ano Internacional da Mulher, foi fundamentalpara o feminismo no Brasil e seus reflexos se fizeram sentir tambémna participação política da mulher, inclusive na área parlamentar.A criação <strong>de</strong> novos parti<strong>do</strong>s no início da década <strong>de</strong> 1980 trouxepara as feministas um novo tema ou, pelo menos, uma nova abordagemda relação da mulher com o po<strong>de</strong>r, em particular com opo<strong>de</strong>r no mun<strong>do</strong> da política. Percebeu-se que não bastava <strong>de</strong>nunciaras discriminações e exigir transformações. Era necessário elaborarpropostas e participar <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, para implementar políticas públicasque levassem em conta a realida<strong>de</strong> feminina.Em 1982, no esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, o movimento feministaapresentou aos candidatos proporcionais e majoritários o Alerta Feministapara as Eleições, inauguran<strong>do</strong> uma prática que veio a se reproduzirpor to<strong>do</strong> o país, e foi particularmente absorvida pelas comissões ousecretarias <strong>de</strong> mulheres <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. O <strong>do</strong>cumento continha análise da situaçãodas mulheres nas diversas áreas e propostas <strong>de</strong> políticas públicasdirigidas à população feminina. Na sua introdução, as mulheres afirmavama necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidirem o seu <strong>de</strong>stino:“Queremos uma socieda<strong>de</strong> nova, com homens e mulheres livres euni<strong>do</strong>s numa relação baseada no amor, no companheirismo, nadivisão das tarefas <strong>do</strong>mésticas, em um mun<strong>do</strong> mais humano, maissolidário, mais feminino… feminista”.Nesta conjuntura, em que a situação <strong>de</strong> discriminação da populaçãofeminina obtém visibilida<strong>de</strong>, se observa um aumento <strong>de</strong>mulheres eleitas para a Câmara Fe<strong>de</strong>ral, assembléias estaduais e câmaras<strong>de</strong> verea<strong>do</strong>res. A gran<strong>de</strong> modificação na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eleitaspara a Câmara Fe<strong>de</strong>ral se <strong>de</strong>u em 1986, quan<strong>do</strong> passamos <strong>de</strong> oitopara 26 <strong>de</strong>putadas. Mesmo que no cômputo geral elas representassemapenas 5,3% <strong>do</strong>s seus membros, e mesmo que nem todas seconsi<strong>de</strong>rassem feministas, po<strong>de</strong>-se dizer que esse aumento foi conseqüência<strong>do</strong> incremento <strong>do</strong> movimento feminista e <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>batesobre a condição feminina, trava<strong>do</strong> nesta eleição para o CongressoConstituinte.157


Ângela BorbaA atual Constituição Fe<strong>de</strong>ral foi elaborada com a participaçãoativa <strong>de</strong> vários movimentos sociais. Durante a campanha eleitoral,as mulheres, em diversos esta<strong>do</strong>s, se organizaram propon<strong>do</strong> aoscandidatos, homens e mulheres, que encampassem as causas feministas.Instala<strong>do</strong> o Congresso Constituinte, re<strong>do</strong>braram o lobby eelaboraram emendas populares. Para que estas fossem consi<strong>de</strong>radas,exigia-se a apresentação por três entida<strong>de</strong>s legalmente constituídas e30 mil assinaturas <strong>de</strong> apoio. As feministas foram às ruas recolherassinaturas e, junto com o Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos da Mulher(CNDM), elaboraram e entregaram um <strong>do</strong>cumento intitula<strong>do</strong>“Carta aos Constituintes”, que continha as principais reivindicaçõesfeministas. Não se abateram com o <strong>de</strong>scaso, a indiferença ou,até mesmo, com as posições contrárias manifestadas por vários constituintese acabaram a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> oficialmente, com humor, uma brinca<strong>de</strong>irafeita nos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Congresso: o lobby <strong>do</strong> batom.Neste processo o Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos das <strong>Mulheres</strong>teve papel central. Construiu uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação vigorosa,manten<strong>do</strong> informa<strong>do</strong> o movimento feminista nos diversos esta<strong>do</strong>se acionan<strong>do</strong> a sua presença, sempre que fosse necessário intensificaras pressões. A bancada feminina teve importante atuação no encaminhamentodas propostas <strong>do</strong> movimento feminista, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nteda filiação partidária.A nova Constituição foi, sem dúvida, importante na história<strong>do</strong> movimento feminista no Brasil. Em seu artigo 5°, inciso I, garanteexplicitamente que “homens e mulheres são iguais em direitose obrigações”. Esta é uma cláusula auto-aplicável que representouum avanço para as mulheres, punin<strong>do</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> discriminação.Melhor teria si<strong>do</strong>, entretanto, que se tivesse estabeleci<strong>do</strong> o princípioda isonomia, articula<strong>do</strong> com dispositivos <strong>de</strong> ações afirmativas,garantin<strong>do</strong> medidas para corrigir <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s históricas. Caso anova carta estabelecesse as regras com esta clareza, como o faz porexemplo a Constituição <strong>do</strong> Paraguai, teria havi<strong>do</strong> menos problemasem aprovar as cotas <strong>de</strong> mulheres nas listas <strong>de</strong> candidatos àseleições proporcionais.A Constituição <strong>de</strong> 1988 reconceituou a família, abolin<strong>do</strong> opátrio po<strong>de</strong>r e a figura <strong>de</strong> chefe <strong>do</strong> casal, reconheceu a união estável,158


Legislan<strong>do</strong> para mulheresconfirmou o divórcio, ampliou a licença-maternida<strong>de</strong>, criou o direitoà licença-paternida<strong>de</strong>, o direito à creche, coibiu a discriminaçãoda mulher no trabalho, criou direitos para as empregadas <strong>do</strong>mésticase previu, ainda, a criação <strong>de</strong> mecanismos para coibir a violência<strong>do</strong>méstica.A conquista <strong>de</strong> novos direitos <strong>de</strong> cidadania para as mulheres repercutiufavoravelmente na elaboração das constituições estaduais e nasleis orgânicas municipais. Entretanto, muitos <strong>do</strong>s direitos garanti<strong>do</strong>sna Carta Fe<strong>de</strong>ral, nas estaduais e municipais carecem <strong>de</strong> regulamentação,o que os torna garantias formalmente conquistadas. Transformarem realida<strong>de</strong> estes direitos tem si<strong>do</strong> tarefa <strong>do</strong> movimento feminista e <strong>de</strong>seus alia<strong>do</strong>s e aliadas nos legislativos e nos executivos.Com a nova Constituição iniciou-se a batalha pela regulamentação<strong>do</strong>s artigos que não eram auto-aplicáveis. Benedita da Silva(<strong>PT</strong>-RJ), Jandira Feghali (PC<strong>do</strong>B-RJ), Rita Camata (PMDB-ES) e SandraStarling (<strong>PT</strong>-MG) foram algumas das parlamentares que se <strong>de</strong>stacaramnesta tarefa, que continua até hoje. Benedita da Silva, apresentan<strong>do</strong>proposições em <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s negros e negras, das trabalha<strong>do</strong>ras<strong>do</strong>mésticas e contra a exploração sexual infantil; Jandira Feghali,atuan<strong>do</strong> na área da saú<strong>de</strong> da mulher; Rita Camata, <strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-se aosproblemas das crianças e a<strong>do</strong>lescentes. Quan<strong>do</strong> a suplente Eva Blay(PSDB-SP), em 1993, assumiu a vaga no Sena<strong>do</strong>, foi uma das vozesque também se levantou na <strong>de</strong>fesa da regulamentação <strong>do</strong> aborto noscasos previstos em lei.Os direitos conquista<strong>do</strong>s na Constituição e a mobilização dasmulheres para consegui-los e assegurá-los, entretanto, não resultaramno aumento <strong>de</strong> representação feminina nos vários níveis parlamentares.Se é verda<strong>de</strong> que a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres eleitas vem crescen<strong>do</strong>,é fato também que este processo se dá <strong>de</strong> forma lenta. Nas assembléiasestaduais, o crescimento também se <strong>de</strong>u a partir da década<strong>de</strong> 1980, observan<strong>do</strong>-se, entretanto, progressivida<strong>de</strong> ao longo <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> e no início da década <strong>de</strong> 1990. Em relação à Câmara Fe<strong>de</strong>ral,o gran<strong>de</strong> pique ocorreu em 1986. Após esse crescimento, verificouseuma estabilização no número <strong>de</strong> <strong>de</strong>putadas fe<strong>de</strong>rais, ao contrário <strong>do</strong>Sena<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> o número <strong>de</strong> sena<strong>do</strong>ras passou <strong>de</strong> <strong>do</strong>is para seis. Em1998 teremos a primeira eleição para o Sena<strong>do</strong>, Câmara Fe<strong>de</strong>ral e159


Ângela Borbaassembléias legislativas após a criação da cota mínima <strong>de</strong> candidatas, oque po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um outro processo <strong>de</strong> crescimento.<strong>Mulheres</strong> sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>rA gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> das eleições <strong>de</strong> 1996 foi a introdução, nalegislação eleitoral, da obrigatorieda<strong>de</strong> da cota mínima <strong>de</strong> 20% <strong>de</strong>mulheres nas listas partidárias para as eleições proporcionais. Poriniciativa da <strong>de</strong>putada Marta Suplicy (<strong>PT</strong>-SP), com o apoio <strong>de</strong> mais30 <strong>de</strong>putadas, em agosto <strong>de</strong> 1995 foi apresenta<strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> lei propon<strong>do</strong>a cota mínima <strong>de</strong> 30% <strong>de</strong> mulheres nas listas para as eleiçõesparlamentares em to<strong>do</strong>s os níveis. Marta, apoiada nas experiências<strong>de</strong> países europeus e da Argentina — e no <strong>PT</strong>, que em 1991 estabeleceracota mínima <strong>de</strong> 30% <strong>de</strong> mulheres nos órgãos <strong>de</strong> direção partidária—, estava convencida <strong>de</strong> que só com políticas <strong>de</strong> ação afirmativase po<strong>de</strong>ria alterar o quadro <strong>de</strong> representação feminina nas casaslegislativas. O projeto ainda não havia si<strong>do</strong> aprecia<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se<strong>de</strong>bateram as regras para as eleições <strong>de</strong> 1996. Marta apresentou, juntocom o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Paulo Bernar<strong>do</strong> (<strong>PT</strong>-PR), emenda com o mesmoteor à proposta <strong>de</strong> Lei Eleitoral. A proposta foi acolhida pelo relatorda matéria, mas com redução <strong>de</strong> 30% para 20% e com aumento <strong>de</strong>100% para 120% <strong>do</strong> número <strong>de</strong> candidatos, o que na prática representouuma cota <strong>de</strong> 16,66%. Certamente, a IV Conferência Mundial<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>, realizada em Pequim, China, contribuiu para quebrarresistências.Muitos foram os opositores e alguns argumentos se assemelhavamaos utiliza<strong>do</strong>s por aqueles que eram contra o sufrágio feminino,só que <strong>de</strong> forma menos explícita. Segun<strong>do</strong> Marta Suplicy, muitosacabaram por votar favoravelmente por “<strong>de</strong>magogia ou paraevitar reações <strong>de</strong>sagradáveis”. Vale lembrar que a atuação da bancadafeminina foi <strong>de</strong>cisiva neste processo. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da filiação partidária,as <strong>de</strong>putadas se uniram e atuaram articuladas.Apesar das resistências observadas em 1995, ao <strong>de</strong>bater em1997 as regras para as eleições <strong>de</strong> 1998, a proposta foi mantida eampliada para 25%. A Lei nº 9.504 prevê ainda que para os pleitosseguintes “cada parti<strong>do</strong> ou coligação <strong>de</strong>verá reservar o mínimo <strong>de</strong>160


Legislan<strong>do</strong> para mulheres30% e o máximo <strong>de</strong> 70% para candidaturas <strong>de</strong> cada sexo”. Entretanto,a nova lei prevê um aumento <strong>de</strong> 50% por parti<strong>do</strong> na quantida<strong>de</strong>total <strong>de</strong> candidatos. Esta foi a fórmula encontrada para “amenizar”o estabelecimento das cotas: só assim a perda <strong>de</strong> lugar <strong>do</strong>s homenspo<strong>de</strong> ser “compensada”. Mesmo assim, é pru<strong>de</strong>nte que o movimento<strong>de</strong> mulheres permaneça vigilante, já que o país continua carecen<strong>do</strong><strong>de</strong> uma legislação eleitoral perene e as regras po<strong>de</strong>m ser mudadasa cada eleição.Embora não tenha apareci<strong>do</strong> na mídia com o mesmo espaçoocupa<strong>do</strong> em 1995, o <strong>de</strong>bate foi acalora<strong>do</strong> no Congresso. Muitosargumentavam que o estabelecimento <strong>de</strong> cotas feria o princípio daigualda<strong>de</strong>, garanti<strong>do</strong> no artigo 5° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral. As feministasreplicaram, questionan<strong>do</strong>: que igualda<strong>de</strong> é esta que não repara<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s históricas? Para garantir essa vitória, certamente foi<strong>de</strong>cisivo o parecer <strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Almino Afonso (PSB-SP), aprova<strong>do</strong>pela Comissão <strong>de</strong> Constituição e Justiça, ao projeto original <strong>de</strong> MartaSuplicy. O relator foi categórico:“A igualda<strong>de</strong> assim entendida não é concebível: seria absur<strong>do</strong> impor ato<strong>do</strong>s os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferirexatamente os mesmo direitos sem fazer distinção alguma entreeles como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmentesadios e aliena<strong>do</strong>s, homens e mulheres [...] A lei diz que qualquercidadão po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r investidura em cargo eletivo, respeitadasas condições constitucionais e legais [...] Quan<strong>do</strong> se constata, porém,que o acesso da mulher ao direito político <strong>de</strong> ser votada, garanti<strong>do</strong>pela Constituição, é na prática obstaculiza<strong>do</strong>, a Constituição está sen<strong>do</strong><strong>de</strong>scumprida e cabe à lei regulamentar a questão para que o princípioda igualda<strong>de</strong> seja assegura<strong>do</strong>” (CFEMEA, 1997, p. 9).Analisar se a implementação da cota mínima <strong>de</strong> candidatas significoualgum avanço na representação feminina no Legislativo, levan<strong>do</strong>em conta somente os resulta<strong>do</strong>s da eleição <strong>de</strong> 1996 às Câmaras Municipais,é prematuro. Seria necessário uma série histórica um pouco maiorpara que fosse possível expurgar eventuais variáveis conjunturais. Alémdisso, seria necessário, também, que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)161


Ângela Borbae os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) apresentassem da<strong>do</strong>s um poucomais confiáveis <strong>do</strong> que os disponíveis atualmente.Os TREs parecem não ter rigor quanto ao preenchimento <strong>do</strong>campo sexo nos formulários <strong>de</strong> inscrição <strong>de</strong> candidatos. E, quan<strong>do</strong>repassam esses da<strong>do</strong>s ao TSE, muitas vezes o item sexo não está preenchi<strong>do</strong>.Segun<strong>do</strong> Sônia Malheiros, assessora <strong>do</strong> Centro Feminista<strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Assessoria (CFEMEA), 31,54% <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s referentes aosexo <strong>do</strong> verea<strong>do</strong>r eleito têm como resposta “da<strong>do</strong> inexistente”.Verificou-se também que entre verea<strong>do</strong>res e prefeitos eleitos, ti<strong>do</strong>scomo sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> sexo masculino, vários eram obviamente mulheres.Destacam-se o “emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico” Jurema <strong>de</strong> Souza e o “cabeleireiro”Ana da Penha Torres da Silva. Esta <strong>de</strong>scoberta foi possívelporque Sônia resolveu investigar os nomes <strong>de</strong> candidatos eleitos comprofissões/ocupações tradicionalmente femininas.De qualquer forma, trabalhan<strong>do</strong> com os da<strong>do</strong>s disponíveis,po<strong>de</strong>mos dizer que o <strong>de</strong>sempenho foi muito melhor <strong>do</strong> que o espera<strong>do</strong>.A tabela da página 171, comparan<strong>do</strong> as eleições às CâmarasMunicipais <strong>de</strong> 1992 e 1996, apresenta números importantes. Observan<strong>do</strong>o crescimento na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verea<strong>do</strong>res, motiva<strong>do</strong> porcriação <strong>de</strong> novos municípios ou aumento <strong>de</strong> população, a média noBrasil chega a 6,07% (<strong>de</strong> 53.108, para 56.333). Enquanto isso, nomesmo perío<strong>do</strong>, o crescimento <strong>do</strong> número <strong>de</strong> mulheres eleitas chegaa 58,05%, ou seja, quase <strong>de</strong>z vezes mais! Se nos <strong>de</strong>tivermos nosda<strong>do</strong>s regionais, observaremos que a região Sul <strong>do</strong>brou o número<strong>de</strong> verea<strong>do</strong>ras (104,1%). Na região Su<strong>de</strong>ste, on<strong>de</strong> o número total <strong>de</strong>verea<strong>do</strong>res diminuiu em pouco mais <strong>de</strong> 2%, o aumento femininofoi da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 48,7%, enquanto os homens tiveram um <strong>de</strong>créscimo<strong>de</strong> 5,32%. Dos 25 esta<strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>s, somente no Acre a representaçãofeminina diminuiu. Já entre os homens, isso aconteceu emnove esta<strong>do</strong>s, em todas as regiões brasileiras. No pleito <strong>de</strong> 1992, emcada 13,5 verea<strong>do</strong>res, um era <strong>do</strong> sexo feminino. Em 1996, essa proporçãocaiu para 9 por 1.Mesmo assim, a diferença continua muito gran<strong>de</strong>, se comparadaà distribuição entre homens e mulheres na população brasileira.Logo após o pleito, a imprensa se apressou em dizer que o aumentonão era significativo ou até mesmo inexistente. Já se preparava o162


Legislan<strong>do</strong> para mulheresterreno para o posicionamento contrário ao estabelecimento danorma <strong>de</strong> cotas para as eleições seguintes. Mas, como vimos, o tirosaiu pela culatra. O que a imprensa não consi<strong>de</strong>rou avanço foi analisa<strong>do</strong>pelo movimento <strong>de</strong> mulheres como vitória. A principal <strong>de</strong>las,com certeza, foi o fato <strong>de</strong> manter em pauta questões relativas àcondição feminina, em particular a participação política da mulher.Ficou claro também que os parti<strong>do</strong>s dão pouca importância aos temasrelaciona<strong>do</strong>s à condição feminina e que terão que mudar suasestratégias. Com a aprovação <strong>de</strong>sta nova medida, outras instituiçõesreconheceram que há discriminação contra mulheres e que o <strong>de</strong>batesobre ações afirmativas <strong>de</strong>ve ser amplia<strong>do</strong>.A Campanha “<strong>Mulheres</strong> sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r”, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adapela bancada feminina <strong>do</strong> Congresso, com colaboração <strong>de</strong> instituiçõesnacionais, como o Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Econômica Aplicada(IPEA) e o Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Administração Municipal (IBAM),ONGs feministas, universida<strong>de</strong>s e o Fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> Desenvolvimento dasNações Unidas para a Mulher (UNIFEM), estimulou a filiação partidáriae candidaturas femininas. Eram, e continuam sen<strong>do</strong>, claras asdificulda<strong>de</strong>s para a participação das mulheres como candidatas. Des<strong>de</strong>o peso das tarefas <strong>do</strong>mésticas até a falta <strong>de</strong> recursos humanos e financeiros,é visível a maior dificulda<strong>de</strong> enfrentada pelas mulherespara esta ousadia, que é a disputa e a participação nos espaços públicos<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A campanha tentou, com a distribuição <strong>de</strong> uma cartilhae <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> treinamento, diminuir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, posto que osparti<strong>do</strong>s, salvo poucas exceções, não tiveram esta preocupação. ASecretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e algumas <strong>de</strong> suas secretariasestaduais promoveram seminários com este objetivo. Mas, mesmoneste caso, não foram ativida<strong>de</strong>s assumidas pelo conjunto <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>e sim pelas instâncias compostas por feministas. Nestes cursos,muitas vezes, ficaram patentes as dificulda<strong>de</strong>s e a <strong>de</strong>sinformação dasnossas candidatas. Mas quem convive, como eu, há cerca <strong>de</strong> 15 anosna Assembléia Legislativa <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro com <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s recémeleitossabe que o nível <strong>de</strong> informação <strong>do</strong>s nossos políticos homensnão é muito diferente.Nenhum <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s cumpriu integralmente a nova legislação.E muitos, quiçá to<strong>do</strong>s, usaram o expediente <strong>de</strong> lançar candidatas163


Ângela Borbaque não disputavam as eleições para valer, apenas emprestan<strong>do</strong> seusnomes para compor a lista eleitoral: eram as chamadas “laranjas”.Mas será que <strong>do</strong>ravante os parti<strong>do</strong>s não terão maior interesse emcapacitar suas candidatas, crian<strong>do</strong> assim as condições para elegeruma bancada maior e aban<strong>do</strong>nar o instituto das “laranjas”? Afinal,o objetivo <strong>de</strong> to<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> político é ampliar a sua representação.Mesmo com to<strong>do</strong>s os percalços o resulta<strong>do</strong> foi positivo. Emtermos numéricos, este aumento <strong>de</strong> candidatas e <strong>de</strong> eleitas é significativo,particularmente se levarmos em conta o pouco tempo existenteentre a aprovação da lei e o calendário eleitoral.As petistas e o ParlamentoO <strong>PT</strong> já nasceu com uma forte influência feminista, que serefletiu nas campanhas e eleições. Grupos organiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> feministasatuaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, para que o parti<strong>do</strong> fosseconstruí<strong>do</strong> em bases diferentes, também no que diz respeito àsrelações <strong>de</strong> gênero. Documento <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>/Rio, data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1986, afirma:“[…] queremos um parti<strong>do</strong> que encare a sexualida<strong>de</strong> como questãopolítica, um parti<strong>do</strong> que seja uma organização <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>monstrena prática, na forma <strong>de</strong> organizar e agir, a transformaçãodas velhas relações <strong>de</strong> hierarquia patriarcal, autoritária, machista,que sabemos são reproduzidas por homens e mulheres <strong>de</strong> qualquercondição social”.Na primeira eleição da qual participou, em 1982, o <strong>PT</strong> ousou,apresentan<strong>do</strong> como candidata ao governo <strong>de</strong> Minas Gerais umamulher — Sandra Starling. Esta foi a primeira vez na história <strong>do</strong>país que mulheres foram candidatas a governos estaduais. Além <strong>do</strong><strong>PT</strong>, o <strong>PT</strong>B lançou Sandra Cavalcanti ao governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro e o PDT lançou Lígia Doutel <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> em Santa Catarina.Nenhuma das três foi eleita, mas <strong>de</strong>ve-se ressaltar que, entre elas,Sandra Starling era a única que não tinha participação anterior no164


Legislan<strong>do</strong> para mulheresParlamento ou no Executivo. Vinha <strong>de</strong> uma militância sindical e <strong>de</strong>lutas <strong>de</strong>mocráticas <strong>de</strong> combate à ditadura militar.Ainda nesta eleição, segun<strong>do</strong> Fanny Tabak (1989), o <strong>PT</strong> foi oparti<strong>do</strong> que mais apresentou candidatas em números absolutos erelativos. Destas, conseguiu eleger duas <strong>de</strong>putadas fe<strong>de</strong>rais, ambaspor São Paulo — Irma Passoni e Beth Men<strong>de</strong>s; uma estadual no Rio<strong>de</strong> Janeiro — Lúcia Arruda, assumidamente feminista, e 18verea<strong>do</strong>ras. Apresentou ainda uma candidata ao Sena<strong>do</strong> pelo esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Amazonas e três candidatas a suplência para o Sena<strong>do</strong>. Se consi<strong>de</strong>rarmosque foram eleitas oito <strong>de</strong>putadas para a Câmara Fe<strong>de</strong>ral,percebemos a importância <strong>de</strong>ste resulta<strong>do</strong>. O <strong>PT</strong> também foi o parti<strong>do</strong>que alcançou o melhor <strong>de</strong>sempenho, se consi<strong>de</strong>rarmos a quantida<strong>de</strong><strong>de</strong> mulheres entre os eleitos para a Câmara Fe<strong>de</strong>ral e para asassembléias.Com um resulta<strong>do</strong> como este, era <strong>de</strong> se esperar que o parti<strong>do</strong>capitalizasse politicamente este <strong>de</strong>sempenho. Entretanto, não seencontrou registro em <strong>do</strong>cumentos partidários <strong>de</strong>sse feito. Po<strong>de</strong>-selevantar a hipótese <strong>de</strong> que estas contas não tenham si<strong>do</strong> feitas emcomparação com os <strong>de</strong>mais parti<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> que, para as feministas <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>, a análise tenha si<strong>do</strong> feita apenas consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o número <strong>de</strong>mulheres eleitas em relação à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens. Tu<strong>do</strong> indicaque o <strong>PT</strong> não <strong>de</strong>u gran<strong>de</strong> relevância ao fato.Das eleições seguintes, em 1986, só se tem a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mulheres eleitas para a Câmara Fe<strong>de</strong>ral. O <strong>PT</strong> manteve o mesmonúmero <strong>de</strong> <strong>de</strong>putadas (duas), embora a bancada feminina <strong>do</strong> Congressotenha aumenta<strong>do</strong> significativamente (ver tabela na p. 170).Mas, novamente, o Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res se <strong>de</strong>stacou, ao elegera primeira mulher negra para o Congresso — Benedita da Silva.Nas eleições seguintes, a bancada feminina <strong>do</strong> <strong>PT</strong> aumentoupara cinco <strong>de</strong>putadas fe<strong>de</strong>rais e 11 estaduais. Além da reeleição <strong>de</strong>Benedita da Silva, chamou a atenção a eleição <strong>de</strong> Luci Choinaski,trabalha<strong>do</strong>ra rural <strong>de</strong> Santa Catarina, que na legislatura anteriorfora eleita <strong>de</strong>putada estadual. Luci foi a segunda mulher eleita para aAssembléia <strong>de</strong> Santa Catarina. A primeira foi Antonieta <strong>de</strong> Barros,filiada ao PCB, que assumiu o mandato apenas por um curto perío<strong>do</strong>,na década <strong>de</strong> 1940.165


Ângela BorbaNas eleições <strong>de</strong> 1994, foram oito as eleitas para a CâmaraFe<strong>de</strong>ral, duas para o Sena<strong>do</strong> e 16 as que passaram a representar oparti<strong>do</strong> nas diferentes assembléias estaduais. Destaca-se neste últimopleito o fato <strong>de</strong> que o parti<strong>do</strong> conseguiu expandir sua representaçãopara esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> todas as regiões <strong>do</strong> país e as mulheres acompanharameste <strong>de</strong>sempenho.Observa-se que muitas das eleitas não tinham preocupaçãoespecial com as reivindicações feministas, mas acabaram ten<strong>do</strong> algumtipo <strong>de</strong> atuação nesta área. Certamente, a atuação <strong>do</strong> movimento,da Secretaria Nacional e das secretarias estaduais <strong>de</strong> mulheres <strong>do</strong> <strong>PT</strong>influenciou esta prática.Em 1994, foram eleitos 1.045 <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s estaduais, <strong>do</strong>s quaisapenas 86 (8,2%) eram mulheres. Nestas eleições, das 86 parlamentareseleitas, 17 (19,7%) eram petistas, o que torna o <strong>PT</strong> o parti<strong>do</strong>que, tanto em números absolutos como em relativos, mais <strong>de</strong>putadaselegeu (ver tabela na p. 170).As parlamentares petistas muitas vezes apresentam relatosdramáticos <strong>de</strong> suas vivências nos espaços legislativos. No seminário“Planejamento para o gênero e governo local”, realiza<strong>do</strong>em julho <strong>de</strong> 1996, em Belo Horizonte, promovi<strong>do</strong> pela SecretariaNacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, ouvimos alguns <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>poimentos.Deputadas fe<strong>de</strong>rais e verea<strong>do</strong>ras presentes falaram muitosobre a solidão <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong> número <strong>de</strong> mulheres,<strong>do</strong> machismo reinante no Parlamento e no parti<strong>do</strong>, das dificulda<strong>de</strong>spara se impor. Marina Sant’Anna, ao final <strong>de</strong> seu segun<strong>do</strong>mandato <strong>de</strong> verea<strong>do</strong>ra em Goiânia, contou que a surpresa já começana campanha:“[…] Diferente <strong>do</strong> que a maioria <strong>de</strong>sejaria, a disputa embrutece asrelações e transforma os companheiros em <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s concorrentes[…] Integrar completamente uma campanha e, ao mesmo tempo,discordar <strong>de</strong> sua cultura e viabilizar outro procedimento, empouquíssimo tempo, parece inócuo”.Mas acrescenta que é possível fazer uma campanha excelente “manten<strong>do</strong>sua própria postura [...] e a solidarieda<strong>de</strong>”. Para Marina, o166


Legislan<strong>do</strong> para mulheresque distingue os homens e as mulheres petistas no Parlamento é oolhar feminino sobre a“realida<strong>de</strong> cristalizada pela cultura masculina no exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r,bem como o compromisso <strong>de</strong> introduzir uma verda<strong>de</strong>ira operação<strong>de</strong>smanche on<strong>de</strong>, na política, na legislação e na cultura estiverimpregna<strong>do</strong> o sexismo, o racismo e outras formas <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong>sob o pretexto da diferença”.Nos vários <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong>stacou-se que as tarefas comuns aparlamentares petistas <strong>de</strong> ambos os sexos, eram acrescidas <strong>de</strong> outras,em geral só assumidas por mulheres: participar <strong>do</strong>s <strong>de</strong>batescom um olhar feminino, apresentar projetos <strong>de</strong> lei que atendam asnecessida<strong>de</strong>s das mulheres,“cuidar para que as questões <strong>de</strong> interesse da população femininasejam garantidas na Lei <strong>de</strong> Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária,negociar com o Po<strong>de</strong>r Executivo a implementação <strong>de</strong>políticas públicas <strong>de</strong> gênero, fiscalizar as ações <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivopara que políticas discriminatórias não sejam implantadas [...] Comose não bastasse to<strong>do</strong> este esforço, temos que sensibilizar parlamentares,homens e mulheres, <strong>de</strong> diferentes matizes partidários paraapoiar todas estas propostas”.E mais:“[…] como não queremos ficar restritas à <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interesses dapopulação feminina, temos que nos preparar para interferir e intervirnas questões comuns a homens e mulheres” (BORBA, 1996).Com todas essas dificulda<strong>de</strong>s, têm si<strong>do</strong> <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> parlamentarespetistas importantes projetos <strong>de</strong> lei que dizem respeito àcondição feminina. Por exemplo, em levantamento recente feitopela Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, verificou-se que a primeiralei estadual contra o assédio sexual foi <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Carlos Minc(<strong>PT</strong>-RJ). Em pelo menos mais <strong>do</strong>is outros esta<strong>do</strong>s matéria idêntica167


Ângela Borbatambém foi transformada em lei e, em mais seis outras assembléiasestaduais, proposições semelhantes estão em tramitação por iniciativa<strong>de</strong> petistas.No Congresso Nacional, proposições que tratam da regulamentaçãoda Constituição em relação ao trabalho da mulher, ao trabalho<strong>do</strong>méstico, à trabalha<strong>do</strong>ra rural, à educação infantil, à violência<strong>do</strong>méstica, têm a marca <strong>de</strong> parlamentares petistas. Recentemente<strong>do</strong>is projetos <strong>de</strong> lei polêmicos mobilizaram a opinião pública: umtrata da regulamentação <strong>do</strong> aborto nos casos previstos em lei, <strong>de</strong>autoria <strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s Eduar<strong>do</strong> Jorge (<strong>PT</strong>-SP) e Sandra Starling (<strong>PT</strong>-MG); outro trata da parceria civil registrada entre pessoas <strong>do</strong> mesmosexo, <strong>de</strong> autoria da <strong>de</strong>putada Marta Suplicy (<strong>PT</strong>-SP).Política ainda não é lugar <strong>de</strong> mulherAs mulheres hoje ocupam importantes espaços no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>trabalho, apesar das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s salariais e outros tipos <strong>de</strong> discriminação,mas, na sua maioria, continuam responsáveis pelas tarefas<strong>do</strong>mésticas e pelos cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s filhos. Romperam barreiras importantes,mas ainda são poucas as que conseguem enfrentar o espaçoda política, e o fazem, em geral, com gran<strong>de</strong>s sacrifícios: não têmintimida<strong>de</strong> com este espaço tradicionalmente masculino, não conseguemconvencer seus mari<strong>do</strong>s e companheiros a dividirem encargos<strong>do</strong>mésticos e têm menos recursos financeiros <strong>do</strong> que oshomens.Toda esta dificulda<strong>de</strong> começa com a educação diferenciada queas crianças recebem em função <strong>de</strong> seu sexo: meninos são educa<strong>do</strong>spara o espaço público, para a disputa, para a competição, e meninassão treinadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> para as tarefas <strong>do</strong>mésticas.A campanha “<strong>Mulheres</strong> sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r” mostrou que asmulheres reconhecem a importância <strong>de</strong> sua participação política,mas reconhecem também as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta atuação. Por maisque batalhem, parece haver um esforço em ocultar a participaçãofeminina, seja pela falta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, seja pelo “esquecimento” <strong>de</strong> suasações e/ou omissão da autoria <strong>de</strong> suas proposições. No Semináriopara candidatas no Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Administração Municipal,168


Legislan<strong>do</strong> para mulheresem julho <strong>de</strong> 1996, muitas disseram que suas ações ou iniciativas pareciamtão invisíveis quanto parece ser o trabalho <strong>do</strong>méstico.Praticamente todas as conferências internacionais que abordarama situação da mulher, manifestaram em suas resoluções a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> promover a participação da mulher, nos processos eespaços <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, em situação <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com os homens. APlataforma <strong>de</strong> Ação aprovada na IV Conferência Mundial sobre aMulher <strong>de</strong>dicou um capítulo exclusivo à questão, afirman<strong>do</strong> que “aigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> participação das mulheres nas <strong>de</strong>cisões políticas é indispensávelpara reforçar e aprofundar a <strong>de</strong>mocracia, aumentar atransparência <strong>do</strong>s processos políticos”.O governo brasileiro, junto com mais 183 <strong>de</strong>legações governamentais,assinou a Plataforma <strong>de</strong> Ação, mas <strong>de</strong> concreto até o momentosó houve mesmo a lei que <strong>de</strong>fine a cota mínima <strong>de</strong> mulheres naslistas partidárias. É óbvio que o compromisso assumi<strong>do</strong> com as resoluções<strong>de</strong> Pequim é um passo importante, pois permite que o movimentofeminista e a bancada feminina pressionem os parti<strong>do</strong>s, o TSE e o próprioCongresso por novas medidas. Mas, sem dúvida, as tarefas sãoinúmeras e o caminho a trilhar será longo, se consi<strong>de</strong>rarmos oconserva<strong>do</strong>rismo das nossas instituições e um Parlamento que tem suahistória marcada por práticas clientelistas, fisiológicas e pela completafalta <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência em relação ao Executivo.Neste quadro, lutar para recuperar a imagem <strong>do</strong> Parlamentotem significa<strong>do</strong> especial para as mulheres. Resgatá-lo como instância<strong>de</strong> representação popular, recuperan<strong>do</strong> seu papel <strong>de</strong> fiscaliza<strong>do</strong>rdas ações <strong>do</strong> Executivo, intermediário das <strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s movimentosociais e formula<strong>do</strong>r <strong>de</strong> políticas é, com certeza, papel fundamental<strong>de</strong> um(a) parlamentar. Por outro la<strong>do</strong>, somente num Parlamento<strong>de</strong>ste tipo as mulheres <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> estar sub-representadas.O que mobiliza hoje as mulheres a romper barreiras, enfrentarpreconceitos e dificulda<strong>de</strong>s e disputar cargos nos vários níveis daadministração pública é a certeza <strong>de</strong> que não há verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mocraciasem a participação feminina em to<strong>do</strong>s os espaços <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<strong>de</strong> que a atuação das parlamentares mulheres tem significa<strong>do</strong> umavanço na luta pela conquista da cidadania feminina plena no Brasil.169


Ângela BorbaDeputa<strong>do</strong>s estaduais eleitosem 1994 — Distribuição porunida<strong>de</strong> da Fe<strong>de</strong>raçãoUnida<strong>de</strong> da Quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deputa<strong>do</strong>s PercentualFe<strong>de</strong>ração Homens <strong>Mulheres</strong> Total <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>AC 24 — 24 0%AL 25 2 27 7%AM 23 1 24 4,2%AP 16 1 17 5,9%BA 56 7 63 11,1%CE 44 2 46 4,3%DF* 22 2 24 8,3%ES 28 2 30 6,7%GO 37 4 41 9,8%MA 39 3 42 7,1%MG 74 3 77 3,9%MS 23 1 24 4,2%MT 22 2 24 8,3%PA 35 6 41 14,6%PB 32 4 36 11,1%PE 46 3 49 6,1%PI 30 — 30 0%PR 54 — 54 0%RJ 57 13 70 18,6%RN 21 3 24 12,5%RO 20 4 24 16,7%RR 14 3 17 17,6%RS 50 5 55 9,1%SC 39 1 40 2,5%SE 21 3 24 12,5%SP 83 11 94 11,7%TO 24 — 24 0%Brasil 959 86 1045 8,2%Fonte: UNALE - União Nacional <strong>do</strong>sLegislativos Estaduais.* <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s distritaisDeputadas estaduais eleitasem 1994 — Distribuição porparti<strong>do</strong>Sigla <strong>do</strong> DeputadasParti<strong>do</strong> Eleitas<strong>PT</strong> 17PSDB 13PMDB 12PFL 10PDT 6PPB 5s/p* 5PC<strong>do</strong>B 4<strong>PT</strong>B 4PL 2PPS 2PSB 2PSD 2PSC 1PRP 1Fonte: UNALE - União Nacional<strong>do</strong>s Legislativos Estaduais.* sem indicação <strong>de</strong> parti<strong>do</strong>.Participação da Mulher no Processo EleitoralAssembléias LegislativasAno Candidatas Eleitas1946 8 51950 10 81954 16 71958 39 21962 92 111965 39 111970 38 81974 15 111978 n/d 201982 134 281986 385 311990 n/d 581994 613 n/dFonte: TSE, da<strong>do</strong>s sistematiza<strong>do</strong>s por LúciaAvelar, <strong>Mulheres</strong> na elite política brasileira, FundaçãoKonrad A<strong>de</strong>nauer, 1996.Câmara Fe<strong>de</strong>ralAno Candidatas Eleitas1934 4 11946 18 01950 9 11954 13 31958 8 21962 9 21965 13 61970 4 11974 4 11978 n/d 41982 58 81986 166 261990 n/d 291994 189 37Fonte: Secretaria-Geral da Mesa da CâmaraFe<strong>de</strong>ral.170


Legislan<strong>do</strong> para mulheresVerea<strong>do</strong>res eleitos, por sexo, segun<strong>do</strong> as gran<strong>de</strong>s regiõese unida<strong>de</strong>s da Fe<strong>de</strong>ração(perío<strong>do</strong>s 1993-1996 e 1997-2000)Total Verea<strong>do</strong>res <strong>Mulheres</strong> Eleitas Homens EleitosRegião 1993/1996 1997/2000 Crescimento 1993/1996 1997/2000 Crescimento 1993/1996 1997/2000 CrescimentoNorte 3.896 4.378 12,37% 436 613 40,60% 3.425 3.765 9,93%Rondônia 396 530 33,84% 35 63 80,00% 361 467 29,36%Acre 209 207 -0,96% 38 34 -10,53% 171 173 1,17%Amazonas 594 602 1,35% 67 85 26,87% 527 517 -1,90%Roraima 79 304 284,81% 12 23 91,67% 67 281 319,40%Pará 1.330 1.328 -0,15% 142 196 38,03% 1.188 1.132 -4,71%Amapá 146 158 8,22% 13 18 38,46% 133 140 5,26%Tocantins 1.107 1.249 12,83% 129 194 50,39% 978 1.055 7,87%Nor<strong>de</strong>ste 17.139 19.266 12,41% 1.629 2.498 53,35% 15.465 16.686 7,90%Maranhão 1.445 2.279 57,72% 191 336 75,92% 1.254 1.861 48,41%Piauí 1.437 2.105 46,49% 137 267 94,89% 1.300 1.838 41,38%Ceará 2.484 2.502 0,72% 265 341 28,68% 2.219 2.161 -2,61%Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Norte 1.504 1.635 8,71% 160 246 53,75% 1.344 1.389 3,35%Paraíba 2.021 2.501 23,75% 216 339 56,94% 1.805 2.162 19,78%Pernambuco 1.786 1.913 7,11% 95 193 103,16% 1.691 1.720 1,71%Alagoas 958 994 3,76% 108 135 25,00% 850 859 1,06%Sergipe 792 799 0,88% 70 95 35,71% 722 704 -2,49%Bahia 4.667 4.538 -2,76% 387 546 41,09% 4.280 3.992 -6,73%Su<strong>de</strong>ste 19.529 19.134 -2,02% 1.193 1.774 48,70% 18.336 17.360 -5,32%Minas Gerais 8.217 9.091 10,64% 536 876 63,43% 7.681 8.215 6,95%Espírito Santo 951 996 4,73% 68 85 25,00% 883 911 3,17%Rio <strong>de</strong> Janeiro 1.143 1.263 10,50% 70 83 18,57% 1.073 1.180 9,97%São Paulo 9.218 7.784 -15,56% 519 730 40,66% 8.699 7.054 -18,91%Sul 10.565 11.486 8,72% 537 1.096 104,10% 9.962 10.099 1,38%Paraná 3.681 3.991 8,42% 210 385 83,33% 3.471 3.606 3,89%Santa Catarina 2.422 2.971 22,67% 113 260 130,09% 2.243 2.451 9,27%Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul 4.462 4.524 1,39% 214 451 110,75% 4.248 4.042 -4,85%Centro-Oeste 1.979 2.069 4,55% 157 265 68,79% 1.822 1.804 -0,99%Mato Grosso <strong>do</strong> Sul 777 785 1,03% 56 97 73,21% 721 688 -4,58%Mato Grosso 1.202 1.284 6,82% 101 168 66,34% 1.101 1.116 1,36%GoiásBrasil 53.108 56.333 6,07% 3.952 6.246 58,05% 49.010 49.714 1,44%Fonte: TSE, TRE’s e IBAMObs1: As diferenças nos totais se <strong>de</strong>vem à dubieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns nomes (masculino ou feminino).Obs2: Os da<strong>do</strong>s referentes ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Goiás, no perío<strong>do</strong>, não estavam disponíveis.19781982198619901994Participação Feminina em Assembléias Legislativas<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>s Seleciona<strong>do</strong>s: 1978-1990Esta<strong>do</strong> GoiásRio <strong>de</strong>JaneiroSão Paulo Pará Paraná Pernambuco TotalAmbos ossexos39 70 81 30 58 49 327<strong>Mulheres</strong> 0 3 3 2 0 0 8Total % 0,0 % 4,3 % 3,7 % 6,7 % 0,0 % 0,0 % 2,4 %Ambos ossexos40 70 84 30 54 49 327<strong>Mulheres</strong> 0 6 7 1 2 1 12Total % 0,0 % 8,6 % 8,3 % 3,3 % 3,7 % 2,0 % 3,7 %Ambos ossexos41 70 84 41 54 49 339<strong>Mulheres</strong> 2 6 7 1 3 1 20Total % 4,9 % 8,6 % 8,3 % 2,4 % 5,6 % 2,0 % 5,9 %Ambos ossexos41 70 84 41 54 49 339<strong>Mulheres</strong> 2 9 3 1 1 0 16Total % 4,9 % 12,9 % 3,6 % 2,4 % 1,9 % 0,0 % 4,7 %Ambos ossexos41 70 94 41 54 49 349<strong>Mulheres</strong> 6 9 11 5 1 2 38Total % 14,6 12,9 % 11,7 % 12,2 % 1,9 % 4,1 % 10,9 %171


Ângela BorbaBibliografiaALVES, Branca Moreira. 1980. I<strong>de</strong>ologia e feminismo: a luta da mulher pelovoto no Brasil. Petrópolis, Vozes.AVELAR, Lúcia. 1996. <strong>Mulheres</strong> na elite política brasileira. São Paulo, FundaçãoKonrad-A<strong>de</strong>nauer-Stiftung.BORBA, Ângela. 1996. Os petistas e as petistas na atuação parlamentar. In:Planejamento para o gênero e governo local. Apostila, junho.CARTILHA para <strong>Mulheres</strong> Candidatas a Verea<strong>do</strong>ras. 1996. Campanha<strong>Mulheres</strong> sem Me<strong>do</strong> <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r, Brasília, IPEA/DIPES.CFEMEA. 1993. Direitos da mulher: o que pensam os parlamentares. Brasília,Centro Feminista <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Assessoria.CFEMEA. 1997. Boletim Fêmea, Brasília, n° 53, junho, p. 9.GUTIÉRREZ, Rachel. 1985. O feminismo é um humanismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro,Antares.MURARO, Rose Marie. 1993. Os seis meses em que fui homem. Rio <strong>de</strong> Janeiro,Rosa <strong>do</strong>s Tempos.NÚCLEO DE MULHERES DO <strong>PT</strong>. 1986. Existirmos, a que será que se <strong>de</strong>stina?Rio <strong>de</strong> Janeiro. Mimeogr.SAFFIOTI, Heleieth I. B. 1976. A mulher na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes: mito e realida<strong>de</strong>.Petrópolis, Vozes.TABAK, Fanny. 1989. A mulher brasileira no Congresso Nacional. Câmara<strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Publicações, Brasília.TABAK, Fanny e VERUCCI, Florisa. 1994. A difícil igualda<strong>de</strong>: os direitos damulher como direitos humanos. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Relume-Dumará.TOSCANO, Moema. 1975. Mulher: trabalho e política — caminhos cruza<strong>do</strong>s<strong>do</strong> feminismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Cia. Ed. Americana.VALDES, Teresa e GOMARIZ, Henrique, coord. 1993. <strong>Mulheres</strong> latino-americanasem da<strong>do</strong>s — Brasil. Espanha/Chile, Instituto <strong>de</strong> la Mujer/FLACSO.172


Gênero e políticas públicas municipaisGênero e políticaspúblicas municipaisIvete GarciaBreves conceituaçõesRelações <strong>de</strong> gêneroO termo gênero refere-se à construção social <strong>de</strong> homens e mulheres,que são educa<strong>do</strong>s e socializa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira diferente, crian<strong>do</strong>oposição, e às vezes até mesmo antagonismo. O processo <strong>de</strong> educaçãocontribui para o tratamento <strong>de</strong>sigual entre homens e mulheres.Apesar <strong>de</strong> ambos viverem no mesmo mun<strong>do</strong>, o que a mulherpo<strong>de</strong> fazer é completamente diferente <strong>do</strong> que é permiti<strong>do</strong> ao homem.Por isso, é importante observar <strong>de</strong> forma crítica os lugares eespaços que mulheres e homens ocupam na família, no trabalho, naescola, na igreja, nas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e nas representações políticas.As questões <strong>de</strong> gênero perpassam todas as relações da socieda<strong>de</strong>,<strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se ainda a combinação com as dimensões <strong>de</strong> classe eraça.A elaboração <strong>de</strong> políticas públicas que visem a alteração darealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exclusão e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve levar em conta uma novaperspectiva para além <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> pobreza, incluin<strong>do</strong> a reversãoda forma como vivem homens e mulheres, brancos e negros.Ivete GarciaFormada em ciências sociais, é verea<strong>do</strong>ra emSanto André (SP), on<strong>de</strong> foi assessora <strong>do</strong>s direitosda mulher da Prefeitura (1989-92). Coor<strong>de</strong>nouo Programa Relações Sociais <strong>de</strong> Gênero <strong>do</strong>Instituto Cajamar (1993-95).(Texto escrito com a colaboração <strong>de</strong> Matil<strong>de</strong> Ribeiroe Fernan<strong>do</strong> Portella Rosa).173


Ivete GarciaO planejamento da gestão municipal, como um exercício <strong>de</strong> participaçãoe <strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração o conceito <strong>de</strong> gênero,no momento que se i<strong>de</strong>ntificam problemas e encaminham-se soluções.Segun<strong>do</strong> Ângela Fontes e Maria da Graça Neves (1993),“As categorias-chave que orientam o planejamento para o gênerosão os papéis e as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero. O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong>gênero diz respeito à divisão sexual <strong>do</strong> trabalho na socieda<strong>de</strong>, enquantoo das necessida<strong>de</strong>s se relaciona à articulação <strong>do</strong>s interessespróprios <strong>de</strong> mulheres e homens na mesma socieda<strong>de</strong>. Estes interesses,que não são homogêneos, são i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com aposição social <strong>de</strong> homens e mulheres, a qual por sua vez, envolve,entre outros, os aspectos <strong>de</strong> classe, etnia e gênero”.Após alguns estu<strong>do</strong>s e experiências, aprofunda<strong>do</strong>s mais adiante,é possível verificar alguns consensos quanto a aspectos comunsna vida das mulheres e no que diz respeito às relações <strong>de</strong> gênero.Entre eles <strong>de</strong>stacam-se:1) Em geral é a mulher quem usa os serviços públicos em torno daresidência para o atendimento da família, assumin<strong>do</strong> o papel <strong>de</strong>gestora <strong>do</strong> cotidiano;2) O trabalho <strong>do</strong>méstico não é dividi<strong>do</strong> igualmente entre os membrosda família;3) O Esta<strong>do</strong> não oferece os equipamentos e serviços <strong>de</strong> apoio à reproduçãosocial para toda a população;4) Tem si<strong>do</strong> crescente a feminização da pobreza, ressaltan<strong>do</strong>-se amulher como chefe <strong>de</strong> família.Estes elementos conjuga<strong>do</strong>s nos levam à constatação <strong>de</strong> quea presença da mulher no espaço público traz mudanças para oconjunto da socieda<strong>de</strong>. O mesmo não acontece com a presença<strong>do</strong> homem na esfera privada. Constatamos ainda que é necessárioconsi<strong>de</strong>rar a diversida<strong>de</strong> entre as mulheres, pois a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rda condição social, racial ou <strong>de</strong> geração, a realida<strong>de</strong> se apresenta<strong>de</strong> forma diferenciada.174


Gênero e políticas públicas municipaisPolíticas públicasO termo política pública é um anglicismo, ou seja, uma incorporaçãoà nossa língua da expressão em inglês Public Policy. É compostopor um substantivo e um adjetivo, ambos femininos. Toman<strong>do</strong>-sepor referência os significa<strong>do</strong>s expressos no mais utiliza<strong>do</strong> dicionário<strong>de</strong> língua portuguesa (FERREIRA, 1975), po<strong>de</strong>-se resumir políticaspúblicas como“Conjunto <strong>de</strong> objetivos que enformam [dão forma] <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>programa <strong>de</strong> ação governamental e condicionam sua execução [...]Habilida<strong>de</strong> no trato das relações humanas, com vistas à obtenção<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s [...] Pertencente ou <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao povo, àcoletivida<strong>de</strong>”.Esta visão baseia-se numa leitura tradicional que impõe aoEsta<strong>do</strong> a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s da população,no que diz respeito a moradia, transporte, saú<strong>de</strong>, alimentação, trabalho,lazer, entre outros. Não há uma caracterização <strong>do</strong> perfil dapopulação, quais são suas necessida<strong>de</strong>s e interesses. Deve-se consi<strong>de</strong>rarque o Esta<strong>do</strong> não é neutro, em especial sob o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>gênero, classe social ou raça.Diante <strong>do</strong> quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> racial e entre os gêneros,não basta que o Esta<strong>do</strong> apenas se abstenha <strong>de</strong> promover a discriminaçãoem suas leis e práticas administrativas, é importante o esforçopara favorecer a criação <strong>de</strong> condições efetivas, positivas e afirmativasque permitam a to<strong>do</strong>s beneficiar-se da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>e tratamento, asseguran<strong>do</strong> a eliminação <strong>de</strong> qualquer fonte <strong>de</strong> discriminaçãodireta ou indireta.Passamos ao longo da história por vários mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico e social. Tradicionalmente as mulheres sãovinculadas à família sob um mo<strong>de</strong>lo abstrato e estereotipa<strong>do</strong> <strong>de</strong> gruponuclear — um mari<strong>do</strong> prove<strong>do</strong>r, uma esposa <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa e comfilhos. Este mo<strong>de</strong>lo não reconhece o papel da mulher na produção,como trabalha<strong>do</strong>ra formal ou informal, na gestão familiar e da comunida<strong>de</strong>,e vincula-se à perspectiva <strong>de</strong> proteção — ajuda, apoio,socorro, benefício. Há um reforço à fragilida<strong>de</strong> e à <strong>de</strong>pendência,175


Ivete Garciavisualizan<strong>do</strong> a mulher como receptora passiva <strong>do</strong>s recursos sociais.A partir <strong>do</strong>s anos 80, avança-se para visões que reconhecem as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>sentre homens e mulheres e a importância das mulheresincrementarem sua auto-estima e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interferir na direção<strong>de</strong> sua vida e nas mudanças sociais.Na Constituição Brasileira <strong>de</strong> 1988, a cidadania e a dignida<strong>de</strong>da pessoa humana são princípios estruturantes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>de</strong>mocrático e <strong>de</strong> direito. Ela proclama a promoção <strong>do</strong> bem <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s “sem preconceitos <strong>de</strong> origem, raça, sexo, cor, ida<strong>de</strong> e quaisqueroutras formas <strong>de</strong> discriminação”. Em relação ao racismo,coloca-o como crime imprescritível e inafiançável. Proíbe qualquerdiferença <strong>de</strong> salário entre os sexos e outras discriminaçõesem relação às mulheres no acesso, formação e ascensão profissional.A efetivação <strong>de</strong>ssas conquistas, no entanto, necessita <strong>de</strong>monitoramento e ações <strong>do</strong>s diversos setores <strong>do</strong>s movimentossociais (CFEMEA, 1993).Verifica-se que no plano institucional são consagra<strong>do</strong>s princípiosque reconhecem a pluralida<strong>de</strong> étnica e <strong>de</strong> gênero, além <strong>de</strong> aspectosculturais <strong>do</strong> povo brasileiro, assim como oferecem importantesinstrumentos para a perspectiva <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong> direitos sociais.Porém, as diferenças entre conquistas legais e concretizações <strong>de</strong>ações políticas são gritantes.Neste senti<strong>do</strong>, faz-se importante o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticascom perspectiva <strong>de</strong> gênero, por meio <strong>de</strong> programas e projetosque articulem a situação das mulheres às políticas globais. Torna-sefundamental a ação visan<strong>do</strong> mudanças <strong>de</strong> leis que propiciem novasmodalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso à proprieda<strong>de</strong>, ao trabalho etc. Dessa forma,po<strong>de</strong>-se viabilizar a mudança na prática <strong>de</strong> planejamento <strong>do</strong>s projetos,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as diferenças, como base para a construção daigualda<strong>de</strong> e da justiça, sob uma perspectiva <strong>de</strong> gênero.A responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s da população edas mulheres não é apenas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e sim <strong>do</strong> conjunto da socieda<strong>de</strong>,ten<strong>do</strong> como objetivo a alteração <strong>do</strong>s aspectos econômico, cultural-sociale das relações políticas. Contemporaneamente, diversossetores da socieda<strong>de</strong> têm se mobiliza<strong>do</strong> para a construção <strong>de</strong> políticaspúblicas sob a ótica <strong>de</strong> gênero e raça.176


Gênero e políticas públicas municipaisA ação <strong>do</strong> movimento feministaO movimento feminista 1 contribuiu <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>stacada parao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> após os anos 70. Maisespecificamente nos anos 80, perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> país,quan<strong>do</strong> amplia-se a perspectiva <strong>de</strong> acesso a direitos, a conquista <strong>de</strong>cidadania e a participação no Esta<strong>do</strong> e na socieda<strong>de</strong> (BARSTED, 1994).Neste mesmo perío<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntifica-se a atuação <strong>do</strong> movimento negro,com ban<strong>de</strong>iras e manifestações muito próximas às <strong>do</strong> movimentofeminista, porém cada um segue sua trajetória na busca <strong>de</strong> espaçopróprio na socieda<strong>de</strong>.Des<strong>de</strong> sua fase inicial, o movimento feminista firma-se comouma filosofia universal, que consi<strong>de</strong>ra a existência <strong>de</strong> uma opressãoespecífica a todas as mulheres. Como um movimento político, questionaas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a opressão e a exploração. Contrapõe-seradicalmente ao po<strong>de</strong>r patriarcal. Propõe uma transformação social,econômica, política e i<strong>de</strong>ológica da socieda<strong>de</strong> (TELLES, 1993). Em1975, quan<strong>do</strong> foi inaugurada pelas Nações Unidas a Década daMulher, possibilitou-se em âmbito internacional a repercussão datemática <strong>de</strong> gênero, a <strong>de</strong>núncia da discriminação das mulheres e aluta pela igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos.O movimento feminista, ao longo <strong>do</strong>s últimos 30 anos, pormeio <strong>de</strong> várias formas <strong>de</strong> manifestação e organização, constrói umarcabouço <strong>de</strong> intervenções e alterações na realida<strong>de</strong> brasileira emundial. Nos últimos anos, mais especificamente, elabora propostas<strong>de</strong> políticas a serem <strong>de</strong>senvolvidas pelo Esta<strong>do</strong>. Com isso aju<strong>do</strong>ua consolidar a idéia <strong>de</strong> políticas públicas elaboradas por setores dapopulação, e não somente pelo setor público ou pelos governos.As ações <strong>do</strong> movimento feminista direcionaram-se para alémdas intervenções em âmbito governamental, voltaram-se tambémpara os <strong>de</strong>mais setores da socieda<strong>de</strong> civil — parti<strong>do</strong>s políticos, sindicatos,organizações populares. Provocou-se o surgimento <strong>de</strong> novos<strong>de</strong>bates, posturas e intervenções que <strong>de</strong>marcaram lugares <strong>de</strong>1. Embora seja expresso no singular, consi<strong>de</strong>ro que não existe um feminismo único, homogêneo.Existem distintas formas <strong>de</strong> manifestação e expressão, o que nos leva a <strong>de</strong>finir omovimento feminista como um movimento plural.177


Ivete Garciaparticipação e construção da mulher como sujeitos políticos. Essasações <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>vem assegurar o monitoramento daimplementação das políticas; assim como a perspectiva <strong>de</strong> regulamentaçãodas leis e acor<strong>do</strong>s firma<strong>do</strong>s a partir da relação com o Esta<strong>do</strong>.O <strong>PT</strong> e as políticas públicasvoltadas às mulheresAs formulações existentes no interior <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res,mais especificamente as advindas das mulheres que integramo movimento feminista e instâncias partidárias como a SecretariaNacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e organismos em âmbito estadual emunicipal, partem <strong>do</strong> princípio que: “Fica difícil falar em ‘<strong>de</strong>mocracia’ou direitos à cidadania sem levar à frente políticas que incorporeme beneficiem a meta<strong>de</strong> da população no seu <strong>de</strong>senvolvimentosocial” (BITTAR, 1992).O mo<strong>do</strong> petista <strong>de</strong> governar busca garantir o pleno exercício<strong>de</strong> cidadania reconhecen<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre homense mulheres no parti<strong>do</strong> e na estrutura da socieda<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>raseque“A cidadania para as mulheres não significa a simples extensão<strong>do</strong>s direitos já conquista<strong>do</strong>s pelos homens, acresci<strong>do</strong>s daquelesreferentes à condição feminina em função da procriação. Pressupõetrabalharmos o conceito <strong>de</strong> cidadania como a construção<strong>de</strong> uma condição coletiva, generalizada e inclusiva, ou seja, construiras condições <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> para to<strong>do</strong>s” (PARTIDO DOSTRABALHADORES, 1994).Com isto assegura-se que a eliminação das discriminações das mulheresnão po<strong>de</strong> ser resolvida apenas no combate i<strong>de</strong>ológico, masexige o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticas públicas que ataquem diretamenteas formas <strong>de</strong> discriminação e opressão.No final da década <strong>de</strong> 1980, em função das eleições que <strong>de</strong>finirama entrada <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, em conjunto com outros parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerdapor meio <strong>de</strong> coligações, no âmbito das administrações públicas178


Gênero e políticas públicas municipaismunicipais, concretizaram-se experiências <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> políticas<strong>de</strong> gênero. Os enuncia<strong>do</strong>s e expectativas para implantação <strong>de</strong>tais políticas foram:“O governo <strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong>verá criar um organismo, no âmbito da Prefeitura,com atribuições <strong>de</strong> formular, executar e/ou coor<strong>de</strong>nar comoutras instâncias, as políticas no âmbito municipal que atendam àsnecessida<strong>de</strong>s das mulheres e enfrentem as diferentes formas <strong>de</strong> discriminaçãopor sexo” (SÃO PAULO, 1989).Ou ainda:“O combate contra a opressão da mulher na socieda<strong>de</strong> já obteveconquistas, já errou, amadureceu e tem agora um novo <strong>de</strong>safio,numa nova conjuntura. Após a vitória <strong>do</strong>s candidatos petistas em36 prefeituras e a eleição <strong>de</strong> quase mil verea<strong>do</strong>res, é preciso avançar”(SOARES, 1989).Após as eleições <strong>de</strong> 1988, são cria<strong>do</strong>s órgãos relaciona<strong>do</strong>s àsmulheres em cinco <strong>do</strong>s 36 municípios com administrações petistas.Nas gestões 1997-2000 (eleitas em 1996), que marcam a quarta geração<strong>de</strong> administrações petistas, conta-se atualmente com o governo<strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral, 258 Prefeituras (116 prefeitos petistas e a participação<strong>de</strong> forma coligada em outras 142 administrações) e a criação<strong>de</strong> diferentes órgãos relaciona<strong>do</strong>s às mulheres, o que possibilita acriação <strong>de</strong> novas referências <strong>de</strong> análise.Ao longo <strong>de</strong>sses anos as propostas encaminhavam-se no senti<strong>do</strong><strong>de</strong> que os governos <strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong>veriam criar organismos com autonomiaadministrativa e <strong>do</strong>tação orçamentária, relacionan<strong>do</strong>-se comas várias secretarias e <strong>de</strong>partamentos, crian<strong>do</strong> interfaces <strong>de</strong> trabalho,incorporan<strong>do</strong> as questões <strong>de</strong> gênero nas diretrizes <strong>do</strong> planejamentoglobal da administração; ou seja, as questões <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong>vemperpassar o conjunto das ações <strong>do</strong> governo.Ter incorpora<strong>do</strong>, como compromisso e diretriz partidária, o<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> criar organismos para implementação <strong>de</strong> políticas públicasvoltadas às mulheres já representa um gran<strong>de</strong> avanço. O novo179


Ivete Garcia<strong>de</strong>safio que se apresenta é o aprofundamento <strong>do</strong>s temas <strong>de</strong> gênerono conjunto <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e das administrações. Ainda são <strong>de</strong>tecta<strong>do</strong>sproblemas ocorri<strong>do</strong>s nas experiências anteriores, como a falta <strong>de</strong>autonomia, pouco po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> intervenção junto aos <strong>de</strong>mais setores,<strong>de</strong>sarticulação na gestão e, em alguns casos, sentem-se os efeitos da<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, provocada pela interrupção com a mudança <strong>de</strong>governo.Um balanço amplo e apura<strong>do</strong> <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ssa política édifícil <strong>de</strong> se ter, porém é possível verificar que em alguns casos apresentam-seavanços no que diz respeito a planejar a cida<strong>de</strong> e a implementarpolíticas públicas sob diferentes olhares e necessida<strong>de</strong>s. Noque se refere às mulheres, <strong>de</strong>stacam-se programas volta<strong>do</strong>s à saú<strong>de</strong>da mulher, ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, ao combate à violência contra amulher, a feminização da pobreza, entre outras. Em relação às <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>sraciais <strong>de</strong>stacam-se os programas <strong>de</strong> educação e apoio àluta contra o racismo, atenção às <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> discriminação e violênciaracial etc., impulsiona<strong>do</strong>s por organismos específicos sobre aquestão racial.Verifica-se que algumas medidas são imprescindíveis para aexpansão das experiências e garantia <strong>de</strong> sua continuida<strong>de</strong>: relaçãodas políticas <strong>de</strong> gênero com as priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governo; sensibilizaçãoda equipe <strong>de</strong> governo que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> verba e priorização<strong>do</strong>s projetos e programas; relação efetiva com o orçamentoparticipativo ou outras formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong>s gastos públicos;envolvimento <strong>do</strong> movimento organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> mulheres nosfóruns <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão da gestão pública; relação com a bancada <strong>de</strong>verea<strong>do</strong>res.Resgate da experiência <strong>de</strong> Santo AndréA criação da Assessoria <strong>do</strong>s Direitos da Mulher (ADM), em1989, na Prefeitura <strong>de</strong> Santo André, representou um avanço no combateà discriminação contra as mulheres e na superação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> gênero para o município. Havia uma gran<strong>de</strong> expectativapor parte das representantes <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres na implantação<strong>de</strong>ste organismo: “Aprovada a lei, foi necessária muita coragem180


Gênero e políticas públicas municipaispara concretizar o nosso sonho e <strong>de</strong> muitas mulheres, <strong>de</strong> ver implantadase implementadas políticas públicas que combatam <strong>de</strong>fato a discriminação que sofremos no nosso dia-a-dia” (SANTO ANDRÉ,1989/92). A ADM estabeleceu um trabalho conjunto com diversasáreas da prefeitura, atuan<strong>do</strong> a partir da concepção <strong>de</strong> propiciar aparticipação popular das mulheres. A gestão <strong>de</strong> 1993 a 1996 interrompeuo trabalho da ADM, com a perda <strong>do</strong>s serviços implanta<strong>do</strong>se das conquistas obtidas.Na gestão <strong>de</strong> 1997 a 2000, os projetos <strong>de</strong> trabalho pautam-sepor quatro linhas <strong>de</strong> intervenção, ten<strong>do</strong> como referência as propostas<strong>do</strong> Plano <strong>de</strong> Governo: combate à violência e atenção à saú<strong>de</strong> damulher; mulher, organização e cultura; política <strong>de</strong> gênero: educação,geração <strong>de</strong> emprego e renda; servi<strong>do</strong>ras(es) e cidadania.Estes projetos relacionam-se com as priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governo:<strong>de</strong>senvolvimento econômico, participação popular, mo<strong>de</strong>rnizaçãoadministrativa, educação e cida<strong>de</strong> agradável 2 .As competências da Assessoria <strong>do</strong>s Direitos da Mulher <strong>de</strong>finem-sepor:• Políticas <strong>de</strong> gênero. Formular diretrizes, executar ou coor<strong>de</strong>narpolíticas <strong>de</strong> gênero no âmbito da administração pública, direta ouindireta.• Situação da mulher. Elaborar, executar e fiscalizar, em conjuntocom outras secretarias, programas <strong>de</strong> ação para melhorar a realida<strong>de</strong>da mulher no município. Estimular, apoiar e <strong>de</strong>senvolver o estu<strong>do</strong>da situação da mulher no município.• Direitos da mulher. Fiscalizar e exigir o cumprimento da legislaçãoquanto aos direitos da mulher.• Educação. Elaborar materiais e campanhas <strong>de</strong> ação educativa, parao serviço público e para a população, esclarecen<strong>do</strong> os direitos damulher e <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> a discriminação. Realizar programas <strong>de</strong> formaçãoe capacitação <strong>de</strong> servi<strong>do</strong>res municipais, visan<strong>do</strong> transformaras relações entre estes e o público atendi<strong>do</strong>.2. Maiores <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong>s trabalhos realiza<strong>do</strong>s na gestão 1989/92 e as perspectivas para agestão 1997/2000 po<strong>de</strong>m ser obtidas na cartilha Resgate <strong>do</strong> Trabalho — Anúncio <strong>de</strong> NovosCiclos (Santo André, Assessoria <strong>do</strong>s Direitos da Mulher — Prefeitura Municipal <strong>de</strong> SantoAndré, 1997).181


Ivete Garcia• Participação popular. Garantir a participação popular, asseguran<strong>do</strong>a autonomia <strong>do</strong>s movimentos sociais.A experiência passada e o atual processo nos dão a dimensão<strong>de</strong> que implantar políticas sob a ótica <strong>de</strong> gênero é um árduo e necessáriotrabalho. Nem tu<strong>do</strong> que faz parte das reivindicações históricasdas mulheres é possível <strong>de</strong> ser posto em prática, pois quatro anos <strong>de</strong>governo passam muito rápi<strong>do</strong>, no entanto é possível realizar açõesimportantes que avancem na construção <strong>de</strong> uma política local coma perspectiva <strong>de</strong> gênero.A proposta fundamental é que a gestão pública contribuapara que as mulheres sejam tratadas como cidadãs, como sujeitospolíticos. Neste senti<strong>do</strong>, ao planejar as ações <strong>do</strong> governo, é importantelevar em conta a existência <strong>de</strong> homens e mulheres nacida<strong>de</strong> e a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre estes. Vejamos algunsaspectos:Políticas urbanas— É preciso repensar a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista das mulheres, nosprojetos ou programas, no planejamento <strong>do</strong>s bairros, na prestação<strong>de</strong> serviços, na implantação <strong>de</strong> equipamentos sociais, na urbanização<strong>de</strong> favelas etc.— Nos projetos <strong>de</strong> intervenção e revitalização urbana é preciso terem conta que a mulher é a principal gestora <strong>do</strong> cotidiano e administra<strong>do</strong>rada vida <strong>de</strong> toda a família, e, portanto, da cida<strong>de</strong>. Por isso, éimportante que os serviços, bancos, supermerca<strong>do</strong>s, escolas etc. estejam<strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>s pelos bairros e vilas, facilitan<strong>do</strong> o dia-a-diadas mulheres.— Os espaços <strong>de</strong> lazer, educativos e culturais <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>snos bairros, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> programas volta<strong>do</strong>s à mulher.— Praças, parques, ruas e equipamentos públicos <strong>de</strong>vem ser seguros,com iluminação, policiamento e retaguarda para evitar assaltos,molestamentos, estupros.— Os equipamentos públicos <strong>de</strong>vem ser adapta<strong>do</strong>s às mulheres comfilhos (fraldários, banheiros a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s, espaços para amamentação),com ativida<strong>de</strong>s para as crianças e os adultos.182


Gênero e políticas públicas municipaisPolíticas habitacionais— É fundamental a promoção e a realização <strong>de</strong> programas quepriorizem financiamentos e acesso a moradia, levan<strong>do</strong> em conta queas mulheres são as mais pobres e na maioria das vezes não possuememprego formal e assumem a chefia <strong>de</strong> família.— As políticas habitacionais <strong>de</strong>vem levar em conta a participaçãodas mulheres no planejamento e construção, porque são asmulheres que hoje mais utilizam a casa e conhecem as suas necessida<strong>de</strong>s.— Devemos pensar ações preventivas relativas à segurança, como:punição fiscal para terrenos baldios aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s, plano <strong>de</strong> iluminaçãopública, poda sistemática <strong>de</strong> árvores evitan<strong>do</strong> mais lugaresescuros e sombrios.Combate à violência— Elaborar o diagnóstico da situação das mulheres quanto à violênciasexista é um <strong>de</strong>safio para a implantação <strong>de</strong> serviços para atendimentodas vítimas da violência: Delegacia <strong>do</strong>s Direitos da Mulher (emconvênio com o governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>), Casa Abrigo e outros.— A capacitação <strong>do</strong>s profissionais para atendimento às mulheresem situação <strong>de</strong> violência, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se o treinamento da GuardaMunicipal visan<strong>do</strong> o aprimoramento <strong>do</strong> atendimento às mulheresvítimas <strong>de</strong> violência, é outro aspecto fundamental a serobserva<strong>do</strong>.— Observar também a relação com outras áreas da administração,no caso <strong>de</strong> ações preventivas e <strong>de</strong> serviços volta<strong>do</strong>s às vítimas, emespecial com a Guarda Municipal, saú<strong>de</strong>, educação e habitação.Educação— Combate permanente à linguagem sexista e racista nos materiaisdidáticos e <strong>de</strong>senvolvimento das ações educativas.— Promover o treinamento a profissionais da área para que nãoreproduzam o preconceito, a discriminação e a exclusão.183


Ivete Garcia— A<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> política para ampliação <strong>do</strong> atendimento das creches,que invista não só na qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino das crianças, mas tambémna perspectiva da socialização da educação <strong>do</strong>s filhos, proporcionan<strong>do</strong>às mulheres o direito ao trabalho, ao lazer e à educação.— Implementação <strong>de</strong> programas para educação e formação profissional<strong>de</strong> jovens e adultos que priorizem a participação das mulheres.Transporte— Transporte coletivo adapta<strong>do</strong> a toda diversida<strong>de</strong>, catracas, <strong>de</strong>grause balaústre que atendam não só as mulheres grávidas, mas aobesos, i<strong>do</strong>sos e crianças <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral.— Garantir a existência <strong>de</strong> linhas no perío<strong>do</strong> noturno que proporcionemlazer e segurança para as mulheres.Participação popular— Socialização das informações, para planejar e avaliar as ações comos movimentos e entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mulheres.— Realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s culturais e organizativas visan<strong>do</strong> contribuirpara o fortalecimento <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres.— Proporcionar a participação das mulheres no <strong>de</strong>senvolvimentodas políticas públicas, crian<strong>do</strong> canais institucionais <strong>de</strong> participação(conselhos, comissões, fóruns).Essas foram as principais ações e/ou reflexões da Assessoria<strong>do</strong>s Direitos da Mulher na gestão 1989-92, a partir <strong>de</strong> um trabalhointegra<strong>do</strong> junto à Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s Centros Comunitários, PromoçãoSocial, Programa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Mulher, Pré-Urbanização <strong>de</strong>Favelas, Projeto Viva a Cida<strong>de</strong> e Assessoria <strong>de</strong> Participação Popular,que resultou na criação <strong>do</strong> Elo Mulher, grupo permanente forma<strong>do</strong>por integrantes <strong>de</strong>ssas secretarias com o objetivo <strong>de</strong> executarações comunitárias.Um <strong>do</strong>s marcos <strong>de</strong> referência da elaboração das políticas públicassob a ótica <strong>de</strong> gênero foi a participação na construção <strong>do</strong> PlanoDiretor e no planejamento estratégico da cida<strong>de</strong>. No Plano Diretor, foi184


Gênero e políticas públicas municipaisincluí<strong>do</strong> um plano setorial — Plano Municipal <strong>do</strong>s Direitos da Mulher—, que possibilitou repensar a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista das mulheres.Essa proposta setorial centrou-se basicamente em quatro gran<strong>de</strong>s questões:habitação, segurança, equipamentos sociais e geração <strong>de</strong> renda.Em âmbito legislativo, houve um investimento para a garantiada inclusão da questão <strong>de</strong> gênero em vários projetos que foramdiscuti<strong>do</strong>s e encaminha<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se os <strong>de</strong>bates quan<strong>do</strong> da elaboração<strong>do</strong> Plano Diretor municipal, que assegurou diversos avançosà qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das mulheres.Foi um trabalho intenso que resultou em ações concretas,porém ao término da gestão, com a mudança <strong>de</strong> governo, houveuma total paralisação das ativida<strong>de</strong>s. Esta realida<strong>de</strong> nos leva a repensara dimensão e o alcance das políticas públicas em âmbito municipal,pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, da priorização e vonta<strong>de</strong> política<strong>do</strong>s governos e, <strong>de</strong> outro, da existência <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> mulheresque cumpra o vigilante papel <strong>de</strong> pressionar os parti<strong>do</strong>s e instituiçõespúblicas para a manutenção <strong>de</strong> suas conquistas.Após os quatro anos <strong>de</strong> governo po<strong>de</strong>-se dizer que houve significativascontribuições na estruturação <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres.Foram feitos vários trabalhos nas comunida<strong>de</strong>s, o que resultouno fortalecimento das ações locais e contribuiu para a existência <strong>de</strong>um amplo fórum <strong>de</strong> mulheres e o surgimento e consolidação dassuas organizações, entre as quais veio a constituir-se a Fé Menina —Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>de</strong> Santo André. Esta organização possuiem seu quadro 70 associadas, que representam agrupamentos <strong>de</strong> mulheresem vários bairros da cida<strong>de</strong>.A nossa experiência <strong>de</strong>monstrou quanto é importante ressaltarque a participação feminina é crucial na elaboração <strong>do</strong> planejamentomunicipal, já que as mulheres participam das lutas por moradia,água, saneamento, meio ambiente, educação, saú<strong>de</strong> etc. É obrigação<strong>de</strong> uma administração popular criar mecanismos para que asmulheres participem <strong>do</strong> acompanhamento e fiscalização das políticas<strong>de</strong> gênero e se apropriem <strong>do</strong> espaço público para terem condições<strong>de</strong> manifestar o que realmente <strong>de</strong>mandam em termos <strong>de</strong> serviçose ações <strong>de</strong> governo, naturalmente respeitan<strong>do</strong> a autonomia <strong>do</strong>movimento das mulheres.185


Ivete GarciaDesafios para os próximos perío<strong>do</strong>sDevemos consi<strong>de</strong>rar que o principal <strong>de</strong>safio é romper com aidéia e o discurso <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino biológico da mulher, que impõe papéise a condiciona histórica e culturalmente a funções relacionadas àmaternida<strong>de</strong> e à família. A partir <strong>de</strong>sta consi<strong>de</strong>ração e constatação,assumir o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> agir no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> alterar as relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>entre os gêneros. Este ponto <strong>de</strong> partida é importante paranão se reforçar as atribuições tradicionais da mulher como únicasaída, ou passar por cima da posição em que está a maioria das mulheresna socieda<strong>de</strong>.Delaine Costa e Maria da Graça Neves (1995) fizeram um trabalhoque examina as percepções <strong>do</strong> Executivo municipal, no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong>1989-92, no que diz respeito a suas ações e às necessida<strong>de</strong>s próprias dasmulheres. A pesquisa <strong>de</strong>u-se junto aos 4.489 municípios brasileiros existentesem 1989. Segun<strong>do</strong> as autoras, foi possível <strong>de</strong>tectar que nos governosmunicipais há consensos quanto à implementação <strong>de</strong> programasvolta<strong>do</strong>s às necessida<strong>de</strong>s próprias das mulheres.Os retornos <strong>do</strong>s questionários pautaram-se pela visão <strong>de</strong> umamulher associada, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, à reafirmação <strong>do</strong> papel “tradicionalda mulher”, vinculada às tarefas <strong>do</strong>mésticas e educação <strong>de</strong> filhos,sen<strong>do</strong> o seu trabalho percebi<strong>do</strong> como fonte adicional <strong>de</strong> recursos,mesmo quan<strong>do</strong> é a principal receita para as <strong>de</strong>spesas familiares. Poroutro la<strong>do</strong>, apresenta-se uma “nova mulher”, vinculada à mudança<strong>de</strong> posição a ser realizada pelas próprias mulheres. Embora ativa eparticipante, é carente <strong>de</strong> informação e esclarecimento, requeren<strong>do</strong>educação ampla e conscientização <strong>de</strong> seu próprio papel na socieda<strong>de</strong>;trilha assim o caminho <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento pessoal. A estamulher pleiteia-se condições <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos, pois está associadaa outros segmentos discrimina<strong>do</strong>s na socieda<strong>de</strong>.Neste senti<strong>do</strong>, sintetizan<strong>do</strong> as possibilida<strong>de</strong>s apresentadas pelosrespon<strong>de</strong>ntes, referem-se ao “papel tradicional” como uma situaçãoestabelecida e não questionada, que não requer alteração, emoposição à “nova mulher”, com um caráter dinâmico, requeren<strong>do</strong>alterações. Espera-se, assim, que os programas e iniciativas <strong>do</strong>s governosmunicipais possibilitem mudanças.186


Gênero e políticas públicas municipaisÉ interessante, à luz <strong>de</strong>sta pesquisa e da experiência <strong>de</strong>senvolvidano município <strong>de</strong> Santo André, perceber-se que não dápara lidar com as políticas públicas <strong>de</strong> gênero a partir da visão dasmulheres <strong>de</strong> forma fragmentada e estereotipada. O cotidiano das mulherese suas necessida<strong>de</strong>s são muito varia<strong>do</strong>s, pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sua condição <strong>de</strong> classe, raça, ida<strong>de</strong> entre outros. Neste senti<strong>do</strong>, éimportante o olhar para a diversida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ve estar vincula<strong>do</strong>ao conjunto <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>senvolvidas pela administração.Reforça-se a necessida<strong>de</strong> da compreensão <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> programas específicos não significa o atendimentoa uma parte ou a uma minoria, mas acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> garantia <strong>de</strong>mudanças na socieda<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong>. As políticas <strong>de</strong> gênero<strong>de</strong>vem ser vistas como uma condição para ampliar o grau <strong>de</strong> eficáciadas ações municipais. De outra forma, com o adiamentopara um futuro longínquo <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das políticas <strong>de</strong>gênero que promovam a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento e oportunida<strong>de</strong>sentre homens e mulheres, gera-se a inércia, tanto por parte<strong>do</strong>s elabora<strong>do</strong>res <strong>de</strong> políticas públicas como em relação às mulheres.BibliografiaBARSTED, Leila <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Linhares. 1994. Em busca <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>:Mulher e políticas públicas no Brasil — 1983-1993. Revista Estu<strong>do</strong>sFeministas, número especial, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ.BITTAR, Jorge, org. 1992. O mo<strong>do</strong> petista <strong>de</strong> governar. São Paulo, Ca<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> Teoria e Debate, Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res.CFEMEA. 1993. Pensan<strong>do</strong> nossa cidadania — Proposta para uma legislaçãonão discriminatória. Brasília.COSTA, Delaine Martins e NEVES, Maria da Graça Ribeiro. 1995. Nemtanto ao mar nem tanto à terra: Uma perspectiva das ações municipaisvoltadas para a mulher. Revista <strong>de</strong> Administração Municipal –RAM, Rio <strong>de</strong> Janeiro, vol. 42, nº 215, p. 9-28.FERREIRA, Aurélio Buarque <strong>de</strong> Holanda. 1975. Novo Dicionário da LínguaPortuguesa. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira.187


Ivete GarciaFONTES, Ângela e NEVES, Maria da Graça. 1993. Gestão municipal e perspectiva<strong>de</strong> gênero. Revista <strong>de</strong> Administração Municipal – RAM, Rio<strong>de</strong> Janeiro, vol. 40, nº 206, p. 52-63.PARTIDO DOS TRABALHADORES. Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>. 1994. Cidadaniae política <strong>de</strong> gênero. Política <strong>do</strong> governo Lula em relação àsmulheres. <strong>PT</strong> Informa <strong>Mulheres</strong>, nº 5, São Paulo, abril. Documentopreparatório para o programa <strong>de</strong> governo apresenta<strong>do</strong> nas eleições<strong>de</strong> 1994.SANTO ANDRÉ. Prefeitura Municipal. 1989/1992. Vida <strong>de</strong> mulher. Assessoria<strong>do</strong>s Direitos da Mulher, 1º Encontro <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>de</strong> SantoAndré.SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. 1989. Projeto para a Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ria Especialda Mulher para a Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo.SOARES, Vera. 1989. Maturida<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r. Teoria e Debate, São Paulo,nº 6, abr/mai/jun.TELLES, Maria Amélia A. 1993. Breve história <strong>do</strong> feminismo no Brasil. SãoPaulo, Brasiliense.188


Antigas personagens, novas cenasAntigas personagens,novas cenas:mulheres negras eparticipação políticaMatil<strong>de</strong> Ribeiro[...]quase to<strong>do</strong>s pretos, ou quase pretos,ou quase brancos quase pretos <strong>de</strong> tão pobrese pobres são como podres e to<strong>do</strong>s sabem como se tratam os pretos.Caetano Veloso — “Haiti”...Ela viu um anúncio da Cônsul para todas as mulheres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Procurou, não se achou ali. Ela era nenhuma.Tinha <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> preto.Quis mudar <strong>de</strong> Brasil: ser mo<strong>de</strong>lo em Soweto.Queria ser qualida<strong>de</strong>. Ficou naquele ou eu morro ou eu luto...Elisa Lucinda — “Ashell, Ashell pra to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, Ashell”.São estes versos fragmentos <strong>de</strong> uma história sem fim. E quehistória é esta? To<strong>do</strong>s sabem, to<strong>do</strong>s viram, mas a maioria se cala.Estas contun<strong>de</strong>ntes manifestações poéticas nos inspiram a uma viagemreavivan<strong>do</strong> a memória <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong>snudan<strong>do</strong> suas mazelas <strong>de</strong>ocultamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.Matil<strong>de</strong> RibeiroAssistente social, mestranda em psicologia socialda PUC/SP. Coor<strong>de</strong>nou o Programa RelaçõesSociais <strong>de</strong> Gênero <strong>do</strong> Instituto Cajamar(1995-96) e integrou a Secretaria <strong>de</strong> Combateao Racismo <strong>do</strong> <strong>PT</strong> (1995-97). É assessora <strong>do</strong>sdireitos da mulher da Prefeitura Municipal <strong>de</strong> SantoAndré.189


Matil<strong>de</strong> RibeiroDiante <strong>de</strong>ste contexto, refletirei sobre aspectos da realida<strong>de</strong>brasileira no que diz respeito às <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s raciais e <strong>de</strong> gênero 1 ,assim como às dimensões <strong>do</strong> feminismo, da luta anti-racista e daparticipação política das mulheres negras.O horizonte da questão racialNum breve resgate <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> E<strong>de</strong>r Sa<strong>de</strong>r (1988) evi<strong>de</strong>ncia-seuma ampliação da reflexão sobre o exercício da <strong>de</strong>mocracia, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>os novos personagens da cena histórica brasileira <strong>do</strong>s anos 80:“[...] na emergência <strong>de</strong> novos atores sociais, das novas configuraçõese i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res no cenário público, no queparece o início <strong>de</strong> um outro perío<strong>do</strong> na história social <strong>de</strong> nossopaís, nos <strong>de</strong>paramos com o nascimento <strong>de</strong> formas discursivas quetematizam <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> novo os elementos que compõem as condições<strong>de</strong> existência <strong>de</strong>sses setores sociais”.Um outro aspecto relevante que se <strong>de</strong>staca neste mesmo perío<strong>do</strong>está na formulação <strong>de</strong> Leila Barsted (1994):“A partir <strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s da década <strong>de</strong> 1980, com a re<strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong>país, o tema cidadania tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>bati<strong>do</strong> não apenas como um acessoa direitos, mas como capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduos <strong>de</strong> participar naorganização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da socieda<strong>de</strong>, contribuin<strong>do</strong> na elaboração<strong>de</strong> políticas públicas capazes <strong>de</strong> concretizar os direitos formais”.1. Não será aprofundada neste artigo a conceituação das relações raciais e <strong>de</strong> gênero,embora seja um exercício extremamente necessário. No entanto, cabe rapidamente apresentaralguns pontos <strong>de</strong> partida:— relações raciais: encontraremos diversos caminhos para conceituar as diferenças entreos grupos raciais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as que reafirmam as diferenças biológicas até as que consi<strong>de</strong>ramoutras variáveis também <strong>de</strong>terminantes para a constituição das raças: cultura, meio ambiente,condições sociais, entre outras. Vale ressaltar, no entanto, que não existe raça apenasem termos biológicos;— relações <strong>de</strong> gênero: homens e mulheres possuem diferenças biológicas, ligadas ao sexo.Estas diferenças biológicas, por meio <strong>de</strong> um processo social, passam a ser “naturalizadas” ehierarquizadas. O termo gênero refere-se à construção social <strong>de</strong> homens e mulheres quesão educa<strong>do</strong>s e socializa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira distinta, geran<strong>do</strong> hierarquias, relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,diferenças <strong>de</strong> posições que constituem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.190


Antigas personagens, novas cenasOs <strong>do</strong>is autores apontam as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> exercício da <strong>de</strong>mocracia,da emergência <strong>de</strong> novos sujeitos e práticas sociais. Estessão elementos <strong>de</strong> extrema importância para a conquista <strong>de</strong> direitos,cidadania e participação política. Nos levam ainda a reforçar a perspectivajá sabida pelos movimentos sociais e os sujeitos que os integram:a história da socieda<strong>de</strong> não é imutável.As temáticas racismo e relações raciais, embora venham setornan<strong>do</strong> reconhecidas nas últimas décadas, são ainda tabu. Os processosorganizativos <strong>do</strong>s movimentos sociais tiveram como tendênciahistórica colocar estas questões em sua agenda política sem o<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>de</strong>staque; salvo situações em que os principais agentes — osnegros em geral e as mulheres negras em particular — assumiramum papel vigilante <strong>de</strong> pressionar pela visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua existência e<strong>de</strong> sua participação política. Porém, mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o<strong>de</strong>scompasso <strong>de</strong> interesses, é notório o avanço das questões raciaisna cena política.É interessante fazermos comparações entre a configuração <strong>do</strong>Brasil real <strong>de</strong>marca<strong>do</strong> pelo racismo e pelo machismo evi<strong>de</strong>ntes nocotidiano <strong>de</strong> homens, mulheres, brancos e negros; e o Brasil “apazigua<strong>do</strong>”e “<strong>de</strong>mocrático” cataloga<strong>do</strong> por intermédio <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong>comunicação, da história oficial e das instituições 2 .O Brasil é o país que, fora da África, concentra a maior populaçãonegra. No entanto, esta continua ocupan<strong>do</strong> o mais baixo grauno que se refere às condições sociais. Quanto à mulher negra, LéliaGonzales (1980) constata a conjugação entre o racismo e o machismo:“[...] o racismo constitui uma sintomática que caracteriza a neurosecultural brasileira. Neste senti<strong>do</strong>, veremos que sua articulaçãocom o sexismo produz efeitos <strong>de</strong> violência sobre a mulher negra”.Esta é uma reprise <strong>de</strong> uma novela antiga, que começa com aescravidão negra e mantém-se até os dias atuais. Há décadas o2. O ví<strong>de</strong>o Retrato em Preto e Branco — produzi<strong>do</strong> pelo Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Relações <strong>de</strong>Trabalho e Desigualda<strong>de</strong>s (CEERT), roteiro <strong>de</strong> Joelzito Araújo e Hédio Silva Jr. — retrata <strong>de</strong>forma didática e nítida a construção <strong>do</strong> racismo à moda brasileira, levan<strong>do</strong>-nos a percorrerimagens impactantes <strong>do</strong> cotidiano <strong>de</strong> negros e brancos, assim como das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>reversão <strong>de</strong>sta situação.191


Matil<strong>de</strong> Ribeiromovimento negro — homens e mulheres — vem cumprin<strong>do</strong> um importantepapel na <strong>de</strong>núncia e <strong>de</strong>smascaramento <strong>do</strong> racismo,explicitan<strong>do</strong> a construção da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre as raças, pois apesarda tentativa da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> negar os resulta<strong>do</strong>s das raízes históricas daescravidão, os negros foram sistematicamente transforma<strong>do</strong>s em subcidadãos.Por meio <strong>de</strong> sua persistência organizativa ao longo da história,o movimento contagiou os setores <strong>de</strong>mocráticos e populares.Nos últimos anos, a luta anti-racista teve um visível crescimento.O processo <strong>de</strong> comemoração <strong>do</strong> Tricentenário da Imortalida<strong>de</strong><strong>de</strong> Zumbi <strong>do</strong>s Palmares foi um fato marcante, como resulta<strong>do</strong> daação <strong>do</strong> movimento negro com o apoio <strong>de</strong> outros setores <strong>do</strong> movimentosocial (Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res — CUT; Parti<strong>do</strong><strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res — <strong>PT</strong>; Central <strong>de</strong> Movimentos Populares — CMP;Movimento <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res Rurais Sem Terra — MST; entre outros).A Marcha contra o Racismo, pela Igualda<strong>de</strong> e pela Vida, realizadaem 20 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1995, contou com mais <strong>de</strong> 20 mil pessoas<strong>de</strong> to<strong>do</strong> o país. O conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> <strong>de</strong>stacou atemática racial no espaço público brasileiro, a mídia divulgoupesquisas, <strong>de</strong>núncias, reportagens e eventos, atestan<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r transforma<strong>do</strong>rda militância anti-racista. Esta foi a maior manifestaçãocontra o racismo da história brasileira.No <strong>do</strong>cumento “Programa <strong>de</strong> Superação <strong>do</strong> Racismo e da Desigualda<strong>de</strong>Racial”, entregue ao governo fe<strong>de</strong>ral na ocasião da Marcha,expressa-se um rol <strong>de</strong> reivindicações e indicações que <strong>de</strong>vem ser levadasa cabo pelo Esta<strong>do</strong> enquanto políticas públicas, sen<strong>do</strong> estas referentes a:<strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong> informações; merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho; educação; culturae comunicação; saú<strong>de</strong>; violência; religião; terra. O <strong>do</strong>cumento diagnosticae i<strong>de</strong>ntifica a exclusão, genocídio e <strong>de</strong>scaracterização da populaçãonegra enquanto cidadãos; constrói uma crítica sistemática àinstitucionalização <strong>do</strong> racismo e, neste senti<strong>do</strong>, ressalta a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> coibi-lo: “Reflexo da crescente atuação <strong>do</strong> Movimento Negro,o Esta<strong>do</strong> brasileiro tem si<strong>do</strong> pressiona<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> proibir aspráticas racialmente discriminatórias e impedir que a lei corroboreou incentive tais práticas”.Em função <strong>de</strong>sta movimentação e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os princípiosconsagra<strong>do</strong>s em 1988 na Constituição, que reconhecem a pluralida<strong>de</strong>192


Antigas personagens, novas cenasracial, étnica e cultural <strong>do</strong> povo brasileiro e transformam a prática<strong>do</strong> racismo em crime, por meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>creto presi<strong>de</strong>ncial instituiu-seo Grupo <strong>de</strong> Trabalho Interministerial. Este grupo tem a finalida<strong>de</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver políticas para a valorização da populaçãonegra, porém suas ações mostram-se insuficientes. Questiona-se quaisresulta<strong>do</strong>s efetivos, em termos <strong>de</strong> política <strong>de</strong> combate ao racismo,foram implementa<strong>do</strong>s.Um amplo setor da militância negra e anti-racista, ao avaliar to<strong>do</strong>este processo, apesar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-lo como uma vitória sem prece<strong>de</strong>ntes,reafirma a distância entre o discurso e a prática no que diz respeitoa levar a termo uma ação <strong>de</strong> fato anti-racista. Um trecho da introdução<strong>do</strong> encarte “Faça a coisa certa!” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1996)traduz esta avaliação:“Os crescentes pronunciamentos <strong>de</strong> dirigentes políticos revelam areengenharia <strong>do</strong> mito da <strong>de</strong>mocracia racial: a negação frontal <strong>do</strong> racismoé paulatinamente substituída por solenes <strong>de</strong>clarações que reconhecemo problema mas não indagam o papel <strong>do</strong>s indivíduos, das instituiçõese <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na sua superação. A naturalização das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>sraciais é agora substituída pela naturalização <strong>do</strong> racismo, por meio <strong>de</strong>uma lógica esdrúxula que isenta a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e terminapor culpabilizar o próprio negro pelos privilégios raciais, materiaise simbólicos da elite branca e masculina. Tu<strong>do</strong> se passa como se àsocieda<strong>de</strong> restasse tão-somente conformar-se com as estatísticas e, aopovo negro, resignar-se diante da violência <strong>do</strong> cotidiano”.Diante <strong>de</strong>ste ir e vir <strong>do</strong> discurso e da prática é interessantepensarmos qual a base para a persistência <strong>de</strong> um comportamento socialque se confirma como seletivo quanto ao acesso aos direitos humanos.To<strong>do</strong>s os argumentos e fatos não têm si<strong>do</strong> suficientes para dirimir arealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e exclusão imposta à população negra.Vejamos, então, breves explicações que nos dão pistas parairmos um pouco mais fun<strong>do</strong> em nossas indagações.a) A neutralização <strong>do</strong> racismo tem bases históricas e sociais que <strong>de</strong>finemlugares <strong>de</strong> brancos e negros, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> engendramento <strong>do</strong>s sujeitos a193


Matil<strong>de</strong> Ribeiropartir <strong>de</strong> situações legitimadas socialmente, como a idéia e a prática dabranquitu<strong>de</strong>.A construção <strong>de</strong>ste raciocínio tem si<strong>do</strong> fomentada por umgrupo <strong>de</strong> estudiosos liga<strong>do</strong>s ao projeto A Força Psicológica <strong>do</strong> Lega<strong>do</strong><strong>do</strong> Branqueamento — Um estu<strong>do</strong> sobre a Negritu<strong>de</strong> em São Paulo,<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Psicologia da USP, sob a coor<strong>de</strong>naçãoda professora Iray Carone. Piza (1996) elabora questionamentos<strong>de</strong> como é onerada a presença <strong>do</strong> negro no Brasil como um fator <strong>de</strong><strong>de</strong>sequilíbrio racial e como <strong>de</strong>positários <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s causa<strong>do</strong>s peloregime escravocrata; e, <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> os processos sociais presentesnas relações <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação afetaram a população <strong>de</strong> brancos brasileirose como eles passaram a constituir suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> brancos,na qual a marca mais visível é a neutralida<strong>de</strong>, tanto política comoracial.“Cada vez mais parecia óbvio que, se vivíamos numa socieda<strong>de</strong>‘racializada’, as percepções raciais <strong>de</strong> negros e brancos eram diferentesem razão não apenas <strong>de</strong> suas posições estruturais, mas talvez,principalmente, <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r, fragmentada entre benefícios simbólicos sempreatuantes e benefícios concretos, nem sempre reais.”Bento (1996), ao analisar as condições vividas pela populaçãonegra e pelas mulheres negras, <strong>de</strong>fine a secundarização em funçãoda construção da brancura:“O branco, a branca, a brancura, a branquitu<strong>de</strong>, partes ativas naperpetuação da condição dramática <strong>de</strong> vida da população femininanegra brasileira, são esqueci<strong>do</strong>s, secundariza<strong>do</strong>s, senão preserva<strong>do</strong>snos estu<strong>do</strong>s e nas iniciativas institucionais anti-racistas no Brasil.”Estas reflexões baseiam-se nos trabalhos <strong>de</strong> Ruth Frankerberg(1995), feminista branca, que estu<strong>do</strong>u a maneira pela qual o racismomo<strong>de</strong>la a vida <strong>de</strong> feministas brancas. A partir <strong>de</strong>ssas referências po<strong>de</strong>mosverificar que a construção da branquitu<strong>de</strong> leva a uma omissãoquanto às <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s construídas socialmente.194


Antigas personagens, novas cenasb) A hierarquização entre as raças produz resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>siguais no que serefere a tratamento e oportunida<strong>de</strong>s. Estes resulta<strong>do</strong>s baseiam-se em rígidasestruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.O conceito e a prática <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r parecem não apresentar novida<strong>de</strong>no contexto <strong>de</strong> uma reflexão sobre participação política; noentanto, não são tão simples como parecem. As explicações sobre osignifica<strong>do</strong> da branquitu<strong>de</strong>, assim como a existência <strong>de</strong> privilégiossociais e hierarquização entre as raças. Estes aspectos associa<strong>do</strong>s nosremetem a pensar nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.“Aos brancos a socieda<strong>de</strong> e a cultura têm conferi<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se<strong>de</strong>signar ou não pela cor, <strong>de</strong> oprimir, <strong>de</strong> ignorar, <strong>de</strong> compartilhar, <strong>de</strong>invadir, <strong>de</strong> excluir, <strong>de</strong> construir o outro como diferente sobre basesi<strong>de</strong>ológicas que vão alteran<strong>do</strong> lentamente no tempo, mas cuja alteraçãonão <strong>de</strong>termina a renúncia branca ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se supervalorizar e,simultaneamente, <strong>de</strong>svalorizar o outro.” (PIZA, 1996)Doaré (1994), em um estu<strong>do</strong> especulativo procura ofereceruma explicação sobre a ausência das mulheres no po<strong>de</strong>r político:“O exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r é um processo <strong>de</strong>scontínuo [...] Parece-me queé preciso distinguir o po<strong>de</strong>r político, que as mulheres não exercem, <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r ou po<strong>de</strong>res <strong>do</strong>s quais não se po<strong>de</strong> dizer que as mulheres sejam<strong>de</strong>sprovidas (<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista operacional, essa distinção po<strong>de</strong> serimportante, pois ela abre para uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estratégias). Seinterrogarmos o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> gênero, aparecem <strong>do</strong>isníveis, um <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> um espaço homogêneo caracteriza<strong>do</strong> pelo funcionamento<strong>de</strong> relações <strong>de</strong> força entre iguais, entre semelhantes (recobrenão apenas o Esta<strong>do</strong>, mas também qualquer lugar <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão na socieda<strong>de</strong>), e <strong>de</strong> um outro espaço que po<strong>de</strong>ríamos chamar<strong>de</strong> social, marca<strong>do</strong> por relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r baseadas no exercício da<strong>do</strong>minação e da exploração, marca<strong>do</strong> portanto pela presença <strong>do</strong>s <strong>do</strong>issexos, como <strong>de</strong> grupos heterogêneos”.A idéia <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, ainda que <strong>de</strong>scontínuo, perpetua-se<strong>de</strong> maneira a <strong>de</strong>finir lugares ocupa<strong>do</strong>s por mulheres e ho-195


Matil<strong>de</strong> Ribeiromens, brancos e negros, nas estruturas sociais, nos espaços <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisãopolítica; e, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> na condição <strong>de</strong> serem ou não sujeitos<strong>de</strong> suas ações. Tu<strong>do</strong> isso remete-nos a questões apresentadas anteriormente,como <strong>de</strong>mocracia e cidadania — <strong>de</strong> quem? para quem?quan<strong>do</strong>?Os <strong>do</strong>is referenciais — branquitu<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r — coexistem comoreafirmação da conjugação entre machismo e racismo e inci<strong>de</strong>m sobrea vida da população negra. Para as mulheres negras resultam embarreiras para o seu cotidiano e <strong>de</strong>senvolvimento pleno.Feministas e anti-racistasgraças às <strong>de</strong>usasAs mulheres negras emergiram como sujeitos políticos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a resistência aos marcantes perío<strong>do</strong>s da escravidão. Sonia Giacomini(1988) aponta para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma visão crítica da história,sugerin<strong>do</strong> que não se po<strong>de</strong> fazer reduções como “ao trabalho força<strong>do</strong>chamar <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> econômica, ao estupro institucionaliza<strong>do</strong> chamar<strong>de</strong> sensualida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> sexual da negra e/ou mulata”.Muitas críticas foram feitas pelas mulheres negras à socieda<strong>de</strong>e ao movimento social, em especial ao movimento feministae negro (DOCUMENTO..., 1990; OLIVEIRA, 1995), quanto àinvisibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua ação política. A contestação mais direta ésobre a forma secundarizada com que o caráter <strong>de</strong> sua opressão eorganização foi trata<strong>do</strong>. Verificou-se, seja por meio <strong>do</strong> discursoou da produção teórica, que as mulheres negras aparecem como“sujeitos implícitos”, <strong>de</strong>ntre as/os <strong>de</strong>mais participantes <strong>de</strong>stesmovimentos.No movimento feminista as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lidar com a diversida<strong>de</strong>existente entre as mulheres (por exemplo as diferenças:raciais, étnicas, condições sociais, orientação sexual, geraçãoou culturais) e mesmo <strong>de</strong> ter uma visão mais ampla <strong>do</strong>s processosorganizativos, veio a reforçar a imagem da feminista comobranca, <strong>de</strong> classe média, intelectualizada. Sen<strong>do</strong> assim, as questõesraciais e étnicas são vistas como responsabilida<strong>de</strong> das mulheresnegras (AZEREDO, 1994).196


Antigas personagens, novas cenasNo Brasil, ao longo das últimas décadas, foram realiza<strong>do</strong>s 12Encontros Nacionais Feministas (ENF) 3 . Têm ocorri<strong>do</strong> mudançasquanto às participantes <strong>de</strong>stes eventos levan<strong>do</strong> a uma interferênciamais efetiva das mulheres <strong>do</strong>s movimentos sindical, popular e negro.Há controvérsias quanto ao crescimento e surgimento <strong>de</strong> novasatrizes sociais, pois isto recoloca o <strong>de</strong>bate entre ser ou não serfeminista, <strong>do</strong>s efeitos da popularização <strong>do</strong> feminismo e mesmo daincorporação das temáticas raciais e étnicas. (BORBA et alii, 1994)Esta mudança tem ocorri<strong>do</strong> também na América Latina. Segun<strong>do</strong>Sônia Alvarez (1994)“muitas mulheres militantes e feministas insistem hoje em que se temque organizar em torno <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> classe e raça, na medida em queestas norteiam o mo<strong>do</strong> como se manifesta a opressão <strong>de</strong> gênero nasvidas das mulheres das diversas classes e grupos étnicos/raciais”.Constata-se ainda que os“<strong>de</strong>bates i<strong>de</strong>ológicos estratégicos <strong>do</strong>s feminismos latino-americanoscontemporâneos têm gira<strong>do</strong> em torno <strong>de</strong> <strong>do</strong>is eixos centrais: a relaçãoentre feminismo e a luta revolucionária por justiça, e a relaçãoentre o que era um feminismo pre<strong>do</strong>minantemente <strong>de</strong> classe médiae os crescentes movimentos <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> base popular”.No movimento negro partiu-se da generalização entre os sexos.Assim sen<strong>do</strong>, as mulheres negras durante longos anos não se<strong>de</strong>stacavam como interlocutoras políticas da mesma forma que oshomens. As mulheres negras sempre estiveram presentes neste movimento,porém suas questões específicas foram secundarizadas.Chama atenção um <strong>de</strong>poimento <strong>do</strong> senhor Henrique Cunha,que pertenceu à Frente Negra Brasileira (FNB), nos anos 30/40. Ao serhomenagea<strong>do</strong> no seminário Gênero, Raça e Cidadania, promovi<strong>do</strong>3. O 12º Encontro Nacional Feminista — Gênero com Diversida<strong>de</strong> no País da Exclusão —realiza<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r (BA), <strong>de</strong> 28/10 a 01/11 <strong>de</strong> 1997, acentuou ainda mais o crescimentoda presença das mulheres negras. Participaram neste evento 700 mulheres <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o país,<strong>de</strong>ntre estas uma gran<strong>de</strong> parcela <strong>de</strong> negras. Na coor<strong>de</strong>nação, assumida por algumas entida<strong>de</strong>sda Bahia, <strong>de</strong>stacou-se o Fórum Estadual <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras.197


Matil<strong>de</strong> Ribeiropelo Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s da Mulher e Relações Sociais <strong>de</strong> Gênero/USP, em 1994, fez um caloroso discurso comparan<strong>do</strong> a organizaçãodas mulheres negras na FNB com o processo atual:“É muito emocionante estar diante <strong>de</strong> tantas mulherescombativas e participantes politicamente, pois, na FNB, enquantoos homens comandavam a política as mulheres faziam comidae cuidavam <strong>de</strong> crianças. Sua ativida<strong>de</strong> pública era organizar oBaile das Rosas Negras”.Diante <strong>de</strong>sta constatação <strong>de</strong> mudança foram feitas reflexões sobre arelação entre machismo e racismo.Sem dúvida esta situação alterou-se muito ao longo da história,<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às mulheres negras terem assumi<strong>do</strong> posturas mais propositivas.Percebe-se que no jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r existente no movimentonegro, não muito diferente <strong>de</strong> outros, a participação das mulherescom evidência é “negociada” a partir <strong>de</strong> interesses e força políticadas mesmas. O que contribui para a quebra da lógica <strong>de</strong> que as li<strong>de</strong>rançassão “naturalmente” masculinas.As mulheres negras, conscientes da importância <strong>de</strong> seu papelna história, buscaram <strong>de</strong>smascarar situações <strong>de</strong> conflito e exclusão.Uma ilustração interessante para esta busca é o título <strong>de</strong> um livronorte-americano: Todas as mulheres são brancas, to<strong>do</strong>s os negros sãohomens, mas muitas <strong>de</strong> nós somos valentes (SMITH e SCOTT, 1982).No que diz respeito à movimentação das mulheres negras,muitos foram os formatos. Porém, nas últimas décadas, quan<strong>do</strong> seexpressam como um setor organiza<strong>do</strong> em âmbito nacional, parte-seda necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar as diferentes formas da experiência <strong>de</strong> ser:negra, mulher, pertencente a uma classe social. Segun<strong>do</strong> Luiza Bairros(1995) estas consi<strong>de</strong>rações tornam“supérfluas as discussões a respeito <strong>de</strong> qual seria a priorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>movimento <strong>de</strong> mulheres negras — luta contra o sexismo ou racismo?—, já que as duas dimensões não po<strong>de</strong>m ser separadas.Do ponto <strong>de</strong> vista da reflexão e da ação política, uma não existesem a outra”.198


Antigas personagens, novas cenasCom estas reflexões, as mulheres negras não só contribuírampara a conquista <strong>de</strong> maior visibilida<strong>de</strong> como sujeitos políticos, peranteos movimentos sociais (em especial o feminista e o negro) e asocieda<strong>de</strong>, como trilharam um caminho próprio por meio da construção<strong>do</strong> movimento autônomo.No Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1988 — ano <strong>de</strong> realização <strong>do</strong> 1º EncontroNacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras (ENMN) 4 —, estruturam-se grupos eentida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mulheres negras e Fóruns Estaduais <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negrasem quase to<strong>do</strong> o país. Em 1997, parte-se para a organização <strong>do</strong>3º ENMN, que <strong>de</strong>verá ocorrer até o ano 2000, com a perspectiva <strong>de</strong>sistematizar as ações, a partir da experiência acumulada, visan<strong>do</strong> opróximo milênio.A partir <strong>do</strong> acúmulo <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates, as mulheres negras <strong>de</strong>finirama forma <strong>de</strong> sua organização:“O movimento vem se constituin<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> cruzamentodas questões <strong>de</strong> gênero, raça e classe social. Deve ser autônomo,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, composto por mulheres <strong>de</strong> diferentes setores (porexemplo, originárias <strong>de</strong> movimentos como negro, sindical, popular,partidário). Deve estar articula<strong>do</strong> prioritariamente com o movimentonegro e feminista, na medida em que estes incorporem eapóiem a luta <strong>de</strong> mulheres negras, manten<strong>do</strong> sua especificida<strong>de</strong>”(1º SEMINÁRIO NACIONAL..., 1993).4. Cronologia e da<strong>do</strong>s das ativida<strong>de</strong>s nacionais:1988 — 1º Encontro Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Valença/RJ(450 participantes, 17 Esta<strong>do</strong>s)1991 — 2º Encontro Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Salva<strong>do</strong>r/BA(430 participantes, 17 Esta<strong>do</strong>s)1993 — 1º Seminário Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Atibaia/SP(48 participantes, 9 Esta<strong>do</strong>s)1994 — Seminário Nacional Políticas Públicas e Direitos Reprodutivos das <strong>Mulheres</strong> NegrasItapecerica da Serra/SP (55 participantes, 14 Esta<strong>do</strong>s)1994 — 2º Seminário Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Salva<strong>do</strong>r/BA(67 participantes, 12 Esta<strong>do</strong>s)1997 — Reunião Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Campinas/SP(58 participantes, 13 Esta<strong>do</strong>s)1997 — Reunião Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras - Belo Horizonte/MG(69 participantes, 11 Esta<strong>do</strong>s)199


Matil<strong>de</strong> RibeiroCom esta perspectiva, as mulheres negras tiveram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>papel no processo da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher —realizada em Pequim em 1995 —, quan<strong>do</strong> foram colhi<strong>do</strong>s os frutos<strong>do</strong>s trabalhos realiza<strong>do</strong>s nos últimos anos (RIBEIRO, 1995). Esta intervençãopossibilitou ampliar a discussão sobre a questão racial eétnica em âmbito mundial. Segun<strong>do</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> feministas brasileiras(CORRÊA, 1996), “se quiséssemos resumir a 4ª ConferênciaMundial sobre a Mulher em uma palavra, ela seria vitória; as mulheresorganizadas no mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> driblaram as dificulda<strong>de</strong>s colocadaspela censura <strong>do</strong> governo chinês, a ineficiência <strong>do</strong> secretaria<strong>do</strong> e aomissão da ONU”. Para além da plataforma <strong>de</strong> ação, a Conferênciaproduziu a Declaração <strong>de</strong> Pequim, um <strong>do</strong>cumento que diagnosticae prevê medidas <strong>de</strong> alteração das condições das mulheres, reafirman<strong>do</strong>compromissos em prol <strong>de</strong> seus direitos humanos.O uso <strong>do</strong>s termos raça e etnia gerou longa e dura controvérsia, naqual o Brasil e os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se manifestaram a favor da mençãoexplícita <strong>de</strong> ambos para fins <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s estatísticos que pu<strong>de</strong>ssem gerar<strong>do</strong>cumentação sobre a injustiça social que se abate sobre a populaçãonão-branca, discriminada pelo racismo. A <strong>de</strong>legação oficial brasileirateve um importante papel para impulsionar um esforço <strong>de</strong> lobby juntoà União Européia e aos países africanos, para a garantia da incorporação<strong>de</strong>stes termos no <strong>do</strong>cumento da ONU. Esta vitória possibilitou acor<strong>do</strong>sentre as mulheres <strong>de</strong> várias regiões, entre feministas brancas e negras,entre o movimento feminista e representações diplomáticas <strong>do</strong>spaíses. Segun<strong>do</strong> Nilza Silva (1995), a 4ª Conferência da ONU <strong>de</strong>monstroua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diálogo e solidarieda<strong>de</strong> entre as mulheres quevivem diferentes situações sociais e raciais.Ao retomar este processo não po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar os fatos apartir da somatória ou linearida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vemos reafirmar o acúmulo<strong>de</strong> muitas formulações e diálogos. As mulheres negras buscam interlocuçãoentre si e com a socieda<strong>de</strong>. Sabemos o quanto é difícil amobilização e manutenção das estruturas locais e das estruturas nacionaise internacionais. Ressalte-se, no entanto, a importância dasentida<strong>de</strong>s, re<strong>de</strong>s, fóruns específicos e da relação continuada com os<strong>de</strong>mais movimentos.200


Antigas personagens, novas cenasDiálogos com oParti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resO Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res vem constituin<strong>do</strong>-se como campopossível <strong>de</strong> atuação conjunta entre os diversos setores da socieda<strong>de</strong>,fazen<strong>do</strong> jus a suas linhas programáticas e prática política. Emborahaja distâncias entre a elaboração e a concretização das ações, noque diz respeito à questão racial, po<strong>de</strong>mos verificar em um balançorecente (300 ANOS..., 1996):“Em que pese o <strong>PT</strong> ter surgi<strong>do</strong> simultaneamente à retomada <strong>do</strong> movimentonegro organiza<strong>do</strong>, a discussão da questão racial no interior <strong>do</strong>parti<strong>do</strong> não alcançou a dimensão necessária. O <strong>PT</strong>, na sua gênese, aparecerefletin<strong>do</strong> o setor sindical, secundarizan<strong>do</strong> ou omitin<strong>do</strong> outrosaspectos estratégicos para a compreensão da realida<strong>de</strong> brasileira, nãoincorporan<strong>do</strong> a dimensão racial como fundamental para a construção<strong>do</strong> projeto político <strong>de</strong> transformação da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> país”.Com alguma similarida<strong>de</strong> verifica-se também as dificulda<strong>de</strong>spara incorporação das questões <strong>de</strong> gênero 5 , embora, como já cita<strong>do</strong>anteriormente, com menos barreiras <strong>do</strong> que as raciais.Uma das críticas apresentadas ao <strong>PT</strong> relaciona-se ao fato <strong>de</strong>referir-se aos negros e mulheres pautan<strong>do</strong>-se pelo conceito <strong>de</strong> minorias.Esta marca não condiz com a realida<strong>de</strong>, pois as mulheres somam51% e os negros 44% da população brasileira. Por outro la<strong>do</strong>,se são minorias políticas isto não é um processo “natural” e, porconseqüência, <strong>de</strong>ve ser objeto <strong>de</strong> ação partidária e política. Ao reafirmaro lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> minoria, “acaba omitin<strong>do</strong> uma leitura mais críticadas relações raciais e o nosso parti<strong>do</strong>, ao incorporá-lo no contextohistórico <strong>do</strong> pensar e agir na realida<strong>de</strong> brasileira, buscou atualizaro enfoque sobre a questão racial na forma sem mexer no conteú<strong>do</strong>”(300 ANOS..., 1996).5. Reflexões quanto ao <strong>de</strong>senvolvimento das políticas voltadas às mulheres e relações <strong>de</strong>gênero constam <strong>de</strong>sta mesma publicação e também em materiais elabora<strong>do</strong>s pelas Secretarias<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong> em âmbito nacional, estadual e municipal.201


Matil<strong>de</strong> RibeiroNeste senti<strong>do</strong>, é fundamental a reorientação <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate e daação partidária, instrumentalizan<strong>do</strong> e munician<strong>do</strong> a militância paraa mobilização e a construção <strong>de</strong> políticas globais que levem em contaa questão racial e <strong>de</strong> gênero.Os negros e negras organizaram-se ao longo <strong>do</strong>s anos buscan<strong>do</strong>contribuir para a reversão das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s raciais. Assim sen<strong>do</strong>,alguns resulta<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m hoje ser objeto <strong>de</strong> reflexão, ten<strong>do</strong> comoexemplo alguns eixos <strong>de</strong> atuação:Estruturação da Secretaria Nacional <strong>de</strong> Combate ao Racismo — SNCRO 3º Encontro Nacional <strong>de</strong> Negros e Negras Petistas, realiza<strong>do</strong> emBelo Horizonte em junho <strong>de</strong> 1995, encaminhou ao 10º EncontroNacional <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> a proposta <strong>de</strong> criação da Secretaria Nacional<strong>de</strong> Combate ao Racismo (SNCR), cuja aprovação consta da Carta <strong>de</strong>Guarapari, <strong>do</strong>cumento que sela o compromisso da estruturação <strong>de</strong>steorganismo. Antes da existência da SNCR várias iniciativas ocorreramem âmbito estadual e municipal — comissões e/ou grupos <strong>de</strong>trabalho. Porém, os trabalhos foram <strong>de</strong>scontínuos e incidiram poucona <strong>de</strong>finição da “cara” <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. O acúmulo <strong>de</strong>ssas várias iniciativascontribuiu para o formato da organização atual.Os objetivos estratégicos da SNCR são: elaborar políticas públicasa serem implementadas nas administrações petistas; elaborarpropostas para ações nos legislativos; contribuir na formação política<strong>do</strong>s filia<strong>do</strong>s e militantes; ocupar as direções em to<strong>do</strong>s os níveis;indicar candidatos negros para eleições aos diversos cargos <strong>de</strong> representação.É importante registrar que a SNCR estruturou-se garantin<strong>do</strong>a presença <strong>de</strong> mulheres e homens. No primeiro mandato (1995-97) possuía nove integrantes — cinco homens e quatro mulheres, nosegun<strong>do</strong> (1997-99) possui seis homens e três mulheres.Ao longo <strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> existência a SNCR encaminhou diversasintervenções, entre elas a participação na Marcha à Brasília ena Campanha pelo Voto Racial — Faça a Coisa Certa. O alcance daSNCR tem si<strong>do</strong> pequeno, tanto <strong>de</strong>ntro como fora <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, porém,é um órgão estratégico no encaminhamento das ações partidáriase globais. A efetiva implementação <strong>do</strong>s objetivos só será possívelmediante a constituição <strong>de</strong> espaços que incorporem a militância202


Antigas personagens, novas cenasnegra em torno <strong>de</strong> alguns acor<strong>do</strong>s e objetivos comuns, e que integre<strong>de</strong> fato as estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.Ação na administração públicaNas administrações petistas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1989 têm ocorri<strong>do</strong> experiências<strong>de</strong> estruturação <strong>de</strong> organismos volta<strong>do</strong>s à questão racial. Foram <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>sprogramas <strong>de</strong> educação para a igualda<strong>de</strong>; apoio à lutacontra o racismo; atendimento a queixas <strong>de</strong> discriminação e violênciaracial; e introdução <strong>do</strong> quesito cor nos formulários <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Destacam-seos governos <strong>de</strong> Luiza Erundina em São Paulo (1989-92) ePatrus Ananias em Belo Horizonte (1993-96). Experiências <strong>do</strong> mesmotipo são <strong>de</strong>senvolvidas nos governos atuais, a exemplo <strong>de</strong> PortoAlegre, que possui a Assessoria sobre a Questão Racial, ligada àCoor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Direitos Humanos e Cidadania.Estes trabalhos, apesar <strong>de</strong> exemplares, têm si<strong>do</strong> pouco eficazes.Existem emperramentos para a concretização das propostas<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s próprios exercícios das administraçõespúblicas e também em relação às mudanças <strong>de</strong> governo.Uma outra dificulda<strong>de</strong> encontra-se no isolamento <strong>do</strong>s organismosespecíficos diante das ações globais <strong>do</strong> governo.Embora tenhamos poucos registros <strong>de</strong> avaliações e balanços<strong>de</strong>sses processos, verifica-se que o “mo<strong>do</strong> petista <strong>de</strong> governar” necessitaser recicla<strong>do</strong>. Assim, é necessária não apenas uma avaliação,mas também a elaboração <strong>de</strong> novas diretrizes para o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> políticas públicas voltadas às mulheres e aos negros.Formação políticaNo campo da formação política, em âmbito partidário e sindical,mesmo tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> projetos alternativos para a socieda<strong>de</strong> brasileira,expressou-se durante muito tempo a dicotomia entre o geral eo específico, privilegian<strong>do</strong>-se as análises economicistas. É recente ainclusão <strong>de</strong> reflexões a partir das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> raça e gênero.Neste senti<strong>do</strong>, uma das priorida<strong>de</strong>s da SNCR foi o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> ações voltadas à formação política em âmbito nacional.Buscou-se a parceria com outras secretarias <strong>do</strong> <strong>PT</strong> — Formação Política,<strong>Mulheres</strong>, Assuntos Institucionais, Juventu<strong>de</strong>; assim como203


Matil<strong>de</strong> Ribeirocom outras instituições 6 , em especial o Instituto Cajamar (INCA), oCentro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s das Relações <strong>de</strong> Trabalho e Desigualda<strong>de</strong>s(CEERT) e a Comissão Nacional Anti-Racista da CUT. No perío<strong>do</strong><strong>de</strong> 1996 a 1998 foram realiza<strong>do</strong>s três seminários nacionais: o SeminárioGênero, Raça e Trabalho, <strong>de</strong> 25 a 28 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1996 (a SNCRintegrou a realização <strong>de</strong>sta ativida<strong>de</strong> em conjunto com o Coletivo<strong>de</strong> Gênero <strong>do</strong> Instituto Cajamar); o Seminário Nacional sobre RelaçõesRaciais e Políticas Públicas, <strong>de</strong> 9 a 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1997; e oSeminário Nacional da Juventu<strong>de</strong> Negra Petista, <strong>de</strong> 23 a 25 <strong>de</strong> janeiro<strong>de</strong> 1998.Estas ativida<strong>de</strong>s contribuíram para a construção <strong>de</strong> aliançascom outras instituições e para o enriquecimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates. Possibilitaramabordagens <strong>de</strong> dimensões pouco trabalhadas conjuntamente,explicitaram alguns elementos comuns e diferentes entre astemáticas gênero, raça e classe social no campo das políticas públicas.Promoveram reflexões sobre ações afirmativas para mulheres enegros, e a informação sobre a aplicabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas nas diferentesesferas da socieda<strong>de</strong> (empresas, Esta<strong>do</strong>, movimentos sociais, entreoutros). Estimularam, ainda, a participação <strong>de</strong> jovens enquanto agentespolíticos.Amplian<strong>do</strong> os referenciaisNa perspectiva <strong>de</strong> aprofundar a reflexão sobre os nós críticos datrajetória da questão racial no interior <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rarainda outros elementos, como: a presença <strong>do</strong>s negros no parlamento,a inclusão da questão racial nos processos eleitorais e pro-6. Os programas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong>stas instituições integram as dimensões <strong>de</strong> gênero, raça eclasse social:INCA — <strong>de</strong>senvolveu em 1990 o curso Concepção e Prática <strong>do</strong> Movimento Negro; <strong>de</strong>pois,por meio <strong>do</strong> programa Relações <strong>de</strong> Gênero, buscou aprofundar o conhecimento sobre ainterlocução das temáticas acima, mediante seminários específicos e <strong>de</strong> inclusão da temáticano conjunto das ativida<strong>de</strong>s.CEERT — por meio <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Formação Sindical, chamou a atenção para a importânciada luta pela implementação da Convenção 111 da Organização Internacional <strong>do</strong> Trabalho(OIT). Assessora o movimento sindical e outras instituições <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho.Comissão Nacional Anti-Racista da CUT — contribui para o aprofundamento da questãoracial no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, estimulan<strong>do</strong> a CUT e os sindicatos a implementar resoluções eações que alterem a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e da trabalha<strong>do</strong>ra negros.204


Antigas personagens, novas cenasgramas <strong>de</strong> governo. A questão a ser elaborada é: qual a conseqüência<strong>de</strong>sta participação quanto a absorção da questão racial comoelemento estruturante das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais?E o que a mulher negra tem a ver com tu<strong>do</strong> isto? É óbvio queda<strong>do</strong> o processo organizativo nas últimas décadas, estas reafirmaram-setambém como agentes políticas no interior <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se que a relação entre machismo e racismo tambémfaz parte das relações partidárias, é importante que haja umolhar mais atento aos interesses e necessida<strong>de</strong>s específicos das mulheresnegras.Uma das formas <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong>ste mosaico <strong>de</strong> questões é agarantia <strong>de</strong> uma maior aproximação — como via <strong>de</strong> “mão múltipla”,entre a produção e a formulação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res,<strong>do</strong> movimento negro, <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres negras, <strong>do</strong>movimento feminista, entre outros.Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> este conjunto <strong>de</strong> reflexões e a intensificação dasações po<strong>de</strong>remos reverter os lega<strong>do</strong>s da idéia e da prática da branquitu<strong>de</strong>e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> potencializar a participação <strong>do</strong>snegros e negras enquanto sujeitos políticos.Realida<strong>de</strong> dura, utopia contínuaSão muitos os conflitos e embates trava<strong>do</strong>s pelas mulheresnegras junto aos movimentos sociais, ten<strong>do</strong> como eixo central umbasta à invisibilida<strong>de</strong>. To<strong>do</strong> este processo leva à quebra <strong>de</strong> mitoscomo o <strong>de</strong> que feminismo é coisa <strong>de</strong> mulher branca; questão racial écoisa <strong>de</strong> negro; e <strong>de</strong> que política é coisa <strong>de</strong> homem branco. Estasmarcas, presentes no imaginário social, não fazem nenhum senti<strong>do</strong>quan<strong>do</strong> nos <strong>de</strong>bruçamos aprofundadamente sobre a análise <strong>do</strong>s processospolíticos.Os <strong>de</strong>safios advin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s processos da crise econômica e políticaprovocaram mudanças — <strong>de</strong> posturas e <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s — no interior<strong>do</strong>s movimentos sociais. To<strong>do</strong>s os setores organiza<strong>do</strong>s têm si<strong>do</strong>chama<strong>do</strong>s a dar respostas mais unificadas em busca da garantia <strong>do</strong>sdireitos sociais. Impõe-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma estreita relação dasocieda<strong>de</strong> com o Esta<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> o encaminhamento <strong>de</strong> uma ampla205


Matil<strong>de</strong> Ribeiroagenda: o enfrentamento da diversida<strong>de</strong>, a construção da igualda<strong>de</strong><strong>de</strong> tratamento e oportunida<strong>de</strong>s, o respeito aos direitos humanos.A perspectiva é <strong>de</strong> contribuir para a alteração da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>exclusão, realimentan<strong>do</strong> a utopia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> caibamostodas e to<strong>do</strong>s. As mulheres negras, como antigas personagens nocenário político brasileiro, têm si<strong>do</strong>, <strong>de</strong> fato, propositivas na construção<strong>de</strong> novas cenas.Bibliografia1º SEMINÁRIO Nacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Negras. 1993. Relatório Narrativo eFinanceiro, São Paulo, Comissão Organiza<strong>do</strong>ra.300 ANOS <strong>de</strong> Zumbi e Perspectivas 96. 1996. Revista Grupo <strong>de</strong> TrabalhoEleições 96, São Paulo, Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, 4º Encontro Nacional<strong>de</strong> Negros e Negras <strong>do</strong> <strong>PT</strong>.ALVAREZ, Sônia et alii. 1994. Feministas na América Latina: <strong>de</strong> Bogotá aSan Bernar<strong>do</strong>. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, vol. 2, nº 2.AZEREDO, Sandra. 1994. Teorizan<strong>do</strong> sobre gênero e relações raciais. RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, tomo 5,número especial, 2º sem., p. 203/16.BAIRROS, Luiza. 1995. Nossos feminismos revisita<strong>do</strong>s. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas,Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, vol. 3, nº 2, p. 458/63.BARSTED, Leila Linhares. 1994. Em busca <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>. Mulher epolíticas públicas no Brasil — 1983-1993. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas,Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, tomo 5, número especial, 2º sem.BENTO, Maria Aparecida Silva. 1996. <strong>Mulheres</strong> negras e branquitu<strong>de</strong>. Façaa coisa certa! Teoria&Debate, nº 31, encarte especial, São Paulo, SecretariaNacional <strong>de</strong> Combate ao Racismo/Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res,DR/SP.BORBA, Ângela et alii. 1994. Feminismo no Brasil hoje. Revista Estu<strong>do</strong>sFeministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, vol. 2, nº 2.CORRÊA, Sônia et alii. 1996. Vitória sobre a incompetência. Boletim ViverDiferentemente — Beijing’95, número <strong>de</strong> balanço, Rio <strong>de</strong> Janeiro,IBASE.206


Antigas personagens, novas cenasDOARÉ, Hélène Le. 1994. Do po<strong>de</strong>r político e poético. Esquema <strong>de</strong> umraciocínio. Revista Estu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, tomo 5, número especial, 2º sem., p. 65-75.DOCUMENTO elabora<strong>do</strong> pelas mulheres negras no 4º Encontro FeministaLatino-americano e <strong>do</strong> Caribe. 1990. San Bernar<strong>do</strong>/Argentina.FRANKENBERG, Ruth. 1995. White women, race matters: the socialconstruction of whiteness. Minneapolis University of Minnesota Press.GIACOMINI, Sonia Maria. 1988. Mulher e escrava. Petrópolis, Vozes.GONZALES, Lélia. 1980. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rio <strong>de</strong>Janeiro. Mimeogr.OLIVEIRA, Fátima. 1995. A mulher negra na década: a busca da autonomia.Ca<strong>de</strong>rno Geledés, São Paulo, nº 5.PARTIDO DOS TRABALHADORES. Diretório Regional/SP. 1996. Faça a coisacerta! O combate ao racismo em movimento. Teoria&Debate, nº 31,encarte especial, São Paulo, Secretaria Nacional <strong>de</strong> Combate ao Racismo.PIZA, Edith. 1996. Branquitu<strong>de</strong>: base para um conceito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Trabalhoapresenta<strong>do</strong> na Reunião Anual da ABRAPSO, 3 a 6 <strong>de</strong> julho, PUC/SP.Reunião Anual e Mesa sobre Relações Raciais, NEIMB/USP, 5/7/96.RIBEIRO, Matil<strong>de</strong>. 1995. <strong>Mulheres</strong> Negras <strong>de</strong> Bertioga a Beijing. RevistaEstu<strong>do</strong>s Feministas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, vol. 3, nº 2,p. 446/57.SADER, E<strong>de</strong>r. 1988. Quan<strong>do</strong> novos personagens entraram em cena: Experiênciase lutas <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res da Gran<strong>de</strong> São Paulo — 1970-1980. Rio<strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra.SILVA, Nilza Iraci. 1995. Boletim Fêmea, CFEMEA, Brasília, nº 32.SMITH, B. Hullg e SCOTT, P. B. 1982. All the women are white. All theblacks are men, but some of us are brave. University City of NewYork, Feminist Press.207


<strong>Mulheres</strong> na CUT<strong>Mulheres</strong> na CUT:um novo olharsobre o sindicalismoMaria Berenice GodinhoDelga<strong>do</strong> (Didice)Este artigo trata da organização das mulheres na Central Única<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (CUT), central sindical criada em 1983, que setornou a mais representativa <strong>do</strong> Brasil. Em 1997, a Central contavacom 2.570 entida<strong>de</strong>s filiadas, que reúnem cerca <strong>de</strong> 6 milhões <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>rese trabalha<strong>do</strong>ras, perfazen<strong>do</strong> 30,99% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> 19,4milhões na base representada (da<strong>do</strong>s da Secretaria Geral Nacionalda CUT). Faz-se aqui uma reflexão sobre as principais contribuiçõesque a organização das trabalha<strong>do</strong>ras trouxe para a Central. Não éuma reconstrução histórica. As referências à história aparecem quan<strong>do</strong>necessárias à compreensão das mudanças observadas ao longo daexistência da CUT. As contribuições mais significativas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com a interpretação aqui a<strong>do</strong>tada, são sintetizadas em quatro pontos:o diálogo com o feminismo; a ampliação <strong>do</strong> olhar da CUT sobre asrelações sociais; a introdução <strong>de</strong> novas práticas no ambiente sindical;a conquista <strong>de</strong> maior representativida<strong>de</strong> para a Central.O esforço <strong>de</strong> sistematização e análise <strong>de</strong>sse processo origina-seem uma profunda vinculação pessoal e política com a organizaçãodas mulheres na CUT. Assim, se é impossível ao pesquisa<strong>do</strong>r(a) “seMaria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong> (Didice)Filiada ao <strong>PT</strong>, foi presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>sAssistentes Sociais <strong>de</strong> São Paulo e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>rada Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>rada CUT. Integrante da ELAS –Elisabeth Lobo Assessoria – Trabalho e PolíticasPúblicas e <strong>do</strong> CFEMEA – Centro Feminista<strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Assessoria.209


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>ignorar como parte da situação <strong>de</strong> observação e reconhecimento”(HEINRICHS , 1977), nesse caso, os laços especialmente fortes são <strong>de</strong>cisivosna conformação da reflexão aqui apresentada 1 .Em busca <strong>de</strong> representação sindicalDes<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970, as trabalha<strong>do</strong>ras brasileiras ampliaram<strong>de</strong> maneira expressiva sua participação nos sindicatos: entre 1970 e 1978,a sindicalização feminina cresceu 176%, enquanto a masculina aumentou87% (GITHAY et alii, 1982). Esse fenômeno <strong>de</strong>correu <strong>de</strong> alguns fatoresprincipais. Um <strong>de</strong>les foi o enorme crescimento da presença das mulheresno merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, acompanhan<strong>do</strong> uma tendência mundial.A expansão da base trabalha<strong>do</strong>ra feminina chamou a atenção <strong>do</strong>s sindicatosurbanos, fazen<strong>do</strong> com que muitos <strong>de</strong>les <strong>de</strong>senvolvessem ativida<strong>de</strong>sdirigidas às trabalha<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> sua área. Outro fator foi a eclosão <strong>de</strong>um movimento sindical dinâmico e vigoroso, no final <strong>do</strong>s anos 70, que<strong>de</strong>spertou maior interesse pelo sindicato como espaço <strong>de</strong> representaçãoe <strong>de</strong> luta por melhorias salariais e das condições <strong>de</strong> trabalho. Finalmente,a emergência <strong>do</strong> movimento feminista e <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> mulheresdiversifica<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 70, contribuiu para estimularo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> participação em uma parcela da população feminina,inclusive trabalha<strong>do</strong>ras assalariadas.No caso das trabalha<strong>do</strong>ras rurais, o processo foi diferente. Impedidaspelas direções sindicais <strong>de</strong> se associar — quem o fazia era apenas ochefe da família —, as mulheres <strong>do</strong> campo, entre os anos 70 e 80, reuniam-sesob o abrigo <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s da Igreja católica para troca <strong>de</strong> experiênciassobre sua condição <strong>de</strong> mulheres. Nesse processo foram perceben<strong>do</strong>os sindicatos como instrumento importante <strong>de</strong> luta. Tiveram <strong>de</strong>lutar pelo direito <strong>de</strong> sindicalização, participaram <strong>de</strong> oposições sindicaise da fundação <strong>de</strong> vários sindicatos rurais no Sul e Nor<strong>de</strong>ste <strong>do</strong> país 2 .A organização das mulheres na CUT é fruto <strong>de</strong>ssas influências.Começou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação da Central, por intermédio <strong>de</strong> iniciativas1. Uma parte das idéias contidas nesse artigo está <strong>de</strong>senvolvida no trabalho A organizaçãodas mulheres na Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. A Comissão Nacional sobre a MulherTrabalha<strong>do</strong>ra, dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> apresentada à PUC-SP, 1996.2. A participação sindical das mulheres à época é analisada por SOUZA-LOBO (1991) eCAPPELLIN (1989).210


<strong>Mulheres</strong> na CUTpontuais em sindicatos filia<strong>do</strong>s e em algumas CUTs estaduais.Gradativamente, as sindicalistas mobilizadas em torno <strong>de</strong> tais experiênciasteceram uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcance nacional: articularam-se comogrupo para reivindicar a construção <strong>de</strong> uma política unificada daCentral relacionada às mulheres trabalha<strong>do</strong>ras. No primeiro semestre<strong>de</strong> 1986, sindicalistas urbanas e rurais <strong>de</strong> diversas regiões <strong>do</strong> paísreuniram-se para <strong>de</strong>senhar a Comissão Nacional sobre a MulherTrabalha<strong>do</strong>ra (CNMT) e as comissões estaduais. Em seu 2° CongressoNacional, em agosto <strong>do</strong> mesmo ano, a CUT reconhecia a existênciada discriminação das mulheres na socieda<strong>de</strong>, assumia o compromisso<strong>de</strong> lutar por sua eliminação e aprovava a proposta <strong>de</strong> organização<strong>de</strong>sejada pelas sindicalistas. Mais tar<strong>de</strong>, as trabalha<strong>do</strong>ras rurais,além <strong>de</strong> estarem integradas à CNMT, criaram a Comissão Nacionalsobre a Questão da Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra Rural, junto aoDepartamento Nacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res Rurais, por meio da qualcoor<strong>de</strong>naram as reivindicações particulares das mulheres <strong>do</strong> campo(reconhecimento como trabalha<strong>do</strong>ras, salário-maternida<strong>de</strong>, porexemplo) e <strong>de</strong>senvolveram um importante trabalho <strong>de</strong> sensibilização<strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> sindicalistas rurais quanto às relações <strong>de</strong> gênero.Duas matrizes principais contribuíram para a <strong>de</strong>limitação <strong>do</strong>perfil adquiri<strong>do</strong> pela organização das mulheres na CUT: o caráter daCentral como entida<strong>de</strong> sindical e o feminismo.A Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res nasceu <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> setor<strong>do</strong> movimento sindical que se tornou conheci<strong>do</strong> como novosindicalismo. Surgida no final <strong>do</strong>s anos 70, esta vertente foi formadapor sindicatos e oposições sindicais que contestavam o controle <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> sobre o sindicalismo e <strong>de</strong>safiavam o empresaria<strong>do</strong> e a políticasalarial <strong>do</strong> governo militar por meio <strong>de</strong> mobilizações <strong>de</strong> massa.O novo sindicalismo tornou-se um <strong>do</strong>s personagens mais importantesda luta social e política que se travava no Brasil pelo fim daditadura militar, por <strong>de</strong>mocracia, representação política para asocieda<strong>de</strong> civil, direitos e cidadania. Junto com os movimentos populares— os novos movimentos sociais, entre eles o <strong>de</strong> mulheres —,compunha o que havia <strong>de</strong> mais progressista, capaz <strong>de</strong> transformar opanorama nacional. A criação da CUT, em 1983, trouxe o vigorpolítico e os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia então reivindica<strong>do</strong>s.211


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>No campo partidário, a fundação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res,em 1980, expressou o mesmo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> organização e representação<strong>do</strong>s interesses <strong>de</strong> segmentos da população alija<strong>do</strong>s social e politicamente,que se tornavam sujeitos e afirmavam sua cidadania. Este é olugar político em que se situavam as mulheres da CUT, ao reivindicareme construírem sua organização.A aproximação das sindicalistas com o feminismo começou nomesmo perío<strong>do</strong>. Ressalvan<strong>do</strong>-se as diferenças e tensões entre cada setorque se organizava na socieda<strong>de</strong> brasileira, criou-se na passagem das décadas<strong>de</strong> 1970 para 1980 um campo comum <strong>de</strong> luta. Os movimentospopulares apoiavam as greves operárias e os sindicatos combativos (expressãoutilizada para referir-se aos que se alinhavam com o novosindicalismo) davam suporte às reivindicações <strong>de</strong> bairros. Militantesfeministas se aproximavam <strong>do</strong>s sindicatos, buscan<strong>do</strong> as mulheres trabalha<strong>do</strong>ras,e chegavam à periferia das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>bater ocotidiano das <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa. Estas, sob orientação <strong>de</strong> setores da Igrejacatólica, lutavam por água, creche e outros serviços. Nesse mosaico,começou a brotar o relacionamento entre parcela das militantes feministase parcela das sindicalistas que se tornavam sensíveis às lutas dasmulheres. Elas estavam em movimentos <strong>de</strong> naturezas diversas, mas sei<strong>de</strong>ntificavam na busca <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e direitos para as mulheres.No âmbito partidário, a criação <strong>do</strong> <strong>PT</strong> atraiu muitas militantesfeministas, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>an<strong>do</strong> a organização das mulheres nesse parti<strong>do</strong><strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mesmo campo político em que se situaria, em 1983,a Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res.Des<strong>de</strong> que promoveram as primeiras iniciativas <strong>de</strong> organizaçãoem sindicatos filia<strong>do</strong>s e instâncias da CUT, as sindicalistas contaramcom o apoio <strong>de</strong> mulheres que participavam da construção <strong>do</strong>feminismo contemporâneo no Brasil. Foi assim, por exemplo, nacriação da pioneira Secretaria da Mulher da CUT da Paraíba, em1985 — na qual as trabalha<strong>do</strong>ras rurais tiveram papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque —e da Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra, um ano <strong>de</strong>pois.Várias militantes <strong>do</strong> movimento autônomo <strong>de</strong> mulheres tornaram-seinterlocutoras ao longo <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> organização dastrabalha<strong>do</strong>ras na Central, facilitan<strong>do</strong> o contato das sindicalistas urbanase rurais com o i<strong>de</strong>ário feminista.212


<strong>Mulheres</strong> na CUTSindicalismo e feminismoA aproximação que se criou na CUT entre feminismo esindicalismo não é uma experiência generalizada. Em muitos outroscasos, no perío<strong>do</strong> contemporâneo, ocorreu, ao contrário, umestranhamento ou uma indiferença entre esses <strong>do</strong>is universos, com a<strong>de</strong>limitação rígida <strong>de</strong> fronteiras entre os interesses <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro.Para muitos sindicalistas — e provavelmente também para mulheressindicalistas distantes <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> organização das trabalha<strong>do</strong>ras—, assim <strong>de</strong>veria ter ocorri<strong>do</strong> na CUT. O contato com o movimentoautônomo <strong>de</strong> mulheres teria transforma<strong>do</strong> as militantes dasComissões <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> (nacional, estaduais, <strong>de</strong> sindicatos) em “muitofeministas”, juízo <strong>de</strong> conotação negativa emiti<strong>do</strong> por dirigentes emmomentos <strong>de</strong> tensão no relacionamento com as sindicalistas.O diálogo com o feminismo, no entanto, qualificou a organizaçãodas mulheres na Central, sob diversos pontos <strong>de</strong> vista.Contribuiu para que as sindicalistas vinculadas a esse processopercebessem a mulher em sua integralida<strong>de</strong>, como mulher trabalha<strong>do</strong>ra,superan<strong>do</strong> uma visão reduzida ao local <strong>de</strong> trabalho. O <strong>de</strong>bate e aprodução teórica feministas explicitaram as dimensões indissociáveisentre o local <strong>de</strong> trabalho e a casa, a profissão e a família, ten<strong>do</strong> comopano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> a divisão sexual <strong>do</strong> trabalho e as relações <strong>de</strong> gênero<strong>de</strong>siguais, que conformam lugares <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>s para homens e mulheresna socieda<strong>de</strong>. As reflexões que conduzem a essa nova concepção damulher trabalha<strong>do</strong>ra chegaram às militantes sindicais por meio <strong>de</strong> suaparticipação direta em eventos promovi<strong>do</strong>s pelo movimento autônomo<strong>de</strong> mulheres e pela interlocução com as feministas interessadas emapoiar o fortalecimento das mulheres no sindicalismo.A aproximação entre feminismo e sindicalismo foi importante,também, para que as militantes sindicais superassem a concepção<strong>de</strong> classe como referência exclusiva e suficiente para apreen<strong>de</strong>r asrelações sociais. Despertou-as para uma nova compreensão, sob aqual as relações <strong>de</strong> gênero e a <strong>do</strong>minação masculina/opressão dasmulheres <strong>de</strong>veriam ser integradas à análise da realida<strong>de</strong> social e à<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> ação da CUT. As sindicalistas introduziramum novo discurso na Central, que critica e problematiza o da uni-213


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>da<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe. A idéia <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>, na cultura sindical, ten<strong>de</strong> a ocultara heterogeneida<strong>de</strong> da classe trabalha<strong>do</strong>ra; e ao se ver a opressãodas mulheres como contradição secundária, vê-se na organização dastrabalha<strong>do</strong>ras um fator <strong>de</strong> divisão e fragmentação da luta política.Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e trabalha<strong>do</strong>ras rurais e, mais recentemente,<strong>do</strong>s negros e negras da CUT, as mulheres têm ti<strong>do</strong>, assim, umpapel importante na re<strong>de</strong>finição da imagem da classe trabalha<strong>do</strong>rapre<strong>do</strong>minante entre militantes e dirigentes.Outra marca trazida pelo diálogo com o feminismo foi a conformação<strong>de</strong> um olhar agu<strong>do</strong> que as sindicalistas foram capazes <strong>de</strong>dirigir às relações <strong>de</strong> gênero internas à CUT. A proposição <strong>de</strong> umacota mínima <strong>de</strong> participação feminina nas direções (a<strong>do</strong>tada na Central<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993) é a expressão mais radical <strong>de</strong>sse questionamento erevelou a disposição <strong>de</strong> se atuar para modificar as relações entrehomens e mulheres, inclusive nos espaços sagra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Outrasquestões trazidas à tona pelas mulheres, como o assédio sexual,também põem em xeque as relações <strong>de</strong> gênero no âmbito sindical.A problematização <strong>de</strong>stas na CUT e nos sindicatos é uma das principaisnovida<strong>de</strong>s da experiência <strong>de</strong> organização das mulheres, quefavorece a explicitação e o enfrentamento <strong>de</strong> algumas das contradiçõesque vigoram na vida sindical cotidiana e no relacionamentoentre militantes.A ampliação <strong>do</strong> olhar da CUTsobre as relações sociaisA presença das mulheres estimulou na CUT a apreensão maisampla das relações sociais. Ao contribuir para tornar pública a figurada “mulher trabalha<strong>do</strong>ra” e para a conquista <strong>de</strong> seu reconhecimentocomo sujeito político, a organização das mulheres arranhou,em alguma medida, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>r homem, branco, operário,pre<strong>do</strong>minante no imaginário <strong>do</strong> movimento sindical.Ao mesmo tempo, as discussões sobre o trabalho feminino,ao extrapolar o local <strong>de</strong> trabalho strictu sensu e incluir a casa e asrelações familiares, permitiram compreen<strong>de</strong>r melhor os tipos <strong>de</strong>trabalhos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s pelas mulheres, os problemas enfrenta<strong>do</strong>s214


<strong>Mulheres</strong> na CUTpor elas, a maneira como vivem e interpretam seu cotidiano, as expectativasem relação à profissão e à vida profissional.A temática da família e o <strong>de</strong>bate sobre as relações conflituosasentre vida profissional, vida pessoal/familiar e militância política —e as diferenças entre a experiência <strong>do</strong>s homens e das mulheres —foram introduzi<strong>do</strong>s por mulheres nos espaços sindical, partidário e<strong>de</strong> outros movimentos pelo simples fato <strong>de</strong> que são elas que enfrentamcontradições e conflitos mais profun<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> se inserem nomun<strong>do</strong> público. São conhecidas as dificulda<strong>de</strong>s que se colocam àparticipação feminina. Mas foram a reflexão e a pesquisa <strong>de</strong> cortefeminista que <strong>de</strong>svendaram e problematizaram tais barreiras, assimcomo <strong>de</strong>smistificaram o que prevalecia nas análises sobre o movimentooperário e sindical: a omissão a respeito da presença dasmulheres nas lutas políticas ou as interpretações <strong>do</strong> tipo “as mulheresnão se interessam por política”.As relações entre produção/reprodução, trabalho/família, família/políticacomo dimensões indissociáveis <strong>de</strong> um mesmo processo —trazidas à tona pelos estu<strong>do</strong>s feministas — não são ainda eixo <strong>de</strong> reflexãoplenamente incorpora<strong>do</strong> ao sindicalismo <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pela CUT.Estão presentes, certamente, para as sindicalistas responsáveis pelasComissões <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>batem as relações <strong>de</strong> gênero nomovimento sindical e pensam estratégias <strong>de</strong> atuação para ampliar a participaçãodas trabalha<strong>do</strong>ras. Não é por outro motivo que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criaçãoda Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra, a luta porcreche foi <strong>de</strong>finida como reivindicação — ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta — prioritária,entendida como condição básica para que as mulheres possam permanecerno merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e para que consigam maistempo, inclusive para participar no sindicato, <strong>de</strong> outro.Deriva <strong>de</strong>sse eixo <strong>de</strong> reflexão a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se construírempolíticas <strong>de</strong> ação que levem em conta a maneira diferenciada comohomens e mulheres são incorpora<strong>do</strong>s ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. A <strong>de</strong>mandadas sindicalistas, nesse caso, é para que o movimento sindicalassimile as relações <strong>de</strong> gênero como categoria <strong>de</strong> análise da realida<strong>de</strong>, ainformar as políticas traçadas para intervir no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Éum <strong>de</strong>safio ainda não venci<strong>do</strong>. As consi<strong>de</strong>rações sobre o trabalho femininoprosseguem como um apêndice quan<strong>do</strong> se aborda o trabalho, suas215


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>transformações e os <strong>de</strong>safios postos ao movimento sindical; é aindamais distante uma remo<strong>de</strong>lação <strong>do</strong>s parâmetros <strong>de</strong> análise para quecontenham o gênero. No entanto, a discussão foi introduzida na CUT.No campo da formação sindical obteve-se um avanço expressivo.Gradativamente se conseguiu sair das programações organizadasdiretamente pela Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>rae comissões estaduais para inserir as relações <strong>de</strong> gênero no roldas temáticas da política nacional <strong>de</strong> formação da Central. As escolassindicais da CUT, situadas em diferentes regiões <strong>do</strong> país, lentamentese aproximam <strong>de</strong>ssa discussão, com iniciativas ainda maispontuais que sistemáticas. A experiência mais consistente até agorafoi a <strong>do</strong> Instituto Cajamar (INCA), escola <strong>de</strong> formação sindical epolítica que não pertencia à CUT, mas mantinha uma programaçãosindical estreitamente vinculada à proposta da Central e atendia aopúblico <strong>de</strong>sta entida<strong>de</strong>. O INCA foi mais rapidamente sensível à insistênciadas sindicalistas e <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> outros movimentos parase incluir a questão da mulher. Des<strong>de</strong> 1990 trabalhou o tema, numprocesso que teve formas e intensida<strong>de</strong> diferentes a cada perío<strong>do</strong>,mas que foi amadurecen<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s anos. Infelizmente, foi interrompi<strong>do</strong>no final <strong>de</strong> 1996, numa <strong>de</strong> suas melhores fases, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à<strong>de</strong>sativação <strong>do</strong> Instituto. Contan<strong>do</strong> com o apoio <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>sque formavam o Coletivo <strong>de</strong> Gênero <strong>do</strong> Cajamar (INCA, SOF— Sempreviva Organização Feminista, CUT e mais recentementeElisabeth Lobo Assessoria — ELAS — e Fé Menina), a experiência atingiuum número significativo <strong>de</strong> pessoas, inclusive alguns homens, <strong>de</strong>to<strong>do</strong> o país e <strong>de</strong> diversos movimentos. Nos últimos anos, <strong>de</strong>senvolveuseo curso “Gênero e trabalho”, iniciativa bem-sucedida que teve participaçãoprincipalmente <strong>de</strong> militantes da CUT e entida<strong>de</strong>s filiadas.A existência da organização das mulheres com o perfil queadquiriu na CUT tem influencia<strong>do</strong> para que ocorram mudanças nacultura que vigora no movimento sindical. É o que expressam osaspectos aponta<strong>do</strong>s até aqui: mudanças <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> compreensãodas relações sociais. Mas certamente os exemplos que têm maior impactosão a cota mínima <strong>de</strong> participação feminina nas direções e o aborto.A discussão da cota na CUT durou <strong>do</strong>is anos e foi intensa,apaixonada e <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong> política. Tocou no tema das relações216


<strong>Mulheres</strong> na CUT<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, por isso <strong>de</strong>spertou o interesse (e a preocupação) <strong>de</strong> dirigentese militantes como nunca se havia consegui<strong>do</strong> com propostastrazidas pelas mulheres. Mobilizou tão intensamente os/as sindicalistasque quebrou a tradição das posições tomadas em bloco pelascorrentes sindicais que atuam na Central. Revelou, entre a militância,a presença <strong>de</strong> preconceitos e resistências à igualda<strong>de</strong> entre os sexos,<strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar o relacionamento entre homens emulheres, <strong>de</strong> outro. O <strong>de</strong>bate foi aberto em 1991, no 2° EncontroNacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra; prolongou-se até a 6ªPlenária Nacional da CUT, em 1993, na qual a maioria <strong>de</strong> <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>se <strong>de</strong>legadas aprovou a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> um mínimo <strong>de</strong> 30% e um máximo<strong>de</strong> 70% <strong>de</strong> cada sexo nas instâncias <strong>de</strong> direção da entida<strong>de</strong>. Em 1994,o 5° Congresso Nacional da CUT elegeu a primeira Executiva Nacionalcom esta nova composição.A discussão da cota foi, sem dúvida, estimulada pela experiência<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, cujo 1° Congresso, em1991, havia aprova<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong>ssa medida, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> umpioneiro <strong>de</strong>bate, igualmente significativo, introduzi<strong>do</strong> pela SecretariaNacional <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>.Quanto ao aborto, a CUT já tem posição oficial favorável à sualegalização e <strong>de</strong>scriminação no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o 4° Congresso Nacional,em 1991. Nesse caso a Central foi mais rápida e mais corajosa <strong>do</strong> que asoutras entida<strong>de</strong>s progressistas da socieda<strong>de</strong>, aceitan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> rompercom o conserva<strong>do</strong>rismo que cerca o tema <strong>do</strong> aborto no país.Com essas duas <strong>de</strong>cisões, as mulheres e os homens que compõema militância da CUT confirmaram que, em sua maioria, sãoabertos a propostas novas e polêmicas. Desejam uma Central emconstante mudança, disposta a rever suas posturas, a assumir posiçõesavançadas em relação aos assuntos em <strong>de</strong>bate. Se se po<strong>de</strong> questionara entida<strong>de</strong> quanto a várias <strong>de</strong>liberações e encaminhamentos por elatoma<strong>do</strong>s, não se po<strong>de</strong>, no entanto, negar-lhe a ousadia.Novas práticas no ambiente sindicalO novo sindicalismo inaugurou práticas inova<strong>do</strong>ras no movimentosindical, mas as mulheres, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, certamente foram217


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>ainda mais transgressoras. Há <strong>do</strong>is aspectos principais em que sepo<strong>de</strong> perceber novida<strong>de</strong>s introduzidas pelas trabalha<strong>do</strong>ras na CUT:nas formas <strong>de</strong> atuação e no relacionamento político.As ativida<strong>de</strong>s promovidas pelas instâncias <strong>de</strong> organização dasmulheres em várias instituições e movimentos <strong>de</strong> natureza políticatêm si<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira geral mais criativas, mais alegres e com maiorcarga <strong>de</strong> emoção <strong>do</strong> que as <strong>de</strong>mais. Opta-se por se trabalhar simultaneamenteas dimensões pessoal e política, por meio <strong>de</strong> oficinas, técnicas<strong>de</strong> relaxamento e animação, teatro, poesia e outros recursosmeto<strong>do</strong>lógicos que favorecem a expressão e a reflexão tanto pessoalquanto coletiva sobre o cotidiano, a militância, os <strong>de</strong>safios a vencer.As pessoas envolvidas se mobilizam mais intensamente em tornodas questões tratadas, seja num curso ou seminário, seja na comemoração<strong>de</strong> uma data importante para as mulheres. Mantém-se aserieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> compromisso político mas quebran<strong>do</strong> a sisu<strong>de</strong>z <strong>de</strong> queele quase sempre se reveste. Busca-se preservar a graça, a ironia, oprazer <strong>de</strong>ssa experiência. Assim tem si<strong>do</strong> também com as mulheresorganizadas na CUT, que trazem para o sindicalismo práticasvivenciadas junto ao movimento autônomo <strong>de</strong> mulheres, mas, principalmente,práticas que estão diretamente relacionadas à vida cotidianae à apreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que têm as trabalha<strong>do</strong>ras urbanas e asrurais. Há uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciativas com essa perspectivana trajetória das cutistas, realizadas em instâncias da CUT e entida<strong>de</strong>sfiliadas; promovidas por sindicalistas <strong>do</strong> campo e da cida<strong>de</strong>, tantoseparadamente, em suas realida<strong>de</strong>s específicas, como em momentosconjuntos. Mas não se trata <strong>de</strong> uma invenção das trabalha<strong>do</strong>rasbrasileiras e sim <strong>de</strong> uma marca da ação política das mulheres nahistória. Ao retratar a atuação das mulheres <strong>do</strong> povo na França <strong>do</strong>século XIX, Michelle Perrot (1992, p. 206) aponta que “pela suairreverência, ironia e espontaneida<strong>de</strong>, a fala das mulheres é prenhe<strong>de</strong> subversão”.Nos anos mais recentes, já se verifica no campo da formaçãosindical e política geral a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> novas meto<strong>do</strong>logias que, diferentedas convencionais, buscam superar a fragmentação entre indivíduoe militante e apreen<strong>de</strong>r percepções pessoais por outros caminhosque não o <strong>do</strong> discurso verbal, pre<strong>do</strong>minante no meio político.218


<strong>Mulheres</strong> na CUTÉ uma mudança que traz a esperança <strong>de</strong> concepções menos rígidas<strong>do</strong> que seja fazer política.No âmbito <strong>do</strong> relacionamento político, as sindicalistas daComissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra fizeram um gran<strong>de</strong>esforço para administrar <strong>de</strong> maneira positiva as divergências queas separam em diferentes grupos <strong>de</strong>ntro da Central, principalmenteentre as duas forças políticas cujas militantes têm atuação mais <strong>de</strong>stacadana organização das mulheres — Articulação e a anteriormente<strong>de</strong>nominada CUT Pela Base 3 . A convivência tensa, nervosa, entreas correntes políticas tem si<strong>do</strong> uma característica da trajetória daCUT. A luta por projetos sindicais distintos muitas vezes se transformanuma disputa <strong>de</strong>sgastante pelo po<strong>de</strong>r. Obviamente, as mulheresnão ficam imunes a essa influência, mesmo porque pertencemaos agrupamentos que disputam a hegemonia na Central e,portanto, participam <strong>de</strong>sse processo. A construção da organizaçãodas mulheres, assim, é permanentemente atravessada pela natureza<strong>do</strong> jogo político pre<strong>do</strong>minante. A novida<strong>de</strong>, no entanto, é que, noperío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre a implementação e a consolidação <strong>do</strong>trabalho até pelo menos a conquista da cota, as dirigentes vinculadasà Comissão Nacional se empenharam em equilibrar essa relaçãotão <strong>de</strong>licada, em nome <strong>do</strong>s interesses comuns que as i<strong>de</strong>ntificavamcomo militantes da organização das mulheres. Preten<strong>de</strong>ram umaunida<strong>de</strong> entre as mulheres. E construíram um percurso sofri<strong>do</strong> einova<strong>do</strong>r na busca <strong>de</strong> seu objetivo, insistin<strong>do</strong> numa lógica oposta àque se experimentava na Central.Três motivações po<strong>de</strong>m ser encontradas para essa postura.Primeiro, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fortalecer-se como grupo para conseguirêxito na tarefa, levan<strong>do</strong> em conta que se atuava num espaço pre<strong>do</strong>minantementemasculino. Era uma motivação tática. Segun<strong>do</strong>, essegrupo dirigente criou uma i<strong>de</strong>ntificação e um compromisso com o3. Ressalta-se aqui um perío<strong>do</strong> da trajetória da Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra,que vai até 1993, por ser aquele no qual a experiência pessoal permite afirmar a existência<strong>de</strong>sse esforço. Vale observar, também, que há outras correntes políticas na CUT,entre as quais Força Socialista, Corrente Sindical Classista, Convergência Socialista, quecontam com militantes no trabalho <strong>de</strong> organização das mulheres. Historicamente, no entanto,são principalmente sindicalistas da Articulação e da CUT Pela Base que têm ti<strong>do</strong>participação em maior número e <strong>de</strong> forma mais permanente junto à Comissão Nacionalsobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra.219


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong><strong>de</strong>safio <strong>de</strong> conquistar um lugar visível e valoriza<strong>do</strong> para as trabalha<strong>do</strong>rasna CUT, que as mobilizava por igual — era uma motivaçãopolítica. Finalmente, as sindicalistas tentavam construir relações políticasbaseadas na ética, no respeito e na solidarieda<strong>de</strong> entre as mulheres,em contraposição ao mo<strong>de</strong>lo que viviam também na entida<strong>de</strong>.Era uma motivação feminista.Essas mudanças <strong>de</strong> práticas e <strong>de</strong> comportamento político, emsua maioria restritas a iniciativas das mulheres, são estratégicas para<strong>de</strong>spertar o interesse das trabalha<strong>do</strong>ras pelo sindicalismo. Em suaconstituição, as entida<strong>de</strong>s sindicais são espaços pouco atrativos paraas mulheres. As expectativas e motivações que orientam a formulaçãodas políticas sindicais, bem como as atitu<strong>de</strong>s e comportamentosque pre<strong>do</strong>minam no meio sindical, correspon<strong>de</strong>m majoritariamenteao universo masculino. Para muitas trabalha<strong>do</strong>ras da base e mesmopara muitas militantes esse estranhamento certamente interferepara afastá-las da participação. Também não são raros os casos <strong>de</strong>mulheres dirigentes que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> terem vínculos com asinstâncias <strong>de</strong> organização das trabalha<strong>do</strong>ras ou <strong>de</strong> se interessaremdiretamente pelas “questões das mulheres”, ressentem-se <strong>do</strong> ambientesindical, tornam-se insatisfeitas — <strong>de</strong>slocadas — no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>seu papel e, o que é pior para o sindicalismo, chegam a <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong>prosseguir com novos mandatos.A organização das mulheres na CUT contribui para promover naCentral o reconhecimento <strong>do</strong> universo <strong>de</strong> socialização das trabalha<strong>do</strong>ras,introduz seu cotidiano <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s sindicatos, transgri<strong>de</strong> a hierarquiae a rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> relacionamento político, insiste em mudanças <strong>de</strong>práticas. Com isso tem si<strong>do</strong> importante, ao longo <strong>do</strong>s anos, para ampliara legitimida<strong>de</strong> da Central junto às mulheres trabalha<strong>do</strong>ras.A CUT tem uma expressiva participação <strong>de</strong> mulheres. Entreramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica e serviços filia<strong>do</strong>s, há uma parte significativa<strong>de</strong> setores <strong>de</strong> maioria ou alta porcentagem <strong>de</strong> presençafeminina. Po<strong>de</strong>m-se citar, entre outros, educação, saú<strong>de</strong>, funcionalismopúblico, rurais, serviços bancários e financeiros, indústriaquímica e farmacêutica. O mais recente Congresso Nacional daCUT — 6° CONCUT —, realiza<strong>do</strong> em agosto <strong>de</strong> 1997, contou com27% <strong>de</strong> <strong>de</strong>legadas entre o total <strong>de</strong> representantes <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o país.220


<strong>Mulheres</strong> na CUTA a<strong>do</strong>ção da cota mínima <strong>de</strong> 30% <strong>de</strong> mulheres nas direções foi oreconhecimento da participação das trabalha<strong>do</strong>ras e, simultaneamente,a admissão da existência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero nointerior da Central. Mu<strong>do</strong>u a composição das direções nacionale estaduais da CUT, que expressam melhor, agora, a composiçãoda base representada.O processo <strong>de</strong> organização das mulheres fez crescer arepresentativida<strong>de</strong> da CUT em nível nacional, <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s, das organizaçõesnacionais por ramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica e serviços(fe<strong>de</strong>rações, confe<strong>de</strong>rações), <strong>do</strong>s sindicatos. Em to<strong>do</strong>s estes níveis,ao longo da existência da Central, multiplicam-se as instâncias <strong>de</strong>organização das mulheres e <strong>de</strong>senvolvem-se incontáveis ativida<strong>de</strong>sdirigidas às trabalha<strong>do</strong>ras, num ritmo veloz que, freqüentemente,escapa à Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra. Nascondições precárias em que sempre atuaram as Comissões <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>— nacional e estaduais — torna-se impossível mapear e acompanhartodas as iniciativas.A “cara feminina” adquirida pela CUT — uma central que temuma fala das mulheres e que fala às mulheres — lhe dá maior legitimida<strong>de</strong>.A Central tem resoluções e práticas referidas às mulheres e <strong>de</strong>senvolveum trabalho sistemático <strong>de</strong> organização das trabalha<strong>do</strong>ras.Porém, o salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> obti<strong>do</strong> pela Central se dá em meioa dificulda<strong>de</strong>s e contradições ainda por superar. As Comissões <strong>de</strong><strong>Mulheres</strong> têm limitações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política e material para <strong>de</strong>senvolversua atuação; a militância nesse espaço ainda é vista comoacessória; muitas sindicalistas se sentem <strong>de</strong>sestimuladas a assumirtal responsabilida<strong>de</strong> pela <strong>de</strong>svalorização que lhe é atribuída no conjunto<strong>de</strong> tarefas sindicais; gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> dirigentes da Central fazo discurso da igualda<strong>de</strong> e das relações <strong>de</strong> gênero, mas não se compromete,na prática, com as políticas correspon<strong>de</strong>ntes; trata-se ainda,majoritariamente, <strong>de</strong> um “assunto <strong>de</strong> mulheres”. Um gran<strong>de</strong><strong>de</strong>safio, portanto, está conti<strong>do</strong> no lema a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pela Comissão Nacionalsobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra à época da reivindicação da cota: consolidara CUT plenamente como “espaço <strong>de</strong> homens e mulheres”.Outro ângulo da ampliação da representativida<strong>de</strong> e legitimida<strong>de</strong>da CUT foi sua inserção num âmbito da luta social cada vez221


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> na socieda<strong>de</strong> brasileira: as lutas das mulheres. Ten<strong>do</strong>como canais principais a Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalha<strong>do</strong>rae as comissões estaduais, a Central conheceu as <strong>de</strong>mandasapresentadas pelas mulheres nos diferentes espaços políticos einstitucionais. Passou a apoiá-las e a fortalecê-las. Integrou-se a elas.Buscou formular um ponto <strong>de</strong> vista sindical sobre temas novos parao sindicalismo. Ao mesmo tempo, começou a ser chamada aposicionar-se diante <strong>de</strong> questões colocadas pelo movimento <strong>de</strong> mulheresna pauta política <strong>do</strong> país.Como exemplos da integração da CUT nas lutas das mulheresbrasileiras, po<strong>de</strong>m-se citar sua participação na mobilização pelosdireitos das mulheres na Constituinte; nas iniciativas <strong>de</strong> combate àviolência contra a mulher; na luta pelo direito ao aborto; a inclusão<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate sobre saú<strong>de</strong> da mulher como um <strong>do</strong>s eixos <strong>de</strong> sua atuaçãona área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e da trabalha<strong>do</strong>ra. A Central temassimila<strong>do</strong> temas apenas recentemente chega<strong>do</strong>s ao Brasil, como as açõesafirmativas. Há vários anos atua junto com o movimento autônomo<strong>de</strong> mulheres trabalha<strong>do</strong>ras rurais nas lutas das mulheres <strong>do</strong> campo.A inserção da CUT nas lutas das mulheres, para além <strong>do</strong> movimentosindical, não é homogênea. Tem ti<strong>do</strong> momentos mais intensose menos intensos; é muitas vezes atravessada por conflitos internosentre as sindicalistas e as direções da entida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pontos <strong>de</strong> vista divergentes quanto ao papel da Central nas <strong>de</strong>núnciase reivindicações em <strong>de</strong>bate; experimenta momentos <strong>de</strong> tensão norelacionamento com outras instituições. As sindicalistas sempre seempenharam no comprometimento da CUT com as lutas das mulheresem todas as suas dimensões — fruto da percepção da mulher trabalha<strong>do</strong>rana sua integralida<strong>de</strong>. Junto às direções, precisam muitas vezes <strong>de</strong>monstrarpor que e em que medida certas reivindicações dizem respeitoàs trabalha<strong>do</strong>ras; por que são questões <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong> sindicalismo.Diante das <strong>de</strong>mais entida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong>, a participação daCUT tem um triplo significa<strong>do</strong>. Chama a atenção para a articulaçãoentre gênero e classe, que orienta a análise que as sindicalistas fazemda situação das mulheres trabalha<strong>do</strong>ras. Contribui para que algunssetores <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> mulheres rompam com a visão preconceituosaque têm em relação às sindicalistas — como se estas, por atua-222


<strong>Mulheres</strong> na CUTrem numa instituição <strong>de</strong> composição mista quanto ao sexo, estivessemimpossibilitadas, por princípio, <strong>de</strong> incorporar um enfoque feminista.E, fundamentalmente, fortalece as lutas das mulheres na socieda<strong>de</strong>,pela importância política da CUT como organização <strong>de</strong> massa e arepresentativida<strong>de</strong> que construiu ao longo <strong>de</strong> sua trajetória.Fortalecer as mulheres trabalha<strong>do</strong>rasOs diagnósticos sobre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho têm fala<strong>do</strong> <strong>de</strong>fenômenos como a feminização da pobreza e a feminização <strong>do</strong> trabalho.Já há muitos anos, entida<strong>de</strong>s sindicais internacionais vêmreconhecen<strong>do</strong> que a sindicalização das mulheres tem si<strong>do</strong> fundamentalpara reduzir o <strong>de</strong>clínio da porcentagem geral <strong>de</strong> sindicaliza<strong>do</strong>s,em vários países. Esses são argumentos suficientes — e pragmáticos— para que o movimento sindical assuma seriamente a tarefa<strong>de</strong> organizar as trabalha<strong>do</strong>ras e <strong>de</strong> representar seus interesses diante <strong>do</strong>patronato e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.As enormes dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> movimento sindical em realizar ocompromisso com a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero convivem contraditoriamentecom o balanço mais positivo que negativo <strong>de</strong> experiênciasrecentes como a da CUT. A urgência <strong>de</strong> superar essa contradição<strong>de</strong>ixa explícito o papel estratégico das organizações <strong>de</strong> mulheres ementida<strong>de</strong>s sindicais e políticas <strong>de</strong> maneira geral. Sua existência, emsi, é importante para chamar a atenção para as mulheres. Mas suaatuação tem si<strong>do</strong> essencial para romper minimamente as travas queimpe<strong>de</strong>m o pleno reconhecimento <strong>de</strong>las como sujeito <strong>de</strong>ssas instituiçõese movimentos. A inexistência <strong>de</strong>ssas instâncias significa quasesempre a ausência das mulheres nos diagnósticos e planos <strong>de</strong> ação.Ao longo <strong>de</strong> sua trajetória, a Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resse valorizou com a organização das mulheres. Foi autocrítica aoreconhecer a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e coerente ao assumira cota mínima <strong>de</strong> participação feminina nas direções como umadas alternativas políticas para a construção da igualda<strong>de</strong>. Influenciouas outras centrais sindicais brasileiras — CGT e Força Sindical— que recentemente a<strong>do</strong>taram a medida, pautan<strong>do</strong>-se no exemploda CUT.223


Maria Berenice Godinho Delga<strong>do</strong>A organização das mulheres na entida<strong>de</strong>, por sua vez, adquiriuum perfil singular. Foi fruto da luta por cidadania no país e, nocaminho percorri<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem, tem si<strong>do</strong> parte da luta pelacidadania das mulheres trabalha<strong>do</strong>ras, por igualda<strong>de</strong> e pelo fim daopressão nas relações <strong>de</strong> gênero.É preciso, porém, garantir os avanços obti<strong>do</strong>s e alcançar novospatamares no processo <strong>de</strong> fortalecimento das trabalha<strong>do</strong>ras comosujeito. A qualida<strong>de</strong> da experiência da CUT não significa que estelugar está consolida<strong>do</strong>. Como se apontou aqui, essa experiência temtambém muitas <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s e não estará nunca livre das possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> retrocesso. Muitas iniciativas sindicais <strong>de</strong> organização dastrabalha<strong>do</strong>ras têm culmina<strong>do</strong> com o seu esvaziamento, engolidaspelas dificulda<strong>de</strong>s que se interpõem à presença feminina e pela marcaainda pre<strong>do</strong>minantemente masculina da cultura sindical. A organizaçãodas mulheres na CUT, ao contrário, se caracteriza pela permanência,mas seguramente sua consolidação e fortalecimento sãoum <strong>de</strong>safio constante.BibliografiaCAPPELLIN, Paola. 1989. Silenciosas e combativas: as contribuições dasmulheres na estrutura sindical <strong>do</strong> Nor<strong>de</strong>ste — 1976/1986. In: COS-TA, A. e BRUSCHINI, C., orgs. Rebeldia e submissão: estu<strong>do</strong>s sobre condiçãofeminina. São Paulo, Vértice/Fundação Carlos Chagas.DELGADO, Maria Berenice Godinho (Didice). 1996. A organização das mulheresna Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. A Comissão Nacional sobrea Mulher Trabalha<strong>do</strong>ra. Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> apresentada à PUC-SP.GITHAY, Leda et alii. 1982. Operárias: sindicalização e reivindicações (1970-1980). Revista <strong>de</strong> Cultura e Política, nº 8. São Paulo, junho, p. 90-116.HEINRICHS, Hans Jürgen. 1977. A ciência <strong>do</strong> outro. Humboldt, 75, Bonn,Inter Nationes, ano 39, p. 54-55.PERROT, Michelle. 1992. Os excluí<strong>do</strong>s da história. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz eTerra, 2ª ed.SOUZA-LOBO, Elisabeth. 1991. A classe operária tem <strong>do</strong>is sexos: Trabalho,<strong>do</strong>minação e resistência. São Paulo, Brasiliense/Secretaria Municipal<strong>de</strong> Cultura.224


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaUma experiênciaprática <strong>de</strong> lutaLuci ChoinaskiEste artigo centra-se na história <strong>de</strong> organização e luta dasmulheres agricultoras <strong>de</strong> Santa Catarina a partir <strong>do</strong> momento dareorganização <strong>de</strong> setores <strong>do</strong>s agricultores <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> país no movimentosindical, no Movimento <strong>do</strong>s Sem Terra e na experiência <strong>de</strong>senvolvidano mandato fe<strong>de</strong>ral. Nos diferentes momentos da história<strong>do</strong> país as mulheres agricultoras estiveram presentes e ativas eminúmeras ações e movimentos organiza<strong>do</strong>s no campo. Os registros<strong>de</strong> nossa história, no entanto, mantêm invisível esta presença. Aexperiência que <strong>de</strong>senvolvemos em Santa Catarina é um exemplo,entre muitos outros, <strong>de</strong>sta mobilização e <strong>de</strong>sta luta.A realida<strong>de</strong> no campo, no início <strong>do</strong>s anos 80, era a seguinte:nós, camponesas, não tínhamos nenhuma participação, nem no sindicato,nem na cooperativa ou na política. Não éramos reconhecidascomo trabalha<strong>do</strong>ras e cidadãs. Principalmente por meio da Igreja,começaram a discussão e a articulação <strong>de</strong> oposições aos sindicatospelegos. Nesse mesmo perío<strong>do</strong>, também houve a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>se fazer a sindicalização das mulheres. Porém, as mulheres ajudavama ganhar os sindicatos e não tinham participação como associadas, emuito menos nas direções. Começou-se a discutir, então, a organizaçãodas mulheres, o Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras.Luci ChoinaskiPresi<strong>de</strong>nte estadual <strong>do</strong> <strong>PT</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina.Dirigente <strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras,foi <strong>de</strong>putada estadual (1987-90), <strong>de</strong>putadafe<strong>de</strong>ral (1991-94) e integrante da direção nacional<strong>do</strong> <strong>PT</strong> (1993-95).225


Luci ChoinaskiUm exemplo mostra bem o nível <strong>do</strong> machismo daquela época.Quan<strong>do</strong> iniciamos esse movimento, houve <strong>de</strong>bate até mesmoem torno <strong>do</strong> nome, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às gozações. Havia piadinhas <strong>de</strong> que asmulheres estavam “em movimento”. Mas nós bancamos o nomeMovimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras. Para nós esse nome significaque não estamos aceitan<strong>do</strong> a paralisia, a submissão, e que as pessoasestão começan<strong>do</strong> a se movimentar para construir algo diferente.Portanto, até no nome tivemos <strong>de</strong> enfrentar o preconceito. Por queera Movimento <strong>do</strong>s Sem Terra e não podia ser Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>Camponesas?Naquele momento, a Igreja católica, principalmente aDiocese <strong>de</strong> Chapecó, fazia um acompanhamento da discussão eda organização <strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras, <strong>do</strong>Movimento <strong>do</strong>s Sem Terra, das oposições aos sindicatos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>resrurais, <strong>do</strong> movimento <strong>do</strong>s atingi<strong>do</strong>s por barragens.Em Santa Catarina, especialmente na região <strong>do</strong> Gran<strong>de</strong> Oeste,isso tu<strong>do</strong> teve um incentivo e um apoio <strong>de</strong>cisivo da Igreja católica.Os primeiros passos foram da<strong>do</strong>s junto com a Pastoral daTerra e as Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base, que mostraram que ostrabalha<strong>do</strong>res rurais, as mulheres, precisavam se organizar parabuscarem seus direitos.A partir daí, começou um Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>Agricultoras mesmo. Com as primeiras reuniões e discussões <strong>de</strong>participação no sindicato, surgiu o questionamento: qual a condiçãoem que nós, mulheres, vivíamos? Não tínhamos direito àsindicalização, os nossos <strong>do</strong>cumentos nos colocavam como <strong>do</strong>mésticas— apesar <strong>de</strong> trabalharmos na roça, não éramos reconhecidascomo trabalha<strong>do</strong>ras —, não tínhamos direito a receber nada quan<strong>do</strong>aconteciam aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trabalho — nem as mulheres, nem as criançasaté 12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> —, não tínhamos direito à aposenta<strong>do</strong>ria —só quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> morresse ou quan<strong>do</strong> tivesse mais <strong>de</strong> 70 anos —,não tínhamos direito a salário-maternida<strong>de</strong>, não tínhamos participaçãona política. Então, começamos a <strong>de</strong>scobrir que éramos apenaspessoas que trabalhavam, que obe<strong>de</strong>ciam, cumpriam or<strong>de</strong>ns, cuidavamda casa, produziam, tinham tripla jornada <strong>de</strong> trabalho e nada<strong>de</strong> participação.226


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaO que fazer diante <strong>de</strong>ssa história? No início, a Igreja católicapuxou a discussão e <strong>de</strong>pois nós, mulheres, começamos a participar,a assumir o <strong>de</strong>bate e continuamos com esse trabalho <strong>de</strong> organização,construímos uma coor<strong>de</strong>nação regional e, com a participação<strong>de</strong> vários municípios, construímos uma coor<strong>de</strong>nação estadual. Foium processo lento, pois partimos <strong>do</strong> zero, mas ao mesmo tempo foimuito sóli<strong>do</strong>.Fazíamos encontros <strong>do</strong>s municípios. Eram enormes, 2.000, 3.000mulheres. Era o auge <strong>do</strong> movimento. As mulheres saíam <strong>de</strong> casa,com o apoio da Igreja, para questionar sua condição. Foi fantástico.Mas não havia mulheres com liberação — ou seja, pagas para fazeresse trabalho. Era tu<strong>do</strong> na base da militância e <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong> sacrifício.Lembro que participava da direção e no perío<strong>do</strong> em que nãotinha muito trabalho na roça fazia uma agenda <strong>de</strong> ida aos municípiose regiões para discutir a organização das mulheres, sua situaçãoe levar também as propostas políticas que já tínhamos no movimento.Cada município dava uma contribuição, pagava passagem; a hospedagemera na casa <strong>de</strong> companheiras. De uma comunida<strong>de</strong> íamospara outra e assim era a organização.Com essa militância, aumentou ainda mais nossa jornada. Anossa tarefa <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ras na roça, na casa, responsáveis pela comidae pela roupa lavada, não mu<strong>do</strong>u nada. Mas com a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> militância tínhamos que trabalhar bem mais. Por exemplo, aroupa ficava acumulada uma semana. Quan<strong>do</strong> chegávamos, tínhamosque trabalhar bem mais para dar conta <strong>de</strong> lavá-la. O mesmocom a casa e outras coisas.Também começou a mudar a própria relação familiar, entrehomem e mulher. Iniciou-se um processo <strong>de</strong> conflitos, porque <strong>de</strong>ixamos<strong>de</strong> ser as mulheres comportadinhas, que ficavam só em casa,fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, sem dizer não a nada. Apareceu a pergunta: o queessas mulheres estão fazen<strong>do</strong> fora <strong>de</strong> casa? Imagine-se a cultura nointerior, muito religiosa, machista, cultivada há tempos. As mulheresnunca saíam <strong>de</strong> casa, nunca participavam <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>cisãopolítica, econômica. Podiam trabalhar, mas quem coor<strong>de</strong>nava o dinheiro,on<strong>de</strong> iria ser aplica<strong>do</strong>, eram os homens. As mulheres sósaíam para ir à casa da vizinha ou da comadre tomar um chimarrão,227


Luci Choinaskiou com os homens para alguma festa. Nem para ir ao hospital terfilhos as mulheres saíam, pois a maioria tinha filhos em casa. Ouseja, mu<strong>do</strong>u totalmente a rotina.Com isso, começou a se discutir o papel <strong>do</strong> homem e da mulher.Será que era só a mulher que tinha <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong>s filhos, dacasa, cozinhar? As questões <strong>de</strong> gênero começaram a ser discutidas,embora sem muita clareza, mas <strong>de</strong> forma bem prática, concreta.Muitos companheiros foram solidários. Outros não conseguiramaceitar esse processo, que foi bastante conflituoso. Afinal, saíamosda vida <strong>do</strong> sim para uma vida <strong>de</strong> questionamentos. Houve a discussãosobre o papel público e o priva<strong>do</strong>, os espaços <strong>do</strong> homem e damulher neles, os potenciais <strong>de</strong> cada um, seja para fazer política oupara cuidar <strong>do</strong>s filhos. Enfim, discutíamos que as diferenças eramapenas <strong>de</strong> costumes da socieda<strong>de</strong>.Muitos homens começaram a contribuir nas tarefas <strong>do</strong>mésticas,pois enten<strong>de</strong>ram nossa luta. De outro la<strong>do</strong>, houve mulheresque começaram a luta e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sistiram por problemas <strong>de</strong> família.Nas comunida<strong>de</strong>s, quan<strong>do</strong> as mulheres começaram a participar <strong>do</strong>movimento, <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sindicato, das mobilizações, tambémhouve muito preconceito. O conflito na família era constante. Nacomunida<strong>de</strong> havia a discriminação, o comentário: “On<strong>de</strong> está in<strong>do</strong>aquela mulher, que aban<strong>do</strong>nou o lar, os filhos, o mari<strong>do</strong>, que nãovai mais pra roça e que só está na estrada?”. Isso fez com que muitas<strong>de</strong>sistissem. Éramos vistas como mulheres vulgares por muita gente.Nestes casos, minha reação, por exemplo, era não ouvir o quenão queria, não dar importância. Era uma forma <strong>de</strong> resistência. Se<strong>de</strong>sse atenção, não resistiria.Quan<strong>do</strong> iniciei minha militância, era ministra da eucaristia.A minha forma <strong>de</strong> celebração era diferente. Eu estimulava as pessoasa colocarem suas experiências <strong>de</strong> vida e não apenas a lerem oque estava escrito. Mas a comunida<strong>de</strong> fez uma reunião e tive <strong>de</strong>optar entre a luta ou ficar só rezan<strong>do</strong>. Minha resposta foi:“Companheiras, se é para optar entre ficar só na comunida<strong>de</strong> ouviajar por esse esta<strong>do</strong>, por esse país, para construir uma alternativapara as mulheres e para o povo, já tenho a opção. Ou seja, vocês é228


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaque vão ter <strong>de</strong> optar: aceitam a condição <strong>de</strong> eu estar aqui quan<strong>do</strong>for possível ou não”.Daí tive que <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> rezar o culto. Passei por esse <strong>de</strong>safio. O preconceitofoi violento. Os principais chefes da comunida<strong>de</strong> tinham essaposição <strong>de</strong> que eu precisava optar, que não havia possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ummeio-termo. Como quem estava <strong>do</strong> meu la<strong>do</strong> tinha me<strong>do</strong> <strong>de</strong> se expressar,foi aprova<strong>do</strong> o que propunham os “caciques”. Hoje, quan<strong>do</strong> passopela comunida<strong>de</strong>, eles têm vergonha <strong>do</strong> papelão que fizeram.Ocupações, ban<strong>de</strong>iras e eleiçãoA participação das mulheres também <strong>de</strong>u uma nova cara àsocupações <strong>de</strong> terra. Na hora <strong>de</strong> ir para as ocupações, <strong>do</strong> enfrentamentocom o latifúndio, com a polícia, as mulheres são as que maisresistem e incentivam para que as ocupações realmente aconteçam.São as mulheres que têm <strong>de</strong> resolver o problema da comida, <strong>do</strong> diaa-dia,<strong>do</strong> filho, sem ter terra. Elas sentem isso mais na pele. Não queo homem não sinta, mas para as mulheres isso é mais forte pois elastêm que enfrentar e resolver esses problemas. Nas discussões nomovimento e no parti<strong>do</strong> estava em pauta a questão da importância<strong>de</strong> a mulher ir para a luta pela reforma agrária. O Movimento <strong>de</strong><strong>Mulheres</strong> Agricultoras, por isso, sempre foi uma sustentação paraas ocupações <strong>de</strong> terra, para que as mulheres estivessem presentes 1 .Além disso, nossas ban<strong>de</strong>iras eram a sindicalização, o direito àPrevidência Social, à aposenta<strong>do</strong>ria aos 55 anos, a um salário mínimo,ao salário-maternida<strong>de</strong>, à proteção quan<strong>do</strong> <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trabalho,além <strong>do</strong> direito à participação política. As questões <strong>de</strong> gênerovinham embutidas, mas não eram uma discussão que tínhamospresente naquele momento.Também começamos a participar <strong>de</strong> todas as lutas <strong>do</strong> povo.Houve uma gran<strong>de</strong> politização na luta das mulheres agricultoras.1. As mulheres militantes <strong>do</strong> Movimento <strong>do</strong>s Sem Terra vêm refletin<strong>do</strong> sobre as relações <strong>de</strong>gênero e chamam a atenção para o fato <strong>de</strong> que o reconhecimento das mulheres durante aluta pela terra nem sempre permanece com a mesma intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois que o assentamentose organiza. Segun<strong>do</strong> o Censo da Reforma Agrária, os homens são 85% <strong>do</strong>s beneficiários<strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong> assentamento.229


Luci ChoinaskiEm 1986, fizemos o primeiro ato público das mulheres agricultoras.Reunimos em torno <strong>de</strong> 30 mil, em Xanxerê, dia 12 <strong>de</strong> agosto. Nossaban<strong>de</strong>ira era: “Da luta não fujo”, frase dita por Margarida MariaAlves, sindicalista da Paraíba que foi assassinada. Des<strong>de</strong> então, sempreneste dia, homenageamos essa luta<strong>do</strong>ra e marcamos a luta contraa violência no campo e pela reforma agrária.Esse ano <strong>de</strong> 1986 também foi marcante para a inclusão damulher na política. O <strong>PT</strong> vinha discutin<strong>do</strong> a importância <strong>de</strong> as mulheresparticiparem. No Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras tínhamosa certeza <strong>de</strong> que era preciso exigir nossos direitos, mas haviaa dúvida: será que vamos entrar na política e botar nossa cara paraenfrentar as discriminações? Chegamos à conclusão <strong>de</strong> que não po<strong>de</strong>ríamosapenas votar, mas que <strong>de</strong>víamos também participarefetivamente da política. A condição para isso era conhecer nossarealida<strong>de</strong>, nossos projetos e objetivos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>.Foi então que aconteceu minha candidatura pelo <strong>PT</strong> e aeleição como a primeira agricultora a ocupar uma ca<strong>de</strong>ira na históriada Assembléia Legislativa <strong>de</strong> Santa Catarina.As mulheres assumiram a campanha, <strong>de</strong> casa em casa, discutin<strong>do</strong>as ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> luta, garantin<strong>do</strong> a vitória <strong>de</strong> um projetoelabora<strong>do</strong> pelas próprias mulheres. No esquema tradicional, nacultura política, este foi um gran<strong>de</strong> avanço que o <strong>PT</strong> possibilitou,ao mostrar-se aberto à participação <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças <strong>do</strong>s movimentossociais, em especial, no caso, das mulheres agricultoras. Eraum espaço que se abria para expressarmos o que estávamos sentin<strong>do</strong>e pensan<strong>do</strong>.No <strong>PT</strong>, essa questão das mulheres vinha <strong>de</strong> baixo para cima,das nossas necessida<strong>de</strong>s concretas, <strong>do</strong> nosso sofrimento. O Movimento<strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong> Agricultoras foi um marco no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> incluiresse <strong>de</strong>bate na pauta <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. Isso mostra que são os movimentossociais, fazen<strong>do</strong> sua luta, ten<strong>do</strong> suas conquistas, que entram para oparti<strong>do</strong>, não o inverso. Começou a haver participação <strong>de</strong> mulheresnas direções <strong>do</strong>s sindicatos, no parti<strong>do</strong>. Com isso, mu<strong>do</strong>u o próprioperfil das direções petistas, que eram quase exclusivamente compostas<strong>de</strong> homens. Mas esse movimento, é bom ressaltar, <strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> fora para<strong>de</strong>ntro, com muita <strong>de</strong>cisão política das mulheres.230


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaO <strong>PT</strong> é um parti<strong>do</strong> com a cara da socieda<strong>de</strong>. Os homens queentram no <strong>PT</strong> trazem a cultura machista da socieda<strong>de</strong>, vêm comto<strong>do</strong>s os valores morais, culturais e isso é difícil <strong>de</strong> mudar. Afinal, épreciso abrir mão <strong>de</strong> privilégios. É como costumo dizer: quan<strong>do</strong>tem alguém que limpa o teu sapato, lava tuas cuecas e, <strong>de</strong>pois, tutens que fazer isso, fica difícil. Quan<strong>do</strong> um dia a mulher tem quesair para uma reunião e o homem tem que dar mama<strong>de</strong>ira para ofilho, ele já começa a per<strong>de</strong>r algumas horas <strong>de</strong> sono. O discurso éfácil, mas na prática as coisas não são tão simples.Há o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio po<strong>de</strong>r. Os homens têm até dificulda<strong>de</strong><strong>de</strong> escutar as mulheres falarem, ou seja, ouvir a própria voz dasmulheres. O jeito da mulher fazer política é diferente <strong>do</strong> jeito <strong>do</strong>homem. As mulheres não têm essa característica <strong>de</strong> fazer o discurso,as elaborações, elas são mais práticas, reflexo <strong>de</strong> suas lutas no diaa-dia.A minha eleição para a Assembléia em 1986, para a CâmaraFe<strong>de</strong>ral em 1990, e a quase eleição para o Sena<strong>do</strong> em 1994 (comdiferença <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> 2% <strong>do</strong>s votos), é uma prova disso. As mulherestomaram como <strong>de</strong>cisão política, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas organizações,eleger uma representante no espaço institucional que pu<strong>de</strong>sse encaminhara luta para que tivessem garantidas suas conquistas. Elaschegaram a essa análise e agiram.É fundamental esse processo em que as mulheres questionamo próprio espaço <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>ve existir no <strong>PT</strong>: um po<strong>de</strong>rapenas masculino ou também feminino? Estão em questão ospapéis socialmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, que colocam a mulher numa situação<strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> intelectual. Isso está nacultura machista, que ainda é cultivada no <strong>PT</strong>. A própria dificulda<strong>de</strong><strong>de</strong> fazer o <strong>de</strong>bate no parti<strong>do</strong> revela isso. O que nós queremosé <strong>de</strong>struir o po<strong>de</strong>r capitalista, <strong>do</strong>minante. Queremos construiruma outra alternativa <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que passa por novos valores,<strong>de</strong> novos homens e mulheres. Não queremos ser mais nem sermenos, mas ter condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver nosso potencial político,intelectual. Queremos dividir as tarefas a partir <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>,da discussão <strong>de</strong> uma capacida<strong>de</strong> tanto <strong>do</strong> homem quanto damulher. Não daquela visão <strong>de</strong> que a mulher é <strong>do</strong>ce, passiva e o homemé quem fala grosso, pesa<strong>do</strong>, é po<strong>de</strong>roso, com mais capacida<strong>de</strong>231


Luci Choinaskiintelectual que a mulher. Queremos um outro projeto político,pois esse não serve nem para as mulheres nem para os homens.Queremos caminhar juntos, com as nossas condições diferentes,mas com igualda<strong>de</strong> social, política e econômica.Esse <strong>de</strong>bate foi difícil no <strong>PT</strong> antes. Continua difícil agora. Eacho que vai continuar assim por muito tempo. A minha eleição foiuma surpresa para as elites, mas também para o <strong>PT</strong>, pois a minhavotação não era esperada. Ainda mais por se tratar <strong>de</strong> uma mulherque não fez curso universitário, que falava <strong>de</strong> forma atrapalhada,vinha da roça. A primeira participação <strong>do</strong> <strong>PT</strong> na AssembléiaLegislativa em Santa Catarina foi com uma cara totalmente diferenteda tradicional, tanto para a socieda<strong>de</strong> em geral como para o parti<strong>do</strong>.E isso aconteceu em um ano em que houve também a expressivavotação <strong>de</strong> outra mulher, Isol<strong>de</strong> Espín<strong>do</strong>la, também <strong>do</strong> <strong>PT</strong>, professorauniversitária, ligada ao setor urbano, que surpreen<strong>de</strong>u com suacandidatura ao Sena<strong>do</strong>.Objetivida<strong>de</strong>: uma característicaAs mulheres foram muito objetivas na minha eleição. Meuplano era seguir no Movimento, mas com aquela meta da participaçãoeleitoral estabelecida, saímos a campo com <strong>de</strong>terminação e conseguimosa vitória. Era uma coisa extraordinária, revolucionária.Não havia nenhuma estrutura econômica. Fazíamos rifas, camisetase outros materiais para ven<strong>de</strong>r. Viajávamos <strong>de</strong> ônibus, <strong>de</strong> carona,<strong>do</strong> jeito que <strong>de</strong>sse. E aquela coisa <strong>de</strong> que mulher não vota emmulher, eu não acredito. É preciso ter objetivo político e organização.E isso nós tínhamos. Nosso objetivo era ganhar a eleição. Passávamos<strong>de</strong> casa em casa e, em algumas, os mari<strong>do</strong>s diziam para asmulheres: “Mas não po<strong>de</strong> votar em mulher”. E nós dizíamos, umasnos ouvi<strong>do</strong>s das outras: “Não precisa contar em quem você votou”.Acredito que mu<strong>do</strong>u bastante o pensamento das mulheres <strong>do</strong><strong>PT</strong> em nosso esta<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> marco que foi a eleição <strong>de</strong> 1986.Primeiro, tínhamos um discurso, no Movimento, <strong>de</strong> que as mulhereseram capazes. Quan<strong>do</strong> assumimos o mandato, surgiu a pergunta: e agora,como vamos mostrar nossa capacida<strong>de</strong> política concretamente?232


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaO espaço era totalmente diferente, no meio <strong>de</strong> 39 políticos compensamento diferente, com outra prática e outro projeto político.Foi uma ousadia muito gran<strong>de</strong> fazer o enfrentamento político semper<strong>de</strong>r a condição <strong>de</strong> mulher e trabalha<strong>do</strong>ra petista. A partir daí, asportas abriram-se para mostrarmos que as mulheres são capazes <strong>de</strong>fazer política com muita objetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminação e garra.No mandato, enfrentamos os valores burgueses, os preconceitose mostramos que não era só o banco escolar que dava capacida<strong>de</strong>e inteligência, mas também a condição e a realida<strong>de</strong> social das quaisvínhamos. No início, não éramos ouvidas <strong>de</strong>ntro da AssembléiaLegislativa. Depois, o mandato foi três vezes premia<strong>do</strong> pela imprensacomo <strong>de</strong>staque parlamentar. Isso tu<strong>do</strong> abriu uma perspectiva muitogran<strong>de</strong> para outras mulheres, que se sentiram encorajadas a seremcandidatas a verea<strong>do</strong>ras nas eleições seguintes, inclusive com a vitória<strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>las. Nos municípios on<strong>de</strong> o Movimento <strong>de</strong> <strong>Mulheres</strong>Agricultoras existia, as mulheres foram para a política, assumiramdireção <strong>de</strong> sindicato, <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, crian<strong>do</strong> outro contexto <strong>de</strong> participação.Conseguimos ser a referência no <strong>PT</strong>, na socieda<strong>de</strong>. E, principalmente,para as mulheres ficou a lição: é possível colocar a cara narua, fazer política, sem per<strong>de</strong>r a condição feminina.Além da questão <strong>de</strong> classe, sempre coloquei as dificulda<strong>de</strong>sque as mulheres enfrentavam, tanto econômicas como culturais,com os preconceitos que a socieda<strong>de</strong> reproduzia e nós carregávamos.Acredito que isso aju<strong>do</strong>u a motivar as mulheres, apesar <strong>de</strong>haver pouca discussão no <strong>PT</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina sobre esses problemas.Por exemplo, nos momentos eleitorais, na elaboração <strong>de</strong>propostas <strong>de</strong> programa <strong>de</strong> governo, as mulheres se reuniram, <strong>de</strong>bateram,fizeram sugestões em diversas áreas, como educação,saú<strong>de</strong>, entre outras, sempre sob o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um governopopular e <strong>de</strong>mocrático. O mandato também aju<strong>do</strong>u a ampliar arelação com outros setores da luta das mulheres e <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>resem geral. Sentia, na época, que havia uma discussão importantíssima,por exemplo, na Universida<strong>de</strong>, com uma produção teóricamuito boa, mas sem muita repercussão social. Ficava tu<strong>do</strong> muitoentre as próprias pessoas. A discussão não ia muito para a base,com uma linguagem compreensível. Então, toda essa produção tinha233


Luci Choinaskipouco <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento, pouco resulta<strong>do</strong>. Esse é um gran<strong>de</strong> problemaque ainda enfrentamos. Como é que to<strong>do</strong> o conhecimento,toda a teoria, po<strong>de</strong> fortalecer, na prática, os movimentos,motivar a participação, o <strong>de</strong>bate sobre a questão <strong>de</strong> gênero, sobreo <strong>de</strong>semprego, os baixos salários, a violência, a falta <strong>de</strong> moradiae outros tantos dramas vivi<strong>do</strong>s pelo povo em geral e pelasmulheres em particular.Com o mandato <strong>de</strong> <strong>de</strong>putada estadual, pu<strong>de</strong>mos realizar coisasbem concretas em nossa luta. Fizemos caminhadas, ocupamos aAssembléia, a tribuna. A Assembléia, que era um espaço priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>alguns grupos políticos, passou a ser também <strong>do</strong>s movimentos. Asmulheres, assim, tiveram participação. A partir da eleição para aCâmara Fe<strong>de</strong>ral, em 1990, foi da<strong>do</strong> um passo adiante. Conseguimoscolocar na prática algumas ban<strong>de</strong>iras que não tinham possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> ser concretizadas em nível estadual. É o caso da aposenta<strong>do</strong>riadas mulheres, que estava na Constituição Fe<strong>de</strong>ral e não havia si<strong>do</strong>regulamentada. O governo Collor man<strong>do</strong>u o projeto sobre a PrevidênciaSocial, mas <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fora a aposenta<strong>do</strong>ria para os agricultorese agricultoras. Nosso mandato apresentou uma emenda a esseprojeto, que garantia o que estava na Constituição, ou seja,aposenta<strong>do</strong>ria aos 55 anos para os homens e 50 anos para as mulheres,com direito a um salário mínimo 2 .Aliás, um fato interessante <strong>de</strong>sta luta foi quan<strong>do</strong>, em 1988,durante a Constituinte, a bancada <strong>do</strong> <strong>PT</strong> em Brasília discutiu queeu <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a aposenta<strong>do</strong>ria das mulheres e <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>resrurais. Mas como eu faria essa <strong>de</strong>fesa se não era <strong>de</strong>putadafe<strong>de</strong>ral? Montamos, então, um esquema interessante com abancada: não me lembro bem como, consegui entrar no plenário.O <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Paulo Paim (<strong>PT</strong>-RS), que tinha a tarefa <strong>de</strong> tratar <strong>de</strong>ssetema, começou a falar na tribuna. Num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento,conforme combinamos antes, eu pedi um aparte. No microfone,como <strong>de</strong>putada estadual, sem que ninguém se <strong>de</strong>sse conta2. A luta pela aposenta<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um membro <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> agricultores, o que naprática atinge diretamente as mulheres, mobilizou organizações <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o país<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a preparação da Constituinte. Uma <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta ação foram campanhaspara que a mulher assumisse e <strong>de</strong>clarasse sua profissão <strong>de</strong> agricultora nos <strong>do</strong>cumentospessoais, na <strong>de</strong>claração para o Censo, na participação política e social.234


Uma experiência prática <strong>de</strong> luta— a não ser os petistas —, <strong>de</strong>fendi a aposenta<strong>do</strong>ria e o saláriomaternida<strong>de</strong>em plena Câmara Fe<strong>de</strong>ral. Foi um “furo” históricoque nem sei se foi registra<strong>do</strong>. Só sei que estava lá, tremen<strong>do</strong> umpouco diante daquele microfone, naquele espaço gran<strong>de</strong>, no meio<strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s fe<strong>de</strong>rais, mas firme, numa espécie <strong>de</strong> prévia daminha participação, mais tar<strong>de</strong>, já como <strong>de</strong>putada fe<strong>de</strong>ral, na<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>ssas mesmas questões.Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> conquistada a aposenta<strong>do</strong>ria, o governonão queria pagar. Organizamos o movimento, com os sindicatos,com as mulheres, com a Igreja, em vários pontos <strong>do</strong> país,para pressionar. Dia 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1993, uma caravana <strong>de</strong> mulheresagricultoras <strong>de</strong> vários esta<strong>do</strong>s foi para Brasília. Tivemosuma sessão especial na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s. Uma coisa inédita.As mulheres entraram no plenário <strong>de</strong> chapéu, <strong>de</strong> chinelo, <strong>de</strong>camiseta e exigiram <strong>do</strong> Congresso Nacional os seus direitos.Lembro bem que o professor Florestan Fernan<strong>de</strong>s, à época <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> <strong>PT</strong> por São Paulo, escreveu um artigo no jornalFolha <strong>de</strong> S. Paulo em que <strong>de</strong>stacava o fato, mostran<strong>do</strong> que era aprimeira vez na história brasileira que as galerias e o plenário daCâmara estavam ocupa<strong>do</strong>s por camponesas, que não foram pedirnada, mas dizer o que estavam queren<strong>do</strong>. Isso, dizia Florestan,dava uma outra cara para o Brasil.Após fazer essa manifestação, nós ocupamos o Ministério daPrevidência Social. Em cinco minutos o prédio estava toma<strong>do</strong>. Naépoca, o ministro era Reinhold Stephanes, que não queria pagar aaposenta<strong>do</strong>ria. A polícia tentou colocar as mulheres para fora. Houveempurra-empurra, houve resistência, até o ministro assumir o compromisso<strong>de</strong> que ia regulamentar o pagamento.Depois foi a vez <strong>do</strong> projeto para garantir o salário-maternida<strong>de</strong>.Era uma proposta discutida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>do</strong> movimento.Chegava o momento <strong>de</strong> colocá-la em prática. Nosso mandatoassumiu o projeto e discutimos com as mulheres <strong>de</strong> vários esta<strong>do</strong>s.O movimento estava bem articula<strong>do</strong>, com as mulheresviajan<strong>do</strong> para todas os cantos <strong>do</strong> país. Era um <strong>do</strong>s objetivos políticos<strong>do</strong> mandato: não po<strong>de</strong>ria acabar sem aprovar o salário-maternida<strong>de</strong>.Foi um intenso trabalho <strong>de</strong> mobilização e pressão sobre235


Luci Choinaskios <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s. Fizemos, por exemplo, um cartaz — “Salário-Maternida<strong>de</strong>:Direito <strong>de</strong> Mulher” — que circulou por to<strong>do</strong> o Brasil.To<strong>do</strong> o país sabia que havia essa luta das mulheres 3 .Conseguimos a votação graças a essa pressão <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong> mulheres. Seu papel foi extraordinário. Estava presente o tempointeiro. É a questão que eu colocava anteriormente, da objetivida<strong>de</strong>das mulheres. Estabelecemos como meta e fomos à luta. Houvemomentos até engraça<strong>do</strong>s. As mulheres seguravam a gravata, os ternos<strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s, que perguntavam: “Vocês vão embora logo?”.Nós respondíamos: “Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vota<strong>do</strong> o projeto”. Teve até a“prisão” <strong>do</strong> então ministro Antônio Britto no eleva<strong>do</strong>r. Enfim, os<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s ficaram enjoa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tanta pressão.Havia <strong>do</strong>is argumentos contra o projeto. Um dizia que osgastos <strong>do</strong> governo iriam aumentar e, em conseqüência, haveria aumento<strong>de</strong> impostos sobre o próprio trabalha<strong>do</strong>r rural. Outro chegavaao cúmulo <strong>de</strong> dizer que as mulheres iriam ter mais filhos paraganhar o salário-maternida<strong>de</strong>. Ora, é um direito das pessoas <strong>de</strong>cidiremquantos filhos vão ter! Não tem nada a ver com o governo! Opróprio <strong>PT</strong>, <strong>de</strong> certa forma, ficou em dúvida com relação ao aumentoda contribuição em 0,5%. Mas a vitória veio e foi um avançoextraordinário.No momento seguinte à aprovação, foi a vez <strong>de</strong> lutar para queo governo não vetasse o projeto. Voltamos a mobilizar todas asentida<strong>de</strong>s nacionais possíveis. Foi uma enxurrada <strong>de</strong> telegramas efax para o governo. Quan<strong>do</strong> recebi o retorno <strong>de</strong> que tinha venci<strong>do</strong>mais essa batalha, que o presi<strong>de</strong>nte havia sanciona<strong>do</strong> o projeto, estavaviajan<strong>do</strong> pela região <strong>de</strong> Rio <strong>do</strong> Sul. Não sabia se chorava, se ria, oque fazia. Minha emoção era tamanha que eu tremia. Era a história<strong>de</strong> uma luta das mulheres <strong>do</strong> campo que se tornava realida<strong>de</strong>. Umsonho que se tornava real: o direito ao salário-maternida<strong>de</strong>, quebeneficiava não só as mulheres <strong>do</strong> campo, mas as pesca<strong>do</strong>ras,garimpeiras e outras trabalha<strong>do</strong>ras em regime <strong>de</strong> economia familiar.3. Já na Consolidação das Leis <strong>do</strong> Trabalho, na década <strong>de</strong> 1940, se garantia às trabalha<strong>do</strong>rasurbanas no Brasil, com exceção das empregadas <strong>do</strong>mésticas, o direito à licença-maternida<strong>de</strong>.Para as empregadas <strong>do</strong>mésticas, a licença-maternida<strong>de</strong> foi aprovada na Constituição<strong>de</strong> 1988.236


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutaPara quem carregava os filhos num cesto para a roça, porque nãotinha quem cuidasse <strong>de</strong>le em casa, foi uma vitória muito gran<strong>de</strong>.Era o reconhecimento <strong>do</strong> valor <strong>do</strong> trabalho e da cidadania das mulheres.Com o salário-maternida<strong>de</strong>, elas ganharam o direito a umsalário mínimo mensal, durante quatro meses. A requisição po<strong>de</strong>ser feita 40 dias antes <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> filho ou até três meses <strong>de</strong>pois.Esse avanço, é bom ressaltar, foi fruto <strong>de</strong> um trabalho articula<strong>do</strong>entre o mandato e o movimento social. Sem isso, não teríamosti<strong>do</strong> essa conquista.Questões para o <strong>PT</strong>Na minha experiência durante o mandato pu<strong>de</strong> perceber queeste caminho <strong>de</strong> amarrar os projetos políticos com os movimentossociais, com a socieda<strong>de</strong>, não é feito com a mesma força por todas asli<strong>de</strong>ranças e parlamentares <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. Quan<strong>do</strong> superamos a distânciaentre o parti<strong>do</strong> e a socieda<strong>de</strong>, as coisas acontecem <strong>de</strong> forma diferente,conseguimos conquistar muito mais. As relações <strong>do</strong> <strong>PT</strong> com asocieda<strong>de</strong> tornaram-se diferentes no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sses anos to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vida <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Nos anos 80, o movimento social impulsionavamuito da dinâmica <strong>do</strong> <strong>PT</strong> e trazia para o parti<strong>do</strong> muito <strong>de</strong> sua política.Hoje, os movimentos estão se afastan<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. Nosso parti<strong>do</strong>está com um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> fazer política que não está conseguin<strong>do</strong>incorporar valores novos, tanto <strong>de</strong> gênero como culturais.Da mesma forma, o <strong>PT</strong> também não consegue incorporar<strong>de</strong> fato questões que não sejam apenas econômicas, como a sexualida<strong>de</strong>,o meio ambiente, a violência, a discriminação, e que dizemrespeito a toda a socieda<strong>de</strong>. Muitas das questões políticasque são tratadas por movimentos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes são elementosque temos que estimular por meio <strong>de</strong> nossa prática política, amplian<strong>do</strong>os <strong>de</strong>bates e possibilitan<strong>do</strong> mudanças sociais. Nem tu<strong>do</strong>po<strong>de</strong> ser transforma<strong>do</strong> em projeto. Mas são temas riquíssimos eindispensáveis para uma mudança <strong>de</strong> valores, crian<strong>do</strong> uma novasocieda<strong>de</strong>. Para mim, a mudança econômica só vai acontecer sehouver junto transformações culturais. São valores estratégicos,transforma<strong>do</strong>res, que o <strong>PT</strong> precisa assumir. Se quiser representar237


Luci Choinaskios setores excluí<strong>do</strong>s, o <strong>PT</strong> precisa estar atento a estas questões.Não po<strong>de</strong>mos estar ausentes, temos que combinar essa luta comnossa luta contra o projeto neoliberal. Precisamos enten<strong>de</strong>r oque está acontecen<strong>do</strong> para não nos bitolarmos e caminharmossem ver as necessida<strong>de</strong> da população. São questões colocadas parao <strong>PT</strong>, pois muitos setores se afastam porque o parti<strong>do</strong> não pautaesses <strong>de</strong>bates. Quem per<strong>de</strong> com isso é o próprio <strong>PT</strong>. Não po<strong>de</strong>mosficar numa linha tradicional. Temos que garantir a construção<strong>do</strong> socialismo a partir da riqueza da realida<strong>de</strong> que está a nossavoltaTivemos vitórias importantes, como as cotas das mulheres naseleições e os 30% na direção <strong>do</strong> <strong>PT</strong>. Foram conquistas que resultaramda mobilização das mulheres. Mas temos que enfrentar as dificulda<strong>de</strong>sdas mulheres para exercer sua participação. Em primeirolugar, qual a condição que o parti<strong>do</strong> <strong>de</strong>u para a sua participaçãoefetiva? Quem tem criança não po<strong>de</strong> participar <strong>de</strong> reuniões porquenão tem on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o filho. As reuniões não foram pensadas apartir das mulheres, mas sempre a partir <strong>do</strong>s homens. A começarpela questão <strong>do</strong> horário, pois os homens não se preocupam se temoscondições <strong>de</strong> participar ou não.Outra questão: será que o homem já nasceu prepara<strong>do</strong> paraser lí<strong>de</strong>r? Nasceu um bom dirigente, inteligente, intelectualiza<strong>do</strong>,ou ele se construiu na participação? Isso intimida e afasta as mulheresda direção. Elas pensam: “Não estou preparada”. Com isso, assumemesse discurso masculino, discriminatório, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nossopróprio parti<strong>do</strong>. Claro que a direção <strong>de</strong>ve ter os melhores quadros.Mas as mulheres, como to<strong>do</strong>s os dirigentes, <strong>de</strong>vem se preparar fazen<strong>do</strong>acontecer, participan<strong>do</strong> das direções, quebran<strong>do</strong> a cara comoeles também quebram, erran<strong>do</strong> como eles também erram, pois ninguémapren<strong>de</strong> sem praticar. O discurso <strong>de</strong> que as mulheres não estãopreparadas acontece em todas as forças políticas presentes no <strong>PT</strong>e eu tenho combati<strong>do</strong> esse argumento. Não aceito isso, pois afastaas mulheres e não cria condições <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate político sério <strong>de</strong>participação feminina nas direções.O mesmo acontece nas campanhas eleitorais. As mulheresaceitam o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> serem candidatas, mas o problema é o tipo <strong>de</strong>238


Uma experiência prática <strong>de</strong> lutacampanha e o tratamento da<strong>do</strong> às disputas. Muitas mulheres nuncativeram renda e não têm como entrar na disputa; muitas têm umcerto me<strong>do</strong>, pois os homens estão acostuma<strong>do</strong>s a falar em público ecom isso têm um po<strong>de</strong>r a mais, aumentan<strong>do</strong> as dificulda<strong>de</strong>s dascandidatas. Pela nossa formação cultural, acabamos ten<strong>do</strong> me<strong>do</strong>.Fomos condicionadas a isso e não é fácil lidar com essa insegurança.Ou seja, as condições são <strong>de</strong>siguais entre homens e mulheres. Oparti<strong>do</strong> não coloca como priorida<strong>de</strong> a eleição <strong>de</strong> mulheres.Para atrair — e manter — novos setores para a política é precisorenovar nossos méto<strong>do</strong>s. Para garantir a participação da juventu<strong>de</strong>e das mulheres, por exemplo, é preciso <strong>de</strong>scobrir um novo jeito <strong>de</strong>fazer política. Com solidarieda<strong>de</strong>, com sensibilida<strong>de</strong>, com novasformas <strong>de</strong> se expressar, sem a <strong>do</strong>minação a partir da palavra, <strong>do</strong>discurso, sem as piadinhas que levam uma carga gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> preconceito,<strong>de</strong> conserva<strong>do</strong>rismo. Quanto mais as mulheres participarem,tanto <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> como <strong>do</strong>s movimentos da socieda<strong>de</strong>, quanto maisconquistarem seus espaços, mais enfrentaremos e superaremos a discriminação.Não tenho nenhuma disposição <strong>de</strong> construir um projetopolítico em que a <strong>do</strong>minação capitalista permaneça, em que continuea <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> homem sobre a mulher. O po<strong>de</strong>r com que eusonho, pelo qual eu luto, é aquele em que, com nossas diferenças,tenhamos as mesmas condições políticas, econômicas, sociais e culturais<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>senvolver. Garantir condições a quem não teve acessoà educação, por exemplo, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estudar, seja com que ida<strong>de</strong>for. Porque limites po<strong>de</strong>m ser supera<strong>do</strong>s. Homens e mulheres nãotêm limites. Tu<strong>do</strong> se supera, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a gente discuta e queira essasuperação. Por isso o <strong>PT</strong> precisa estar nesse <strong>de</strong>bate sobre o tipo <strong>de</strong>homem e <strong>de</strong> mulher que queremos construir e quais as condiçõespara superar os limites que a socieda<strong>de</strong> nos impôs. Homens e mulheresprecisam ser felizes. A imposição <strong>de</strong> qualquer coisa revelauma farsa. Não po<strong>de</strong>mos ter me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que os outros cresçam, <strong>de</strong> quehaja igualda<strong>de</strong>. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fato é aquele que permite a to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>crescer junto. E é esse, <strong>de</strong> fato, que queremos construir.239


Caso não encontre este livro nas livrarias,solicite-o diretamente a:Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 23404117-091 — São Paulo — SPFone: (011) 571-4299Fax: (011) 573-3338E-mail: editora@fpabramo.org.brHome-page: http://www.fpabramo.org.brA 1ª reimpressão <strong>de</strong> Mulher e política: gênero e feminismo no Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>sTrabalha<strong>do</strong>res foi realizada na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo em fevereiro <strong>de</strong>2000 pela Bartira Gráfica e Editora S.A. para a Editora FundaçãoPerseu Abramo. A tiragem foi <strong>de</strong> 1.000 exemplares. O texto <strong>do</strong>livro foi composto em Garamond no corpo 12/15. Os fotolitosda capa foram executa<strong>do</strong>s pela Graphbox e os laserfilms <strong>do</strong> mioloforam produzi<strong>do</strong>s pela própria Editora. A capa foi impressa empapel Cartão Supremo 240g; o miolo foi impresso em pólen soft80g.

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